juris plenum - ucs.br · odete medauar - livre-docente em direito administrativo pela usp sandro...

192
ISSN 2319-0256 Juris Plenum Direito Administrativo

Upload: vohuong

Post on 12-Dec-2018

217 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

ISSN 2319-0256

Juris PlenumDireito Administrativo

Page 2: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em
Page 3: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

Editora Plenum Ltda.Av. Itália, 460 - 1º andar

CEP 95010-040 - Caxias do Sul/RSFone: (54) 3733-7447

[email protected]

Juris PlenumDireito Administrativo

Ano II - número 7 - Setembro de 2015

EditorFlávio Augustin

Coordenador da Revista Leonardo da Rocha de Souza - Procurador Municipal

Conselho EditorialIves Gandra da Silva Martins - Doutor em Direito pela Universidade Mackenzie

Jackson Müller - Ex-Diretor Presidente da FEPAM/RS

Luiz Henrique Antunes Alochio - Doutor em Direito pela UERJ

Maria do Carmo Padilha Quissini - Mestre em Direito do Estado pela UFPR

Maria Sylvia Zanella Di Pietro - Doutora em Direito pela USP

Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP

Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS

Toshio Mukai - Doutor em Direito Econômico e Financeiro pela USP

Page 4: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

© JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO

EDITORA PLENUM LTDA

Caxias do Sul - RS - Brasil

Publicação trimestral de doutrina e prática forense. Todos os direitos reservados à Editora Plenum Ltda. É vedada a reprodução parcial ou total sem citação da fonte.

Os conceitos emitidos nos trabalhos assinados são de responsabilidade dos autores.

E-mail para remessa de artigos: [email protected]

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Índice para o catálogo sistemático:

1. Direito administrativo 342.92. Direito municipal 3523. Direito administrativo municipal 351.712

Catalogação na fonte elaborada pelo Bibliotecário Marcos Leandro Freitas Hübner - CRB 10/1253

Editoração eletrônica: Editora Plenum Ltda.

Tiragem: 3.000 exemplares

Distribuída em todo território nacional

Serviço de atendimento ao cliente: (54) 3733-7447

J95 Juris Plenum Direito Administrativo / Editora Plenum . Ano II, n. 7 (jul./set. 2015). - Caxias do Sul, RS: Editora Plenum, 2015.

192p. ; 23cm.

Trimestral Descrição baseada em: Vol. 1, n. 1 (jan./mar. 2014). ISSN: 2319-0256 1. Direito administrativo. 2. Direito municipal. 3. Direito administrativo municipal. I. Editora Plenum.

CDU 2ed. 342.9

Page 5: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO .......................................................................................................... 7

DESTAQUE: POLÍTICA NACIONAL DE RESÍDUOS SÓLIDOS ................................... 9

Doutrina ..................................................................................................................... 11

Resenha ....................................................................................................................99

ASSUNTOS DIVERSOS .............................................................................................. 105

Doutrina ...................................................................................................................107

Prática Forense........................................................................................................183

NORMAS PARA ENVIO DE ARTIGOS DOUTRINÁRIOS .......................................... 191

Page 6: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em
Page 7: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

APRESENTAÇÃO

Chegamos ao nosso 7º número com uma importante conquista: a Revista Juris Plenum Direito Administrativo foi avaliada pela CAPES e alcançou o Qualis B2. Essa é uma marca impressionante para uma Revista jovem como a nossa, demonstrando a qualidade da equipe da Editora Plenum, sempre buscando a qualidade do material que disponibiliza ao público.

Essa qualidade é mais uma vez confirmada no volume que ora apresentamos. A sessão destaque trata da Política Nacional de Resíduos Sólidos, contando com artigos mais dogmáticos (de análise legislativa), outros mais teóricos (tratando de aspectos mais sociológicos e filosóficos do assunto), e ainda outros mais pragmáticos (com aplicação e estudos de caso). Esses artigos enfatizam a responsabilidade na execução dessa política, problemas relacionados à justiça ambiental e ao consumo, bem como destacam elementos da Lei que instituiu a Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei nº 12.305, de 2 de agosto de 2010), “dispondo sobre seus princípios, objetivos e instrumentos, bem como sobre as diretrizes relativas à gestão integrada e ao gerenciamento de resíduos sólidos, incluídos os perigosos, às responsabilidades dos geradores e do poder público e aos instrumentos econômicos aplicáveis” (art. 1º).

Na sessão geral, importantes assuntos são tratados a respeito da Administração Pública, com destaque para um artigo de Angola, inaugurando a internacionalização da Revista.

Seguimos, ainda, com a novidade lançada no volume anterior da Revista: um DVD, anexado na contracapa, com modelos relacionados aos contratos administrativos e às licitações.

Esperamos, mais uma vez, ter atendido às expectativas do seleto público da Revista.Boa leitura!

LEONARDO DA ROCHA DE SOUZACoordenador da Revista Juris Plenum Direito AdministrativoProfessor da Graduação e do Mestrado em Direito da UCS

Procurador do Município de Caxias do Sul/RSDoutor em Direito

Page 8: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em
Page 9: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

DESTAQUE POLÍTICA NACIONAL DE RESÍDUOS SÓLIDOS

Doutrina

O hiperconsumo na sociedade moderna e os riscos ambientais provocados por resíduos sólidos: as políticas públicas e o plano nacional dos resíduos sólidos como elementos minimizadores desses riscosAGOSTINHO OLI KOPPE PEREIRA, CLEIDE CALGARO..................................11

Reflexões sobre a responsabilidade ambiental e os resíduos sólidos no Século XXIARIANE BAARS, SOLANGE SILVA ALVARES DA CUNHA.................................29

A aplicação do princípio da precaução na Política Nacional de Resíduos Sólidos e na Administração PúblicaCLÉA DE MORAES CANTANHEDE....................................................................41

O direito de construir e o manejo de resíduos sólidos da construção civil como expressão de justiça socioambientalGILSON FERREIRA, CAROLINE MARQUES LEAL JORGE SANTOS..............67

Análise descritiva da questão ambiental envolvendo alegada importação de lixo tóxico (POPs) do município de Cubatão/SP para o município de Belford Roxo/RJ: um estudo de casoIGOR SILVA DE MENEZES..................................................................................77

Resíduos e justiça ambiental no Parque Guaraciaba em Santo André, BrasilLUCIANA ZIGLIO..................................................................................................89

ResenhaResíduos sólidos e responsabilidade civil pós-consumoMARIANA CAMARGO DE OLIVEIRA DA COSTA TELLES.................................99

Page 10: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em
Page 11: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

O HIPERCONSUMO NA SOCIEDADE MODERNA E OS RISCOS AMBIENTAIS PROVOCADOS POR

RESÍDUOS SÓLIDOS: AS POLÍTICAS PÚBLICAS E O PLANO NACIONAL DOS RESÍDUOS SÓLIDOS COMO

ELEMENTOS MINIMIZADORES DESSES RISCOS*

THE HYPER CONSUME IN MODERN SOCIETY AND ENVIRONMENTAL RISKS CAUSED BY SOLID WASTE: PUBLIC POLICY AND THE NATIONAL PLAN OF SOLID

WASTE AS MINIMIZERS ELEMENTS SUCH RISKS

AGOSTINHO OLI KOPPE PEREIRADoutor em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos -

UNISINOS. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Especialista em metodologia do ensino e da pesquisa jurídica. Bacharel

em Direito pela Universidade de Caxias do Sul. Professor titular da Universidade de Caxias do Sul. E-mail: [email protected].

CLEIDE CALGARODoutora em Ciências Sociais na Universidade do Vale do Rio

dos Sinos - UNISINOS. Pós-Doutora em Filosofia na PUC/RS. Doutoranda em Direito pela Universidade de Santa Cruz - UNISC. Mestre em Direito e em Filosofia pela Universidade de Caxias do Sul - UCS. Graduada em Direito pela Universidade de Caxias do

Sul - UCS. Professora do Curso de Direito da Universidade de Caxias do Sul. E-mail: [email protected].

* Data de recebimento do artigo: 07.08.2015.Datas de pareceres de aprovação: 11.08.20145 e 15.08.2015.Data de aprovação pelo Conselho Editorial: 17.08.2015.

Destaque: Política Nacional de Resíduos Sólidos - Doutrina

Page 12: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

12 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Destaque

SUMÁRIO: Introdução - 1. A modernidade e pós-modernidade embaladas na rede do hiperconsumo - 2. As políticas públicas como minimizadoras dos riscos ambientais advindos do hiperconsumo: a Política Nacional de Resíduos Sólidos no Brasil - Conclusão - Referências.

SUMMARY: Introduction - 1. Modernity and post-modernity packed in excess consumption network - 2. Public policies as minimizers of environmental risks arising from excess consumption: national solid waste policy in Brazil - Conclusion - References.

RESUMO: No presente artigo discorre-se sobre aspectos sociais que interferem na relação dos resíduos sólidos com o meio ambiente. Para isso, trabalha-se a modernidade e a pós-modernidade como elementos temporais interconectos sustentadores e susten-tados pelo homo consumator, dentro da ideia de hiperconsumismo. No mesmo contexto, trabalha-se com as políticas públicas como elementos possíveis de minimização dos riscos ambientais provocados pelos resíduos sólidos ao meio ambiente e, como último aspecto, analisa-se a política nacional dos resíduos sólidos, procurando verificar como o Direito brasileiro se insere no contexto-tema deste artigo.

PALAVRAS-CHAVE: resíduos sólidos; meio ambiente; hiperconsumo; modernidade; pós-modernidade.

ABSTRACT: The present study discusses about social aspects that affect the relationship of solid waste to the environment. For this, it works to modernity and postmodernity as temporal elements supporters interconnects and sustained by homoconsumer, within the idea of hyper consume. In the same context, it works with public policy as possible elements of minimizing the environmental risks associated with solid waste to the environment and, as a last aspect, analyzes the national policy of solid waste, looking to see how the Brazilian law is in the context of this study.

KEYWORDS: solid waste; environment; hyper consumption; modernity; postmodernity.

INTRODUÇÃO

No presente artigo pretende-se enfrentar os problemas que surgem na sociedade moderna hiperconsumista, quando se está diante dos riscos provocados por resíduos sólidos lançados no meio ambiente.

Trabalham-se, primeiramente, as ideias de modernidade e de pós-modernidade associadas ao hiperconsumo, com vistas a demonstrar o consumo desregrado que se dispõe na sociedade por meio de um contexto em que o consumo se sobrepõe a qualquer outro valor social, ou seja, “consumir é ser”. A implementação desse estilo de vida, voltada para o consumo, direciona a satisfação pessoal apenas para a compra de bens. Assim, o indivíduo deixa de ser pessoa para ser consumidor e, nessa perspectiva, consumir é preciso, fazendo com que os bens sejam cada vez mais consumidos, destruídos e des-cartados em um ritmo cada vez maior.

Page 13: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

13O HIPERCONSUMO NA SOCIEDADE MODERNA

Dentro dessa ótica, no segundo momento deste artigo, estudam-se os resíduos sólidos, buscando entender como a modernidade propicia as condições para o aumento no consumo e, consequentemente, o aumento dos resíduos sólidos, tendo em vista que estes são o ponto causador dos riscos ambientais provocados por seu descarte indevido no meio ambiente.

No terceiro e último item do presente artigo estudam-se as políticas públicas como elementos possibilitadores da diminuição dos riscos ambientais advindos dos resíduos sólidos. A política nacional dos resíduos sólidos (Lei 12.305, de 02.08.2010), possui destaque neste item, tendo em vista que esta pretende ser o dispositivo legal capaz de propiciar soluções minimizadoras dos riscos ambientais provocados pelo lançamento desses resíduos na natureza sem os cuidados apropriados.

Ao final deste artigo, espera-se propiciar à comunidade acadêmica e à comunidade em geral um retrato da situação dos resíduos sólidos lançados no meio ambiente e a forma com que as políticas públicas podem atuar para a minimização dos problemas de riscos ambientais provocados por esses resíduos. Por outro lado, almeja-se, também, que seja possível situar o leitor dentro do mundo social - moderno - em que se insere o tema do artigo, vez que, é nesse contexto que se desenvolve o problema proposto, tendo em vista que o consumo desregrado gera problemas ambientais que aparecem - nos produtos e serviços - na produção, no consumo e no pós-consumo.

1. A MODERNIDADE E PÓS-MODERNIDADE EMBALADAS NA REDE DO HIPERCONSUMO

Primeiramente, é de se esclarecer as ideias de modernidade e sua transmutação para a pós-modernidade, uma vez que se têm opiniões contraditórias sobre a existência da segunda e a própria possibilidade de seu surgimento. Tendo em vista esses aspectos optou--se por aceitar a convivência entre os dois tipos sociais, vez que se entende, analisando as sociedades que não existe uma linearidade de progresso humano - seja ele tecnológico, cultural, ou social. Muito pelo contrário, em muitas sociedades encontram-se indivíduos com capacidade para colocar um foguete em Marte, enquanto que outros vivem como se estivessem no período neolítico. Nessa seara, pode-se, sem sombra de dúvidas, afirmar que na sociedade contemporânea podem-se ter os dois elementos no mesmo espaço temporal - modernidade e pós-modernidade se confundem temporal e espacialmente.

Assim, nota-se que a sociedade contemporânea é extremamente complexa. Para verificar essa complexidade pode-se continuar trabalhando, nesse item, abordando as ideias de modernidade e pós-modernidade, visto que a humanidade se encontra num momento de transição. Assim, para retratar o momento histórico atual, intelectuais, acadêmicos, jornalistas, entre outros, utilizam mais que o vocábulo modernidade, indicando expressões pós-modernidade, sociedade de consumo, sociedade de hiperconsumo, sociedade de risco.

Page 14: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

14 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Destaque

Nessa perspectiva, conseguem configurar uma sociedade de informação, de conhecimento, de capitalismo, de risco, de consumo e, porque não dizer, de fim da própria modernidade.

A humanidade evolui tecnologicamente de forma significativa nos últimos séculos, apresentando avanços como, por exemplo, o desenvolvimento da biotecnologia, da ciên-cia, da informática, das telecomunicações, da produção, das indústrias em geral. Esses avanços trouxeram grandes mudanças nas relações sociais e culturais, criando assim, uma sociedade dita moderna que se transmutou em uma sociedade de consumo.

Esse avanço propiciou o progresso que nos fins do século XX desconectou a modernidade de si mesma e ofereceu o pensamento para a pós-modernidade. Nesse sentido, contemporaneamente, se discute se a sociedade encontra-se na modernidade ou já ultrapassou os portais da pós-modernidade. Fora a discussão sobre modernidade ou pós-modernidade, o que se tem certeza é que essa sociedade se expandiu tendo o consumismo como motor propulsor de seu desenvolvimento econômico e tecnológico.

Uma vez que se está trabalhando com duas palavras que se demonstram pare-cidas - consumo e consumismo - ou seja, que aparentemente e apenas aparentemente são iguais em sentido fazem-se necessárias algumas explicações sobre as formas de entendimento das duas.

O consumo é algo necessário à vida. Todos os seres consomem energia para a sua subsistência. As plantas consomem água, oxigênio e utilizam a energia solar para sua sobrevivência; os animais, ditos irracionais ou racionais, além dos elementos utilizados pelas plantas, consomem água e alimentos orgânicos. Assim, o homem retira dos alimentos a energia necessária para se manter vivo e para satisfazer suas necessidades diárias, além, é claro, de utilizar outras fontes de energia, como a eletricidade por exemplo.

Nesse contexto, pode-se afirmar que, para o entendimento do presente trabalho, consumo é aquilo que o indivíduo utiliza para satisfazer suas necessidades habituais, ou, seja, produtos ou serviços que servem para a manutenção de uma vida dita normal.

O consumismo faz parte de uma realidade imposta aos cidadãos pela denominada sociedade de consumo. É o desejo de consumo exacerbado, no qual o indivíduo busca, incessantemente, produtos e serviços cada vez mais supérfluos, ou seja, que poderiam ser deixados de lado sem que isso criasse qualquer empecilho à vida.

Percebe-se que na sociedade moderna as pessoas, em geral, consomem para sanar seus vazios interiores, tornando-se escravos e escravas do consumismo (consumo exacerbado e desregrado). Nesse diapasão, é deixado de lado o consumo que serve estritamente para o sustento e as necessidades básicas, para direcionar o consumo à busca de status e poder.

A sociedade de consumo que gerou o indivíduo consumista trabalha midiaticamente sobre a fórmula circular: insatisfação, infelicidade, compra, consumo, felicidade - insatis-fação, infelicidade, compra, consumo, felicidade. Assim, com a compra o indivíduo crê que satisfez suas necessidades e seus desejos e, no momento seguinte, já acredita que

Page 15: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

15O HIPERCONSUMO NA SOCIEDADE MODERNA

aquele produto não é mais capaz de satisfazê-lo. Então, influenciado pela mídia, busca um novo produto que deverá deixá-lo feliz.

Esse ciclo vicioso que induz ao consumo exagerado encontra, portanto, explicação lógica dentro do sistema idealizado para a sociedade de massa que se perfez em socie-dade moderna e após em sociedade de consumo. Bauman, abordando o assunto no livro Vida para o consumo, destaca e acentua o fetichismo pelo novo em detrimento do que é velho, impondo a este a tarja de defasado, impróprio para o consumo, referindo-se que uma sociedade de consumo está atrelada não só à produção, mas também ao descarte, levando os objetos o mais rapidamente possível para o lixo.1

Dentro desse funcionamento, a sociedade de consumo induz o indivíduo a firmar sua autoestima, assim como sua felicidade, na aquisição de novos bens. Sua vida toda girará em torno de adquirir e descartar produtos, para adquirir novamente. Do outro lado da mesma moeda, os indivíduos possuem diferentes valorações, dentro da sociedade, determinadas pelo seu poder de compra, criando uma batalha intrínseca para a busca do poder/status por meio do consumo/consumismo.

Analisando o contexto, sob a óptica psicológica, o consumo pode ser entendido como um simples querer coisas, cujos atrativos são inerentes à sua natureza, ou como um querer coisas, cujos atrativos dependem das aquisições feitas pelo outro (popularmente chamada de inveja - zelotipia, emulação, rivalidade), ou como um querer coisas, cujos atrativos são o reflexo da imagem do “eu” (o desejo). Em todos os casos, o consumo passa pela relação entre e o querer e a possibilidade de possuir.2

Ao se elaborar uma comparação entre a sociedade moderna e a pré-moderna, notam-se diferenças que induzem, na sociedade moderna, ao comportamento consumista. O tempo o e espaço são encurtados na sociedade moderna. Fala-se em aldeia global,3 devido à aproximação de todos no contexto planetário. Um cidadão da modernidade altera rapidamente seu modo de vestir, suas ideologias, até mesmo sua religião, com naturali-dade e de forma quase instantânea. Como diria Bauman, é uma sociedade líquida, pois não tem um formato definido. As pessoas se tornaram mais ansiosas, cheias de desejos para serem saciados rapidamente. No livro Amor líquido,4 Bauman, diz que a velocidade dessa nova sociedade gera o desapego dos indivíduos tanto entre eles mesmos quanto em relação aos objetos.

Do ponto de vista econômico, o consumo é considerado a etapa final do proces-so produtivo,5 ou seja, a produção é o ponto de partida e o consumo é a finalização do

1 BAUMAN, Zygmunt. Vida para o consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

2 PADILHA, Valquíria. Shopping center: a catedral das mercadorias. São Paulo: Boitempo, 2006. p. 85.3 O conceito de “aldeia global”, foi criado pelo sociólogo canadense Marshall McLuhan.4 BAUMAN, Zigmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. São Paulo: Jorge Zahar, 2004.5 PADILHA, Valquíria. Shopping center: a catedral das mercadorias. São Paulo: Boitempo, 2006. p. 85.

Page 16: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

16 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Destaque

processo. A produção só faz sentido porque há consumo para o produto produzido e, nesse sentido, o consumo leva ao aumento da produção. Os cidadãos que produzem também são consumidores, dependendo de suas condições financeiras. Pode-se perceber que a análise econômica se faz desde a produção até o consumo, deixando de analisar as toneladas de insumos descartados.

Assim, o consumo não pode ser analisado isoladamente:

O consumo não pode, então, ser considerado um momento autô-nomo: ele encontra-se determinado seja pelo complexo processo constitutivo dos desejos humanos, seja pela lógica de produção, o que, nas sociedades capitalistas significa dizer que se encontra determinado pela lógica do lucro.6

Para o desenvolvimento desses aspectos consumeristas a sociedade moderna trouxe como proposta, se afastar dos pressupostos que formaram as sociedades ditas tradicionais, desvinculando-se do passado e, portanto, tendo o novo como elemento pro-pulsor dos desejos. Nessa seara, o consumismo é implementado pelo mercado.

Assim, quando se trabalha sob a ótica do mercado verifica-se que a modernidade veio como uma possibilidade de satisfação das veleidades individuais, sem a preocupação com o passado ou futuro. Viver o presente, o aqui e o agora são as palavras de ordem. Nesse plano das ideias, os indivíduos não se preocupam com questões importantes como, por exemplo: aonde vai o lixo trazido pelo consumismo? O que fazer com produtos que podem ser utilizados, mas que não são do último modelo?

A modernidade veio, com a possibilidade e propostas - por meio de conceitos concretos e desenvolvidos sob a ótica das certezas tecnológicas e científicas, além, certa-mente, da utilização da razão como forma de dominação da natureza - de estabelecer uma sociedade capaz de proporcionar felicidade e satisfação a todos os cidadãos. [...]. Com a modernidade, surgem aspectos como o dinamismo tecnológico, a forte vinculação com a razão; a ideia de ciência, como elemento de exatidão e certeza; a liberdade vinculada à razão; o otimismo exagerado de benesses a todos, dentro da ideia de globalização, entre outros.7

Dessa maneira, as relações de consumo, enquanto espécie das relações sociais se desenvolvem em um plano de dominação e alienação política, econômica, social e mesmo cultural. Nesse contexto - pelo caminho inverso do desejável - as demais relações sociais - laços familiares, profissionais, educacionais, religiosas, culturais, políticos e mesmo jurí-dicos - são “contaminadas” com a poluição consumista, pois, segundo a versão moderna

6 Idem.7 PEREIRA, Agostinho Oli Koppe; PEREIRA, Henrique Mioranza Koppe. A modernidade e a questão da vida.

In: PEREIRA, Agostinho Oli Koppe; CALGARO, Cleide. Direito ambiental e biodireito: da modernidade à pós-modernidade. Caxias do Sul: EDUCS, 2008. p. 230.

Page 17: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

17O HIPERCONSUMO NA SOCIEDADE MODERNA

de sociedade, somente por intermédio do “consumo” é possível buscar a felicidade, se obter a satisfação pessoal e ser cidadão.

Entretanto, essa felicidade é incognoscível, pois, no fundamento do mercado moderno, ela deve ser sempre procurada e nunca é saciada. Na atualidade, a fórmula do consumo é: buscar uma felicidade que, ao ser tocada evanesce e esmorece para que ela seja buscada novamente e continuamente, todos os dias.

Os pressupostos da cidadania, lamentavelmente, são trocados por um único pres-suposto, o consumismo, como se ser cidadão fosse apenas consumir desregradamente.

Por esses caminhos que envereda o consumo, até mesmo as relações sociais tomam novas conotações, às vezes avassaladoras e supérfluas. Hoje, amar é como um passeio no shopping, visto que, tal como outros bens de consumo, o relacionamento hu-mano deve ser consumido instantaneamente, não requer maiores intimidades nem grandes conhecimentos sobre a pessoa com quem é travado o efêmero vínculo, pois, em seguida, ele será destruído e, depois, criar-se-ão outros laços com outras pessoas, construindo laços afetivos rapidamente e, logo, desmanchando-os, como um bem de consumo.8

Na face da modernidade surge a desvinculação entre tempo e espaço, que não mais se confundem, fazendo-se necessário que se pense em novas alterações das concepções e ideologias. Tornar o poder um fator secundário, em que este não seja a fonte de ânsia do ser humano. O homem deve buscar entender a complexidade do poder, entender suas diversas formas de se portar, e somente assim chegará ao encontro de um saber humano sistematizado e justo.9

A sociedade moderna acaba se formando em condições que programam um novo estilo de vida, em que o ser humano acaba perdendo sua essência, para se transformar em um ser consumidor. Assim sendo, não se consomem mais para sanar as necessidades de sobrevivência, mas sim, pela alacridade de comprar, de satisfazer o ego, de se enqua-drar em padrões sociais e culturais, de ganhar status, ou mesmo, para consumir. Para Lipovetsky, “[...] Desde os anos de 1980, as novas elites do mundo econômico alardeiam sem complexos, seus gostos pelos produtos de luxo e pelos símbolos de posição social. [...] O esnobismo, o desejo de parecer rico, o gosto de brilhar, a busca da distinção social pelos signos demonstrativos, tudo isso está longe de ter sido enterrado pelos últimos desenvolvimentos da cultura democrática e mercantil”.10

8 PEREIRA, Agostinho Oli Koppe; PEREIRA, Henrique Mioranza Koppe; PEREIRA, Mariana Mioranza Koppe. Hiperconsumo e a ética ambiental. In: PEREIRA, Agostinho Oli Koppe; HORN, Luiz Fernando Del Rio. Relação de consumo: meio ambiente. Caxias do Sul: EDUCS, 2009. p. 15.

9 CALGARO, Cleide. Desenvolvimento sustentável e consumo: a busca do equilíbrio entre o homem e o meio ambiente. In: PEREIRA, Agostinho Oli Koppe; HORN, Luiz Fernando Del Rio. Relação de consumo: meio ambiente. Caxias do Sul: EDUCS, 2009. p. 15.

10 LIPOVETSKY, Gilles. O luxo eterno: da idade do sagrado ao tempo das marcas. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 51.

Page 18: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

18 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Destaque

Lipovetsky explica ainda, que o mundo do consumo acaba se imiscuindo na vida e nas relações das pessoas. Para ele:

Todos os dias, parece que o mundo do consumo se imiscui em nossas vidas e modifica nossas relações com os objetos e com os seres, sem que, apesar disso e das críticas que se formulam a respeito dele, consiga-se propor um contra-modelo crível. E, para além da postura crítica, seriam raros aqueles que desejariam mesmo aboli-lo em definitivo. É forçoso constatar que seu império não para de avançar: o princípio de self-service, a busca de emoções e prazeres, o cálculo utilitarista, as superficialidades dos vínculos parecem ter contaminado o conjunto do corpo social, sem que nem mesmo a espiritualidade escape disso.11

Consequentemente, os objetos, os serviços e principalmente as pessoas, podem ser substituídas. O tempo é momentâneo para a lógica consumista. Dessa maneira necessita-se provar de todas as “dádivas” advindas do consumo, em tempos efêmeros e lacônicos, sendo que o relativismo e o imediatismo são fatores e faces dessa nova sociedade de consumo.

Essa cultura consumista se desenvolve, também, a partir de uma educação que cria o desejo pelo consumo, pelo descarte, pela valorização do novo. O velho se torna ultrapassado e sem sentido. Porém, as consequências dessas atitudes não têm qualquer proeminência para o “ser consumidor”. Consumir se torna a palavra mágica, capaz de trans-formar a vida do indivíduo, alçando-o ao patamar de detentor de status e de poder no mundo, fazendo com que este se sinta grandioso, o “deus” de possibilidades e de oportunidades.

A ideia de uma cultura do consumo é de sobremaneira apropriada à sociedade moderna, pois ela se revela estruturada sobre esse conceito e padrão. Featherstone, que também usa a expressão “cultura do consumo” buscando demonstrar a intrínseca relação entre a modernidade e o consumismo, afirma que:

Usar a expressão “cultura de consumo” significa enfatizar que o mundo das mercadorias e seus princípios de estru-turação são centrais para a compreensão da sociedade contemporânea. Isso envolve um foco duplo: em primeiro lugar, na dimensão cultural da economia, a simbolização e o uso dos bens materiais como “comunicadores”, não ape-nas como utilidades; em segundo lugar, na economia dos bens culturais, os princípios de mercado - oferta, demanda, acumulação de capital, competição e monopolização - que operam “dentro” da esfera dos estilos de vida, bens culturais e mercadorias.12

11 LIPOVETSKY, Gilles. Os tempos hipermodernos. São Paulo: Bacarolla, 2004. p. 33.12 FEATHERSTONE, Mike. Cultura do consumo. Tradução Júlio Assis Simões. São Paulo, 1990. p. 121.

Page 19: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

19O HIPERCONSUMO NA SOCIEDADE MODERNA

Já Canclini, nesse patamar de discussão, salientando que a forma concreta que envolve a racionalidade econômica vigente no mundo consumista e embala os sonhos de uma autodeterminação de consumir se realizando apenas na heteronomia mercadológica, afirma que:

Estudos de diversas correntes consideram consumo como um mo-mento do ciclo de produção e reprodução social: é o lugar em que se completa o processo iniciado com a geração de produtos, onde se realiza a expansão do capital e se reproduz a força de trabalho. Sob este enfoque, não são as necessidades ou os gostos individuais que determinam o que, como e quem consome. O modo como se planifica a distribuição dos bens depende das grandes estruturas de administração do capital. Ao se organizar para prover alimento, habitação, transporte e diversão aos membros de uma sociedade, o sistema econômico “pensa” como reproduzir a força de trabalho e aumentar a lucratividade dos produtos. Pode-se não estar de acordo com a estratégia, com a seleção de quem consumirá mais ou menos, mas é inegável que as ofertas, bens e a indução publicitária de sua compra não são atos arbitrários.13

O ser humano é educado para o consumo, não conseguindo libertar-se da infusão em que está mergulhado e induzido. Sonha com a felicidade etérea, que lhe escapa de suas mãos, por ser fugaz, após cada compra, vez que ao levar para casa o produto sempre descobre no dia seguinte, ou no mesmo dia, que já existe algo melhor no mercado. Vive, portanto, avidamente procurando tesouros e encontrando vermes.14

Após esta análise procurar-se-á, no próximo item, adentrar ao tema dos riscos que advém dos resíduos sólidos, propiciando a possibilidade de uma interface com o meio ambiente. Nesse diapasão, no segundo item deste artigo pretende-se enfrentar as questões das políticas públicas, tendo em vista a possibilidade de se minimizar os riscos criados pelo descarte dos resíduos sólidos no meio ambiente, na busca de uma sociedade saudável social e ambientalmente.

2. AS POLÍTICAS PÚBLICAS COMO MINIMIZADORAS DOS RISCOS AMBIENTAIS ADVINDOS DO HIPERCONSUMO: A POLÍTICA NACIONAL DE RESÍDUOS SÓLIDOS NO BRASIL

Os riscos que surgem com os resíduos sólidos estão intimamente ligados com a área tecnológica proveniente da industrialização desenvolvida na sociedade moderna: siderurgia, biotecnologia, energia atômica, nucleares, uso da água, etc. Nesse viés, se está diante

13 CANCLINI, Nestor García. Consumidores e cidadãos - conflitos multiculturais da globalização. Rio de Janeiro: UFRJ, 1996. p. 54.

14 GOETHE. Fausto. Tradução Agostinho D’Ornellas. São Paulo: Martin Claret, 2009. p. 40.

Page 20: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

20 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Destaque

dos denominados riscos fabricados dentro da sociedade. Tais riscos causam um efeito “bumerangue” e ao mesmo tempo representam um novo mercado (BECK, 2010, p. 44).

Para Giddens (GIDDENS 2002, p. 78), o risco moderno é mais bem entendido se comparado ao pré-moderno, quando era marcado por causas naturais. Na modernidade, sobretudo no mundo Ocidental, o risco é criado socialmente e conexo ao conceito de perigo, quer os sujeitos estejam ou não conscientes dele. Isso não significa que as sociedades ocidentais estejam mais expostas aos perigos que as antecessoras. O que se pode dizer é que agora, os perigos são codificados como “riscos”, na medida em que os sujeitos podem exercer algum tipo de controle sobre eles. Ou seja, o risco não é uma novidade. O novo está em uma sociedade que passa a gerá-lo e a naturalizar a convivência com ele e suas consequências. Trata-se, deste modo, da explicitada sociedade de risco.

Com o “progresso” industrial desenvolvido na sociedade moderna, o homem foi rapidamente degradando o meio ambiente em busca de matéria-prima para a sua produção gerando, tanto na origem dos produtos, quanto no seu final, um verdadeiro caos ambiental.

Segundo Luneli (2011, p. 78):

Os padrões de consumo da sociedade atual provocam uma retirada de recursos do meio natural maior que sua capacidade de restauração e uma produção de resíduos maior que a sua capacidade de absorção.

Ao verificar a possibilidade de destruição do meio ambiente, possibilitador da vida humana e demais espécimes do planeta, parte da humanidade iniciou uma luta pela pre-servação dos recursos naturais. Essa necessidade de proteção ambiental surgiu quando o homem passou a valorizar a natureza, inicialmente de forma mais simples, e atualmente, de forma mais intensa.

Assim, diante do desequilíbrio ambiental gerado e tendo em vista que a sociedade moderna, juridicamente, se suporta sobre os pilares estatais, cabe ao Estado propor ações preventivas, por meio de políticas públicas, perante as situações de risco à sociedade.

“A ideia de Política Pública surge, antes de tudo, do debate social entre os diver-sos agentes, como é o caso das classes sociais, partidos políticos, movimentos sociais, interesses individuais, etc.” (LINDOMAR 2011, p. 48). Por outro lado, as políticas públicas podem ser definidas como:

As ações empreendidas ou não, pelos governos que deve-riam estabelecer condições de equidade no convívio social, tendo por objetivo dar condições para que todos possam atingir uma melhoria da qualidade de vida compatível com a dignidade humana (DIAS; MATOS, 2012, p. 12).

Page 21: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

21O HIPERCONSUMO NA SOCIEDADE MODERNA

Neste sentido, a população tem o direito de obter determinados serviços por intermédio do Governo, cabendo a este garantir determinados direitos aos cidadãos, especialmente os direitos fundamentais sociais. Ampliando o sentido as políticas públicas:

Podem ser definidas como todas as ações de governo e podem ser divididas em atividades diretas de produção de serviço pelo próprio Estado em atividades de regulação que influenciam as realidades econômicas, social, ambiental, especial e cultural (SILVA; SOUZA-LIMA, 2010, p. 4).

Com base nas definições dos autores, fica claro que a política pública está, acima de tudo, associada a uma dimensão simbólica de cidadania em função da construção social, em proveito de respostas às demandas escolhidas como prioritárias dentro de um processo de seleção e criação.

Mundialmente e no Brasil houve, nas últimas décadas, uma preocupação com a preservação ambiental, visto que os diversos acontecimentos catastróficos e os problemas ambientais advindos do hiperconsumo fizeram com que os organismos internacionais e os governos passassem a adotar uma nova postura para a minimização desses impactos ambientais.

A atuação da Organização das Nações Unidas (ONU), em 1972, foi importante na organização da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente Humano. Após essa Conferência, os problemas ambientais foram vistos e receberam tratamentos diferentes, em que os países tiveram que reavaliar suas estratégias.

Na Constituição brasileira de 1988, o artigo 225 exerce o papel norteador do meio ambiente mensurado pela obrigação do Estado e da Sociedade na garantia de um meio ambiente ecologicamente equilibrado.

Já a legislação infraconstitucional nacional, sofreu impacto com o surgimento de novas leis como a Lei 6.938/1981, Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, que reconhece juridicamente o meio ambiente como um direito próprio e autônomo. Também, a Lei 12.305 de 2010 que instituiu a Política Nacional dos Resíduos Sólidos (PNRS) é um exemplo de política pública ambiental, pois, estabelece princípios, objetivos, diretrizes, metas e ações que visam à gestão integrada e o gerenciamento ambientalmente adequado dos diversos tipos de resíduos sólidos gerados no País (BRASIL, 2013).

A PNRS trás no seu art. 6º, inciso II, o princípio do poluidor-pagador e o protetor--recebedor, cuja proposta central do primeiro propõe que aquele que degrada o meio ambiente tem o dever de recuperar ou indenizar; o segundo consiste no direito do protetor de receber pela proteção que ele ministra ao meio ambiente.

Para que ocorra a efetivação e o sucesso dos princípios acima, é necessário que todos os indivíduos e autoridades responsáveis se coloquem ao trabalho de tirar essas

Page 22: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

22 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Destaque

regras da teoria para sua existência efetiva na prática, pois não adianta apenas criá-las (MILARÉ apud LUNELLI, 2011, p. 168).

Portanto, cabe ao poder público a tarefa de agir antecipadamente, traduzida na necessidade de adoção de uma gestão racional dos recursos públicos, em medidas que minimizem os efeitos destrutivos da ação humana sobre a natureza (LUNELLI, 2011, p. 171).

Desse modo, as Políticas Públicas devem ser entendidas como a aplicação em concreto das necessidades dos cidadãos e, principalmente, como a realização prática dos seus direitos a partir de programas politicamente definidos, que passam primeiramente, por uma questão política, para depois se transformarem em questões jurídicas. Assim, pode-se verificar a importância das Políticas Públicas para a garantia de um ambiente possibilitador da manutenção da vida humana e dos demais espécimes no planeta.

Essas preocupações com o meio ambiente vêm dos danos ao meio ambiente que o descarte dos resíduos sólidos provoca, levando, indiscutivelmente, à redução da qualidade de vida e criação de impedimentos ao desenvolvimento da cidadania.

Diante desse contexto, o Ministério do Meio Ambiente veio desenvolver trabalhos buscando potencializar ações em diferentes âmbitos, com o propósito de estabelecer formas adequadas para enfrentamento do problema. Desse modo, a Lei nº 12.305/2010 instituiu a Política Nacional de Resíduos Sólidos - PNRS - que vem reunir um conjunto de princípios, instrumentos, diretrizes, metas, objetivos e ações que devem ser adotadas pelo Governo Federal, de forma isolada ou em regime de cooperação com os Estados, Distrito Federal, Municípios ou particulares, com uma ideia de gestão integrada e compartilhada.

Como instrumentos da Política Nacional de Resíduos Sólidos têm-se os planos de resíduos sólidos, como: plano nacional de resíduos sólidos; planos estaduais de resíduos sólidos; planos microrregionais de resíduos sólidos e os planos de resíduos sólidos de regiões metropolitanas ou aglomerações urbanas; planos intermunicipais de resíduos sólidos; planos municipais de gestão integrada de resíduos sólidos; e os planos de geren-ciamento de resíduos sólidos. Esses planos servem para uma gradual mudança de atitude da sociedade brasileira, com fins de buscar uma nova gestão ambientalmente correta.

Percebe-se que a Política Nacional de Resíduos Sólidos veio introduzir no país uma nova ideia para o manejo de resíduos sólidos. A lei trouxe uma série de alterações na sociedade atual, como a determinação de que todas as administradoras públicas munici-pais, independentemente de seu porte e localização, devem construir aterros sanitários e concluírem as atividades dos lixões e aterros controlados, no prazo de quatro anos, fazendo a substituição destes por aterros sanitários ou industriais, onde se podem depositar os resíduos sem qualquer possibilidade de reciclagem e reaproveitamento, obrigando também, a compostagem de resíduos orgânicos.

Também os fabricantes, distribuidores e comerciantes, por meio da organização de acordos setoriais se tornam obrigados a recolher e dar uma destinação para a reciclagem

Page 23: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

23O HIPERCONSUMO NA SOCIEDADE MODERNA

de embalagens de plásticos, de papel, de papelão, de vidros e metálicas. Já as embalagens de agrotóxicos, pneus, pilhas, baterias, óleos lubrificantes, lâmpadas de todos os tipos e equipamentos eletroetrônicos devem fazer parte da logística reversa, fazendo com que esses resíduos retornem a sua cadeia de origem para a reciclagem.

No setor da construção civil existe a obrigação, dos agentes que nela labutam darem destinação final que seja ambientalmente adequada aos resíduos de construção e mesmo de demolição, não sendo permitido encaminharem aos aterros.

No caso das administradoras municipais, estas têm um prazo máximo de dois anos para desenvolverem um Plano de Gestão Integrada de Resíduos. Caso haja o descum-primento da determinação, essas ficam proibidas de receber recursos de fontes federais destinados ao gerenciamento de resíduos, inclusive também, não poderão receber emprés-timos da Caixa Federal e do BNDES, entre outros. Já, as empresas e demais instituições tanto públicas quanto privadas, devem buscar desenvolver um Plano de Gerenciamento de Resíduos que seja integrado ao Plano Municipal. Além disso, os municípios deverão implantar um sistema de coleta seletiva.

No âmbito das cooperativas de catadores, estas terão prioridade na coleta seletiva, sendo dispensada a licitação. Desse modo, para a elaboração, implementação, operacio-nalização e monitoramento de todas as etapas do plano de gerenciamento de resíduos sólidos, nele sendo incluídos o controle e disposição final ambientalmente correta dos rejeitos, será designado um responsável técnico que deverá ser habilitado para tal.

Importante se observar o art. 3º da PNRS, em que se encontra a definição que permite compreender como se dará a concretização da norma, como por exemplo, o inciso IV que vem destacar a definição legal de ciclo de vida15 e o inciso V em que se tem a definição de coleta seletiva,16 entre outras definições importantes ao longo do artigo.

Importante salientar os princípios da Política Nacional de Resíduos Sólidos cons-tante em seu art. 6º,17 que visam à implementação do dispositivo constitucional de defesa 15 “Série de etapas que envolvem o desenvolvimento do produto, a obtenção de matérias-primas e insumos,

o processo produtivo, o consumo e a disposição final.”16 “Coleta de resíduos sólidos previamente segregados conforme sua constituição ou composição.”17 Art. 6º São princípios da Política Nacional de Resíduos Sólidos: I - a prevenção e a precaução; II - o poluidor-

pagador e o protetor-recebedor; III - a visão sistêmica, na gestão dos resíduos sólidos, que considere as variáveis ambiental, social, cultural, econômica, tecnológica e de saúde pública; IV - o desenvolvimento sustentável; V - a ecoeficiência mediante a compatibilização entre o fornecimento, a preços competitivos, de bens e serviços qualificados que satisfaçam as necessidades humanas e tragam qualidade de vida e a redução do impacto ambiental e do consumo de recursos naturais a um nível, no mínimo, equivalente à capacidade de sustentação estimada do planeta; VI - a cooperação entre as diferentes esferas do poder público, o setor empresarial e demais segmentos da sociedade; VII - a responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos; VIII - o reconhecimento do resíduo sólido reutilizável e reciclável como um bem econômico e de valor social, gerador de trabalho e renda, e promotor de cidadania; IX - o respeito às diversidades locais e regionais; X - o direito da sociedade à informação e ao controle social; XI - a razoabilidade e a proporcionalidade.

Page 24: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

24 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Destaque

do meio ambiente exposto no art. 225. Esses princípios, desde que respeitados, podem trazer um meio ambiente saudável a todos os cidadãos, tanto das gerações presentes como das gerações futuras.

Portanto, se questiona: quem deve obedecer a Lei nº 12.305/2010? Desse modo percebe-se, no artigo 1º, § 1º, desta norma,18 que todas as empresas, as administrações públicas em todas as esferas federativas e os cidadãos devem cumpri-la.

Essa obrigação também está especificada no Capítulo III, art. 25 da lei,19 em que existe o estabelecimento das responsabilidades de quem gera resíduos e mesmo do poder público.

Verifica-se que a lei, em seu artigo 3320 determina que todas as empresas envolvi-das na produção, importação, distribuição e implementação de produtos estão obrigadas a implementarem um sistema de logística reversa em que os produtos e as embalagens, após o uso, retornem para o descarte.

Deste modo, é importante se questionar: quem fará a coleta e de quem será a responsabilidade sobre os serviços de manejo dos resíduos sólidos? Percebe-se que a responsabilidade é da administração municipal, mas somente no que tange a resíduos domiciliares e os que advêm da limpeza urbana. No que se refere às atividades industriais, de serviços privados e comerciais, a responsabilidade é de quem gera o resíduo, como se pode observar no artigo 2721 da referida lei.

No que se refere ao recolhimento de resíduos, se a administração municipal firmar acordo com o setor empresarial, as ações devem ser remuneradas, conforme dispõe o

18 Art. 1º [...] § 1º Estão sujeitas à observância desta Lei as pessoas físicas ou jurídicas, de direito público ou privado, responsáveis, direta ou indiretamente, pela geração de resíduos sólidos e as que desenvolvam ações relacionadas à gestão integrada ou ao gerenciamento de resíduos sólidos.

19 Art. 25. O poder público, o setor empresarial e a coletividade são responsáveis pela efetividade das ações voltadas para assegurar a observância da Política Nacional de Resíduos Sólidos e das diretrizes e demais determinações estabelecidas nesta Lei e em seu regulamento.

20 Art. 33. São obrigados a estruturar e implementar sistemas de logística reversa, mediante retorno dos produtos após o uso pelo consumidor, de forma independente do serviço público de limpeza urbana e de manejo dos resíduos sólidos, os fabricantes, importadores, distribuidores e comerciantes de: I - agrotóxicos, seus resíduos e embalagens, assim como outros produtos cuja embalagem, após o uso, constitua resíduo perigoso, observadas as regras de gerenciamento de resíduos perigosos previstas em lei ou regulamento, em normas estabelecidas pelos órgãos do Sisnama, do SNVS e do Suasa, ou em normas técnicas; II - pilhas e baterias; III - pneus; IV - óleos lubrificantes, seus resíduos e embalagens; V - lâmpadas fluorescentes, de vapor de sódio e mercúrio e de luz mista; VI - produtos eletroeletrônicos e seus componentes.

21 Art. 27. As pessoas físicas ou jurídicas referidas no art. 20 são responsáveis pela implementação e operacionalização integral do plano de gerenciamento de resíduos sólidos aprovado pelo órgão competente na forma do art. 24. § 1º A contratação de serviços de coleta, armazenamento, transporte, transbordo, tratamento ou destinação final de resíduos sólidos, ou de disposição final de rejeitos não isenta as pessoas físicas ou jurídicas referidas no art. 20, da responsabilidade por danos que vierem a ser provocados pelo gerenciamento inadequado dos respectivos resíduos ou rejeitos.

Page 25: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

25O HIPERCONSUMO NA SOCIEDADE MODERNA

§ 7º do artigo 33.22 Isso também se pode observar no art. 36, IV,23 que também salienta a questão da remuneração do setor.

Caso haja descumprimento da lei e das normas do Conama/Anvisa, causando danos ambientais ou ameaças ao meio ambiente e à saúde pública, a prefeitura deve proceder ao seu recolhimento, acondicionamento, armazenamento e destinação, respeitando todas as normas de segurança e de saúde, e com licença ambiental específica, mas esse serviço será cobrado dos responsáveis, como se observa no art. 2924 da referida lei.

Deste modo, a responsabilidade pelo lixo deve ser compartilhada com a obrigação de envolver toda a comunidade, as empresas, as prefeituras, os cidadãos e os governantes de todas as esferas públicas, permitindo-se que todos tenham um meio ambiente saudável e equilibrado, garantindo e efetivando esse direito constitucional.

Portanto, há uma necessidade de readequação das atividades industriais de des-tinação final de resíduos sólidos, em que haja o crescimento das atividades industriais de reciclagem e uma inclusão social e econômica, tanto dos catadores como dos organiza-dores de cooperativas.

Outro passo importante é a logística reversa, que exige uma estruturação de um sistema de rota de reversão e de readequação nas cadeias produtivas de vários segmentos industriais. Também se faz importante a articulação de todos os setores da sociedade e a existência de indústrias de reciclagem.

CONCLUSÃO

Neste artigo, que leva como título “O hiperconsumo na sociedade moderna e os riscos ambientais provocados por resíduos sólidos: as políticas públicas e o plano nacional dos resíduos sólidos como elementos minimizadores desses riscos” pretendeu-se, em primeiro lugar, mostrar a sociedade moderna como elemento impulsionador do consumo e, consequentemente, do aumento dos resíduos sólidos.

22 § 7º Se o titular do serviço público de limpeza urbana e de manejo de resíduos sólidos, por acordo setorial ou termo de compromisso firmado com o setor empresarial, encarregar-se de atividades de responsabilidade dos fabricantes, importadores, distribuidores e comerciantes nos sistemas de logística reversa dos produtos e embalagens a que se refere este artigo, as ações do poder público serão devidamente remuneradas, na forma previamente acordada entre as partes.

23 Art. 36. No âmbito da responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos, cabe ao titular dos serviços públicos de limpeza urbana e de manejo de resíduos sólidos, observado, se houver o plano municipal de gestão integrada de resíduos sólidos: IV - realizar as atividades definidas por acordo setorial ou termo de compromisso na forma do § 7º do art. 33, mediante a devida remuneração pelo setor empresarial.

24 Art. 29. Cabe ao poder público atuar, subsidiariamente, com vistas a minimizar ou cessar o dano, logo que tome conhecimento de evento lesivo ao meio ambiente ou à saúde pública, relacionado ao gerenciamento de resíduos sólidos. Parágrafo único. Os responsáveis pelo dano ressarcirão integralmente o poder público pelos gastos decorrentes das ações empreendidas na forma do caput.

Page 26: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

26 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Destaque

O segundo aspecto do presente artigo foi buscar discutir os riscos ambientais provocados pelos resíduos sólidos e as políticas públicas, na busca de soluções para minimizar o impacto produzido pelo lançamento desses resíduos na natureza, para poder obter as conclusões a seguir expostas.

Nesse contexto do desenvolvimento moderno incrementou-se a industrialização, que pontificou o que se veio chamar, mais tarde, de sociedade consumista. Com essa nova sociedade, que já se transmuta em sociedade hiperconsumista, chega-se aos portais da pós-modernidade e, para esses pórticos não se levou apenas benesses, mas também, dentro do contexto que se está trabalhando, riscos ambientais advindos com o consumo exacerbado.

A sociedade moderna hiperconsumista tem desenvolvido produtos cada vez mais descartáveis. A partir dessa produção em massa ocorre o descarte, em massa, de resíduos sólidos decorrentes da inutilidade prematura dos produtos. Esse contexto infere em riscos ao meio ambiente que se evidenciam não só no âmbito local, como também no âmbito global.

Partindo desses fatos buscou-se demonstrar que é somente por meio de políticas públicas adequadas que se podem minimizar os riscos ao meio ambiente. No mesmo diapasão, analisou-se a Lei nº 12.305/2010 que instituiu a Política Nacional de Resíduos Sólidos - PNRS - com o intuito de verificar a participação do Estado no contexto estudado. Concluiu-se que essa lei veio para minimizar os riscos ambientais advindos do consumo exagerado que, ao gerar resíduos, comprometia o meio ambiente. Desse modo, ela trouxe a responsabilidade ambiental pós-consumo, em que os resíduos devem ter uma destinação correta.

Por final, é ainda de se dizer que a teoria do risco pode ser aplicada claramente aos problemas criados pelo descarte dos resíduos sólidos no meio ambiente, sendo que as políticas públicas adequadas são as construções jurídicas satisfatórias para buscar a minimização dos efeitos nocivos criados à natureza por esse descarte, assim como o mecanismo jurídico-político adequado para buscar um ambiente saudável, proporcionando, por essa linha, um incremento na cidadania, dentro da sociedade moderna que já bate aos portais da pós-modernidade.

Com os riscos locais e globais que se materializam em danos ambientais incontro-láveis, o Direito, como se pode notar no presente artigo, buscou por intermédio das normas legais, minimizar os impactos provocados pelo lançamento dos resíduos sólidos ao meio ambiente por intermédio da obrigação dos agentes responsáveis - entes públicos: federati-vos, estaduais e municipais; entes privados: fornecedores, fabricantes e consumidores - na busca de soluções adequadas para o descarte dos resíduos sólidos.

Page 27: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

27O HIPERCONSUMO NA SOCIEDADE MODERNA

REFERÊNCIAS

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Tradução Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

______. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. São Paulo: Jorge Zahar, 2004.

______. Vida para o consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

BRASIL. Consulta Pública. Versão preliminar para consulta pública do Plano Nacional de Resíduos Sólidos. Brasília: Ministério do Meio Ambiente. set. 2011.

CALGARO, Cleide. Desenvolvimento sustentável e consumo: a busca do equilíbrio entre o homem e o meio ambiente. In: PEREIRA, Agostinho Oli Koppe; HORN, Luiz Fernando Del Rio. Relação de consumo: meio ambiente. Caxias do Sul: EDUCS, 2009.

CANCLINI, Nestor García. Consumidores e cidadãos - conflitos multiculturais da globalização. Rio de Janeiro: UFRJ, 1996.

ELIAS, Norberto. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.

FEATHERSTONE, Mike. Cultura do consumo. Tradução Júlio Assis Simões. São Paulo, 1990.

FIGUEIREDO, P. J. M. A sociedade do lixo: os resíduos, a questão energética e a crise ambiental. 2. ed. Piracicaba: UNIMEP, 1994.

FONSECA, T. R. Iniciação ao estudo dos resíduos sólidos e da limpeza urbana: A União. 1999.

GOETHE. Fausto. Tradução Agostinho D’Ornellas. São Paulo: Martin Claret Ltda., 2009.

GRIMBERG, Elizabeth. A política nacional de resíduos sólidos: a responsabilidade das empresas e a inclusão social. 2005.

JOVCHELOVITCH, Sandra. Representações sociais e esfera pública: construção simbólica dos espaços públicos no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2000.

LEMOS, Patrícia Faga Iglecias. Resíduos sólidos e responsabilidade pós-consumo. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012.

LIPOVETSKY, Gilles. Os tempos hipermodernos. São Paulo: Bacarolla, 2004.

LIPOVETSKY, Gilles. O luxo eterno: da idade do sagrado ao tempo das marcas. São Paulo: Com-panhia das Letras, 2008.

MARTÍN, Núria Belloso. Os novos desafios da cidadania. Tradução Clóvis Gorczevski. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2005.

PADILHA, Valquíria. Shopping center: a catedral das mercadorias. São Paulo: Boitempo, 2006.

PEREIRA, Agostinho Oli Koppe; PEREIRA, Henrique Mioranza Koppe. A modernidade e a questão da vida. In: PEREIRA, Agostinho Oli Koppe; CALGARO, Cleide. Direito ambiental e biodireito: da modernidade à pós-modernidade. Caxias do Sul: EDUCS, 2008.

Page 28: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

28 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Destaque

PEREIRA, Agostinho Oli Koppe; PEREIRA, Henrique Mioranza Koppe; PEREIRA, Mariana Mioranza Koppe. Hiperconsumo e a ética ambiental. In: PEREIRA, Agostinho Oli Koppe; HORN, Luiz Fernando Del Rio. Relação de consumo: meio ambiente. Caxias do Sul: EDUCS, 2009.

SILVA, L. S.; LIMA, S. E. (Org.). Políticas públicas e indicadores para o desenvolvimento sustentável. São Paulo: Saraiva, 2010.

SIMIONI, Rafael Lazzarotto; PEREIRA, Henrique Mioranza Koppe. Cidadania e a natureza humana: reflexões filosóficas para o empoderamento local. In: SCORTEGAGNA, Fernando; COSTA, Marli da; HERMANY, Ricardo. Espaço local, cidadania e políticas públicas. Santa Cruz do Sul: IPR, 2010.

SOUZA, Celina. Políticas públicas: uma revisão da literatura. Sociologias, Porto Alegre, ano 08, n. 16, jul./dez. 2006.

SOUZA, Jessé. A modernização seletiva: uma reinterpretação do dilema brasileiro. Brasília: Uni-versidade de Brasília, 2000.

Page 29: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

REFLEXÕES SOBRE A RESPONSABILIDADE AMBIENTAL E OS RESÍDUOS SÓLIDOS NO SÉCULO XXI*

REFLECTIONS ON ENVIRONMENTAL RESPONSIBILITY AND THE SOLID RESIDUES IN THE 21ST CENTURY

ARIANE BAARSPós-Graduanda em Direito Ambiental na PUC/RJ.

E-mail: [email protected].

SOLANGE SILVA ALVARES DA CUNHAPós-Graduanda em Direito Ambiental na PUC/RJ.

SUMÁRIO: Introdução - 1. Resíduos sólidos e as responsabilidades ambientais admi-nistrativa, criminal e civil: 1.1. Responsabilidade administrativa e a PNRS; 1.2. Respon-sabilidade criminal e a PNRS; 1.3. Responsabilidade civil e a PNRS - 2. Considerações sobre a responsabilidade pós-consumo: 2.1. Análise de julgados paradigmáticos sobre a responsabilidade pós-consumo - Conclusões finais.

SUMMARY: Introduction - 1. Solid waste and environmental administrative, civil and criminal responsibilities - 2. Post-consumption responsibility considerations - Final conclusions.

INTRODUÇÃO

Antes de tratarmos dos desafios da responsabilidade ambiental no século XXI, faz-se necessário tecer alguns breves comentários acerca de suas peculiaridades. Para tanto, deve-se ter em mente que a responsabilidade em matéria ambiental encontra sua principal base na Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB), em seu artigo

* Artigo de autoras convidadas.Data de recebimento do artigo: 08.06.2015.Data de aprovação pelo Conselho Editorial: 25.06.2015.

Page 30: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

30 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Destaque

225, parágrafo 3º, que estabelece que “as condutas e atividades lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados”.

Como se percebe da leitura do dispositivo constitucional, a responsabilização por danos ao meio ambiente ocorre em três esferas independentes: civil, administrativa e criminal.

Haverá a incidência da responsabilidade administrativa ambiental no descumpri-mento de normas que prevejam infrações ao descumprimento das normas, sujeitando o infrator a sanções administrativas.1 A incidência deste tipo de responsabilidade se dá em “toda ação ou omissão que viole as regras jurídicas de uso, gozo, promoção, proteção e recuperação do meio ambiente”.2

Por sua vez, a responsabilidade criminal ambiental está prevista na Lei nº 9.605/1998, que segue os requisitos da responsabilidade criminal tradicional - o crime é caracterizado por uma conduta típica, ilícita e culpável. Destaca-se apenas que a Lei nº 9.605/1998, além da tipificação de condutas lesivas contra o meio ambiente, inaugurou a possibilidade de responsabilização criminal da pessoa jurídica, concomitantemente com a de seus dirigentes.3

Por fim, há a incidência da responsabilidade civil ambiental sempre que houver a ocorrência de danos ao meio ambiente. Após uma evolução no entendimento doutrinário, jurisprudencial e legislativo, foi constatado que as regras clássicas de responsabilidade da legislação civil não eram suficientes para tratar de danos ao meio ambiente, sobretudo por sua natureza difusa e também pela dificuldade de se demonstrar a culpa do agente poluidor.4

O objeto deste trabalho é entender os desafios da responsabilidade ambiental no século XXI, em uma sociedade cada vez mais populosa, consumidora (e consumista) e geradora de resíduos e rejeitos.5

Neste trabalho, optou-se por discutir a responsabilidade ambiental relacionada aos resíduos sólidos. Tal escolha se baseou na constatação que, desde a metade do século

1 Decreto Federal nº 6.514/2008, Art. 3º As infrações administrativas são punidas com as seguintes sanções: I - advertência; II - multa simples; III - multa diária; IV - apreensão dos animais, produtos e subprodutos da fauna e flora e demais produtos e subprodutos objeto da infração, instrumentos, petrechos, equipamentos ou veículos de qualquer natureza utilizados na infração; V - destruição ou inutilização do produto; VI - suspensão de venda e fabricação do produto; VII - embargo de obra ou atividade e suas respectivas áreas; VIII - demolição de obra; IX - suspensão parcial ou total das atividades; e X - restritiva de direitos.

2 Decreto Federal nº 6.514/2008, art. 2º.3 Lei Federal nº 9.605/1998, Art. 3º As pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e

penalmente conforme o disposto nesta Lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade.

4 MILARÉ, Édis. Direito do ambiente. 8. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 424.5 Neste trabalho não será utilizado o termo “lixo”, por se tratar de palavra não técnica. Os rejeitos, de acordo

com a Política Nacional de Resíduos Sólidos, são os resíduos sólidos que, depois de esgotadas todas as possibilidades de tratamento e recuperação por processos tecnológicos disponíveis e economicamente viáveis, não apresentem outra possibilidade que não a disposição final ambientalmente adequada (art. 3º, XV).

Page 31: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

31REFLEXÕES SOBRE A RESPONSABILIDADE AMBIENTAL

passado, houve um avanço (temerário) do consumo global por produtos eletroeletrônicos, eletrodomésticos, agrotóxicos, embalagens em geral, pilhas e baterias, dentre outros pro-dutos de composição complexa. O problema é que esse consumo exacerbado e constante gera resíduos e rejeitos, tornando-se um dos principais problemas do século XXI que devem ser analisados com cuidado a luz da responsabilidade ambiental.

1. RESÍDUOS SÓLIDOS E AS RESPONSABILIDADES AMBIENTAIS ADMINISTRATIVA, CRIMINAL E CIVIL

Fato notório é que a produção de resíduos sólidos e rejeitos aumentou vertiginosa-mente nas últimas décadas com o desenvolvimento tecnológico e industrial cada vez mais complexo, somado com o consumo exacerbado. A questão se torna muito mais complexa se considerarmos que os impactos ambientais causados por uma sociedade que possui dificuldades na gestão dos resíduos e rejeitos produzidos afetam não só questões locais, mas efeitos que ultrapassam fronteiras temporais e espaciais. Como já ensinava Catherine Choquette em trabalho apresentado em 1994:

Nosso planeta, pelos seus componentes, é um sistema complexo e dinâmico. Algumas atividades humanas, relacionadas à produção ou ao consumo, podem desestabilizar o sistema. Nas últimas décadas, o crescimento exponencial da população, as fontes de poluição cada vez mais numerosas e perigosas, e a exploração excessiva dos recursos naturais aumentaram, e de forma alarmante, as pressões sobre o nosso planeta, chegando a potencialmente ameaçar a própria sobrevivência da espécie humana.6

Em 2010 foi publicada, após quase duas décadas em tramitação no Congresso Nacional, a Lei nº 12.305 inaugurando a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS). É inegável que este diploma foi um marco para o reconhecimento da problemática do ge-renciamento e os problemas relacionados à destinação e disposição final ambientalmente adequada, respectivamente, dos resíduos e rejeitos.

Tal diploma trouxe alguns importantes avanços, como a menção expressa do princípio do poluidor-pagador, da responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos e da logística reversa. Da mesma forma trouxe regras sobre a responsabilidade pós-consumo, instrumentalizada pela logística reversa.

6 CHOQUETTE, Catherine. L’analyse écologique du droit de l’environnement. In: MACKAAY, Ejan; TRUDEAU, Hélène. L’environnement - À quel prix? Montréal: Éditions Thémis, 1995. p. 5.Tradução livre do original: “Notre planète, de par ses composantes, constitue un système complexe et dynamique. Certaines activités humaines, que ce doit au niveau de la production ou de la consommation, peuvent déstabiliser ce système. Au cours des dernières décennies, la croissance démographique exponentielle, les sources de pollution, de plus en plus nombreuses et dangereuses, ainsi que l’exploitation excessive des ressources naturelles on, on effet, accru, et ce de façon alarmante, les pressions sur notre planète, allant jusqu’á potentiellement menacer la survie même de l’espèce humaine”.

Page 32: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

32 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Destaque

Serão tratados nos próximos itens algumas peculiaridades de tais inovações e suas relações com a responsabilidade ambiental prevista em nosso ordenamento.

1.1. Responsabilidade administrativa e a PNRS

O Decreto Federal nº 7.404/2010 regulamentou a PNRS e trouxe importantes avan-ços ao Decreto Federal nº 6.514/2008, o qual, por seu turno, dispõe sobre as infrações administrativas.

Um grave problema enfrentado em diversos países é o tráfico ilegal de rejeitos. Apenas para fins de ilustração, em 2009, houve caso emblemático no Brasil. Nesta ocasião, fiscais da Receita Federal encontraram 89 contêineres distribuídos nos Portos de Santos (SP) e do Rio Grande do Sul (RS) e numa estação alfandegária de Caxias do Sul (RS). A mercadoria importada foi declarada como plástico para reciclagem, mas, na verdade, tratava-se de mais de 1,7 mil toneladas de resíduos domiciliares e de serviços de saúde.7

Como explica Édis Milaré, os países economicamente mais desenvolvidos, por possuírem capacidade limitada em seu território para dar destinação final adequada aos resíduos gerados, e também por não estarem dispostos a arcar com os altos custos de tratamento, recorrem a organizações criminosas para transferir ilegalmente os seus rejeitos.8

Neste raciocínio, merece destaque a inclusão do artigo 71-A feita pelo Decreto regulamentador da PNRS ao Decreto Federal nº 6.514/2008 que estabelece multa de R$ 500,00 (quinhentos reais) a R$ 10.000.000,00 (dez milhões de reais) para a importação de resíduos sólidos perigosos e rejeitos, bem como os resíduos sólidos cujas características causem dano ao meio ambiente, à saúde pública e animal e à sanidade vegetal, ainda que para tratamento, reforma, reuso, reutilização ou recuperação. Certamente as elevadas multas irão desencorajar o grave problema do tráfico ilegal de lixo no Brasil.

Além desse grande avanço, vale destacar outra inclusão feita pelo Regulamento da PNRS na subseção de infrações relativas à poluição, dentre outras, das infrações de “descumprir obrigação prevista no sistema de logística reversa [...], consoante as respon-sabilidades específicas estabelecidas para o referido sistema” e de “deixar de segregar resíduos sólidos na forma estabelecida para a coleta seletiva, quando a referida coleta for instituída pelo titular do serviço público de limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos”, com multas que variam de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) a R$ 50.000.000,00 (cinquenta milhões de reais).

Em relação aos consumidores, o Regulamento da PNRS acrescentou dispositivo no Decreto Federal nº 6.514/2008 para estabelecer que, no caso de descumprimento das obrigações previstas nos sistemas de logística reversa e de coleta seletiva, os consumidores

7 Valor Econômico, “Lixo começa a ser devolvido ao Reino Unido na segunda-feira”, 24 de julho de 2009. Disponível em <http://www.valor.com.br/arquivo/627067/lixo-comeca-serdevolvido-ao-reino-unido-na-segunda-feira>. Acesso em: 01 abr. 2015.

8 MILARÉ, Édis. Direito do ambiente. 8. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 1191.

Page 33: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

33REFLEXÕES SOBRE A RESPONSABILIDADE AMBIENTAL

estarão sujeitos à penalidade de advertência e no caso de reincidência no cometimento da infração poderá ser aplicada a penalidade de multa, no valor de R$ 50,00 (cinquenta reais) a R$ 500,00 (quinhentos reais). É de se ressalvar que tais multas podem ser convertidas em serviços de preservação, melhoria e recuperação da qualidade do meio ambiente.

A imposição de sanções administrativas aos consumidores relacionadas à logística reversa não resolve o problema da educação ambiental e da internalização de compor-tamentos positivos da população, mas certamente é uma forma didática de desencorajar atitudes que prejudiquem ou dificultem o retorno do resíduo ao fabricante ou importador, bem como uma forma de penalizar os infratores.

1.2. Responsabilidade criminal e a PNRS

A Lei Federal nº 9.605/1998 (Lei de Crimes Ambientais) estabelece em seu artigo 68 o tipo penal de “deixar, aquele que tiver o dever legal ou contratual de fazê-lo, de cumprir obrigação de relevante interesse ambiental” com a previsão de pena de detenção, de um a três anos, e multa.

A PNRS, por seu turno, estabelece, em seu artigo 52, que a observância de de-terminados dispositivos estabelecidos é considerada obrigação de relevante interesse ambiental para efeitos do artigo 68 da Lei de Crimes Ambientais supracitada, sem prejuízo das sanções cabíveis nas esferas administrativa e criminal.

Assim, devem ser entendidos como relevante interesse ambiental: (i) o dever dos responsáveis por plano de gerenciamento de resíduos sólidos manterem atualizadas e disponíveis às autoridades competentes informações completas sobre a implementação e operacionalização dos planos; (ii) o dever das pessoas jurídicas que operam resíduos perigosos de: manterem registro atualizado e facilmente acessível de todos os procedi-mentos relacionados à implementação e à operacionalização do plano de gerenciamento de resíduos perigosos; informarem anualmente ao órgão competente do Sisnama sobre a quantidade, a natureza e a destinação temporária ou final dos resíduos sob sua res-ponsabilidade; adotarem medidas destinadas a reduzir o volume e a periculosidade dos resíduos sob sua responsabilidade, bem como a aperfeiçoar seu gerenciamento; informa-rem imediatamente aos órgãos competentes sobre a ocorrência de acidentes ou outros sinistros relacionados aos resíduos perigosos.

Deve-se apontar que a PNRS incluiu mais duas hipóteses ao tipo penal previsto no artigo 569 da Lei de Crimes Ambientais. Desta forma as seguintes condutas são puníveis com pena de reclusão, de um a quatro anos, e multa: (i) o abandono de produtos ou substâncias tóxicas, perigosas ou nocivas ao meio ambiente ou a utilização destes em desacordo

9 Lei Federal nº 9.605/1998, art. 56. Produzir, processar, embalar, importar, exportar, comercializar, fornecer, transportar, armazenar, guardar, ter em depósito ou usar produto ou substância tóxica, perigosa ou nociva à saúde humana ou ao meio ambiente, em desacordo com as exigências estabelecidas em leis ou nos seus regulamentos: Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa.

Page 34: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

34 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Destaque

com as normas ambientais ou de segurança e (ii) a manipulação, acondicionamento, armazenamento, coleta, transporte, reutilização, reciclagem ou destinação final a resíduos perigosos de forma diversa da estabelecida em lei ou regulamento.

Como se percebe, o legislador optou por criminalizar determinadas condutas rela-cionadas ao gerenciamento de resíduos sólidos, demonstrando a importância do tema e confirmando a correlação entre os resíduos sólidos e a responsabilidade criminal.

1.3. Responsabilidade civil e a PNRS

Como tratado acima, a responsabilidade civil ambiental passou por diversas inter-pretações até chegar à atual, mais sofisticada.

Em breve síntese, o Código Civil Brasileiro de 1916 não disciplinava a proteção ao meio ambiente especificamente. Assim, a responsabilização civil subjetiva, com base na culpa, era regra aplicável a todo e qualquer tipo de dano, inclusive às lesões ambientais. Além da culpa, se exigia a prova da conduta, do dano e do nexo de causalidade.

Em 1981, com a publicação da Lei nº 6.938 (Política Nacional do Meio Ambiente - PNMA), foi trazida a ideia de que o poluidor seria obrigado a indenizar ou reparar danos ao meio ambiente e a terceiros independentemente da existência de culpa.10 Tal previsão consolidou o caráter objetivo da responsabilidade civil ambiental, bastando que se verifi-que a relação de causalidade (nexo de causalidade) entre o dano ambiental causado e a atividade exercida para que se configure o dever de reparar e/ou indenizar. Assim, clara é a aplicação do princípio da reparação integral para as condutas lesivas ao meio ambiente.

O Código Civil de 2002, mais sofisticado, acresceu a obrigação de reparar inde-pendentemente de culpa “quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, riscos para os direitos de outrem”.11

Em relação à reparação dos danos, não se pode olvidar do princípio do poluidor pagador no âmbito da responsabilidade civil. Tal princípio fortalece a ideia que aquele que der causa ao dano ambiental deve arcar com os custos da reparação, bem como com os custos da prevenção em decorrência de possíveis acidentes ambientais, possibilitando a internalização das externalidades negativas da atividade potencialmente poluidora. Neste ponto, importante esclarecer que, conforme entende a Professora Danielle de Andrade Moreira, o princípio do poluidor-pagador não se limita a uma faceta puramente reparatória, mas também preventiva e redistributiva.12

10 Lei Federal nº 6.938/1981, art. 14, § 1º.11 Código Civil de 2002, artigo 927, parágrafo único.12 MOREIRA, Danielle de Andrade. Princípio do poluidor pagador: origens, evolução e alcance. In: SAMPAIO,

Rômulo; LEAL, Guilherme; REIS, Antonio (Org.). Tópicos de Direito Ambiental: 30 anos da Política Nacional do Meio Ambiente. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.

Page 35: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

35REFLEXÕES SOBRE A RESPONSABILIDADE AMBIENTAL

É de se destacar que o Superior Tribunal de Justiça já consolidou o posicionamento de que a responsabilidade civil por danos ambientais é baseada na teoria do risco integral.13 A justificativa para a adoção desta teoria é que:

[...] a recusa de aplicação ou aplicação parcial dos princípios do poluidor-pagador e da reparação in integrum arrisca projetar, moral e socialmente, a nociva impressão de que o ilícito ambiental compensa. Daí a resposta administrativa e judicial não passar de aceitável e gerenciável “risco ou custo do negócio”, acarretando o enfraquecimento do caráter dissuasório da proteção legal, verdadei-ro estímulo para que outros, inspirados no exemplo de impunidade de fato, mesmo que não de direito, do infrator premiado, imitem ou repitam seu comportamento deletério.14

Já em relação ao caráter solidário da responsabilidade civil ambiental, é importante entender o conceito amplo de poluidor. De acordo com a PNMA, poluidor é “a pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, responsável, direta ou indiretamente, por atividade causadora de degradação ambiental”.15

Isto quer dizer que a recuperação ou o dever de pagamento de indenização por um eventual dano ambiental pode ser cobrado, em sua integralidade, de qualquer um que tenha contribuído direta ou indiretamente para sua ocorrência, independente do seu grau de participação no resultado danoso.

Neste sentido, a tendência nos tribunais brasileiros é a do alargamento da res-ponsabilização ambiental para incluir todos aqueles que contribuíram de qualquer forma para a ocorrência de um dano ambiental. O célebre precedente no STJ, com a relatoria do Ministro Herman Benjamin, estabelece que:

Para o fim de apuração do nexo de causalidade no dano ambiental, equiparam-se quem faz, quem não faz quando deveria fazer, quem deixa de fazer, quem não se importa que façam, quem financia quem façam e quem se beneficia quando os outros fazem.16

A PNRS expressamente estabelece que a ação ou omissão das pessoas físicas ou jurídicas que não observarem os preceitos estabelecidos estão obrigadas a reparar os danos causados, independentemente da existência de culpa, sem prejuízo das demais sanções cabíveis.17

13 REsp nº 442.586/SP (2002); REsp nº 578.797/RS (2004); REsp nº 1.114.398/PR (2012); EDcl REsp nº 1.346.430/PR (2013), dentre outros.

14 STJ, REsp 1198727/MG, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 14.08.2012, publicado em 09.05.2013.

15 Lei Federal nº 6.938/1981, art. 3º, inciso IV.16 STJ, REsp 1071741/SP, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 24.03.2009, DJe

16.12.2010.17 Lei Federal nº 12.305/2010, art. 51.

Page 36: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

36 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Destaque

Vale apontar que a PNRS possui, em sua essência, características voltadas à prevenção, o que vai totalmente ao encontro do princípio do poluidor-pagador e da res-ponsabilidade civil em sua faceta preventiva. Para corroborar nosso entendimento, basta notar que a PNRS estabelece que a responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos tem como um de seus objetivos a redução da geração de resíduos sólidos, o desperdício de materiais, a poluição e os danos ambientais.

Feitas estas breves considerações sobre os reflexos da PNRS na responsabilida-de administrativa, criminal e civil em matéria ambiental, trataremos da responsabilidade pós-consumo.

2. CONSIDERAÇÕES SOBRE A RESPONSABILIDADE PÓS-CONSUMO

Analisando os desdobramentos da lógica do consumo, Hansen explica que “tudo passa [...] a ser descartável, dos produtos às relações, das pessoas ao meio ambiente. Assume-se uma cultura do substituível, do supérfluo”.18

Certamente, os problemas relacionados aos resíduos e rejeitos oriundos deste consumo é um grande problema a ser enfrentado na ótica da responsabilidade ambiental. Ressalte-se que se faz referência também aos bens consumíveis, já que estes, na maioria das vezes, são envoltos em embalagens descartáveis.

Numa sociedade de risco19 os principais problemas criados são originados pelo próprio desenvolvimento tecnológico, econômico e industrial. O grande perigo desta so-ciedade do século XXI é que ocorra o fenômeno da irresponsabilidade organizada, a qual “representa com clareza exatamente a ineficácia da produção e proliferação normativa em matéria de proteção do meio ambiente, como instrumentos para o enfrentamento da crise ambiental [...]”20 Desta forma, deve-se interpretar a publicação da PNRS como um avanço legislativo no que tange a normatização e regulamentação de um tema tão importante para a sociedade de risco do século XXI, devendo ser lida como um mecanismo para afastar a nefasta irresponsabilidade organizada.

Vale ressaltar que, antes da publicação da Política Nacional de Resíduos Sólidos, a responsabilidade pela destinação dos resíduos consumidos já existia de maneira esparsa para determinados resíduos de significativo impacto ambiental, tais como embalagens de agrotóxicos (Lei Federal nº 7.802/89), óleo lubrificante (Resolução CONAMA nº 362/2005), pilhas e baterias (Resolução CONAMA nº 401/2008) e pneus inservíveis (Resolução CONAMA nº 416/2009).

18 HANSEN, Gilvan Luiz. A sociedade de consumo e o paradoxo da proteção ambiental. In: FLORES, Nilton Cesar (Org.). A sustentabilidade ambiental em suas múltiplas faces. Campinas: Millennium, 2012. p. 315.

19 Conceito sociológico trazido por Ulrich Beck em seu livro “Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade”. (publicado em 1998 na Alemanha).

20 LEITE, José Rubens Morato; AYALA, Patryck de Araújo. Direito ambiental na sociedade de risco. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002. p. 13.

Page 37: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

37REFLEXÕES SOBRE A RESPONSABILIDADE AMBIENTAL

Mesmo sem considerar essas normas específicas para determinados produtos, já era possível, antes da PNRS, a responsabilização pós-consumo, seja pelo licenciamento ambiental,21 seja pela responsabilidade civil ambiental no caso dos danos oriundos da destinação ambientalmente inadequada dos resíduos.

Todavia, inegável reconhecer a importância da PNRS para a sistematização do regramento a respeito da gestão e gerenciamento de resíduos sólidos, bem como das responsabilidades dos geradores de resíduos e daqueles que participam de alguma forma do ciclo de vida dos produtos.

Não é difícil compreender que “todos os problemas ambientais são relacionados ao consumo: poluição do ar, água, solo, subsolo, degradação vegetal, abate de animais, etc. E a grande questão que se coloca é a educação e conscientização do próprio consumidor”.22 Nesse ponto, outro avanço foi que a PNRS estabeleceu como um de seus instrumentos a educação ambiental23 e trouxe claramente como seus objetivos, nesta ordem, a não geração, a redução, a reutilização, a reciclagem e o tratamento dos resíduos sólidos, bem como a disposição final ambientalmente adequada dos rejeitos. Acertou a PNRS na medida em que o principal problema que já vem sendo enfrentado há muitas décadas e que, sem dúvida, será o grande desafio para este século é a não geração e a redução de resíduos.

Vale ressaltar que outra vertente da responsabilidade pós-consumo é o estímulo a melhorias nos próprios produtos e embalagens, de forma a incentivar o design ecológico e a consequente redução de resíduos.

A logística reversa, como definida no Decreto Regulamentador da PNRS, é o conjunto de ações e procedimentos que viabilizam a coleta, armazenagem e retorno dos materiais aos ciclos produtivos, seja para reaproveitamento (reuso ou reciclagem), seja para descarte ambientalmente adequado.

A PNRS estabelece que os fabricantes, importadores, distribuidores de determi-nados produtos são obrigados a estruturar e implementar sistemas de logística reversa.24 Tais produtos não foram escolhidos por acaso, mas sim devido a sua complexidade e os problemas relacionados à sua disposição final. São eles: agrotóxicos, seus resíduos e embalagens, assim como outros produtos cuja embalagem, após o uso, constitua resíduo perigoso; pilhas e baterias; pneus; óleos lubrificantes, seus resíduos e embalagens; lâmpa-das fluorescentes, de vapor de sódio e mercúrio e de luz mista e produtos eletroeletrônicos e seus componentes.

Os sistemas de logística reversa devem ser implementados e operacionalizados por meio de acordos setoriais, regulamentos ou termos de compromisso. Até a data da

21 Neste caso, considerando a vertente preventiva do licenciamento ambiental, sobretudo na análise dos impactos ambientais nos estudos apresentados no decorrer do processo administrativo da licença.

22 FILOMENO, José Geraldo Brito. Consumo, sustentabilidade e o Código de Defesa do Consumidor. In: MARQUES, José Roberto (Org.). Sustentabilidade e temas fundamentais de direito ambiental. Campinas: Millennium, 2009. p. 274.

23 Lei Federal nº 12.305/2010, art. 8º, inciso VIII.24 Lei Federal nº 12.305/2010, art. 33.

Page 38: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

38 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Destaque

conclusão do presente artigo, só foram assinados e publicados dois acordos setoriais: o de lâmpadas fluorescentes de vapor de sódio e mercúrio e de luz mista e o de embalagens plásticas de óleo lubrificante.

Para o funcionamento da logística reversa, a PNRS trouxe uma série de atribuições individualizadas e encadeadas dos fabricantes, importadores, distribuidores e comerciantes, dos consumidores e dos titulares dos serviços públicos de limpeza urbana e de manejo dos resíduos sólidos. Tais atribuições visam a minimizar o volume de resíduos sólidos e rejeitos gerados, bem como reduzir os impactos causados à saúde humana e à qualidade ambiental decorrentes do ciclo de vida dos produtos. Essas atribuições receberam o nome de “responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos”.

Por ciclo de vida do produto estão as etapas que envolvem o desenvolvimento do produto, a obtenção de matérias-primas e insumos, o processo produtivo, o consumo e a disposição final.

Desta forma, os consumidores efetuam a devolução após o uso aos comerciantes ou distribuidores dos produtos e das embalagens. Estes por sua vez efetuam a devolu-ção aos fabricantes e importadores, que por fim darão a destinação ou disposição final ambientalmente adequada dos resíduos ou rejeitos respectivamente após o consumo. A escolha dessas atribuições busca inverter o caminho que um produto faz para chegar ao consumidor.

O próprio conceito de ciclo de vida do produto deixa claro que o produto irradia efeitos até a sua disposição final adequada, o que justifica a atribuição final dos fabricantes e importadores de serem responsáveis pela destinação ou disposição final ambientalmente adequada dos resíduos ou rejeitos respectivamente após o consumo, internalizando os custos da inserção do produto na cadeia de consumo.

Neste ponto, a PNRS fez um corte na responsabilidade do gerador de resíduos sólidos domiciliares ao estabelecer que “o gerador de resíduos sólidos domiciliares tem cessada sua responsabilidade pelos resíduos com a disponibilização adequada para a coleta ou, nos casos abrangidos pelo art. 33, com a devolução”.25 Tal dispositivo busca alterar o entendimento dominante da responsabilidade objetiva em matéria ambiental ao eximir o gerador de resíduos domiciliares de responsabilidade após a disponibilização adequada para a coleta ou após a devolução do resíduo.

2.1. Análise de julgados paradigmáticos sobre a responsabilidade pós-consumo

Como caso paradigmático, não é possível olvidar de importante decisão, em 2002, pelo Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR). Trata-se do acórdão nº 118.652-1,26 em que o Tribunal apreciou apelação em ação civil pública promovida por uma associação, deno-minada Habitat - Associação de Defesa e Educação Ambiental, em defesa de interesse 25 Lei Federal nº 12.305/2010, art. 28.26 TJPR, Apelação Cível 118.652-1, Rel. Des. Ivan Bortoleto, Oitava Câmara Cível, julgado em 05.08.2002,

DJe 26.08.2002.

Page 39: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

39REFLEXÕES SOBRE A RESPONSABILIDADE AMBIENTAL

difuso ao equilíbrio do meio ambiente, em face da empresa de refrigerantes, tendo em vista o engarrafamento de suas bebidas em embalagens plásticas. A Associação pleiteou obrigações de fazer como a suspensão do comércio das embalagens PET, realização de campanhas publicitárias a fim de difundir a ideia do recolhimento dessas embalagens, apresentação de um cronograma para substituição do plástico e recolhimento de suas embalagens em parques, praças, dentre outros locais inadequados.

Em 1ª instância, decidiu-se pela improcedência do pedido, vez que, no entendimento da juíza, a empresa de refrigerantes só poderia ser responsabilizada pelo lançamento de embalagens dos seus produtos na natureza caso ficasse comprovada a sua culpa, ou dolo exclusivo pela degradação ambiental resultante.

Inconformada, a Associação apelou e o TJ-PR, à unanimidade de votos, deu pro-vimento parcial ao apelo, condenando a empresa nas seguintes obrigações de fazer: (i) recolher suas embalagens PET, após o consumo, em parques, praças ou, alternativamente, (ii) adotar procedimentos de reutilização e recompra de, no mínimo, 50% das garrafas PET que produzir anualmente a fim de dar-lhes destinação final ambientalmente adequada.

Ademais, a decisão condenou a apelada a dar início imediato à campanha publici-tária na divulgação de mensagens de combate ao lançamento inadequado de lixo plástico no meio ambiente, além de destacar, em suas embalagens, advertências quanto aos riscos ambientais advindos do descarte inadequado.

Em âmbito federal, igualmente imprescindível citar que, em 18 de agosto de 2014, foi publicado acórdão da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ)27 que re-conheceu expressamente a responsabilidade pós-consumo de fabricantes de produtos potencialmente poluidores.

O precedente é fruto de ação civil pública proposta em 2004 contra uma fabricante de refrigerantes, que, originariamente, foi julgada improcedente. O tribunal de origem, con-tudo, deu parcial provimento à apelação da autora (uma associação de defesa e educação ambiental), aplicando a responsabilidade pós-consumo no caso de “produtos de alto poder poluente”, como as embalagens plásticas.

Diante do recurso especial interposto pela fabricante, o STJ foi provocado a anali-sar a questão, e decidiu pelo provimento ao recurso para manter a responsabilização da fabricante pelos danos ambientais decorrentes do descarte irregular das garrafas PET que envasam seu produto. Assim, a fabricante seria obrigada, dentre outras coisas, a recolher as embalagens abandonadas por consumidores em ruas, córregos ou qualquer outro lugar impróprio, além de implementar campanha publicitária com o fim de difundir a ideia de recolhimento de tais embalagens.

A esse respeito, é de se registrar que foi suscitada questão de ordem durante a sessão de julgamento, relacionada à eventual submissão do assunto à Segunda Seção ou à Corte Especial, dada a relevância do precedente e suas consequências econômicas.

27 STJ, REsp 684.753/PR, Rel. Ministro Antonio Carlos Ferreira, Quarta Turma, julgado em 04.02.2014, DJe 18.08.2014.

Page 40: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

40 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Destaque

Entretanto, a questão não foi levada à frente, sob o entendimento de que a decisão apenas reforça assunto já legislado.

Interessante notar que o julgado do TJ-PR, oito anos antes de ser publicada a PNRS, entendeu ser perfeitamente possível responsabilizar a fabricante de refrigerante (bem consumível) pela destinação dos resíduos remanescentes (embalagens). Este julgado corroborou o explicado no item 2 deste trabalho, na medida em que, antes mesmo da PNRS, o nosso ordenamento jurídico já previa instrumentos para a aplicação da responsabilidade pós-consumo.

A consagração deste entendimento pelo STJ, em 2014, demonstra o amadurecimen-to da Corte e da legislação no trato da questão da destinação ambientalmente adequada dos resíduos, evidenciando que, apesar de ser um desafio para a sociedade lidar com a geração de resíduos e rejeitos, os mecanismos existentes de responsabilidade ambiental poderão ter papel crucial para o estímulo de condutas mais atentas e preocupadas com as questões relacionadas aos resíduos.

CONCLUSÕES FINAIS

1. A disposição final adequada de resíduos é um grande problema do século XXI, sobretudo numa sociedade industrial consumista. A PNRS tratou das três esferas da res-ponsabilidade ambiental com o objetivo de encorajar condutas voltadas para a prevenção de danos e punição de condutas irregulares, a luz do princípio do poluidor-pagador.

2. A responsabilidade ambiental nas esferas administrativa e criminal obteve avanços com a PNRS tendo em vista a inclusão de tipos penais e infrações administrativas especí-ficas relacionadas à logística reversa. Tal fato deve ser interpretado como um mecanismo para se evitar o fenômeno da irresponsabilidade organizada.

3. A PNRS confirma a incidência da responsabilidade civil não só no seu aspecto punitivo, mas também no preventivo. O alargamento do conceito de poluidor indireto na jurisprudência vai ao encontro do que é estabelecido na PNRS, já que há atribuições e responsabilidades a todos os envolvidos no ciclo de vida dos produtos.

4. A incidência da responsabilidade pós-consumo era possível, antes da publicação da PNRS, por meio da aplicação da responsabilidade civil ambiental.

Todavia, é inegável que a PNRS sofisticou a responsabilidade pós-consumo, ao introduzir o mecanismo de responsabilidade compartilhada e de logística reversa obrigatório para determinados resíduos.

5. A responsabilidade pós-consumo já possuía aplicação prática antes da PNRS. Em 2002, o TJ-PR se pronunciou sobre a responsabilização do fabricante de refrigeran-tes pelo descarte irregular de garrafas PET. Em 2014, em consonância com os avanços legislativos, o STJ optou por manter a responsabilidade de fabricante de refrigerantes em caso semelhante.

Page 41: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO NA POLÍTICA NACIONAL DE RESÍDUOS SÓLIDOS

E NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA*

THE APPLICATION OF THE PRECAUTIONARY

PRINCIPLE IN NATIONAL SOLID WASTE POLICY AND PUBLIC ADMINISTRATION

CLÉA DE MORAES CANTANHEDEPós-Graduada em Direito Processual Civil pela Faculdade Anhanguera

e em Direito pela Escola Superior da Magistratura do Amazonas. E-mail: [email protected].

SUMÁRIO: Introdução - O princípio da precaução no Brasil e nas convenções interna-cionais - Aspectos delineadores do princípio da precaução - A distinção entre perigo e risco - Características do princípio da precaução - Panorama dos resíduos sólidos no Brasil - Consideração sobre os riscos na produção de resíduos sólidos - A Política Nacional de Resíduos Sólidos - Aplicação do princípio da precaução na Política Nacional de Resíduos Sólidos - Administração pública e o princípio da precaução - Considerações finais - Referências.

SUMMARY: Introduction - The precautionary principle in Brazil and international conventions - Designer aspects of the precautionary principle - The distinction between hazard and risk - Characteristics of the precautionary principle - Situation of the solid waste in Brazil - Consideration about the risks in the production of solid waste - The National Solid Waste Policy - Public administration and the precautionary principle - Final considerations - References.

RESUMO: O princípio da precaução surgiu a partir do princípio da prevenção e foi introduzido no Brasil a partir de 1992. Atualmente, vem se debatendo quanto à aplicabilidade

* Data de recebimento do artigo: 02.02.2015.Datas de pareceres de aprovação: 26.02.2015 e 06.03.2015.Data de aprovação pelo Conselho Editorial: 26.03.2015.

Page 42: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

42 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Destaque

do princípio mencionado, uma vez que ao se observar o tratamento dado à aplicação nas Políticas Públicas, tem-se evidenciado a forma e os limites dado ao princípio. A Política Nacional de Resíduos Sólidos, por meio da Lei 12.305/2010, traz expressamente, o princípio da precaução e ainda fornece elementos essenciais para a compreensão e delineamento de sua aplicabilidade, nos casos de gerenciamento de resíduos sólidos. Considera-se ainda, os riscos que a sociedade está constantemente gerando e se expondo. Os riscos que são constantemente produzidos na sociedade são muitas vezes imperceptíveis, só se tornando inteligível quando ocorrem tragédias e catástrofes em consequência des-sas atitudes, evidenciando assim, o quão a sociedade de risco é a realidade de hoje. A Política Nacional de Resíduos Sólidos traz novos contornos ao sistema de reciclagem, apresenta à gestão integrada de resíduos sólidos a logística reversa, e a responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos envolve não apenas o Setor Público, mas o empresário e a população, instrumentos estes que fornecem ferramentas para evidenciar e avaliar a aplicabilidade do princípio da precaução na referida Política Pública. E ainda, a Administração Pública tem o dever de contribuir para a implementação do Princípio da Precaução, dispondo de meios adequados e eficazes para o cumprimento da obrigação de preservar o meio ambiente.

PALAVRAS-CHAVE: princípio da precaução; aplicabilidade; resíduos sólidos; Política Nacional de Resíduos Sólidos; administração pública.

ABSTRACT: The precautionary principle emerged from the precautionary principle, was introduced in Brazil since 1992. Currently is struggling as the applicability of the prin-ciple mentioned, the treatment given to application in public policy since the be noted, has been shown the way and given the limits of the principle. The National Solid Waste Policy, by Law 12.305/2010, expressly provides, the precautionary principle, and it provides es-sential elements for the understanding and design of its applicability in the case of solid waste management. We also consider the risks that society is constantly generating and exposing itself. The risks that are constantly produced in society are often imperceptible, becoming intelligible only when tragedies and disasters occur as a result of these attitudes, thus evidencing how the risk society is the reality today. The National Solid Waste brings new dimensions to the recycling system, presents the integrated solid waste management, reverse logistics, shared responsibility for the lifecycle of products, involves not only the public sector but the entrepreneur and the population, these instruments, which provide tools to demonstrate and evaluate the applicability of the precautionary principle referred to in Public Policy. And yet, the public administration has a duty to contribute to the implementa-tion of the Precautionary Principle, providing adequate and effective to fulfill the obligation to preserve the environment means.

KEYWORDS: the precautionary principle; applicability; solid waste; National solid waste; public administration.

Page 43: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

43A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO

INTRODUÇÃO

O princípio da precaução foi incorporado no direito brasileiro a partir de 1992, por meio da Declaração do Rio de Janeiro. Porém, não foi claramente definido no direito brasi-leiro, pois em vários acordos e convenções internacionais que o Brasil participa e também nos quais ele não participa, o princípio da precaução aparece de diversas maneiras.

Porém cabe ao direito brasileiro apresentar as características e as ferramentas ne-cessárias para tornar o princípio da precaução notório, tornando-o facilmente identificável, evitando, inclusive, a confusão doutrinária que ainda persiste, entre princípio da prevenção e princípio da precaução.

Para tanto, com o fim de apresentar as características e os contornos necessários para se identificar e delinear com facilidade o princípio da precaução utiliza-se a Política Nacional dos Resíduos Sólidos, instituída por meio da Lei 12.305/2010.

A referida lei traz consigo um conjunto de objetivos e instrumentos que agem de forma precautória, com a finalidade de minimizar os riscos causados pela produção exces-siva de resíduos sólidos, portanto, de acordo com as características da Política Nacional de Resíduos Sólidos, tem-se uma norma brasileira que fornece as ferramentas necessárias que delineia e justifica a aplicação do princípio da precaução.

Com isso, presente estudo se desenvolve com o fim de demonstrar a aplicabilidade do princípio da precaução na Política Nacional de Resíduos Sólidos - PNRS, evidenciando sua justificativa de aplicação por meio dos contornos e das características fundamentais do princípio da precaução.

O PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO NO BRASIL E NAS CONVENÇÕES INTERNACIONAIS

A Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938, de 31.08.1981) trouxe em seus objetivos a necessidade de compatibilizar o desenvolvimento sustentável e o cresci-mento econômico com a qualidade do meio ambiente, equilíbrio ecológico e preservação do meio ambiente, conforme o art. 4º, I e VI. E para que tais objetivos pudessem ser alcançados, a Política Nacional do Meio Ambiente instituiu a utilização de alguns instru-mentos, que dentre eles está a “avaliação dos impactos ambientais”. Portanto, tornou-se evidente a obrigação de prevenir ou evitar danos ambientais e ainda a necessidade de detectá-los antecipadamente.

Porém, em 1981, o princípio da precaução ainda não era um princípio expresso, pois somente com a Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desen-volvimento, reunida no Rio de Janeiro em 1992, foi então aprovada, por unanimidade a chamada “Declaração do Rio de Janeiro”, constituída por 27 princípios, dentre os quais, o princípio da precaução, inserido no princípio 15:

Page 44: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

44 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Destaque

De modo a proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deve ser amplamente observado pelos Estados de acordo com suas capacidades. Quando houver ameaça de danos sérios ou irreversíveis, a ausência de absoluta certeza científica não deve ser utilizada como razão para postergar medidas eficazes e economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental.1

Têm-se ainda outras duas convenções que o Brasil assinou e ratificou que inserem o princípio da precaução - a Convenção da Diversidade Biológica, que em seu preâmbulo traz o seguinte: “Observando também que quando exista ameaça de sensível redução ou perda de diversidade biológica, a falta de plena certeza científica não deve ser usada como razão para postergar medidas para evitar ou minimizar essa ameaça [...]” e ainda, a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima que traz no seu art. 3º, o seguinte:

As partes devem adotar medidas de precaução para prever, evitar ou minimizar as causas da mudança do clima e mitigar seus efeitos negativos. Quando surgirem ameaça de danos sérios e irreversíveis, a falta de plena certeza científica não deve ser usada como razão para postergar essas medidas, levando em conta que as políticas e as medidas adotadas para enfrentar a mudança do clima devem ser eficazes em função dos custos, de modo a assegurar benefícios mundiais ao menor custo possível.

Portanto, é evidente que o princípio da precaução ganhou ampla aplicabilidade no Brasil após a Declaração do Rio de Janeiro, porém, como a abordagem dada a este prin-cípio não é de forma unificada, cada Convenção que o Brasil participa, traz um contorno diferenciado do princípio da precaução.

ASPECTOS DELINEADORES DO PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO

Não há como desconsiderar que o princípio da precaução, assim como outros princípios oriundos do direito internacional, possui contornos difíceis de serem delineados, pois existem variadas definições aplicadas em diferentes convenções internacionais e ainda na quantidade de tentativas de aplicação.

Alguns autores preferem não abrir mão de mesclar o princípio da precaução e o princípio da prevenção, como é o caso de Milaré (2005), o qual não descarta a

1 Tradução não oficial, conforme publicada como anexo, apud Ministérios das relações Exteriores, Divisão do Meio Ambiente, Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, Relatório da Delegação Brasileira, 1992, Fundação Alexandre de Gusmão - FUNAG/Instituto de Pesquisa da Relações Internacionais - IPRI, Coleção Relações internacionais n. 16 (cit. Por MACHADO, Paulo Affonso Leme. O direito ambiental brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 63). O texto em inglês diz: “In order to protect the environment, the precautionary approach shall be widely applied by States according of their capabilities. Where there are threats of serious or irreversible damage, lack of full scientific certainty shall not be used as a reason for postponing cost-effective measures to prevent environmental degradation”.

Page 45: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

45A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO

possível diferença entre os dois princípios e também não discorda dos que reconhecem dois princípios diferentes, todavia, prefere adotar princípio da prevenção como fórmula simplificadora, uma vez que a prevenção, pelo seu caráter genérico, engloba precaução, de caráter possivelmente específico. Por outro lado, outros autores entendem que a diferença entre os dois é bem clara, conforme Silva (2004), a qual assevera que a diferença entre ambos está bem consolidada no direito internacional do meio ambiente, bem como no direito ambiental comparado e referem-se, seja no princípio da prevenção, seja ao princípio da cautela, como forma simplificadora.

Sands (2004) sustenta que o princípio da precaução encontra sua origem nos acor-dos ambientais mais tradicionais, os quais solicitam que as instituições ou participantes ajam adotando decisões baseadas em pesquisas científicas ou métodos, ou à luz dos co-nhecimentos disponíveis num determinado momento, portanto esses modelos sugerem que ação deverá ser tomada somente quando existir a ocorrência de algum dano evidenciado cientificamente e na ausência de qualquer evidência, não é necessário nenhuma ação.

Por outro lado pode-se destacar o entendimento de Sadeller (2004) o qual, na tentativa de expressar o significado, considera que:

Trata apenas de uma norma em virtude da qual a ausência de cer-teza, levando em conta os conhecimentos específicos do momento, não deve nem se opor nem retardar a adoção de medidas destinadas a prevenir um risco que apresenta certo grau de gravidade. Preten-dendo ser a expressão de uma filosofia de ação antecipada, esse princípio, consequentemente, não exige que se reúna um conjunto de provas científicas para se adotar uma decisão que evite um risco (SADELLER, 2004, p. 48).

O princípio da precaução não visa congelar ou engessar todas as atividades huma-nas. Na realidade, tal princípio visa à durabilidade da sadia qualidade de vida e continuidade da natureza que existe no planeta, compartilhando o entendimento de Silva (2004), ao afirmar que na realidade o princípio da precaução emerge do disposto no artigo 225 do Texto Constitucional, impondo, portanto, aos operadores do direito a busca de respostas à imposição de uma segurança reforçada e a regulamentação de dúvidas oriundas da ciência, para então garantir o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado tanto para a presente quanto para as futuras gerações.

Freestone (2004) afirma ser verdade que o princípio da precaução pode ser usado para justificar a prevenção de qualquer forma de atividade que não possa ser comprova-damente considerada inofensiva, definindo como “uma impossibilidade científica virtual”. O princípio da precaução não procura controlar o impacto, pois os principais fatores que desencadeiam tal princípio são a incerteza e as consequências prováveis se, portanto, as consequências são bem conhecidas, dever-se-ia adotar uma medida preventiva e não precautória e, ainda, o princípio por ele mesmo, não dita quais medidas precautórias devem der tomadas.

Page 46: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

46 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Destaque

De todo modo, apesar de alguns autores defenderem que a diferença entre o prin-cípio da prevenção e o da precaução está sedimentada no âmbito do direito internacional, a realidade doutrinária reflete o oposto, tendo em vista que o discurso sobre o princípio da precaução adveio do princípio da prevenção, tal matéria ainda levanta muitos debates e questionamentos. Porém, o que não comporta discussões é quanto à existência de dife-renças, pois se estas não existissem não se trataria de dois princípios com denominações distintas e, portanto, não fomentariam quaisquer discussões.

A DISTINÇÃO ENTRE PERIGO E RISCO

Para delinear o princípio da precaução entende-se necessária a compreensão da diferença entre perigo e risco. Gerd Winter apud Machado (2006) estabelece essa diferen-ça entre perigo e risco ambiental, asseverando que para ele, os perigos são geralmente proibidos, em contrapartida, os riscos não. Os riscos não poderão ser excluídos, porque há sempre a possibilidade de um dano menor. Portanto, para ele se a legislação proíbe quaisquer ações perigosas, porém possibilita a mitigação dos riscos, estar-se-á aplicando o princípio da precaução, o qual “requer a redução da extensão, da frequência ou da incerteza do dano” (MACHADO, 2006, p. 62). Michel Prieur apud op. cit. afirma que “o princípio da precaução é atualmente uma referência indispensável em todas as abordagens relativas aos riscos” (op. cit., p. 62).

Silva (2004) aborda e esclarece tal distinção com bastante propriedade e soluciona a questão com os seguintes argumentos; o risco apresenta uma possibilidade de perigo, ou seja, existe um perigo mais ou menos previsível e tal perigo pode ser definido como uma “situação de fato da qual decorre o temor de uma lesão física ou moral a uma pessoa, ou uma ofensa aos direitos dela” (SILVA, 2004, p. 83), portanto, essa situação que define o perigo trata-se de uma situação que inspira cuidado.

O risco pode ser hipotético ou certo e, portanto, a partir da caracterização do risco hipotético e do risco certo é possível, então, realizar a distinção entre princípio da precaução e da prevenção. Dessa forma, a referida autora afirma que:

O conteúdo cautelar do princípio da prevenção é dirigido pela ciência e pela detenção das informações certas e precisas sobre a periculosidade e o risco fornecido pela atividade ou comportamento que, assim, revela situação de maior verossimilhança do potencial lesivo que aquela controlada pelo princípio da precaução (SILVA, 2004, p. 83).

Entretanto, não se pode desconsiderar ou imaginar que os riscos hipotéticos sejam menos plausíveis, pois são as probabilidades que não tem a mesma natureza: “no caso da precaução, trata-se da probabilidade de que a hipótese seja exata; no caso da prevenção, o perigo está estabelecido e trata-se da probabilidade do acidente” (SILVA, 2004, p. 84) e, portanto, a determinação do risco hipotético é que é delicada, pois, “o risco é criado

Page 47: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

47A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO

pela hipótese e não pode teoricamente ser nulo, exceto se a operação intelectual que declarou admissível anule este risco, decidindo que a hipótese deva ser negligenciada” (op. cit., p. 84).

A referida autora ressalta ainda, que no caso de ser negligenciada, a decisão deve ser tomada pelo conjunto de atores da sociedade, pois, o princípio da precaução está ligado ao próprio questionamento da razão de determinada atividade, em outras palavras os objetivos de qualquer atividade só serão legítimos se objetivarem efetivar os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, enumerados no art. 3º, incisos I, II, III e IV, da Constituição.

Por tais argumentos, o princípio da precaução pode ser definido como uma nova dimensão da gestão do meio ambiente na busca do desenvolvimento sustentável e da minimização dos riscos, no qual induz, o Poder Público e o particular, o dever de agir para evitar danos, não apenas quando se tem evidenciada de maneira certa e precisa a ocorrência daqueles resultantes de quaisquer atividades que se pretenda implementar, mas aja precautoriamente diante das incertezas de qualquer atividade.

Desse modo, pode-se dizer que até o momento, a referida nova dimensão da gestão do meio ambiente está ligada a duas características determinantes do princípio da precaução, quais sejam, o risco e a incerteza científica.

CARACTERÍSTICAS DO PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO

Para relacionar as características do princípio da precaução adotam-se seis carac-terísticas enumeradas, propostas por Machado (2006, p. 72), a saber:

a) A incerteza do dano ambiental: característica correlacionada com a distinção de perigo e risco, outrora detalhado em item anterior, considerando-se que, para a aplicação do princípio da precaução, basta a existência do risco, bem como, sua incerteza;

b) Tipologia do risco ou ameaça: leva-se em consideração a dificuldade em se determinar qual o nível do risco ou ameaça que remete à aplicação do princípio da precau-ção. Justificando, portanto, que “o risco ou perigo serão analisados conforme o setor que puder ser atingido pela atividade ou obra projetada”. Como ilustração tem-se a Convenção da Diversidade Biológica a qual não exige que a ameaça seja “séria ou irreversível”, mas que a ameaça seja “sensível”, quanto à possível redução ou perda da diversidade bioló-gica. No caso da Convenção-Quadro sobre a Mudança do Clima refere-se à ameaça de danos “sérios ou irreversíveis”. A seriedade do dano possível é medida por sua gravidade (MACHADO, op. cit., p. 73);

c) Da obrigatoriedade do controle do risco para a vida, a qualidade de vida e ao meio ambiente: a proteção a esses três elementos essenciais não pode ser matéria esquecida pelo Poder Público, pois de acordo com o art. 225, § 1º, “Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público [...] V - controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco

Page 48: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

48 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Destaque

para a vida, qualidade de vida e meio ambiente”. Verifica-se, portanto, que a Constituição obriga o Poder Público a não se omitir diante de riscos para a saúde humana e para o meio ambiente, e entende-se que esteja tratando da obrigatoriedade da aplicação do princípio da precaução (MACHADO, loc. cit.);

d) Dos custos das medidas de prevenção: para tal característica, tem-se como exemplo concreto a Convenção-Quadro sobre a Mudança do Clima a qual preconiza que “as políticas e medidas adotadas para enfrentar a mudança do clima devem ser eficazes em função dos custos, de modo a assegurar benefícios mundiais ao menor custo possível”. Ou seja, “o custo excessivo deve ser ponderado de acordo com a realidade econômica de cada país”, pois a responsabilidade ambiental é comum a todos os países, mas dife-renciada (Id., Ibd., loc. cit.).

Tem-se ainda como exemplo, a Declaração Ministerial da Conferência Internacional para a Proteção do Mar Norte (1984), apesar do Brasil não fazer parte, e inclusive ser bem anterior à inclusão e efetivação expressa do princípio da precaução no ordenamento brasileiro, refletiu claramente que os Estados “não devem esperar por provas de efeitos prejudiciais antes de entrarem em ação” uma vez que os danos ao ambiente marinho po-dem ser irreversíveis ou apenas remediáveis após longo período de tempo e as medidas corretivas tem alto custo. Isso introduz a ideia, de acordo com as palavras de Sands (2004) de que a ação de precaução pode ser justificada por questões econômicas;

e) Implementação imediata das medidas de prevenção - o não adiamento: salienta--se que os documentos internacionais entendem que as medidas de prevenção não devem ser postergadas (Declaração do Rio de Janeiro/92, Convenção da Diversidade Biológica e Convenção-Quadro sobre a Mudança do Clima). No entendimento de que a precaução age no presente para não ter que chorar no futuro, deve estar presente para impedir o prejuízo ambiental, mesmo que seja incerto, como deve atuar para a prevenção oportuna desse prejuízo. “Evita-se o dano ambiental, através da prevenção no tempo certo” (MACHADO, 2006, p. 74-75);

f) Inversão do ônus da prova: apesar da fomentada discussão entre estudiosos sobre as características, definições e delimitações sobre o princípio da precaução e as inúmeras confusões na tentativa de diferenciá-lo do princípio da prevenção, entende-se que de fato, o que distingue esses dois princípios é a inversão do ônus da prova. Entende--se que a inversão do ônus da prova é a segunda e mais evidente diferença entre os dois princípios, depois da obrigatoriedade do controle do risco, pois, quando se trata do princí-pio da prevenção há o ônus de comprovar que a atividade que se pretende implementar não ficava a cargo do empreendedor e sim do Poder Público, porém, quando se trata da precaução, o ônus inverte-se, passando a ficar a cargo do interessado em implementar o novo negócio que possa gerar riscos ao meio ambiente. Portanto, o interessado em iniciar quaisquer atividades que possam vir a ser prejudiciais ao meio ambiente, deve provar que a atividade que ele pretende implementar não resultará em prejuízo ao meio ambiente para a sociedade (Id., Ibd., p. 77).

Page 49: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

49A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO

Desse modo, dentre as seis características destacadas da enumeração feita pelo autor supracitado e pelas considerações outrora feitas para distinguir perigo o risco, entende-se que dentre elas as que efetivamente apresentam traços precisos para delinear o princípio da precaução são: a incerteza do dano ambiental, a obrigatoriedade do controle do risco para a vida e a inversão do ônus da prova.

PANORAMA DOS RESÍDUOS SÓLIDOS NO BRASIL

Ao abordar a produção de resíduos sólidos no Brasil, Saroldi (2005) considera a taxa de geração de resíduos per capita a variação entre 0,5 e 1,0 kg/hab por dia e estima, portanto, que no Brasil são produzidos diariamente aproximadamente 120.000 toneladas de lixo, somando, ainda a esse montante 30.000 a 40.000 toneladas de resíduos retirados dos logradouros e mais um valor incerto de resíduos industriais.

A Pesquisa Nacional de Saneamento Básico - PNSB, realizada em 2000, revela que há uma tendência do aumento da geração do lixo domiciliar, diretamente proporcional ao número de habitantes. Demonstra que nas cidades com até 200.000 habitantes pode-se estimar a quantidade de lixo variando entre 450 e 700 gramas por habitante/dia, acima de 200 mil habitantes, a quantidade de lixo produzida aumenta para a faixa entre 800 e 1.200 gramas por habitante/dia. A PNSB 2000 revela, ainda, que na época em que foi realizada, eram coletadas 125.281 toneladas de lixo domiciliar, apenas, diariamente em todos os municípios brasileiros.

Quanto à especificação das Unidades de Destino do Lixo, a PNSB 2000 indicou que a situação da destinação final do lixo do país apresenta-se favorável: 47,1% em ater-ros sanitários, 22,3% em aterros controlados e 30,5% em lixões, ou seja, mais de 69% do lixo coletado no Brasil estaria, portanto, tendo um destino final adequado, em aterros sanitários e/ou controlados.

Porém, cabe ponderar que a própria pesquisa citada revela que as fontes das infor-mações coletadas pelos pesquisadores do IBGE são órgãos responsáveis pela execução dos serviços de limpeza urbana e na maioria, 88% dos municípios, a fonte seria a própria prefeitura da cidade, e considera que as informações podem ter sido “demasiadamente otimistas de modo a evitar a exposição de deficiências do sistema”.

Cabe ainda salientar a consideração feita pela PNSB 2000 quanto à vulnerabilidade dos serviços de limpeza urbana, pois, ao contrário dos sistemas de água e esgoto, onde exigem instalações físicas como barragens, redes de coleta e estações de tratamento que dão permanência física ao sistema e a continuidade operacional é muito mais fácil de ser mantida, já os sistemas de limpeza urbana são constituídos essencialmente de serviços e para sua operação exigem o pleno engajamento da administração municipal, resultando em fragilidade do setor, principalmente em épocas de mudanças de administração. Por-tanto, um aterro sanitário pode se transformar em um lixão em questão de dias, a “simples

Page 50: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

50 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Destaque

redução de recursos para o sistema de coleta de lixo, por exemplo, poderá prejudicar a situação de salubridade de uma cidade de um momento para o outro”.

No ano de 2008 foi realizada nova Pesquisa Nacional de Saneamento Básico, trazendo novos resultados e alguns avanços, mesmo que tais avanços sejam mínimos ao considerar o lapso temporal de 2000 a 2008. O caso de avanço mínimo diz respeito à oferta de serviço de esgotamento sanitário por rede coletora, considerado como método mais apropriado, no ano de 2000, 52,2% dos municípios brasileiros possuíam esse serviço, em 2008 foi registrado que esse percentual subiu para 55,2%, apenas 3 pontos percentuais.

Cabe salientar que, para se obter condições sanitárias adequadas, não basta que o esgoto seja coletado de forma apropriada por meio de uma rede geral. É necessário que esse esgoto seja devidamente tratado, caso contrário haverá contaminação de recursos hídricos, proliferação de doenças, devido à contaminação da água por coliformes fecais, restando em prejuízo à saúde pública e aumento da mortalidade infantil. Porém, a PNSB 2008 demonstrou que apenas 28,5% dos municípios brasileiros fizeram tratamento do seu esgoto, implicando em consequências potencialmente negativas ao meio ambiente, espe-cialmente aos recursos hídricos, à qualidade de vida e, principalmente, à saúde pública.

Tratando-se de manejo de resíduos sólidos, a PNSB 2008 revela que a destinação final dos resíduos sólidos em 50,8% dos municípios brasileiros são os vazadouros a céu aberto, ou seja, os lixões. Conforme tabela 01 é evidente que houve uma redução signifi-cativa entre os anos 1989 e 2008 dos resíduos sólidos que possuíam destino inadequado, porém, ao considerar a quantidade de resíduos produzida diariamente, tem-se, ainda, um número exorbitante de resíduos descartados de maneira inadequada.

Considerando dados mais recentes, Guerra (2012) destaca parâmetros informados em uma reportagem realizada pelo jornal O Estado de São Paulo, datada do dia 09.07.2010, que esboçou dados estatísticos que indicam que das 170 mil toneladas de resíduos gerados no Brasil, 40% estão sendo destinados a lixões ou aterros sanitários irregulares, 48% não são coletados e 48% são levados para os aterros sanitários. Diante de dados alarmantes, corroborando o entendimento do autor supracitado, considera-se que a disposição final dos resíduos sólidos apresenta-se como uma das grandes problemáticas enfrentadas pela Política Nacional de Resíduos Sólidos, “haja vista que sua aplicação prática requer do poder público e da coletividade uma série de mudanças comportamentais e estruturais, sem falar da imprescindibilidade de vultuosos investimentos econômicos”.

Tratando-se de tais investimentos, a PNSB 2008 acrescenta que os serviços de manejo de resíduos sólidos, os quais compreendem a coleta, a limpeza pública, bem como a destinação final dos resíduos2 exercem um forte impacto no orçamento das administrações municipais, podendo atingir 20% dos gastos do município.2 A Lei 12.305/2012 define o “gerenciamento de resíduos sólidos” em seu artigo 3º, X, como o “conjunto

de ações exercidas, direta ou indiretamente, nas etapas de coleta, transporte, transbordo, tratamento e destinação final ambientalmente adequada dos resíduos sólidos e disposição final ambientalmente adequada dos rejeitos, de acordo com plano municipal de gestão integrada de resíduos sólidos ou com plano de gerenciamento de resíduos sólidos, exigidos na forma desta Lei”.

Page 51: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

51A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO

CONSIDERAÇÃO SOBRE OS RISCOS NA PRODUÇÃO DE RESÍDUOS SÓLIDOS

A sociedade contemporânea recebe a denominação de sociedade de risco, con-forme o pioneiro alemão, psicólogo Ulrich Back (1986) apud Guerra (2012). O conceito da sociedade em que hoje se vive, “designa um estágio ou superação da modernidade em que começam a tomar corpo as ameaças produzidas até então no caminho da sociedade industrial” (GUERRA, 2012, p. 31). Levantando a questão da autolimitação do desenvolvimento que se veio produzindo, assim como a tarefa de “redeterminar os padrões de responsabilidade, segurança, controle, limitação do dano e distribuições de consequências do dano atingido até aquele momento, levando em conta as ameaças potenciais” (GUERRA, 2012, p. 31).

E ainda informa que, nessa sociedade de risco “o reconhecimento da imprevisi-bilidade das ameaças provocadas pelo desenvolvimento técnico-industrial” traz consigo a exigência de uma “autorreflexão em relação às bases da coesão social e o exame das convenções e dos fundamentos predominantes da racionalidade” (GUERRA, 2012, p. 33).

Considera-se que o homem ao desenvolver suas técnicas, descartou quaisquer riscos e, na realidade, considerou que o desenvolvimento tecnológico poderia anular qual-quer tipo de catástrofe natural, porém o avanço tecnológico gerou, de acordo com Giddens (2005) apud Idem (Ibdem, loc. cit.), um “risco fabricado”, risco que é resultado da decisão humana, levando o homem a sofrer os efeitos de sua própria decisão.

Pelo exposto, não se encontra na pós-modernidade, considerando a atualidade, a correta aplicação para “segurança” e “certeza”, e como bem assevera o autor, “nada pode ser conhecido com segurança e qualquer coisa que seja conhecida pode ser conhecida de um modo diferente”.

Segundo Ulrich Back (1986) apud Guerra (2012, p. 34) a sociedade de risco apre-senta como característica “a geração inevitável de riscos que não podem ser controlados e/ou conhecidos de maneira satisfatória a partir dos processos decisórios” e para salientar tal característica, o autor apresenta cinco grandes aspectos para que a sociedade de risco seja discutida:

a) “os riscos produzidos escapam à percepção sensorial direta”, ou seja, os ricos estão presentes, porém de forma invisível até que fuja do controle da sociedade e então torna-se perceptível;

b) “os riscos não respeitam necessariamente as desigualdades sociais da moder-nidade simples e em determinado momento atingem aqueles que os fabricam ou lucram com sua ocorrência” de outro modo, os riscos não respeitam classes, gêneros ou etnias, todos sofrerão as consequências;

c) “os riscos não quebram a lógica do mercado, ao contrário, sugerem mercados industrializados no gerenciamento e na mitigação dos riscos”. Com o advento da Lei 12.305/2010 essa característica elencada pelo referido autor passa a possuir aspectos reais, pois a PNRS apresenta novos aspectos para a reciclagem de produtos e, inevitavelmente,

Page 52: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

52 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Destaque

sugere novos mercados para produção e industrialização de embalagens que propiciem a reutilização ou a reciclagem, conforme art. 32 da referida lei.

d) “os conhecimentos sobre os riscos e as catástrofes ambientais ganham contornos políticos”;

e) “as catástrofes e os riscos socialmente reconhecidos ganham força política”.O fato relevante que eleva os riscos da atual sociedade é a sua constante mudança,

onde cada vez mais o individualismo se acentua e o avanço da ciência busca satisfazer esse individualismo; cresce imensuravelmente a cultura do uso dos descartáveis, pois a sociedade de hoje caracteriza-se por não ter mais tempo e é exigido praticidade em vários ramos do mercado, com isso os riscos são incorporados no dia a dia.

Alves (2003, p. 119) observa que indiscutivelmente, após a Revolução Industrial as fábricas passam a produzir objetos de consumo em larga escala e a propiciar novas embalagens, aumentando com isso, consideravelmente, o volume e a diversidade de resíduos gerados nas áreas urbanas. Afirma ainda, que o homem hoje inserido na cultura do desperdício, passou a viver na “era dos descartáveis”, onde a maioria dos produtos são inutilizados e jogados fora com enorme rapidez.

Entende-se que a contrapartida do consumidor e da sociedade de modo geral deve-ria ser mais severamente exigida, com o fim de mitigar os riscos, porém isso não acontece, pois, ordinariamente, a cultura do consumismo e a do uso excessivo dos descartáveis não se preocupa com a destinação final adequada dos seus resíduos.

Reitera-se os dados apresentados pela PNSB 2008, os quais revelam que a desti-nação final dos resíduos sólidos em 50,8% dos municípios brasileiros são os vazadouros a céu aberto, ou seja, os lixões. Saroldi (2005) assevera que os resíduos sólidos, quando não são tratados adequadamente constituem uma constante ameaça à saúde pública e ao meio ambiente, limitando as potencialidades econômicas.

Machado (2011) afirma que os lixões são responsáveis pela decomposição de matéria orgânica, liberação de gás carbônico e metano na atmosfera, e poluição do solo e dos lençóis freáticos. Os vazadouros de resíduos sólidos a céu aberto provocam fortes impactos ambientais e estão diretamente associados a doenças como leptospirose, leishmaniose, cólera, salmonelose, desinteria e à proliferação de vetores, como moscas, baratas, ratos, pulgas e mosquitos. E ainda, outros problemas que são ligados ao destino inadequado do lixo são a poluição dos mananciais pelo chorume, contaminação do ar pela queima do lixo, seja de forma provocada ou natural.

O chorume constitui um dos fatores de maior potencial poluidor resultante dos resí-duos sólidos. Sisinno (2000) apud Saroldi (2005, p. 24) explica no que o chorume consiste da seguinte forma: “a água percola através dos resíduos, dissolvendo seus componentes orgânicos e inorgânicos e produtos em decomposição, formando um líquido altamente poluente e de complexa composição, denominado vulgarmente chorume”.

Pode-se ainda considerar a chuva como principal meio de escoamento do chorume, de modo que, esse líquido potencialmente poluente poderá ser carregado para lagos,

Page 53: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

53A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO

córregos, águas subterrâneas ou qualquer outro lugar que a chuva carregar, e com isso torna-se cada vez mais difícil mensurar os danos que a produção excessiva de resíduos sólidos pode causar no meio ambiente e saúde pública.

Diante de tais considerações, tem-se um dos principais fatores que caracterizam e justificam a aplicação do princípio da precaução, qual seja, a incerteza científica. Pois, coletar dados para estudo, avaliação, utilizando-se de métodos científicos, na busca de resultados precisos, caracterizando a certeza científica esperada, para então o Poder Público e particular poderem agir de maneira preventiva é algo praticamente inatingível, considerando a grandiosidade do objeto a ser estudado e as constantes mudanças a ele acrescidas.

A POLÍTICA NACIONAL DE RESÍDUOS SÓLIDOS

A Lei 12.305 de 02 de agosto de 2010, que institui a Política Nacional de Resíduos Sólidos - PNRS sujeita pessoas físicas ou jurídicas, de direito público ou privado, conside-radas como responsáveis diretamente ou indiretamente pela geração de resíduos sólidos, às diretrizes por ela estabelecidas relativas à gestão integrada e ao gerenciamento de resíduos sólidos, incluindo no rol de resíduos sólidos os considerados perigosos.

A PNRS propõe um regime ou isolado ou de cooperação entre os entes federativos com o fim de dar maior efetividade às ações, diretrizes e metas para o gerenciamento dos resíduos, conforme dispõe o art. 4º da lei:

Art. 4º A Política Nacional de Resíduos Sólidos reúne o conjunto de princípios, objetivos, instrumentos, diretrizes, metas e ações adotados pelo Governo Federal, isoladamente ou em regime de cooperação com Estados, Distrito Federal, Municípios ou particulares, com vistas à gestão integrada e ao gerenciamento ambientalmente adequado dos resíduos sólidos.

Considera-se a PNRS um importante instrumento que busca dar efetividade ao disposto no art. 225 da Constituição Federal, dispositivo que atualmente fomenta inúmeras discussões, inclusive quando se trata de considerá-lo em matéria no âmbito de direito fundamental ou não, conforme contraposição feita por Gavião Filho (2011), que a partir da leitura do artigo 225 da CF, salienta duas vertentes. Tem-se uma primeira vertente na qual resulta em afirmar que o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado não é um direito fundamental, ou seja, tal direito fundamental não existe, passando a ser apenas uma norma programática informativa do legislador sem o cunho de direito fundamental, e de fato, este direito não está elencado no rol de direitos fundamentais na Constituição. Em contrapartida, a segunda vertente, leva à impossibilidade de se afirmar que o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado não é direito fundamental, só porque está fora do catálogo de direito fundamentais, pois o próprio art. 5º, § 2º, da CF faz esse rol materialmente aberto.

Page 54: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

54 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Destaque

De qualquer modo, o art. 225 da CF induz ao entendimento de que não visa somente à proteção ao meio ambiente, mas também à sadia qualidade de vida, de uma forma ou de outra. Tratando-se de direito fundamental ou não, o gerenciamento de resíduos sólidos é fundamental para assegurar a proteção de ambos bens jurídicos.

Ao observar o compêndio de dispositivos que compõem a estrutura da Lei 12.305/2010, a primeira ressalva que Guerra (2012, p. 45) aborda é que a lei comporta dispositivos de diferentes espécies, “sendo que de um lado estão dispositivos de caráter propriamente jurídico, e de outro se encontram normas de conteúdo puramente técnico”. Como exemplo disso tem-se o art. 2º, no qual em um único diploma legal há a sistemati-zação de normas de caráter técnico e normas de caráter jurídico.

O PNRS, sem dúvida apresentou uma série de novidades quanto ao tratamento dos resíduos sólidos, formas de gerenciamento de resíduos sólidos e obrigatoriedades.

Trouxe o princípio da responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produ-tos, definido como o “conjunto de atribuições individualizadas e encadeadas dos fabricantes, importadores, distribuidores e comerciantes, dos consumidores e dos titulares dos serviços públicos de limpeza urbana e de manejo dos resíduos sólidos”, que são envolvidos por meio de um “acordo setorial” com o fim de “minimizar o volume de resíduos sólidos e rejeitos gerados, bem como para reduzir os impactos causados à saúde humana e à qualidade ambiental decorrentes do ciclo de vida dos produtos”, ou seja, não fica a cargo somente da empresa responsável pela limpeza pública, todos os setores devem estar envolvidos para concretizar os propósitos apresentados no Plano Nacional.

Os acordos setoriais não são obrigatórios, porém, a lei também estabeleceu obrigatoriedades, como o caso da implementação dos sistemas de logística reversa, que consiste no “retorno dos produtos após o uso pelo consumidor, de forma independente do serviço público de limpeza urbana e de manejo dos resíduos sólidos”, porém restringiu essa obrigatoriedade aos fabricantes, importadores, distribuidores e comerciantes dos seguintes produtos: agrotóxicos, bem como seus resíduos e embalagens, pilhas, baterias, pneus, óleos lubrificantes, assim como seus resíduos e embalagens, lâmpadas fluorescentes, de vapor de sódio e mercúrio e de luz mista, e dos produtos eletrônicos e de seus componentes conforme disposto no art. 33 e seus incisos da Lei 12.305/2010.

Estabeleceu ainda, sem prejuízo a quaisquer obrigações já estabelecidas, com vistas a fortalecer a responsabilidade compartilhada e seus objetivos, que os fabricantes, importadores, distribuidores e comerciantes têm responsabilidade de investir no desen-volvimento e fabricação, e colocar no mercado produtos que sejam aptos, após o uso, à reutilização, reciclagem ou outra forma de destinação ambientalmente adequada.

Ao tratar da “gestão integrada de resíduos sólidos” definida como o “conjunto de ações voltadas para a busca de soluções para os resíduos sólidos”, essa gestão passa a considerar as “dimensões política, econômica, ambiental, cultural e social, com controle social e sob a premissa do desenvolvimento sustentável”. Guerra (2012, p. 75) salienta que antes da Lei 12.305/2010 os instrumentos de gestão integrada e do gerenciamento

Page 55: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

55A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO

de resíduos eram de livre disposição dos setores, principalmente o setor empresarial. Atualmente, essa gestão integrada se apresenta como um “conjunto de referenciais” com o objetivo de buscar o modelo de administração de resíduos mais adequado para um de-terminado setor, na realidade, um “estudo que leva em consideração todas as dimensões envolvidas no caso concreto”.

Antes da promulgação da Lei 12.305/2010 a obrigatoriedade da reciclagem restrin-gia-se apenas a alguns setores, como por exemplo, agrotóxicos, pneus, pilhas e baterias. E ainda, consistia em um processo muito oneroso às empresas e consequentemente de-sestimulador. A partir da promulgação da referida lei, houve uma nova concepção quando se aborda o tema reciclagem. Apesar da obrigatoriedade estabelecida possuir caráter formal, não há como desconsiderar a importância e o avenço na legislação quanto a essa atividade, haja vista que a obrigatoriedade hoje, se estende a todos os setores, seja para o Poder Público, setor empresarial e também, à população.

O PNRS não apenas estendeu a obrigatoriedade da reciclagem a todos os segui-mentos da sociedade, como também dispôs mecanismos para o seu incentivo.

De início, o PNRS traz como um dos principais objetivos “o reconhecimento do resíduo sólido reutilizável e reciclável como um bem econômico e de valor social, gerador de trabalho e renda e promotor de cidadania”, e como um de seus objetivos o “incentivo à indústria da reciclagem, tendo em vista fomentar o uso de matérias-primas e insumos derivados de materiais recicláveis e reciclados” e também a priorização, nas aquisições e contratações governamentais, dos produtos reciclados e recicláveis e dos bens, serviços e obras que considerem critérios compatíveis com padrões de consumo social e ambien-talmente sustentáveis.

Ademais, o Poder Público Municipal que estabelece coleta seletiva em seu plano municipal de gestão integrada de resíduos sólidos e na aplicação do art. 33 que trata da estruturação e implementação de sistemas de logística reversa obrigatória, poderá instituir incentivos econômicos aos consumidores que participam do sistema de coleta seletiva, na forma da lei municipal, haja vista que nesses casos os consumidores são obrigados a acondicionar adequadamente e de forma diferenciada os resíduos sólidos gerados e, também disponibilizar adequadamente os resíduos sólidos reutilizáveis e recicláveis para coleta ou devolução.

Cabe salientar que o Plano Nacional de Resíduos Sólidos não se restringiu apenas no âmbito federal, mas estabeleceu outros planos de resíduos sólidos, na esfera estadual, no Distrito Federal e, ainda, no setor empresarial.

No âmbito federal, tem-se apenas o Plano Nacional de Resíduos Sólidos, sob a coordenação do Ministério do Meio Ambiente, com vigência por prazo indeterminado e horizonte de 20 (vinte) anos, a ser atualizado a cada 4 (quatro) anos, sendo ainda esta-belecido um conteúdo mínimo, elencado nos incisos do art. 15.

Na esfera estadual, o plano estadual de resíduos sólidos será elaborado para vigência por prazo indeterminado, abrangendo todo o território do Estado-membro, com

Page 56: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

56 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Destaque

horizonte de atuação de 20 (vinte) anos, com revisões a cada 4 (quatro) anos, e da mes-ma forma fica estabelecido um conteúdo mínimo, limitando sua aplicabilidade à extensão territorial. Além do plano estadual de resíduos sólidos, os estados podem elaborar ainda outras duas espécies de planos: os planos microrregionais de resíduos sólidos e os planos de resíduos sólidos de regiões metropolitanas ou aglomerações urbanas.

Semelhante aos planos estaduais, os chamados planos de gestão integrada de resíduos sólidos também possuem um conteúdo mínimo, já estabelecido, e sua aplica-bilidade é limitada à sua extensão territorial. Os municípios também podem optar por soluções consorciadas intermunicipais para a gestão dos resíduos sólidos, para formar o plano intermunicipal de resíduos sólidos, desde que assegurado que este preencha os requisitos estabelecidos nos incisos do art. 19 da PNRS, ou seja, mediante a presença de todo o conteúdo mínimo exigido e, nesse caso, o município pode ser dispensado da elaboração de plano municipal de gestão integrada de resíduos sólidos.

Importante salientar que a elaboração de plano estadual e municipal de gestão de resíduos sólidos é condição necessária ao Estado, Distrito Federal e aos Municípios para obterem acesso aos recursos da União, ou por ela controlados, destinados a empreendi-mentos e serviços relacionados à limpeza urbana e ao manejo de resíduos sólidos, bem como para serem beneficiados por incentivos ou financiamentos de entidades federais de crédito ou fomento para tal finalidade.

Finalmente, no âmbito do setor privado, os agentes privados estão sujeitos à elaboração de plano de gerenciamento de resíduos geradores dos seguintes resíduos sólidos: serviços de saneamento básico; resíduos industriais, gerados nos processos produtivos e instalações industriais; resíduos de serviço de saúde e; resíduos de minera-ção, seja na pesquisa, extração ou beneficiamento de minério. Também estão sujeitos os estabelecimentos comerciais e de prestação de serviços que geram resíduos perigosos e resíduos que, mesmo caracterizados como não perigosos, por sua natureza, composição ou volume, não sejam equiparados a resíduos domiciliares pelo poder público municipal.

E, ainda, as empresas de construção civil, nos termos do regulamento ou de normas estabelecidas pelos órgãos do Sisnama; os responsáveis pelos terminais e outras instala-ções como as empresas de transporte; e os responsáveis por atividades agrossilvopastoris, se exigido pelo órgão competente do Sisnama, do SNVS ou do Suasa.

Assim como os demais planos, o plano de gerenciamento de resíduos sólidos possui um conteúdo mínimo estabelecido pelo Plano Nacional de Resíduos Sólidos. Ressalte-se, mesmo na ausência de um plano municipal de gestão integrada de resíduos sólidos, não é obstada a elaboração, implementação ou operacionalização do plano de gerenciamento de resíduos sólidos.

Cabe salientar que o legislador elevou o plano de gerenciamento de resíduos sólidos à condição de parte integrante do processo de licenciamento ambiental do empreendimento ou atividade pelo órgão competente do Sisnama, conforme disposto no artigo 24 da Lei 12.305/2010.

Page 57: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

57A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO

APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO NA POLÍTICA NACIONAL DE RESÍDUOS SÓLIDOS

Dentre os princípios da Política Nacional de Resíduos Sólidos - PNRS, os primeiros a serem enumerados são os princípios da prevenção e da precaução, art. 6º, inciso I: “Art. 6º São princípios da Política Nacional de Resíduos Sólidos: I - a prevenção e a precaução; [...]”.

Entende-se que a justificativa para a aplicação do princípio da precaução na PNRS não se dá apenas pelo fato do princípio vir expressamente estabelecido no corpo da lei. São diversas as razões que justificam a sua aplicação, como se verá adiante.

Conforme salientado anteriormente, o princípio da precaução já foi amplamente discutido no âmbito do direito ambiental internacional, mas alguns autores preferem mitigar o princípio da precaução com o princípio da prevenção, já outros defendem que a distinção entre os dois já é matéria pacificada, suprimindo, dessa forma, quaisquer motivos que levem a confundi-los.

Ao analisar o dispositivo supracitado, é notável que a PNRS consagra a existência de dois princípios distintos, na medida em que o princípio da precaução não se confunde com o princípio da prevenção. Isto posto, entende-se necessário evidenciar meios de efetivar o princípio da precaução e não mais persistir no discurso que mitiga os dois princípios.

O primeiro elemento que justifica a aplicação do princípio da precaução é um elemento delineador do princípio em tela: a distinção entre perigo e risco.

Corroborando o entendimento de Gerd Winter apud Machado (2006, p. 62) que estabelece a diferença entre perigo e risco ambiental, no sentido de que o perigo é geral-mente proibido e, em contrapartida, os riscos não. De modo a justificar e exemplificar o entendimento do autor, quanto ao perigo ser “geralmente proibido”, cita-se o art. 48 que estabelece proibições de determinadas atividades, elencadas nos seus incisos, nas áreas de disposição final dos resíduos ou rejeitos, ou seja, áreas em que o perigo de proliferação de doenças e vetores, contaminação de pessoas ou animais são iminentes. O art. 49, igualmente, proíbe “a importação de resíduos perigosos e rejeitos, bem como de resíduos sólidos cujas características causem dano ao meio ambiente, à saúde pública e animal e à sanidade vegetal, ainda que para tratamento, reforma, reuso, reutilização e recuperação”.

Quando se trata de risco, por sua vez, cujas correspondentes condutas não são proibidas, mas, que não pode ser ignorado pelo fato de sempre haver a possibilidade de um dano menor, a própria PNRS dedica a maioria dos seus 57 artigos à finalidade de minimização de riscos, apresentando instrumentos que possibilitem reduzir a quantidade de resíduos sólidos descartados sem aproveitamento algum.

No entendimento de Gerd Winter apud Machado (2006, loc. cit.), se a legislação proíbe quaisquer ações perigosas, porém possibilita a mitigação dos riscos, estar-se-á aplicando o princípio da precaução, o qual “requer a redução da extensão, da frequência ou da incerteza do dano”.

Page 58: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

58 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Destaque

Ressalta-se a importância da aplicação do princípio da precaução, quando sua justificativa de aplicabilidade está diretamente associada aos riscos, pelo fato de que a sociedade de hoje caracteriza-se como uma sociedade de riscos ou uma sociedade que vive constantemente exposta a riscos, considerando ainda que o avanço tecnológico e a modernização inevitavelmente contribuirão para o aumento e agravamento dos riscos.

Tratando-se dos novos mercados introduzidos para gerenciamento e mitigação de riscos, corroborando o entendimento de Ulrich Back (1986) apud Guerra (2012, p. 34), ao abordar as características da sociedade de risco, afirma que “os riscos não quebram a lógica de mercado, ao contrário, sugerem mercados industrializados no gerenciamento e na mitigação dos riscos”, a PNRS traz nova abordagem no que refere à reciclagem, pois antes da Lei 12.305/2010, não havia um sistema que tornasse o sistema de reciclagem obrigatório e, portanto, sem a imposição do Poder Público ao particular, a reciclagem apresentava-se de maneira tímida, apesar de alguns grandes projetos de gerenciamento de resíduos sólidos se destacarem muito antes da obrigatoriedade.

A nova abordagem em relação ao tema da reciclagem torna essa prática obrigatória para todos: Poder Público, empresários e população.

No setor empresarial pode-se destacar a responsabilidade dos fabricantes, impor-tadores, distribuidores e comerciantes que agora possuem, por força da PNRS, a qual abrange o “investimento no desenvolvimento, na fabricação e na colocação no mercado de produtos: a) que sejam aptos, após o uso pelo consumidor, à reutilização, à reciclagem ou a outra forma de destinação ambientalmente adequada [...]” (art. 3º, inciso I). E ainda, a obrigação legalmente estabelecida de que “as embalagens devem ser fabricadas com materiais que propiciem a reutilização ou a reciclagem” (art. 32). Incontestavelmente, surge a oportunidade de novos mercados industrializados que venham gerenciar e, sem dúvida, mitigar os riscos ambientais.

Para demonstrar as ações precautórias que a PNRS adota, tem-se uma diversi-dade de alternativas ou soluções para evitar o descarte dos resíduos, incluindo no rol de “destinação final adequada” a reutilização, reciclagem, compostagem, a recuperação e o aproveitamento energético, ampliando ainda esse rol, quando admite “outras destinações admitidas pelos órgãos competentes do Sisnama, do SNVS e do Suasa” (art. 3º, VII).

Mesmo com tantas alternativas de destinação final que a PNRS entende como sendo adequada, a Política admite a hipótese de que pode haver resíduos que não terão nenhuma das destinações previstas, para tanto, mesmo que tais resíduos não sejam reutilizados, reciclados, recuperados, energeticamente aproveitados ou destinados à compostagem, deverão seguir para uma “destinação final ambientalmente adequada” definida como “dis-tribuição ordenada de rejeitos em aterros, observando normas operacionais específicas, de modo a evitar danos ou riscos à saúde pública e à segurança, e a minimizar impactos ambientais adversos” (art. 3º, VIII).

Cabe salientar a diferença que a PNRS estabelece entre “disposição final adequada” e “destinação final adequada”: a primeira diz respeito àqueles resíduos que não apresentam

Page 59: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

59A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO

quaisquer alternativas para seu reaproveitamento e a segunda abrange os resíduos cujo reaproveitamento é possível com a utilização de diferentes técnicas de tratamento.

A necessária minimização dos riscos, diante da atual produção excessiva de resíduos sólidos, como dito obrigou o legislador pátrio a estabelecer a destinação final adequada, elencando diversas alternativas com o fim de evitar o descarte e promover o reaproveitamento dos resíduos.

Ao abordar a incerteza do dano causado na excessiva produção de resíduos sóli-dos, também se trata da incerteza científica, que do mesmo modo, consiste em uma das principais características do princípio da precaução, conforme exposto em item anterior.

Assim, a PNRS ao apresentar um plano de ações voltado para minimização de riscos, de forma precautória, leva em consideração a incerteza científica, pois coletar da-dos, para estudo, avaliação utilizando-se de métodos científicos na busca de resultados precisos que caracterizem a certeza científica esperada, para a partir daí o Poder Público e particular agir de maneira preventiva é algo praticamente inatingível ou utópico, consi-derando a grandiosidade do objeto a ser estudado e as mudanças, constantemente, a ele acrescidas e não mais seriam nem medidas preventivas e nem precautórias.

Desse modo, ao definir a gestão integrada de resíduos sólidos, a Política Nacional considerou a maior amplitude de possibilidades de impactos que a produção de resíduos sólidos poderá causar nas diversas esferas da sociedade, reconhecendo que os riscos ou possibilidades de impactos possuem várias dimensões difíceis de serem contornadas e amplamente conhecidas. O art. 3º, XI, assim define: “conjunto de ações voltadas para a busca de soluções para os resíduos sólidos, de forma a considerar as dimensões política, econômica, ambiental, cultural e social e sob a premissa do desenvolvimento sustentável”.

Antes do sistema jurídico brasileiro incorporar o princípio da precaução, o Poder Público era responsável em elaborar estudos e demonstrar para a população que determi-nada atividade, prestes a ser implementada não ocasionaria danos ambientais, por meio dos Estudos de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental - EIA/RIMA.

Atualmente, a obrigatoriedade de elaboração de estudos de impactos ambientais prevalece, porém a PNRS trouxe um novo contorno para a elaboração do EIA/RIMA, quanto ao gerenciamento dos resíduos sólidos, inserindo no seu contexto a inversão do ônus da prova, característica oriunda do princípio da precaução.

A Lei 12.305/2010 trouxe a obrigatoriedade de elaboração de plano de geren-ciamento de resíduos sólidos para diversos ramos empresariais, como as empresas de saneamento básico, que geram resíduos industriais, de serviço de saúde e mineração, bem como os estabelecimentos que geram resíduos perigosos ou mesmo que não perigosos, por sua natureza, composição ou volume não sejam equiparados a resíduos domiciliares, as empresas de construção civil, os estabelecimentos responsáveis pelas instalações ou terminais originários de portos, aeroportos, terminais alfandegários, ferroviários e passagens de fronteira e, finalmente, os responsáveis por atividades agrossilvopastoris.

Page 60: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

60 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Destaque

Portanto, o atual quadro para implementação de quaisquer atividades acima re-lacionadas, entende-se ainda, que pelo fato da própria legislação dar amplitude quando estabelece que a obrigatoriedade de elaboração de plano de gerenciamento de resíduos sólidos, também se estende às empresas, mesmo não geradoras de resíduos perigosos por sua natureza, composição ou volume não sejam equiparados a resíduos domiciliares, resulta no entendimento de que a enumeração das empresas vinculadas a essa obriga-toriedade é bem maior e mais ampla que a simples enumeração feita nos incisos do art. 20 da Lei 12.305/2010.

A PNRS estabelece um conteúdo mínimo a ser respeitado na elaboração do plano de gerenciamento de resíduos sólidos dos estabelecimentos empresariais a serem im-plementados, incluindo metas e procedimentos relacionados à minimização de geração de resíduos, ações preventivas e corretivas no caso de eventual erro no gerenciamento, dentre outros requisitos estabelecidos no art. 21.

Os elementos caracterizadores da inversão do ônus da prova consistem na inde-pendência do plano de gerenciamento de resíduos sólidos exigidos na esfera empresarial a despeito do plano municipal de gestão integrada de resíduos sólidos, ou seja, mesmo que o poder público municipal não possua um plano adequado de gerenciamento de resíduos sólidos, o empresário que pretende implementar atividades nas quais os seus resíduos expõem ainda mais a população à riscos, não o exime de tal obrigação.

O segundo elemento caracterizador é que o plano de gerenciamento de resíduos sólidos tornou-se parte integrante do licenciamento ambiental do empreendimento ou atividade, conforme estabelecido no art. 24 da Lei 12.305/2010.

Dessa feita, evidencia-se a aplicabilidade do princípio da precaução na Política Nacional de Resíduos Sólidos, pela inversão do ônus da prova, os riscos e incerteza científica na produção e gerenciamento de resíduos sólidos.

ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E O PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO

A Administração Pública também tem o dever de contribuir para a implementação do Princípio da Precaução, dispondo de meios adequados e eficazes para o cumprimento da obrigação de preservar o meio ambiente. Nesta perspectiva, Amaral assevera que a Administração Pública não se limita ao Estado: inclui-o, mas comporta muitas outras enti-dades e organismos. Por isso também, nem toda a atividade administrativa é uma atividade estatal: a administração pública não é uma atividade exclusiva do Estado.3

Para o jurista Manoel Gonçalves Ferreira Filho (apud DERANI, p. 56):O Poder Público é fruto do Estado de Direito, aquele Estado constitucionalmente organizado, respeitador de uma determinada ordem jurídica, que garante um mínimo de previsibilidade aos seus atos e generaliza o campo de ação de todos os cidadãos. É o modus

3 AMARAL, Diogo Freitas do. Curso de direito administrativo. Coimbra: Almedina, v. 1, 1986.

Page 61: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

61A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO

agendi desse Estado, uma vez que não há e nem pode haver Estado sem poder. Este é o princípio unificador da ordem jurídica e, como tal, evidentemente é uno.

Assim, é imprescindível que se faça uma análise dos princípios que norteiam as atividades da Administração Pública, expressos no art. 37, caput, da Constituição Federal, face à relação existente entre eles e os princípios do Direito Ambiental.

Primeiramente, destacam-se os princípios da legalidade e da moralidade. O primeiro preconiza que a Administração Pública somente pode agir de acordo com os preceitos legais, ou seja, somente pode fazer o que a lei permitir. Já o segundo significa dizer que os agentes e a própria administração devem agir de acordo com a ética, alicerçada na lealdade e na boa-fé.

Deste teor resulta que a Administração Pública não pode, arbitrariamente, adiar a aplicação de medidas necessárias à preservação do meio ambiente. Caso isso venha ocorrer, haveria a violação não somente dos princípios da legalidade e o da moralidade como também o Princípio da Precaução, que tem como uma de suas características a aplicabilidade imediata das medidas ambientais diante da certeza ou incerteza científica de danos ao meio ambiente.

Num segundo momento deverão ser destacados os princípios da publicidade e o da impessoalidade (artigo 37 da CF/1988). Enquanto que o princípio da publicidade requer que as atividades realizadas pela Administração Pública sejam levadas ao conhecimento da população, para permitir que esta exerça um controle externo dos atos realizados pelo poder público, o da impessoalidade traz consigo a ideia de que a Administração Pública deve tratar a todos sem discriminação, independente de divergências políticas, religiosas ou ideológicas.

De plano, para uma melhor compreensão da relação entre estes princípios e aqueles que norteiam o direito ambiental, cita-se o exemplo dado pelo professor Machado (p. 62):

Viola o princípio da impessoalidade e publicidade administrativa os acordos e/ou licenciamentos em que o cronograma de execução de projetos não é apresentado previamente ao público, possibilitando que os setores interessados possam participar do procedimento das decisões.

Sendo assim, a omissão da Administração Pública, no que tange ao poder-dever de evitar os danos ao meio ambiente, isto é, se não aplicar o Princípio da Precaução, incidirá sobre ela a responsabilidade administrativa. É o que determina o art. 70 da Lei 9.605/1999: “Infração administrativa ambiental, toda ação ou omissão que viole as regras jurídicas de usos, gozo, promoção, proteção e recuperação do meio ambiente”.

Da mesma forma, se a Administração Pública nas hipóteses previstas em lei, não implementar a Avaliação do Impacto Ambiental, incorrerá na violação do preceito constitucional. No dizer de Antunes (p. 98):

Page 62: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

62 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Destaque

O princípio de direito que deve ser observado é que, em havendo ris-co potencial ou atual, o meio ambiente deve ser preservado através da elaboração do estudo do impacto ambiental. A dispensa imotivada ou em fraude à Constituição, do estudo do impacto ambiental, deve ser considerada falta grave do servidor que a autorizar. Assim, é porque, na hipótese, trata-se de violação cabal da Constituição.

Se por um lado, a Constituição Federal atribui também à Administração Pública o dever de preservar o meio ambiente, de outra banda, a participação da sociedade nas decisões ambientais tem a função de respaldar e fiscalizar os atos realizados pelo admi-nistrador público.

Benjamim (1993. p. 32) pontua que:

A participação pública reprime a tendência dos órgãos administra-tivos, quando ninguém mais participa do processo decisório, de favorecer as indústrias que fiscalizam. E acrescenta: O administrador público, até de boa-fé, agride o ambiente ou é conveniente com a degradação ambiental em razão de não ter à sua disposição elemen-tos informativos que contrariem os dados e os fatos unilateralmente trazidos pelos agentes econômicos.

O texto do art. 225 da Constituição Federal, portanto, estabelece a obrigação do Estado em proteger o meio ambiente, exigindo a implementação tanto de medidas preven-tivas e de precaução quanto aquelas necessárias à reparação do bem ambiental lesado.

Dentro deste quadro, observa-se que o poder público regula e protege a liberdade individual e a propriedade privada. No entanto, em nenhum momento pode arbitrariamente deixar de resguardar os interesses da coletividade, razão pela qual são instituídas normas impositivas que fixam as medidas que devem ser implementadas pelo Estado.

Para Canotilho (p. 89):

As normas constitucionais impositivas apresentam-se em estreita conexão com as normas determinadoras de fins e tarefas com princípios constitucionalmente impositivos. Especificamente no caso do capítulo do meio ambiente, este inter-relacionamento é bastante evidente, por estarem agrupadas estas três espécies de norma num único artigo.

Ressalta-se que o Poder Público encontra-se numa situação de superioridade ou de supremacia em relação ao particular, condição que se faz necessária para a consecução dos fins sociais e coletivos a ele imputado por lei. Em relação à administração pública, a supremacia do interesse público sobre o privado se manifesta através de benefícios con-cedidos ao Poder Público, responsável pela proteção dos interesses sociais e execução dos preceitos constitucionais.

Page 63: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

63A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO

Nesta perspectiva, não é facultado ao poder público transigir em matéria que diga respeito ao meio ambiente, pois como afirma Mirra, “torna-se possível exigir coativamen-te até, e inclusive pela via judicial, de todos os entes federados o cumprimento de suas tarefas na proteção do meio ambiente”, o que reforça a ideia da indisponibilidade do bem ambiental e do dever do Estado em assegurar o exercício do direito ao meio ambiente sadio e equilibrado.

O princípio da supremacia do interesse público sob o privado, que rege o Direito Administrativo, mantém uma estreita ligação com o Direito Ambiental, porque sendo o meio ambiente bem público, de uso comum do povo, infere-se que os direitos individuais de caráter privativo nem sempre prevalecem sobre os direitos difusos; na dúvida, via de regra, resolve-se in dubio pró-ambiente.

Desta forma, o Estado desenvolve uma função essencial no que diz respeito à preservação do meio ambiente e também na aplicação de políticas ambientais. No entanto, o próprio Estado interfere de forma negativa no meio ambiente, seja omitindo-se de suas responsabilidades e/ou dispensando (de forma arbitrária) a Avaliação do Impacto Ambiental, em prol dos interesses econômicos enraizados nas normas de direito ambiental.

O Brasil tem uma Política Ambiental que se expressa principalmente através da Lei de Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938/1981). Em contrapartida, constata--se que a referida lei é pouco conhecida pela população, o que dificulta a participação dos cidadãos, seja de forma direta, interferindo nas decisões que envolvam a questão ambiental, ou indiretamente, fiscalizando a atuação do Poder Público.

A política ambiental não prescinde apenas da atuação do poder público, ela de-pende de uma ação que envolva tanto o Estado quanto a coletividade, tanto que: [...] os administradores, de meros beneficiários do exercício da função ambiental pelo Estado que eram passam a ocupar a posição de destinatários do dever poder de desenvolver compor-tamentos positivos, visando àqueles fins. Assim, o traço que distingue a função ambiental pública das demais funções estatais é a não exclusividade do seu exercício pelo Estado.4

Canotilho (p. 40) diz que:

[...] à política do ambiente, esta deve ser conformada de modo a evitar agressões ambientais, impondo-se: 1) a adoção de medidas preventivo-antecipatórias em vez de medidas repressivo-mediado-ras; 2) o controle da poluição na fonte, ou seja, na origem (especial e temporal); quanto à polícia do ambiente esta deve ser exercida no sentido de obrigar o poluidor a corrigir e recuperar o ambiente.

Verifica-se, portanto, mesmo que as atividades potencialmente lesivas ao meio ambiente estejam sujeitas à fiscalização, vigilância e controle do Poder Público, não há uma garantia de que o meio ambiente será preservado. Isto porque ocorre um déficit de

4 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988: interpretação e crítica. 6. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2001.

Page 64: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

64 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Destaque

execução no sistema de controle e comando público ambiental, perceptível quando ocor-rem acidentes ambientais de grandes proporções, mesmo sendo observadas a legislação ambiental.

A eficiência de uma política ambiental está associada a um suporte social, ou mais especificadamente, à iniciativa do cidadão e do setor privado. “Todo problema da política ambiental só pode ser resolvido quando reconhecida a unidade entre cidadãos, Estado e meio ambiente e garantidos os instrumentos de ação conjunta” (LEITE, p. 36).

Assim, o Estado precisa estar comprometido com uma política ambiental orientada pelos Princípios da Precaução, do Poluidor-Pagador e da Cooperação, o que exige, em alguns casos, a atuação intervencionista do Estado na ordem econômica. Uma vez reconhe-cido o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado são definidos os instrumentos, preceitos normativos e até mesmo penalizações de reconhecimento, são definidos contra a resistência de interesses e objetivos políticos conflitantes.

Pontua-se que o setor privado também deve participar ativamente na concretização da meta de realizar os objetivos visados pelas normas de proteção do meio ambiente. Desta forma, as empresas precisam adotar um sistema de gestão ambiental, de forma a conjugar o desenvolvimento econômico e a utilização racional dos recursos naturais.

Nesta linha de pensamento, Derani (p. 87) leciona que:

[...] o desenvolvimento de práticas privadas deve estar fundado na orientação de políticas públicas, as quais teriam a vocação de efetivamente realizar os objetivos básicos previstos no capítulo do meio ambiente, tendo presente os demais princípios norteadores da sociedade brasileira. Pela orientação do comportamento coletivo, garante-se uma prática privada gratificante ao investidor e à sociedade.

Entretanto, a atuação do Estado é limitada por determinados fatores que conduzem à ineficácia de suas ações. Com muita propriedade, Beckenbach (apud DERANI, p. 210) aponta os fatores que limitam a ação do Estado: “A globalidade dos problemas ecológicos e seu efeito na base de reprodução social; o caráter social e cultural da crise ecológica; o caráter inédito, irreversível e de impossível repetição dos experimentos ecológicos; o caráter histórico e mundial que tomou a crise ambiental”.

Paralelamente ao fato de que a elaboração das políticas públicas ambientais é in-dispensável tanto para a prevenção quanto para a reparação dos danos ao meio ambiente, evidencia-se que um dos elementos estruturantes da política ambiental é a capacidade da Administração Pública de executá-la. Assim, em razão do Princípio da Precaução, dispõe a Administração Pública brasileira de mecanismos para prevenir o desenvolvimento de uma atividade que ofereça riscos ao meio ambiente, a saber, a Avaliação do Impacto Ambiental em consonância com o direito à informação ambiental.

Page 65: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

65A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apesar da fomentada discussão quanto à aplicabilidade de princípio da precaução no âmbito do direito internacional, e a dificuldade em se uniformizar a aplicação do referido princípio no âmbito nacional, a Política Nacional de Resíduos Sólidos trouxe algumas ferramentas essenciais para se evidenciar e analisar a aplicabilidade daquele princípio.

Algumas características determinantes para diferenciação entre princípio da pre-venção e precaução, como a incerteza científica, os riscos e a inversão do ônus da prova, são ferramentas claramente utilizadas no plano de gerenciamento de resíduos sólidos. E tais ferramentas consistem na justificativa para a aplicação do princípio da precaução.

Portanto, o princípio em tela, não foi elencado como um dos princípios da Política Nacional de Resíduos Sólidos, por coincidência, sem qualquer justificativa, ou porque a utilização do princípio da prevenção enseja o princípio da precaução, como praxe.

Ao longo do compêndio de normas técnicas e jurídicas, a Lei 12.305/2010 esta-belece objetivos e fornece instrumentos que utilizam-se de medidas precautórias com o fim de mitigar os riscos.

Portanto, os contornos dado ao princípio da precaução na Política Nacional de Resíduos Sólidos são evidenciados pela exposição aos riscos, pela incerteza científica e inversão do ônus da prova, quanto à obrigatoriedade do plano de gerenciamento de resíduos sólidos ao setor empresarial, para licenciar suas atividades.

REFERÊNCIAS

ALVES, Sergio Luiz Mendonça. Estado poluidor. 1. ed. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003.

BRASIL. Lei 6.938 de 31 de agosto de 1981. Institui a Política Nacional do Meio Ambiente. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6938.htm>. Acesso em: 05 jun. 2012.

______. Lei 12.305 de 02 de agosto de 2010. Institui a Política Nacional de Resíduos Sólidos; altera a Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998; e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12305.htm>. Acesso em: 02 jun. 2012.

FREESTONE, David. Implementando cautelosamente o princípio da precaução. In: VARELLA, M. D. (Org.). Princípio da precaução. Belo Horizonte: Del Rey, 2004.

GAVIÃO FILHO, Anísio Pires. O direito fundamental ao ambiente e a ponderação. In: GUERRA, Sidney. Resíduos sólidos: comentários à Lei 12.305/2010. Rio de Janeiro: Forense, 2012.

CONVENÇÃO SOBRE MUDANÇA DO CLIMA. Editado e traduzido pelo Ministério da Ciência e Tecnologia com o apoio do Ministério das Relações Exteriores da República Federativa do Brasil. Disponível em: <http://www.onu.org.br/rio20/img/2012/01/convencao_clima.pdf>. Acesso em: 25 jun. 2012.

CONVENÇÃO DA DIVERSIDADE BIOLÓGICA. Disponível em: <http://www.onu.org.br/rio20/img/2012/01/cdb_ptbr.pdf>. Acesso em: 25 jun. 2012.

Page 66: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

66 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Destaque

IBGE. Pesquisa nacional do saneamento básico. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/condicaodevida/pnsb2008/PNSB_2008.pdf>.

IBGE. Pesquisa nacional do saneamento Básico. Resíduos Sólidos. Rio de Janeiro: IBGE, 2000. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/condicaodevida/pnsb/pnsb.pdf>. Acesso em: 03 jul. 2012.

MACHADO, Katia. O primo pobre do saneamento básico. Radis. Comunicação em saúde, Rio de Janeiro: Fiocruz, n. 102, fev. 2011.

MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 14. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2006.

MILARÉ, Edis. Direito do ambiente: doutrina - jurisprudência - glossário. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.

SADELEER, Nicolas de. O estatuto do princípio da precaução no direito internacional. In: VARELLA, M. D. (Org.). Princípio da precaução. Belo Horizonte: Del Rey, 2004.

SANDS, Philippe. O princípio da precaução In: VARELLA, M. D. (Org.). Princípio da precaução. Belo Horizonte: Del Rey, 2004.

SAROLDI, Maria José Lopes de Araújo. Termo de ajustamento de conduta na gestão de resíduos sólidos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.

STEINMETZ, W.; AUGUSTIN, S. (Org.). Direito constitucional do ambiente: teoria e aplicação. Caxias do Sul: Educs, 2011.

SILVA, Solange Teles da. Princípio da precaução: uma nova postura em face dos riscos e incertezas científicas. In: VARELLA, M. D. (Org.). Princípio da precaução. Belo Horizonte: Del Rey, 2004.

Page 67: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

O DIREITO DE CONSTRUIR E O MANEJO DE RESÍDUOS SÓLIDOS DA CONSTRUÇÃO CIVIL COMO EXPRESSÃO

DE JUSTIÇA SOCIOAMBIENTAL*

THE RIGHT TO BUILD AND THE MANAGEMENT OF CONSTRUCTION SOLID WASTE AS AN EXPRESSION

OF SOCIAL AND ENVIRONMENTAL JUSTICE**

GILSON FERREIRADoutorando em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade

de São Paulo. Pesquisador do GEAMA/USP. Professor de Direito Civil. E-mail: [email protected].

CAROLINE MARQUES LEAL JORGE SANTOSMestranda em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade

de São Paulo. Pesquisadora do GEAMA/USP. Advogada. E-mail: [email protected].

SUMÁRIO: Introdução - 1. O direito de construir na renovação dogmática do Direito Privado - 2. O direito de construir e sua repercussão socioambiental - 3. Gestão de resíduos da construção como conteúdo do direito de construir - 4. Aspectos de justiça ambiental do direito de construir - 5. Considerações finais.

SUMMARY: Introduction - 1. The right to build on dogmatic renewal of private law - 2. The right to build and its social and environmental impact - 3. Waste management of construction as content of the right to build - 4. Environmental justice aspects of the right to build - 5. Final considerations.

* Os resultados apresentados neste trabalho são parte de uma pesquisa acadêmica desenvolvida no âmbito do Grupo de Estudos Aplicados ao Meio Ambiente (GEAMA/USP), da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, sob a coordenação da Profª. Associada Patrícia Faga Iglecias Lemos.

** Artigo de autores convidados.Data de recebimento do artigo: 08.06.2015.Data de aprovação pelo Conselho Editorial: 21.06.2015.

Page 68: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

68 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Destaque

INTRODUÇÃO

A articulação da propriedade com o ambiente não é, exatamente, uma preocupação da contemporaneidade. Com efeito, é possível, em alguma medida e sem muito esforço hermenêutico, encontrar já no Codex alguma vinculação entre esses elementos: o exercício do direito de propriedade e o meio ambiente.

É certo, contudo, que foi apenas com o processo de constitucionalização do meio ambiente e sua categorização não apenas como direito fundamental, mas também como princípio da ordem econômica, que essa articulação assumiu o centro do sistema jurídico, reconfigurando-o à luz de novos paradigmas e diretrizes, além de conferir uma dimensão mais ampla à articulação entre propriedade e meio ambiente, na medida em que a fun-cionalizou socioambientalmente.

E os efeitos sobre o regime da propriedade não se restringem aos seus contornos estruturais, mas atinge seu próprio núcleo existencial. Em outros termos, o processo de funcionalização socioambiental da propriedade acarreta a cisão dos conceitos econômicos herdados do direito medieval - usar, fruir e dispor - e a incorporação de valores imanentes ao Estado Socioambiental Democrático de Direito.

É nesse pano de fundo que se apresenta a questão norteadora deste trabalho, que consiste em empreender uma releitura do direito de construir - como expressão do direito de usar e dispor da coisa -, à luz da função socioambiental da propriedade em sua estreita vinculação com a Política Nacional de Resíduos Sólidos, transformando esse direito em expressão de justiça socioambiental.

1. O DIREITO DE CONSTRUIR NA RENOVAÇÃO DOGMÁTICA DO DIREITO PRIVADO

O ius aedificandi ou direito de construir é tradicionalmente compreendido como uma manifestação do conteúdo dispositivo do direito de propriedade, e assim, desde o Direito Romano, submete-se a limitações de ordem pública, as quais foram somadas, no direito contemporâneo, às restrições de ordem urbanísticas e ambiental.

Isso não retira, contudo, o direito do proprietário construir em seu solo, o qual, segundo José de Oliveira Ascensão, é um de seus atributos naturais conquanto possa a propriedade estar diante de novos paradigmas, que lhe impõem uma série de condiciona-mentos, porque este conteúdo não é apenas latente, mas também anterior às eventuais restrições estabelecidas pelos planos urbanísticos.1

Esta prerrogativa do proprietário, no entanto, não parece mais passível de ser compreendida como expressão de sua liberdade, ao reverso, o direito de construir mais se ajusta à ideia de permissão ou concessão do Poder Público tendo em vista o sistema

1 ASCENSÃO, José de Oliveira. Urbanismo e o direito de propriedade. In: AMARAL, Diogo Freitas. Direito do urbanismo. Oeiras: INA, 1989. p. 322.

Page 69: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

69O DIREITO DE CONSTRUIR E O MANEJO DE RESÍDUOS SÓLIDOS

de planejamento urbano e o desenvolvimento, não apenas de uma política nacional de urbanização, mas igualmente de proteção ao meio ambiente.

Nesse sentido, a legislação infraconstitucional reconhece o espaço urbano constru-ído como uma das formas de expressão do meio ambiente, tal como se extrai dos artigos 2º e 37 da Lei 10.257, de 2001, que cuidam, respectivamente, das diretrizes gerais da política urbana e do estudo de impacto de vizinhança, definindo os contornos do direito à cidade sustentável ao mesmo tempo em que evidenciam as funções sociais de moradia, trabalho e lazer.

Ressalte-se que o direito de construir nas cidades não diz respeito apenas à pessoa do proprietário individualmente considerado, como pondera Nelson Saule Junior.2 Com efeito, as funções sociais da cidade exprimem direitos que se dispersam pela coletividade, de modo que sua tutela estendem-se às limitações administrativas editadas para disciplinar o controle do uso, do parcelamento e da ocupação dos espaços habitáveis, que são objeto do Direito Urbanístico.

Tais normas destinam-se a proporcionar as condições necessárias de segurança, sa-lubridade, funcionalidade e estética e com isso manter o equilíbrio necessário para garantir uma cidade sustentável, tanto ambiental quanto socialmente. E mais, elas buscam, ainda, assegurar o acesso do cidadão aos bens e serviços urbanos, os quais lhes proporcionam melhores condições, assim como as oportunidades econômicas, educacionais e culturais que a cidade oferece, como objetivado pelo artigo 182 da Constituição da República.

Tomando em linha de consideração o atual modelo de Estado Socioambiental e Democrático de Direito, seus valores e perspectivas, o direito de construir, como expres-são da liberdade do proprietário, não é mais inerente ao direito de propriedade, dada a necessidade de limitar o direito de construir do proprietário que, se assegurado de forma absoluta, provocaria a total desordenação da cidade.

O direito de propriedade, portanto, não é consagrado constitucionalmente como um direito sem limites imanentes derivados da sua função social; o exercício de sua carga econômica, na qual se insere, tradicional e nomeadamente, a prerrogativa de edificar, deve harmonizar-se com as referidas exigências do ordenamento territorial e proteção ambiental e a partir da sua atual conformação é preciso compreender que essa prerrogativa não parece mais integrar o núcleo essencial do direito de propriedade, tendo se transformando, antes, numa faculdade legal nos termos em que a lei disciplina essa atividade econômica.

Ademais, na forma como a propriedade está desenhada no texto constitucional, seja enquanto direito fundamental, seja enquanto garantia constitucional ou mesmo enquanto fundamento da ordem social e econômica, não parece nessa estrutura se conter o direito de construir, o que permite concluir que não mais se justifica e legitima o tradicional direito até então fundamental de construir tudo quanto o proprietário - onde, quando e como - quiser.

2 SAULE JÚNIOR, Nelson. Novas perspectivas do direito urbanístico brasileiro. Ordenamento constitucional da política urbana. aplicação e eficácia do plano diretor. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1997. p. 61.

Page 70: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

70 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Destaque

Essa perspectiva do redesenho do conteúdo aedificandi do direito de propriedade, com a sua separação do núcleo tradicional deste direito, é sustentada por Eros Roberto Grau e Floriano de Azevedo Marques Neto ao argumento de que a função social da pro-priedade teria levado ao desprendimento do direito de construir daquele direito correlato, ainda mais em razão do processo de planificação urbana, cujas raízes estão fincadas no solo constitucional, ao que os autores, aliam, ainda, a superação do paradigma civilístico oitocentista.

2. O DIREITO DE CONSTRUIR E SUA REPERCUSSÃO SOCIOAMBIENTAL

O crescimento da indústria de construção civil está diretamente associado ao de-senvolvimento econômico, de modo que o superaquecimento do mercado imobiliário traz consigo não apenas a tentativa de superação do déficit habitacional, mas também o desafio de que o desenvolvimento dessa atividade econômica se opere de forma sustentável.

O setor de construção civil gera por ano mais de 100 milhões de toneladas de resíduos que, segundo a Resolução CONAMA 307, de 2002, devem ser compreendidos como aqueles que “são os provenientes de construções, reformas, reparos e demolições de obras de construção civil, e os resultantes da preparação e da escavação de terrenos, tais como: tijolos, blocos cerâmicos, concreto em geral, solos, rochas, metais, resinas, colas, tintas, madeiras e compensados, forros, argamassa, gesso, telhas, pavimento as-fáltico, vidros, plásticos, tubulações, fiação elétrica, dentre outros elementos, comumente chamados de entulhos de obras, caliça ou metralha”.3

Como se vê da definição apresentada, há uma diversidade bastante grande de matérias-primas que são empregadas na construção civil, o que significa dizer que os resíduos dela provenientes sofrem diversas classificações, que vão desde resíduos que podem ser reutilizáveis e recicláveis, passando por resíduos para os quais não foram, ainda, desenvolvidas tecnologias ou aplicações economicamente viáveis para sua reciclagem ou reutilização, até chegar aos resíduos perigosos ou contaminantes.

O direito de construir e a correlata questão envolvendo os resíduos sólidos que do processo construtivo necessariamente derivam são aspectos do direito de propriedade ambientalmente complexos; a começar pelo processo de produção dos materiais que são empregados na indústria da construção civil.

Com efeito, desde a ocupação do solo pelo proprietário, passando pela intervenção do meio, pela extração de recursos naturais virgens, até o processamento da matéria--prima e seu consequente emprego na construção, recursos naturais são explorados e resíduos são gerados, o que significa reconhecer que o ar, o solo, a paisagem, a fauna, a flora, ficam comprometidos, sobretudo quando o descarte desses resíduos é feito de forma ambientalmente inadequada, mormente em áreas ocupadas por população de baixa renda

3 CONSELHO NACIONAL DO MEIO AMBIENTE (CONAMA). Resolução nº 307, de 5 de julho de 2002. Brasília, 2001.

Page 71: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

71O DIREITO DE CONSTRUIR E O MANEJO DE RESÍDUOS SÓLIDOS

ou em áreas urbanas que já se encontram em adiantado estado de degradação ambiental. Nessa perspectiva, o direito de construir, pelos impactos que causa ao meio ambiente ao longo de toda a sua realização, transcende a dimensão individual do direito de propriedade.

Outro fator relevante na questão dos resíduos sólidos decorrentes de construção e demolição é que ele se opera de forma difusa, isto é, são as pequenas construções, reformas e demolições, os principais agentes geradores desses resíduos, que, como dito, ou são descartados de forma ambientalmente inadequada, ou são recolhidos pelo serviço público de coleta e limpeza urbana, o que, em outros termos, significa transferir para o Poder Público não a propriedade do resíduo, cuja transferência não se opera pelo simples abandono, mas a responsabilidade pelo descarte, de modo que o Poder Público assume a condição jurídica de detentor ou gestor da posse dos resíduos.

3. GESTÃO DE RESÍDUOS DA CONSTRUÇÃO COMO CONTEÚDO DO DIREITO DE CONSTRUIR

A Política Nacional de Resíduos Sólidos, instaurada a partir da Lei 12.305, de 2010, prevê, além da responsabilidade compartilhada entre os geradores, transportadores e ges-tores públicos, a prioridade no tratamento da questão resíduos, assentando, em ordem de importância e urgência: i) não geração de resíduos; ii) redução na produção de resíduos; iii) reutilização dos resíduos; iv) reciclagem dos resíduos, v) tratamento dos resíduos sólidos; e vi) disposição final ambientalmente adequada dos rejeitos.

O atingimento dessa meta pressupõe o planejamento, por meio da elaboração do Plano de Gerenciamento de Resíduos Sólidos, que deve conter, dentre outros elementos: um diagnóstico dos resíduos sólidos gerados ou administrados, com descrição da origem, o volume e a caracterização destes, incluindo os passivos ambientais a eles relacionados; descrição dos responsáveis por cada etapa do gerenciamento, com definição dos proce-dimentos operacionais sob a responsabilidade de cada gerador, identificando as soluções consorciadas ou compartilhadas com outros geradores e ações preventivas e corretivas a serem executadas em situações de gerenciamento incorreto ou acidentes.

Segundo a Abrelpe, os municípios brasileiros coletaram mais de 35 milhões de tone-ladas de RCD em 2012. Em anos anteriores já havia sido constatado um aumento de 5,3%.

A região sudeste, com uma população de 75.812.738 habitantes, foi responsável pela produção de 59.100 toneladas por dia de resíduos sólidos de construção e demolição.4 Em 2013, a população dessa região passou a 84.465.570 habitantes, o que representou um aumento de 4,6% na produção desses resíduos em relação ao ano anterior, num total de 61.487 toneladas por dia de resíduos.5

No Estado de São Paulo, a Política de Resíduos Sólidos instaurada com a edição da Lei 12.300/2006, anteriormente, portanto, à Política Nacional de 2010, embora com ela

4 ABRELPE. Panorama dos Resíduos Sólidos no Brasil em 2012. p. 33; 84.5 ABRELPE. Panorama dos Resíduos Sólidos no Brasil em 2013. p. 85.

Page 72: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

72 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Destaque

compatível, define instrumentos de planejamento fundamentais para estruturar a gestão e o gerenciamento dos resíduos sólidos, tais como: os Planos de Resíduos Sólidos, o Sistema Declaratório Anual de Resíduos Sólidos, o Inventário Estadual de Resíduos Sólidos e o monitoramento dos indicadores da qualidade ambiental,6 os quais dão suporte à elaboração de políticas públicas promocionais visando, quando a não geração de resíduos, por certo a minimização daqueles inevitavelmente gerados.

Trata-se, neste último aspecto, do desenvolvimento de práticas que importem na redução ao menor volume, quantidade e periculosidade possíveis dos materiais e subs-tâncias, antes de descartá-los no meio ambiente; neste sentido, a importância do Plano de Gerenciamento de Resíduos Sólidos, que não pode ser compreendido apenas como um catálogo de dados ou um inventário do processo de construção, nem tampouco deve ser percebido como simples requisito formal e necessário para o licenciamento ambiental.

É inegável que a construção civil afeta consideravelmente o meio ambiente pelo consumo de recursos minerais, com a exploração também de recursos naturais. Nesse panorama, o entulho de construção reciclado pode substituir em grande parte os agrega-dos naturais empregados na produção de concreto, blocos e base de pavimentação, e a reciclagem pode reduzir o consumo de energia na produção de materiais.

Ademais, o levantamento diagnóstico realizado pelo inventário pode também servir para mitigar os riscos de passivos ambientais, muitas vezes ocultos, além de permitir o desenvolvimento de políticas públicas promocionais de boas práticas construtivas, espe-cialmente em relação aos pequenos construtores, que são responsáveis por cerca de 70% da produção de resíduos sólidos de construção e demolição.

Em especial atenção aos efeitos que o processo de construção deflagra, e em apoio e reforço ao Plano de Gerenciamento de Resíduos Sólidos, o Estado de São Paulo recentemente iniciou um sistema de monitoramento do fluxo de todos os resíduos derivados da atividade construtiva. Trata-se do SIGOR - Sistema Estadual de Gerenciamento Online de Resíduos Sólidos, que articula a gestão integrada e compartilhada de resíduos, objeto do Decreto Estadual nº 60.520, de 5 de junho de 2014.7

Este sistema de gerenciamento compartilhado recém-implantado serve de base para o Sistema Declaratório de Resíduos, na medida em que não apenas os geradores de resíduos sólidos de construção civil e demolição serão obrigados a apresentar a declaração anual das quantidades de resíduos produzidos, mas também os transportadores desses resíduos, bem como as unidades receptoras estarão obrigados a fazê-lo em atenção ao que determinam as Políticas Estadual e Nacional de Resíduos.8

6 SECRETARIA DO MEIO AMBIENTE. GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO. Resíduos da Construção Civil e o Estado de São Paulo. 2012. p. 14-15.

7 RIZEK JUNIOR, Rubens. Gerenciamento on line de resíduos sólidos da construção civil. Cadernos de Educação Ambiental, Governo do Estado de São Paulo, Secretaria do Meio Ambiente, São Paulo, 2014. p. 3.

8 GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO. Secretaria do Meio Ambiente. Cadernos de Educação Ambiental, São Paulo, 2014. p. 39.

Page 73: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

73O DIREITO DE CONSTRUIR E O MANEJO DE RESÍDUOS SÓLIDOS

O gerador de resíduos sólidos da construção civil é, portanto, toda pessoa natural ou jurídica, de direito público ou privado, responsável por atividades ou empreendimentos que, no processo de construções, reformas, reparos e demolições de obras de construção civil produzam entulhos de obra, como por exemplo, tijolos, blocos cerâmicos, concreto em geral, solos, rochas, metais, resinas, colas, tintas, madeiras e compensados, forros, argamassa, gesso, telhas, pavimento asfáltico, vidros, plásticos, tubulações, fiação elétrica, equiparando-se à atividade construtiva aquelas destinadas à preparação do solo como escavação, ou terraplenagem.9 Em todos esses casos, o gerador de resíduos é obrigado a cadastrar a obra, seja ela construtiva ou demolitória, elaborar um Plano de Gerenciamento inicial e final dos resíduos, solicitar o Controle de Transporte de Resíduos - CTR e, por fim, monitorá-lo até o descarte adequado.

Note-se que a regularização do sistema de transporte dos resíduos sólidos derivados da construção e da demolição é essencial em face da constatação de inúmeros transpor-tadores irregulares, isto é, que operam sem atender à legislação ambiental específica. Em razão disso, exige-se que ele seja acompanhado de documento de controle ambiental previsto pelo órgão competente, em que se informa o tipo de acondicionamento.

De acordo com a NBR 13221:2002, que estabelece a padronização do transporte terrestre de resíduos, mais especificamente o item 4.1.3, o transporte desses resíduos deve estar devidamente acondicionado, para que se evite, no trajeto até o local de dispo-sição, o espalhamento dos resíduos na via pública ou via férrea.10 Aqui vale lembrar da responsabilidade solidária do gerador do resíduo pelos eventuais danos ambientais que sobrevenham no caso de acidente de transporte.

Ao se cadastrar no SIGOR, o transportador tem um prazo fixado pela municipalidade para entregar os resíduos que aceitou transportar à área de destinação que poderá ser aterro, área de reciclagem, unidades de compostagem, unidades de incineração, área de transbordo e triagem com transformação, área de transbordo e triagem associada a aterro, PEV/Ecopontos com transformação, além de áreas com movimentação de terra e obras com reuso e reciclagem de resíduos.

O Plano de Gerenciamento de Resíduos, portanto, é peça fundamental, na medida em que contém não apenas a fase de planejamento da obra em que o gerador dos resíduos indica o tipo de material que empregará, podendo desde esse momento antever a possível integração do entulho em outras partes da construção, buscando a não geração de resí-duos; mas também a fase de caracterização dos resíduos produzidos, em que eles são identificados e quantificados, o que possibilita não apenas sua redução, mas igualmente o reuso, a reciclagem e a destinação final adequada.

A triagem e o acondicionamento também devem integrar o Plano de Gerencia-mento de Resíduos, na medida em que esta dimensão impede a contaminação, aspecto

9 CONSELHO NACIONAL DO MEIO AMBIENTE (CONAMA). Resolução nº 307, de 5 de julho de 2002. Brasília, 2001.

10 ABNT - ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. NBR 13221. Rio de Janeiro, 2003.

Page 74: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

74 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Destaque

que possibilita o reuso e reciclagem dos resíduos, garantindo, assim, sua qualidade e, num panorama mais amplo, a preservação da qualidade do meio ambiente. Acresça-se, ainda, no Plano de Gerenciamento de Resíduos da Construção Civil, porque é uma meta da Política Nacional de Resíduos Sólidos, o reuso e a reciclagem dos resíduos dentro da própria obra, como indicado pela Agenda 21.

Segundo Rosimeire Suzuki Lima e Ruy Reynaldo Rosa Lima “é a maneira de fazer com que os materiais que seriam descartados com um determinado custo financeiro e ambiental retornem em forma de materiais novos e sejam reinseridos na construção evi-tando a retirada de novas matérias-primas do meio ambiente”.11

O gerador de resíduos da construção civil e demolição deverá, finalmente, realizar a sua coleta e remoção por meio do Controle de Transporte de Resíduos - CTR, no qual são indicados os elementos de identificação do gerador, tipo e quantidade, assim como o transportador e o local de destinação final dos resíduos. A destinação dos RCC deve ser feita de acordo com o tipo de resíduo.

Ainda de acordo com os citados autores, os resíduos de construção civil que per-tençam, nos termos da Resolução CONAMA 302, à classe A deverão ser encaminhados para áreas de triagem e transbordo, áreas de reciclagem ou aterros da construção civil, ao passo que os resíduos que integrem a classe B podem ser comercializados com empresas, cooperativas ou associações de coleta seletiva que comercializam plásticos, papel/papelão, metais, vidros, madeiras. Para os resíduos que sejam categorizados nas classes C e D, isto é, produtos oriundos de gesso e tintas, solventes, óleos e outros, ou aqueles contaminados oriundos de demolições, reformas e reparos de clínicas, radiológicas, instalações industriais e outros, devem atender às regras específicas de armazenamento, transporte e descarte.12

4. ASPECTOS DE JUSTIÇA AMBIENTAL DO DIREITO DE CONSTRUIR

As discussões em torno dos impactos ambientais que os institutos de direito pú-blico e privado apresentam na contemporaneidade foi substancialmente ressignificada a partir das análises de uma perspectiva sociopolítica eminentemente voltada à realização prática do conceito teórico de justiça social, disso derivando a noção de justiça ambiental. Em outras palavras, vê-se, hodiernamente, um movimento de reelaboração da questão ambiental que se desloca da periferia para a centralidade das análises socioeconômicas e jurídicas. Nesse cenário, a justiça ambiental representa uma articulação mais intensa entre ambiente e as tradicionais questões que marcam o modelo jurídico normativo vigente: propriedade, contrato e empresa.

Essa mudança de perspectiva no tratamento da questão ambiental vem implicando a superação da lógica utilitarista que marcou o modelo econômico do Estado Liberal, 11 LIMA, Rosimeire Suzuki; LIMA, Ruy Reynaldo Rosa. Guia para elaboração de projeto de gerenciamento

de resíduos da construção civil. CREA-PR. Série de Publicações Temáticas do CREA-PR, [s.d], p. 27-29.12 Idem, p. 39.

Page 75: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

75O DIREITO DE CONSTRUIR E O MANEJO DE RESÍDUOS SÓLIDOS

estruturado em torno da propriedade e da empresa. Sob essa ótica, o meio ambiente não detinha qualquer valor social ou cultural, expressando-se apenas e tão somente em termos de quantidade e não de qualidade, de modo que o dano ambiental era considerado único, afetando a todos indistintamente. Em seu lugar, emergiu uma dimensão cultural do meio ambiente que está necessária e umbilicalmente ligada ao homem, de modo que o ambiente é ao mesmo tempo singular e plural, em razão dos aspectos socioculturais com que se apresenta em cada comunidade ou grupamento humano.

Henri Acselrad anota que os riscos ambientais não são uniformes, mas diferenciados e desiguais, na medida em que as comunidades reagem diferentemente aos danos am-bientais de modo que não se legitima, no Estado Socioambiental de Direito, que o ambiente dos proprietários e empresários importe no desapossamento ambiental das populações e comunidades não detentoras das técnicas de produção de riqueza.13

A justiça ambiental busca equalizar, portanto, uma relação entre duas grandes classes de sujeitos de direito, aqueles que auferem cômodos com a degradação ambien-tal e aqueles que sofrem, desproporcionalmente, os incômodos ou custos ambientais, principalmente com o deslocamento dos resíduos sólidos para as áreas ocupadas pela população de baixa renda.

Compreendido o panorama teórico da justiça ambiental, cumpre, por fim, mencio-nar como se encontra engendrada a questão do direito de construir e a problemática da produção de resíduos sólidos com a justiça ambiental.

A questão fundamental no adequado gerenciamento dos resíduos produzidos pela construção civil está em associar o exercício ambientalmente adequado dessa prerrogativa com a realização de justiça ambiental, resultando na redução das zonas de sacrifício, isto é, aquelas localidades em que se concentram as populações de baixa renda, as quais sofrem os impactos decorrentes do manejo inadequado desses rejeitos e, em particular, aqueles categorizados como perigosos.

Essa articulação se opera por meio do aprimoramento dos mecanismos de respon-sabilidade compartilhada já delineados pela Política Nacional de Resíduos Sólidos entre todos os atores envolvidos no processo construtivo, especialmente à vista do reconheci-mento do resíduo sólido como uma categoria de bem que a um só tempo tem valor social e econômico, mostrando-se como um elemento importante na promoção da cidadania, seja da perspectiva ambiental seja da perspectiva do trabalho digno.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Assentam-se nessas premissas, as seguintes conclusões:5.1. O direito de construir tem natureza pública e não é abrangido pela tutela subje-

tiva do direito de propriedade privada, que se configura contemporaneamente como uma

13 ACSELRAD, Henri. Ambientalização das lutas sociais - o caso do movimento por justiça ambiental. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ea/v23n68/10.pdf>. Acesso em: 30 dez. 2014.

Page 76: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

76 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Destaque

concessão ou permissão pública, expressão instrumentalizadora de proteção ambiental e de funcionalização socioambiental da propriedade privada.

5.2. O Plano de Gestão de Resíduos Sólidos da Construção e Demolição se constitui num importante instrumento que possibilita, a um só tempo, reduzir a geração de resíduos por meio da realização de um diagnóstico que leve a técnicas de reutilização e reciclagem, de que decorre redução nos custos de construção, bem como economia de recursos naturais.

5.3. A gestão de resíduos especiais é de responsabilidade de seus geradores, aos quais compete promover o gerenciamento adequado; no entanto, o descarte ambiental-mente inadequado é questão histórica nos centros urbanos, de que derivou uma prática de socialização dos custos e responsabilidade do poder público pelos resíduos descartados ou abandonados em vias públicas ou em lugares de degradação ambiental.

5.4. Ao lado da implementação de um sistema eletrônico, desburocratizado, de participação efetiva e colaborativa de todos os envolvidos na atividade de construção civil, desde o construtor, passando pelo transportador até chegar às unidades de destinação, é preciso desenvolver medidas promocionais de boas práticas, isto é, que estimulem os aspectos positivos da obrigação do proprietário, que está além do não causar danos ambientais.

5.5. O gerenciamento adequado dos resíduos produzidos pela construção civil exige o exercício ambientalmente adequado do direito de construir, aliado à realização prática da justiça social, por meio do aprimoramento dos mecanismos de responsabilidade compartilhada já delineados pela Política Nacional de Resíduos Sólidos.

Page 77: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

ANÁLISE DESCRITIVA DA QUESTÃO AMBIENTAL ENVOLVENDO ALEGADA

IMPORTAÇÃO DE LIXO TÓXICO (POPS) DO MUNICÍPIO DE CUBATÃO/SP PARA O MUNICÍPIO

DE BELFORD ROXO/RJ: UM ESTUDO DE CASO*

DETAILED DESCRIPTION OF THE MATTER INVOLVING ALLEGED ENVIRONMENTAL ANALYSIS TOXIC WASTE

OF IMPORTS (POPS) CUBATÃO OF COUNTY/SP FOR PURPLE BELFORD CITY/RJ: A CASE STUDY

IGOR SILVA DE MENEZESEspecialista em Direito Público pela UNIG. Mestre em Justiça

Administrativa pela UFF/RJ. Procurador do Município de Mesquita/RJ. Advogado. E-mail: [email protected].

SUMÁRIO: Introdução - 1. Síntese da questão ambiental envolvendo suposta impor-tação de lixo tóxico do Município de Cubatão/SP para o Município de Belford Roxo/RJ - 2. Perfil dos principais atores do conflito ambiental: 2.1. Parque industrial Bayer Belford Roxo; 2.2. Carbocloro Indústrias Químicas S/A; 2.3. Tribel - Tratamento de resíduos industriais de Belford Roxo S/A; 2.4. O Ministério Público Federal - 3. Da judicialização do conflito ambiental - Brevíssima análise da ação civil pública (Processo nº 0006323-10.2009.4.02.5110) - 4. Contribuições transdisciplinares para análise do conflito - Conclusão - Referências.

SUMMARY: Introduction - 1. Summary of the environmental issue involving alleged importation of toxic waste in the municipality of Cubatão, São Paulo to the city of Belford Roxo, Rio de Janeiro - 2. Profile of the main actors of environmental conflict - 3. The judicialization of the environmental conflict -v ery brief analysis of public civil action (case 0006323-10.2009.4.02.5110) - 4. Interdisciplinary contributions to conflict analysis - Conclusion - References.

* Data de recebimento do artigo: 05.06.2015.Datas de pareceres de aprovação: 19.06.2015 e 26.06.2015.Data de aprovação pelo Conselho Editorial: 14.07.2015.

Page 78: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

78 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Destaque

RESUMO: Este artigo se propõe a investigar descritivamente o conflito ambiental envolvendo suposta importação de poluentes orgânicos persistentes - POPs do município de Cubatão, no Estado de São Paulo, para o município de Belford Roxo, no Estado do Rio de Janeiro. Em razão desse conflito foi deflagrada ação civil pública, atualmente em curso, que envolve de um lado o Ministério Público Federal, e, de outro, sociedades empresárias e entidades públicas responsáveis pela fiscalização ambiental. O estudo propõe uma descrição transdisciplinar do conflito, com enfoque nas questões jurídicas, expondo os principais fundamentos das partes envolvidas na questão. A reflexão teve como base as informações obtidas principalmente no Mapa de conflitos envolvendo injustiça ambiental e Saúde no Brasil e nos autos do processo judicial decorrente.

PALAVRAS-CHAVE: estudo de caso; conflito ambiental; importação de lixo tóxico.ABSTRACT: This article intend to make a descriptively analysis about the

environmental conflict involving alleged transference of persistent organic pollutants - POPs of Cubatão, in São Paulo, for the Purple Belford City in the State of Rio de Janeiro. Such conflict broke out in a public civil suit, nowadays underway, which involves on one side the Federal Public Ministry, and on the other, business corporations and public entities responsible for environmental enforcement. The study proposes an interdisciplinary description of the subject, focusing on legal issues and outlining the main arguments of the parties involved in the matter. The reflection was based (in) information obtained mainly on the Map of conflicts involving environmental injustice and health in Brazil and in the records of judicial proceedings arising.

KEYWORDS: case study; environmental conflict; import of hazardous waste.

INTRODUÇÃO

Esse estudo de caso tem como objetivo a análise descritiva do conflito ambiental em que se discute a importação de lixo tóxico do Município de Cubatão, no Estado de São Paulo, para o Município de Belford Roxo, no Estado do Rio de Janeiro.

A coleta de dados desse conflito se deu incialmente no “Mapa de conflitos envol-vendo injustiça ambiental e Saúde no Brasil”, projeto desenvolvido em conjunto pela Fase - Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional e pelo grupo de pesquisa certificado pela Fiocruz denominado “Abordagens integradas para a promoção da saúde e justiça ambiental envolvendo populações vulneráveis”.

Considerando que o foco desse mapeamento é “a visão das populações atingidas, suas demandas, estratégias de resistência e propostas de encaminhamento” (CONFLI-TO AMBIENTAL, 2009), houve a necessidade de coligir informações no processo nº 2009.51.10.006323-9, que tramita junto à Justiça Federal do Rio de Janeiro, bem como em fontes diversas, para colheita dos elementos trazidos pelos Demandados no conflito, a fim de se promover uma exposição, tanto quanto possível, distanciada de questões ideológicas potencialmente existentes.

Page 79: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

79ANÁLISE DESCRITIVA DA QUESTÃO AMBIENTAL

O estudo está organizado da seguinte forma: incialmente far-se-á uma síntese do conflito, com uma breve localização espaço-temporal do leitor. No segundo capítulo, uma explanação acerca do perfil dos atores envolvidos e dos seus respectivos interesses. No terceiro, uma breve análise da ação civil pública que judicializou parte do conflito descrito nesse artigo, tendo em conta sua fase ainda embrionária. No quarto, notas sobre uma reflexão transdisciplinar do conflito. Na conclusão, as impressões do articulista sobre o caso.

1. SÍNTESE DA QUESTÃO AMBIENTAL ENVOLVENDO SUPOSTA IMPORTAÇÃO DE LIXO TÓXICO DO MUNICÍPIO DE CUBATÃO/SP PARA O MUNICÍPIO DE BELFORD ROXO/RJ

Com o objetivo de fornecer ao leitor uma visão panorâmica acerca do conflito am-biental alvo desse estudo, discorrer-se-á, nesse capítulo, sucintamente, sobre o histórico do conflito, apontando seus atores e as repercussões da demanda.

Segundo dados estatísticos do IBGE (2013), o município de Belford Roxo é um território fluminense localizado na Região Metropolitana do estado do Rio de Janeiro. Estende-se por uma área de, aproximadamente, 78 km2. É o sexto mais populoso do estado Rio de Janeiro, contando com 477.583 mil habitantes, segundo a estimativa do IBGE para 2013, e com o 14º maior PIB do estado.

Instalada em uma densa área do município, a Bayer S/A (2012) é uma empresa que produz e comercializa diversos produtos químico-farmacêuticos. No Brasil, a operação iniciou em 1896. A sociedade empresária produz diversas matérias-primas, produtos inter-mediários e finais diferentes, entre os quais, matérias-primas para poliuretanos, vernizes, produtos veterinários e fitossanitários.

A Bayer inaugurou em 1958, no município de Belford Roxo, o então maior complexo industrial da América Latina, com dois milhões de metros quadrados. Além das plantas produtivas, o complexo da Bayer possui uma estação de tratamento de efluentes líquidos, um incinerador de resíduos sólidos, líquidos e pastosos (com capacidade para incinerar até 3.200 toneladas por ano), e um aterro industrial classe 1.

O complexo industrial localiza-se próximo ao rio Sarapuí, um dos cinquenta e cinco rios que alimentam a Baía de Guanabara. Há anos o Grupo Bayer é acusado de acumular considerável passivo ambiental, que já foi alvo de notícias em jornais, manifestações de ONGs ambientalistas e autuação do Ministério Público Federal, postulando sua transfe-rência para um local menos povoado.

Há denúncias de que o controle ambiental é precário, sobretudo o exercido pelos órgãos estaduais e municipais. A falta de fiscalização tem gerado contaminações, doenças e acidentes ambientais.

Em 2001, a ONG ambiental Greenpeace denunciou que as atividades da Bayer estariam contaminando o rio Sarapuí com resíduos de mercúrio e Ascarel (PCB). Essas denúncias se baseavam em estudos laboratoriais (GREENPEACE, 2000) produzidos

Page 80: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

80 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Destaque

pelo laboratório de pesquisa do Greenpeace, na Universidade de Exeter, no Reino Unido, os quais constataram que amostras de sedimentos do rio Sarapuí, recolhidas abaixo da descarga de efluentes da Bayer, estavam contaminadas com substâncias como cobre, chumbo, mercúrio e zinco.

Segundo publicação do Greenpeace (2001), apesar da Bayer negar ser a fonte da contaminação, o órgão ambiental estadual, a Feema, relatou ter encontrado níveis de contaminação por mercúrios similares aos encontrados pela entidade em estudos realizados em 1997 sobre a qualidade da água da Baía de Guanabara. No estudo, a Bayer é apontada como principal fonte da contaminação.

Meia década depois, em 2006, o complexo da Bayer foi novamente alvo de de-núncias envolvendo contaminações por mercúrio. Nessa ocasião, o alvo da acusação era o aterro sanitário classe 1 (resíduos perigosos) administrado pela sociedade empresária Tribel - Tratamento de resíduos industriais de Belford Roxo. Segundo representação apresentada pela ACPO - Associação de combate aos poluentes orgânicos ao Ministério Público Federal (2006), a empresa estaria recebendo até 80 toneladas de lodo contaminado por resíduos mercuriais vindos das instalações da sociedade empresária Carbocloro S/A.

Na representação, a ACPO sustenta que a operação constituía uma tentativa de transferência do passivo ambiental gerado durante a fabricação de cloro-soda (em células eletrolíticas à base de mercúrio) pela Carbocloro, de Cubatão/SP, para Belford Roxo, uma vez que a empresa paulista não tinha condições técnicas para dar destino adequado ao resíduo. Assim, contratava a Tribel para dar destinação final.

Um complicador levantado pela Associação é que o estado do Rio de Janeiro, pela Lei Estadual nº 2.436 de 1995, proíbe o uso de mercúrio em processos industriais, o que significa que se estaria transferindo um passivo ambiental de um tipo que sequer é produzido no estado, por expressa vedação legal.

A representação da ACPO (2006) foi acolhida pelo MPF, que deflagrou Inquérito Civil Público. Após três anos de investigações, em novembro de 2009, a Procuradoria da República no Rio de Janeiro ajuizou uma ação civil pública, em face da sociedade empresária Tribel, incluindo no polo passivo o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis - Ibama, a Fundação Estadual de Engenharia do Meio Am-biente - Feema (atual Inea) e Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental - Cetesb.

À época, o Jornal Extra (2009) divulgou a seguinte informação:

Segundo o procurador da República Renato de Freitas Machado, au-tor da ação, também é flagrante a tentativa do Estado de São Paulo de se livrar do seu lixo tóxico, mandando-o para o Rio de Janeiro.

A Ação Civil Pública que judicializa a questão ainda está em curso, todavia, será objeto de considerações mais adiante nesse artigo.

Page 81: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

81ANÁLISE DESCRITIVA DA QUESTÃO AMBIENTAL

2. PERFIL DOS PRINCIPAIS ATORES DO CONFLITO AMBIENTAL

2.1. Parque industrial Bayer Belford Roxo

Segundo informações do Grupo Bayer (2013), o Parque industrial Bayer Belford Roxo conta com produção anual de 150 mil toneladas de produtos para a agricultura e matérias-primas. É a maior unidade de produção da Bayer na América Latina. A planta ocupa uma área de 2 milhões de metros quadrados e abriga as empresas parceiras como Haztec Tribel, especializada no tratamento e gerenciamento de resíduos industriais; Haztec Geoplan, que desenvolve soluções para abastecimento de água; Air Liquide, fornecedora de gases industriais; EBAMAG, empresa de logística do Grupo Toniato; Mauser e Graham, fabricantes de embalagens plásticas.

Do ponto de vista econômico, o complexo industrial da Bayer gera mais de 2.300 empregos diretamente, sendo mais de 900 colaboradores da Bayer.

No que toca à gestão ambiental, segundo dados disponibilizados pela Empresa em seu sítio virtual, o complexo é multicertificado, possuindo: ISO 9001 (qualidade), ISO 14001 (meio ambiente) e OHSAS 18001 (saúde e segurança).

2.2. Carbocloro Indústrias Químicas S/A

Empresa produtora da soda cáustica, pelo processo de célula de mercúrio, sediada em Cubatão/SP.

Em 2004, a Carbocloro S/A destinava seus resíduos em Paulínia, Campinas/SP, sendo imediatamente obrigada a se abster dessa prática pela Cetesb. Em 2006, conseguiu aprovação da Cetesb, de São Paulo, e da Feema (atual Inea), do Rio de Janeiro, para trans-ferência de passivo ambiental (lama mercurial) para a Tribel, situada em Belford Roxo/RJ.

Desde setembro de 2013, a Carbocloro Indústrias Químicas S/A foi incorporada pela Unipar (2013), e atualmente se denomina Unipar Carbocloro S/A.

Consta no sítio virtual da Empresa (UNIPAR, 2013b) a conquista das seguintes certificações: ISO 9001, ISO 14001, OHSAS 18001 e Atuação Responsável - VerificAR.

2.3. Tribel - Tratamento de resíduos industriais de Belford Roxo S/A

Empresa responsável pela gestão do aterro sanitário classe I (perigoso) do complexo Bayer. Segundo a representação da ACPO, a empresa recebeu pelo menos 80 toneladas de resíduos mercuriais transferidos pela Carbocloro, o que, adiante, foi admitido pela Bayer nos autos do processo judicial às folhas 80-81.

A empresa possuía autorização para essa operação da Feema - atual Inea. O Inea tem relatório (2013, p. 6) que constata a contaminação do solo e da água do aterro por metais pesados, dentre outras substâncias tóxicas.

Page 82: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

82 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Destaque

A Tribel S/A foi incorporada pela Bayer S/A nos anos que se seguiram ao ajuizamento da ação civil pública.

2.4. O Ministério Público Federal

Em março de 2006, o MPF recebeu uma representação da Associação de com-bate aos poluentes orgânicos - ACPO, requerendo a investigação sobre a transferência de passivos ambientais da Carbocloro Indústrias Químicas S/A, situada no Município de Cubatão/SP, para a Tribel - Tratamento de resíduos industriais de Belford Roxo S/A, situada no Município de Belford Roxo/RJ.

Embora as empresas apresentassem as licenças dos respectivos órgãos estaduais, Feema (atual Inea) e Cetesb, a ACPO sustentava a necessidade de licenciamento pelo Ibama.

Após três anos de investigação, o MPF ajuizou ACP, em novembro de 2009, que será sintetizada adiante.

3. DA JUDICIALIZAÇÃO DO CONFLITO AMBIENTAL - BREVÍSSIMA ANÁLISE DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA (PROCESSO Nº 0006323-10.2009.4.02.5110)

A demanda envolve possível dano a bens de interesse coletivo ao meio ambiente, que tem disciplina processual na Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985, conhecida como Lei da Ação Civil Pública.

Por envolver potencial conflito de interesses entre estados federados, além de ter figurado como litisconsorte passivo, o Ibama tem natureza jurídica de autarquia federal, o que atraiu a competência da Justiça Federal para julgamento do feito, com fundamento no art. 109, I, da Constituição Federal.

O autor da ação foi o Ministério Público Federal. O MPF requereu a intimação do Município de Belford Roxo para integrar a ação, que declinou do convite, embora a lei atribuísse legitimidade ativa ao ente federado potencialmente prejudicado exatamente pelo seu interesse evidente na demanda.

O polo passivo da ação era integrado inicialmente pela empresa Tribel, e pelos órgãos ambientais Ibama e Inea.

No curso do processo, a Tribel foi substituída pela Bayer, porque, como já dissemos, houve o movimento de incorporação por esta.

Os pedidos articulados na inicial (MPF, 2009, p. 32-39), além da antecipação dos efeitos da tutela, foram sete, que podem ser simplificados no seguinte: 1. Impor à Tribel o licenciamento pelo Ibama; 2. Impor a abstenção de importação de mercúrio; 3. Nulidade das licenças Estaduais; 4. Obrigatoriedade de licença junto ao Ibama; 5. Condenação de dois milhões de reais.

Os requerimentos dos demandados, a seu turno, foram pela improcedência do pedido, notadamente pela legalidade da operação, em razão da validade das licenças

Page 83: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

83ANÁLISE DESCRITIVA DA QUESTÃO AMBIENTAL

dos respectivos Órgãos ambientas, RJ e SP, além de tecnologia para o transporte e a destinação dos materiais tóxicos.

No plano legal, são três as mais relevantes normas invocadas, a saber:- A Lei Federal nº 9.976, de 03 de julho de 2000 (BRASIL, 2000), que disciplina

produção de cloro, na qual se lê que:

Art. 2º Ficam mantidas as tecnologias atualmente em uso no País para a produção de cloro pelo processo de eletrólise, desde que observadas as seguintes práticas pelas indústrias produtoras:[...]V - controle gerencial do mercúrio nas empresas que utilizem tec-nologia a mercúrio, com obrigatoriedade de:

a) sistema de reciclagem e/ou tratamento de todos os efluentes, emissões e resíduos mercuriais.

- A Resolução do Conselho Nacional de Meio Ambiente - Conama, Resolução nº 237/1997, que disciplina o licenciamento ambiental, determinando a questão da compe-tência. Vejamos:

Art. 4º Compete ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Re-cursos Naturais Renováveis - Ibama, órgão executor do Sisnama, o licenciamento ambiental, a que se refere o artigo 10 da Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981, de empreendimentos e atividades com sig-nificativo impacto ambiental de âmbito nacional ou regional, a saber:[...]III - cujos impactos ambientais diretos ultrapassem os limites terri-toriais do País ou de um ou mais Estados;Art. 1º, IV - Impacto Ambiental Regional: é todo e qualquer impacto ambiental que afete diretamente (área de influência direta do projeto), no todo ou em parte, o território de dois ou mais Estados.

- A Lei nº 2.436/1995, do Estado do Rio de Janeiro, que proíbe a implantação ou ampliação de indústrias produtoras de cloro-soda com células de mercúrio e células de diafragma, que preconiza: “Art. 1º Fica proibida a implantação ou ampliação, no Estado do Rio de Janeiro, de indústrias produtoras de cloro-soda com células de mercúrio e com células de diafragma”.

No próximo capítulo, tecemos lacônicos esclarecimentos acerca dos processos químicos do modo de produção de cloro-soda, bem como da relevância econômica dessa substância.

4. CONTRIBUIÇÕES TRANSDISCIPLINARES PARA ANÁLISE DO CONFLITO

A primeira questão que parece assumir relevo no conflito estudado, do ponto de vista metajurídico, é a contribuição que o modelo da análise econômica do direito pode trazer.

Page 84: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

84 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Destaque

Uma definição clássica da lei é a de que uma lei é uma obrigação apoiada por uma sanção estatal. Para o economista, essa sanção tem um custo.

Robert Cooter e Thomas Ulen resumem esse modelo da seguinte forma:A economia proporcionou uma teoria científica para prever os efeitos das sanções legais sobre o comportamento. Para os economistas, as sanções se assemelham aos preços, e, presumivelmente, as pessoas reagem às sanções, em grande parte, da mesma maneira que reagem aos preços. As pessoas reagem a preços mais altos consumindo menos do produto mais caro; assim, supostamente, elas reagem a sanções legais mais duras praticando menos da atividade sancionada (COOTER; ULEN, 2010, p. 4).

Portanto, a economia é para o direito uma teoria científica do comportamento.Para análise de um conflito ambiental que pretende desestimular determinado

comportamento, há a necessidade de se indagar se uma ou outra norma é capaz de desestimular determinado comportamento.

Esbocemos a aplicação dessa teoria no caso em apreço. As vantagens de uma atividade industrial como a produção do cloro-soda são mundialmente reconhecidas. Tanto é que essa atividade é considerada um dos indicadores do nível de atividade econômica de um país (CONCANNOM; HOFFHEINS, 1948).

Simultaneamente, ao processo de cloro é produzida a soda cáustica. A soda cáustica é um poderoso desengraxante de metais, utilizado principalmente na indústria automobi-lística, e também como agente na lavagem de roupa a seco em lavanderias. O cloro, por sua vez, contribui em algumas etapas do processo industrial de mais de cinquenta por cento dos produtos químicos mundiais (ANDRADE; ZAPRSKI, 1994, p. 2).

Segundo Montenegro e Pan (1998, p. 6-7), são três as tecnologias empregadas em plantas industriais para a produção de cloro-soda, a saber:

Tecnologia de mercúrio - é a mais antiga, a menos eficiente energe-ticamente e a mais sujeita às restrições ambientais. Foi eliminada no Japão, e é utilizada em apenas 20% da capacidade nos EUA e 22,7% no Brasil, mas ainda prevalece na Europa, com 65% da capacidade. A predominância na Europa se explica por ser uma das áreas produtoras mais antigas, pelo elevado custo de substituição, e também porque já foram realizados investimentos em controle ambiental que reduziram as emissões de poluentes nas plantas de mercúrio em mais de 90% nos últimos 15 anos.Tecnologia de diafragma - ocupa a segunda posição em antiguidade, eficiência energética e restrição ambiental. É a mais utilizada nos EUA (78% da capacidade) e no Brasil (73,5% da capacidade), não é empregada no Japão e ocupa posição minoritária na Europa (20%). É especialmente apropriada para plantas abastecidas com sal de minas de sal-gema, uma vez que pode ser abastecida diretamente

Page 85: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

85ANÁLISE DESCRITIVA DA QUESTÃO AMBIENTAL

com a salmoura extraída das minas, o que já não ocorre com as tecnologias de mercúrio e de membrana.Tecnologia de membrana - é a mais nova, a mais eficiente em termos energéticos e não sofre qualquer restrição de ordem ambiental. É a tecnologia que deve prevalecer no futuro e já vem sendo a preferida para uso em plantas novas. É a única tecnologia empregada no Japão e ainda ocupa posição minoritária nos EUA, Europa Ocidental e Brasil, com 2%, 15% e 3,8% da capacidade total, respectivamente. A posição modesta pode ser explicada pelo reduzido número de plantas novas de cloro-soda construídas desde o seu surgimento, em fins da década de 70.

Como se depreende do texto, a tecnologia de células de mercúrio é a mais antiga, menos eficiente energeticamente e muito mais poluidora que outras tecnologias. Seu uso foi proibido no Japão. Essa tecnologia é a adotada na planta industrial da Carbocloro S/A em Cubatão. O destino desses resíduos é que está sendo alvo de discussão judicial.

Um dado econômico extraído de documento juntado pela Bayer S/A no processo judicial dá conta de que a operação de destinação final do resíduo no aterro industrial objeto da lide, aporta o montante de R$ 56.253,00 (cinquenta e seis mil duzentos e cinquenta e três reais).

O valor da indenização pedida pelo MPF na causa é de R$ 2.000.000,00 (dois milhões de reais).

Aqui, podemos deduzir uma conclusão parcial: do ponto de vista econômico, uma operação de risco de transporte interestadual contendo 80 toneladas de resíduo altamente perigoso compensaria a vantagem de, aproximadamente, cinquenta e seis mil reais? Se adicionar a expressa vedação legal vigente no Estado do Rio para processos que envolvam o produto, a resposta pode ser de pouca complexidade.

Se tão pouco vantajosa do ponto de vista econômico, a reflexão sobre o conflito tende a tornar verossímil a afirmação do Procurador da República responsável pelo caso, que asseverou: “Por uma negligência do poder público, Belford Roxo está se tornando o lixão tóxico do Brasil” (EXTRA ONLINE), além de se enquadrar na definição de injustiça ambiental na citação de Selene Herculano e Tânia Pacheco (2006, p. 25):

“Injustiça ambiental” é complementarmente como “o mecanismo pelo qual sociedades desiguais, do ponto de vista econômico e social, destinam a maior carga dos danos ambientais do desenvolvimento às populações de baixa renda, aos grupos sociais discriminados, aos povos étnicos tradicionais, aos bairros operários, às populações marginalizadas e vulneráveis”.

Uma última ponderação desse caso específico revela algo estarrecedor. Embora tenhamos desenvolvido mais detidamente a questão das reflexões negativas do modelo de recrutamento e seleção de pessoas no setor público brasileiro em outros artigos e

Page 86: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

86 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Destaque

em uma dissertação voltada a esse tema específico,1 acredita-se que a essa altura um aparte é relevante. As políticas públicas na esfera municipal, especialmente as ambientais, que sabidamente carecem de corpo técnico capaz de levar a termo os desafios dessa relevante tarefa, notadamente pelo preponderante modelo institucional de seleção de pessoal praticado na Administração Pública brasileira, prestigia mais o patrimonialismo do que a seleção de pessoal tecnicamente capacitado. Isso se reflete nos diversos órgãos municipais. No caso descrito nesse artigo, merece destaque a inatividade (ou absoluta falta de protagonismo) das Procuradorias dos Municípios envolvidos, principalmente a do Município de Belford Roxo, fato que relegou ao Órgão Ministerial a defesa integral dos interesses dos munícipes da região.

CONCLUSÃO

Esse artigo propôs um estudo de caso descritivo do conflito ambiental em que se discute a importação de lixo tóxico do Município de Cubatão, no Estado de São Paulo, para o Município de Belford Roxo, no Estado do Rio de Janeiro.

No primeiro capítulo, um esforço para resumir o conflito, contendo uma sinopse estatística da localidade envolvida no risco ambiental, o município de Belford Roxo, as-sinalando sua densidade populacional, enquanto a 6ª maior densidade demográfica do Estado do Rio de Janeiro, bem como o histórico de contaminações industriais na região, e suas respectivas consequências na Baía de Guanabara.

No segundo capítulo foi apresentado um perfil dos principais atores do conflito, a fim de fornecer ao leitor subsídios para dimensionar as repercussões ambientais, mas também as econômico-sociais, tal como o volume financeiro e de empregabilidade que representa o complexo industrial Bayer.

No terceiro capítulo, buscou-se apresentar os principais elementos de prova do embate judicial, bem como os fundamentos jurídicos que polarizaram as partes do pro-cesso, apesar de que, em razão de percalços processuais, o processo esteja ainda em fase inicial. Passados quatro anos, sequer a tutela antecipada foi analisada.

No quarto capítulo, propusemos uma reflexão tanto menos descritiva, mas analítica do conflito. Menos com recursos jurídicos, mas com contribuições da análise econômica do direito, ofertando dados químico-industriais sobre a produção de cloro-soda no Brasil e no mundo, seu potencial danoso, as tecnologias de produção, bem como sua relevância econômica para as indústrias do país. Nesse capítulo se verificou que a necessidade de intensificação dos controles ambientais - interno e externo - dessa atividade, e a relocali-zação de complexos industriais, podem reduzir não apenas despesas globais de transporte e produção, mas também de riscos ambientais.

1 MENEZES, Igor Silva de. O sistema meritocrático no concurso público: um estudo propositivo na administração pública brasileira. Niterói, 2015.

Page 87: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

87ANÁLISE DESCRITIVA DA QUESTÃO AMBIENTAL

Em síntese, o estudo buscou a reunião dos dados coletados no “mapa de conflitos ambientais e saúde no Brasil”, agregando a esse enfoque aparentemente mais inclinado às partes vulneráveis do conflito e ao prisma ambientalista, a relevância econômica e social do objeto do conflito. Finalizou-se com uma proposta de solução sob uma ótica menos hermética das partes que se ativeram à validade das licenças ambientais, sem refletir, ao ver do articulista, sobre o custo financeiro e ambiental da operação, que não se justifica.

REFERÊNCIAS

ACPO - ASSOCIAÇÃO DE COMBATE AOS POLUENTES ORGÂNICOS. Representação sobre trans-ferência de passivo ambiental tóxico de Cubatão/SP para Belford Roxo/RJ. Disponível em: <http://www.justicaambiental.org.br/projetos/clientes/noar/noar/UserFiles/17/File/representacao_MPF.pdf>. Acesso em: 30 ago. 2013.

ANDRADE, José Eduardo Pessoa de; ZAPRSKI, Januzs. A indústria do cloro-soda. Revista do BNDES, Rio de Janeiro, v. 1, n. 2, p. 183-228, 1994. Disponível em: <http://www.bndes.gov.br/SiteBNDES/export/sites/default/bndes_pt/Galerias/Arquivos/conhecimento/revista/rev209.pdf>. Acesso em: 30 ago. 2013.

BAYER. Unidades no Brasil - Parque Industrial Belford Roxo. Disponível em: <http://www.bayer.com.br/scripts/pages/pt/grupo_bayer/bayer_no_mundo/histria_no_mundo/parque_industrial_bel-ford_roxo/index.php>. Acesso em: 30 ago. 2013.

BRASIL. Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985. Disciplina a ação civil pública de responsabilidade por danos causados ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico (VETADO) e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7347orig.htm>. Acesso em: 30 ago. 2013.

______. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 30 jul. 2013.

______. Lei nº 9.976, de 03 de julho de 2000. Dispõe sobre a produção de cloro e dá outras providên-cias. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9976.htm>. Acesso em: 30 jul. 2013.

CONCANNOM, C. C.; HOFFHEINS, F. M. Chemical e engineering news, 1948. Disponível em: <http://pubs.acs.org/doi/abs/10.1021/cen-v026n015.p1072>. Acesso em: 30 ago. 2013.

CONSELHO NACIONAL DO MEIO AMBIENTE - CONAMA. Resolução nº 237, de 19 de outubro de 1997. Dispõe sobre a revisão e complementação dos procedimentos e critérios utilizados para licenciamento ambiental. Disponível em: <http://www.mma.gov.br/port/conama/legiabre.cfm?codlegi=237>. Acesso em: 30 out. 2013.

COOTER, Robert; ULEN, Thomas. Direito & economia. 5. ed. Porto Alegre: Bookman, 2010.

EXTRA ONLINE. MPF quer suspender funcionamento de empresa em Belford Roxo. Disponível em: <http://extra.globo.com/noticias/rio/mpf-quer-suspender-funcionamento-de-empresa-em-belford--roxo-390618.html>. Acesso em: 20 jul. 2013.

GREENPEACE. Relatório sobre poluição por metais e compostos orgânicos associada à unidade da Bayer em Belford Roxo. Disponível em: <http://www.greenpeace.org/brasil/PageFiles/4949/bayer_relatorio.pdf>. Acesso em: 30 ago. 2013.

Page 88: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

88 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Destaque

GREENPEACE. Caso Bayer: Feema confirma denúncia do Greenpeace. Disponível em: <http://www.greenpeace.org/brasil/pt/Noticias/caso-bayer-feema-confirma-den/>. Acesso em: 30 ago. 2013.

HERCULANO, Selene; PACHECO, Tânia. “Racismo ambiental, o que é isso?”. In: HERCULANO, Selene; PACHECO, Tânia (Org.). Racismo ambiental: I Seminário brasileiro contra o racismo am-biental. Rio de Janeiro: FASE, 2006.

IBGE. O Cidades é uma ferramenta para se obter informações sobre todos os municípios do Brasil num mesmo lugar. Aqui são encontrados gráficos, tabelas, históricos e mapas que traçam um perfil completo de cada uma das cidades brasileiras. Disponível em: <http://cidades.ibge.gov.br/xtras/temas.php?lang=&codmun=330045&idtema=16&search=rio-de-janeiro|belford-roxo|sintese-das--informacoes>. Acesso em: 30 ago. 2013.

INEA. Relatório de áreas contaminadas e reabilitadas. 1. ed. Disponível em: <http://arquivos.proderj.rj.gov.br/inea_imagens/downloads/areas_contaminadas/Relatorio_AreasContaminadaseReabilitadas_1aEdicaoo.pdf>. Acesso em: 10 set. 2013.

LIS/ICICT/FIOCRUZ. Mapa de conflitos envolvendo injustiça ambiental e saúde no Brasil. Disponível em: <http://www.conflitoambiental.icict.fiocruz.br/index.php>. Acesso em: 30 ago. 2013.

MENEZES, Igor Silva de. O sistema meritocrático no concurso público: um estudo propositivo na administração pública brasileira. Dissertação (Mestrado em Justiça Administrativa) Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2015.

MONTENEGRO, Ricardo Sá Peixoto; PAN, Simon Shi Koo. RELATO SETORIAL nº 7/1998. Dis-ponível em: <http://www.bndes.gov.br/SiteBNDES/export/sites/default/bndes_pt/Galerias/Arquivos/conhecimento/relato/rs7_gs4.pdf>. Acesso em: 30 ago. 2013.

PROCURADORIA DA REPÚBLICA NO MUNÍCIPIO DE SÃO JOÃO DE MERITI - MPF. Ação civil pública com pedido de liminar referente ao inquérito civil público 1.30.017.000070/2006.98. Disponível em: <http://www.acpo.org.br/mercurio/mpf_acpo_tribel.pdf>. Acesso em: 30 ago. 2013.

RIO DE JANEIRO. Lei nº 5.101, de 04 de outubro de 2007. Dispõe sobre a criação do Instituto Estadual do Ambiente - Inea e sobre outras providências para maior eficiência na execução das políticas estaduais de meio ambiente, de recursos hídricos e florestais. Disponível em: <http://alerjln1.alerj.rj.gov.br/CONTLEI.NSF/c8aa0900025feef6032564ec0060dfff/674aaff783d4df6b8325736e005c4dab?OpenDocument&Highlight=0,Lei,5101>. Aceso em: 15 jul. 2013.

______. Lei nº 2.436, de 20 de setembro de 1995. Proíbe a implantação ou ampliação, e dá prazo para substituição, de indústrias produtoras de cloro-soda com células de mercúrio e células de diafragma. Disponível em: <http://alerjln1.alerj.rj.gov.br/CONTLEI.NSF/c8aa0900025feef6032564ec0060dfff/bb01fe989d77c85d032564f700608e5d?OpenDocument>. Acesso em: 15 jul. 2013.

UNIPAR. Notícias. Fato relevante - Incorporação da Carbocloro pela Unipar. Disponível em: <http://www.uniparcarbocloro.com.br/uniparcarbocloro/web/conteudo_pt.asp?idioma=0&conta=28&tipo=48907>. Acesso em: 05 nov. 2013

______. Institucional - Certificações. Disponível em: <http://www.uniparcarbocloro.com.br/unipar-carbocloro/web/conteudo_pt.asp?idioma=0&conta=28&tipo=49047>. Acesso em: 05 nov. 2013.

Page 89: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

RESÍDUOS E JUSTIÇA AMBIENTAL NO PARQUE GUARACIABA EM SANTO ANDRÉ, BRASIL*

WASTE AND ENVIRONMENTAL JUSTICE IN THE PARK GUARACIABA, IN SANTO ANDRÉ, BRAZIL

LUCIANA ZIGLIODoutora em Ciências Humanas e Geografia Humana pela Universidade

de São Paulo. Mestrado em Geografia Política e Meio Ambiente pela Universidade de São Paulo. Pesquisadora do Grupo de Estudos

Aplicados ao Meio Ambiente - GEAMA/USP. Docente na UNIESP. E-mail: [email protected].

SUMÁRIO: Introdução - 1. Metodologia - 2. A problemática da geração de resíduos em Santo André e a disposição no aterro sanitário de Santo André ou no Parque Guaraciaba - 3. A problemática da justiça ambiental associada à disposição final de resíduos e ao Parque Guaraciaba como área de proteção ambiental - Considerações finais.

SUMMARY: Introduction - 1. Metodology - 2. The problem of waste generation in Santo André and the provision on sanitary landfill of Santo André or in the Park Guaraciaba - 3. The environmental justice issues associated with the disposal of waste and the Park Guaraciaba as environmental protection area - Final considerations.

RESUMO: Este trabalho tem como objetivo apresentar o Parque Guaraciaba, no Município de São André como uma área de preservação ambiental e, que hoje é vista como a possibilidade de torna-se um aterro sanitário. O parque contém uma vegetação remanescente da Mata Atlântica e águas superficiais da ordem de 1,4 milhões m³ de água. As vegetações assim como os recursos hídricos existentes no parque atuam como um elemento importante no município de Santo André para acesso da população as áreas verdes, ou ainda, captação de água para usos diversos. O conceito de justiça ambiental no parque Guaraciaba evidencia-se como uma tentativa de salvaguardar a proteção am-biental e socioambiental a partir do momento em que áreas verdes não são escolhidas como áreas para disposição final de resíduos. Conclui-se a necessidade de conhecimento * Data de recebimento do artigo: 09.06.2015.

Datas de pareceres de aprovação: 17.06.2015 e 26.06.2015.Data de aprovação pelo Conselho Editorial: 03.07.2015.

Page 90: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

90 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Destaque

por parte da população das normativas jurídicas de prevenção e proteção para as áreas ambientais a fim de que a justiça ambiental seja estabelecida e o Parque Guaraciaba seja efetivamente utilizado como área de proteção ambiental.

PALAVRAS-CHAVES: área de preservação ambiental; justiça ambiental; disposição de resíduos.

ABSTRACT: This work aims to present the Park Guaraciaba, in the municipality of Santo André as an area of environmental preservation, and that today is seen as a possibility to become a landfill. The Park contains remnant Atlantic Forest vegetation and surface water amounted to 1.4 million m³ of water. The vegetation as well as the existing water resources in the Park act as an important element in the municipality of Santo André to access the green areas or water for various uses. The concept of environmental justice in the Park Guaraciaba is evidenced as an attempt to safeguard environmental and socio-environmental protection from the moment that green areas are not chosen as areas for disposal of waste. It appears the need of knowledge on the part of the population of the legal regulations of prevention and protection to environmental areas so that environmental justice is established and the Park Guaraciaba is effectively used as an environmental protection area.

KEYWORDS: environmental preservation area; environmental justice; disposal of waste.

INTRODUÇÃO

O município de Santo André possui uma história vinculada aos caminhos de pene-tração do interior do estado de São Paulo vindos do litoral. No começo da colonização do Brasil, os portugueses e demais países daquela época, século XVI, tinham interesse em explorar as riquezas minerais, como ouro e prata. Nesse período, a busca de metais foi um dos fatores que impulsionou as entradas para o interior. Fazendo parte desta história, os padres jesuítas e os bandeirantes foram os responsáveis pela formação da Vila de Santo André da Borda do Campo.

Todavia, o município de Santo André, com a formação geográfica atual, ressurgiu no século XIX para satisfazer a necessidade das redes de transportes entre o litoral e o planalto paulista, pela passagem da Estrada de Ferro São Paulo Railway, que começou a ser construída em 1860 para interligar as regiões compreendidas entre Santos e Jundiaí. Este trajeto, por percorrer uma grande área da atual Grande ABC, despontou na formação de vários núcleos urbanos na região e o atual centro histórico de Santo André surgiu neste mesmo ano, formado por um povoado ao redor da estação férrea.

A formação da Represa Billings está também associada com a projeção de Santo André e próxima do Parque Guaraciaba, na área conhecida como área de proteção e recuperação dos mananciais. Esta área é protegida pela Lei Estadual 9.866/1997,1 e parte

1 SÃO PAULO. Lei Estadual 9.866/1997 - Dispõe sobre diretrizes e normas para a proteção e recuperação das bacias hidrográficas dos mananciais de interesse regional do Estado de São Paulo, e dá outras

Page 91: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

91RESÍDUOS E JUSTIÇA AMBIENTAL NO PARQUE GUARACIABA

dela está contida na macrozona de proteção ambiental do município de Santo André e protegida pela Lei Municipal 9.394/12.2 A área ocupada atualmente pela Represa Billings foi inundada a partir de 1927, com a construção da Barragem de Pedreira, no curso do Rio Grande, também denominado Rio Jurubatuba.

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, o município de Santo André contém 676.407 habitantes numa área territorial de 175,782km². O Parque Guaraciaba situa-se no setor leste do município de Santo André que faz limite com o mu-nicípio de Mauá. Ele é cercado por uma área urbanizada de uso misto, com habitações populares e favelas, área carente de arborização e de espaço de lazer para a comunidade. De acordo com o IBGE, a população do setor leste do município em 2015 era de 122 mil habitantes.3 Veja a seguir a Figura 1, Croqui da localização do Parque Guaraciaba.

Figura 1- Croqui de localização do Parque Guaraciaba, Santo André

Fonte: Adaptação do Plano Diretor de Santo André. Disponível em: <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/12.133/3935>. Acesso em: 06.04.2015.

providências. Disponível em: <http://www.comitepcj.sp.gov.br/gapb/LeiEstadualSP9866_97.pdf>. Acesso em: 05 abr. 2015.

2 SANTO ANDRÉ, Lei 9.394/2012 - Altera a Lei 8.696/2004 que institui o plano diretor de Santo André. Disponível em: <https://www.leismunicipais.com.br/a/sp/s/santo-andre/leiordinaria/2012/939/9394/lei-ordinaria-n-9394-2012-altera-a-lei-n-8696-de-17-de-dezembro-de-2004-que-instituiu-o-plano-diretor-no-municipio-de-santo-andre-atendendo-o-art-181-que-preve-arevisao-do-plano-diretor-2012-01-05.html>. Acesso em: 05 abr. 2015.

3 INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA - IBGE - Cidades. Disponível em: <http://cidades.ibge.gov.br/painel/painel.php?codmun=354780>. Acesso em: 05 abr. 2015.

Page 92: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

92 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Destaque

Pode-se visualizar nesta figura a localização do Parque Guaraciaba e o atual aterro sanitário municipal de Santo André. A proximidade de ambos contribui para o fortalecimento da possibilidade do parque tornar-se disposição final de resíduos. A ideia central deste artigo é demonstrar o impasse de uso do Parque Guaraciaba intitulada como área de preservação ambiental, perante os instrumentos jurídicos federais, estaduais e municipais, mas, que mesmo diante destes instrumentos normativos poderá receber os resíduos sólidos urbanos gerados em Santo André. Além da definição de uso do parque como área de preservação ambiental ou aterro sanitário municipal tem-se, no presente momento, o fechamento da área por parte dos órgãos municipais de Santo André com a alegação de que a referida área encontra-se neste impasse e, portanto seu uso não é permitido.

O conceito de conflito ambiental, tal como formulado por Acselrad,4 auxilia a com-preensão do campo ambiental, e mais especificamente o caso do Parque Guaraciaba como um campo de disputas simbólicas e materiais, onde diferentes atores com interesses distintos fazem uso de certa matriz discursiva para legitimar sua prática. Neste caso, faz--se necessário, diante da busca de interesses distintos, salvaguardar a justiça ambiental coletiva e a garantia da preservação ambiental como pré-condição para o meio ambiente sadio e equilibrado.

Faz-se diante deste cenário de conflito ambiental associado às relações humanas do uso a perspectiva tridimensional da justiça ambiental com o enfoque da relação entre meio ambiente e direitos humanos - que vê no meio ambiente sadio uma pré-condição para o gozo de direitos humanos - se fortalece, porquanto numerosas demandas por justiça ambiental evidenciam que os processos antropogênicos, que geram degradação ambiental, conduzem a ofensas a direitos humanos e qualidade de vida.

1. METODOLOGIAPara se auferir a ideia central deste artigo, foram adotados procedimentos metodo-

lógicos, a partir de técnicas e práticas, as quais permearam a leitura de literatura científica pertinente ao objeto de estudo, e a leitura das normas jurídicas nas esferas federais, estaduais e municipais sobre áreas de conservação e disposição final de resíduos. As técnicas de entrevistas e de registros fotográficos não foram adotadas como procedimentos metodológicos pelo simples fato do Parque Guaraciaba estar com o acesso restrito para pesquisadores e sociedade em geral.

2. A PROBLEMÁTICA DA GERAÇÃO DE RESÍDUOS EM SANTO ANDRÉ E A DISPOSIÇÃO NO ATERRO SANITÁRIO DE SANTO ANDRÉ OU NO PARQUE GUARACIABA

A gestão e a disposição inadequada dos resíduos sólidos causam impactos so-cioambientais, tais como degradação do solo, comprometimento dos recursos hídricos e mananciais, intensificação de enchentes, contribuição para a poluição do ar e proliferação

4 ACSELRAD, Henri. (Org.). Justiça ambiental e cidadania. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004.

Page 93: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

93RESÍDUOS E JUSTIÇA AMBIENTAL NO PARQUE GUARACIABA

de vetores de importância sanitária nos centros urbanos e indivíduos coletores de materiais recicláveis em condições insalubres nas ruas ou em áreas de disposição final.

O crescimento e a longevidade da população aliados à intensa urbanização e à expansão do consumo de novas tecnologias acarretam a produção de imensas quantidades de resíduos. Um dos grandes desafios urbanos, especialmente nas Regiões Metropolitanas, é a falta de locais apropriados para dispor os resíduos adequadamente. Isso se deve à existência de áreas ambientalmente protegidas e aos impactos de vizinhança das áreas de disposição. Na maioria dos aterros sanitários, não há tratamento adequado para o chorume (líquido tóxico gerado pela decomposição orgânica dos resíduos sólidos orgânicos) somente seu represamento em lagoas de contenção. Dessa condição resulta que os resíduos tóxicos podem contaminar o solo e as fontes subterrâneas de água, enquanto os gases produzidos no processo de decomposição são liberados no meio ambiente de forma não controlada.5

A Região Metropolitana de São Paulo, com seus 20,9 milhões de habitantes, dos quais 11,8 milhões moram no município de São Paulo, é a maior do Brasil, e um dos maiores aglomerados urbanos do mundo. Formada por 39 municípios, abrange a capital do Estado e 38 municípios vizinhos, sendo responsável pela produção estimada de 17.100 toneladas por dia ou quase seis milhões de toneladas por ano de resíduos sólidos domiciliares. Essa quantidade corresponde a cerca de 10% do coletado no país, e o município de São Paulo é responsável pela geração de mais de 62,5% desses resíduos. O município de Santo André neste cenário produz diariamente 770 mil toneladas.6

Segundo Jacobi,7 um diferencial da RMSP em relação às demais é a erradicação da disposição em lixões. O município de Santo André apresenta-se no inventário estadual de resíduos sólidos com seus aterros como áreas adequadas para disposição final, embora se utilize de disposição final no município de Mauá para completa gestão de seus resíduos.8

O Parque Guaraciaba é considerado microbacia hidrográfica de drenagem, possuin-do uma área de 510.580 m² de área verde, com 70 mil m² de vegetação remanescentes da Mata Atlântica, várzea e lago com 300 mil m² de espelho d’água, armazenando 1,4 milhão de m³ de água resultante de escavações de mineração no passado, cuja cava de mineração atingiu as águas subterrâneas. Como consequências desta ocupação precária, o comprometimento das águas de superfície pela poluição urbana e industrial é existente, embora análises realizadas por Mendes indicassem no “[...] levantamento das característi-cas ambientais mostrou que o Parque Guaraciaba pode ser considerado como patrimônio

5 GOUVEIA, Nelson. Saúde e meio ambiente nas cidades: os desafios da saúde ambiental. Revista Saúde e Sociedade, v. 8, n. 1, p. 49-61, 1999.

6 SISTEMA NACIONAL DE INFORMAÇÕES SOBRE SANEAMENTO BÁSICO - SNIS. Resíduos Sólidos. Disponível em: <http://www.snis.gov.br/PaginaCarrega.php?EWRErterterTERTer=16> Acesso em: 05 abr. 2015.

7 JACOBI, Pedro; BEZEN, Gina. Gestão dos resíduos sólidos em São Paulo: desafios da sustentabilidade. Estudos Avançados, 2011, 25, 71. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-40142011000 100010&script=sci_arttext>. Acesso em: 02 abr. 2015.

8 COMPANHIA AMBIENTAL DO ESTADO DE SÃO PAULO - CETESB. Inventário estadual de resíduos sólidos. Disponível em: <http://www.cetesb.sp.gov.br/userfiles/file/residuos-solidos/residuosSolidos2013.pdf>. Acesso em: 05 abr. 2015.

Page 94: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

94 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Destaque

natural para região, pois sua importância não se restringe a sua dimensão local”.9 Por estas suas características mencionadas encontra-se um impasse: uma área com tais conceituações hidrográficas, vegetacionais seria a mais indicada para a disposição final de resíduos sólidos?

Entretanto, mesmo diante das particularidades ambientais inerentes ao Parque Guaraciaba, a pesquisa de campo realizada em 2015 por Ziglio10 mostrou o total abandono da área. As áreas próximas ao parque são utilizadas como local de despejos de materiais de demolição, terras e entulho. Por um lado, a situação de abandono do parque aumenta a possibilidade deste se tornar disposição irregular de resíduos antes mesmo da possibilidade ainda mais dramática de transformar-se em aterro sanitário municipal.

3. A PROBLEMÁTICA DA JUSTIÇA AMBIENTAL ASSOCIADA À DISPOSIÇÃO FINAL DE RESÍDUOS E AO PARQUE GUARACIABA COMO ÁREA DE PROTEÇÃO AMBIENTAL

A origem da expressão justiça ambiental remonta aos movimentos sociais norte--americanos que, a partir da década de 60, passaram a reivindicar direitos civis às popu-lações afrodescendentes existentes nos EUA, bem como a protestar contra a exposição humana à contaminação tóxica de origem industrial.

As raízes históricas da referida expressão vinculam-se, portanto, às lutas, reivin-dicações e campanhas de movimentos sociais norte-americanos, em defesa dos direitos de populações discriminadas por questões raciais e de comunidades expostas a riscos de contaminação tóxica, por habitarem regiões próximas aos grandes depósitos de lixo tóxico ou às grandes indústrias emissoras de efluentes químicos.11

A década de 90, portanto, marca o início do fenômeno da expansão global das lutas do movimento por justiça ambiental. Segundo Acselrad, Mello e Bezerra, tal fenômeno fez com que o movimento surgido nos EUA se consolidasse como uma rede multicultural e multirracial internacional, “[...] articulando direitos civis, grupos comunitários, organizações de trabalhadores, igrejas e intelectuais”.12

Inúmeros processos de degradação ambiental no Brasil atingem a dignidade humana de indivíduos e de comunidades humanas inteiras, na exata proporção da desigualdade social existente.13 A degradação do ambiente, nesse aspecto é, efetivamente, uma ameaça aos direitos humanos, já que, muitas vezes, atingem a vida, a saúde e a cultura de indiví-duos e comunidades humanas em estado de maior vulnerabilidade social, de modo mais

9 MENDES, Patrícia; SOUZA, Adriana; PAGANNI, Wanderley. Aterro sanitário ou área de preservação ambiental? O destino do parque Guaraciaba em Santo André, São Paulo. Revista Emancipação, 4, (1), p. 85-101, 2004.

10 ZIGLIO, Luciana. A autora do artigo realizou visita no Parque Guaraciaba em fevereiro de 2015 e este encontra-se fechado e com seu acesso proibido para todos os públicos.

11 HERCULANO, Selene. Riscos e desigualdade social: a temática da Justiça Ambiental e sua construção no Brasil. In: ENCONTRO DA ANPPAS, 1, 2002, Indaiatuba/SP, Anais, Indaiatuba: ANPPAS, 2002.

12 ACSELRAD, Henri. (Org.). Justiça ambiental e cidadania. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004. p. 42.13 RAMMÊ, Rogério Santos. Da justiça ambiental aos direitos e deveres ecológicos: conjecturas político-

filosófico para uma nova ordem jurídico-ecológica. Caxias do Sul: EDUCS, 2012.

Page 95: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

95RESÍDUOS E JUSTIÇA AMBIENTAL NO PARQUE GUARACIABA

intenso e desproporcional em comparação com o restante da população, em verdadeiros processos de recusa à dignidade humana dos atingidos.

Como bem ressaltam Sarlet e Fensterseifer,14 a tendência jurídica contemporânea é a de reconhecer um conteúdo de indignidade nas condutas humanas predatórias da natureza e cruéis aos animais, situação essa que implica o reconhecimento do valor intrínseco da vida em geral e do patrimônio ambiental como um todo. Conforme discutido por Martinez-Alier,15 o movimento pela justiça ambiental - ou, como ele também intitula ambientalismo popular ou dos pobres - vem se colocando como alternativa crítica para os modelos degradantes até aqui amplamente aplicados.

O Parque Guaraciaba torna-se, portanto, uma “zona de sacrifício”.16 A expressão “zonas de sacrifício” é utilizada pelos movimentos de justiça ambiental para designar localidades em que se observa uma superposição de empreendimentos e instalações responsáveis por danos e riscos ambientais. Ela tende a ser aplicada a áreas de moradia de populações de baixa renda, onde o valor da terra relativamente mais baixo e o menor acesso dos moradores aos processos decisórios favorecem escolhas de localização que concentram, nestas áreas, instalações perigosas. A designação “zona de sacrifício” surgiu nos Estados Unidos, quando o movimento de justiça ambiental associou a concentração espacial dos males ambientais do desenvolvimento. Neste sentido, áreas de aterros sa-nitários e lixões são designados como áreas de sacrifício.

No entanto, instrumentos legais em três esferas da questão ambiental, da federal à municipal, protegem a área do Parque Guaraciaba. A primeira delas concerne a Política Nacional de Resíduos Sólidos promulgada em 2010. Tal lei, 12.305/10, adverte como prin-cípio base a não geração de resíduos a fim de evitar-se a disposição final. Deste modo, os programas de coleta seletiva, os programas de educação ambiental e outros instrumentos pertinentes devem orientar a população para a não geração de resíduos. A disposição final de resíduos sólidos urbanos produz emissões de gases causadores do efeito estufa e, com o aumento da população mundial hoje estimada em 6,0 bilhões e o grau de urba-nização que representa 75% do total da população vivendo em cidades, torna-se clara a necessidade de uma correta gestão da disposição final de resíduos sólidos urbanos, ou ainda como bem claramente demonstra a lei, a não geração do resíduo.17

14 SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Algumas notas sobre a dimensão ecológica da pessoa humana e sobre a dignidade da vida em geral. In: MOLINARO, Carlos Alberto et al (Org.). A dignidade da vida e os direitos fundamentais para além dos humanos: uma discussão necessária. Belo Horizonte: Fórum, 2008.

15 MARTINEZ-ALIER, Joan. The environmentalism of the poor: a study of ecological conflicts and valuation. Cheltenham: Edward Elgar Press, 2002.

16 VIEGAS, Rodrigo. Desigualdade ambiental e zonas de sacrifício. Mestrando em Sociologia e Antropologia pelo PPGSA/IFCS/UFRJ, 2006. Disponível em: <http://livros01.livrosgratis.com.br/ea000392.pdf>. Acesso em: 02 abr. 2015.

17 Veja art. 9º [...] na gestão e gerenciamento de resíduos sólidos, deve ser observada a seguinte ordem de prioridade: não geração, redução, reutilização, reciclagem, tratamento dos resíduos sólidos e disposição final ambientalmente adequada dos rejeitos. In: BRASIL. Lei nº 11.305/2010 - Institui a Política Nacional de Resíduos Sólidos. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12305.htm>. Acesso em: 05 abr. 2015.

Page 96: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

96 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Destaque

O segundo instrumento jurídico considerado na análise para a aplicação da justiça ambiental ao Parque Guaraciaba, relaciona-se com a Política Nacional de Recursos Hídri-cos. Diante da atual escassez da água para o consumo humano na Região Metropolitana de São Paulo, faz-se necessária a proteção de áreas que garantam o uso prioritário dos recursos hídricos para o consumo humano e para a dessedentação dos animais.18 E, por fim, o terceiro instrumento normativo está associado à Constituição da República Fede-rativa do Brasil - CB, em seu artigo 225,19 em que todos têm o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e a coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para os presentes e futuras gerações.

Para referendar a importância da preservação do Parque Guaraciaba diante de sua intitulação como detentor de recursos ambientais ante do artigo 225 da CB, faz-se necessário correlacioná-lo com a Lei 9.985/2000,20 que institui os Sistemas Nacionais de Unidades de Conservação da Natureza. Neste instrumento, tem-se como premissa que áreas consideradas com necessidade de proteção devem ser protegidas como tal.21

Abaixo, em estudos elaborados por Mendes22 existem, além das normativas federais citadas anteriormente, as legislações estaduais e municipais que são negligenciadas pelos entes públicos em suas respectivas instâncias e desconhecidas pela população envolvida com a área do Parque Guaraciaba. O Parque Guaraciaba possui em sua área territorial recursos hídricos e fundos de vales protegidos pelo Código Florestal.23

18 Veja artigo 1º: A Política Nacional de Recursos Hídricos baseia-se nos seguintes fundamentos: inciso III - em situações de escassez, o uso prioritário dos recursos hídricos é o consumo humano e a dessedentação de animais. In: BRASIL. Lei nº 9.433/1997 - Institui a Política Nacional de Recursos Hídricos, cria o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9433.htm>. Acesso em: 06 abr. 2015.

19 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 1988. Artigo 225. Disponível em: <http://www.jusbrasil.com.br/topicos/10645661/artigo-225-da-constituicao-federal-de-1988>. Acesso em: 06 abr. 2015.

20 BRASIL. Lei nº 9.985/2000. Regulamenta o art. 225, § 1º, incisos I, II, III e VII da Constituição Federal, institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9985.htm>. Acesso em: 06 abr. 2015.

21 Lei 9.985/2000 - Regulamenta o art. 225, § 1º, incisos I, II, III e VII da Constituição Federal, institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9985.htm>.

22 MENDES, Patrícia; SOUZA, Adriana; PAGANNI, Wanderley. Aterro sanitário ou área de preservação ambiental? O destino do parque Guaraciaba em Santo André, São Paulo. Revista Emancipação, 4, (1), p. 85-101, 2004.

23 BRASIL. Lei nº 12.651/2012. Dispõe sobre a proteção da vegetação nativa; altera as Leis nºs 6.938, de 31 de agosto de 1981, 9.393, de 19 de dezembro de 1996, e 11.428, de 22 de dezembro de 2006; revoga as Leis nºs 4.771, de 15 de setembro de 1965, e 7.754, de 14 de abril de 1989, e a Medida Provisória nº 2.166-67, de 24 de agosto de 2001; e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12651.htm>. Acesso em: 07 abr. 2015.

Page 97: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

97RESÍDUOS E JUSTIÇA AMBIENTAL NO PARQUE GUARACIABA

Tabela 1- Legislações Estaduais e Municipais para a proteção do Parque Guaraciaba

Âmbito Estadual

Constituição do Estado de São Paulo, capítulo IV.

Seção I - Do Meio Ambiente:Art. 197. São áreas de proteção permanente:II - as nascentes, mananciais e as matas ciliares;Seção II - Dos Recursos HídricosArt. 210. Para proteger e conservar as águas e pre-venir seus efeitos adversos, o Estado incentivará a adoção, pelos Municípios, de medidas no sentido:IV - do acondicionamento, à aprovação prévia por organismos estaduais de controle ambiental e de gestão dos recursos hídricos, na forma de lei, dos atos de outorga de direitos que possam influir na qualidade e quantidade das águas superficiais e subterrâneas.

Âmbito Municipal

Lei nº 7.733/98 - Dispõe sobre a Política Municipal de Gestão e Saneamento Am-biental.

Art. 57. São consideradas áreas de interesse am-biental dos fundos de vale e as demais áreas de pre-servação permanente definidas no Código Florestal, particularmente aqueles sujeitos à inundação, erosão ou que possam acarretar transtornos à coletividade e prejuízos ambientais, através do uso inadequado.Art. 58. É competência do SEMASA em conjunto com a Prefeitura, observando demais legislações incidentes sobre o assunto:I - examinar e propor o uso mais adequado para os fundos de vale, priorizando a recomposição das matas ciliares, a drenagem, a preservação de áreas críticas e a implantação de áreas de recreação.II - garantir a proteção da faixa de preservação permanente.

Art. 192. Todos tem o direito ao meio ambiente saudá-vel e ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à adequada qualidade de vida, impondo-se a todos e, em especial, ao Poder Público e à coletividade, o dever de defendê-lo e preservá-lo para o beneficio das gerações futuras.Art. 193. O Município identificará os bens físicos municipais, relacionando-os como parte integrante de seu patrimônio ambiental.

Fonte: MENDES, Patrícia; SOUZA, Adriana; PAGANNI, Wanderley. Aterro sanitário ou área de preser-vação ambiental? O destino do parque Guaraciaba em Santo André, São Paulo. Revista Emancipação, 4, (1), p. 85-101, 2004.

Page 98: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

98 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Destaque

Em resumo, diante dos instrumentos legais aqui mencionados, que evidenciam o parque Guaraciaba como detentor de recursos hídricos e matas ciliares resultantes do bioma Mata Atlântica, tem-se a clara necessidade da proteção deste território e, ao mesmo tempo, a escolha de outras áreas que possam, no município de Santo André, receber a disposição final de seus resíduos. Entretanto, a Política Nacional de Resíduos Sólidos adverte para a necessidade do estímulo a não geração de resíduos e ao estímulo aos programas de coleta seletiva municipais com a inclusão dos catadores de materiais recicláveis.

No município de Santo André, o programa de coleta seletiva municipal é restrito. Sob a responsabilidade do Serviço Municipal de Saneamento Ambiental - SEMASA, por quinze anos realiza-se a coleta diária de materiais recicláveis de aproximadamente 320 toneladas em contraponto a uma geração de 770 mil toneladas/diárias de resíduos. Deste modo, o programa de coleta seletiva atinge menos que 0,1% dos materiais recicláveis gerados.24 O município, deste modo, tem muito a estimular na ampliação de seu programa de coleta seletiva e, assim, evitar amplas quantidades de disposição final em aterros.

Os munícipes desconhecem tais normativas jurídicas de proteção ambiental que envolve o parque Guaraciaba e, também, a legislação nacional de resíduos sólidos que coíbe práticas de disposição final que interfiram em leis correlatas, como por exemplo, a Política Nacional de Recursos Hídricos apresentada neste artigo. Deste modo, surge como possibilidade de salvaguardar o parque o estímulo à consciência ambiental da sociedade de Santo André para a problemática. Assim, considera-se que as ações de educação ambiental são fundamentais para fomentar o debate sobre a destinação desta área do município.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

1. A discussão do estudo de caso do Parque Guaraciaba evidencia a dificuldade de desenvolvimento de uma consciência ambiental sobre o uso responsável dos recursos naturais. Considera-se urgente a necessidade de início de projetos com a população de Santo André sobre a importância da proteção ambiental.

2. Evidencia-se que a questão do aterro sanitário é igualmente importante, entre-tanto, não será com a destruição de um recurso natural que solucionará o problema da disposição final dos resíduos em Santo André. Existem alternativas para os resíduos sólidos de Santo André, como por exemplo, o aumento dos índices da coleta seletiva municipal.

3. Para concluir, a justiça ambiental se faz ausente devido à falta de conhecimento dos instrumentos jurídicos de proteção pela população. Assim, segue o Parque Guaraciaba no total abandono com seu acesso restrito e seu futuro incerto.

24 COMPROMISSO EMPRESARIAL PARA RECICLAGEM. 2014. Pesquisa Ciclosoft. Disponível em: <http://cempre.org.br/ciclosoft/id/2>. Acesso em 06 abr. 2015.

Page 99: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

RESENHA RESÍDUOS SÓLIDOS E

RESPONSABILIDADE CIVIL PÓS-CONSUMO

MARIANA CAMARGO DE OLIVEIRA DA COSTA TELLESAdvogada. Mestre em Direito pela Universidade Metodista de Piracicaba.

Especialista em Direito Ambiental pela Universidade Metodista de Piracicaba. E-mail: [email protected].

Resíduos sólidos e responsabilidade civil pós-consumo. LEMOS, Patrícia Faga Iglesias. 2. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. 255 p. ISBN 978-85-203-4367-8.

Patrícia Faga Iglecias Lemos é Livre-Docente, Doutora, Mestre em Direito e autora de diversos livros na área de direito ambiental, especialmente tratando da questão da responsabilidade civil.

O livro está divido em três capítulos. O primeiro trata do consumo e meio ambiente; o segundo, dos resíduos e suas classificações; e o último, da responsabilidade civil e pós--consumo, que é o foco principal da obra.

A autora observa que o Código de Defesa do Consumidor, por meio dos objetivos da Política Nacional das Relações de Consumo estabelecidos no artigo 4º, reconhece que o consumo está ligado à satisfação das necessidades do ser humano; e não somente às necessidades primárias, mas outras, socialmente induzidas, que foram agregadas com o decorrer do tempo. O consumo passou a ser reconhecido como um ato social relacionado a fatores culturais e econômicos. Com a ampliação das necessidades, o consumo também aumentou e, consequentemente os resíduos gerados, afetando o meio ambiente, a saúde pública e a própria qualidade de vida.

O mesmo consumo, que assegura uma vida digna à população, acaba por afetar negativamente sua qualidade de vida. E a autora destaca que uma das repercussões jurídicas dessa tensão fática entre consumo e meio ambiente é, justamente, o problema da responsabilidade pelos resíduos produzidos após o consumo. E questiona: “Quem res-ponde pelos danos provocados pelos resíduos? Quais os limites para a responsabilização, sendo que a Política Nacional de Resíduos Sólidos [PNRS] estabeleceu a responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos?”

Page 100: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

100 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Destaque

A responsabilidade pós-consumo deve ser analisada a partir da necessidade de se repensar a sociedade contemporânea e a alteração dos padrões de consumo, relacionando seus efeitos com o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Entretanto, para a autora, o problema não pode ser simplesmente transferido para o consumidor que, muitas vezes, não tem muitas alternativas diante das ofertas do mercado. O consumidor deveria ser informado sobre o ciclo de vida dos produtos a fim de medir as consequências ambientais de seu consumo.

A relação entre consumidor e meio ambiente é muito estreita, e a base para a tutela de ambos é a dignidade da pessoa humana como princípio fundamental. Considerando o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, essencial à sadia qualidade de vida, é possível dizer que a defesa da vida digna harmoniza-se com uma economia de produção e consumo sustentáveis. Por isso, a autora salienta a necessidade de conscientização do consumidor para adotar comportamentos “ambientalmente amigáveis” que gerarão reflexos indiretos na proteção do meio ambiente, influenciando o processo produtivo.

No primeiro capítulo ainda é abordada a questão da entropia, a energia que não pode mais ser usada e acaba por limitar o crescimento econômico. Atualmente, os proble-mas enfrentados pela economia não estão relacionados à escassez de recursos naturais, mas à destruição das condições ecológicas em função dos níveis de entropia gerados pelo próprio processo econômico, como o desflorestamento, a perda de cobertura geral e o aquecimento global, de acordo com Enrique Leff, citado pela autora.

Leff ainda considera que as leis da entropia devem servir, não só como limite da economia, mas como um potencial para a definição de um paradigma de produção sus-tentável. Os bens e serviços ambientais devem ser vistos como um potencial produtivo considerando os limites da lei da entropia e a partir de estratégias sociais voltadas para a administração dos potenciais ecológicos da natureza.

A obra também aborda princípios aplicáveis à tutela dos resíduos, como o princípio da dignidade da pessoa humana e do direito à vida, ambos diretamente relacionados com a proteção do meio ambiente. A autora ainda elenca os princípios que seriam especialmente relevantes para a gestão dos resíduos sólidos: desenvolvimento sustentável, informação e participação, poluidor-pagador, prevenção, precaução, função socioambiental da pro-priedade, solidariedade intergeracional e planificação.

Na visão da autora, estão no foco central da responsabilidade pós-consumo os princípios do poluidor-pagador, da prevenção e da precaução. O princípio do poluidor--pagador reforça o papel preventivo ao eliminar as externalidades ambientais negativas do processo produtivo, que poderão gerar ineficiências econômicas e afetar o equilíbrio entre oferta e demanda, e impõe a criação de normas que alteram a ordenação de valores das regras de mercado, ou seja, os custos de prevenção ou compensação dos efeitos ambientais adversos deverão ser suportados pelo poluidor.

Page 101: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

101RESÍDUOS SÓLIDOS E RESPONSABILIDADE CIVIL PÓS-CONSUMO

O princípio da prevenção leva ao dever de utilização racional dos recursos naturais e é o ponto de partida para a otimização dos produtos e embalagens com o objetivo de aumentar o tempo de duração, ou seja, diminuir a geração de resíduos. O princípio da precaução impõe a escolha da melhor opção em prol do meio ambiente, com a adoção da inversão do ônus da prova, cabendo ao empreendedor demonstrar que sua atividade não causará danos. Entretanto, a autora salienta que o princípio da precaução deve ser aplicado de forma equilibrada, observando-se os princípios da razoabilidade e proporcionalidade.

Os resíduos, de acordo como disposto no artigo 6º, VIII, da Lei de Política Nacional de Resíduos Sólidos, devem ser vistos como um bem econômico e de valor social, que gera trabalho e renda e é promotor de cidadania. Contudo, a autora vai além desta concepção, defendendo que até mesmo o rejeito deve ser tratado como um bem socioambiental.

E atenta para outra questão, que é a da figura do mero possuidor, pois nas Diretivas da Comunidade Europeia, a figura do possuidor do resíduo é incluída na responsabilidade por sua gestão. A lei brasileira especifica as figuras responsáveis como os fabricantes e consumidores, mas a autora propõe que a interpretação seja ampla, a ponto de abranger o mero possuidor, que também será responsável pela destinação e disposição final am-bientalmente adequada dos resíduos e rejeitos.

Outras questões levantadas são sobre quando um produto deve ser tratado como resíduo e quais as responsabilidades em relação a ele e seu potencial poluente. Anali-sando os conceitos de resíduos trazidos pelas Diretivas da Comunidade Europeia, indica que inicialmente eles eram tratados a partir de uma ótica civilista de res derelictae, sem considerar as questões de saúde pública e proteção do meio ambiente. O conceito evoluiu e passou a considerar seu detentor.

Quanto à classificação dos resíduos, a Lei brasileira optou por uma conceituação ampla e sustentada na intenção daquele que se desfaz. A classificação de uma matéria como resíduo é dinâmica, por isso sua classificação como bem socioambiental resolveria qualquer problema, já que são considerados essenciais para a manutenção da vida das presentes e futuras gerações.

A autora adota a concepção objetivista, isto é, os resíduos sujeitos à eliminação ou à valorização devem ser tratados como resíduos, porque a possibilidade de valorização altera-se com o tempo e com a introdução de novas tecnologias. A logística reversa, por sua vez, viabiliza a coleta e a restituição dos resíduos sólidos ao setor empresarial, seja para outros ciclos produtivos, seja para a destinação final.

Em seguida, a autora aborda a evolução legislativa de resíduos regulamentados, passando por diversas normas, como a Lei 7.802/79, que trata dos agrotóxicos, a Lei 6.803/80, que traça as diretrizes para o zoneamento industrial e a Resolução Conama 257/99, que traz as regras e procedimentos para a reutilização, reciclagem, tratamento e disposição final ambientalmente adequada de pilhas e baterias. Na obra, a autora procurou

Page 102: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

102 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Destaque

demonstrar que estamos caminhando rumo a um tratamento mais adequado quanto à responsabilidade pós-consumo, mas destaca que normas não são suficientes para garantir o sucesso de políticas ambientais; é necessária uma fiscalização eficiente e a atuação em conjunto das diversas esferas do poder público.

Além da responsabilidade pós-consumo abordada no capítulo III, como mecanismo importante para a solução dos problemas relacionados aos resíduos, a autora comenta que os instrumentos clássicos (reparação, propriedade e taxação) não são suficientes para lidar com o problema dos danos ambientais. Por isso, a educação ambiental e as políticas de implementação de gestão de resíduos devem observar as dimensões política, econômica, ambiental, cultural e social, a partir da premissa do desenvolvimento sustentável.

A valorização do resíduo é outro mecanismo que deve ser considerado, pois engloba a ideia de valorização energética, e não apenas material, como na reciclagem. Os meca-nismos são muitos e devem ser somados à importante ferramenta da responsabilidade pós-consumo, que é o tema central da obra.

A autora elenca dois aspectos relevantes para as premissas teóricas da responsabi-lidade pós-consumo: o nexo de causalidade e a responsabilidade civil (também conhecida como direito de danos).

O nexo causal deve ser apreciado observando-se a causalidade jurídica, e não a fática, tendo como base a relação entre o dano e a potencialidade do agente de evitá-lo. A atenuação do nexo de causalidade é decorrente das dificuldades enfrentadas pelo direito ambiental quando da reparação pelo dano sofrido, que, muitas vezes, tem múltiplas causas e atores, e pode manifestar-se depois de um longo período e em locais distantes do local da atividade geradora. Não se trata de dispensar o nexo causal, mas, sim, de recorrer à teoria do escopo da norma jurídica violada ou do nexo jurídico para que a responsabilidade civil cumpra sua função de reparação ou compensação dos danos.

A autora ainda enfatiza que a flexibilização do nexo causal supera a impossibilidade de traçar um liame lógico ante os interesses difusos e suplantar a dificuldade da vítima em provar o dano. Ainda atenta para a função preventiva como instrumento anterior ao dano, que no caso daqueles causados por resíduos do consumo são riscos conhecidos que devem ser prevenidos pelos responsáveis.

É possível, segundo a autora, admitir que uma mera ameaça de dano justifique uma responsabilidade sem dano, preventiva. Quando se fala em resíduos pós-consumo, a responsabilidade preventiva é ainda mais importante por conta de dois fatores: a caracteri-zação do dano após o transcurso de um longo período e a manifestação em locais muitas vezes distantes das atividades produtoras. Não é necessário que haja a ocorrência de um dano, isto é, pode existir responsabilidade por dano futuro, sendo cabível a imposição de obrigações de fazer e não fazer à cadeia produtiva e ao consumidor.

Page 103: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

103RESÍDUOS SÓLIDOS E RESPONSABILIDADE CIVIL PÓS-CONSUMO

Entretanto, também é necessário considerar que, mesmo tendo sido adotadas todas as medidas preventivas, podem ocorrer danos pós-consumo. Por isso, a autora enfatiza a limitação clara da responsabilidade da cadeia de consumo, investigando a participação de cada um dos atores do gerenciamento dos riscos.

Para a autora, o consumidor deve ser amplamente informado sobre o potencial poluidor do produto ou resíduo e a forma de descarte, como medida de prevenção dos danos pós-consumo. É importante destacar a crítica que a autora faz à Lei 12.305/2010, ao especificar os atores responsáveis pelo ciclo de vida dos produtos. Segundo ela, a limitação pode não abarcar todas as situações possíveis de atores sociais.

Ao final, a autora defende a opinião de que deve haver uma interpretação amplia-tiva dos gestores de riscos vinculada à posse dos resíduos ou rejeitos. No que se refere à responsabilidade compartilhada, na visão da autora, os consumidores estão limitados a dispor adequadamente os resíduos para coleta ou logística reversa. Os fabricantes e importadores são responsáveis pela destinação ambientalmente adequada, e os comer-ciantes e distribuidores pela devolução do objeto ou resíduos.

A autora ainda ressalta que, na prática, a implementação e estruturação dos sistemas de logística reversa acontecem entre os diferentes setores empresariais e que a maioria continua procurando se adaptar às obrigações estabelecidas pela PNRS e aguardando os editais de chamamento de acordos setoriais em nível federal.

É possível concluir que a obra aborda importantes fatores a serem considerados quando se quer traçar a responsabilidade pelos danos causados pós-consumo. As ques-tões tratadas pela autora, além de trazerem conhecimento ao leitor sobre um tema ainda pouco explorado, sem dúvida são fundamentais para qualquer discussão inicial sobre a responsabilidade pós-consumo.

Page 104: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em
Page 105: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

ASSUNTOS DIVERSOS

Doutrina

Direito administrativo ambiental sancionador: a inaplicabilidade do princípio da proporcionalidade no controle judicial da legalidade das penalidades por infrações administrativas ambientaisDANIEL BELLANDI, NELSON GULARTE RAMOS NETO................................107

Poder local - Desconcentração e descentralização do governo local na República Federativa do Brasil e na República de Angola - Uma comparação necessáriaFIRMINO DIOGO EDUARDO SOBRINHO........................................................123

Atuação do município no atendimento das pessoas com deficiência por meio de residências inclusivasLEONARDO DA ROCHA DE SOUZA.................................................................137

A problemática dos conceitos indeterminados e da discricionariedade técnicaSÉRGIO AUGUSTIN...........................................................................................151

Comentários à Lei nº 12.846, de 01 de agosto de 2013 - Lei anticorrupção contra pessoas físicas e jurídicas de direito privadoTOSHIO MUKAI.................................................................................................165

Prática Forense

Ação Civil Pública - Residências inclusivas - Contestação................................183

Page 106: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em
Page 107: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

DIREITO ADMINISTRATIVO AMBIENTAL SANCIONADOR: A INAPLICABILIDADE DO

PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE NO CONTROLE JUDICIAL DA LEGALIDADE DAS PENALIDADES POR

INFRAÇÕES ADMINISTRATIVAS AMBIENTAIS*

REPRESSIVE ENVIRONMENTAL ADMINISTRATIVE LAW: THE NON-APPLICABILITY OF THE PRINCIPLE OF

PROPORTIONALITY IN THE JUDICIAL CONTROL OF THE LEGALITY OF PENALTIES FOR ENVIRONMENTAL

ADMINISTRATIVE INFRACTIONS

DANIEL BELLANDIAdvogado. Mestrando em Direito Ambiental na

Universidade de Caxias do Sul - UCS.

NELSON GULARTE RAMOS NETOProcurador do Estado do Rio Grande do Sul. Mestrando em Direito pela

Universidade de Caxias do Sul. E-mail: [email protected].

SUMÁRIO: Introdução - 1. Princípios norteadores das sanções administrativas ambientais: 1.1. Legalidade e tipicidade; 1.2. Bis in idem, culpabilidade e irretroatividade - 2. Tipos de sanções e medidas de repressão às infrações ambientais - 3. Neoconstitucionalismo e a normatividade dos princípios - 4. Proporcionalidade, seu caráter principiológico e o direito administrativo - 5. Proporcionalidade e as penas impostas às infrações administrativas ambientais - Considerações finais - Referências.

SUMMARY: Introduction - 1. Guiding principles of environmental administrative penalties: 1.1. Legality and typicality; 1.2 Bis in idem, guilt and non-retroactivity - 2. Types of sanctions and enforcement measures for environmental infractions - 3. Neoconstitutionalism and the normativity of principles - 4. Proportionality, its character as a principle and administrative law - 5. Proportionality and the penalties handed down environmental administrative offenses - Final considerations - References.

* Data de recebimento do artigo: 06.08.2015.Datas de pareceres de aprovação: 10.08.20145 e 14.08.2015.Data de aprovação pelo Conselho Editorial: 17.08.2015.

Assuntos Diversos: Doutrina

Page 108: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

108 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Doutrina

RESUMO: A manifestação do poder de polícia por meio da repressão de condutas lesivas ao meio ambiente representa um campo importante do Direito Administrativo Sancionador. A fim de que a atuação do Poder Público seja legítima, faz-se necessário equacionar a necessidade de punir as infrações ambientais com o respeito às garantias es-senciais à democracia e ao Estado de Direito. Nesse sentido, importa analisar e esclarecer os princípios que informam a previsão legal das penalidades às infrações administrativas ambientais, bem como a sua aplicação, de modo que tanto a punição como o seu controle estejam revestidos de legitimidade.

PALAVRAS-CHAVE: infrações administrativas; direito ambiental; princípios; pro-porcionalidade.

ABSTRACT: The manifestation of police power through repression of conduct detrimental to the environment is an important field of Repressive Administrative Law. In order that the performance of the government is legitimate, it is necessary to equate the need to punish environmental violations with respect to essential guarantees as democracy and the rule of law. Therefore, it is important to analyze and clarify the principles that inform the legal provision of penalties for environmental administrative offenses, as well as their application, so that punishment and its control are coated with legitimacy.

KEYWORDS: administrative offences; environmental law; principles; proportionality.

INTRODUÇÃOMedidas preventivas que atuem na repressão e inibição dos danos ambientais

anteriormente à sua consumação, mostram-se, conforme inúmeros autores - e também o senso comum - severamente mais eficazes do que medidas punitivas. Porém, o dano não punido também merece ser alvo de crítica, pois por diversas vezes a falta ou o abranda-mento da punição leva à reincidência, ou mesmo causa sensação de insegurança jurídica.

Investiga-se, neste trabalho, os princípios que informam a existência de sanções administrativas ambientais, o que se faz mediante análise comparada com o sistema jurídico espanhol em cotejo o brasileiro. Para estruturar esta proposta, serão identificadas informações decorrentes dos conceitos encontrados na bibliografia proposta para o estudo.

O escopo inicial é trazer à tona algumas considerações sobre as repressões ad-ministrativas às infrações ambientais. Em breve comparativo entre as legislações suso referidas, sobretudo na obra de Blanca Lozano Cutanda e Nicolao Dino Neto, far-se-á, em dois capítulos, comparações entre princípios do direito sancionador administrativo e, logo em seguida, sobre os tipos de sanções aplicadas na legislação dos países ora estudados.

Em seguida, passa-se a analisar a aplicação do princípio que deve, segundo a maioria da doutrina, normatizar a aplicação da sanção. Nesse sentido, tem se sustentado, indiscriminadamente, que a atuação da Administração Pública deve ser pautada pela razoa-bilidade da conduta do administrador. Essa linha de raciocínio em muito decorre da opção generalizada da literatura que trata do tema por uma abordagem neoconstitucionalista, que propõe, em linhas gerais, a normatividade e aplicabilidade direta da constituição em decorrência do reconhecimento de sua força normativa.

Page 109: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

109DIREITO ADMINISTRATIVO AMBIENTAL SANCIONADOR

Assim, partindo-se do pressuposto de que a proporcionalidade é um princípio constitucional aplicável à atividade administrativa, os atos da administração devem ser por ele pautados. Entende-se que o ato que viole o referido princípio é ilegal e, por isso, passível de controle pelo Poder Judiciário. Isso porque não estaria acobertado pelo man-to protetor do mérito administrativo, cujo juízo caberia apenas à autoridade competente para praticar o ato, ainda que exista controvérsia até mesmo sobre essa possibilidade, diante do regramento aplicável à ação popular (conforme art. 5º, LXXIII, da Constituição da República, e art. 2º da Lei Federal nº 4.717/1965).

O objetivo específico do presente artigo é situar a utilização do princípio da pro-porcionalidade no contexto teórico que propõe a sua validade e, a partir disso, verificar a possibilidade de utilização para o exame da legalidade das autuações decorrentes da infração às normas de proteção ao meio ambiente.

Vale salientar que as conclusões expostas no texto não têm a pretensão de estender a sua aplicação, até mesmo diante da limitação do objeto, a todos os atos administrati-vos. Por essa razão, após encontrar a definição da proporcionalidade e o método de sua aplicação, será iniciado o exame das normas que preveem a imposição das penalidades decorrentes das infrações administrativas ambientais.

Feito o estudo das regras, será analisada a viabilidade do juízo de proporcionali-dade acerca das penas impostas pela administração diante de suas implicações práticas.

1. PRINCÍPIOS NORTEADORES DAS SANÇÕES ADMINISTRATIVAS AMBIENTAIS

A sanção administrativa é a manifestação mais clara do poder de polícia, cujo con-ceito se encontra estampado no art. 78 do Código Tributário Nacional, que não menciona, contudo, a proteção ambiental. Nada obstante, certo é que o rol que consta do dispositivo é meramente exemplificativo (SOUZA, 2010, p. 198), tendo em vista que a atuação da administração pode estar vinculada à garantia de outros direitos fundamentais de que é exemplo o direito ao equilíbrio ecológico ambiental.

Muito se discute acerca dos limites impostos à administração pública no que tange ao exercício do poder de polícia, campo em que ganham destaque. Os princípios guiadores do direito sancionador administrativo espanhol em muito se assemelham aos princípios do direito penal Brasileiro, e também não fogem ao alcance da norma pátria administrativa. Legalidade, tipicidade, reserva legal são, entre outros, princípios constantes tanto na ordem penal quanto na ordem administrativa. No artigo 25 da Constituição da Espanha estabelece-se que o princípio da legalidade em matéria punitiva se aplica tanto à repressão penal quanto administrativa (CUTANDA, 2010, p. 493, tradução nossa).

Estas balizas que norteiam a formulação e a aplicação das infrações administrativas ambientais (NETO, 2011, p. 179) possuem alguns denominadores em comum, motivo pelo qual, ambas as legislações são alvo de estudo neste trabalho.

Page 110: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

110 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Doutrina

1.1. Legalidade e tipicidade

De larga utilização no direito penal, o princípio da legalidade se resume com a expressão em latim nullum crimen, nulla poena sine lege (CUTANDA, 2010, p. 493), conferindo desta maneira, segurança jurídica ao indivíduo, ao passo em que protege a liberdade individual tornando a atividade punitiva certa e previsível, revestindo-a de legi-timidade democrática (NETO, 2011, p. 179). Nota-se aqui a preocupação da constituição da Espanha em condicionar a aplicação deste princípio tanto ao direito penal quanto à esfera administrativa, na linha da já citada norma constitucional espanhola, agora transcrita, segundo a qual “nadie puede ser condenado o sancionado por acciones u omisiones que en el momento de producirse no constituyan delito, falta o infracción administrativa, según la legislación vigente en aquel momento” (NETO, 2011, p. 180).

Preocupação esta que não teve o legislador brasileiro, derivando a aplicação do princípio da legalidade do disposto no art. 5º, II, da Constituição Federal do Brasil de 1988. Desta maneira, as infrações administrativas e suas respectivas sanções hão de decorrer de lei em sentido formal (NETO, 2011, p. 180).

No que diz respeito à tipicidade, vislumbra-se que ambas as legislações preocupam--se com a não taxatividade das condutas lesivas na lei, especialmente no que se refere às infrações administrativas, em especial as ambientais. Não se exige que a descrição legal da infração administrativa seja exaustiva na norma brasileira (NETO, 2011, p. 180), bem como na legislação espanhola o princípio da tipicidade possui o mesmo sentido, complementando-se, ainda, com a garantia essencial da lex certa, quando impõe que “la norma punitiva permita predecir con suficiente grado de certeza las conductas que cons-tituyen infracción y el tipo y grado de sanción del que puede hacerse merecedor quien la cometa” (CUTANDA, 2010, p. 496).

De outra banda, ainda quanto à tipicidade prevista expressamente na Constitui-ção espanhola ainda em seu art. 25, exige-se imperiosa predeterminação normativa das condutas ilícitas e da respectiva sanção administrativa, devendo as leis e regulamentos fazer o maior esforço possível para garantir a segurança jurídica. Por isso é que, ainda que não se exija que a descrição conste de lei em sentido formal, admitindo-se a previsão em regulamento, ainda dentro da garantia da “lex certa” (também chamado de taxatividade ou certeza) deve-se buscar a garantia da segurança jurídica, de modo a dar condições para que todos os cidadãos possam conhecer de antemão o âmbito do proibido e prever, assim, as consequências de suas ações (CUTANDA, 2010, p. 496, tradução nossa).

Neste entendimento - previsto em ambas as legislações ora estudadas - da não exaustão da previsão legal das condutas puníveis administrativamente em lei, viabilizando--se a extensão desta previsão às normas e regulamentos, interessante é a colocação de Nicolao Dino Neto, quando leciona que essa “divisão” de previsão legal não se trata de prescindir da tipicidade. Sustenta que, em razão da crescente complexidade e da pluralidade das transgressões sociais, a administração necessita de maior agilidade em sua atuação,

Page 111: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

111DIREITO ADMINISTRATIVO AMBIENTAL SANCIONADOR

no intuito de tutelar eficazmente o interesse público, notadamente no que se refere aos bens vitais da coletividade (NETO, 2011, p. 181).

Interessante destacarem-se as palavras de Nicolao Dino Neto, ao mencionar a complexidade das formas de agressão ao meio ambiente. Analisando de forma crítica, notório é o avanço da destruição ambiental do planeta, que está sendo atacado de todas as formas. Seja pela ação do homem, enquanto poluidor direto do meio ambiente, mediante a geração de resíduos, seja por meio de empresas que, na busca do lucro exacerbado, apoderam-se do bem comum de maior valia à humanidade - o meio ambiente -, ou mesmo por meio da geração incessante de resíduos que o consumismo sem limites e hedonista dos dias de hoje não param de testemunhar, o planeta enfrenta inúmeros problemas ecoló-gicos. Inócuo seria imaginar que somente a lei desprovida do poder regulamentar e demais tipos normativos que lhe são complementares pudesse contemplar todas as espécies de infrações ambientais, de forma que se preservasse o objetivo do direito administrativo sancionar. Nas palavras de Nicolao Neto:

As múltiplas e complexas formas de agredir o meio ambiente e as variações concernentes aos microbens ambientais, tais como a diversidade biológica, os diferentes espaços naturais protegidos e a variedade de atributos aí existentes, dificultam a descrição cabal de todos os elementos da infração administrativa ambiental na lei. Formulações legais “fechadas” deixariam de fora dos limites do tipo inúmeras situações ofensivas e carecedoras de resposta da administração, sendo, pois, indispensável o concurso de normas administrativas na definição dos diversos modos de agredir o bem ambiental (NETO, 2011, p. 182).

Não se crê, aqui, na taxatividade da lei, mas sim na viabilidade de sua complemen-tação por meio de normas, regulamentos e demais instrumentos presentes nas legislações esparsas, o que facilita a aplicação da sanção ao caso concreto, a par de não dificultar a identificação do evento danoso.

1.2. Bis in idem, culpabilidade e irretroatividade

Desprende-se do texto de Blanca Lozano Cutanda o caráter garantista concedido ao processo administrativo na Espanha. Princípios do direito penal, tributário e administrativo brasileiro se confundem em sua aplicação na repressão administrativa das infrações am-bientais no direito espanhol. Non bis in idem, princípio largamente utilizado no direito penal e tributário no Brasil, é largamente utilizado na Espanha, no intuito de evitar a duplicidade de sanção. Por este princípio, não se podem impor duas sanções administrativas, ou uma administrativa e outra penal simultaneamente pelos mesmos fatos, realizados pelo mesmo sujeito e com identidade de fundamentos (CUTANDA, 2010, p. 497, tradução nossa). No ramo processual, privilegiam-se os processos penais em detrimento dos administrativos, que não devem ser instaurados caso haja instrução penal em curso. A administração deve

Page 112: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

112 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Doutrina

paralisar a autuação ou mesmo desistir quando o fato se constituir delito ou falta penal (CUTANDA, 2010, p. 498).

Especialmente no âmbito da proteção ambiental, a sanção imposta no caso de duplicidade de autuação é a de maior gravidade, preferindo-se a sanção penal em detri-mento da administrativa (CUTANDA, 2010, p. 498, tradução dos autores). Ressalta-se o problema enfrentado na mensuração da gravidade do fato punível, com a dificuldade de estabelecer-se uma fronteira entre a infração penal e a administrativa utilizando somente o critério da gravidade da conduta como qualificador.

Outros princípios comuns tanto ao direito administrativo espanhol quanto ao bra-sileiro são o da irretroatividade da norma desfavorável e da retroatividade da norma mais favorável, ambos previstos na lei penal e aplicáveis também em matéria administrativa.

No que se refere ao princípio da culpabilidade, Cutanda enfatiza a exigência de dolo, culpa ou negligência no autor como requisito para impor a sanção - nulla poena sine culpa - (CUTANDA, 2010, p. 500, tradução nossa), enquanto em regra, na norma admi-nistrativa brasileira, a conduta (comissiva ou omissiva) que se amolda ao tipo previsto na lei caracteriza a infração administrativa ambiental, independentemente do agente querer ou não o fim ilícito ou ainda, de ter consciência dessa ilicitude (NETO, 2011, p. 190).

Há ainda algumas particularidades nas normas que regem a repressão adminis-trativa das infrações ambientais na Espanha. A figura da responsabilidade solidária por infrações administrativas prevê que, quando não for possível fracionar a responsabilidade por proprietário da área atingida, ou ainda, quando não for viável determinar-se o grau de participação das várias pessoas que tenham concorrido para a realização da infração ambiental, poderá a administração reconhecer a responsabilidade solidária, exigindo a cobrança da totalidade do importe da sanção de qualquer dos responsáveis (CUTANDA, 2010, p. 502, tradução dos autores). Ainda quanto à culpabilidade, no direito penal espa-nhol, o princípio societas delinquere non potest (CUTANDA, 2010, p. 502) tem fundamento dogmático no princípio da personalidade das penas, que repassa às pessoas físicas a sanção penal imposta à pessoa jurídica, impedindo que esta responda diretamente pelo delito (CUTANDA, 2010, p. 502).

Já no âmbito sancionador administrativo, o Tribunal Constitucional Espanhol reconheceu expressamente que a vigência do princípio da culpabilidade (de que deriva o princípio da personalidade das penas) não impede o reconhecimento da capacidade infratora das pessoas jurídicas (CUTANDA, 2010, p. 502).

Cutanda (2010, p. 503) traz aqui algumas colocações extremamente familiares com a realidade em nosso país, referentes ao problema da quantificação da multa que, por vezes, termina por ser aplicada em valor demasiadamente brando, se observado o poderio econômico da empresa. A respeito pode-se citar o princípio do poluidor-pagador, que acaba exigindo o pagamento como requisito para poluir, acarretando uma internalização no custo de produção do valor da multa. Evidentemente, o preço referente à imposição

Page 113: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

113DIREITO ADMINISTRATIVO AMBIENTAL SANCIONADOR

da penalidade repercutirá no valor pago pelo consumidor final. Cristiane Derani avalia a situação na obra Direito Ambiental Econômico (2008, p. 143):

Pelo princípio do poluidor-pagador, arca o causador da poluição com os custos necessários à diminuição, eliminação ou neutrali-zação deste dano. Ele pode, desde que isso seja compatível com as condições da concorrência no mercado, transferir estes custos para o preço do seu produto final. Em última análise, o consumidor é quem arca com o custo da utilização de produtos que não preju-diquem o ambiente.

De qualquer sorte, há que se concordar com a lição de Souza (2014, p. 200), no sentido de que “o dinheiro é um fator persuasivo” que se manifesta, entre outras formas, pela imposição de multa cuja adequada aplicação tem mesmo o condão de ressaltar a desvantagem de determinada conduta, a fim de incentivar comportamentos diversos daqueles que a norma visa coibir.

Feitos os apontamentos sobre os princípios que normatizam a existência das penalidades administrativas às infrações ambientais, cabe analisar os tipos de sanção previstos em ambos os ordenamentos jurídicos, tanto espanhol quanto brasileiro, para, ao final, avaliar o princípio que a doutrina entende incidir sobre a aplicação das sanções - a proporcionalidade -, verificando-se a necessidade de recorrer a ela diante do que dispõe a legislação brasileira acerca da imposição de penalidades.

2. TIPOS DE SANÇÕES E MEDIDAS DE REPRESSÃO ÀS INFRAÇÕES AMBIENTAIS

Similaridades também são encontradas nas sanções administrativas aplicadas no âmbito da proteção ambiental. Penalidades de multa, com destinação dos recursos aos fundos de proteção ambiental são comuns na Espanha, sendo a aplicação de multa a sanção mais frequente em abstrato e também, a medida sancionadora mais utilizada para reprimir as infrações ambientais (CUTANDA, 2010, p. 505).

Com o desenvolvimento do ordenamento jurídico protetor do meio ambiente, as multas por infrações ambientais estão ficando mais severas, e a preocupação em evitar penalidades de caráter simbólico e pouco efetivas torna-se presente também no processo administrativo espanhol (CUTANDA, 2010, p. 506).

São dignas de menção as sanções rescisórias, bem como as medidas complemen-tares ou acessórias aplicadas no processo administrativo espanhol. Em atividades infratoras potencialmente perigosas ou geradoras de resíduos, estas sanções são frequentemente utilizadas, retirando-se temporária ou definitivamente o título administrativo - que equivale ao alvará -, com o consequente fechamento do estabelecimento e cessação da atividade poluidora (CUTANDA, 2010, p. 507, tradução nossa).

Evidentemente, o fechamento da empresa é a medida mais dura, com alto custo econômico e social, na medida em que acarreta a redução de postos de trabalho e atinge

Page 114: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

114 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Doutrina

trabalhadores indiretos e fornecedores. Chama-se a atenção na doutrina para a aplica-ção do princípio da proporcionalidade (princípio também utilizado em larga escala no ordenamento jurídico brasileiro, especialmente no direito administrativo), somente cabe a imposição desta sanção para casos de infrações de maior gravidade, ou em caso de reiteração ao não cumprimento da norma protetora, decidindo o órgão administrativo que, pela sua conduta infratora a empresa torna-se uma grave ameaça para o interesse público ambiental (CUTANDA, 2010, p. 508).

A norma espanhola também apresenta um interessante meio de punição adminis-trativa por infrações ambientais, chamado de medidas complementares ou acessórias. Trata-se da publicidade das infrações impostas, em relação ao que Blanca Cutanda leciona que, quando se trata de uma indústria de grande potencial econômico, haverá maior com a perda de prestígio pela publicidade negativa do que com o valor da multa a ser paga (CUTANDA, 2010, p. 509).

3. NEOCONSTITUCIONALISMO E A NORMATIVIDADE DOS PRINCÍPIOS

Analisados os princípios que norteiam a atividade sancionadora na seara adminis-trativa do Direito Ambiental, devem ser feitas algumas considerações sobre a teoria que pretende cuidar de sua aplicação.

Se o movimento constitucionalista surgiu a partir de tentativa de limitação do poder pela criação de um documento que estabelece a vinculação de todos às normas básicas de organização do Estado e direitos que impediam a atuação dos poderes constituídos sobre a vida dos indivíduos, o neoconstitucionalismo propõe uma reviravolta no significado da Constituição e de suas normas.

A par da limitação do poder, a constituição provoca, segundo a corrente teórica, uma irradiação de suas normas para toda a vida social, motivo pelo qual também deve ser aplicada diretamente para a solução das controvérsias trazidas para a análise do Poder Judiciário.

Segundo Barroso (2007, p. 209-2014), trata-se de um novo paradigma que se observa no direito constitucional hodierno, cujos traços decorrem de elementos históricos identificados com o constitucionalismo pós-guerra, que é marcado pela adoção de valores fundamentais identificados com a dignidade humana, muito em decorrência da Declara-ção Universal de Direito Humanos, datada de 1948, destinada a se obter o compromisso dos Estados internacionais a fim de eliminarem as possibilidades de atrocidades contra a humanidade.

Além disso, devem ser destacados os elementos filosóficos, que propõem uma leitura moral das normas constitucionais que trazem os valores fundamentais do homem, o que se observa com as lições do pós-positivismo no sentido de abandonar a legalidade pura para se aplicar o direito na linha dos referidos vetores axiológicos de interpretação de todas as normas, especialmente as constitucionais.

Page 115: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

115DIREITO ADMINISTRATIVO AMBIENTAL SANCIONADOR

Por fim, existiria também um marco teórico que, por sua vez, é resultado da alteração filosófica, tendo em vista que fundamenta a importância e o papel decisivo da jurisdição constitucional, a partir de uma dogmática de interpretação jurídica que, ao reconhecer a força normativa da Constituição, em especial dos princípios, para que as próprias decisões judiciais sejam impregnadas dos valores consagrados na Lei Maior.

Diante disso, impõe-se reconhecer que a principal mudança proposta pela teoria é a maneira de se entender o papel do juiz e a função da Constituição. Ora, se antes o documento servia como maneira de organização do Estado e limitação do poder, por conta da previsão dos direitos fundamentais, agora se propõe a incidência direta de todas as normas constitucionais para regulamentação da vida em sociedade, com base na eficácia direta das disposições constitucionais.

O magistrado passa, pois, a considerar as normas da Constituição como funda-mento de suas decisões. No caso brasileiro, que conta com um documento analítico que busca regulamentar boa parte das relações sociais e institucionais, constitucionalizou-se a vida social. Ainda, no que diz respeito ao papel do juiz, a possibilidade de aplicação de princípios com significado amplo e não delimitado, permite alta carga de subjetividade na valoração moral ao decidir, o que também é objeto de análise da referida teoria.

Para Galvão (2014, p. 59) o conceito da teoria é o que segue:

Pode-se considerar Neoconstitucionalismo como sendo uma inter-pretação da prática jurídica a partir da perspectiva dos juízes, em que a Constituição - editada após o restabelecimento do regime democrático - é tida como uma norma substantiva, composta primariamente de princípios, exigindo do intérprete o manuseio de técnicas especiais, notadamente a ponderação. Ou seja, o Neo-constitucionalismo é um modo específico de enxergar o Direito, no qual se valoriza o papel dos juízes na concretização das promessas contidas no texto constitucional, sendo inequivocamente uma teoria que busca influenciar o comportamento dos atores jurídicos.

Vê-se que existe uma proposta de utilização da ponderação a fim de se encontrar o âmbito de incidência de cada um dos princípios constitucionais, na medida em que há a possibilidade de colisão entre os diferentes mandados de otimização, o que é endossado de forma generalizada pela doutrina que cuida do tema.

À ponderação se recorre porque a simples enunciação de um princípio não permite identificar qual o seu exato significado jurídico ou quais as consequências que ele produz no contexto fático-normativo. A indeterminação também resulta de uma não tão aparente1 colisão entre princípios que poderiam, em tese, ser aplicados para a solução do mesmo 1 Mencionou-se que não há aparência na colisão de princípios como existe no conflito de regras, cuja resolução

se faz mediante a aplicação dos critérios cronológico (lei posterior revoga a lei anterior que for contrária), da hierarquia (lei superior revoga ou invalida a lei inferior) e da especialidade (lei especial afasta a aplicação da lei geral). Não há, por isso, critérios lúcidos e de fácil aplicação para a determinação da norma aplicável, de modo que a colisão não é aparente, mas sim real.

Page 116: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

116 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Doutrina

caso. Esses princípios diferentes, aplicáveis, ao menos em uma primeira leitura, para encontrar uma resposta jurídica adequada para um caso concreto, acarretam, por óbvio, duas soluções distintas, que muitas vezes são diametralmente opostas axiologicamente.

A criação judicial ou jurisprudencial do Direito parece consequência lógica da aposta na abertura semântica dos princípios e na competência constitucional dos juízes para lhes atribuir o significado jurídico e concretizar a Constituição em todos os seus termos.

Em razão disso, Möller (2011, p. 43) afirma que o neoconstitucionalismo adota ba-ses teóricas que aproxima o nosso sistema do civil law do common law norte-americano, por crer na necessidade de colocar o Poder Judiciário na tarefa de construção do Direito.

É com o neoconstitucionalismo que a proporcionalidade ganha destaque como princípio geral de direito, diante da valorização do caráter normativo dos princípios, da atuação judicial na sua concretização e da adoção do referido princípio para aplicação da constituição. A valorização é tão significativa que se chegou a considerar a proporcionali-dade como uma “língua comum” entre os juízes, na linha do que ressalta Mendes (2010, p. 403).

A normatividade dos princípios, como se viu, não prescinde da adoção de uma técnica de decisão que viabilize a atribuição de significados e aplicações práticas. Já se disse que o método de aplicação dos princípios, para quem, parte do pressuposto teórico do neoconstitucionalismo é a ponderação. Isso porque, ainda que não existam dois prin-cípios claramente aplicáveis, a colisão pode ocorrer entre um princípio e um bem tutelado pela Constituição, conforme leciona Steinmetz (2004, p. 133). Na tutela ambiental, por exemplo, considerando-se o caso da tipificação das infrações administrativas, poder-se-ia pensar no direito fundamental ao meio ambiente, de um lado, e a autonomia privada ou a livre iniciativa, de outro.

Por ser a ponderação um elemento integrante do princípio da proporcionalidade, passa-se a analisá-lo a fim de identificar como ocorre a sua aplicação e, em seguida, verificar a sua incidência nos casos de imposição de penalidades por infrações administrativas às normas de tutela do direito fundamental ao equilíbrio ecológico ambiental.

4. PROPORCIONALIDADE, SEU CARÁTER PRINCIPIOLÓGICO E O DIREITO ADMINISTRATIVO

Iniciou-se este trabalho com a menção à limitação da atividade administrativa pelo princípio da proporcionalidade. Cumpre examinar, pois, o conteúdo jurídico dessa máxima.

A proporcionalidade, também denominada de razoabilidade2 por boa parte da doutrina, é princípio constitucional implícito. Isso porque não existe qualquer menção expressa à proporcionalidade como princípio - o que, vale dizer, também vale para a ra-zoabilidade. Quem encontra abrigo constitucional para a proporcionalidade a reconhece 2 Há quem faça distinção entre o razoável e o proporcional, posição não adotada neste texto por não

se considerar que apresentem significado teórico e aplicação práticas distintas. Para todos os efeitos, consideram-se os termos como sinônimos.

Page 117: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

117DIREITO ADMINISTRATIVO AMBIENTAL SANCIONADOR

como decorrência do devido processo legal substantivo, positivado no inciso LIV do art. 5º da Constituição da República. Daí é que decorre o seu caráter não expresso, pois au-sente menção textual, mas presente a possibilidade de inferir sua existência em virtude de outras normas expressas.

Nada obstante à posição aqui exposta, no sentido de se considerar a proporcio-nalidade como decorrente do devido processo legal e de não existir diferença em relação à razoabilidade, a Lei do Processo Administrativo Federal (Lei nº 9.784/1999) previu no seu artigo 2º, que a “Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência”.

Parece estreme de dúvidas que, de alguma forma, a proporcionalidade deve informar a atividade administrativa. Para se identificar quando ela incide e quem deve aplicá-la é necessário estabelecer seu significado e critérios de utilização do princípio constitucional.

Em primeiro lugar, impende registrar na clássica distinção entre princípios e regras, que a proporcionalidade não se trata de regra, tendo em vista que não corresponde a um mandamento definitivo cuja incidência ocorre por subsunção, não se submetendo, por questão lógica, aos critérios cronológico, hierárquico e da especialidade.

Já se disse que a proporcionalidade, por abarcar a ponderação, é utilizada para aplicação de outros princípios. Poderia ser ela, nesse mesmo sentido, um princípio? Nesse caso, submeter-se-ia à ponderação para aplicação? Tem-se que a referência a princípio, máxima ou postulado da proporcionalidade decorre de mera opção terminológica, haja vista que não se apresenta qualquer distinção significativa no modo de aplicação. Pode ser, pois, um princípio, máxima ou postulado de aplicação de outros princípios, se aceita a teoria dos princípios como mandamentos de otimização, conforme já se mencionou.

Veja-se a definição doutrinária. Pode-se citar por todos a lição de Carvalho Filho (2014, p. 43), para quem a proporcionalidade é composta por três elementos, também de-nominados de subprincípios: a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito. Este último elemento corresponde ao momento em que a ponderação é realizada.

A adequação corresponde à aptidão do meio restritivo ou punitivo para se atingir o fim almejado pela limitação ou sanção. Assim, será adequada a aplicação da multa diária para a infração administrativa ambiental que se prolongar no tempo, pois a manutenção ou agravamento da situação lesiva ao meio ambiente permite concluir que a pena pecuniária que acompanha a duração temporal da conduta lesiva e, por isso, tem seu valor acrescido, mostra-se apta a reprimir o ato ilícito, tudo nos termos da expressa previsão do art. 72, § 5º, da Lei nº 9.605/1998.

Pode-se qualificar como necessária a medida legislativa ou administrativa adotada quando não houver outro meio menos restritivo de se alcançar o fim pretendido com a limitação. É, então, necessário o limite menos gravoso e igualmente apto a concretizar o objetivo visado. Vê-se, nesse sentido, que é necessária a sanção de embargo de obra ou atividade quando não estiver obedecendo as prescrições legais ou regulamentares

Page 118: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

118 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Doutrina

de proteção ambiental, o que decorre da aplicação literal do art. 72, VII, § 7º, da Lei nº 9.605/1998.

Por fim, a proporcionalidade em sentido estrito refere-se ao controle de equiva-lência entre a satisfação da finalidade da proteção do meio ambiente em relação ao grau de restrição de um direito, estando presente toda vez que houver, a partir desse critério, uma razão hábil a demonstrar que, por meio da limitação de um direito, conseguiu-se dar realidade a um bem de igual ou superior importância para o ordenamento jurídico.

5. PROPORCIONALIDADE E AS PENAS IMPOSTAS ÀS INFRAÇÕES ADMINISTRATIVAS AMBIENTAIS

Ao tratar da proporcionalidade referentemente ao direito administrativo sancionador, Dino Neto (2011, p. 185) refere que a “busca da justa medida” é decorrência do próprio Estado Democrático, pois premente a necessidade de respeito aos direitos fundamentais.

No caso da proteção ambiental, essa tarefa equivale à necessidade de encontrar sanções adequadas para responder às condutas lesivas ou potencialmente prejudiciais ao meio ambiente, ainda que inexista elemento subjetivo de quem as pratica.

No Brasil, a punição administrativa é prevista pela Lei nº 9.608/1998, que trata das sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente.

Existe uma norma geral que propõe a punição das infrações, disposta no art. 70 do referido diploma legislativo, considerando-se como infração administrativa qualquer “ação ou omissão que viole as regras jurídicas de uso, gozo, promoção, proteção e recuperação do meio ambiente”.

A tipificação legal das condutas infracionais e das penalidades aplicáveis é com-plementada pelo Decreto nº 6.514/2008.

Interessa ao presente texto a avaliação da possibilidade do Poder Judiciário declarar a nulidade da imposição de sanções administrativas decorrentes de infrações ambientais em razão da violação do princípio da proporcionalidade.

Para isso, é fundamental analisarem-se as sanções e a sua aplicação da forma que foram concebidas pelo legislador.

As sanções legalmente previstas são as seguintes:Art. 72. As infrações administrativas são punidas com as seguintes sanções, observado o disposto no art. 6º:I - advertência;II - multa simples;III - multa diária;IV - apreensão dos animais, produtos e subprodutos da fauna e flora, instrumentos, petrechos, equipamentos ou veículos de qualquer natureza utilizados na infração;V - destruição ou inutilização do produto;

Page 119: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

119DIREITO ADMINISTRATIVO AMBIENTAL SANCIONADOR

VI - suspensão de venda e fabricação do produto;VII - embargo de obra ou atividade;VIII - demolição de obra;IX - suspensão parcial ou total de atividades;X - (VETADO)XI - restritiva de direitos.§ 8º As sanções restritivas de direito são:I - suspensão de registro, licença ou autorização;II - cancelamento de registro, licença ou autorização;III - perda ou restrição de incentivos e benefícios fiscais;IV - perda ou suspensão da participação em linhas de financiamento em estabelecimentos oficiais de crédito;V - proibição de contratar com a Administração Pública, pelo período de até três anos.

Não olvidou o legislador de estabelecer critérios para a aplicação das sanções, dotando o administrador de meios para escolher a pena aplicável, bem como a sua quan-tificação, quando for o caso. Nesse sentido, a lei proporciona maior segurança jurídica ao administrado, que possui maior facilidade de verificar a legalidade da atuação administrativa.

Estes são os critérios previstos na Lei nº 9.605/1998:Art. 6º Para imposição e gradação da penalidade, a autoridade competente observará:I - a gravidade do fato, tendo em vista os motivos da infração e suas consequências para a saúde pública e para o meio ambiente;II - os antecedentes do infrator quanto ao cumprimento da legislação de interesse ambiental;III - a situação econômica do infrator, no caso de multa.Art. 72. [...]§ 1º Se o infrator cometer, simultaneamente, duas ou mais infra-ções, ser-lhe-ão aplicadas, cumulativamente, as sanções a elas cominadas.§ 2º A advertência será aplicada pela inobservância das disposições desta Lei e da legislação em vigor, ou de preceitos regulamentares, sem prejuízo das demais sanções previstas neste artigo.§ 3º A multa simples será aplicada sempre que o agente, por ne-gligência ou dolo:I - advertido por irregularidades que tenham sido praticadas, deixar de saná-las, no prazo assinalado por órgão competente do Sisnama ou pela Capitania dos Portos, do Ministério da Marinha;II - opuser embaraço à fiscalização dos órgãos do Sisnama ou da Capitania dos Portos, do Ministério da Marinha.§ 4º A multa simples pode ser convertida em serviços de preser-vação, melhoria e recuperação da qualidade do meio ambiente.§ 5º A multa diária será aplicada sempre que o cometimento da infração se prolongar no tempo.

Page 120: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

120 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Doutrina

§ 6º A apreensão e destruição referidas nos incisos IV e V do caput obedecerão ao disposto no art. 25 desta Lei.§ 7º As sanções indicadas nos incisos VI a IX do caput serão apli-cadas quando o produto, a obra, a atividade ou o estabelecimento não estiverem obedecendo às prescrições legais ou regulamentares.Art. 74. A multa terá por base a unidade, hectare, metro cúbico, quilograma ou outra medida pertinente, de acordo com o objeto jurídico lesado.Art. 75. O valor da multa de que trata este Capítulo será fixado no regulamento desta Lei e corrigido periodicamente, com base nos índices estabelecidos na legislação pertinente, sendo o mínimo de R$ 50,00 (cinquenta reais) e o máximo de R$ 50.000.000,00 (cinquenta milhões de reais).

Além disso, cabe mencionar que os valores e as situações correspondentes para aplicação da pena de multa estão discriminados no Decreto nº 6.514/2008, conforme se referiu anteriormente.

A leitura da forma de imposição de penalidades às infrações administrativas ambien-tais permite concluir que o legislador estabeleceu critérios que devem ser observados pela Administração Pública para a escolha da sanção e sua quantificação, quando necessário. A inobservância desses critérios implica a ilegalidade do ato de autuação, cuja nulidade pode ser declarada pelo Poder Judiciário, mediante provocação. Contudo, observados os critérios legais, a administração tem discricionariedade para avaliar a melhor forma de sancionar a infração. Isso porque a faculdade é conferida pelo legislador e o seu escopo é punir as infrações de cunho administrativo, sendo o agente público competente a autoridade que deve manifestar a vontade da Administração.

Havendo regras compatíveis com a Constituição, como parece ser o caso, não há que se falar em aplicação de princípios para invalidar o ato administrativo.

Ainda sobre o neoconstitucionalismo e a ponderação como forma de aplicação do Direito, oportuna a consideração do Ministro Fux (2012, p. 34), que vai ao encontro da posição sustentada neste texto:

O Supremo Tribunal Federal impôs-me inaugurar uma nova forma de pensar o direito, porquanto a Carta Constitucional, mercê de abarcar regras, contém inúmeros princípios, exigindo, na mais das vezes, a denominada técnica de ponderação de valores, notadamente das causas em que a ausência de regras explícitas alarga o campo interpretativo e criativo da função judicial (Grifei).

Enunciar a aplicação da proporcionalidade à Administração Pública não equivale dizer que todos os atos administrativos podem ser controlados e invalidados a partir de uma ponderação entre princípios, haja vista que essa possibilidade, se levada a esse extremo, permitiria a substituição da atuação do administrador pela vontade do juiz.

Page 121: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

121DIREITO ADMINISTRATIVO AMBIENTAL SANCIONADOR

Da mesma forma, defender-se a proporcionalidade não significa reduzi-la a um método de controle da Administração, pois o referido princípio também irradia seus efeitos para o legislador e os agentes públicos, dotados de competência para valorar a necessidade e adequação das leis e de seus atos, conforme o caso.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não é intuito do texto esgotar o tema proposto. O que se pretende é, na análise feita, ressaltar o caráter garantidor do processo administrativo espanhol e espelhar suas semelhanças na legislação de nosso país. Os princípios trabalhados no texto devem espelhar as decisões administrativas que punem as infrações ambientais, em especial no intuito de frear a destruição ambiental cada vez mais presente em nosso meio.

A proporção atingida pelos problemas ambientais nos dias de hoje representa um verdadeiro desafio à sobrevivência da humanidade. A aplicação dos princípios para orientação do legislador e da administração não se trata de tarefa complexa, mas, se contextualizadas, demonstra inúmeras possibilidades de atenuação da crise ambiental em nosso planeta. Sobretudo na seara ambiental, onde punir o dano torna-se em geral ineficaz - uma vez que a poluição e a destruição do meio ambiente já ocorreram em grande parte - a primazia pelo instituto da repressão administrativa deve se fazer presente.

Tanto nos princípios quanto nas sanções, podemos observar várias semelhanças que tornam ambos os processos administrativos de aplicação, sanções ambientais efetivas na busca da atenuação dos já agressivos problemas ambientais que enfrentamos nos dias de hoje. Acredita-se que estas sanções devam não somente punir, mas sim trazer à sociedade segurança jurídica, a fim de buscar-se a atuação preventiva, evitando que o dano ambiental ocorra, o que é de melhor solução e enfrentamento, tanto no plano jurídico quanto no empírico.

Ainda que se endossem os pressupostos do neoconstitucionalismo, a aplicação dos princípios e a força normativa da Constituição, ao que parece, não eliminaram a discricionariedade administrativa que é outorgada pelos representantes do povo. Afinal, salvo melhor juízo, a proporcionalidade não derrogou o princípio representativo e o regime democrático, razão pela qual também o princípio abordado neste estudo não deve ter um campo ilimitado de incidência. Caso contrário, corre-se o risco de submeter todo o Direito ao teste de adequação, necessidade e ponderação dos magistrados, menosprezando-se a democracia.

No presente caso, tem-se que a legislação que prevê a punição das infrações ad-ministrativas à legislação ambiental é dotada de critérios capazes de conferir à autoridade competente para a imposição da sanção certo grau de segurança. Por isso, a lei obedece à proporcionalidade ao estabelecer parâmetros para a escolha da pena mais adequada ao caso, bem como para se identificar eventual ilegalidade da conduta da administração.

Page 122: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

122 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Doutrina

REFERÊNCIAS

BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito (o triunfo tardio do direito constitucional no Brasil). In: PEREIRA NETO, Cláudio et al. Curso de direito constitucional. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 27. ed. São Paulo: Atlas, 2014.

CUTANDA, Blanca Lozano. Derecho ambiental administrativo. 11. ed. Madrid: La Ley, 2010.

DERANI, Cristiane. Direito ambiental econômico. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2008.

DINO NETO, Nicolao. Introdução ao estudo das infrações administrativas ambientais. Revista de Direito Ambiental, São Paulo, v. 62, ano 15, p. 169-200, abr./jun. 2011.

FUX, Luiz. Jurisdição constitucional: democracia e direitos fundamentais. Belo Horizonte: Fórum, 2012.

GALVÃO, Jorge Octávio Lavocat. O neoconstitucionalismo e o fim do estado de direito. São Paulo: Saraiva, 2014.

MÖLLER, Max. Teoria geral do neoconstitucionalismo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011.

SARMENTO, Daniel. A constitucionalização do direito: fundamentos teóricos e aplicações especí-ficas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.

SOUZA, Leonardo da Rocha de. Democracia deliberativa e justiça ambiental. Revista Internacional de Direito Ambiental, v. III, n. 08, p. 187-204, maio/ago. 2014.

SOUZA, Leonardo da Rocha de. O poder de polícia administrativa e a realização dos direitos fundamentais: um estudo a partir de decisões do STF. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 255, p. 193-242, set./dez. 2010.

STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares a direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2004.

Page 123: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

PODER LOCAL - DESCONCENTRAÇÃO E DESCENTRALIZAÇÃO DO GOVERNO LOCAL

NA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL E NA REPÚBLICA DE ANGOLA - UMA COMPARAÇÃO NECESSÁRIA*

LOCAL POWER - DEVOLUTION AND DECENTRALIZATION OF LOCAL GOVERNMENT IN THE FEDERATIVE REPUBLIC OF BRAZIL AND THE REPUBLIC OF

ANGOLA - A NECESSARY COMPARISON

FIRMINO DIOGO EDUARDO SOBRINHOMestrando em Governação e Gestão Pública - Centro de excelência

- Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto/Angola. E-mail: [email protected].

SUMÁRIO: Introdução - Metodologia - Desconcentração e descentralização do governo local na República Federativa do Brasil e na República de Angola - As autarquias: conceito e características - A desconcentração versus a descentralização em Angola - A gestão das instituições públicas - Conclusões - Referências.

SUMMARY: Introduction - Methodology - Devolution and decentralization of local government in the Federative Republic of Brazil and the Republic of Angola - The autarchies: concept and characteristics - The devolution versus decentralization in Angola - The management of public institutions - Conclusions - References.

* Data de recebimento do artigo: 05.08.2015.Datas de pareceres de aprovação: 10.08.2015 e 14.08.2015.Data de aprovação pelo Conselho Editorial: 18.08.2015.

Page 124: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

124 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Doutrina

RESUMO: A gestão e administração pública em Angola converteram-se em um tema da actualidade não só pelo seu aspecto político, mas também pela situação económica que vive o país devido à crise económica. O que traz aparelhado a busca de alternativas que acelerem o desenvolvimento local e elevar a qualidade de vida da população. Revelar e tirar experiência do passado e de outros países, em particular do Brasil, permitirá acelerar as mudanças necessárias na gestão pública com maior objectividade e efectividade. A gestão pública depende de um alto grau da descentralização do orçamento, mas também depende de outros factores importantes e funcionais para assim se alcançar as metas do Plano Nacional de Desenvolvimento. O objectivo deste trabalho foi discutir os elementos relacionados com conceitos e fundamentos dos processos de descentralização e des-concentração em Angola, desenvolvendo um estudo comparativo com as experiências do Brasil e sua projecção ao momento em que vive a República da Angola, estabelecer um enfoque qualitativo nas tendências da gestão pública considerando as exigências do mestrado e do 2º módulo ministrado pelo Centro de Excelência, que permite utilizar os métodos próprios de uma investigação documentária e configurar uma situação proble-mática a resolver no futuro.

PALAVRAS-CHAVE: gestão pública; descentralização; desconcentração; autarquia.ABSTRACT: The management and public administration in Angola had become a

topic of today not only for its political aspect, but also the economic situation that the country due to the economic crisis. Which provides the search of alternatives to accelerate local development and enhance the quality of life of the population. The experience of the past and of other countries, Brazil in particular, will accelerate the changes needed in public management with greater objectivity and effectiveness. The public administration relies on a high degree of decentralization of the budget, but also depends on other important and functional factors in order to achieve the goals of the national development plan. The aim of this work was to discuss related elements with concepts and fundamentals of the processes of decentralization and devolution in Angola, developing a comparative study with the experiences of Brazil and its projection at current the moment in Angola, establish a qualitative focus on trends in public management considering the requirements of the master and the second module taught by Center of Excellence, which allows you to use the methods of a documentary investigation and set up a problematic situation to be resolved in the future.

KEYWORDS: public management; decentralization; devolution; autarchy.

INTRODUÇÃO

As administrações públicas dos municípios e comunas enfrentam problemas a respeito de como lidar com a gestão da sociedade, como incentivá-la, direccioná-la aos seus habitantes e como criar alternativas para conscientização ante as grandes provoca-ções que enfrenta a população, principal sustento da nação. Uma simples folheada das

Page 125: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

125PODER LOCAL - DESCONCENTRAÇÃO E DESCENTRALIZAÇÃO DO GOVERNO LOCAL

imprensas, as opiniões e critérios de pessoas e personalidades mostram que o processo de democratização até enfrenta grandes barreiras de tipo sociocultural e econômico devido à diversidade de origens do povo angolano.

Seguindo a delineia de pensamento de alguns autores, em especial daqueles que reconhecem o papel da ciência na solução dos problemas sociais como Polit & Hungler (1995). Nesta direcção objectivamos neste trabalho, a partir de uma revisão documentária: artigos, livros e também de fontes legais, fazer uma discussão do conteúdo dos conceitos da gestão do poder local ou autarquias, os processos de desconcentração e descentrali-zação mediante uma metodologia qualitativa e mediante uma análise comparativa com os processos acontecidos da história do Brasil enquadrar seu comportamento nas condições socioeconômicas de Angola.

Uma análise da obra de diferentes autores: (SANTOS JÚNIOR; AZEVEDO; RIBEIRO, 2004); Diogo Lordello de Mello (1993); Chico Francisco Faria (2011); Benvindo Luciano (2012); Peter Kevin Spink et al (1998),1 permite assinalar que a transparência e o controlo social se encontram no centro do debate social. Transformou-se em uma questão central para a democracia, associada às exigências das sociedades modernas. A existência de práticas de apropriação indevida de recursos públicos (corrupção) e de ineficiência na utilização desses recursos está entre os principais factores que minam a confiança dos cidadãos nas instituições públicas e dos governantes.2

O objectivo deste trabalho é descrever a trajectória dos aspectos do governo local, implantado no município de Moxico. O trabalho foi elaborado a partir de pesquisa bibliográfica reflexiva que consiste na consulta de análise de documentos secundários, já publicados tanto de forma física quanto virtual, sobre a legislação e sua aplicação nas condições do município do Moxico. Também foi realizada pesquisa documental, baseada principalmente em documentos primários, actas e demais documentos não publicados. Não há desenvolvimento social coerente, íntegro e harmonioso se a gestão pública não garantir o controlo e a transparência nos processos de descentralização e desconcentração.

Percebe-se que os governos, como no Brasil e em Angola estão submetidos a observação e avaliação. Eles devem, por exemplo, demonstrar ter sob controlo as acções que os agentes públicos realizam em seu nome. Outra associação frequente ocorre entre transparência e controlo. Sem dúvida, a existência de mecanismos eficazes de controlo nas políticas públicas é indispensável para que haja também transparência. Contudo, controlo e transparência não são sinônimos. Devem ser percorridas várias etapas, da criação dos mecanismos de controlo até seu adequado funcionamento e a produção de resultados, para que seja possível afirmar que há transparência.

1 Governo local: o mito da descentralização e as novas prácticas de governança. 1998. Disponível em: <www.rausp.usp.br>.

2 Oposição exige transparência. Nova Gazeta, 26 mar. 2015. Reflete opiniões a respeito disto em Angola.

Page 126: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

126 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Doutrina

METODOLOGIA

A coleta de dados se apoiou no fundamentalmente nas fontes: documentação indirecta, abrangendo a pesquisa bibliográfica e documentação directa. Esta última inclui observação directa intensiva com aplicação de entrevistas face a face e observação directa extensiva (LAKATOS; MARCONI, 2001).

A revisão bibliográfica que é um dos métodos de pesquisa desenvolvido a partir de materiais já elaborados e constituídos principalmente nos livros de leitura corrente, livros de referência informativa, relatórios (dicionários, enciclopédias) e artigos científicos.

As vantagens deste método segundo Morse (1995)3 consiste no facto de nos per-mitir a cobertura de uma gama de fenômenos muito mais amplos do que aqueles a que seria possível pesquisar directamente. Esta característica torna-se importante quando o problema a investigar requer dados muito dispersos pelo espaço sociodemográfico ou devido à natureza complexa do objecto de estudo.

A pesquisa compreendeu uma segunda perspectiva metodológica para o estudo do objecto de investigação, depois de realizar a generalização das tendências que se manifestam na abordagem teórico-prático do problema assumido na literatura ou fonte documentária de Angola e Brasil, o pensamento hipotético-dedutivo que se inicia pela percepção e a representação de uma lacuna nos conhecimentos do modelo assumido, acerca da qual se formula hipóteses ou a ideia científica e, pelo processo de inferência de-dutiva, testa a predição da ocorrência de fenômenos abrangidos pela hipótese (LAKATOS; MARCONI, 2003, p. 95).4

Logo e segundo Gomes Campos,5 a pesquisa qualitativa tem o ambiente natural dos processos como fonte direta dos dados e o pesquisador como instrumento chave. A presença do pesquisador no ambiente onde se desenvolve a pesquisa é de extrema importância, à medida que o fenômeno estudado só é compreendido de maneira abran-gente, se observado no contexto onde ocorre, visto que o mesmo sofre a acção directa desse ambiente.

Salienta-se que para a selecção da amostra se optou pela amostragem intencional. Esta opção socorre-se dos fundamentos de Morse (1994), para quem esta técnica pretende que a amostra seja representativa da experiência e da realidade a que o estudo pretende

3 Em Morse (1995) “el peligro de tal enfoque radica en que el investigador puede tratar la percepción del mundo social como objetivo absoluto y negar la interpretación subjetividades y el contexto de la búsqueda o investigación”. Introduction to qualitative research pdf. [s/d]

4 LAKATOS, Eva Maria; MARCONI, Marina de Andrade. Fundamentos de metodologia científica 1. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2003. Disponível em: <http://docente.ifrn.edu.br/olivianeta/disciplinas/copy_of_historia-i/historia-ii/china-e-india>.

5 CAMPOS, Claudinei José Gomes. Metodologia qualitativa e método clínico-qualitativo: um panorama geral de seus conceitos e fundamentos. Disponível em: <http://www.sepq.org.br/IIsipeq/anais/pdf/poster1/05.pdf> s/d.

Page 127: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

127PODER LOCAL - DESCONCENTRAÇÃO E DESCENTRALIZAÇÃO DO GOVERNO LOCAL

aceder e privilegiar a selecção de sujeitos que detêm um conhecimento aprofundado o vivido do fenômeno que se pretende estudar. Embora, pela natureza cultural e sócia política a mesma pode variar de um município a outros.

Por limitações de tempo não se pôde desenvolver uma investigação de campo e por isso, também o autor se apoiou em conversações informais com pessoas que directamente ou indirecta tenha critérios sobre o processo de administração pública em Angola para recolher informação básica para o trabalho.

Realizou-se uma entrevista a um representante dos órgãos locais e em outro momento, e logo depois de calibrar o instrumento, fazê-la a um grupo de funcionários, distribuído ao nível da direcção municipal ou comunal e com algum representante das co-munidades locais, das Instituições da Sociedade Civil, das confissões religiosas e de outros grupos de interesses sociais como parte da continuidade deste trabalho no futuro imediato.

A leitura de diferentes materiais bibliográficos mostra que nos aspectos políticos, econômicos e sociais na gestão pública local indica que à análise dos processos, ba-seando-nos no suposto de que nenhum paradigma ou corpo teórico isolado é capaz de dar conta do conjunto de problemas que conformam certa realidade social, econômica e política, referida a uma conjuntura histórico-concreta, significa que é necessário certo grau de pluralismo teórico e tolerância epistemológica, na tentativa de entender a realidade social da Angola.

DESCONCENTRAÇÃO E DESCENTRALIZAÇÃO DO GOVERNO LOCAL NA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL E NA REPÚBLICA DE ANGOLA

Uma análise de alguns documentos normativos e jurídicos, de artigos em livros e revistas permitiu realizar comparação nestes processos de descentralização e descon-centração no Brasil e em Angola.

A análise histórica da realidade social mostra que na busca da equidade social, os homens e mulheres se colocaram como actores de mudanças. Nesta trajectória de ruptura do status quo, esteve presente o desejo de alcançar condições efectivas para se fazer responsável pela sua própria condição de pessoa e cidadão. Essa consciência configurou novas formas de compreender as interações relacionais entre indivíduos e Estado, proporcionando contestação das bases de poder desigual e das estruturas deste poder. A história de Angola mostra um longo caminho para a independência e soberania do povo angolano nos últimos 60 anos, da criação de diferentes organizações para lutar pela independência da Nação até a configuração da nova constituição de 2010.

Pôde-se constatar em vários trabalhos que a constituição brasileira, promulgada em 1988, ampliou as condições de exercício da cidadania em diversos artigos, e esta-beleceu a descentralização como forma fundamental de acção em temas básicos como:

Page 128: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

128 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Doutrina

educação, saúde, assistência social, proteção à família, à criança, ao adolescente e ao idoso seguindo as tendências mundiais no campo do direito e as regras impostas pelos organismos internacionais, como reflexo dos processos de globalização ou mundialização. Assim, diversos trabalhos referenciados têm reforçado a convicção da existência de um espaço de acção para os segmentos organizados em comunidade. Entretanto, outros seguem mostrando que o legislado não aterrissa adequadamente na vida dos cidadãos. Por exemplo: os resultados apresentados no trabalho “Controlo e transparência na gestão do Programa Bolsa Família na 1ª Mostra Nacional de Estudos sobre o Programa Bolsa Família no Brasil (s/d)”.

Por outro lado, a abertura do espaço político em Angola, consagrada na constituição de 2010, criou as bases para o processo de reconfiguração do estado, sob a forma de descentralização política e administrativa. Assim percebemos, por exemplo, em declara-ções ao NG, o porta-voz da Comissão de Reforma da Justiça e do Direito, Raul Araújo, garantiu que os novos tribunais serão criados com base ao “princípio do gradualismo”, “[...] Vamos caminhar de forma conjugada com o sistema unificado de justiça. Prevê-se que no final deste ano e princípio do próximo, serão criados os primeiros tribunais de comarca”.6

A partir da revisão constitucional são renovados, no quadro da instituição de um Estado de Direito Democrático, os princípios de desconcentração e descentralização consagrando a separação de poderes e o pluralismo político. A Constituição de 2010 define os princípios que orientam a Administração Pública em Angola, nomeadamente a articulação entre a descentralização, a desconcentração e a manutenção de um poder de Estado caracterizado pelo controlo e intervenção.

Não há dúvidas de que as discussões a respeito da inserção da população nas instâncias de construção das políticas públicas têm se tornado cada vez mais evidentes nos cenários sociais e políticos, o que desperta o interesse de estudo em torno da demo-cratização da gestão pública. Compreende-se que a temática do gradualismo reveste-se de significativa relevância no momento em que a sociedade civil vem conquistando pers-pectivas de participação no poder decisório do Estado em todos os sectores da sociedade.

AS AUTARQUIAS: CONCEITO E CARACTERÍSTICAS

Pode-se conceituar autarquia baseando-se em três elementos necessários: perso-nalidade jurídica, forma de instituição e objecto.

Temos como principais características das autarquias:1. Criação por lei: Em ambos os países se reconhece pela lei fundamental, a Cons-

tituição. No Brasil é exigência que vem desde o Decreto-Lei nº 6.016/1943, repetindo-se no Decreto-Lei nº 200/1967 e constando agora do artigo 37, XIX, da Constituição;

6 ADÃO, Adriano. Reforma da justiça dá passos largos. Disponível em: <http://novagazeta.co.ao/?p=7386>.

Page 129: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

129PODER LOCAL - DESCONCENTRAÇÃO E DESCENTRALIZAÇÃO DO GOVERNO LOCAL

2. Personalidade jurídica pública: Ela é titular de direitos e obrigações próprios, distintos daqueles pertencentes ao ente que a instituiu: sendo pública, em ambos os países submete-se ao regime jurídico de direito público, quanto à criação, extinção, poderes, prerrogativas, privilégios, sujeições;

3. Capacidade de autoadministração: Angola não tem poder de criar o próprio direito, mas apenas a capacidade de se autoadministrar a respeito das matérias especí-ficas que lhes foram destinadas pela pessoa pública política que lhes deu vida. A outorga de patrimônio próprio é necessária, sem a qual a capacidade de autoadministração não existiria. Por isso o orçamento se converte no centro da discussão, evitando outras arestas do desenvolvimento social;

4. Especialização dos fins ou actividades: Coloca a autarquia entre as formas de descentralização administrativa por serviços ou funcional, distinguindo-a da descentra-lização territorial; o princípio da especialização impede de exercer actividades diversas daquelas para as quais foram instituídas; e

5. Sujeição a controlo ou tutela: É indispensável para que a autarquia não se desvie de seus fins institucionais.

Assim conceitua-se autarquia com a inclusão desses dados, da seguinte forma:A pessoa jurídica de direito público, criada por lei, com capacidade de autoad-

ministração para o desempenho de serviço público descentralizado, mediante controlo administrativo exercido nos limites da lei. As autarquias locais são pessoas colectivas territoriais, dotadas de órgãos representativos, que visam a prossecução de interesses próprios das populações respectivas.7

No trabalho,8 analisa o enfoque do professor Prof. Doutor Jorge Miranda numa das suas intervenções do Curso no domínio da administração local, identificando somente três sistemas são possíveis:

(I) O sistema da administração periférica do Estado;(II) O sistema da administração autárquica local;(III) O sistema da administração local regionalizada.Onde o terceiro sistema, corresponde a outro modelo que no entendimento deste

Prof. Doutor Jorge Miranda, corresponderá de alguma maneira aos municípios brasileiros, na realidade muito diferentes dos municípios portugueses. Não são já, em seu entender,

7 Na CRA Artigo 217º. Autarquias Locais: 1. As Autarquias Locais são pessoas colectivas territoriais correspondentes ao conjunto de residentes em certas circunscrições do território nacional e que asseguram a prossecução de interesses específicos resultantes da vizinhança, mediante órgãos próprios representativos das respectivas populações.

8 ALEXANDRINO, José Melo (Coord.). Legislação de direito municipal dos sistemas de língua portuguesa. O município na Constituição angolana. Trabalho de fim de curso - Curso de Pós-Graduação em direito municipal comparado dos países de língua oficial portuguesa (fev./abr. 2012). Organizado pelo Instituto de Ciências Jurídico-Políticas da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.

Page 130: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

130 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Doutrina

verdadeiras autarquias locais, visto que os municípios no Brasil têm atribuições e poderes que são de verdadeiras regiões autónomas.

Da mesma forma, não importa a diferenciação conceitual, a autarquia é uma entidade auxiliar da administração estatal autónoma e descentralizada. O que implica que o Estado exerça poder de fiscalização e tutela sobre a entidade com características autárquicas. Desde logo, as autarquias não têm poder legislativo (poder de criar leis). Pelo contrário, sujeitam-se a Lei criada pelo Estado. Assim, faz sentido que o Estado determine o âmbito e o alcance das autarquias bem como as suas atribuições, quer pela via constitucional quer pela via legal ordinária.

Por isso se pode dizer que entre autarquia,9 descentralização e desconcentração existe um estreito vínculo. A percepção deste vínculo, sua objectivação e projecção ao âmbito local se converte no centro de atenção para compreender o processo de gestão pública. Facilita-se sua análise e se pode orientar o controlo e a transparência na gestão pública.

Aqui é reconhecido aos residentes um poder autárquico original transferível por via eleitoral, com o fim exclusivo de prosseguir com interesses públicos por execução de actos administrativos. O que concretiza o princípio da participação dos particulares (populações e corporações) nas actividades da administração pública previsto no Direito administrativo vigente.

O que é um facto é que a noção brasileira de autarquia compreende entidades como os institutos públicos, ao igual no direito angolano, como não podia deixar de ser devido à influência directa em ambos os países do direito português.

O sistema democrático, implantado no Brasil, tem evidência a opção constitucional de escolher os dirigentes e legisladores públicos por voto popular. Entretanto, a democracia representativa nem sempre se traduz numa participação directa do cidadão nas decisões que tangem às políticas públicas, havendo assim, outras formas de gestão pública e social que possibilitam maior aproximação entre o povo e o processo de construção das políticas sociais.

O trabalho de Diogo Lordello de Mello (1993, p. 47) fala: “Outro aspecto muito interessante do sistema de governo municipal brasileiro é que as leis municipais são leis tanto no sentido material (como os decretos, as portarias, as resoluções) como no sen-tido formal; [...] Sendo lei no sentido amplo, as leis municipais que tratam de matéria de competência explícita e exclusiva do município, conforme consta da Constituição Federal - como, por exemplo, a organização dos serviços públicos locais - pode sobrepor-se à lei ordinária estadual, à Constituição estadual e à lei ordinária federal - não pode prevalecer,

9 Autarquias locais em Angola. Disponível em: <jukulomesso.blogspot.com/.../autarquias-locais-em-angola-publicado.ht...>. 17 dez. 2012. Quanto à organização, as autarquias locais são uma clara imitação do poder central do Estado com exclusão do poder Judicial exercido pelos [...].

Page 131: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

131PODER LOCAL - DESCONCENTRAÇÃO E DESCENTRALIZAÇÃO DO GOVERNO LOCAL

obviamente, sobre a Constituição Federal. Não é, [...] em que a autonomia municipal não se iguala à do Brasil, uma lei municipal, para entrar em vigor, não precisa de aprovação de qualquer autoridade das esferas superiores”.

Com a aprovação da Constituição da República de Angola em fevereiro de 2010 tornou imperiosa a adequação do quadro organizativo e funcional dos órgãos da admi-nistração local do Estado ao novo figurino constitucional. Nessa perspectiva percebe-se, que a Assembleia Nacional fez aprovar, nos termos do mandato que lhe é conferido pelo povo angolano e fundado na alínea “b” do artigo 161º da Constituição da República de Angola, a Lei nº 17/2010 de 29 de julho, que, em harmonia com a Carta Magna em vigor, estabelecia os princípios e as normas de organização e de funcionamento dos órgãos da administração local do Estado.

Segundo Benvindo Luciano (2012), “o êxito dos processos de descentralização implica a capacidade por parte do poder local, de gerir as receitas próprias que lhes são atribuídas. Contudo, tal como já foi referido, a descentralização em Angola está prescrita na Constituição da República de Angola, mas ainda não foi concretizada”. “Daí que o processo de desconcentração administrativa em Angola teve um pendor preponderante dos órgãos de comunicação social e a opinião pública a seguir os sucessivos debates no Parlamento sobre a emergência da descentralização e desconcentração na administração pública. Na verdade os serviços púbicos em Angola estão muitos centralizados e concentrados. Dada a preocupação dos cidadãos clientes, funcionários governantes e governandos, o governo informou e concretizou com a desconcentração para alguns municípios e o seu resultado servirá para a descentralização administrativa a seguir. Nos efeitos das políticas de descentralização e desconcentração administrativa no município do Lobito”. Disponível em: <http://mundo-aberto-luciano.blogspot.com/2015/01/efeitos-das-politicas-de.html>.

A actual Constituição da República de Angola10 dá ao conceito de poder local uma valência tridimensional, ao consagrar três formas organizativas: as autarquias locais, as instituições do poder tradicional e outras modalidades específicas de participação dos cidadãos, conforme disposto no nº 2 do artigo 213º.11

A leitura de uma ampla fonte documentário sobre o direito administrativo,12 a constituição de ambos os países quanto ao poder local permite assinalar que de igual forma-se manifesta em ambos países, que a autoridade tradicional exerce o poder não

10 Constituição da República de Angola define as autarquias locais como sendo “[...] pessoas colectivas territoriais correspondentes ao conjunto de residentes em certas circunscrições do território nacional e que asseguram a prossecução de interesses específicos resultantes da vizinhança, mediante órgãos próprios representativos das respectivas populações” (art. 217º).

11 TEIXEIRA, Carlos. Administração e governação local em Angola. História: debates e tendências, v. 11, n. 1, p. 47-64, jan./jun. 2011. Publicado no 1. sem. 2012.

12 Nosso principal referente foi o livro SARAIVA, José Sérgio. Direito administrativo. Parte 1. Franca, 08 mar. 2005.

Page 132: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

132 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Doutrina

exercido pelo Estado ao nível local e pelas autarquias. Pelo que a definição ex-lege do âmbito e o alcance das autarquias torna evidente o âmbito e o alcance do poder exercido pelas autoridades tradicionais.

Aqui é reconhecido aos residentes um poder autárquico original transferível por via eleitoral, com o fim exclusivo de prosseguir interesses públicos por execução de actos administrativos. O que concretiza o princípio da participação dos particulares: populações e corporações nas actividades da administração pública previsto no Direito administrativo vigente e segundo o terceiro princípio é o de que a Administração Pública precisa e se utiliza frequentemente de poderes discricionários na prática rotineira de suas actividades. Esses poderes não podem ser recusados ao administrador público, embora devam ser interpretados restritivamente quando colidem com os direitos individuais dos administrados (SARAIVA, 2005).

Existem, portanto, em ambos os países, diversas iniciativas de inserção popular na gestão e construção das políticas públicas. Algumas com carácter mais directivo onde, por iniciativa própria, a população se articula e busca o Estado para reivindicar seus direitos e requerer a implementação de políticas do seu interesse. Outras se dão por iniciativa do próprio Estado que pode adoptar uma metodologia de gestão que conte com a inserção da sociedade no processo de construção das políticas de governo.

A DESCONCENTRAÇÃO VERSUS A DESCENTRALIZAÇÃO EM ANGOLA

A descentralização não sendo uma panaceia para todos os males, tal como poderão sugerir alguns dos seus defensores ideologicamente mais afoitos, é, seguramente, um instrumento de governação mais eficaz e legítimo do que o actual centralismo da adminis-tração do Estado. Daí o interesse por um sistema que funciona como meio para assegurar, entre outros fins, a participação democrática, o desenvolvimento, e a segurança, quer civil, quer política, como revelam estudos recentes sobre experiências reais de descentralização.

Os desafios da desconcentração versus a descentralização em ambos os países acarretam também alguns espinhos na efectivação dos objectivos da administração e governação local, tais como:

a) Insucesso na prossecução dos seus poderes funcionais, limitações em recursos materiais e financeiros devido ao pobre orçamento;

b) Considerar-se, por vezes, que a descentralização é uma fórmula organizacional que pode agravar ainda mais as desigualdades sociais entre os municípios com diferentes níveis de desenvolvimento socioeconômico ou entre as cidades e o campo;

c) Os serviços públicos poderem manipular facilmente as decisões governamentais e administrativas em favor de interesses de fortes grupos privados ou políticos;

Page 133: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

133PODER LOCAL - DESCONCENTRAÇÃO E DESCENTRALIZAÇÃO DO GOVERNO LOCAL

d) A descentralização em nível local poder ser utilizada por instituições e outros níveis para fugir às suas responsabilidades públicas.

No caso concreto de Angola e segundo as ideias dos autores Petana e Orre (2014) sobre os Conselhos de Auscultação e Concertação Social (CACS)13 municipais revelam as seguintes evidências, que não são alheias às existentes nos municípios da província do Moxico:

- Os CACS são pouco conhecidos nos municípios;- Fazem reuniões de forma irregular, com fraco registo e quase inexistente publi-

citação das suas actividades;- São conselhos dominados pelo executivo, que é quem faz a selecção dos seus

membros;- Limitada participação e representação por grupos predefinidos;- Favorecimento dos sobas e homens em geral;- Quase inexistência de vozes críticas e de participação activa por causa não só

da cultura do medo, mas sim das culturas tradicionais e dos processos de transculturação que vive o povo angolano.

Em correspondência com as letras e espíritos da Constituição da República de Angola (CRA), a administração local do Estado é assegurada pelo governador na respec-tiva província directamente (artigo 201º, CRA), sem prejuízo da autonomia do poder local autárquico que se organiza no município (artigo 218º, 1, CRA) podendo, no entanto, haver autarquias “supra-municipais” (artigo 218º, 2, CRA) ou ainda “infra-municipais” (artigo 218º, 3, CRA), embora a organização político-administrativa do país, na actual Constituição, contemple expressamente apenas dois escalões; província e município, “podendo ainda, estruturar-se em comunas e em entes territoriais equivalentes, nos termos da Constituição e da lei” (artigo 5º, 3, CRA). Logo, é evidente que a Constituição da República de Angola (CRA) é clara em relação à definição do espaço de gestão, quer da administração local do Estado, quer do poder autónomo local. Por isso, o problema radicaria nas formas e vias para sua correcta implementação.

No entanto, a acção governativa, através de um dito processo de desconcentração, tem procurado fortificar e reforçar os municípios, como órgãos de administração local do Estado (Lei 17/2010), o que não contribui para a clarificação e a orientação sobre os caminhos da autarquização do país.

13 Em 2007, o Decreto-Lei 2/2007 referente à regulação da Administração Local do Estado alargou os Conselhos Administrativos à presença de actores não estatais, transformando-os em Conselhos de Auscultação e Concertação Social (CACS) aos níveis provincial, municipal e comunal. PESTANA, Nelson; ORRE, Aslak. Para quando as autarquias em Angola. Disponível em: <http://www.cmi.no/publications/file/5204-para-quando-as-autarquias-em-angola.pdf> e PESTANA, Nelson; ORRE, Aslak. As autarquias em Angola: como evitar os erros dos outros. In: Novo Jornal, Feb. 10, 2014. Disponível em: <http://www.novojornal.co.ao/Artigo/>.

Page 134: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

134 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Doutrina

A GESTÃO DAS INSTITUIÇÕES PÚBLICAS

O município e as comunas constituem o espaço onde as coisas acontecem. Nele se podem sentir os impactos dos problemas, mas também das soluções para a qualidade de vida. A construção de uma nova cultura institucional, voltada para a qualidade de vida no trabalho, para a adoção de critérios correctos e de práticas sustentáveis dos processos, em todos os níveis de governo, requer o comprometimento das instituições e dos servidores públicos que nelas trabalham.

Então, o município ao assumir esse papel importante de gestor público tem uma série de benefícios segundo o explica Filho (s.d:).

- Mais proximidade com os problemas e melhor acessibilidade dos usuários dos serviços públicos;

- Maior possibilidade de adaptação política e programas para as peculiaridades locais;

- Melhor utilização dos recursos e mais eficiência na implementação de políticas;- Favorecimento da participação da população em processos decisórios e melhores

condições para negociação de conflitos.No espaço do município se torna mais fácil garantir a participação da população

nas decisões, colocando em prática o princípio de que as pessoas devem compartilhar com o Estado a responsabilidade pela qualidade de vida, o desenvolvimento sustentável, a preservação do meio ambiente e da cultura das etnias angolanas, sem deixar de ser uma sou-a nação, garantindo a transparência nas acções por meio da uma boa gestão e o controlo social participativo.

No dia a dia municipal é preciso mais do que a existência de um ou dois órgãos para realizar a gestão pública. Deve-se estabelecer uma política voltada para a questão socioeconômica e para a formulação de instrumentos e ferramentas que tornem essa política efectiva com a participação de povo, o verdadeiro soberano, base e motor do desenvolvimento do país em democracia.

CONCLUSÕES

Uma acção do governo angolano, através do processo de desconcentração, tem procurado fortificar e reforçar os municípios e as comunas, como órgãos de administração local do Estado (Lei 17/2010), o que não contribui para a clarificação sobre os caminhos da autarquização do país.

A necessidade de garantir as capacidades técnicas e organizativas que sustentem a autarquia e os seus serviços, independentemente da cor política do seu executivo, fazen-do da autarquia um órgão público permanente e contínuo que serve os seus munícipes, independentemente da força política que temporariamente a lidera.

Page 135: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

135PODER LOCAL - DESCONCENTRAÇÃO E DESCENTRALIZAÇÃO DO GOVERNO LOCAL

Não há desenvolvimento sustentado, harmonioso com participação do povo se a gestão pública não garantir o controlo e a transparência no processo de desconcentração e descentralização. É notável que exista um fraco envolvimento das comunidades locais na gestão do processo de desenvolvimento, o que, vezes sem conta tem resultado na incapa-cidade de identificação de acções prioritárias e, sobretudo, na elaboração de projectos que possam ser elegíveis ao financiamento. É necessário o desenvolvimento das capacidades técnicas da autarquia e os seus serviços requer, da erradicação das lacunas legislativas, a elaboração de propostas que orientam e facilitam a gestão segundo as características próprias de cada autarquia e com controlo social.

REFERÊNCIAS

ALEXANDRINO, José Melo (Coord.). Legislação de direito municipal dos sistemas de língua portu-guesa. O município na Constituição angolana. Trabalho de fim de curso - Curso de Pós-Graduação em direito municipal comparado dos países de língua oficial portuguesa (fev./abr. 2012). Organizado pelo Instituto de Ciências Jurídico-Políticas da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.

CASTRO, Maria Helena Guimarães de. Governo local, processo político e equipamentos sociais: um balanço bibliográfico. BIB, Rio de Janeiro, n. 25, p. 56-82, 1. sem. 1988.

CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DE ANGOLA. 2010.

FARAH, Marta Ferreira Santos. Governo local e novas formas de provisão e gestão de serviços públicos no Brasil. v. 4, jun. 1997.

LUCIANO, Benvindo. Descentralização e desconcentração na administração pública em Angola. Escolar, 2012.

MELLO, Diogo Lordello de. O governo municipal brasileiro: uma visão comparativa com outros países. Revista de Administração Pública, v. 27, n. 4, p. 36-53, 1993. Disponível em: <www.bibliotecadigital.fgv.br/ojs>.

MINISTÉRIO DO PLANEJAMENTO E DO DESENVOLVIMENTO TERRITORIAL. Plano Nacional de Desenvolvimento 2013-2017. dez. 2012.

PESTANA, Nelson; ORRE, Aslak. As autarquias em Angola: como evitar os erros dos outros. In: Novo Jornal, Feb. 10, 2014. Disponível em: <http://www.novojornal.co.ao/Artigo/>.

RIBAS, Antonio Joaquim. Direito administrativo brasileiro (Obra premiada e approvada pela Reso-lução Imperial de 09 de Fevereiro de 1861 para uso das aulas das Faculdades de Direito do Recife e S. Paulo) Rio de Janeiro: F. L. Pinto & C., Livreiros-editores. 1866.

SANTOS, Fernanda Marinela de Souza. Resumo direito administrativo. [s.d.].

SARAIVA, José Sérgio. Direito administrativo. Parte 1. Franca, 08 mar. 2005.

Page 136: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

136 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Doutrina

SILVA, Juliana Saragiotto. Gestão do conhecimento e gestão de pessoas: desafios para as or-ganizações públicas. Campinas/SP: [s.n.], 2008. Disponível em: <http://www.saude.mt.gov.br/>.

STAFORD, Aline André e Silva et al. Autarquias e demais entidades da administração indireta. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XI, n. 59, nov. 2008.

TEIXEIRA, Carlos. Administração e governação local em Angola. História: debates e tendências, v. 11, n. 1, p. 47-64, jan./jun. 2011. Publicado no 1. sem. 2012.

Page 137: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

ATUAÇÃO DO MUNICÍPIO NO ATENDIMENTO DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA POR

MEIO DE RESIDÊNCIAS INCLUSIVAS*

ROLE OF THE MUNICIPALITY IN THE

CARE OF PERSONS WITH DISABILITIES THROUGH INCLUSIVE RESIDENCES**

LEONARDO DA ROCHA DE SOUZADoutor e Mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio

Grande do Sul - UFRGS. Procurador Municipal de Caxias do Sul/RS. Professor na Graduação e no Mestrado em Direito da Universidade

de Caxias do Sul - UCS. E-mail: [email protected].

SUMÁRIO: Introdução - 1. Direitos das pessoas com deficiência - 2. Residências inclu-sivas: 2.1. Definição de residências inclusivas; 2.2. Atribuições dos órgãos municipais; 2.3. Do cofinanciamento federal; 2.4. Criação dos serviços de residenciais inclusivos nos municípios - Considerações finais - Referências.

SUMMARY: Introduction - 1. Rights of persons with disabilities - 2. Inclusive residences: 2.1. Definition of inclusive residences; 2.2. Responsibilities of the municipalities; 2.3. The federal co-financing; 2.4. Creation of residential inclusive services in the municipalities - Final considerations - References.

* Este artigo não teria sido construído sem as proveitosas discussões e reuniões promovidas no âmbito do Município de Caxias do Sul para solucionar o atendimento em Residências Inclusivas. Destaco os seguintes profissionais: Dilma Tessari (médica e Secretária Municipal da Saúde), Marlês Stela Sebben Andreazza (pedagoga e presidente da Fundação de Assistência Social), Lisandra Farioli da Costa Stephanou (advogada e assessora jurídica da Secretaria Municipal da Saúde), Eduardo Mazzotti dos Reis (procurador municipal da Fundação de Assistência Social) e Fernanda Legnaghi (psicóloga da Fundação de Assistência Social).

** Data de recebimento do artigo: 04.08.2015.Datas de pareceres de aprovação: 07.08.2015 e 15.08.2015.Data de aprovação pelo Conselho Editorial: 18.08.2015.

Page 138: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

138 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Doutrina

RESUMO: O município tem recebido diversas atribuições, seja da Constituição Federal, seja de normas infraconstitucionais. Uma dessas atribuições é o cuidado com pessoas com deficiência, que é realizado, dentre outras formas, por meio dos Serviços de Acolhimento Institucional para Jovens e Adultos com deficiência, conhecidos como Residências Inclusivas. Neste artigo pretende-se abordar esse serviço público e indicar formas para sua criação. Será utilizado o método dedutivo e a técnica de pesquisa de documentação indireta.

PALAVRAS-CHAVE: Pessoas com deficiência; município; serviços públicos; resi-dências inclusivas.

ABSTRACT: The municipality has received several assignments, either the Federal Constitution, either infra-constitutional norms. One of these functions is the care of persons with disabilities, which is done in Brazil, among other ways, through the “Serviços de Acolhimento Institucional para Jovens e Adultos com deficiência”, known as “Residências Inclusivas”. This article is intended to study this public service and indicate ways for its creation. It will use the deductive method and the indirect documentation search technique.

KEYWORDS: People with disabilities; municipality; public services; inclusive residences.

INTRODUÇÃO

A Constituição Federal, em seu art. 5º, estabelece que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. No entanto, sabemos que essa igualdade não existe na prática. Mesmo nos tempos atuais, em que verificamos um grande avanço tecnológico e de consciência, somos informados de situações claras de tratamento desigual.

Em virtude da existência de grupos de pessoas que têm desvantagens na sociedade, nosso sistema jurídico tem se empenhado em criar regras que equilibram os relacionamen-tos humanos. Em 1943 entrou em vigor a Consolidação das Leis do Trabalho, conferindo diversos direitos aos trabalhadores, que devem ser beneficiados quando estiverem em juízo contra empregadores. Percebemos, nesse caso, que a tentativa da lei era equilibrar uma relação em que as empresas sempre tiveram vantagens, em virtude de seu poderio econômico. A mesma situação ocorre na relação entre consumidor e fornecedores de bens e serviços, o que determinou o surgimento do Código de Defesa do Consumidor. Quando analisamos a atuação do Poder Público, também é possível entender a preocupação com a proteção de outras classes de pessoas, como índios, negros, mulheres, pessoas com deficiência, entre outros.

Nosso objetivo, neste artigo, é analisar um instrumento de atendimento das pessoas com deficiência, denominado “Serviços de Acolhimento Institucional para Jovens e Adultos com deficiência”, e que passaram a ser conhecidos como Residências Inclusivas. O método

Page 139: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

139ATUAÇÃO DO MUNICÍPIO NO ATENDIMENTO

de abordagem empregado é o dedutivo, partindo-se do geral da doutrina sobre os direitos das pessoas com deficiência para o particular da implementação das residências inclusivas por parte dos Municípios. A técnica de pesquisa aplicada é a de documentação indireta, com a revisão bibliográfica e análise da legislação sobre o tema.

Para desenvolver o tema, iniciamos abordando os direitos das pessoas com defi-ciência de forma geral (1), passando pelas normas constitucionais e pela legislação sobre assistência social. No tópico seguinte, analisa-se as residências inclusivas (2), iniciando com sua definição (2.1) e com as atribuições dos órgãos Municipais na sua implementação (2.2). Após, trata-se do cofinanciamento federal (2.3), da possibilidade de delegação do serviço de residenciais inclusivos, finalizando com a forma como pode ocorrer a criação dos serviços de residenciais inclusivos nos municípios (2.4).

1. DIREITOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA

Antes de enfrentar a criação das residências inclusivas, objeto central deste artigo, analisa-se, brevemente, os direitos das pessoas com deficiência previstos na Constituição Federal, que podem ser assim resumidos:

a) na área da assistência social e previdenciária: obrigação do Estado de promover programas de prevenção e atendimento especializado para os que têm deficiência física, sensorial ou mental, bem como de integração social do adolescente com deficiência, “me-diante o treinamento para o trabalho e a convivência, e a facilitação do acesso aos bens e serviços coletivos”, com a eliminação de preconceitos e obstáculos arquitetônicos, com a facilitação de acesso adequado em edifícios e veículos de transporte coletivo (art. 227, § 1º, II, § 2º); dever de criação de programas de assistência social que promovam a habilitação e reabilitação das pessoas com deficiência e a “promoção de sua integração à vida comunitária” (art. 203, IV) e a garantia de um benefício previdenciário às pessoas com deficiência “que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família” (art. 203, V);

b) em assuntos relativos ao trabalho e educação: reserva de vagas em cargos e empregos públicos (art. 37, VIII); proibição de qualquer discriminação em relação a salário e critérios de admissão (art. 7º, XXXI); dever do Estado em garantir “atendimento educacional especializado [...] preferencialmente na rede regular de ensino” (art. 208, III);

c) em relação à acessibilidade: a previsão de criação de lei “sobre a adaptação dos logradouros, dos edifícios de uso público e dos veículos de transporte coletivo atualmente existentes a fim de garantir acesso adequado às pessoas portadoras de deficiência” (art. 244).

Outra norma considerada constitucional, específica sobre pessoas com deficiência, é a “Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência” ratificada

Page 140: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

140 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Doutrina

pelo Brasil por meio do Decreto Legislativo nº 186, de 9 de julho de 2008, tendo recebido status de emenda constitucional. A possibilidade de “os tratados e convenções internacio-nais sobre direitos humanos” serem “equivalentes às emendas constitucionais” depende da adoção dos procedimentos previstos no § 3º do art. 5º da Constituição Federal (“§ 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.”). Assim, mesmo que não sejam inseridos na Constituição Federal por meio de uma Emenda Constitucional, os tratados podem ter o mesmo status de uma norma constitucional. Para isso, o texto constitucional aponta dois requisitos: a) que os tratados e convenções internacionais versem sobre direitos humanos; b) que sejam aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros.1

A competência para legislar sobre seguridade social é privativa da União (art. 22, XXIII, CF), incluindo-se na expressão “seguridade social [...] um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social” (art. 194, caput, CF). No desempenho de sua competência privativa, a União promulgou a Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993, que “Dispõe sobre a organização da Assistência Social e dá outras providências”.

A competência para legislar sobre “proteção e integração social das pessoas por-tadoras de deficiência” é compartilhada entre União, Estados e Distrito Federal (art. 24, XIV, CF). Por se tratar de legislação concorrente, compete à União estabelecer as normas gerais (art. 24, § 1º, CF).

O reconhecimento dos direitos das pessoas com deficiência tem levado à criação de diversos instrumentos para sua efetividade, dentre os quais as Residências Inclusivas, abordadas no próximo tópico.

2. RESIDÊNCIAS INCLUSIVAS

Ingressando no objetivo central deste artigo, passa-se à análise do significado da expressão “Residências Inclusivas”, verificando-se as atribuições recebidas pelos Municípios na realização desse serviço e a outras exigências e possibilidades no desen-volvimento desse tema.

1 Nesse sentido explica Valerio de Oliveira Mazzuoli: “uma vez aprovados pelo quórum que estabelece o § 3º do art. 5º da Constituição, os tratados de direitos humanos ratificados integrarão formalmente a Constituição, uma vez que serão equivalentes às emendas constitucionais. Contudo, frise-se que essa integração formal dos tratados de direitos humanos no ordenamento brasileiro não abala a integração material que esses mesmos instrumentos já apresentam desde a sua ratificação e entrada em vigor no Brasil. Dizer que um tratado equivale a uma emenda constitucional significa dizer que ele tem a mesma potencialidade jurídica que uma emenda”. (O novo § 3º do art. 5º da Constituição e sua eficácia, p. 107 e Curso de direito internacional público, p. 837-838).

Page 141: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

141ATUAÇÃO DO MUNICÍPIO NO ATENDIMENTO

2.1. Definição de residências inclusivas

Como forma de atendimento dos direitos das pessoas com deficiência, foram criadas as Residências Inclusivas, cujo objetivo é prestar “Serviço de Acolhimento Institucional para Jovens e Adultos com deficiência, em situação de dependência”.2

As residências inclusivas fazem parte do Plano Viver sem Limite, nome dado ao Plano Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência, criado pelo Decreto Federal nº 7.612, de 17 de novembro de 2011. A finalidade desse plano é “promover, por meio da integração e articulação de políticas, programas e ações, o exercício pleno e equitativo dos direitos das pessoas com deficiência” tendo como base a “Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência” ratificada pelo Brasil por meio do Decreto Legislativo nº 186, de 9 de julho de 2008, com status de emenda constitucional.

Além da deficiência e da situação de dependência, são requisitos para atendimen-to em residenciais inclusivos, a ausência “de condições de autossustentabilidade ou de retaguarda familiar temporária ou permanente”, ou o fato de estarem “em processo de desinstitucionalização de instituições de longa permanência”.3

A Resolução nº 6, de 13 de março de 2013, expedida pelo Conselho Nacional de Assistência Social, trata das residências inclusivas. O art. 2º daquela Resolução informa que a “Residência Inclusiva é uma unidade que oferta Serviço de Acolhimento Institucional, no âmbito da Proteção Social Especial de Alta Complexidade do SUAS”. A essência das residências inclusivas, assim, deve ser prestada por órgãos municipais vinculados à área de assistência social. Alguns municípios contam com secretarias para atendimento dessa área; outros optaram pela criação de pessoas jurídicas com essa finalidade.

O direito à assistência social está previsto no art. 194 da Constituição Federal: “A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social”. Esse direito é regulamentado pela Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993, conforme previsto em seu art. 1º:

Art. 1º A assistência social, direito do cidadão e dever do Estado, é Política de Seguridade Social não contributiva, que provê os mínimos sociais, realizada através de um conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade, para garantir o atendimento às necessidades básicas.

A assistência social visa, assim, garantir os mínimos sociais por meio de um conjunto integrado de ações que envolvem o Poder Público e a sociedade, visando o atendimento

2 Art. 1º da Portaria Interministerial nº 3, de 21 de setembro de 2012, expedida pelo Ministério de Estado do Desenvolvimento Social e Combate à Fome e pelo Ministério de Estado da Saúde.

3 Art. 2º, parágrafo único, da Portaria Interministerial nº 3/2012.

Page 142: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

142 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Doutrina

das necessidades básicas. Dentre os objetivos previstos na Lei de Assistência Social, estão os seguintes:

Art. 2º A assistência social tem por objetivos:I - a proteção social, que visa à garantia da vida, à redução de danos e à prevenção da incidência de riscos, especialmente:a) a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice;d) a habilitação e reabilitação das pessoas com deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária;

Nos casos de residências inclusivas, os usuários não precisam de uma assistência diuturna na área da saúde, mas um serviço de assistência na área social, que exige o fornecimento de necessidades básicas. O atendimento na área de saúde dependerá das necessidades de cada usuário.

Para utilizar o serviço de residências inclusivas é necessário cumprir os seguintes requisitos, cumulativos e obrigatórios, conforme art. 2º, § 1º, da Resolução nº 6, de 13 de março de 2013, expedida pelo Conselho Nacional de Assistência Social: a) ser jovem ou adulto com deficiência; b) estar em situação de dependência; e c) não dispor de condições de autossustentabilidade ou de retaguarda familiar. São acrescentados, pelo mesmo dis-positivo normativo, outros requisitos, desta vez facultativos e não cumulativos: d) ser bene-ficiário do Benefício de Prestação Continuada;4 e) estar institucionalizado em serviços de acolhimento em desacordo com os padrões tipificados e que necessitem ser reordenados.

2.2. Atribuições dos órgãos municipais5

Tendo em vista que as residências inclusivas fazem parte do Plano Viver sem Limite, sua execução é realizada pela União em colaboração com os demais membros da federação. É o que se depreende da leitura do parágrafo único do art. 1º do Decreto Federal nº 7.612, de 17 de novembro de 2011: “O Plano Viver sem Limite será executado pela União em colaboração com Estados, Distrito Federal, Municípios, e com a sociedade”.

Para definir as atribuições de cada órgão municipal, o Ministério de Estado do Desenvolvimento Social e Combate à Fome e o Ministério de Estado da Saúde expedi-ram a Portaria Interministerial nº 3, de 21 de setembro de 2012. O objetivo da Portaria é viabilizar a parceria entre os órgãos de assistência social e de saúde, respectivamente

4 Esse benefício está previsto no art. 20 da Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993, que “Dispõe sobre a organização da Assistência Social e dá outras providências”: “Art. 20. O benefício de prestação continuada é a garantia de um salário-mínimo mensal à pessoa com deficiência e ao idoso com 65 (sessenta e cinco) anos ou mais que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção nem de tê-la provida por sua família”. (Redação dada pela Lei nº 12.435, de 2011). O Decreto nº 6.214, de 26 de setembro de 2007, regulamenta o benefício de prestação continuada.

5 De acordo com a Portaria Interministerial nº 3, de 21 de setembro de 2012, expedida pelo Ministério de Estado do Desenvolvimento Social e Combate à Fome e pelo Ministério de Estado da Saúde.

Page 143: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

143ATUAÇÃO DO MUNICÍPIO NO ATENDIMENTO

vinculados ao Sistema Único da Assistência Social (SUAS) e ao Sistema Único de Saúde (SUS) (art. 1º). As diretrizes desse ato normativo permitem aos gestores locais de cada área (assistência social e saúde) planejarem, conjuntamente, as ações voltadas aos usuários do “Serviço de Acolhimento Institucional para Jovens e Adultos com Deficiência, em situação de dependência, em Residências Inclusivas” (art. 5º).

As atribuições dos Municípios na área de assistência social compreendem:

I - ofertar de forma qualificada proteção integral aos jovens e adultos com deficiência em situação de dependência;II - promover a inclusão de jovens e adultos com deficiência, em situação de dependência, na vida comunitária e social;III - contribuir para a interação e superação de barreiras; eIV - contribuir para a construção progressiva da autonomia, com maior independência e protagonismo no desenvolvimento das atividades da vida diária.6

Na área da saúde, os Municípios devem disponibilizar apoio matricial das equipes de saúde da atenção básica, “Núcleo de Apoio à Saúde da Família - NASF, atenção do-miciliar e centros especializados em reabilitação, bem como os demais pontos das redes de atenção à saúde presentes na Região de Saúde”. O objetivo desse apoio matricial é a promoção da “qualidade de vida aos jovens e adultos com deficiência, em situação de dependência, por meio de ações de educação em saúde, fomento ao autocuidado e promoção de autonomia”. As Unidades Básicas de Saúde (UBS) da região da Residência Inclusiva ficam responsáveis por prestar serviços de saúde que se fizerem necessários aos seus usuários.7

2.3. Do cofinanciamento federal

Quando a União criou o Serviço de Acolhimento Institucional para Jovens e Adultos com deficiência, previu a possibilidade de repassar verba federal aos Municípios, como consta nos “considerandos” da Resolução nº 6, de 13 de março de 2013, expedida pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome:

CONSIDERANDO a Resolução CNAS nº 7, de 12 de abril de 2012, que dispõe sobre o cofinanciamento federal para apoio à oferta dos Serviços de Proteção Social Especial para Pessoas com Deficiência, em situação de dependência, e suas famílias, em Centros-Dia de Referência e em Residências Inclusivas;

Detalhes sobre esse cofinanciamento federal estão previstos no art. 3º da men-cionada resolução:

6 Art. 3º e incisos da Portaria Interministerial nº 3/2012.7 Art. 4º e parágrafos da Portaria Interministerial nº 3/2012.

Page 144: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

144 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Doutrina

Art. 3º O Serviço de Acolhimento Institucional para Jovens e Adultos com deficiência, em situação de dependência, terá como referência o valor de cofinanciamento federal mensal de R$ 10.000,00 (dez mil reais) por unidade de Residência Inclusiva.

A Resolução nº 5, de 8 de junho de 2011, da Comissão Intergestores Tripartite - CIT do Governo Federal, Padroniza prazo para a demonstração das implantações dos equi-pamentos públicos da assistência social e da prestação dos serviços socioassistenciais e dá outras providências, prevê, em seu art. 1º:

Art. 1º Os municípios e Distrito Federal que realizarem o aceite da expansão de cofinanciamento federal dos serviços socioas-sistenciais deverão demonstrar a implantação dos equipamentos públicos e a prestação dos serviços no prazo de 01 (um) ano a contar do início do cofinanciamento, podendo ser prorrogado por igual período mediante apresentação de justificativa válida ao MDS por meio de ofício encaminhado à Secretaria Nacional de Assistência Social.

Assim, o Município tem a possibilidade de oferecer os serviços de residenciais inclusivos no prazo de 1 (um) ano após o início do cofinanciamento. Essa seria uma pos-sibilidade de os Municípios organizarem seus orçamentos, diante dos inúmeros compro-missos sociais que lhes são impostos pelas normas constitucionais e infraconstitucionais.

Repete-se, aqui, o que tem ocorrido em inúmeras ocasiões: uma norma nacional cria uma demanda para o Município sem a devida contrapartida financeira.

A realidade política atual tem caracterizado uma ampla de-pendência do Município em relação à União, graças a maior acumulação das receitas públicas nas mãos da União. Apro-veitando-se dessa realidade, a União estabelece os requisitos para liberação de verbas públicas aos Municípios, fiscalizando sua aplicação.8

O fato de haver a previsão de um cofinanciamento federal apenas confirma essa constatação, já que, de um lado, a União percebe a necessidade de auxílio financeiro aos Município, mas, de outro lado, a verba recebida pelos Municípios não é suficiente, e seu recebimento não é garantido.

2.4. Criação dos serviços de residenciais inclusivos nos municípios

Para a criação dos serviços de residenciais inclusivos é importante lembrar a previsão legal. O atendimento de adultos com deficiência também pode ser depreendido

8 SOUZA, Leonardo da Rocha de. Interesse local versus peculiar interesse, p. 117.

Page 145: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

145ATUAÇÃO DO MUNICÍPIO NO ATENDIMENTO

da Lei Federal nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993, que dispõe sobre a organização da Assistência Social:9

Art. 2º A assistência social tem por objetivos:I - a proteção social, que visa à garantia da vida, à redução de danos e à prevenção da incidência de riscos, especialmente:a) a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice;b) o amparo às crianças e aos adolescentes carentes;c) a promoção da integração ao mercado de trabalho;d) a habilitação e reabilitação das pessoas com deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária;II - a vigilância socioassistencial, que visa a analisar territorial-mente a capacidade protetiva das famílias e nela a ocorrência de vulnerabilidades, de ameaças, de vitimizações e danos;III - a defesa de direitos, que visa a garantir o pleno acesso aos direitos no conjunto das provisões socioassistenciais.

Portanto, a Lei nº 8.742/93 contém uma autorização legislativa para que ocorram as políticas públicas que envolvam assistência social no Município, inclusive para aten-dimento de adultos com deficiência, dependentes e sem familiares. Sob nosso ponto de vista, não seria necessário criar uma lei para criação desse serviço. A desnecessidade de elaboração de lei, no entanto, não afasta a necessidade de tratar desse assunto por meio de Decreto, como será visto a seguir.

A forma como será organizado o serviço de longa permanência para adultos pode ser feito por Decreto, como uma “competência discricionária [...] dependente, acessória e secundária em relação à competência legislativa”.10 Nesse sentido, pode-se observar a previsão constitucional destinada ao Presidente da República, normalmente repetida nas Leis Orgânicas dos Municípios e aplicável ao Prefeito Municipal:

Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:IV - sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução;VI - dispor, mediante decreto, sobre:a) organização e funcionamento da administração federal, quan-do não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos;

Assim, aplicando-se o raciocínio acima ao Município, o Prefeito Municipal pode expedir decretos para detalhar a execução de uma lei, inclusive podendo dispor da orga-nização e funcionamento da administração municipal. E a possibilidade de detalhamento 9 Optamos por referir à Lei de Assistência Social, mas existem diversas outras normas relacionadas ao

assunto, especialmente aqueles que se referem ao atendimento dos direitos das pessoas com deficiência.10 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo, p. 248.

Page 146: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

146 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Doutrina

do atendimento de adultos por decreto não afasta a observância do princípio da legalidade. Conforme ensina Marçal Justen Filho, “o princípio da legalidade significa a ausência de poder normativo para Administração instituir norma jurídica que não tenha sido, antes, de-lineada legislativamente”.11 No presente caso, como visto acima, o atendimento de adultos com deficiência já está previsto na Lei Federal nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993, que dispõe sobre a organização da Assistência Social. O que falta é detalhar a forma como o atendimento desse público será feito, o que pode ser feito por Decreto.

A previsão de instituição por Decreto de serviços socioassistenciais, como o atendimento de adultos com deficiência, está previsto no § 1º do art. 23 da Lei Federal nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993, que dispõe sobre a organização da Assistência Social, nos seguintes termos:

Art. 23. Entendem-se por serviços socioassistenciais as ativida-des continuadas que visem à melhoria de vida da população e cujas ações, voltadas para as necessidades básicas, observem os objetivos, princípios e diretrizes estabelecidos nesta Lei.§ 1º O regulamento instituirá os serviços socioassistenciais.

Para se ter uma ideia, podemos verificar que a União utilizou uma resolução para criar as residências inclusivas, a Resolução nº 6, de 13 de março de 2013, expedida pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. O art. 2º daquela Resolução informa que a “Residência Inclusiva é uma unidade que oferta Serviço de Acolhimento Institucional, no âmbito da Proteção Social Especial de Alta Complexidade do SUAS”. Assim, percebe-se que a própria União não criou as residências inclusivas por Lei, mas por resolução ministerial. Como, no município, não temos ato normativo equivalente às resoluções ministeriais, as residências inclusivas podem ser detalhadas por Decreto.

Inicialmente, sugerimos a redação abaixo para os “Considerandos” do Decreto, que auxiliam a verificar a autorização legal para o serviço de residências inclusivas e exterioriza a justificativa para sua criação. Sugerimos a seguinte redação para os “Considerandos”:

Considerando a atribuição da Fundação de Assistência Social (ou da Secretaria de Assistência Social, conforme o caso) con-tida no art. ___ da Lei Municipal nº _____, de gerir a política municipal de assistência social, por meio do planejamento, coordenação, execução, articulação, monitoramento e avaliação da política municipal de assistência social;Considerando o art. 2º da Lei Federal nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993, que dispõe sobre a organização da Assistência

11 Curso de direito administrativo. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 260. Continua o autor: “Não há defeito se a lei produzir a descrição sumária de uma hipótese e estabelecer os aspectos fundamentais do mandamento, atribuindo à Administração Pública competência para, em face das circunstâncias e tomando em vista os critérios mais apropriados, editar atos que complementem a disciplina normativa”. (Op. cit., p. 261).

Page 147: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

147ATUAÇÃO DO MUNICÍPIO NO ATENDIMENTO

Social, que estabelece os objetivos do Poder Público na área da assistência social;Considerando a possibilidade de instituição por Decreto de serviços socioassistenciais, como as residências inclusivas, conforme previsto no § 1º do art. 23 da Lei Federal nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993, que dispõe sobre a organização da Assistência Social;Considerando o art. 84, IV e VI, da Constituição Federal que, aplicados à realidade municipal, autorizam o Prefeito Municipal a expedir decretos para detalhar a execução de leis, inclusive podendo dispor da organização e funcionamento da adminis-tração municipal;Considerando o Plano Viver sem Limite, nome dado ao Plano Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência, criado pelo Decreto Federal nº 7.612, de 17 de novembro de 2011, que tem como finalidade “promover, por meio da integração e articulação de políticas, programas e ações, o exercício pleno e equitativo dos direitos das pessoas com deficiência”;Considerando a Resolução nº 6, de 13 de março de 2013, ex-pedida pelo Conselho Nacional de Assistência Social, que trata das residências inclusivas e seu art. 2º que define residência inclusiva como “uma unidade que oferta Serviço de Acolhimento Institucional, no âmbito da Proteção Social Especial de Alta Complexidade do SUAS”.

Alerte-se, no entanto, que a criação do serviço de residências inclusivas por meio de decreto não afasta a necessidade de sua previsão nas leis orçamentárias, como previsto na Constituição Federal:

Art. 165. Leis de iniciativa do Poder Executivo estabelecerão:I - o plano plurianual;II - as diretrizes orçamentárias;III - os orçamentos anuais.§ 1º A lei que instituir o plano plurianual estabelecerá, de forma regionalizada, as diretrizes, objetivos e metas da administração pública federal para as despesas de capital e outras delas decor-rentes e para as relativas aos programas de duração continuada.§ 2º A lei de diretrizes orçamentárias compreenderá as metas e prioridades da administração pública federal, incluindo as despesas de capital para o exercício financeiro subsequente, orientará a elaboração da lei orçamentária anual, disporá sobre as alterações na legislação tributária e estabelecerá a política de aplicação das agências financeiras oficiais de fomento.§ 3º O Poder Executivo publicará, até trinta dias após o en-cerramento de cada bimestre, relatório resumido da execução orçamentária.

Page 148: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

148 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Doutrina

§ 4º Os planos e programas nacionais, regionais e setoriais previstos nesta Constituição serão elaborados em consonância com o plano plurianual e apreciados pelo Congresso Nacional.§ 5º A lei orçamentária anual compreenderá:I - o orçamento fiscal referente aos Poderes da União, seus fundos, órgãos e entidades da administração direta e indireta, inclusive fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público;II - o orçamento de investimento das empresas em que a União, direta ou indiretamente, detenha a maioria do capital social com direito a voto;III - o orçamento da seguridade social, abrangendo todas as entidades e órgãos a ela vinculados, da administração direta ou indireta, bem como os fundos e fundações instituídos e mantidos pelo Poder Público.

Mesmo que os dispositivos acima se refiram à União, eles também se aplicam ao Município e costumam constar das Leis Orgânicas Municipais com as devidas adaptações. Assim, é necessário prever no Plano Plurianual diretrizes, objetivos e metas do órgão ou entidade municipal que sediará o serviço de residências inclusivas, instituindo-o como programa, projeto ou atividade daquele órgão ou entidade. Essa previsão trará reflexos na lei de diretrizes orçamentárias e na lei orçamentária anual, que deverão ser adaptadas às alterações ocorridas no PPA.

Em relação à prestação do serviço, a Portaria Interministerial nº 3, de 21 de setembro de 2012, acima mencionada, prevê a possibilidade de os Municípios atenderem diretamente os usuários de residenciais inclusivos, ou delegar esse serviço (art. 2º). A exigência é que a unidade pública ou privada que prestar esse serviço deve ser integrante da rede socio-assistencial do Sistema Único da Assistência Social (SUAS) (art. 2º). Da mesma forma, o art. 10 da Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993, prevê a possibilidade de os entes federativos celebrarem “convênios com entidades e organizações de assistência social, em conformidade com os Planos aprovados pelos respectivos Conselhos”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A criação das residências inclusivas visa atender as pessoas com deficiência, cum-prindo um dever moral com essas pessoas. O ideal seria não precisar de uma imposição normativa para a criação desse serviço, mas que houvesse na sociedade um ethos comum, que levasse cada um a abrir mão de suas preferências para atender as necessidades dos outros. Esse ethos comum cria uma série de identidades e de afinidades entre aqueles que compartilham as mesmas histórias de vida. As sociedades atuais, no entanto, são complexas, marcadas pela diversidade, o que implica em abrir o horizonte para vislumbrar pessoas com histórias de vida diferentes, pois existem tradições e pontos de vista diversos convivendo em uma mesma sociedade.

Page 149: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

149ATUAÇÃO DO MUNICÍPIO NO ATENDIMENTO

De qualquer forma, até mesmo por força do princípio da legalidade, a Administração Pública só pode fazer o que está previsto na lei. Como o atendimento das pessoas com deficiência já está previsto na Constituição Federal e em normas infraconstitucionais, não é necessário elaborar uma lei específica para criação das residências inclusivas. O público alvo desse serviço já deve ser atendido pelo Poder Público por determinação das normas já existentes. Esse serviço pode ser detalhado por decreto, instrumento próprio para organização administrativa do Poder Executivo. Há necessidade, apenas, que as leis orçamentárias sejam alteradas para viabilizar a criação desse serviço.

A pessoa com deficiência deve ser atendida por diversos órgãos e entidades da Administração Pública. No entanto, um deles deve ser o gestor, contando com o apoio dos demais. Conforme fundamentação lançada neste texto, o gestor das residências inclusivas no Município deve ser o órgão ou entidade de Assistência Social, que deve atuar com suporte de outros profissionais, geralmente da área da saúde. Dentre as atribuições da área de assistência social, poderia constar um dispositivo com a seguinte redação no decreto que venha a regulamentar o serviço: “Disponibilizar equipe técnica mínima composta por assistente social, nutricionista e fisioterapeuta, com suporte de profissionais da área da saúde, como enfermeiro, técnico de enfermagem e médico”.

Justamente diante dessa preponderância para a área da assistência social, se o Município contar com entidade própria para essa finalidade (integrante da Administração Indireta), é necessário que ela faça parte de eventuais ações judiciais que discutam esse assunto. Dizemos isso por que temos visto, em nossa prática profissional, que o Ministério Público tem ingressado com ações contra o Município (Administração Direta) para que este atenda o usuário de residências inclusivas, o que traz inúmeras dificuldades de alocação de servidores e valores para o atendimento do pedido. Também gera uma dificuldade prática, pois, quando a Procuradoria da Administração Direta recebe a petição inicial com eventual decisão liminar, somente lhe cabe encaminhar ofício à entidade de Assistência Social para que essa cumpra a decisão. Assim, não é concebível que a entidade de Assistência Social não faça parte do polo passivo dessas ações. Se internamente já foi decidido que a entidade da assistência social atenderá esse serviço, não tem sentido que o Município (Administração Direta) apresente a contestação e interponha eventuais recursos para afastar multas pelo descumprimento. O Município (em geral) demonstrará unidade quando, em casos como esses, o ente público responsável assumir sua atribuição e ingressar no polo passivo da ação judicial.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Ministério de Estado do Desenvolvimento Social e Combate à Fome e o Ministério de Estado da Saúde. Portaria Interministerial nº 3, de 21 de setembro de 2012. Diário Oficial da União, Seção 1, nº 185, 24 de setembro de 2012.

BRASIL. Conselho Nacional de Assistência Social. Resolução nº 6, de 13 de março de 2013. Diário Oficial da União, Seção 1, nº 56, 22 de março de 2013.

Page 150: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

150 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Doutrina

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 05 de outubro de 1988.

BRASIL. Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993. Dispõe sobre a organização da Assistência Social e dá outras providências. Diário Oficial da União, 8 de dezembro de 1998.

BRASIL. Decreto nº 6.214, de 26 de setembro de 2007. Regulamenta o benefício de prestação continuada da assistência social devido à pessoa com deficiência e ao idoso de que trata a Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993, e a Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003, acresce parágrafo ao art. 162 do Decreto nº 3.048, de 6 de maio de 1999, e dá outras providências. Diário Oficial da União, 28 de setembro de 2007.

JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.

MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de direito internacional público. 5. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.

______. O novo § 3º do art. 5º da Constituição e sua eficácia. Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 42, n. 167, p. 93-114, jul./set. 2005.

SOUZA, Leonardo da Rocha de. Interesse local versus peculiar interesse: análise da atuação dos municípios nas constituições republicanas brasileiras. In: Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, FGV Direito Rio, v. 261, p. 115-145, set./dez. 2012.

Page 151: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

A PROBLEMÁTICA DOS CONCEITOS INDETERMINADOS E DA DISCRICIONARIEDADE TÉCNICA*

THE PROBLEM OF INDETERMINATE CONCEPTS AND TECHNICAL DISCRETION

SÉRGIO AUGUSTINDoutor em Direito do Estado pela UFPR. Professor universitário.

Juiz de Direito/RS. E-mail: [email protected].

SUMÁRIO: Introdução - A jurisdição brasileira: o modelo adotado pela Constituição Federal - Princípios da administração pública - Discricionariedade nos atos da adminis-tração pública - Entendimento doutrinário acerca da conceituação da discricionariedade - Ocorrência da discricionariedade administrativa - A problemática dos conceitos inde-terminados e da discricionariedade técnica - Considerações finais - Referências.

SUMMARY: Introduction - The Brazilian jurisdiction: the model adopted by the Federal Constitution - Performance of public administration: public administration principles - Discretion in the acts of the public administration - Doctrinal understanding about the concept of discretion - Occurrence of administrative discretion - The problem of indeterminate concepts and technical discretion - Final considerations - References.

RESUMO: A admissão do controle constitucional dos atos governamentais e discricionários não é pacífica, entendendo alguns que tais atos refogem à alçada da revi-são judicial, uma vez que seriam eles a expressão da vontade do próprio poder público, inserindo a vontade política do governante legitimado. Outra parte da doutrina não admite que determinados atos e ações possam ficar fora da esfera do controle da Constituição Federal (CF). A CF brasileira adotou a jurisdição única para o controle dos atos dos particulares e da administração pública. A discricionariedade é o poder da administração

* Data de recebimento do artigo: 04.08.2015.Datas de pareceres de aprovação: 12.08.2015 e 17.08.2015.Data de aprovação pelo Conselho Editorial: 19.08.2015.

Page 152: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

152 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Doutrina

pública outorgado pela lei para ser exercido em caso concreto. Revela-se, entre outras, no emprego de conceitos indeterminados pelo legislador. É nessa interpretação da norma jurídica, a partir do conhecimento da sua finalidade, que se encerra o agir discricionário do administrador público.

PALAVRAS-CHAVE: discricionariedade; discricionariedade técnica; conceitos indeterminados; administração pública.

ABSTRACT: The admission of the constitutional control of the governments deeds and arbitrary is not pacific, some understand that those deeds are away from de jurisdiction of the judicial review, although they would be the ones that express de public power own will, introducing the legitimate political govern will. Other part of the doctrine doesn’t admit that some deeds and actions could be away from the federal constitution sphere. The Brazilian federal constitution adopted a unique jurisdiction for the private deeds control and the public administration. The arbitrariness is the power of the public administration approved by the law to be exerted on the real case. Developed among others on the application of indeterminate concepts by the legislator. It is on this interpretation of the juridical rule, from the knowledge of its purpose, which encloses the public administration arbitrary act.

KEYWORDS: arbitrary; technical arbitrary; indeterminate concepts; public adminis-tration.

INTRODUÇÃO

O modelo de Estado adotado no Brasil, baseado na separação dos poderes - Exe-cutivo, Legislativo e Judiciário -, conforme proposta formulada por Montesquieu, inserida no ordenamento constitucional de 1988, artigo 2º, enseja a independência e autonomia de cada Poder, no exercício de suas atribuições, sem a ingerência de outro.

Mas, para que não haja abuso dessa independência e autonomia, existe um sistema de freios e contrapesos, consistente na contínua fiscalização de um poder sobre o outro, sistema esse encontrado em diversos dispositivos da Constituição Federal, tais como a aprovação das contas do Executivo, pelo Legislativo (art. 48, IX), a indicação dos integrantes do Poder Judiciário Superior pelo Executivo (v. g. art. 101, parágrafo único), o Executivo pode vetar lei proposta pelo Legislativo, o Legislativo pode derrubar veto de lei efetivado pelo Executivo.

Com fundamento nessa premissa, há entendimento de que determinados atos emanados por um Poder não se sujeitam ao controle de outro. Nessa classe, estariam os atos políticos e os atos discricionários.

A doutrina se divide na admissão do controle constitucional dos atos governamentais e discricionários, entendendo uns que tais atos refogem à alçada da revisão judicial, uma vez que seriam eles a expressão da vontade do próprio Poder Público, inserindo a vontade política do governante legitimado. Outra parte da doutrina não admite que determinados atos e ações possam ficar fora da esfera do controle da CF.

Page 153: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

153A PROBLEMÁTICA DOS CONCEITOS INDETERMINADOS E DA DISCRICIONARIEDADE TÉCNICA

A jurisprudência tem se manifestado, embora timidamente, no sentido de adentrar no exame dos elementos formadores do ato emanado da Administração Pública, seja ele político, interna corporis ou discricionário, ultrapassando a barreira do simples exame de legalidade, para verificação dos reais motivos de sua realização, para conformação com os princípios constitucionais.

O objetivo deste texto é visualizar, por meio de exame dessas premissas e dos princípios regentes do Estado Democrático brasileiro, determinados pelo Poder Constituinte Originário, um indicativo para a resposta a essa dicotomia estabelecida pela doutrina, quanto à submissão dos atos discricionários da Administração Pública ao controle jurisdicional, em especial, àqueles que encerram discricionariedade técnica e conceitos indeterminados.

A JURISDIÇÃO BRASILEIRA: O MODELO ADOTADO PELA CONSTITUIÇÃO FEDERAL

Diferentemente do direito francês, do qual o direito brasileiro extraiu os pilares do direito administrativo brasileiro, a CF brasileira adotou a jurisdição única para o controle dos atos de particulares e da Administração Pública.

Sem um tribunal exclusivo, como o Tribunal Administrativo francês, e demais países que adotaram esse modelo na Europa, o controle dos atos da Administração Pública efeti-vado pelo Poder Judiciário, é realizado pela justiça comum, ou ordinária, sem prerrogativa ou diferenciação, portanto, de qualquer outra relação jurídica de ordem privada, conforme se apresenta a organização judiciária no art. 92 e seguintes da Constituição de 1988.

Sem adentrar em dados históricos, a atual Carta Máxima consolidou princípio constitucional, integrante do sistema de freios e contrapesos entre os poderes, no inciso XXXV do art. 5º que diz: “A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.

PRINCÍPIOS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Também na atual Constituição, ficaram consignados os princípios regentes da atividade pública (art. 37), delimitando, acertadamente, a conduta do administrador na gestão da coisa pública.

De todos os princípios a que deve obediência a Administração Pública - legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência - a legalidade é o princípio mais co-mentado e lembrado pela sociedade de um modo geral. A afirmativa retro se faz confirmar não só pela observação diária da prática administrativa, avaliada na fundamentação de atos administrativos resumida em simples citação de dispositivo legal (dado esse absolutamente isento de rigor científico), mas, principalmente, na jurisprudência brasileira. Ocorrem em menor escala os casos submetidos ao controle judicial e que se referem à prática admi-nistrativa contrária a algum outro princípio constitucional que não o da legalidade.

Page 154: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

154 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Doutrina

Invocando-se os clássicos conceitos apresentados pela doutrina de Meirelles,1 aos princípios balizadores da atividade pública, tem-se a seguinte definição:

a) Princípio da legalidade: “significa que o administrador público está, em toda a sua atividade funcional, sujeito aos mandamentos da lei e às exigências do bem comum, e deles não se pode afastar ou desviar, sob pena de praticar ato inválido e expor-se à responsabilidade disciplinar, civil e criminal, conforme o caso. A eficácia de toda a atividade administrativa está condicionada ao atendimento da lei”;

b) “A moralidade administrativa constituiu, hoje em dia, pressuposto de validade de todo ato da Administração Pública (CF, art. 37, caput). Não se trata - diz Hauriou, o sistematizador de tal conceito - da moral comum, mas sim de uma moral jurídica, entendida como ‘o conjunto de regras de conduta tiradas da disciplina interior da Administração. [...] O agente público, como ser humano dotado da capacidade de atuar, deve, necessariamente, distinguir o Bem do Mal, o honesto e o desonesto’ ”;

c) “Impessoalidade, nada mais é do que o clássico princípio da finalidade, o qual impõe ao administrador público que só pratique o ato para o seu fim legal. E o fim legal é unicamente aquele que a norma de Direito indica expressa ou virtualmente como obje-tivo do ato, de forma impessoal. [...] O que o Princípio da finalidade veda é a prática de ato administrativo sem interesse público ou conveniência para a Administração, visando unicamente a satisfazer interesses privados, por favoritismo ou perseguição dos agentes governamentais, sob forma de desvio de finalidade”;

d) “Publicidade é a divulgação oficial do ato para conhecimento público e início de seus efeitos externos. Daí porque as leis, atos e contratos administrativos que produzem consequências fora dos órgãos que os emitem exigem publicidade para adquirirem validade universal, isto é, perante as partes e terceiros”;

e) O princípio da eficiência administrativa, elevado à condição de princípio pela Emenda Constitucional nº 19/98, tem se mostrado amplo e impreciso, dificultando sua invocação pelos órgãos de controle da administração, para anular determinado ato inicialmente entendido como ineficiente. Meirelles2 considerava a eficiência como dever, conceituando-a como imposição feita a “todo o agente público de realizar suas atribuições com presteza, perfeição e rendimento funcional. É o mais moderno princípio da função pública administrativa, que já não se contenta em ser desempenhada apenas com legali-dade, exigindo resultados positivos para o serviço público e satisfatório atendimento das necessidades da comunidade e de seus membros”.

Pelo comando constitucional, nos termos acima expostos, a Administração Pública, para validade e eficácia de seus atos, deverá atuar de acordo com a legislação vigente, diga-se legislação constitucional vigente, com obediência à ética, à honestidade e às regras de boa administração, sem efetuar qualquer distinção entre os administrados, nem 1 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 41. ed. atual. São Paulo: Malheiros, 2015. p. 82-86.2 Ibidem, p. 90.

Page 155: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

155A PROBLEMÁTICA DOS CONCEITOS INDETERMINADOS E DA DISCRICIONARIEDADE TÉCNICA

obter vantagem pessoal, concedendo ao ato sua finalidade. Ademais de ser legal, moral e impessoal, o ato da Administração deve ter um resultado positivo, satisfatório, e estar ao conhecimento da sociedade.

DISCRICIONARIEDADE NOS ATOS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Todos os atos por meio dos quais a Administração Pública realiza suas ações são passíveis de controle jurisdicional. Seja esse ato administrativo, legislativo, interna corporis, seja ele político, ao contrariar um dos princípios constitucionais, poderá ser declarado nulo pelo Poder Judiciário desde que alguém o provoque. Até mesmo porque, nenhum ato emanado da Administração Pública, por seus agentes, está fora da esfera de alcance do controle judicial, máxime pelo princípio constitucional inserido na Constituição Federal (art. 5º, XXXV).

Não sendo objeto deste estudo a análise de todos os atos emanados do Poder Público e sua submissão ao controle jurisdicional, restringe-se a problemática, então, apenas aos atos ditos discricionários, havendo-se de examiná-los à luz da doutrina, a fim de apurarem-se os limites de atuação do Poder Judiciário no seu julgamento.

ENTENDIMENTO DOUTRINÁRIO ACERCA DA CONCEITUAÇÃO DA DISCRICIONARIEDADE

A discricionariedade do ato administrativo é assunto controvertido na doutrina na-cional. Alguns autores o qualificam como poder da Administração, outros, como espécie de ato administrativo, e outros, na lição de Mello, como dever do Poder Público, conforme se verá a seguir.

Na visão de Borges,3 discricionariedade administrativa

corresponde à liberdade que tem o administrador de sopesar, dentre alternativas de ação igualmente válidas, aquela que parecer mais conveniente ao poder público, ante as circunstâncias de fato, de tal sorte que, para o ordenamento jurídico vigente, qualquer delas corresponde à finalidade legal que se vai alcançar.

Para Freitas4

a discricionariedade, no Estado Democrático, quer dos atos admi-nistrativos, quer dos atos judiciais, é de algum modo vinculada aos princípios, sob pena de se traduzir em arbitrariedade e de subtrair os limites indispensáveis à liberdade e à abertura como racionais características fundantes do sistema jurídico.

3 BORGES, Alice Gonzalez. O controle jurisdicional da administração pública. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro: Renovar, n. 192, abr./jun. 1993. p. 58.

4 FREITAS, Juarez. Estudos de direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 1995. p. 145.

Page 156: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

156 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Doutrina

E prossegue afirmando:são os atos discricionários, sob certo aspecto, aqueles que mais rigoro-samente, no exercício do controle jurisdicional, deveriam ser controlados, não para tolher o administrador, muito menos para usurpar a sua correta função, mas para, dentro dos limites razoáveis, coibir a impunidade de manifestos desvios de poder.5

O clássico Meirelles6 esclarecia que “poder discricionário é o que o Direito concede à Administração, de modo explícito ou implícito, para a prática de atos administrativos com liberdade na escolha de sua conveniência, oportunidade e conteúdo”. Prosseguia asseverando que “discricionariedade é liberdade de ação administrativa, dentro dos limites permitidos em lei [...]. A competência discricionária não se exerce acima ou além da lei, senão como toda e qualquer atividade executória, com sujeição a ela”.7 Ainda: Em rigor, a discricionariedade não se manifesta no ato em si, mas no poder de a Administração praticá--lo pela maneira e nas condições que repute mais conveniente ao interesse público. Daí a justa observação de Leal de que só por tolerância se poderá falar em ato discricionário, pois o certo é falar-se em poder discricionário da Administração.8

Já Mello sustenta que a discricionariedade não é poder da Administração, tampouco se insere como ato administrativo, é antes um dever da administração, em vista de que erradamente os institutos do Direito Administrativo foram articulados em torno da ideia de poder, quando o correto seria estruturá-los em torno da ideia de dever, de finalidade a ser cumprida.9 E conceitua a discricionariedade como sendo

a margem de liberdade que remanesça ao administrador para eleger, segundo critérios consistentes de razoabilidade, um, dentre pelo menos dois comportamentos cabíveis, perante cada caso concreto, a fim de cumprir o dever de adotar a solução mais adequada à satisfação da finalidade legal, quando, por força da fluidez das expressões da lei ou da liberdade conferida no mandamento, dela não se possa extrair objetivamente, uma solução unívoca para a situação vertente.10

Segundo esse autor, o que o agente recebe é uma outorga legal de obrigatoriamente empenhar-se na busca da solução que atenda, com precisão capilar, à finalidade da lei. Logo, o que existe é um dever discricionário.11

5 Ibidem, p. 133.6 MEIRELLES, op. cit., p. 102.7 Ibidem, p. 103.8 Apud MEIRELLES, op. cit., p. 151.9 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Discricionariedade e controle jurisdicional. 2. ed. São Paulo: Malheiros,

2010. p. 15.10 Ibidem, p. 48.11 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Controle da discricionariedade da administração pública. In: Congresso

Brasileiro de Direito Administrativo, 15, 2001, Curitiba. Anais... 2001.

Page 157: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

157A PROBLEMÁTICA DOS CONCEITOS INDETERMINADOS E DA DISCRICIONARIEDADE TÉCNICA

Pietro definiu discricionariedade administrativa como sendo a “faculdade que a lei confere à Administração para apreciar o caso concreto, segundo critérios de oportunidade e conveniência, e escolher uma dentre duas ou mais soluções, todas válidas perante o direito”.12 Para a autora, não há razão para se negar a existência, tanto do poder discricio-nário como do ato discricionário, sendo o primeiro manifestação in potentia e o segundo in actu. Anteriormente à edição do ato, existe a discricionariedade como sendo o poder da Administração Pública outorgado pela lei para ser exercido no caso concreto.13

Em que pese a divergência dos doutrinadores quanto a ser poder, dever ou ato discricionário, não há contrariedade no fato de que a discricionariedade está adstrita à lei. É por permissivo dessa e nos seus limites, que a Administração Pública agirá no caso concreto. Daí que se afigura mais adequada a proposta formulada por Mello quando sustenta inexistir ato ou poder discricionário, mas sim dever, dever esse de perseguir a finalidade da norma.

OCORRÊNCIA DA DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA

Também quanto às causas ou à ocorrência da discricionariedade administrativa há divergência doutrinária.

Volvendo à lição de Mello, as causas da discricionariedade decorrem de três fatores: hipótese da norma, comando da norma e/ou finalidade da norma (essa última, como diz o autor, em descompasso com a doutrina predominante).14

A primeira causa decorre do modo impreciso com que a lei haja descrito ou omitido a situação fática (motivo) a incidir na norma. Na segunda, a norma concede alternativas para o agente público atuar. Por fim, quando a norma aponta para valores que se expres-sam por meio de conceitos plurissignificativos. Assevera o autor, ainda, que essas são as causas, mas é no conteúdo do ato que a discricionariedade irá expressar-se, explicando que “é na ocasião em que se pratica o ato, elegendo o ato tal ou qual, uma vez decidido o instante de praticá-lo (quando há discrição também quanto a isso), é na providência adotada que realmente se traduz a discrição”. Fazendo, apenas, uma ressalva, quando a discrição deriva da faculdade concedida pela lei consistente em agir ou não agir, caso em que a discricionariedade expressar-se-á nessa omissão.15

Pietro, na obra já citada, demonstra a localização da discricionariedade, estando essa onde a lei expressamente a confere; quando a lei é insuficiente por não exprimir todas as hipóteses de sua incidência; quando a lei estabelece a competência, mas não a conduta a ser adotada, a lei utiliza conceitos indeterminados.

12 PIETRO, Maria Sylvia Zanella di. Discricionariedade administrativa na Constituição de 1988. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2012. p. 41.

13 Ibidem, p. 64.14 MELLO, op. cit., p. 19.15 Ibidem, p. 21-22.

Page 158: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

158 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Doutrina

Definindo ou restringindo a ocorrência da discricionariedade, depreende-se que essa não existe de forma total, mas parcialmente, nos estritos limites propugnados pelo legis-lador. Necessário, portanto, ao administrador público e ao órgão controlador, é averiguar precisamente onde a discricionariedade se faz possível, a fim de estabelecer seus limites.

A PROBLEMÁTICA DOS CONCEITOS INDETERMINADOS E DA DISCRICIONARIEDADE TÉCNICA

Conforme foi acima especificado, quando citada a lição dos autores mencionados, a discricionariedade se revela entre outras, no emprego de conceitos indeterminados pelo legislador.

A doutrina acerca dos conceitos indeterminados foi iniciada por Bernatzik, na Áustria, que em obra lançada em 1886, definia a livre discricionariedade como sendo a inexistência de vinculação a disposições legais precisas. O precursor dessa teoria constatou que situações previstas por certos conceitos indeterminados na lei, como “adequação”, “utilidade”, “perigo”, só podiam ser afirmados ou negados depois de um complexo pro-cesso interpretativo em cadeia, por ele denominado “discricionariedade técnica”, sendo essa a primeira manifestação da teoria da multivalência, que sustenta não ser o Direito puro silogismo.16

A teoria de Bernatzik passou a ser fundamento da jurisprudência administrativa austríaca. Tezner, seu opositor e defensor da doutrina tradicional, chamou-a “doutrina contrária ao Estado de Direito”. Sustentava que todo o conceito legal, quando posto em ligação com fatos reais, pode pressupor cadeias de pensamento altamente complexas. Dizia que a diferença entre os chamados conceitos legais indeterminados e conceitos legais determinados é apenas de grau e não de qualidade. Por isso, na aplicação dos conceitos in-determinados não deve ficar fora do controle judicial qualquer “discricionariedade técnica”.17

Desde então, a doutrina tem-se debatido em torno da existência de liberdade de atuação ou não da Administração Pública quando em presença de conceitos legais inde-terminados, dividindo-se, igualmente, a jurisprudência.

Enterría, citado por Sousa, examinando a temática, entende que a existência de conceitos indeterminados não concede à Administração Pública liberdade de opção, sustentando a existência de uma só opção justa perante a lei. Prossegue dizendo que o “difícil controle” não se confunde com “isenção de controle”.18

Dentre nós, Figueiredo, após analisar a doutrina comparada, conclui que

16 SOUSA, Antônio Francisco. Conceitos indeterminados no direito administrativo. Coimbra: Almedina, 1994. p. 34-35.

17 TEZNER apud SOUSA, op. cit., p. 35.18 ENTERRÍA apud SOUSA, op. cit., p. 76-77.

Page 159: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

159A PROBLEMÁTICA DOS CONCEITOS INDETERMINADOS E DA DISCRICIONARIEDADE TÉCNICA

a discricionariedade não emerge do fato de o conceito não ser, desde logo, preciso. Necessário, primeiramente, buscarmos, na norma, o sentido e alcance do conceito. Depois da interpretação, deveremos nos alçar aos princípios e valores do ordenamento jurídico, a fim de precisar o conceito. Precisado o conceito - ou determinado - por con-seguinte, localizado na zona de certeza positiva, mister a verificação se a norma outorgou possibilidade de decisão ao administrador.19

Pietro, por sua vez, entende que devam ser afastadas as teorias extremadas, que reduzem à mera atividade de interpretação, e não de discricionariedade administrativa, a utilização de conceitos indeterminados pelo legislador. Diz a autora que

existem outros tipos de conceitos que implicam efetivamente uma apreciação subjetiva pela autoridade administrativa, propiciando certa margem de discricionariedade. Não se trata de liberdade total, porque, por via da interpretação e da apreciação dos fatos, pode-se reduzir sensivelmente a certos limites a discricionariedade que a lei quis atribuir à Administração. Quando a lei fala, por exemplo, em “promoção por merecimento”, está utilizando um conceito que exige apreciação subjetiva; mas essa apreciação subjetiva é limitada pelos próprios fatos, porque existem elementos objetivos que permitem constatar que certas pessoas se enquadram e outras não se enqua-dram na ideia de “merecimento”. A liberdade do administrador não vai ao ponto de escolher “qualquer” funcionário, independentemente dos requisitos de capacidade que satisfaça; a liberdade de escolha restringe-se àqueles que, pelas circunstâncias de fato, facilmente comprováveis, possam razoavelmente, por qualquer pessoa, ser considerados merecedores da promoção.20

Mais adiante, Pietro conclui que se a autoridade administrativa, após a utilização do método interpretativo, chegar a várias soluções possíveis e válidas perante o Direito, devendo a escolha ser realizada segundo critérios puramente administrativos, se está no campo da discricionariedade. Nesse sentido, invoca lição de Stassinopoulos: “Pode-se dizer que o domínio do poder discricionário começa onde termina o da interpretação”. Por isso, enfatiza:

A aparente liberdade do juiz para aplicar a lei ao caso concreto, não se confunde com a liberdade da Administração de decidir discricio-nariamente. O juiz tem de “interpretar” a norma jurídica, extraindo do ordenamento o seu sentido preciso, como se fosse o próprio legislador; a Administração Pública, na atividade discricionária, pode escolher entre duas ou mais soluções, consideradas válidas

19 FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de direito administrativo. 9. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 135.

20 PIETRO, op. cit., p. 85.

Page 160: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

160 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Doutrina

pelo direito, sendo a opção feita segundo critérios de oportunidade e conveniência não outorgados ao Poder Judiciário, no exercício da função tipicamente jurisdicional.21

Mello filia-se ao entendimento doutrinário de que uma das formas de manifestação da discricionariedade administrativa dá-se em função da existência dos chamados concei-tos vagos, fluidos ou indeterminados. Conceitos, que não se confundem com palavras de sentido impreciso, são empregados pelo legislador, uma vez que não possui condições de legislar sobre todas as hipóteses possíveis de incidência da norma jurídica. Diz o autor que, nesse caso, de emprego de conceito indeterminado, no qual se encerra uma das formas de discricionariedade, o legislador outorga ao administrador o dever jurídico de encontrar a solução ótima, o que não significa a solução única.

Sustenta o jurista, na esteira do entendimento de Bernatzik e Queiró, que há momen-tos em que é impossível, na interpretação dos conceitos indeterminados, estabelecer-se uma única solução, já que é possível a convivência de intelecções diferentes, sem que uma delas tenha de ser havida como incorreta, desde que igualmente razoáveis. Em nome da lógica, embora se possa ter absoluta convicção a respeito de uma dada situação, não há como pretender que quem pensa diferente esteja errado. O fim visado deve ser sempre o interesse público, no atendimento às aspirações da comunidade.

Na vinculação da norma, diz Mello, que o legislador aceita que na maioria dos casos está concedendo uma boa solução a questões concretas que advirão na Administração Pública, conforme antecipadamente previsto. Mas, como antedito, o mesmo não acontece nos casos em que emprega os ditos conceitos indeterminados, já que exige seja buscada a solução ótima ao caso concreto. E essa solução somente é perquirida quando o intérprete conhece a finalidade da norma jurídica. E nessa interpretação da norma jurídica, a partir do conhecimento da sua finalidade, que se encerra o agir discricionário do administrador público.

A partir dessa premissa, o jurista propõe que o controle da discricionariedade se faz no controle da interpretação da norma, segundo sua finalidade, pois não existe ato em si mesmo discricionário, e o controle da discricionariedade, no caso dos conceitos indetermi-nados, estaria envolto na interpretação a esses concedida, cujos instrumentos para tanto encontram-se nos princípios constitucionais da proporcionalidade e da razoabilidade, bem como nos princípios gerais de Direito. Então, o que se controla são os limites da discrição e não a discricionariedade em si mesma.22

Mas há de se registrar entendimento diverso sustentado com denodo pelo jurista Grau, o qual entende inexistir a chamada discricionariedade técnica, bem como de “con-ceitos indeterminados”.

Assevera o aludido autor que

21 Ibidem, p. 86.22 MELLO, op. cit., 2001.

Page 161: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

161A PROBLEMÁTICA DOS CONCEITOS INDETERMINADOS E DA DISCRICIONARIEDADE TÉCNICA

a indeterminação a que nos referimos, na hipótese, não é dos conceitos indeterminados (ideias universais), mas de suas expres-sões (termos); logo, mais adequado será referirmo-nos a “termos indeterminados de conceitos”, e não a “conceitos (jurídicos ou não) indeterminados”. Esse ponto é de importância extremada e nele devo insistir: não existem “conceitos indeterminados”. [...] Insisto: todo conceito é uma suma de ideias que, para ser conceito, tem de ser, no mínimo, determinada; o mínimo que se exige de um conceito é que seja determinado. Se o conceito não for, em si, uma “suma determinada de ideias”, não chega a ser “conceito”. Assim, a reiteradamente referida “indeterminação dos conceitos” não é deles, mas sim dos “termos” que os expressam. Ainda que o termo de um conceito seja indeterminado, o conceito é signo de uma “significação determinada”. E de “uma apenas significação”.23

Por esse entendimento, filia-se o autor àqueles, como Enterría, para os quais na presença de “termos indeterminados” apenas uma situação se afigura justa. Porém, o exercício da discricionariedade permite uma pluralidade de soluções justas ou a opção entre alternativas que são igualmente justas desde a perspectiva do Direito.

Para Grau adiscricionariedade é essencialmente uma liberdade de eleição entre alternativas justas ou entre indiferentes jurídicos - porque a decisão se fundamenta em critérios extrajurídicos (de oportunidade, econômicos, etc.) não incluídos na lei e remetidos ao juízo subjetivo da Administração -, ao passo que a aplicação de conceitos indeter-minados é um caso de aplicação da lei.24

Então, para o autor, o controle jurisdicional não incide sobre a discricionariedade administrativa (exceto nos casos de desvio de poder ou finalidade), sendo possível, porém, quando da existência de “conceitos indeterminados”, visto que na primeira emite-se um juízo de oportunidade, e na segunda, um juízo de legalidade. Exemplificando a hipótese de discricionariedade no Direito brasileiro, cita a nomeação do presidente do Supremo Tribunal Federal, pelo presidente da República, observando os critérios prescritos na norma jurídica específica.

Já a aludida discricionariedade técnica, Grau nega sua existência fundamentando que, se é decisão técnica, então há standards e muito precisos a serem estrita e rigoro-samente atendidos por quem toma a decisão. E, embora o juiz não conheça o conteúdo técnico, não se afigura como razão para que a questão fuja ao controle jurisdicional, haja vista que a solução parte para a realização de perícia técnica judicial.25

23 GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2011. p. 147-148, grifo do autor.

24 Ibidem, p. 150.25 Ibidem, p. 159.

Page 162: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

162 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Doutrina

Efetivamente, não obstante a existência de atos administrativos que dependem, para sua execução, de adoção de entendimento considerado “altamente técnico”, não se revela correta a posição doutrinária que sustenta sua intangibilidade pelo controle jurisdicional. O argumento de que o Poder Judiciário não está aparelhado para investigar tal medida técnica, não se reveste de juridicidade e contraria direito fundamental ínsito na Carta Máxima, que assegura que nenhuma lesão ou ameaça a direito será excluída da apreciação do Poder Judiciário.

Tem por obrigação constitucional, em face dos princípios explícitos e implícitos adotados pelo legislador originário, a Administração Pública de adotar a solução ótima na consecução da finalidade da norma em atendimento aos anseios da coletividade. Como dito por Enterría, já citado, a dificuldade na aferição do acerto do agente público na medida adotada, não significa sua retirada do controle jurisdicional. A perícia técnica, tal qual realizada nas contendas entre particulares, deverá perquirir do acerto ou não do ato administrativo. Não se há de confundir, portanto, a questão processual da questão de direito substancial que envolve a matéria.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A doutrina defensora da separação dos poderes, de Montesquieu, que sustenta que “quem legisla não pode executar nem julgar, quem julga não pode legislar nem executar e quem executa não pode legislar nem julgar”, visto que “quem ocupa o poder tende a abusar dele”, e por isso a necessidade de controle realizado por outro poder, adotada pela Constituição Federal como princípio fundamental do Estado brasileiro (art. 2º), e elevado à cláusula pétrea expressa (art. 60, § 4º, III), não permite que um poder se imiscua ou usurpe a função de outro, sob pena de ruptura da independência (investidura, administração e autonomia própria) e harmonia entre os poderes (trato cordial e respeito às disposições referentes aos demais).

Para o controle do abuso ou desvio de poder, o ordenamento jurídico criou o sistema de freios e contrapesos, anteriormente mencionado, por meio do qual, um poder “detém” o outro, impedindo, assim, que qualquer desses poderes ultrapasse a fronteira de suas competências, ferindo a Constituição, e, por via de consequência, os direitos da sociedade.

Na garantia dessa autonomia dos poderes, inicialmente a doutrina administrativa sustentava que estava fora do alcance do controle, de qualquer outro poder, o ato dis-cricionário da Administração, assim entendido como o ato “que pode ser praticado com liberdade de escolha de seu conteúdo, de seu destinatário, de sua conveniência, de sua oportunidade e do modo de sua realização”.26

Conforme estudo acima colacionado, depreende-se que tal exclusão há muito não se sustenta, pois não existe parcela de poder sem controle.

26 MEIRELLES, op. cit., p. 150.

Page 163: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

163A PROBLEMÁTICA DOS CONCEITOS INDETERMINADOS E DA DISCRICIONARIEDADE TÉCNICA

É certo que o Judiciário não pode se sobrepor ao administrador público, dada sua ilegitimidade ante essa seara privativa que encerra cada Poder da República. Todavia é seu dever coibir abusos cometidos sob a invocação da “discricionariedade administrativa”.

Embora haja divergência doutrinária quanto ao conteúdo discricionário do ato, certo é que, modernamente, convergem as posições quanto ao cabimento do controle jurisdicional da discricionariedade da atividade pública. Esteja ela presente sob a forma de “discricionariedade técnica” ou de “conceitos indeterminados” ou “termos” (como dito por Grau), ou ainda, na competência, no agir, na motivação, não escapa ao controle do Poder Judiciário, a quem compete dizer do Direito em última palavra, quando a finalidade da norma jurídica não for atingida pelo administrador público.

E tal controle se faz investigando a finalidade da norma jurídica que sempre visa ao interesse da coletividade. Possui, o intérprete, como instrumentos de controle, a aferição da incidência dos princípios constitucionais que regem a Administração Pública - supremacia do interesse público, da razoabilidade, proporcionalidade, igualdade, legalidade, morali-dade, publicidade, impessoalidade, eficiência, além do superior princípio da dignidade da pessoa humana, dentre outros.

REFERÊNCIAS

BERNATZIK. Rechtsprechung und Materielle Rechtskraft. In: SOUSA, Antônio Francisco de. Con-ceitos indeterminados no direito administrativo. Coimbra: Almedina, 1994.

BORGES, Alice Gonzalez. O controle jurisdicional da administração pública. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro: Renovar - FGV, n. 192, p. 49-60, abr./jun. 1993.

ENTERRÍA, García de. Democracia, jueces y control de la administración. Madrid: Civitas, 1998.

FERREIRA, Edílio. O controle da administração pública. Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte: [s. n.], n. 4, p. 47-65, 1995.

FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de direito administrativo. 9. ed. rev. atual e ampl. São Paulo: Malheiros, 2008. 439 p.

FREITAS, Juarez. Estudos de direito administrativo. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1997. 191 p.

GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2011. 209 p.

LEAL, Victor Nunes. Três ensaios de administração. In: MEIRELLES, Hely Lopes. Direito adminis-trativo brasileiro. 41. ed. atual. São Paulo: Malheiros, 2015. 701 p.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 18. ed. atual. São Paulo: Malheiros, 1993. 701 p.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Discricionariedade e controle jurisdicional. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2010. 110 p.

______. Controle da discricionariedade da administração pública. In: Congresso Brasileiro de Direito Administrativo, 15, 2001. Curitiba. Anais... 2001.

Page 164: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

164 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Doutrina

MELLO, Oswaldo Aranha Bandeira de. Princípios gerais de direito administrativo. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, v. 1, 2010.

MUKAI, Toshio. Da aplicabilidade do princípio da moralidade administrativa e do seu controle juris-dicional. Revista dos Tribunais, Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política, São Paulo: RT, n. 4, p. 211-215, jul./set. 1993.

OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro de. Jurisdição e administração: notas de direito brasileiro e com-parado. Revista dos Tribunais, Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política, São Paulo: RT, n. 5, p. 32-45, out./dez. 1993.

PEREIRA JÚNIOR, Jessé Torres. O controle da administração pública na Constituição brasileira. Revista dos Tribunais, Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política, São Paulo: RT, n. 7, p. 74-90, abr./jun. 1994.

PIETRO, Maria Sylvia Zanella di. Discricionariedade administrativa na Constituição de 1988. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2010. 180 p.

QUEIRÓ, Afonso Rodrigues. O poder discricionário da administração pública. Coimbra: Almedina, 1944.

SILVA FILHO, Derly Barreto e. Controle jurisdicional dos atos políticos do Poder Executivo. Revista dos Tribunais, Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política. São Paulo: RT, n. 7, p. 11-23, abr./jun. 1994.

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 38. ed. rev. São Paulo: Malheiros, 2015. 768 p.

SOUSA, Antônio Francisco de. Conceitos indeterminados no direito administrativo. Coimbra: Almedina, 1994. 268 p.

TEZNER, Frederich. Die Ordnung de Zuständigkeiten der östereichischen Verwaltungsbehörden. Viena: [s. n.], 1925.

Page 165: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

COMENTÁRIOS À LEI Nº 12.846, DE 01 DE AGOSTO DE 2013 - LEI ANTICORRUPÇÃO CONTRA PESSOAS FÍSICAS

E JURÍDICAS DE DIREITO PRIVADO*

COMMENTS TO THE LAW Nº 12.846, AUGUST 1ST, 2013 - ANTI-CORRUPTION LAW AGAINST PHYSICAL

AND LEGAL PERSON OF PRIVATE LAW

TOSHIO MUKAIMestre e Doutor em Direito do Estado pela USP.

E-mail: [email protected].

SUMÁRIO: Introdução - I. O capítulo I trata das “disposições gerais” - II. Capítulo II - Dos atos lesivos à administração pública, nacional ou estrangeira - III. O capítulo III trata da “responsabilização administrativa” - IV. O capítulo IV - “Do processo administrativo de responsabilização” - V. O capítulo V dispõe sobre “acordo de leniência” - VI. O capítulo VI trata da “responsabilização jurídica” - Disposições finais.

SUMMARY: Introduction - I. Chapter I deals with the “general provisions” - II. Chapter II - The acts detrimental to national or foreign public administration - III. Chapter III deals with the “administrative responsibility” - IV. Chapter IV - “Of the administrative process of responsibility” - V. Chapter V provides for “leniency agreement” - VI. Chapter VI deals with the “legal liability” - Final provisions.

RESUMO: O presente artigo aborda a nova lei anticorrupção, seus aspectos e principais características.

PALAVRAS-CHAVE: lei anticorrupção; direito privado.ABSTRACT: This article discusses the new anti-corruption law aspects and key

features.KEYWORDS: anti-corruption law; private law.

* Data de recebimento do artigo: 01.06.2015.Datas de pareceres de aprovação: 22.06.2015 e 03.07.2015.Data de aprovação pelo Conselho Editorial: 30.07.2015.

Page 166: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

166 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Doutrina

INTRODUÇÃO

A presente lei é uma novidade, como combate a pessoas jurídicas e físicas que cometam atos de corrupção em detrimento de bens, valores e outros interesses públicos do Poder Público.

O art. 1º prescreve a eleição da responsabilização objetiva como novidade, no âm-bito administrativo e civil de pessoas jurídicas, pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira.

Aqui, a redação do dispositivo comete o seguinte erro: “praticar ato contra...?” E se esses atos, embora contra a Administração Pública, forem legais?

O erro é corrigido pelo art. 2º que esclarece: “As pessoas jurídicas serão respon-sabilizadas objetivamente nos âmbitos administrativo e civil pelos atos lesivos previstos nesta Lei, praticados em seu interesse ou benefício exclusivo ou não”.

Portanto, os atos contra o Poder Público são os atos lesivos previstos na Lei 12.846, de 2013; de outro lado, como o artigo 1º diz “[...] responsabilização objetiva administrativa e civil”, alguém poderia entender que a responsabilização objetiva seria somente a de cunho administrativo e a civil seria de ordem subjetiva. O art. 2º deixa claro que tanto a responsabilidade administrativa como a civil será de natureza objetiva.

Antes de continuarmos as análises das disposições ulteriores da Lei, mister fazer aqui um rápido retrospecto de ordem teórica da denominada responsabilidade objetiva, que é exceção no direito pátrio, posto que a regra é a responsabilidade subjetiva (com culpa ou dolo).

A responsabilidade administrativa se resume na aplicação de sanções previstas em lei formal, relativamente a cada infração administrativa. De regra, a responsabilização administrativa depende, entre nós, da demonstração da culpa ou dolo do infrator, do nexo causal entre o ato do infrator e a lesão causada e, finalmente, da tipicidade da infração.

Quando aqui a infração administrativa se torna objetiva e não mais subjetiva como sempre foi, incide sobre a questão, as mesmas problemáticas que incidem sobre a res-ponsabilidade civil objetiva do Estado, ou seja: a responsabilização civil do Estado importa em reparar o eventual dano causado por seu funcionário nessa qualidade, a terceiros, sem culpa, posto que objetiva mas, com a aplicação da teoria do risco administrativo (ou teoria do risco proveito) e não com a aplicação da teoria do risco integral, denominado de “brutal” no direito comparado, porque faz responder pelo dano pessoa que tenha tido remotíssima relação com o fato, e, ainda mais, inadmite qualquer exclusão, quando na teoria do risco criado há exclusões possíveis, como a culpa da vítima, a força maior e o caso fortuito, etc.

Assim, quando a lei fala na aplicação da responsabilidade objetiva administrativa, teremos que levar em conta que este tipo de responsabilidade é exceção à regra, que é a responsabilidade subjetiva (com culpa ou dolo). Portanto, qualquer interpretação em rela-ção à sua aplicação, assim como na responsabilidade civil objetiva, terá que ser restritiva, limitando-se aos “atos lesivos previstos nesta lei”, como afirma o art. 2º, praticados em seu

Page 167: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

167LEI ANTICORRUPÇÃO CONTRA PESSOAS FÍSICAS E JURÍDICAS DE DIREITO PRIVADO

benefício (da pessoa jurídica) ou interesse seu, exclusivo ou não. Consequentemente, se os atos lesivos previstos na lei forem praticados por pessoa física, descabe a aplicação da responsabilidade sem culpa.

Aliás, há que se desenvolver aqui, em termos jurídicos, a questão fundamental que essa lei nos coloca, ou seja, se a responsabilidade administrativa é aplicável à pessoa física e/ou jurídica, ou não.

Portanto, estudaremos essa questão sob dois prismas:a) Pode a responsabilidade administrativa da pessoa física ser objetiva?b) Pode a responsabilidade administrativa ser de ordem objetiva, em relação à

pessoa jurídica?Essas questões merecem aprofundamentos teóricos, perante a Lei sob comento,

porque o art. 1º dispõe que a responsabilização administrativa e civil das pessoas jurídicas pela prática de atos (danosos) contra a administração pública nacional ou estrangeira será a regra (caput).

E que “aplica-se o disposto nesta Lei às sociedades empresárias e às sociedades simples, personificadas ou não, independentemente da forma de organização ou modelo adotado, bem como a quaisquer fundações, associações de entidades ou pessoas, ou sociedades estrangeiras, que tenham sede, filial ou representação no território brasileiro, constituídos de fato ou de direito, ainda que temporariamente” (Parágrafo único).

O art. 3º prevê: “A responsabilização da pessoa jurídica não exclui a responsabi-lidade individual de seus dirigentes ou administradores ou de qualquer pessoa natural, autora, coautora ou partícipe do ato ilícito” (responsabilidade da pessoa física).

O § 2º do art. 3º dispõe: “Os dirigentes ou administradores somente serão respon-sabilizados por atos ilícitos na medida da sua culpabilidade”.

O § 2º do art. 19 rezava o seguinte: “Dependerá da comprovação de culpa ou dolo a aplicação das sanções previstas nos incisos II a IV do caput deste artigo” (II - suspensão ou interdição parcial de suas atividades; III - dissolução compulsória da pessoa jurídica; IV - proibição de receber incentivos, subsídios, subvenção, doações e empréstimos de órgãos ou entidades públicas e de instituições financeiras públicas ou controladas pelo poder público, pelo prazo mínimo de 1 [um] e máximo de 5 [cinco] anos).

Essa disposição foi vetada com a seguinte razão: “Tal como previsto, o dispositivo contraria a lógica norteadora do projeto de lei, centrado na responsabilidade objetiva da pessoa jurídica que cometa atos contra a administração pública. A introdução da respon-sabilidade subjetiva anularia todos os avanços apresentados pela nova lei, uma vez que não há que se falar na mensuração de culpabilidade da pessoa jurídica”.

Essas disposições da Lei nº 12.846, de 01 de agosto de 2013 nos levou a refletir e estudar os dois aspectos já mencionados: a responsabilidade da pessoa física e a res-ponsabilidade da pessoa jurídica, em termos administrativos. Se podem ou não, ambas ou uma delas ter o caráter objetivo e não subjetivo.

Page 168: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

168 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Doutrina

Vejamos, portanto, em primeiro lugar o problema em relação à responsabilização objetiva da pessoa física.

Essa responsabilidade se constitui como sabemos em sujeição ao recebimento de uma sanção administrativa.

No dizer de Fábio Medina Osório (Direito administrativo sancionador. Revista dos Tribunais, 2000): “consiste a sanção administrativa, portanto, em um mal ou castigo com alcance geral e potencialmente para o futuro, imposto pela Administração Pública, materialmente considerada, pelo Judiciário ou por corporação de direito público, a um administrado, agente público, indivíduo ou pessoa jurídica, sujeitos ou não a especiais relações de sujeição com o Estado, como consequência de uma conduta ilegal, tipificada em norma proibitiva, com uma finalidade repressora ou disciplinar, no âmbito da aplicação formal e material do Direito Administrativo” (p. 80).

Ponto importantíssimo é levantado por este autor e que nós já tivemos de abordar em artigo recente. Trata-se de considerar que a Constituição Federal sufraga (art. 18) o regime federativo, no qual, todos os entes que o compõem são autônomos, uns em relação aos outros.

Nesse ponto, trata-se a Constituição Federal de 1988, de uma Constituição Rígida (como diz Osvaldo Bandeira de Mello). Daí que, em tema de Direito Administrativo, salvo poucas exceções de normas gerais expressas pela Constituição, cada ente tem o seu Direito Administrativo, em especial, em matéria de sanção administrativa.

Diz o autor: “Em primeiro lugar, não há neste campo, reserva de Lei federal, ao contrário do que ocorre no terreno penalístico. Consoante as competências próprias, Municípios, Estados e União podem legislar em matéria de sanções administrativas, inclusive criando e regrando os respectivos procedimentos sancionadores. Vigora, aqui, uma ideia de descentralização legislativa. Nenhum poder se concentra na União, visto que aos demais Entes federados se admitem competências legislativas em matéria de Direito Administrativo Sancionador”.

Voltaremos a este ponto mais à frente. Ao tratar dos componentes indispensáveis do ato sancionatório, o autor indica, em primeiro lugar, o princípio da tipicidade; trata só depois da tipificação da sanção, do princípio da reprovação jurídico-administrativa. Fala ainda do princípio do non bis idem, do princípio da especialidade (a lei especial prevalece sobre a geral), do princípio da subsidiariedade, do princípio da alternatividade e do princípio da consunção.

Às págs. 311 e seguintes, o autor discorre sobre o princípio da capacidade infratora e, em especial, no item 5.2 do item 5 - Teoria da responsabilidade do agente, o autor trata com profundidade do “princípio de culpabilidade”, essencial em matéria de responsabilidade administrativa da pessoa física (p. 312).

Diz que se trata de um princípio constitucional materialmente vinculante ao intérprete, com poderosas consequências teóricas e pragmáticas, operativo no Direito Administrativo sancionador.

Page 169: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

169LEI ANTICORRUPÇÃO CONTRA PESSOAS FÍSICAS E JURÍDICAS DE DIREITO PRIVADO

Diz mais: “Princípio básico em matéria de responsabilidade do agente perante o Direito Administrativo Sancionatório é a culpabilidade, verdadeiro pressuposto da respon-sabilidade das pessoas físicas”.

Para que alguém possa ser administrativamente sancionado ou punido, seja quando se trata de sanções aplicadas por autoridades judiciárias, seja quando se cogita de sanções impostas por autoridades administrativas, é necessário que o agente se revele “culpável”.

Adiante, o autor nos mostra o fundamento constitucional da culpabilidade (p. 313).Aqui, aduz: “O Estado Democrático de Direito brasileiro também está fundado na

dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF), assegurando os princípios da pessoali-dade (art. 5º, XLVI, CF/1988), mais o devido processo legal (art. 5º, LIII, CF/1988) e outros direitos e liberdades fundamentais [...]” (p. 314).

E mais: “Não se discute a existência de um princípio constitucional da culpabi-lidade no direito penal, princípio que decorreria do conjunto dessas garantias; não se tolera responsabilidade penal sem dolo ou culpa, sem os fundamentos e pressupostos da responsabilidade subjetiva. Não há dúvidas a respeito”.

Mais à frente: “É um princípio constitucional genérico, que limita o poder punitivo do Estado. Trata-se, nesse passo, de garantia individual contra o arbítrio, garantia que se corporifica em direitos fundamentais da pessoa humana. Culpabilidade é uma exigência inarredável, para as pessoas físicas, decorrente da fórmula substancial do devido processo legal e da necessária proporcionalidade das infrações e das sanções, sendo imprescindível uma análise da subjetividade do autor do fato ilícito, quando se trate de pessoa humana. No direito administrativo sancionatório, em termos de pessoas físicas, é pacífica a exigência da culpabilidade para a imposição de sanções. Ao menos tem sido assim, na Espanha, Itália e Alemanha” (p. 315).

E, mais à frente, o autor escreve:Cumpre destacar desde logo, a culpabilidade em três acepções distintas, porém ligadas entre si; vale dizer: culpabilidade como fundamento da pena; culpabilidade como medição da pena; e culpa-bilidade como conceito contrário à responsabilidade objetiva (p. 318).

E adiante: “Parece-me que, ao ser um preceito contrário às responsabilidades objetivas, a culpabilidade fundamenta a pena, e ao mesmo tempo lhe serve de medida”.

Finalmente o autor conclui:Percebem-se, na Carta Constitucional de 1988, os princípios de pessoalidade e da individualização da pena, ambos inscritos como direitos fundamentais da pessoa humana, disso derivando, por evidente, vedação absoluta a qualquer pretensão estatal de res-ponsabilidade penal objetiva e responsabilidade que atinge direitos fundamentais da pessoa humana, ou seja, outras modalidades de atividades sancionadoras.Nesse sentido, a culpabilidade é um princípio limitador do poder pu-nitivo estatal, aparecendo como responsabilidade subjetiva (p. 322).

Page 170: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

170 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Doutrina

O autor conclui esta parte dizendo:Repele-se, fundamentalmente, a responsabilidade pelo fato de outrem e a responsabilidade objetiva. O delito é obra do homem, como o é a infração administrativa praticada por pessoa física, sendo inconstitucional qualquer lei que despreze o princípio da responsabilidade subjetiva (p. 339).

Nesse sentido, a Lei nº 12.846, de 01 de agosto de 2013 está atendendo as mais lúcidas das lições de Fábio Medina Osório, pois no § 2º do art. 3º dessa lei está dito: “§ 2º Os dirigentes ou administradores somente serão responsabilizados por atos ilícitos na medida de sua culpabilidade”.

A lei referida, como novidade absoluta no Direito Brasileiro, contemplou a respon-sabilidade objetiva administrativa da pessoa jurídica.

Estaria correta a Lei? Ou será como sobejamente demonstrado por Fábio Medina Osório, também inconstitucional a lei ao contemplar a responsabilidade administrativa objetiva da pessoa jurídica?

O autor, na mesma obra, enfrenta essa questão, dizendo inicialmente: “É pacífico em doutrina, até mesmo na voz dos radicais defensores da ‘penalização’ do Direito Admi-nistrativo Sancionador que a pessoa jurídica é passível de responsabilização nessa esfera, devendo a culpabilidade adaptar-se a essa realidade” (cita ENTERRIA, Eduardo Garcia de; FERNANDEZ, Tomás-Ramon. Curso de derecho administrativo II. 4. ed. reimp. 1995. Madrid: Civitas, 1993. p. 178).

Após rápida introdução ao tema, o autor escreve:Quer dizer, então, que a culpabilidade não é uma exigência consti-tucional necessária para todo e qualquer agente que se enquadra no Direito Administrativo Sancionador? Há uma ruptura na unidade teórica do regime jurídico do Direito Administrativo Sancionador?O direito penal estabelece, é verdade, um aparentemente irrenunciá-vel sistema de responsabilidade subjetiva fundada na culpabilidade, de modo que se poderia questionar a validade de uma eventual res-ponsabilidade penal das pessoas jurídicas. Tal não ocorre, todavia, com o Direito Administrativo Sancionador (p. 344).

Mais à frente: “Poder-se-ia dizer quem sabe, que haveria uma ‘culpabilidade’ dis-tinta para as pessoas jurídicas. Penso que o mais correto seria dizer que às decisões das pessoas jurídicas poderiam ser valoradas à luz de critérios objetivos próprios da análise das condutas culposas: atuou razoavelmente a pessoa jurídica, observando todos os deveres objetivos de cuidado? Em tese, a responsabilidade objetiva há de ser excep-cional. Nada impede, todavia, que a lei ou as normas contratuais estabeleçam sistemas de responsabilidade fundados na teoria do risco da atividade ou de outros critérios que embasem responsabilidade objetiva, especialmente dentro da liberdade de configuração legislativa” (p. 346).

Page 171: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

171LEI ANTICORRUPÇÃO CONTRA PESSOAS FÍSICAS E JURÍDICAS DE DIREITO PRIVADO

Conclui o autor sobre o tema:Não há, e isso é importante enfatizar, nenhuma exigência consti-tucional de culpabilidade das pessoas jurídicas, especialmente no Direito Administrativo Sancionador.Por isso mesmo, é possível ao Direito Administrativo Sancionador estabelecer “penas” às pessoas jurídicas, inclusive penas de disso-lução desses entes, o que equivaleria, em uma grosseira analogia, à pena de morte (p. 347).

E, diz, finalmente o autor: “Parece pacífico, na doutrina e na jurisprudência, que se admite a responsabilidade administrativa das pessoas jurídicas, embora possa haver controvérsia quanto às exigências inerentes a esse sistema de responsabilização” (p. 347).

Mais: “Em síntese, as pessoas jurídicas não necessitam, em tese, de uma específica ‘culpabilidade’ em suas atuações ou omissões, até porque tal conceito está indissoluvelmen-te ligado à pessoa humana. Em todo caso, é possível, dependendo das circunstâncias e das legítimas opções legislativas, um tratamento mais rigoroso às pessoas jurídicas. O sistema de responsabilidade dessas entidades ficará na dependência fundamental da chamada liberdade de configuração legislativa, sempre respeitados os princípios constitucionais da proporcionalidade e interdição à arbitrariedade. O Direito Administrativo Sancionador não possui, portanto, um regime jurídico unitário para pessoas físicas e jurídicas, porque há uma clara ruptura dessa suposta unidade no requisito da culpabilidade” (p. 349).

Essa admissão da responsabilidade administrativa objetiva das pessoas jurídicas admitida pelo Dr. Fábio Medina Osório, para nós, não pode ser recepcionada pelo Direito pátrio com a argumentação da impossibilidade de se culpabilizar uma pessoa jurídica.

A questão a ser resolvida repousa juridicamente, a outros patamares: um de ordem constitucional, outro, de ordem teórica.

O primeiro aspecto torna inconstitucional uma lei que abranja todo o processo de averiguação da chamada, impropriamente, “responsabilidade administrativa, porque o art. 5º, LV, da Constituição abrange tanto as pessoas físicas ou jurídicas. Eis que dispõe: ‘Aos litigantes, em processo administrativo ou judicial é assegurado o contraditório e a ampla defesa’. Portanto, trata-se aí da aplicação do famoso ‘due process of law’, oponível tanto em relação às pessoas jurídicas como às pessoas físicas”.

Por aí, então, ao se aplicar uma sanção administrativa ao administrado, seja ele pessoa física ou jurídica, há que se lhe propiciar o contraditório e, sobretudo, a ampla defesa. Ora, se se aplicar a “responsabilidade objetiva às pessoas jurídicas, como há que se provar tão somente o dano e o nexo causal, não há aí, com certeza, o oferecimento da ampla defesa. A responsabilidade objetiva aplicada integralmente ao procedimento adminis-trativo sancionatório, portanto é absolutamente inconstitucional. O segundo aspecto é que a responsabilidade é uma expressão que somente diz respeito à obrigação de reparação de um dano, este que seja o dever de indenizar um dano causado pelo infrator. Quando

Page 172: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

172 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Doutrina

estudamos o tema da ‘responsabilidade’ estamos tão somente dentro da seara da máxima romana: ‘a ninguém é dado se locupletar com o prejuízo alheio’ ”.

Já a sanção penal ou administrativa não se confunde com o tema dessa respon-sabilidade, desde longos tempos, denominada de civil.

Não há, nos temas das sanções administrativas, a questão da responsabilização, mas sim do cumprimento das punições sofridas pelo indivíduo ou pela pessoa jurídica. Decorrente dessas punições pode ocorrer práticas de danos e aí sim, e somente então, haverá que se falar em responsabilidade civil, subjetiva ou objetiva.

Destarte, a nossa posição é a seguinte:- quando se trata de aplicar uma sanção administrativa e tão só, não há possibili-

dade de se aplicar a “responsabilidade objetiva, porque tal fato se constituirá numa clara inconstitucionalidade, porque a ampla defesa prevista no art. 5º, LV, da CF é invocável tanto pela pessoa física quanto pela jurídica”.

- se após o processo com o contraditório e a ampla defesa, se concluir que, da sanção a aplicar decorre também o dever de reparar um dano, surge então a responsa-bilidade objetiva, ou seja, agora sim, para a cobrança de indenização, como o dano está comprovado e o nexo causal também, impõe-se a responsabilidade administrativa objetiva.

Após essa introdução, iremos analisar a Lei nº 12.846, de 01 de agosto de 2013, em seus aspectos mais relevantes.

I. O CAPÍTULO I TRATA DAS “DISPOSIÇÕES GERAIS”

Já no seu artigo 1º contempla o que denominou de responsabilidade objetiva admi-nistrativa, além da civil, de pessoas jurídicas, pela prática de atos contra a Administração Pública Nacional ou estrangeira.

O Parágrafo único indica as corporações privadas que poderão receber a aplicação da Lei.

O art. 2º dispõe que aqueles atos contra a administração pública, nacional ou es-trangeira, serão atos lesivos previstos nesta Lei praticados em seu interesse ou benefício exclusivo ou não (das pessoas jurídicas indicas no Parágrafo único); diz ainda que as pessoas jurídicas serão responsabilizadas objetivamente, nos âmbitos administrativo e civil.

Quais seriam esses atos lesivos previstos na Lei?

II. CAPÍTULO II - DOS ATOS LESIVOS À ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA, NACIONAL OU ESTRANGEIRA

O art. 5º indica, de forma taxativa quais são esses atos lesivos:I - prometer, oferecer ou dar, direta ou indiretamente, vantagem indevida a agente público, ou a terceira pessoa a ele relacionada;II - comprovadamente, financiar, custear, patrocinar ou de qualquer modo subvencionar a prática dos atos ilícitos previstos nesta Lei;

Page 173: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

173LEI ANTICORRUPÇÃO CONTRA PESSOAS FÍSICAS E JURÍDICAS DE DIREITO PRIVADO

III - comprovadamente, utilizar-se de interposta pessoa física ou jurídica para ocultar ou dissimular seus reais interesses ou a iden-tidade dos beneficiários dos atos praticados;(Observações - De acordo com o que concluímos na introdução, a simples suspeita de prática desses atos não pode implicar na res-ponsabilização objetiva administrativa. Somente se, em decorrência da comprovação conclusiva da prática desses atos, resultarem danos às administrações públicas nacionais ou estrangeiras, é que caberá a responsabilização (reposição dos valores que importaram os danos) objetiva dos autores daqueles atos lesivos. Se se aplicar como parece pretender a Lei, a responsabilização objetiva para a verificação ou não da prática daqueles atos, será o procedimento absolutamente inconstitucional, por violação do princípio constitu-cional da ampla defesa).IV - no tocante a licitações e contratos:a) frustrar ou fraudar, mediante ajuste, combinação ou qualquer outro expediente, o caráter competitivo de procedimento licitatório público;b) impedir, perturbar ou fraudar a realização de qualquer ato de procedimento licitatório público;c) afastar ou procurar afastar licitante, por meio de fraude ou ofere-cimento de vantagem de qualquer tipo;d) fraudar licitação pública ou contrato dela decorrente;e) criar, de modo fraudulento ou irregular, pessoa jurídica para participar de licitação pública ou celebrar contrato administrativo;f) obter vantagem ou benefício indevido, de modo fraudulento, de modificações ou prorrogações de contratos celebrados com a administração pública, sem autorização em lei, no ato convocatório da licitação pública ou nos respectivos instrumentos contratuais; oug) manipular ou fraudar o equilíbrio econômico-financeiro dos con-tratos celebrados com a administração pública;V - dificultar atividade de investigação ou fiscalização de órgãos, entidades ou agentes públicos, ou intervir em sua atuação, inclusive no âmbito das agências reguladoras e dos órgãos de fiscalização do sistema financeiro nacional.(Observações - Como se verifica, são estas infrações que reque-rem o contraditório e a ampla defesa, nos termos do art. 5º, LV da CF). Não há possibilidade de se limitar à prova do dano e do nexo causal simplesmente, aplicando-se, nesses casos, a “responsabi-lidade objetiva”, pois que em todas essas infrações, observa-se a necessária ampla defesa. Daí a inconstitucionalidade de se aplicar a “responsabilidade objetiva administrativa, nesses casos”.

O § 1º define o que seja administração pública estrangeira e o § 2º equipara à administração pública estrangeira as organizações públicas internacionais.

O § 3º define o que seja “agente público estrangeiro”.

Page 174: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

174 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Doutrina

III. O CAPÍTULO III TRATA DA “RESPONSABILIZAÇÃO ADMINISTRATIVA”

O art. 6º prevê as sanções (taxativas) que poderão ser aplicadas às pessoas jurídicas consideradas responsáveis pelos atos lesivos previstas nesta Lei:

I - multa, no valor de 0,1% (um décimo por cento) a 20% (vinte por cento) do faturamento bruto do último exercício anterior ao da instauração do processo administrativo, excluídos os tributos, a qual nunca será inferior à vantagem auferida, quando for possível sua estimação; e(Observações - O faturamento deverá ser do exercício iniciado com o começo das atividades financeiras fraudulentas).II - publicação extraordinária da decisão condenatória.

O § 1º reza: “As sanções serão aplicadas fundamentadamente, isolada ou cumu-lativamente, de acordo com as peculiaridades do caso concreto e com a gravidade e natureza das infrações”.

O § 2º diz que: “A aplicação das sanções previstas neste artigo será precedida da manifestação jurídica elaborada pela Advocacia Pública ou pelo órgão de assistência jurídica, ou equivalente, do ente público”.

O § 3º dispõe: “A aplicação das sanções previstas neste artigo não exclui, em qualquer hipótese, a obrigação da reparação integral do dano causado”.

(Observações - Essas disposições mostram que a Lei leva em consideração a distinção entre a aplicação das sanções administrativas e a aplicação da responsabilidade (reparação) de danos decorrentes da infração).

Portanto, podemos dizer que, para a aplicação das sanções não há que se falar em “responsabilidade”, em especial, a objetiva. Deverá no processo de investigação da efetivação das infrações para aplicação das sanções, observar-se, necessariamente o princípio do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, LV da CF).

Se se concluir que ocorreu a infração e que dela decorreu danos, prejuízos ao erário público, aí sim surge a “responsabilidade”, ou seja, o dever de reparar o dano ocasionado, responsabilidade essa que será objetiva.

E a lei, se interpretada, neste ponto, com essas distinções estará correta. Como diz o Prof. Fábio Medina Osório (ob. cit., p. 92), “o ressarcimento ao erário se aproxima mais da teoria da responsabilidade civil do que penal ou das sanções administrativas, pelo que não se submete ao conceito de sanção administrativa nos mesmos termos em que ocorre com outras medidas, até porque a obrigação de ressarcir é uma restituição ao estado anterior. Fora de dúvida, não se trata de uma sanção administrativa. De fato, medidas ressarcitórias, ainda que dotadas de finalidades intimidatórias, não podem, pura e simplesmente, ser tratadas como sanções administrativas” (p. 93).

Portanto, fica na Lei essa interpretação. A sanção administrativa difere da respon-sabilidade administrativa (reparação do dano), aplicando-se a responsabilidade objetiva somente neste último caso.

Page 175: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

175LEI ANTICORRUPÇÃO CONTRA PESSOAS FÍSICAS E JURÍDICAS DE DIREITO PRIVADO

Já o § 4º desse artigo 6º dispõe: “Na hipótese do inciso I do caput, caso não seja possível utilizar o critério do valor do faturamento bruto da pessoa jurídica, a multa será de R$ 6.000,00 (seis mil reais) a R$ 60.000.000,00 (sessenta milhões de reais)”. (Aqui, demonstrado fica que se trata de uma sanção administrativa, diferindo da responsabilidade reparatória).

A propósito, eis outra citação do autor antes referido (ob. cit., p. 93) (citação essa feita em nota de rodapé): “35 - Nem toda medida gravosa, de fato, será uma sanção admi-nistrativa. É importante distinguir, especialmente na área fiscal, as medidas ressarcitórias ou algumas multas cuja finalidade não é exatamente punitiva, senão estimulatória de determinados comportamentos, das sanções propriamente ditas”.

O art. 7º reza: Serão levados em consideração na aplicação das sanções:

I - a gravidade da infração;II - a vantagem auferida ou pretendida pelo infrator;III - a consumação ou não da infração;IV - o grau de lesão ou perigo de lesão;V - o efeito negativo produzido pela infração;VI - a situação econômica do infrator;VII - a cooperação da pessoa jurídica para a apuração das infrações;VIII - a existência de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e a aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta no âmbito da pessoa jurídica;IX - o valor dos contratos mantidos pela pessoa jurídica com o órgão ou entidade pública lesados; eX - (VETADO).(Observações - Todos esses elementos-condições que serão leva-dos em conta, dizem respeito, como se verifica de suas próprias descrições, na aplicação das sanções, nem podem e nem devem ser cogitados para a aplicação de responsabilidades ressarcitórias).

IV. O CAPÍTULO IV - “DO PROCESSO ADMINISTRATIVO DE RESPONSABILIZAÇÃO”

O art. 8º dispõe: “A instauração e o julgamento de processo administrativo para apuração da responsabilidade de pessoa jurídica cabem à autoridade máxima de cada órgão ou entidade dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, que agirá de ofício ou mediante provocação, observado o contraditório e a ampla defesa”.

(Observações - a referência à ampla defesa demonstra que se está tratando das sanções administrativas).

O § 2º dispõe: “No âmbito do Poder Executivo federal, a Controladoria-Geral da União - CGU terá competência concorrente para instaurar processos administrativos de

Page 176: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

176 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Doutrina

responsabilização de pessoas jurídicas ou para avocar os processos instaurados com fundamento nesta Lei, para exame de sua regularidade ou para corrigir-lhes o andamento”.

O art. 9º traz uma disposição importante ao determinar que “Competem à Con-troladoria-Geral da União - CGU a apuração, o processo e o julgamento dos atos ilícitos previstos nesta Lei, praticados contra a administração pública estrangeira, observado o disposto no Artigo 4 da Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Pú-blicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais, promulgada pelo Decreto nº 3.678, de 30 de novembro de 2000”.

O art. 10 dispõe que o processo administrativo para apuração da responsabilidade de pessoa jurídica será conduzido por comissão designada pela autoridade instauradora e composta por 2 (dois) ou mais servidores estáveis.

(Observações - É deveras importante que os funcionários componentes das co-missões processantes sejam estáveis, porque haveria, pelo menos, maior probabilidade de não se submeterem à corrupção).

O § 2º do art. 10 contém uma providência a ser tomada em seu nível superior à comissão, pois esta tem o poder de, cautelarmente, propor à autoridade instauradora que suspenda os efeitos do ato ou processo objeto da investigação.

O § 3º Concede à comissão um prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias contados da data da publicação do ato que a instituir e, ao final, apresentar relatórios sobre os fatos apurados e eventual responsabilidade da pessoa jurídica, sugerindo de forma motivada as sanções a serem aplicadas.

Portanto, quando o dispositivo fala em responsabilidade da pessoa jurídica, leia-se, sanção à pessoa jurídica.

O § 4º dispõe que prazo previsto de 180 (cento e oitenta) dias poderá ser prorrogado, mediante ato fundamentado da autoridade instauradora.

O art. 11 dispõe que no processo administrativo para apuração de responsabilidade, será concedido à pessoa jurídica prazo de 30 (trinta) dias para defesa, contados a partir da intimação.

(Observações - Esse prazo vale tanto em relação à aplicação de sanção como para a cobrança de indenização pelo eventual dano decorrente, sendo que, aqui, a res-ponsabilidade será objetiva).

O art. 13 nos apresenta a seguinte redação:

A instauração de processo administrativo específico de reparação integral do dano não prejudica a aplicação imediata das sanções estabelecidas nesta Lei.(Observações - Essa norma confirma expressamente o que ví-nhamos sublinhando. Haverá um processo administrativo para a aplicação de sanção, que é de natureza subjetiva e outro para a aplicação (específica) de reparação do dano, sendo esta, de ordem objetiva. A distinção à qual nos referimos várias vezes vem aqui observada pela Lei em comento).

Page 177: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

177LEI ANTICORRUPÇÃO CONTRA PESSOAS FÍSICAS E JURÍDICAS DE DIREITO PRIVADO

O Parágrafo único diz que “Concluído o processo e não havendo pagamento, o crédito apurado será inscrito em dívida ativa da Fazenda Pública”.

O art. 14 prevê a figura jurídica da desconsideração da personalidade jurídica, “sempre que utilizada com abuso do direito para facilitar, encobrir ou dissimular a prática dos atos ilícitos previstos nesta Lei ou para provocar confusão patrimonial, sendo esten-didos todos os efeitos das sanções aplicadas à pessoa jurídica aos seus administradores e sócios com poderes de administração, observados o contraditório e a ampla defesa”.

(Observações - Nesta hipótese, em se tratando de sancionar pessoas físicas, há que ficar comprovada a culpabilidade dos administradores e sócios para que recebam as sanções aqui mencionadas).

O art. 15 prevê que “A comissão designada para apuração da responsabilidade de pessoa jurídica, após a conclusão do procedimento administrativo, dará conhecimento ao Ministério Público de sua existência, para apuração de eventuais delitos”.

V. O CAPÍTULO V DISPÕE SOBRE “ACORDO DE LENIÊNCIA”

O art. 16 prevê o seguinte:A autoridade máxima de cada órgão ou entidade pública poderá celebrar acordo de leniência com as pessoas jurídicas responsáveis pela prática dos atos previstos nesta Lei que colaborem efetivamente com as investigações e o processo administrativo, sendo que dessa colaboração resulte:I - a identificação dos demais envolvidos na infração, quando couber; eII - a obtenção célere de informações e documentos que comprovem o ilícito sob apuração.

O § 1º dispõe:O acordo de que trata o caput somente poderá ser celebrado se preenchidos, cumulativamente, os seguintes requisitos:I - a pessoa jurídica seja a primeira a se manifestar sobre seu interesse em cooperar para a apuração do ato ilícito;II - a pessoa jurídica cesse completamente seu envolvimento na infração investigada a partir da data de propositura do acordo;III - a pessoa jurídica admita sua participação no ilícito e coopere plena e permanentemente com as investigações e o processo administrativo, comparecendo, sob suas expensas, sempre que solicitada, a todos os atos processuais, até seu encerramento.

O § 2º dispõe que a celebração do acordo de leniência isentará a pessoa jurídica das sanções previstas no inciso II do art. 6º e no inciso IV do art. 19, e reduzirá em até 2/3 (dois terços) o valor da multa aplicável.

(Observações - O inciso II do art. 6º é uma sanção que se traduz na “publicação extraordinária da decisão condenatória”; o inc. IV do art. 19 é uma sanção que se traduz

Page 178: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

178 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Doutrina

na “proibição de receber incentivos, subsídios, subvenções, doações ou empréstimos de órgãos ou entidades públicas ou controladas pelo Poder Público. Pelo prazo mínimo de 1 (um) ano e máximo de 5 (cinco) anos).

O acordo de leniência diz respeito à comprovação do ilícito e de sua sanção, não eximindo, conforme reza o § 3º do art. 16, a pessoa jurídica da obrigação de reparar inte-gralmente o dano causado (responsabilidade administrativa objetiva).

O § 5º dispõe: “Os efeitos do acordo de leniência serão estendidos às pessoas jurídicas que integram o mesmo grupo econômico, de fato e de direito, desde que firmem o acordo em conjunto, respeitadas as condições nele estabelecidas”.

O § 7º prevê que não importará em reconhecimento da prática do ato ilícito inves-tigado a proposta de acordo de leniência rejeitada.

O § 8º dispõe: “Em caso de descumprimento do acordo de leniência, a pessoa jurídica ficará impedida de celebrar novo acordo pelo prazo de 3 (três) anos contados do conhecimento pela administração pública do referido descumprimento”.

O § 9º dispõe que: “A celebração do acordo de leniência interrompe o prazo pres-cricional dos atos ilícitos previstos nesta Lei”.

O § 10 dá à Controladoria-Geral da União - CGU, competência para celebrar os acordos de leniência no âmbito do Poder Executivo federal, bem como no caso de atos lesivos praticados contra a administração pública estrangeira.

O art. 17 traz uma novidade em relação à Lei Geral de Licitações: “A administração pública poderá também celebrar acordo de leniência com a pessoa jurídica responsável pela prática de ilícitos previstos na Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, com vistas à isenção ou atenuação das sanções administrativas estabelecidas em seus arts. 86 a 88”.

VI. O CAPÍTULO VI TRATA DA “RESPONSABILIZAÇÃO JURÍDICA”

O art. 18 diz o óbvio: “Na esfera administrativa, a responsabilidade da pessoa jurídica não afasta a possibilidade de sua responsabilização na esfera judicial”.

É evidente, pois, “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de direito” (art. 5º, XXXV, da CF).

O art. 19 traz as sanções judiciais a que estarão sujeitas as pessoas jurídicas, me-diante ações promovidas pelos órgãos de representação judicial da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

São estas as sanções:I - perdimento dos bens, direitos ou valores que representem vantagem ou proveito direta ou indiretamente, obtidos da infração, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé;II - suspensão ou interdição parcial de suas atividades;III - dissolução compulsória da pessoa jurídica;IV - proibição de receber incentivos, subsídios, subvenções, doações

Page 179: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

179LEI ANTICORRUPÇÃO CONTRA PESSOAS FÍSICAS E JURÍDICAS DE DIREITO PRIVADO

ou empréstimos de órgãos ou entidades públicas e de instituições financeiras públicas ou controladas pelo poder público, pelo prazo mínimo de 1 (um) e máximo de 5 (cinco) anos.

O § 1º reza:A dissolução compulsória da pessoa jurídica será determinada quando comprovado:I - ter sido a personalidade jurídica utilizada de forma habitual para facilitar ou promover a prática de atos ilícitos; ouII - ter sido constituída para ocultar ou dissimular interesses ilícitos ou a identidade dos beneficiários dos atos praticados.(Observações - O inciso I deverá ser conduzido, para a verificação da ocorrência da infração de forma subjetiva, com a observância da culpabilidade; se se confirmar a infração, e se verificar que dela decorram valores e bens que representem vantagem ou proveitos direta ou indiretamente dela obtidos, inicia-se outro processo ou fase outra do mesmo processo, aplicando-se a responsabilidade objetiva, visando o ressarcimento do órgão/entidade lesados).

Com relação aos incisos II, III e IV, trata-se de aplicação das sanções nesses incisos previstos, nada tendo a haver com ressarcimento de danos, decorrendo daí que não se pode aplicar a responsabilidade administrativa objetiva, sendo de rigor o oferecimento do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, LV da CF).

O § 4º dispõe que o MP ou a Advocacia Pública ou órgão de representação judicial, ou equivalente do ente público, poderá requerer a indisponibilidade de bens, direitos ou valores necessários à garantia do pagamento da multa ou da reparação integral do dano causado, conforme previsto no art. 7º, ressalvado o direito do terceiro de boa-fé.

(Observações - O bloqueio de bens, direitos e valores devem ser daqueles que teriam sido obtidos através do ato infracional e devem ser limitados aos valores estimados na Ação).

O art. 20 dispõe que “Nas ações ajuizadas pelo Ministério Público, poderão ser aplicadas as sanções previstas no art. 6º (administrativas), sem prejuízo daquelas previs-tas neste Capítulo, desde que constatada a omissão das autoridades competentes para promover a responsabilização administrativa (sanções)”.

(Observações - Se os processos administrativos de verificação das infrações admi-nistrativas tiverem sido iniciados, o MP não poderá pretender a aplicação destas sanções).

O art. 21 dispõe que “Nas ações de responsabilização judicial, será adotado o rito previsto na Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985”.

(Observações - Como ocorre com a Lei de Improbidade Administrativa, a parte subjetiva correrá com base na Lei 7.347, de 24 de julho de 1985 e a parte substancial com base na presente Lei).

O parágrafo único deste artigo 21 prevê exatamente o que explanamos na introdução.

Page 180: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

180 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Doutrina

Diz ele: “A condenação torna certa a obrigação de reparar, integralmente, o dano causado pelo ilícito, cujo valor será apurado em posterior liquidação, se não constar ex-pressamente da sentença”.

(Observações - A “condenação” diz respeito à ocorrência da infração, que deverá ser apurada para a aplicação da sanção, com a observância do contraditório e da ampla defesa. Se dela decorrer a ocorrência de dano, a sua reparação será efetuada com base na responsabilidade objetiva, ou seja, através da demonstração do dano e do nexo causal atribuindo ao infrator).

DISPOSIÇÕES FINAIS

O art. 22 cria no âmbito do Poder Executivo Federal, o Cadastro Nacional de Em-presas Punidas - CNEP, que reunirá dados e dará publicidade às sanções aplicadas pelos órgãos ou entidades dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário de todas as esferas de governo com base nesta Lei.

O § 1º reza: “Os órgãos e entidades referidos no caput deverão informar e manter atualizados, no CNEP, os dados relativos às sanções por eles aplicadas”.

O § 2º dispõe que:O CNEP conterá, entre outras, as seguintes informações acerca das sanções aplicadas:I - razão social e número de inscrição da pessoa jurídica ou entidade no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica - CNPJ;II - tipo de sanção; eIII - data de aplicação e data final da vigência do efeito limitador ou impeditivo da sanção, quando for o caso.

O § 3º dispõe que as autoridades competentes, para celebrarem acordos de leniência previstos nesta Lei, também deverão prestar e manter atualizadas no CNEP, após a efetivação do respectivo acordo, as informações acerca do acordo de leniência celebrado, salvo se esse procedimento vier a causar prejuízo às investigações e ao pro-cesso administrativo.

O § 4º reza: “Caso a pessoa jurídica não cumpra os termos do acordo de leniên-cia, além das informações previstas no § 3º, deverá ser incluída no CNEP referência ao respectivo descumprimento”.

O § 5º dispõe que: “Os registros das sanções e acordos de leniência serão ex-cluídos depois de decorrido o prazo previamente estabelecido no ato sancionador ou do cumprimento integral do acordo de leniência e da reparação do eventual dano causado, mediante solicitação do órgão ou entidade sancionadora”.

O art. 23 dispõe: “Os órgãos ou entidades dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário de todas as esferas de governo deverão informar e manter atualizados, para fins de publicidade, no Cadastro Nacional de Empresas Inidôneas e Suspensas - CEIS, de caráter público, instituído no âmbito do Poder Executivo federal, os dados relativos às

Page 181: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

181LEI ANTICORRUPÇÃO CONTRA PESSOAS FÍSICAS E JURÍDICAS DE DIREITO PRIVADO

sanções por eles aplicadas, nos termos do disposto nos arts. 87 e 88 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993”.

(Observações - Esse cadastro, naturalmente, servirá para impedir a participação em licitações públicas, quaisquer que sejam, por declaração de inidoneidade por empresa privada por órgão de entidade da Administração Pública, ou seja, esse impedimento vale perante qualquer órgão ou entidade pública federal, estadual ou municipal. Já, quanto à suspensão temporária de licitar e contratar com a Administração vale somente no âmbito do ente que declarar empresa suspensa temporariamente de licitar, e contratar no âmbito do órgão ou unidade administrativa que lhe aplicou as sanções. Portanto, neste aspecto, o Cadastro é ilegal, pois, pelo fato de uma empresa estar suspensa de licitar, por um órgão ou entidade, essa suspensão não vale perante outros órgãos federais, estaduais ou municipais).

O art. 24 dispõe que a multa e o perdimento de bens, direitos ou valores aplicados com fundamento nesta Lei serão destinados, preferencialmente, aos órgãos ou entidades públicas lesadas.

(Observações - a expressão “preferencialmente” está aí utilizada para demonstrar que a multa e o perdimento de bens não terão destinação para um Fundo qualquer, atinente ao tema, como, por exemplo, o faz o art. 73 da Lei dos Crimes Ambientais - Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998).

Esse artigo diz expressamente: “Os valores arrecadados em pagamento de multas por infração ambiental serão revertidos ao Fundo Nacional do Meio Ambiente, criado pela Lei nº 7.797, de 10 de julho de 1989, Fundo Naval, criado pelo Decreto nº 20.923, de 08 de janeiro de 1932, fundos municipais e estaduais de Meio Ambiente ou correlatos, conforme dispuser o órgão arrecadador”.

O art. 25 trata da prescrição, fixando-a em 5 (cinco) anos as infrações previstas na Lei, contados da data da ciência da infração ou, no caso de infração permanente ou continuada, do dia em que tiver cessado.

O Parágrafo único dispõe que na esfera administrativa ou judicial, a prescrição será interrompida com a instauração de processo que tenha por objeto a apuração da infração.

(Observações - É, atualmente, da doutrina e da jurisprudência que a prescrição de ações do Poder Público contra os particulares é de 5 (cinco) anos, ou pela aplicação do Decreto 20.910/1937 por simetria, ou pela aplicação por analogia do art. 21 da Lei de Ação Popular).

O art. 26 dispõe que a pessoa jurídica será representada no processo administrativo na forma do seu estatuto ou contrato social.

O § 1º reza: “As sociedades sem personalidade jurídica serão representadas pela pessoa a quem couber a administração de seus bens”.

O § 2º: “A pessoa jurídica estrangeira será representada pelo gerente, representante ou administrador de sua filial, agência ou sucursal aberta ou instalada no Brasil”.

O art. 27 prevê punições para a autoridade administrativa competente que, tendo conhecimento das infrações previstas nesta Lei, não adotar providências para a apuração

Page 182: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

182 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Doutrina

dos fatos, será responsabilizada penal, civil e administrativamente nos termos da legislação específica aplicável.

A responsabilidade administrativa será de ordem subjetiva, pois que se trata de pessoa humana, idem quanto à responsabilidade civil, que será subjetiva; a responsabili-dade penal dependerá do enquadramento do ilícito em algum dispositivo do Código Penal.

O art. 28 diz que a Lei aplica-se aos atos lesivos praticados por pessoa jurídica brasileira contra a administração pública estrangeira, ainda que cometidos no exterior.

(Observações - Não somos conhecedores do Direito Internacional Público. Contudo, por lógica, parece-nos que se a pessoa jurídica cometer um delito contra a administração pública estrangeira no exterior, a eventual lei violada teria que ser também do País onde ocorreu o delito. Ou seja, faz-se necessário que a pessoa jurídica indicada no Parágrafo único do art. 1º da lei ora em comento seja condenada pela prática de atos lesivos pela autoridade estrangeira de acordo com as disposições legais do país em que tais atos foram cometidos, para que, posteriormente venha a responder também em solo pátrio).

O art. 29 dispõe que o disposto nesta Lei não exclui as competências do Conselho Administrativo de Defesa Econômica, do Ministério da Justiça e do Ministério da Fazenda para processar e julgar fato que constitua infração à ordem econômica.

Finalmente o art. 30 reza que:A aplicação das sanções previstas na Lei 12.846/2013 não afeta os processos de responsabilização e aplicação de penalidades decorrentes de:I - ato de improbidade administrativa nos termos da Lei nº 8.429, de 02 de junho de 1992; eII - atos ilícitos alcançados pela Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, ou outras normas de licitações e contratos da administração pública, inclusive no tocante ao Regime Diferenciado de Contratações Pú-blicas - RDC instituído pela Lei nº 12.462, de 4 de agosto de 2011.

O artigo final, nº 31 dispõe que a Lei entrará em vigor 180 (cento e oitenta) dias após a data de sua publicação.

Como a publicação da Lei foi em 01 de agosto de 2013, ela entrou em vigor em 02 de janeiro de 2014.

Page 183: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

AÇÃO CIVIL PÚBLICA - RESIDÊNCIAS INCLUSIVAS - CONTESTAÇÃO

EXMO. SR. DR. JUIZ DE DIREITO DA ___ª VARA DA FAZENDA PÚBLICA DE __________

Processo nº _____

MUNICÍPIO DE __________, pessoa jurídica de direito público interno, com sede nesta cidade, na Rua __________, endereço em que recebe intimações, inscrito no CNPJ-MF sob nº __________, por seu procurador firmatário, vem, respeitosamente, perante Vossa Excelência, nos termos dos arts. 297 e 188 do Código de Processo Civil, apresentar

CONTESTAÇÃO

à ação que lhe move MINISTÉRIO PÚBLICO DE CAXIAS DO SUL, dizendo e requerendo o que segue:

1. DA PRETENSÃO DA INICIAL

O MINISTÉRIO PÚBLICO ingressou com Ação Civil Pública contra o MUNICÍPIO DE __________ objetivando a criação de residências inclusivas. Foi proferida medida liminar, determinando que o Município atenda a esse pedido em 120 dias.

Citado, o Município apresenta sua defesa nesta oportunidade.

2. PRELIMINARES

CHAMAMENTO AO PROCESSO

O Poder Executivo Municipal conta com uma entidade que atende a área de Assistência Social, criada pela Lei Municipal nº _____. Seu art. 1º trata de sua natureza jurídica:

Art. 1º Fica criada a Fundação de Assistência Social (FAS), instituição de ca-ráter fundacional do Poder Executivo Municipal, com personalidade jurídica de Direito Público Interno, patrimônio próprio, regendo-se pelo Estatuto, Regi-mento Interno e pela legislação aplicável, com sede e foro jurídico no Municí-pio de Caxias do Sul.

Assuntos Diversos: Prática Forense

Page 184: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

184 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Prática

Seu art. 2º traz a finalidade da FAS, e seu art. 3º seus objetivos (com redação dada pela Lei Municipal nº 7.247, de 15 de dezembro de 2010):

Art. 2º A FAS, gestora da política municipal de assistência social, tem por fi-nalidade planejar, coordenar, executar, articular, monitorar e avaliar a política municipal de assistência social, conforme preconiza a Lei Federal nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993 - Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), e de acordo com os princípios, diretrizes e objetivos da Política Nacional de Assistência Social (PNAS 2004) e com os eixos estruturantes de gestão e princípios organizativos do Sistema Único de Assistência Social (SUAS 2005), e em consonância com a legislação vigente.§ 1º A Política Municipal de Assistência Social é composta pelo gestor; pelo Conselho Municipal de Assistência Social (CMAS); pelo Fundo Municipal de Assistência Social (FMAS); e pelas entidades e organizações da Rede Socio-assistencial inscritas no CMAS e vinculadas ao Sistema Único de Assistência Social (SUAS).§ 2º A execução das ações no âmbito da política municipal de assistência social se darão de forma direta pelo gestor e indireta mediante a celebração de Ter-mos de Convênios entre a FAS e as entidades e organizações de assistência social integrantes da Rede Socioassistencial inscritas no CMAS e vinculadas ao SUAS, bem como através de contratos com a rede privada de prestação de serviços na área da assistência social inexistentes na rede pública, com base na legislação vigente aplicável.§ 3º As entidades e organizações de assistência social que incorrem em irregu-laridades na aplicação dos recursos que lhe forem repassados pelos poderes públicos terão sua inscrição no CMAS e vinculação ao SUAS canceladas, sem prejuízo da responsabilidade civil e penal, mediante prévio processo adminis-trativo para apuração das irregularidades por parte do gestor municipal e com a aprovação do CMAS.

Art. 3º A FAS terá como objetivos:I - prover, executar e articular serviços, programas, projetos e benefícios de proteção social básica e especial de média e alta complexidade para cidadãos, grupos e/ou famílias que se encontrem em situação de vulnerabilidade e risco social;II - assegurar que, na execução de suas ações diretas ou indiretas, sejam ob-servados os princípios da matricialidade familiar, da territorialidade, proteção proativa, integração à seguridade social, intersetorialidade com as políticas sociais e econômicas;III - garantir a proteção social hierarquizada entre proteção social básica e es-pecial de média e alta complexidade, a vigilância social e a defesa dos direitos socioassistenciais;IV - criar, organizar e alimentar Banco de Dados integrados visando à criação de indicadores sociais que possam subsidiar as ações da política municipal de assistência social, bem como das demais políticas sociais do Município;V - promover ações de inclusão produtiva, enfrentamento à pobreza e geração de trabalho e renda em parceria com as demais Secretarias Municipais;

Page 185: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

185AÇÃO CIVIL PÚBLICA - RESIDÊNCIAS INCLUSIVAS - CONTESTAÇÃO

VI - fomentar ações que tenham por direção o desenvolvimento humano e social integral e a proteção aos direitos da cidadania; eVII - prestar assessoria técnica de planejamento, monitoramento e avaliação aos programas, projetos e serviços de execução direta e indireta da Rede Socioassistencial.

Assim, as políticas públicas que envolvam assistência social no Município devem ser atendidas pela FAS, que tem planejamento e rubricas orçamentárias para atender essa finalidade (autonomia administrativa e financeira).

A criação das residências inclusivas deve ser feita pela Fundação de Assistência Social (FAS), pessoa jurídica municipal da administração indireta, conforme documento em ane-xo (Memorando nº _____), cuja essência segue:

Conforme solicitação, naquilo que compete à Secretaria Municipal da Saú-de, gestora da política de saúde em nível de município, informamos que o atendimento às pessoas adultas com problema de saúde que necessitam de intervenção e de tratamento para as situações de agudização do quadro, ou também para avaliação e encaminhamentos de tratamento de saúde, bem como o tratamento ambulatorial são realizados na rede SUS, nos serviços que compõem a rede de atendimento: Unidade Básica de Saúde, Ambulató-rios e Serviços de Diagnóstico, Pronto Atendimento, Hospitais, Serviços de Reabilitação, Serviços Especializados para o Atendimento em Saúde Mental dentro das tipificações de serviços de saúde. O fornecimento da medicação a estes usuários e a população usuária do SUS, também é garantido conforme a legislação pertinente, inclusive seguindo as orientações do Decreto nº 7.508 de 28 de junho de 2011 nos arts. 28 e 29.O abrigamento de pessoas, conforme está descrito no documento Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais - Texto da Resolução nº 109, de 11 de novembro de 2009, vai ocorrer com as pessoas que vivenciam situações de vulnerabilidade e risco social e cujos vínculos familiares estejam rompidos ou fragilizados e que não dispõem de condições de autossustentabilidade de-verá ocorrer em Residências Inclusivas, que tem como finalidade favorecer a construção progressiva da autonomia, da inclusão social e comunitária e do desenvolvimento das capacidades adaptativas para a vida diária, conforme descrito na Recomendação (Inquérito Civil nº _____). A caracterização deste tipo de serviço, portanto é da Política da Assistência Social.Informamos que na data de 13 de março de 2013, o Ministério do Desen-volvimento Social e Combate à Fome, publicou a Resolução nº 6 atribuindo à Assistência Social a competência para tratar de residência inclusiva para acolhimento de jovens e adultos com deficiência, em situação de dependência, nos termos do artigo 2º da Resolução e não mais a pasta da saúde, conforme cópia em anexo.

A Resolução nº 6, de 13 de março de 2013, expedida pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, trata das residências inclusivas, requeridas pelo Ministério

Page 186: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

186 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Prática

Público. O art. 2º daquela Resolução informa que a “Residência Inclusiva é uma unidade que oferta Serviço de Acolhimento Institucional, no âmbito da Proteção Social Especial de Alta Complexidade do SUAS”. Não resta dúvida, portanto, que referida atividade é de atribuição da entidade responsável pela Assistência Social, caso da FAS.

Esse ente, no entanto, não é parte do processo, o que faria com que o Município (admi-nistração direta) arcasse com atribuição de outra pessoa jurídica, criada para o atendi-mento assistencial.

Requer, assim, o chamamento ao processo da Fundação de Assistência Social, com base no art. 77, III, do CPC.

ILEGITIMIDADE PASSIVA

Pelos mesmos fundamentos acima, requer o reconhecimento da ilegitimidade passiva do Município de Caxias do Sul, mantendo-se, somente, a Fundação de Assistência Social. Como consequência, requer a extinção do feito em relação ao Município, sem resolução de mérito, com base no art. 267, VI, do CPC.

3. DO MÉRITO

RESIDÊNCIAS INCLUSIVAS

O direito à assistência social está previsto no art. 194 da Constituição Federal:

Art. 194. A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social.

Esse direito é regulamentado pela Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993, conforme previsto em seu art. 1º:

Art. 1º A assistência social, direito do cidadão e dever do Estado, é Política de Seguridade Social não contributiva, que provê os mínimos sociais, realizada através de um conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da socieda-de, para garantir o atendimento às necessidades básicas.

A assistência social visa, assim, garantir os mínimos sociais por meio de um conjunto integrado de ações que envolvem o Poder Público e a sociedade, visando o atendimento das necessidades básicas. Dentre os objetivos previstos na Lei de Assistência Social, estão os seguintes:

Art. 2º A assistência social tem por objetivos:I - a proteção social, que visa à garantia da vida, à redução de danos e à pre-venção da incidência de riscos, especialmente:a) a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice;

Page 187: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

187AÇÃO CIVIL PÚBLICA - RESIDÊNCIAS INCLUSIVAS - CONTESTAÇÃO

d) a habilitação e reabilitação das pessoas com deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária;[...]

Nos casos de residências inclusivas, os usuários não precisam de uma assistência diu-turna na área da saúde, mas um serviço de assistência na área social, que exige o forne-cimento de necessidades básicas e, em relação a eventuais enfermidades, a ministração dos fármacos de que necessita.Assim, confirmam-se os argumentos trazidos na preliminar, de que o serviço pretendido deve ser fornecido pela FAS. Subsidiariamente, necessário o ingresso da FAS no presen-te processo para a criação de residenciais inclusivos em parceria com a Administração Direta (Secretaria Municipal da Saúde).LIMITAÇÃO ORÇAMENTÁRIAA Constituição Federal é considerada “cidadã” por ser a protagonista da criação de diver-sos direitos. Podemos citar, como exemplo, os direitos do art. 6º:

Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.

São compromissos assumidos pela Assembleia Constituinte para o Poder Executivo cumprir. No entanto, essa previsão não veio acompanhada das fontes de receita para o seu atendimento por completo, já que os tributos previstos no Título VI da CF88 são insuficientes para isso.O “ideal” seria que o Estado “lato sensu” fornecesse gratuitamente saúde, moradia e edu-cação. Mas o “ideal” não pode ser alcançado por meio de decisões que vislumbram uma política pública específica em detrimento de outras. Ainda mais tendo em vista que o direito à saúde ou à assistência social faz parte do mínimo existencial, acompanhada do direito à moradia, alimentação, educação, serviços públicos... todos a esperarem a atuação positiva do Poder Público. Dessa forma, o comprometimento dos recursos existentes em relação à importância dos valores envolvidos em cada uma das áreas de preferência legal, confe-re uma relativa complexidade a essa operação, pois o atendimento de um pleito individual diminui “a possibilidade de serem oferecidos serviços de saúde básicos ao restante da coletividade”,1 o mesmo podendo ser dito em relação aos serviços de assistência social.Entra em questão aqui a denominada “reserva do possível”, segundo a qual “a efetividade dos direitos sociais a prestações materiais estaria sob a reserva das capacidades finan-ceiras do Estado, uma vez que seriam direitos fundamentais dependentes de prestações financiadas pelos cofres públicos”; isso está a exigir “dos órgãos do Poder Judiciário...

1 Esse foi o entendimento da Ministra Ellen Gracie, do STF, em decisão proferida na Suspensão de Segurança nº 3.145, vinculada ao Mandado de Segurança nº 2006.007349-6, em trâmite no Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte.

Page 188: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

188 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Prática

máxima cautela e responsabilidade, seja ao concederem (seja quando negarem) um di-reito subjetivo a determinada prestação social”.2

Salienta-se, também, que o orçamento anual deve respeitar as determinações consti-tucionais quanto à aplicação de determinadas porcentagens das verbas em certas áre-as, como é o caso da saúde, em que o Município de Caxias do Sul vem cumprindo com as disposições constitucionais, aplicando, no exercício do ano ____, o montante de R$ _____ das receitas previstas no inciso III do art. 77 do Ato das Disposições Constitu-cionais Transitórias nas Ações e Serviços Públicos de Saúde - ASPS, correspondente a ___%, atendendo o percentual previsto naquela disposição legal, conforme a Certidão nº _____ expedida pelo TCE/RS.

Isso sem considerar as verbas destinadas pela FAS no atendimento da assistência social.

DO COFINANCIAMENTO DA UNIÃO

Não pode ser exigido do Município o oferecimento de Residências Inclusivas enquanto não repassada a verba federal mencionada na Resolução nº 6, de 13 de março de 2013, expedida pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, como consta em um dos “considerandos”:

CONSIDERANDO a Resolução CNAS nº 7, de 12 de abril de 2012, que dispõe sobre o cofinanciamento federal para apoio à oferta dos Serviços de Proteção Social Especial para Pessoas com Deficiência, em situação de dependência, e suas famílias, em Centros-Dia de Referência e em Residências Inclusivas;

Detalhes sobre esse cofinanciamento federal estão previstos no art. 3º da mencionada resolução:

Art. 3º O Serviço de Acolhimento Institucional para Jovens e Adultos com deficiência, em situação de dependência, terá como referência o valor de co-financiamento federal mensal de R$ 10.000,00 (dez mil reais) por unidade de Residência Inclusiva.

A Resolução nº 5, de 8 de junho de 2011, da Comissão Intergestores Tripartite - CIT do Governo Federal, padroniza prazo para a demonstração das implantações dos equipa-mentos públicos da assistência social e da prestação dos serviços socioassistenciais e dá outras providências, prevê, em art. 1º:

Art. 1º Os municípios e Distrito Federal que realizarem o aceite da expansão de cofinanciamento federal dos serviços socioassistenciais deverão demons-trar a implantação dos equipamentos públicos e a prestação dos serviços no prazo de 01 (um) ano a contar do início do cofinanciamento, podendo ser pror-rogado por igual período mediante apresentação de justificativa válida ao MDS por meio de ofício encaminhado à Secretaria Nacional de Assistência Social.

2 SARLET, Ingo W.; FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. Reserva do Possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas aproximações. In: SARLET, Ingo W; TIMM, Luciano B. (Org.). Direitos fundamentais: orçamento e “reserva do possível”. Porto Alegre: Livraria Advogado, 2008. p. 29-31-32.

Page 189: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

189AÇÃO CIVIL PÚBLICA - RESIDÊNCIAS INCLUSIVAS - CONTESTAÇÃO

Assim, o Município tem a possibilidade de oferecer os serviços de residenciais inclusivos no prazo de 1 ano após o início do cofinanciamento.Requer, assim, a concessão de prazo de 1 ano ao Município para o atendimento do pedi-do feito nos presentes autos, a contar no início do cofinanciamento federal.

EXIGUIDADE DO PRAZO PARA ATENDIMENTO DA LIMINAR

O prazo de 120 dias determinado na liminar é muito exíguo para a criação de serviço de assistência social de residências inclusivas, tendo em vista a necessidade de cumprir os prazos para eventual licitação ou conveniamento.

Requer, assim, a ampliação do prazo para criação desses residenciais. O prazo ideal, no entanto, somente poderá ser conhecido após manifestação da FAS nestes autos, pois aquela é a instituição responsável pela criação do mencionado serviço.

IMPOSSIBILIDADE DE PAGAMENTO DE MULTA

Inviável, também, a imposição de multa diária deferida pela decisão liminar para o caso de descumprimento de decisão em sede liminar, uma vez que descabe esta para o ente público, pois a astreinte não assegura a prestação imposta. Outros meios devem ser aplicados para obter o cumprimento da ordem judicial, em vez de penalizar toda a comunidade.

Em não sendo cumprida a obrigação estatal, o art. 461, § 5º, do CPC autoriza a aplicação de variadas medidas, inclusive inominadas, que não ferem o princípio da supremacia do interesse público. “Descabe aplicação de multa ao Estado pelo descumprimento da obrigação de fornecer medicamentos, porquanto a mesma não assegura a prestação imposta, vez que não atinge o agente público competente para praticar o ato, mas apenas o erário”.3 Assim, torna-se inaplicável imposição de multa diária para a municipalidade.

A aplicação de multa diária requerida na inicial virá onerar os cofres municipais desne-cessariamente, retirando do Município a possibilidade de atender outras pessoas com necessidades na área de assistência social e de saúde.

Requer, assim, seja afastada a multa diária determinada pela decisão liminar.

IMPOSSIBILIDADE DE BLOQUEIO DE VALORES

Também é irregular permitir que seja bloqueada verba pública para que seja custeado o serviço pleiteado em instituição particular, sem passar pelos rigorosos trâmites licitatórios.

Fere os princípios da igualdade e razoabilidade a imposição de busca e apreensão do equivalente em dinheiro, conforme deferido pela decisão liminar, pois isso priorizaria o

3 Apelação Cível nº 70024200230, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, relator: Claudir Fidelis Faccenda, julgado em 29.05.2008.

Page 190: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

190 JURIS PLENUM DIREITO ADMINISTRATIVO - Ano II - número 07 - setembro de 2015 - Prática

particular em detrimento da coletividade. “Em se tratando da Fazenda Pública, qualquer obrigação de pagar quantia, ainda que decorrente da conversão de obrigação de fazer ou de entregar coisa, está sujeita a rito próprio (CPC, art. 730 e CF, art. 100), que não prevê, salvo excepcionalmente (v.g., desrespeito à ordem de pagamento dos precatórios judiciários), a possibilidade de execução direta por expropriação mediante sequestro de dinheiro ou de qualquer outro bem público, que são impenhoráveis.”4

Requer, assim, seja afastada a possibilidade de bloqueio de valores determinado pela decisão liminar.

4. DOS PEDIDOS DO MUNICÍPIO

Diante do exposto, requer:

a) seja recebida a presente contestação;

b) preliminarmente: o chamamento ao processo da FUNDAÇÃO DE ASSISTÊNCIA SO-CIAL e o reconhecimento da ilegitimidade passiva do Município, com a consequente ex-tinção do feito em relação a esse; SUBSIDIARIAMENTE a manutenção do Município e da FAS como corréus.

c) caso ultrapassadas as preliminares, seja julgado improcedente o pedido da parte auto-ra, revogando a liminar concedida;

d) caso seja julgada procedente a ação, requer seja procedido ao prequestionamento dos dispositivos constitucionais e infraconstitucionais elencados nesta defesa;

e) seja intimada a parte autora para, querendo, apresentar resposta à presente contes-tação;

f) a produção de todos os meios de prova em direito admitidos, em especial a documen-tal, inclusive com a juntada de documentos novos durante o trâmite processual;

Nesses Termos, Pede Deferimento.

[Cidade], [data].

Leonardo da Rocha de Souza,

Procurador do Município

OAB/RS 51.644

4 REsp 766.480/RS, DJ 03.10.2005, 1ª Turma, Rel. Min. Teori Zavascki.

Page 191: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

A Editora Plenum propõe-se a divulgar a produ-ção intelectual de autores da área jurídica.

Os trabalhos enviados são analisados pelos membros do Conselho Avaliador. As identidades do autor do trabalho e do Conselheiro avaliador não serão informadas, de forma a preservar a impar-cialidade e a independência na análise dos textos encaminhados.

Os trabalhos poderão ser devolvidos ao autor com sugestões de caráter científico. Caso as aceite, poderá adaptá-las ao texto e encaminhar para nova análise.

O envio de trabalhos à Editora Plenum visando publicação implica aceitação dos termos e condições da Cessão de Direitos Autorais, que são: • O recebimento de trabalhos não implica obrigato-

riedade de publicação. A Editora Plenum reserva--se o direito de aceitar ou vetar qualquer trabalho recebido, de acordo com as recomendações de seu Conselho Editorial. A priorização da publicação dos artigos aceitos decorrerá de juízo de oportunidade.

• A Editora Plenum poderá utilizar o trabalho cedido pelo autor e aceito para publicação durante todo o prazo de vigência dos direitos patrimoniais previstos na lei brasileira de Direitos Autorais.

• A utilização pela Editora Plenum pode ser em qual-quer meio, impresso ou eletrônico, já existente ou que venha a ser criado futuramente, isoladamente ou em conjunto com outras obras, podendo distribuir e comercializar em todos os meios existentes ou que venham a ser criados.

• Cabe à Editora Plenum determinar todas as ca-racterísticas editoriais e gráficas, acesso, forma de visualização, download, preço, venda, revenda, modo de distribuição, publicidade e divulgação.

• Como contrapartida, o autor receberá exemplar da edição da Revista Juris Plenum Direito Administra-tivo em que o texto for veiculado, dando quitação à Editora Plenum referente aos direitos autorais.

• O autor autoriza a Editora Plenum a efetuar cor-reções ou modificações para adequar o texto às normas de publicação e também às normas da ABNT.

• Os textos encaminhados à Editora Plenum para publicação não necessitam ser inéditos, nem exclusivos e devem tratar de tema não superado pela legislação vigente e pelo entendimento juris-prudencial dos tribunais superiores.

• Os textos encaminhados à Editora Plenum para publicação devem conter a seguinte formatação: digitação em arquivo do Word (caso seja usado outro processador de texto, os arquivos devem ser gravados no formato RTF), fonte Times New Ro-man, tamanho 12, espaçamento simples, margens laterais de 3 cm, superior e inferior com 2 cm e papel tamanho A4. Não deve ser utilizado o tabulador (TAB) para determinar recuos.

• A quantidade de páginas deve ser adequada ao assunto tratado, porém o Conselho Editorial só analisará os textos que possuírem no mínimo 10 laudas e no máximo 30, na formatação acima especificada.

• Os artigos deverão começar pelo título do trabalho. Logo abaixo deve constar o nome do autor ou autores, acompanhado(s) da qualificação/titulação e profissão exercida.

• Os artigos deverão conter resumo e palavras--chaves nos idiomas Português e Inglês. O texto deve apresentar os seguintes elementos: Intro-dução, tópicos referentes à exposição da matéria, Conclusão e Referências Bibliográficas.

• Qualquer destaque que se queira dar ao texto deve ser feito utilizando-se o itálico. Não deve ser usado negrito ou sublinhado. Citações de outros autores, legislação ou jurisprudência devem ficar em parágrafo recuado.

• As opiniões emitidas são de exclusiva responsabi-lidade dos autores.

Normas para envio de artigos doutrinários

Page 192: Juris Plenum - ucs.br · Odete Medauar - Livre-Docente em Direito Administrativo pela USP Sandro Trescastro Bergue - Doutor em Administração pela UFRGS Toshio Mukai - Doutor em

É necessário fazer a instalação a cada novo DVD recebido para atualizar o conteúdo.

INSTALAÇÃO:

Windows 10*/7/Vista

1) Ligar o computador e inserir o DVD na unidade.2) Clicar no botão Iniciar e no campo “Pesquisar na Web e no Windows/Pesquisar Progra-

mas e Arquivos/Iniciar Pesquisa” digitar a letra da unidade de DVD seguida de 2 pontos (:) e a palavra setup, em seguida pressionar a tecla Enter. *No Windows 10 acrescentar barra inversa aos 2 pontos (:\). ex.: d:\setup

3) Clicar em “Sim/Permitir” no “Controle de Conta de Usuário”, “avançar” nas demais instru-ções e aguardar a abertura automática do produto.

Windows 8

1) Ligar o computador e inserir o DVD na unidade;2) Aguardar a janela contendo os arquivos, caso não abra, seguir com o passo 4;3) Dar duplo clique no arquivo setup para iniciar a instalação.4) Não ocorrendo o passo 2, na tela inicial digitar a letra da unidade de DVD, seguida de 2

pontos (:) e a palavra setup.Ao digitar o comando descrito no item 4, a tela inicial será substituída por Pesquisar. Pres-sionar a tecla Enter.Clicar em “Sim” no “Controle de Conta de Usuário”, “avançar” nas demais instruções e aguardar a abertura automática do produto.

Windows XP SP3

1) Ligar o computador e inserir o DVD na unidade;2) Clicar em Iniciar e após em Executar;3) Digitar a letra da unidade de DVD, seguida de 2 pontos (:) e a palavra setup.

Clicar “avançar” nas instruções e aguardar a abertura automática do produto.

NOTA: para a unidade de DVD podem ser atribuídas letras de D até Z. Exemplos - D:SETUP - E:\SETUP - F:SETUP ...

Caso as informações não sejam suficientes, clique em “conteúdo” no menu “ajuda”.Não solucionando, ligue para (54) 3733-7447 de 2ª a 6ª (dias úteis) das 08:00 às 18:00 h (horário de Brasília).