camisa nova, seu doutor?

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Camisa nova, seu doutor? José Bitu Moreno A rua de pedras Major Joaquim Alves, em Várzea Alegre, é a mesma Kaiser Josef Strasse em Freiburg. Uma é a continuação da outra: a mesma procissão de almas, as mesmas urnas funerárias, caixões, caixotes azuis de crianças mortas, anjinhos, passan- do, relembrando a pergunta, refazen- do a questão. Para quê? Por quê? Para onde?

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José Bitú Moreno

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Page 1: Camisa Nova, Seu Doutor?

Camisa nova, seu doutor?José Bitu Moreno

A rua de pedras Major Joaquim Alves, em Várzea Alegre, é a mesma Kaiser Josef Strasse em Freiburg. Uma é a continuação da outra: a mesma procissão de almas, as mesmas urnas funerárias, caixões, caixotes azuis de crianças mortas, anjinhos, passan-do, relembrando a pergunta, refazen-do a questão. Para quê? Por quê? Para onde?

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Camisa nova, seu doutor?

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Uma criança que prestava atenção nas coisas simples, percebendo as nuvens se movimentando e desenhando figuras estranhas no céu, sentindo quando a laranjeira florescia e perfumava o ambiente. Um

menino que se emocionava com o cheiro de terra molhada pela primeira chuva da temporada e convivia com as árvores, com intimidade e afeto. “Sentado em seus galhos podia ver as lavadeiras cantarem ao entar-decer, pássaros que de tão leves, tão brancos, tão puros, mais pareciam flutuar naqueles troncos de escura resina. E logo o canto dos pássaros, o bramir das vacas e uma poeira dourada de esmaecida luz e singela poesia enchia os ares, amainando o tosco e o bruto”. Várzea Alegre, com um nome tão lindo, era uma cidade “bem peque-na, de cultura, tamanho e feitura igual a de tantas outras no sertão”. O ambiente na família era de muito amor. Amor afeto, amor cuidado. Preocupados com a educação dos filhos, os pais decidiram morar na cidade grande, na capital, Fortaleza. Desejavam que os filhos freqüentassem bons colégios e recebessem bastante instrução, oferecendo-lhes a chance de enfrentar a vida com possibilidades de sucesso. Os medos, a insegurança, as tristezas disfarçadas, a vontade de não ter que fingir que é forte, o susto ao enfrentar a cidade grande, a dificuldade de escolher, no Colégio, os companheiros com a mesma carga de sensibilidade e

PrefácioO lado de lá da montanha

INFORMAÇÕES SOBRE O LIVRO

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Dedicatória

Ao meu pai

O meu pai já se foi, talvez realizado, talvez já cansado: sentia-se inútil, a velhice lhe era um fardo. Relembro quando lhe telefonava, eu já dis-tante e lhe contava as pequenas conquistas, que ele, imediatamente, as

fazia gigantescas. Como todos os pais, talvez. Mas a ele dedico cada letra do que escrevo, cada passo da minha vida. Dedico-lhe esses mo-mentos de intensa reflexão, quando paro e rememoro o nosso passa-

do juntos. E nesse momento fala a criança que não lhe beijou, não lhe afagou, por falta de jeito, timidez e que agora em mim, costurada em

mim, o retém puro, inteiro, como foi um dia.

afeto, a peleja diária, tudo isso vai construindo um ser humano. “Os amigos haviam ficado para trás. Os brinquedos eram outros, cus-tavam caro. As boas escolas necessariamente eram privadas e também muito caras. Teria que se trabalhar, e trabalhar muito, para perseguir os sonhos. Foi a transição da infância para a adolescência, do mundo lúdico para o real, mas da forma brusca e cruel, sem interlúdios”. O desapontamento com a realidade da cidade grande, os olhares de-samparados e aflitos das criaturas que andavam nas ruas, os passos apressados dos que fingiam ter um destino, uma direção, um plano de vida. Tudo isso mui-to perturbador para um jovem vindo de uma cidade do interior, acostumado à pasmaceira, aos dias iguais, à calmaria. “Os trabalhadores se mantinham à custa de cachaça, alimentando-se mal e inadequadamente, dentição estragada e envelhecidos precocemente”. As prostitutas passavam vendendo café e chá, em bules que carrega-vam em estruturas de madeira amarradas às cinturas. Eram mulheres envelhe-cidas, com os corpos marcados por sucessivas gravidezes, buchos quebrados, como se dizia, porém amigas dos homens também sofridos, solícitas, compre-ensivas, flores de humanização em ambiente por demais árido”. Na sua pequena e querida cidade, Várzea Alegre, existe uma mon-tanha chamada Serra Negra, que o fascinava e, ao mesmo tempo, angustiava. Fazia-o sentir-se separado do mundo, como se o morro fosse uma divisória intransponível, de costas para a sua cidade e de frente para a eternidade. Ele sonhava terras distantes, povos interessantes, lugares mágicos. “Mais tarde, o mar exerceria a mesma atração. Adolescente, já mo-rando em Fortaleza, por vezes me demorava horas a fio mirando a linha do horizonte, recortada entre o céu e o mar, o ir e vir de jangadas e de navios, o porto. O cheiro de terras distantes era o do mar nesses instantes, e eu viajava nas lembranças de lugares onde nunca estivera e de povos que jamais conhece-ra”. O autor, quando jovem, desejou ser médico, tinha necessidade de gas-tar a generosidade que trazia na alma, o sentimento humano. Casou-se com uma colega, Ieda, por quem se apaixonou e com quem teve um casal de filhos, além de uma bela carreira no exterior.É muito bom quando a criatura faz de sua vida um exemplo a ser seguido e, sabendo escrever muito bem, conta os passos que percorreu para chegar onde se encontra. O José Bitu Moreno é, sem dúvida, um ser humano singular e excelen-te escritor.

Vera Brant

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Poesia

“Quando escrevo, repito o que já vivi antes. E para estas duas vidas, um léxico só não é suficiente. Em outras palavras, gostaria de ser um

crocodilo vivendo no rio São Francisco. Gostaria de ser um crocodilo porque amo os grandes rios, pois são profundos como a alma de um homem. Na superfície são muito vivazes e claros, mas nas profunde-

zas são tranqüilos e escuros como o sofrimento dos homens”.

Guimarães Rosa, Grandes Sertões: Veredas

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Page 7: Camisa Nova, Seu Doutor?

Fragmentos................................................................................13A cidade e o meu mundo..........................................................15Laranjeiras perfumando a alma...............................................25Encadeando: filhos, frutos.......................................................35O girar do botão: Fortaleza......................................................47Mas tem a morte doutor?.........................................................55Desconstrução:continuum doído............................................63Gira, girou! Botões, camisa nova............................................71Botões, camisa apertada, laçada..............................................79À vontade, em casa!..................................................................85Corpos: emoção e razão...........................................................91Estranhos em terras estrangeiras..........................................101Casa vazia, ecos do passado...................................................111Cordões de fogo, caminhos, rios e manhãs.........................119Quando falo: calo....................................................................129A espiral e o princípio.............................................................141Mosaico de cores.....................................................................152Fragmentos infantis................................................................. 154

Sumário

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Fragmentos

“Pronto, aberta a porta, livre o caminho Voem caros fragmentos meus.

Foi preciso toda uma vida para que eu decidissePor quantas vezes os deixei esquecidos?

Por quantas os refiz tentando torná-los belos?De nada adiantou, como a vida em sua necessária

imperfeiçãoPerdi o brilho, perderam o viço, envelhecemos...

Pois bem, ainda é tempo:Voem lembranças, fragmentos, pensamentos meus

O mundo é vasto, a vida, breve”

Cinara Mattioti12 13

Page 9: Camisa Nova, Seu Doutor?

A cidade e o meu mundo

“Mãe, que é que é o mar, mãe? Mar era longe, mui-to longe dali, espécie de lagoa enorme, um mundo

d’água sem fim. Mãe mesma nunca tinha avistado o mar, suspirava. ‘Pois

mãe, então o mar é o que a gente tem saudade?’” Guimarães Rosa, Campo Geral

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Do terraço de casa se descortinava a serra Negra. Minha mãe cantarolava a história do canário da serra, que um menino prendeu na gaoila, e ele nunca mais cantou, até morrer de

tristeza. A rede balançava-se ao compasso da música. Eu relutava con-tra o sono, viajava com misto de medo e encanto pelas trilhas e segre-dos daquela serra tão próxima e ao mesmo tempo tão distante, a serra Negra, a serra dos meus primeiros sonhos... Serras, havia outras: Gravié, dos Cavalos, Charneca, Crioulos... Na Charneca sucedeu que um marido enciumado foi enterrar os pe-daços do que foi a sua amada. Matou-lhe inocente, por isso que do chão brotou, no lugar onde a enterrou, uma capela branquinha como se de anjo, como o peito canoro do passarinho que lavava as roupas de Deus. De lá se divisava o vale. De lá, à beira de uma estrada que riscava a serra como se giz, sentava-se a capelinha chorando baixinho. Mas dentre todas, a Negra mais me fascinava... Sentada na bar-ra, em majestade, com a lombada se dobrando de lado, parecia touro manso, silencioso, impenetrável, ruminando segredos e eternidade. Representava o intangível, o mistério, a serra do canário triste e do menino arrependido, e intrigava-me saber o que existia para depois dela, ou se era tão grandiosa que não me permitiria a possibilidade de outras, numa sucessão sem fim. Penso hoje que daquela atração significou o lento formular de perguntas, o nascimento de esquisita melancolia ou ânsia, que me fez, adulto, trocar cidades, atravessar mares e conhecer outras terras. Mais tarde, o mar exerceria a mesma atração. Adolescente, já morando em Fortaleza, por vezes me demorava horas a fio mirando a linha do horizonte, recortada entre o céu e o mar, o ir e vir de jangadas e de navios, o porto. O cheiro de terras distantes era o do mar nesses instantes, e eu viajava nas lembranças de lugares onde nunca estivera e de povos que jamais conhecera. ______ Várzea Alegre, onde nasci, era cidade bem pequena, de cultura, tamanho e feitura igual a de tantas outras no sertão, amplo e intermi-

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sentado no calçadão que abraçava a casa, fumando um cigarro de pa-lha, e descansando o seu olhar manso na distância. Nada havia nele que fosse com pressa. E a estrada seguia. Mais para frente, a venda dos Sabinos. Pe-quena venda, cujo rádio, todo o tempo ligado, cantava músicas de Luis Gonzaga, Trio Nordestino, Roberto Carlos, a Jovem Guarda... Peque-na vendinha de rapadura e guloseimas. Sacos de cereais abertos, rolos de fumo, cachaça. Filhos que traçaram o rumo de São Paulo, o Eldo-rado, um após o outro. Permanecia a vendinha de doce de goiaba em lata e de queijo de coalho. Algumas casas se agrupavam nesse platô, onde o caminho se alargava em terreiro de terra batida, palco de cavalhadas coloridas e bem disputadas. Seguindo, a estrada mergulhava na ladeira escura, en-coberta por árvores e onde havia a cruz, que de tão antiga não mais se lembrava do defunto. Após a ladeira, a casa branca de vó branca iluminada pelos raios de sol, a casa sem portões e sem cercas. O pé de araçá. Sentado em seus galhos podia ver as “lavadeiras” cantarem ao entardecer, pássaros que de tão leves, tao brancos, tão puros, mais pa-reciam flutuar naqueles troncos de escura resina. E logo o canto dos pássaros, o bramir das vacas e uma poeira dourada de esmaecida luz e singela poesia enchia os ares, amainando o tosco e o bruto. As vozes das pessoas eram tambem esmaecidas pela magia do sol se pondo. Hora de ir para casa, tomar banho no cacimbão, depois jantar. Jantar arroz de leite, misturado com carne assada, desfiada. Sentava-me em cadeira pequena de criança, na varanda, de onde divisava a manga, jan-tando, enquanto a estrada se enchia de pessoas retornando para casa, o gado se agitava nos currais e os pássaros alvoroçavam-se, ajuntando-se, recolhendo-se ou simplesmente anunciando o final de mais um dia. Vó branca em seu vestido longo, com estampados de flores grandes mas de discretas cores, de manhã bem cedo já estava de pé, junto com os galos e o tilintar de chocalhos das vacas no curral, ao lado do fogão à lenha, fazendo o café e preparando tapiocas, retiradas quentinhas da panela de barro por sobre o fogo da lenha. Cheiro de café, tapiocas

nável em suas repetições: modelos de cidades, tipos de arbustos, espa-ços abertos, despovoados, o cinza assemelhando as cores...Repetia-se a imensa carência de escolas e do muito que a natureza teimava em não dar. Mas não era sertão morto, de cenário vazio e ermo, poderia surgir do nada, em rompante, o súbito bote da cascavel, denunciando o mui-to de vida e fibra que habitava pessoas e paragens. Paragens de descomunais espaços. Revestidos por armaduras de aço, emanando intensa luz e calor, combativos dias davam lugar a reticentes e langorosas noites que se aproximavam em silenciosos pas-sos, mas com tal envergadura que logo tudo era preenchido e calado. O céu abria o manto de tanta estrela cerzido, que ameaçava por vezes ceder... As pessoas em respeito ao espetáculo, reuniam-se em pequenos grupos e contavam, em voz miúda, de problemas que com as mãos abarcavam e também daqueles que nada entendiam, que tendiam ao sobrenatural. As pausas eram quebradas pelos ruídos do mato, pelo crepitar de fogo nos terreiros, pelo mugir solitário de boi no curral, ou pelo surgir súbito do cavaleiro, que da estrada se detinha para saudar. Essas noites, vivi na casa da fazenda da minha avó materna, na casa branca da avó Biluca, quando lá ia de férias. ______

Nas férias, ia para o Inharé, região onde ficava a casa da vó Biluca, a minha vozinha, que de cabelos tão brancos sempre puxados em coque, era a minha ”vó branca”. No caminho, passava a pequena ponte do riacho do Machado, o pequeno e valente, que nas cheias, car-regando troncos e escombros no seu leito abarrotado, transbordava e inundava a estrada. Seguia através do Sanharol, bairro rural de Várzea Alegre. No alto de uma colina, partida ao meio pela estrada, dependu-rando-se nas últimas árvores para não despencar, via-se a casa de tijolos vermelhos de Cotinha e tio Raimundo. De longe percebia-se o vulto de Cotinha varrendo o terreiro, enfrentando a poeira, os entulhos, as dificuldades da vida dos seus. De perto, com sorte, encontrava-se tio Raimundo, o “padrinho” por todos conhecido, pai de todos, chapéu de palha, enxada no ombro, indo para a roça. Podia-se vê-lo, às vezes,

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os tamanhos, balançavam-se ao menor sopro de vento, convidando ao sono e ao esquecimento. ______

Ficava olhando para o fundo do cacimbão de tijolos verme-lhos, atravessado por troncos de madeira nodosa, e povoado por águas escuras e distantes. Catava pedrinhas e as jogava, avaliando o tempo gasto até ouvi-las: o baque surdo, as vozes escuras, nas águas pesadas que se debatiam em ondas de encontro à parede lodosa. Entre as falhas dos tijolos, sapos e rãs descansavam. Contava-se da história de uma jovem que caiu naquela solidão profunda, e foi engulida. Uma história imprecisa, mal contada, que de tão antiga parecia até mesmo fábula. Como a de Maria de Bil, a da capelinha branca no alto da serra. Difícil imaginá-las na realidade de dias tão pacatos e ingênuos, logo perten-ciam a outro reino: de histórias escabrosas, o reino da fantasia. Mas o cacimbão ficava em meio ao algodoal, alcançado por trilha de terra e pedregulhos. Para nos protegermos das cobras, cobría-mos em pouco tempo o trecho, repetindo entre dentes a oração: “São Bento e água benta, Jesus Cristo do altar, o que estiver neste caminho, arrede e nos deixe passar...” A mesma trilha também nos levava, mais adiante, a mata de árvores secas e retorcidas, cipós, moitas espinhentas de jurema, unha--de-gato e mofumbos de onde tirávamos a madeira para construirmos baladeiras, badoques, arapucas e cavalinhos de pau. Os galhos para os cavalinhos tinham de ser verdes, para que com a ponta da faca talhás-semos desenhos em toda sua extensão, cavalinhos malhados, garbosos, pedaços retos de pau, com rédeas de cordão, em que montávamos e disputávamos corridas. A casa era caiada, construída em pequena elevação, de um lado dava para a propriedade, e do outro encostava-se em estreita e sinuosa estrada de areias brancas. À frente e ao fundo, pedaços da propriedade se aproximavam da estrada, envolvendo a casa em “u”. Era a casa, de tijolos, quadrada e de paredes grossas, como tantas outras, repetindo o estilo arquitetônico da época. Ela se ajeitava pesadamente sobre a cal-

saborosas com manteiga da terra, leite ainda morninho do calor dos ubres das vacas, cheiro de terra orvalhada, mugidos do gado ao lado, na impaciência de irem para o pasto... Assim, começava o dia na casa branca, da vó branca. Passeando pelas trilhas do mato, o roçar nas folhagens nos dei-xava úmidos e com breves arrepios de frio. Nas florzinhas coloridas, silvestres, o orvalho teimava em ficar, espreguiçando-se, lavando as fo-lhas de delicada textura, para receberem os primeiros raios de sol. Sol que acordava os pássaros, sabiás, graúnas, canários, que flu-tuavam na arcada de cada raio, efusiva manhã, manhãs pudicas, virgens, primeiras, manhãs que jamais deixariam de ser. Pelos caminhos de terra, pelas cercas de madeira escura, trança-das, reparadas, rústicas, pousavam galos de campina espiando as flores, coloridas, silvestres e borboletas, várias, elegantes, etéreas, enquanto a estrada seguia o seu curso, como noiva. Quem ia, quem vinha, quem passava no famoso cavalo de an-cas largas e porte elegante pela estrada, quem retirava o chapéu em respeitoso gesto, cumprimentando, quem ia para feira em vestido novo de colorida chita, de onde vinham, de qual distante sítio? E aquele jovem com malas, para onde iria? Nessa época foi assim, éramos o contraponto às outras par-tes do mundo, o outro lado da gangorra, o lugar de onde as pessoas partiam em busca de sonhos, mas o mesmo que ficava grudado, nas costas, o caminho certo de volta. E o dia era um pulo até o entardecer. Entardecer do aboio queixoso dos bois, do lamento desesperado das andorinhas, da tristeza que pespontava a natureza, do vagaroso enlanguecer das crianças, da noite que chegava misteriosa, das fogueiras de madeira e esterco de gado espantando maus presságios, do coaxar de sapos vindos da escu-ridão da mata, do maravilhoso céu estrelado, das lamparinas espantan-do o vazio das casas, dos adultos conversando nas calçadas, histórias de vida e de morte, as palavras pendendo temerosas, tristes de seu próprio peso, da vida de espera que escolheram, e do vácuo das noites longas e impiedosas. De dentro das casas, redes armadas, cruzadas, de todos

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Nas noites de lua, acendia-se grande fogueira para afugentar as muriçocas. Os adultos sentavam-se na calçada para conversar, e as crianças brincavam de esconde-esconde, adivinhações, e cantigas-de--roda, meninos e meninas, repetindo os diálogos cantados, cantigas tristes de tão belas, que pareciam até mesmo, no feitiço do momento, roubar de cada um, cada vez que as cantasse, bocadinho a mais da in-fância. Dentro de casa, lamparinas de querosene ardiam afastando as sombras. Ao redor das chamas, besouros diferentes voavam em círcu-los, de forma caótica, barulhenta, trombando-se entre si, nas paredes, e recomeçando depois do chão. Na escuridão, pegávamos vagalumes com as mãos e os colecionávamos por dentro da camisa abotoada. No mato, em noites de inverno, onde brejos se formavam, cantavam grilos, coaxavam sapos, de todos os lados e de todas as vo-zes. Alguns, os sapos-cururus invadiam os terreiros e por vezes se aventuravam em casa, olhos esbugalhados, o papo bojudo e flácido enchendo e secando, dizia-se até que o seu mijo podia cegar. E dos pássaros noturnos, o medo, medo quando se ouvia o cantar solitário de uma coruja, medo do seu vôo rasgando mortalha. Medo das histórias de trancoso, contadas a meia voz, as crianças deitadas em redes que se entrecruzavam, silenciosas, olhos arregalados, cruzando os dedos, e puxando as varandas da rede sobre o corpo, para se proteger das almas penadas que rastejavam pelo chão. Depois era o sono profundo, embalados pela chuva varando a madrugada, até que o despertar das vacas nos currais, precedido pelo cheiro de café vindo da cozinha, nos acordava para novo dia.

çada alta de pedra, que lhe circundava. Piso de tijolos, com exceção da sala de estar, de cimento frio. Mais quatro quartos de dormir, uma sala de jantar, cozinha e dispensa amplas completavam o corpo da casa. No terreiro, o banheiro, com pequeno espaço para banho de pote e vaso sanitário que descarregava em fossa escavada por baixo. Da calçada lateral da casa branca divisava-se as plantações e o pasto. Primeiro o curral e o pé de cajarana. O curral de cerca alta de pau-a-pique, com mourão central. O pé de cajarana ao lado, onde parecia que sempre esteve, com tronco curto, grosso, resinoso e galhas que se espalhavam tortuosas, quase a tocar no chão, e que ficavam carregadas de frutas doces e maduras. Nos galhos podíamos assistir ao movimento do gado no curral. Gado lento e manso, que não fora o tilintar de chocalhos, poderiam passar despercebido. Seguindo, propriedade adentro, depois do curral, em linha reta, o juazeiro da mais fresca sombra. Mais para frente, dois pés de cajá, depois, o riacho das Impueiras. Era seco a maior parte do ano, mas no tempo das chuvas, enchia-se de água barrenta, até transbordar, inun-dando as terras baixas. Depois do riacho, a serra cinza e inatingível. Voltando à casa branca, nos fundos, o pé de mari, de sombra ampla e fresca, de terra frouxa, areia branca, estradinhas construídas, pontes com esmero projetadas, precipícios, ladeiras sinuosas, cidades de pedras...Carros de caixas de fósforos, cheios de terra, puxados por cordão. Boiada de barro: vacas de chifres longos, touros imponentes, bezerros, cavalos alazões, selas com estribos, vaqueiros de chapéus garbosos e gibões, e até mesmo com esporas nas botas. Horas a fio, brincávamos enfeitiçados nesse mundo, até que vó branca chamava da cozinha para comer. Um pé de ficus benjamin bem frondoso e eternamente verde com raízes retorcidas e grossas destacava-se no terreiro defronte à casa. Depois do terreiro, pedaço da propriedade onde se alternavam plan-tações de milho e de arroz. No inverno, o milharal floria, e logo ficava cheinho de espigas que depois se tornavam bonecas, com cabeleiras fartas e coloridas, que minhas irmãs e primas enrolavam em pedaços de pano e faziam penteados.

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Laranjeiras perfumando a alma

“e nos meus olhos se estampa o verde o verde-claro, o distante, o infindo

(saudades)

o gramado, o campo, a campinaa tristeza voluteia compassada

e a vontade é ficar

a imagem de um cavalo brancoselvagem, liberto

a imagem de uma criançaque é um pássaroainda um pássaronão um homemvontade de ficar

vontade tal riacho minguado veio

mas que se enrosca no corpoe na lembrança e na saudade

descer do carropular a cerca

sair e penetrar no verdese perder no verde

sem que nada se perturbena paisagem”

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Da infância, ficaram bem registradas as temporadas de chuvas. O ano em que nasci, 1959, foi de seca grande, que judiou o sertão. Mamãe nasceu em 1932, outro ano

de grande seca. Podia-se, assim, referenciar o tempo pelos anos das secas maiores, devastadoras: 1725, 1877, 1915, 1932, entre outras. Mas o registro das chuvas também marcou profundamen-te a memória de cada um. Porque no ano de chuvas abundantes, o sertão mudava, ficava bonito, farto, as pessoas também muda-vam, mais alegres, mais confiantes no presente e no futuro próxi-mo. Nos dias de chuva, tomávamos banho, criancas e adultos, nos quintais de casa ou pelas calçadas, de biqueira em biqueira, o jor-ro de cristalina água caindo espalhafatoso, formando correntezas junto aos meios-fios, pelas ruas de pedras, carregando folhas, gra-vetos, lavando o tempo, limpando o mundo, refrescando a alma. Com chuva por dias seguidos, renasciam como por mila-gre os riachos. De repente lá estavam: riacho do Machado, riacho do Meio, Mocotó, riacho do Feijão, e da Fortuna... Eles desapare-ciam nos verões quentes, de sol posto, varando dias e meses, mas ressurgiam logo nas primeiras chuvaradas, de repente lá estavam, redivivos, alegres, valentes, caudalosos. Interessante como guar-davam na memória o rumo e o prumo, mesmo após longo tempo de espera, as águas iam em frente farejando os leitos estreitos e preenchendo-os, de forma que logo estavam de novo desenha-dos, revisitando margens, inundando várzeas, levando promessas de boas colheitas de arroz. De modo que, logo, também se enchiam os açudes. Tan-tos e tão bonitos, pequenos é certo, ao compará-los no vasto mundo, pois bem, tenham-se somente os nomes: Vacaria, Mame-luco, Olho D’Água... Já por si, não contêm a magia e o encanto? Como as árvores, arbustos, matas, que de cinzas e desfolhadas, um sem fim de galhos secos e espinhos, esqueletos da natureza que se imaginava morta, de pronto se tornavam bonitas, verdes, frescas, viçosas... As flores? Bastava se olhar nos campos, as ma-rias-brancas, as campânulas roxas, azuis, invadindo cercas, eitos,

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E assim, ficaram com esse cheiro todos os crepúsculos, fragâncias que a memória exala, e que nos acompanham, em to-dos os cantos, vida afora... ______

De quando chovia e o trovão fazia a terra tremer. Do entardecer. Das noites de lua cheia, quando a família se reunia. Quanta falta faz, quanta falta. ______

Nos terreiros, soltos e em bando, o martelar interminável dos capotes, ou galinhas d’angola. Relógio daqueles dias quentes, tique-taque acentuando o calor e a inércia das horas. O tempo espreguiçando-se em frondosa sombra, dava idéia de não passar. ______

A bola era de meia, preenchida por algodão socado, ti-ras de pano, outras meias, ou o que houvesse de macio que não machucasse. O campo eram calçadas desiguais, ruas de terra ba-tida ou as de paralelepípedos. As traves do goleiro eram tijolos, pedras, ou gravetos fincados no chão. O horário, qualquer um. E assim, tinha-se uma partida de futebol. Um problema era o tamanho, pequeno, da bola, o fato de correr rasteira, sem quicar, e a irregularidade do campo, o que ocasionava frequentes topa-das. Saía-se então com a unha levantada, sangue escorrendo pelos cantos, geralmente no dedão do pé direito. Bom, na verdade, não era bem contusão, fazia até parte, pela freqüência com que ocor-ria. Impulsionados pela mão direita, pneus grandes, de carros, eram conduzidos pelas calçadas, virando nos becos, seguindo caminhos imaginários, demorando-se nas subidas, correndo dis-parados nas descidas, respondendo à velocidade e maestria do bom motorista. Eram nossos carros de corrida e o autódromo era

paus, estradas e brejos, numa boniteza que não tinha tamanho. E assim avançavam as águas para depois das arredias ruas, retintando de alegria as pessoas, pelos riachos velozes, enfeitando de flores os campos, transbordando as lagoas. Lagoa de Dentro, Lagoa de Iputi, Lagoa de São Raimundo ... As rolinhas pousavam nas plantações de arroz. Rolinha “Caldo-de-feijão”, “Cascavel”, “Fogo-apagou”. Rolinhas delicio-sas e graciosas no movimento minimalista, bicando os grãos no terreiro. ______ Cobras jararaca, cascavel e coral. Coruja “rasga-mortalha”. Cruz à margem das estradas. Borboleta negra de sombrias asas adentrando as casas. Sapo-cururu. Gato preto. Porões mal-assom-brados. Bichos do mato. Histórias de trancoso. Esses, os medos de infância. Às vezes, bem no alto, na copa verde das árvores, apare-ciam camaleões. Criaturas repugnantes, lagartos gigantes.Os sapos-cururus invadiam o mundo após dias de chuvas e en-xurradas. Eles inchavam como bexigas se neles se jogasse sal. ______

A laranjeira ficava ao pé da cerca, a poucos metros de casa. Estava sempre verde. Quando florescia, outras flores não havia em delicadeza e perfume. As pétalas sedosas, alvas, destacavam-se contra a tosca cerca de madeiras escuras e arame farpado, sobre a qual se apoiavam. Ao anoitecer, com os ruídos do dia recolhendo-se, colhía-mos folhas para o chá. Vó Biluca o preparava, e o tomávamos em pequenos goles de tão quente, soprando-o antes, cuidadosamen-te, e sentindo aquele aroma doce e tranquilizante. Vó falava que era bom para os nervos, e um bom sonífero. Depois caía a noite de estrelas.

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também tantas mulheres dizimou, escravas e sem emprego.” Tinha mais dois filhos além de Chica: José e Levi. O primeiro normal do juízo e o outro igual a Chica. - “Chica, Chica do Rato, Chica do Rato.” Ela seguia em frente, pura alegria e movimento, até entrar em outra casa. As senhoras, madrinhas, lhe abriam as portas, to-das a queriam, aquela louca mansa, alegre. Ela comia aqui, jantava acolá, ganhava de uns, sapatos usados e de outros, colares de pe-dras falsas, mas deixava alegria em troca, ou até mesmo a satisfa-ção do outro se sentir são. Ainda hoje está descendo pelas ruas de pedras, vestida como princesa, reluzente, puxando um cordão de crianças: - Chi-ca do céu. Princesa do “Reino de Clarianã”! Outro era o louco cantor. Ficava trancafiado como se na jaula, que era, na verdade, anexo da casa dos pais, de grossas pa-redes e barras de ferro ao invés de janelas. Dava na rua de terra, que margeava, por trás, a igreja e os fundos das casas, quintais de muros altos ou abertos, entregues às urtigas, calangos e lagartixas, os monturos. Do lado contrário, um grande descampado dividin-do a cidade. Ele cantava em voz de tenor músicas antigas, sobre amo-res desfeitos e outras dores da vida. Dizia-se, foi muito bonito. Quando saía pela rua, nos dias de mansidão, trazia os cabelos lisos penteados para trás, sob efeito do gel “Brilhantina”, muito usado na época e vestia um paletó branco, com cravo na lapela. Contava-se ter sido aluno brilhante que alcançou os bancos da fa-culdade, quase um doutor, quando a imprevisibilidade do destino o traiu e os livros, portas do saber, levaram-no ao turbilhão miste-rioso da loucura. -“Cuidado com os livros, quem muito lê, quem muito estuda, pode enlouquecer!” - Assim se falava, comentando o caso. Perdeu-se pois, nos labirintos que a sabedoria esconde, sendo cuspido depois como inválido. ---------------------------------

a cidade. Com pneus menores, de velocípede, se utilizava armação de arame para conduzí-los, de forma que ficavam firmes, velozes, obedientes, sujeitos a manobras inesperadas, na medida justa da competência da mão condutora. Bola de meia, carrinhos de caixa de fósforos, bonecas de espiga de milho, cavalos de pau, bodoques e baladeiras feitas à mão, peões de madeira, bolinhas de gude, boiadas de barro, cor-ridas de pneus... Toda infância utilizamos brinquedos que nós mesmos construíamos. ______

- “Chica do Rato, Chica do Rato!” As crianças seguiam-na gritando. Ela se virava desfiando um rosário de imprecações. Novo revide das crianças e ela seguia resmungando com a voz rouca, falando consigo mesma, equi-librada em dois ágeis cambitos, vestida em andrajos coloridos, com lantejoulas, brilhos e penduricalhos que ganhasse ou que por acaso achasse. Os braços finos carregavam pulseiras que anuncia-vam-na, do cabelo brotavam laços, tiaras e outros adereços, como uma medusa do bem, estilizada ou como uma princesa, a princesa das ruas de sol, dos dias de estonteante claridade, dos borrifos brancos, nuvens espalhadas no céu azul. Seu pai se chamava Abel, a mãe, Maria, Maria de Abel, doidos varridos. Maria escrevia cartas para Juscelino Kubitschek, cobrando dívidas imaginárias ao erário. Abel tinha um reino, no seu reino existia uma pedra, “A pedra de Clarianã”. - “Eram malucos ou seres desse outro reino?” - “Devia o nosso presidente àquele reino?.” Eles moravam num quartinho, cedido por um senhor ca-ridoso da cidade, no beco de Seu Dirceu, onde um dia Maria de Abel foi encontrada morta, sozinha e abandonada. - “Que semelhança havia entre as Marias?” - “A de Bil morreu esquartejada pelo machismo brutal do mundo. A de Abel foi vítima do preconceito e da pobreza, que

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quê? Para onde? O arcabouço é outro, as lapidadas culturais me fizeram um vaqueiro disfarçado, enquanto ali, em plena Europa, uma po-eira de letras acompanha o passo das pessoas, letras que o vento leva, como folhas, e que depois secam ao sol em algum parque. O que trazem, o que trouxeram, para a felicidade daqueles que se curvaram vaidosos nas bibliotecas? Contribuiu para que se tor-nassem mais virtuosos? Tornaram-nos mais sábios, mais felizes? Depois, foram levados por seus passos, apressados, aos refúgios de solidão, silêncio e hipocrisia? As maravilhas da tecnologia. Futilidades. O terno que então uso no salão da Casa de Óperas, mal disfarça o antigo de algodão barato. Mas o que isso importa? A rua Major Joaquim Alves é a mesma Hohemarkstrasse, em Oberursel, onde levei as crianças para a escola. Tentei me iludir, fazendo-me crer que estava no grande palco de um mundo civilizado, onde somente em ali se estando, tinha-se o passe para um paraíso de vida ética, decente e feliz... Ingenuidade. Ilusão. De noite, quando dáva-me olhando as estrelas, era como se estivesse contemplando a ampla e inesquecível noite do sertão.

Ruas de pedras, becos de terra, porões, monturos, ladeiras e praças de Várzea Alegre. Uma igreja vestida de azul e branco, como Nossa Senhora, um céu claro de extremo azul, o vôo negro e altaneiro de urubus, preenchendo o espaço entre a igreja e a Serra Negra. As andori-nhas ao entardecer. Largas calçadas, em cujas biqueiras a chuva se derramava aos cântaros. O cabaré que existiu, cópia em miniatura da cidade, em que se vivia a segunda vida de casado, pedra falsa, oficiosa. A lagoa, o brejo, o coaxar de sapos no inverno. A corre-ria dos meninos pelas ruas e quintais para pegar pipas que caíam. Os jovens deixando a cidade para o estudo. Outros, vindo dos sí-tios para a cidade. A colheita de arroz, de algodão, o gado nos cur-rais, a voz de Luís Gonzaga entoando belas canções nos rádios, os cavalos que deixavam a cidade cheirando a esterco nas feiras de sábado. Cidade de heróis e casos. Luís Clementino, poeta e com-positor local, eternizou em música os contrastes da cidade, assim como louvou o jegue, animal tão útil mas pouco glorificado, e deu voz às suas qualidades. Várzea Alegre das noites com as quais os bêbados cobriam e descobriam a praça central. Das lamúrias dos alucinados cantando à lua. Serra dos Cavalos a um canto vigiando. Cidade que se bastava. Que se podia inclusive deixá-la a um canto, como esquecida, como assim sempre viveu, mas quanta vida e originalidade exibia. Vida nos pomares de frutas, nos mangueirais, vida nos açudes cheios, nas noites estreladas nos sítios, na festa do padroeiro, nos carnavais de antigas marchas, nas cavalhadas e corridas de boi, no amor fortuito nos becos... Várzea Alegre de minha infância. ------------------- A rua de pedras Major Joaquim Alves, em Várzea Alegre, é a mesma Kaiser Josef Strasse em Freiburg. Uma é a continuação da outra: a mesma procissão de almas, as mesmas urnas funerá-rias, caixões, caixotes azuis de crianças mortas, anjinhos, passan-do, relembrando a pergunta, refazendo a questão... Para quê? Por

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Encadeando: filhos, frutos“Os acontecimentos se foram, restaram as marcas que

gerações sucessivas diluíram”

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Éramos oito filhos. Fui o quarto deles, nascido em casa, por parteira. Papai tinha uma loja de tecidos e de chapéus de feltro. Mamãe sempre teve paciência gigante e muita

bondade no coração. O elemento dos dois era o homem, o ho-mem e a vida de relações, o homem no coletivo, na comunidade: a amizade que valia mais que tudo, uma mão que lavava a outra, a palavra que selava o negócio, a fidelidade, mesmo em passado remoto, a hospitalidade como questão de honra... Coisas pouco usuais na vida de hoje. Meus pais eram de famílias tradicionais da região, na maio-ria, comerciantes, pecuaristas e pequenos agricultores que culti-vavam arroz, milho, algodão e criavam gado. Houve, no passado, muito casamento eugênico, de modo que, no tempo de criança, toda a cidade parecia ser a minha própria casa, de tantos parentes. Era comum a descoberta casual de parentesco entre pessoas que acabavam de se conhecer. Nós fomos e somos grandes irmãos, até por necessidade, creio. De forma que um foi modelo para o outro, como em tantas outras grandes famílias da época, partilhando dos mesmos princí-pios morais e, no nosso caso, de desconcertante ingenuidade, ao tratarmos de negócios. Um herdou do outro o uniforme da esco-la e os livros. O guarda-roupa era coletivo (calças, camisas, meias e cuecas), até a idade em que cada pode comprar a própria roupa, mas, mesmo assim, a barreira do privado foi sempre ultrapassada. Não nos acostumamos a festas em casa, por razões econômicas em parte, nem de Natal, sequer de aniversários, nessa ocasião o aniversariante era apenas lembrado e cumprimentado e mamãe fazia um bolo em homenagem. Os filhos homens começaram cedo, aos 10 ou 12 anos, a ajudar o pai no comércio. Como éramos uma escadinha, com di-ferença de idade de, no máximo, 3 anos, sempre houve algum aju-dando, na maior parte das vezes, dois, em alguns momentos até quatro, nos dias de comércio mais intenso. E levando os estudos paralelamente ao trabalho, sete de nós nos formamos, com exce-

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pálida de aguda dor no momento do contato, reagia em vermelho profuso, reativo, aflitivo de tanta coceira, enquanto a palmatória descrevia outro arco, para descer em ciclos e espasmos sucessi-vos. Aos poucos descobri nela o sorriso discreto, o olhar sua-ve, bondoso, a amizade, a solidão acanhada e o grande coração, que povoei com brinquedos e folguedos de criança. E das diferentes vidas que vivi, iniciei por essa mais aca-nhada, numa cidade imersa em si mesma, sustentada por sua própria história, apartada que era do burburinho do mundo. Es-tranho como esses primeiros passos não fazem parte dos currí-culos, como essa primeira vida desmancha-se contra a rispidez das regras adultas, como essas pequenas peças vão desaparecen-do aos poucos, a um canto esquecidas, do quebra-cabeças que nos tornamos. Como se de determinado ponto, um vento tem-pestuoso surgisse, jogando-nos em vagão, numa estação que não escolhemos, rumo a um destino de casualidades, distante, mas muito distante, daquela primeira vida de imagens, empaledecidas em álbuns de fotografias. -----------------------------

José Bitu, meu bisavô, era um homem forte e dinâmico. Com doze anos perdeu o pai, ficando responsável pelo sustento da mãe e de seis irmãos menores. Em 1877, o Ceará sofreu tal-vez a maior seca do século: muita fome, muita miséria, verdadei-ra calamidade. Ele conseguiu, com muito trabalho e abnegação, conduzir a família sã e salva. Mas responsabilidade precoce, difi-culdades e sofrimento não o fizeram pessoa amarga, rancorosa, invejosa, pelo contrário, tornou-se um jovem generoso e justo. Ficou conhecido por sua prudência, moderação e sinceridade. Solteiro, apaixonou-se pela tia, irmã do pai, e a pediu em casamento. A tia respondeu que só se casaria com quem soubesse cantar repentes e tocar viola, esnobando assim o jovem apaixo-nado. Ele não debandou para o lado artístico, não trazia em si

ção do caçula que, já cursando universidade, decidiu abandoná-la. E essa foi uma história igual a de muitos brasileiros com diferença apenas de tempo, intensidade e lugar, mas de significados e quali-dades correspondentes. Nas cantigas de roda, éramos os pares, nos teatros de bin-cadeira, formávamos o elenco, nosso ônibus de cadeiras estava sempre cheio, nosso quarto era repleto de redes, saíamos juntos, descobrimos muito, juntos, formávamos um time de futebol, nas festas, no trabalho e na vida. E quando falo em irmãos, incluo ain-da os primos que moravam próximo e eram muitos. As nossas ca-sas se confundiam, tios eram também pais, primos eram irmãos, além de companheiros na escola, nas presepadas, e na vida. Cada pedaço do que hoje nos tornamos, tem as digitais dessas tantas mãos. ---------------------------

Comecei os estudos com quatro anos em pequena esco-la, na verdade a sala principal de uma casa, preenchida por duas pequenas fileiras de carteiras escolares, daquelas duras e estreitas, entronadas pela mesa da professora, posta sobre tablado. A casa dava para o largo da igreja. A professora, senhora de pele alva, rosto macilento, tinha, de nascença, pequenos apêndices em vez de braços e pernas. Ven-cia o escuro corredor da casa em prancha de madeira com rodi-nhas, remando com as mãos contra um chão de cimento, da co-zinha nos fundos até a sala de aula. Era espantosa a rapidez com que se alçava para a cadeira e mesa, tronco pendulando entre dois braços firmes e o impulso final. Lá fora, o sol paralisava o tempo e o mundo era a igreja que se recortava contra as janelas e a palmatória que se calava ameaçadora na mesa. Pesada, de madeira maciça, escura, lembra-va o desenho de uma lágrima. A criança ficava encolhida, mão estendida, rosto afogado em vergonha, lágrimas pulando a cada pancada, a palmatória que descia silvando à palma da mão, que

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do, “Espanhola” ou “Bailarina”, por ter surgido primeiro na Es-panha, se abateu sobre a casa em 1918, deixando todos doentes, inclusive caseiros, cozinheiras, vaqueiros e os que trabalhavam no feitio de cercas e abertura de bebedouros para animais. Somente ela, Dinha, nascida em 1909, com nove anos na ocasião, ficou a salvo da terrível gripe. Sob orientação do pai e da mãe, tomou as rédeas da situação, cuidou da casa e tratou de todos fazendo ga-rapas de rapadura, caldo de arroz e outros componentes. Seu pai, doente, não podia dar corda nos relógios de parede, que muito apreciava, e também passa para ela a tarefa. Não deixou pois que o tempo parasse, que as vidas cedessem à cruel Bailarina, e apenas uma menina segurou em terra a semente, a seiva vital, de forma que os ciclos se completassem e a vida seguisse em frente. Conta-se também que, em outra ocasião, outra tia, alcu-nhada “Bebé do Sanharol”, estava em grandes apuros, por oca-sião da grande seca de 1915, que dizimou o nordeste do Brasil. Pois bem, ela estava em casa, sem nada para comer, quando viu aparecer na estrada uma fileira de meninos, todos filhos do bisavô José Bitu, levando mantimentos para ela, como arroz, farinha, rapadura e leite, o que a alimentou por meses seguidos. Era pouco ambicioso e muito hospitaleiro. Adorava rece-ber visitas. Tinha estatura mediana, pele clara, olhos negros, e pe-sava mais ou menos noventa quilogramas. Percorria diariamente as propriedades, em um dos belos cavalos de preferência: o preto ou o castanho, que morreram de velhos, na fazenda Sanharol. O baú era de couro curtido, decorado com pregos prateados, muito usado naquele tempo. José Alves Feitosa Bitu, meu bisavô, faleceu no dia dezes-seis de maio de 1919, repentinamente, na fazenda Serrote, meia légua distante da residência. É provável que tenha sido o coração, infarto do miocárdio. Fincou-se no local uma cruz, hábito tão co-mum no sertão, sinalizando sua passagem de cinqüenta e quatro anos e vinte e cinco dias pela terra.Saindo do casarão e remoendo essas histórias, me vinha o senti-

talento, mas, por ser trabalhador, foi adicionando terras às poucas que seu pai deixara. A tia? Ah, encontrou um repentista, tocador de viola e com ele se casou. Já o bisavô casou-se com parenta de Crato, Isabel Bezerra de Brito, da fazenda Palmeirinha, com quem teve treze filhos: cinco homens e oito mulheres. Com o tempo, à custa de trabalho, o bisavô se tornou o colono mais rico do município de Várzea Alegre, com léguas e léguas de terra, além de criação de gado, ovelhas e bodes. A criação de porcos era famosa. Criados em roçado com grande lamaçal, bebiam água e se banhavam. A ração era dada diaria-mente em dois ou três burros carregados com surrões de couro, que, abertos, derramavam o milho, enquanto os burros andavam. Semanalmente eram mortos alguns que, depois de limpos, eram transportados para o Crato, onde eram vendidos por bom preço. Saía ao anoitecer e amanhecia na cidade. O dinheiro era guardado na própria residência. Construída em 1902, segundo modelo arquitetônico vi-gente na época, a casa era de telhado de arrasto, com duas janelas de cada lado e porta central, dando para a sala principal, ou sala--da-frente. Pé direito muito alto, no centro, era proteção contra o onipresente sol e calor do sertão, por permitir que o ar quente subisse, deixando o mais frio embaixo. Também para facilitar sua circulação, outro recurso utilizado, foi a construção de meias-pa-redes, dividindo os cômodos. Em local alto, fácil presa do vento, voltada para o nascente, de modo que o sol da tarde não a pegasse de frente, em cheio. Depois, circundava-a vasto terreiro, campo aberto, com gabirobas frondosas, e de boa sombra. A casa do bisavô, dizia-se, era revolucionária na época, pelo menos na região, porque o banheiro foi construído no corpo da própria casa, talvez fruto de exigências de esposa mais requin-tada, vinda de Crato, cidade de maior porte e importância. Enquanto passeava pelos aposentos vazios, lembrava-me de antigos relatos sobre o bisavô: Contava sua filha que a grande peste que assolou o mun-

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neiroz, hoje uma cidade. Ele estava arranchado com comboio, quando foi surpreendido por emboscada terrível, sanguinária, de muitos cabras, armados, e com munição farta. O coronel e os seus se defenderam com bravura, nas trincheiras improvisadas de surrões, malas e cangalhas. Quase por milagre, saíram ilesos do conflito, ele e a maioria dos homens. A localidade ficou depois conhecida como Fazenda Cangalhas. Outros confrontos sangrentos se sucederam, com baixas sucessivas para ambos os lados. De tal forma se agigantou a con-tenda, que chegou aos políticos da capital do Ceará, na época, Aquiraz. Uma família se aliou ao senador, outra com um ouvidor, ficando neutro o governador geral do Ceará. Foram infrutíferas as interferências políticas, mas a última teve grande aliada, que debilitou profundamente as hostilidades, a grande seca de 1725, que os fez se concentrar na própria subsis-tência e sobrevivência. As famílias, fragilizadas pela ação contínua do bacamarte, acataram o plano de paz do governador. Haveria enfim paz nos sertões. Fez-se a separação dos contendores, e para que os ânimos ficassem em definitivo arrefecidos, foi o coronel se hospedar na fazenda de amigo no Piauí, onde depois fundaram a cidade de Oeiras, antiga capital daquele estado. Paz posta, bacamartes silenciados, ódios emplastrados, a passagem do tempo coagulando as feridas abertas, retornou o coronel para suas fazendas no alto rio Jucá. No pequeno povoado do Cococi veio a falecer um dia. Os acontecimentos se foram, restaram as marcas que ge-rações sucessivas diluíram. ---------------------------

No quarto de dormir, ficavam quatro baús grandes. Aos domingos, manhã ainda fresca pelo orvalhado perfume das flores, tomado o banho de cuia e sabão de pedra no cacimbão, encontra-va vó Biluca, a vó branca, sentada no chão, desmontando os baús, peça por peça, com gestos lentos, pensativa, como viajando em

mento de que representava a quarta geração da família Bitu e a dé-cima primeira da Feitosa, pelo lado materno, aventura iniciada pela chegada ao Brasil de João Alves Feitosa, vindo de Portugal, prova-velmente pela metade do século dezessete (Chandler,B.J.,1980)1. Pensar nos grandes desafios, embates, fome, secas, tragédias, que os antepassados vivenciaram, ao longo desses séculos, nessas re-giões por muito tempo inóspitas e selvagens, em que cada um foi gerado, a semente perpetuada, até que me coube a vez, de sorte que não caiu por terra, nem secou ao sol, a semente que agora carregam os meus filhos, adiante. ----------------------------------

E lembrar as grandes secas que vararam o sertão, tragé-dias, guerras entre famílias, lutas fratricidas. A história da família materna foi muito marcada pelo passado. Diz-se que talvez a mais remota das lutas envolvendo meus antepassados, deu-se em meados do século dezoito, contra a família de cinco irmãos de origem espanhola, que fugiram da Europa, devido ao rigor da Inquisição, e vieram para o Brasil. Dois deles internaram-se nos sertões de Pernambuco e vieram ter ao Ceará, às margens do rio Jucá, onde também habitavam os índios do mesmo nome. Somem-se a esses, um antecessor, coronel, que em oito de junho de 1720 havia requerido do governo central, e conseguido, ao todo, nove léguas de terra na localidade. Foi esse o motivo principal, a disputa de terras, para que crescente animosidade surgisse, nas fronterias entre as propriedades, que culminou em longo e penoso embate entre as famílias. Conta-se de confronto, em que o coronel foi atacado em seus próprios domínios, cerca de três léguas abaixo da vila de Ar-

1 Chandler, B J. Os Feitosas e o sertão dos Inhamuns; a história de uma família e uma comunidade no Nordeste do Brasil- 1700-1930. Tradução de Alexander F. Caskey e Ignácio R. P. Montenegro. Fortaleza, edições UFC; Rio de Janeiro, Civilização brasileira, 1980, 213p.

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as mãos com grande orgulho. Mas foi sempre muito severa consigo mesma. Depois da morte do marido, só se vestia em cores sóbrias, escuras e com um mesmo modelo: abaixo dos joelhos e de mangas compridas. De muito nova, após consulta com médico de Crato, passou a se alimentar com dieta por demais rigorosa, sem sal, sem gordura, e com poucas variações além de leite, chás, arroz, carne assada, e verduras. À sua morte, eu já morava muito longe. Os últimos 5 anos, viveu-os em estado de progressiva despedida, com o corpo defi-nhando, a lucidez se apagando, a vida se esvaindo...Dobrando-se sobre si mesma, os membros finos, translúcidos de tão branqui-nhos, retraindo-se, cabelos brancos rareando, tomou aos pou-cos a posição fetal, como a se preparar para retornar ao útero da grande mãe terra, do universo eterno. Ao final, era uma velha árvore, voltada totalmente para si e seca. Quase não fui mais vê-la, assim. Por vezes penso que a abandonei, pessoa que sempre me deu amor, amor calado e gra-tuito. Mas vó Biluca, minha doce vó branca, permaneceu e re-nasce a cada dia quando me ajuda a acordar as crianças, com a mesma voz mansa e amorosa.

lembranças. Assim desenlaçava pacotes, abria latas coloridas, des-fazia trochinhas de pano cheirando lavanda, reencontrava fotos, velhos perfumes, sabonetes luxuosos, marcas de momentos per-didos, que a envolvia por horas a fio como mansa poeira. Depois, lembranças desfeitas, eram de novo embaladas e guardadas. Vovô havia morrido no mesmo ano em que nasci. Vó branca ti-nha na época uns cinquenta anos. Tiveram oito filhos. Na sala de estar havia duas fotos grandes, pintadas, enquadradas, da época de recém-casados. Falavam que vovô era muito calado, preguiçoso, de gestos vagarosos, que comandava os negócios de dentro da própria casa, no intervalo entre cochiladas. Herdara o que tinha do pai, homem de muitas posses. Plantava arroz nas terras e cria-va um rebanho de vacas leiteiras. Após a morte, vó Branca man-teve parte do rebanho e passou a dispor as terras aos moradores em regime de arrendamento. Vó amava a casa branca e os baús, pouquíssimas vezes a ouvi falando sobre o vô. Não sei se foi feliz com ele, mas o que era ser feliz naqueles tempos tão desiguais para as mulheres? Épo-ca de silêncio e submissão, se não ao esposo em si, mas às regras do destino, da sociedade e da igreja católica. Ela era muito quieta, silenciosa, pelo menos no tempo em que viveu conosco, quando se deslocava em casa como sombra, sem barulho, sem querer, sem perturbar. Viveu bons e maus momentos da mesma forma, sem reclamar. Cuidou sempre de mim, deliberadamente, acinto-samente, entre os muitos netos. No colégio, na faculdade, como médico, sempre me acordou de manhã cedo com aquela mesma voz, imitando-me de quando eu, criança, a acordava. - S’acorda vovó, tá na hora. Ademais, cuidava de minha roupa, do que me dizia respei-to e eu era um dos únicos que lhe provocava riso. Entrou comigo na catedral de Fortaleza no dia de minha formatura: formandos homens entravam com as mães e as mulheres com pais, em fila indiana, ao som de música, em grande pompa. Entrou miudinha, em pequenos passos, lentificando o fluxo, enquanto lhe apertava

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O girar do botão: Fortaleza

“Foi a transição da infância para a adolescência, do mundo lúdico

para o real, mas de forma brusca, sem interlúdios”

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Ao longo de anos a cidade quase não cresceu, pois muitos jovens jamais voltaram, espalhando-se pelo Brasil, concen-trando-se mais nas capitais, retrato óbvio da migração in-

terna para regiões, onde se acumulam mão de obra e diversidade de campo de trabalho. Mas assim como pássaros, como as andorinhas que em vôos sazonais enchiam de movimento e leveza os ares da igreja matriz, recatada e sisuda em sua imobilidade, esses estudantes voltariam sempre, de onde estivessem, de acordo com a saudade maior, ou a qualquer descuido do tempo, de praxe no mês de agosto, para a festa do padroeiro. Foi essa enfim sua sina: ser o berço, vê-los crescer e partir, e alegrar-se sempre com os retornos. No percurso naquele dia para o ginásio, onde estudava, se-quer imaginei as mudanças que estariam por vir. Na verdade estava se completando a volta da roda, da qual eu fazia parte, a ciranda da vida para qual os habitantes daquelas cidades interioranas desde cedo se preparavam, e foi assim conosco: papai casou-se com Ilka, filha de uma família de agricultores, juntos tiveram oito filhos (cinco homens e três mulheres), esses teriam que estudar, necessariamente, até ter um diploma de nível superior. Meus avós, pela parte de pai, haviam feito o mesmo, mudaram-se para Recife com oito dos seus filhos (um ficou, o meu pai). Assim, teríamos que mudar de cidade. Com os últimos fiapos da madrugada tremulando ao vento, partimos rumo a Fortaleza num dia de janeiro de 1971. Toda família foi acomodada na perua Kombi, velha, desconfortável, que cobriu com alguma difculdade os quatrocentos e sessenta e sete quilometros de estrada. Papai havia se mudado seis meses antes, para assumir o trabalho, alugar casa e providenciar matrículas nas escolas. A viagem foi intensa e cansativa, tendo durado praticamente todo o dia, con-tando-se as pausas obrigatórias, quando descíamos do carro, olhan-do o lombo luzidio da estrada, rebrilhando aos raios fumegantes do sol, esperando que se consertasse o carro, que quebrou pelo menos umas quatro vezes. Ainda antes do anoitecer, avistamos as primeiras casas da pe-

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nhos pretos as tardes da nossa infância, o cruzeiro da igreja, as ruas de calçamento polido que se alongavam até Recife, até Fortaleza, até São Paulo...” Ele se foi, como tantos, não aguentou a barra, sequer se des-pediu. Outro foi vítima da violência gratuita e irresponsável, que var-re o Brasil como vento mau. Os retratos, são soprados adiante no céu de lembranças, na manhã petrificada, no cruzeiro de madeira enegrecida, enquanto os sinos badalam e lenta procissão atravessa a antiga rua Major Joaquim Alves. As ruas de pedras polidas por onde seus passos correram ligeiros e de onde, um dia, partiram, agora os recebe de volta. As pipas coloridas estão desaparecendo dos céus.As andorinhas se recolheram aos campanários. No interior da velha igreja azul, os santos rezam em vigília. Deus proteja as nossa crianças!

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O armazém, estabelecimento comercial do meu pai, ficava na rua Governador Sampaio. Na época, rua de comércio pesado, onde os armazéns eram pequenas e estreitas casas velhas, adaptadas, espremendo-se umas contra as outras, de frentes retas, descoloridas, sujas, dando em calçadas estreitas e acidentadas, que as separavam de uma rua também estreita e suja, o asfalto recoberto por sujeira acumulada, casca grossa e escura, mistura de açúcar, farinha, arroz, feijão, derramados, esmagados e prensados junto com a chuva, po-eira, cigarro, suor, e outras sobras, como as densas cusparadas após tragos de pinga. As prostitutas passavam vendendo café e chá, em bules que carregavam em estruturas de madeira amarradas às cinturas. Eram mulheres envelhecidas, com os corpos marcados por sucessivas gra-videzes, “buchos quebrados” como se dizia, porém amigas dos ho-mens também sofridos, solícitas, compreensivas, flores de humaniza-ção em ambiente por demais árido.

riferia de Fortaleza. Enquanto avançávamos, crescia a sensação de desolação e decepção: a cidade das fotografias em revistas, dos pos-tais, dos edifícios enfileirados e do mar, não poderia ser aquela, de casas pobres enfileiradas. Era a Fortaleza da periferia, logo aprende-ríamos. Mas enfim chegamos ao novo lar: uma casa amarela de esqui-na, com um grande quintal aos fundos. E Fortaleza foi para mim um novo e complexo mundo, cidade-grande, anonimato, acentuação ex-tremada de contrastes, como um botão que se roda e o claro-escuro vai se evidenciando mais e mais, os contornos tornando-se bem mais nítidos: rico versus pobre, bonito versus feio, interior versus capital... A escola, a nova escola, era um pequeno retrato acabado da socieda-de: diferença social, consumismo e preconceito. Os amigos haviam ficado para trás. Os brinquedos eram ou-tros, custavam caro. As boas escolas necessariamente eram privadas e também muito caras. Teria que trabalhar, e trabalhar muito, para perseguir os sonhos. Foi a transição da infância para a adolescência, do mundo lúdico para o real, mas de forma brusca e cruel, sem inter-lúdios. ----------------------------

“O vôo das andorinhas no céu azul, de nuvens brancas A igreja no espaço retangular, como o quadro de uma santa, vestida em azul e branco. O sol refletindo-se nas pedras das ruas...” A voz pelo telefone murmurando: ”Nosso primo e amigo morreu”. Ele, moço alegre, talentoso, elegante, o bom primo, compa-nherio de tantas farras. Parecíamos eternos na juventude. Depois soprou o outono, espalhando folhas, transportando-nos, sementes que onde caíram seguiram o codificado ciclo, semeando a vida, es-crevendo a repetida história. Algumas não resistiram e caíram mais cedo, nas águas do mar, no deserto escaldante, ou nas neves eternas das montanhas. “O vôo das andorinhas desenhando em minúsculos ponti-

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do as últimas gotas por conta das alunas de uma escola feminina, quando então a lotação transbordava de criaturas elétricas, barulhen-tas, suadas, aglutinadas nas portas de saída: essa era minha aventura, sempre renovada, de final de tarde. No curso, eu era o caçula, único adolescente entre adultos universitários, alguns casados, com filhos. Representou para mim o escape, a fuga, a abertura para o sonho e para a poesia. a justificati-va para a vida sem as emoções próprias da adolescência. A casa de cultura alemã ficava numa esquina movimentada, cuja rotatória dis-tribuía o trânsito de duas avenidas importantes. No centro, tímido jardim, um milagre em meio ao cruza-mento das avenidas, entupidas pela avalanche de carros. E o que era, numa sexta-feira, maravilhoso jardim, tornou-se asfalto na segunda--feira, engulido pelas avenidas sequiosas de espaço. Guardo o fato como um marco da forma como o progresso avança, calculista, im-placável e destruidor. E assim seguiram os anos em mundo diverso: escola, traba-lho e sonhos. Em casa, a vida regrada, comendo-se e vestindo-se tão somente o necessário, nada que beirasse o supérfluo, de resto só muito trabalho, principalmente dos meus pais, de domingo a do-mingo, sem festas, bailes, cinema ou teatro, mas com oito filhos nos melhores colégios da cidade, particulares e caros, é que a educação tornara-se objetivo máximo e obsessivo.. Transportando-me no tempo para o momento em que es-crevo, trinta anos depois, relembro meu pai que se foi recentemente, em janeiro de 2003, com setenta e três anos. Adormeceu, simples como veio ao mundo, sem nenhum adereço especial, sem nenhuma riqueza material acumulada. Foi enterrado de forma simples e eu o observava sem entender como a morte podia apagar a vida assim como se apaga uma vela, um sopro súbito, restando apenas o corpo imóvel, tão pequeno para o tamanho, tão estéril para tantas vidas que alimentou...Talvez tenha ido, realizado, com os filhos diplomados e bem encaminhados na vida. Talvez tenha até antecipado a hora, de tão cansativa a vida.

Ao pôr os pés na rua, eu mergulhava no mundo que consi-derava adverso, de homens e mulheres tristes, deformados, explora-dos, bêbados, jogados num ambiente miserável, de falsas amizades, traições, roubos, assassinatos... Universo em que o lucro norteava as condutas e os sentimentos, em que se ganhava muito dinheiro, os co-merciantes, ladeados pela massa de trabalhadores, que viviam como escória. Pelas calçadas desviava-me deles, os carreteiros que descarre-gavam carretas, trajando normalmente calções ou bermudas feitas da própria sacaria de cerais, descalços, de torsos nus, suados, cheirando a pinga, trazendo nas cabeças fardos pesados de cereais, em eterno vai e vém, do escuro dos armazéns aos caminhões estacionados em fila, ou ao contrário. Contratados por serviço ou com trabalho fixo, montavam e desmontavam pilhas de sacos de cereais ou de caixas de mantimentos. Os trabalhadores se mantinham à custa de cachaça, alimenta-do-se mal e inadequadamente, dentição estragada e envelhecidos pre-cocemente. De dentro do armazém, atendendo no balcão, por vezes no caixa, outras vezes embalando cereais, eu assistia a tudo, assustado e totalmente deslocado. Aos sábados o movimento de compras era maior, trabalhava-se desde sete da manhã até dezesseis ou dezessete horas, com intervalo exíguo para o almoço, normalmente um lanche rápido, em boteco sujo da esquina. Enxertado nesse mundo, aproveitava os descuidos do servi-ço, ludibriava o tempo e refugiava-me nos livros. Absorvia-me no mundo distante e mágico dos livros de ficção, fantásticos romances, como que para compensar a minha presença real num mundo absur-do e cruel. O que lia, porém, no trabalho e em casa à noite, não cor-respondia às leituras obrigatórias e simultâneas do colégio, de forma que fui aluno regular, com notas discretas e desempenho medíocre. Por influência de irmã mais velha, matriculei-me no curso de alemão no Centro de Cultura Alemã, da Universidade Federal do Ceará. O ônibus avançava a partir do centro, ao lado do Parque das Crianças, por longo percurso, enchendo-se progressivamente, fican-

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Mas tem a morte doutor?

“Aproxima-te: é horahora de te por no colo e alisar-te a frontejá foi demais o mundo: o frio, o torpedemais foram os homens

aproxima-te pois: é horade afugentar o medo e o desencantohora de calar-te o pranto

descansanessa interminável noite, descansadescansemos

escutao sangue, o nosso sangue que reflui

escutemosdesde a antiga fonte a cançãoa nascente, perenee nada é preciso que saibasnada é preciso

vem poisaproxima-te e descansajá foi demais o homeme a vida”

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O taxi me levava do hospital para casa, cruzando ruas sujas, movimentadas, confusas, apinhadas de gente e de rumores, tão características do centro de Fortale-

za. O motorista era um senhor franzino, de meia idade, e de gestos calmos. Olhou-me com curiosade, um adolescente, de cabelos raspados, e certificando-se de que havia passado no vestibular, perguntou-me que profissão havia escolhido. Espe-rei o impacto da resposta em seu semblante, desde que medici-na era, a profissão, muito cultuada e de difícil acesso. A reação das pessoas havia sido até então de respeito e admiração, mas para minha surpresa, ele apenas comentou com uma ponta de tristeza: “- Mas tão jovem, quase ainda uma criança e já ter de conviver com tanta dor e sofrimento!” Sábio, lúcido, e simples homem do povo, que ao con-trário dos outros sequer portava diploma de curso superior, mas que foi o único que naquele momento enxergou o que se escondia realmente por trás do brilho e glamour de uma profissão, que prometia um futuro de sucesso financeiro e de ascensão social. ______

Fugindo da estrutura da Faculdade, segui ainda com mais intensidade estágios extra-curriculares, desta feita em serviços de urgência e emergência: a Assistência Municipal (Instituto Dr. José Frota, ou Frotão) e uma rede de hospitais interligados (os Frotinhas) que cobriam a urgência em Forta-leza. Primeiro fiquei num dos Frotinhas: de plantão dois cirur-giões, dois clínicos, um anestesista, dois ou três estudantes e o corpo de enfermagem, composto em sua maioria por auxi-liares de enfermagem. Além de salas de atendimento, havia o centro cirúrgico e pequena enfermaria. Grande parte dos que lá trabalhavam, não tinha como enfoque principal o homem, a pessoa, mas a doença, o tipo de urgência, os procedimentos técnicos. Muitas vezes fiquei em

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tagiário no quinto ano de medicina, era o próprio retrato da realidade social, da pobreza, do tosco, do desumano: quar-tos de pintura desbotada, sombrios, atulhados de camas en-ferrujadas, colchões duros, desconfortáveis, cobertas finas e inadequadas, banheiros coletivos, funcionários mal treinados, pacientes descaracterizados pela dor, desfigurados pelas ci-rurgias, o veneno colorido de quimioterapia escorrendo em conta-gotas pelas veias, destruindo a vida... Mastectomia radical: o cirurgião comandava o bisturi que deslizava célere por camadas de tecidos, dirigido por cére-bro, que recebera informacões de outro cérebro, que por sua vez aprendera de um ilustre, que por acaso já havia morrido, de modo que o conhecimento muitas vezes fluía de boca a boca, de aprendiz a aprendiz e era o motivo propulsor daquele bisturi que ia definindo os limites sobre o corpo, os contornos da vida, os meandros da morte e deixando em troca um corpo mutilado. Marina ou Mariana...qual era mesmo seu nome? Viveu momentos de esperança, quando falava sobre a filha, apertando a foto amassada contra seu busto vazio. Vol-tou entre ciclos de quimioterapia e cada vez mais se consumia. Não ganhou a corrida contra as metástases. Em uma semana o ar se lhe faltou de forma mais in-tensa. Nos últimos dias, batalhou com bravura, buscando o ar de forma cada vez mais desesperada, o rosto lívido, o frio suor porejando e atestando a sua luta desproporcional. Nos seus momentos finais me chamou e se agarrou às minhas mãos como quem se afoga e procurou os meus olhos como quem roga, mas aos poucos foi se acalmando e então as nossas mãos eram um pacto de conforto e segurança. Percebi então a gra-tidão nos seus olhos, além de um outro brilho, jovial, especial, como se sorrisse, e era um sorriso de menina, a menina que nunca deixou de ser, que fora arremetida com frieza e descaso a um canto, pela vida, mas que agora era de novo livre, e sorria

temerosa espera naqueles corredores e salas vazias esperando: barulho de sirene, correr apressado de macas, corpos ensan-guentados, membros da família, apavorados, murmurar incom-preensível da vítima misturado a cheiro de pinga... Muito me marcaram a pobreza, a tragédia vária, a crueza e comicidade de situações que igualhavam o homem a estúpidos objetos à mercê de destino desgovernado e marginalizado. A indiferença e o descaso eram o escudo dos responsáveis pelo cuidado. Depois, estagiei na Assistência Municipal, hospital ter-ciário, para onde drenavam todas os casos mais complexos, com grande equipe de plantão, multidisciplinar, permeada de estudantes. Esse hospital foi responsável pela formação de muitos médicos clínicos e cirurgiões no Ceará. Mas, junte-se o trágico, o absurdo, o monstruoso da vida em sociedade e da própria condição humana, junte-se a isso medidas heróicas, júbilo extremo e a mais profunda tris-teza ou desespero...O Pronto-Socorro de uma grande cidade. Uma cena? Um jovem, jogado ao canto na maca, com o corpo mutilado por múltiplas fraturas, que deixaram as pernas em posição de bailarina, morto, ao canto, só, na solidão da morte... Mas o que vinha a ser a morte? Como lidar com ela? Se era tão presente no nosso dia a dia por quê não nos prepa-ravam para tal? Como cuidar da vida se a morte a ela estava intrinsecamente ligada? Jogavam-nos assim ao seu contato, in-sensíveis aos sentimentos e emoções, como somos jogados aos cadáveres nos primeiros anos dos cursos de medicina. ______

Era muito jovem, tinha uma filha, cresceu e nasceu em ambiente de extrema simplicidade, beirando a penúria, de modo que estar ali naquele hospital, naquela enfermaria, só amplificavam e confirmavam de vez o veredicto: viera ao mun-do para sofrer. A enfermaria de Oncologia da Santa Casa, onde era es-

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deu no ginásio de esportes, estávamos eu e mamãe, papai fi-cou em casa, anunciaram o meu nome e fui receber o diploma sob parcos aplausos. Não havia razão para excessos, com os irmãos também fora assim, depois voltamos para casa, uma noite normal após um dia cansativo, desfilei com a beca para papai, meus irmãos e a Vó branca. Depois fomos dormir.

pelos olhos como se por janelas, como quem se despede. Despediu-se de mim a pequena e se foi, arrastando a boneca pelo chão da enfermaria, até alcançar o céu.

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No estágio de ginecologia e obstetrícia, ao mesmo tem-po que aprendi a fazer partos, convivi de muito perto com as muitas mazelas de nossa sociedade: aborto criminoso, gravidez indesejada, médicos e parteiras mal preparadas, falta de respei-to e grosseria com as parturientes...Presenciei cenas em que o grito de dor, era respondido com insultos como: -Por quê fez a criança? Na hora do prazer, não pensou nas consequências! Era como se ali estivessem juntos o que havia de ani-malesco no homem e de deplorável na sociedade. Essas con-dições como que descaracterizavam a condição de ser humano e portanto tudo era permitido. Frente a tudo isso, senti de início um verdadeiro asco pela sala de parto, simbolizado na nauseante mistura de líquido amniótico e sangue. Até que certa manhã assisti a um parto diferente: a luta gloriosa da mãe, o contentamento por entre os espasmos de dor, a voz de extre-ma doçura chamando o filho por vir, o largo sorriso quando concebeu, a criança acolhida nos seus braços, buscando com sofreguidão seus seios, enfim a cândida magia da natalidade. Na pediatria, o Nordeste estava saindo de um período de quase 5 anos de secas, crianças morriam e a causa era a fome. Essa guerra que dizimou e dizima ainda tantas crianças ou as mata aos poucos, ao longo de uma vida adulta doentia e imbecil. De tanto vê-los, os sentimentos como que adorme-ceram, talvez como uma espécie de defesa própria, frente às tantas agruras e tragédias da nossa condição humana. Chegou enfim o dia da colação de grau. Chegou assim mesmo, como agora posto, sem grandes arroubos. A festa se

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Desconstrução: continuum doído

“A vida é como um monturo, que também se alimenta de restos, de sobras, de forma que só aumenta e se desdobra”

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Ao final da residência médica em Fortaleza, quando me es-pecializei em cirurgia geral, recebi convite para ir à Marília, interior de São Paulo, estagiar no Serviço de Cirurgia Vas-

cular, da Faculdade de Medicina de Marília, Famema. E logo essa possibilidade se tornou grande acontecimento na família: pais e tios se organizaram e se cotizaram para que não perdesse a grande opor-tunidade. Na manhã de um dia de fevereiro de 1986, saí da estação ro-doviária de Fortaleza rumo a São Paulo. O motor foi ligado, o ônibus iniciou sua longa viagem de três dias e duas noites, irmãos, primos e amigos ficaram para trás, acenando. A calada despedida do pai, a voz embargada do tio, e o pranto materno, também ficaram para trás. A sensação de que aquela seria uma viagem definitiva me acenava como incômodo vago, mas constante e inconveniente. Cerca de três mil quilômetros, ônibus em lotação máxima, crianças de colo, fraldas de pano estendidas nas poltronas, odor de urina e fezes, calor sufocante, estradas esburacadas, restaurantes su-jos de beira-de-estrada, banheiros sem as mínimas condições higiêni-cas, o interior da Bahia que não acabava nunca, Minas que se esten-dia interminável...Eu, que nunca havia feito viagem tão longa, fiquei recolhido, ensimesmado, acomodado no útero de lembranças e do passado recente, enquanto esperava o momento novo, com medo e ansiedade. Cheguei enfim, senti o ar de São Paulo, arderam os olhos, fiquei espantado com as dimensões. Essa tripla sensação sempre me ocorreu, outras vezes em que lá cheguei. Na estação rodoviária, na época somente para ônibus que vinham do nordeste, embaixo de uma ponte, esperava-me a prima-irmã Nindete, que viajara de avião. Em outro ônibus partimos para Marília, onde chegamos com o nas-cer do sol. Os primeiros trinta dias, até que encontrasse onde morar, fi-quei em casa de amigos. Foram dias de chuva, daquela que cai pregui-çosa e risca as vidraças de desenhos verticais, cumprimentando-me, trazendo-me de volta à infância. Era curioso para quem assim me via,

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Até quando continuarão abertas essas fábricas que matam os jovens e os expelem como vermes, como restos? ______

Nos primeiros anos em Marília, eu a conheci, acompa-nhou-me nesse tempo conturbado com inestimável apoio. Ela, significando movimento, beleza, alegria e a outra vida que não tive, apareceu em minha vida. Descendente de italianos, com pele morena do mediterrâneo, olhos e cabelos castanhos bem claros, era estudante de medicina. Demos alguns plantões juntos no hospital da faculdade. Era as muitas palavras, enquanto eu mal falava, era juventude pura, diante de um combalido no intervalo entre muitas lutas, era in-teligência e crítica certeiras, a certeza que por vezes me faltava, bússu-la, freio de mão, a guerreira que sabia da posição de cada adversário, no seu tempo e espaço. Logo comecei a cortejá-la, mas de maneira bem tímida. Alguns jantares e flores no dia seguinte. Muitos jantares e muitas flores na verdade, acompanhadas de poesia quando já me sentia mais afoito. Um dia a confissão, o receio da rejeição, mas já não mais me cabia de paixão. Casamo-nos dali a três anos e embarcamos em aventura para a Alemanha. Com uma semana de casados peguei o avião para Freiburg, enquanto ela ficou à espera de visto. Quase três semanas se passaram. Dolorosa espera. Desde então estamos juntos, numa vida que não deixamos descambar para as águas rasas e paradas do tédio cotidiano. Tem sido sempre movimento e mudan-ças. Tivemos dois filhos, duas lindas crianças, dois puros milagres. Ela crescendo com o tempo, como mãe e profissional, e tornando-se mais bonita, elegante, sábia e presente. Ela a outra vida luminosa. Ela o sonho dourado da vida mais nítida e clara. E eu com o tempo mais e mais apaixonado. ______

Já cirurgião geral e especializando-me em angiologia e cirur-gia vascular, estava de plantão em Pronto Socorro de Marília, na ver-

acompanhando absorto o monólogo da chuva nas janelas. Marília de ipês floridos, de casas bonitas, de chácaras de ami-gos, de vales que a circundam e que se alongam até se perder de vista. Marília de bois pastando nos vales e de cafezais. Marília de indústrias alimentícias, de instituições de ensino superior, de estudantes univer-sitários, de juventude bonita e de bem com a vida. Marília que me cativou desde o instante primeiro e que aprendi progressivamente a amar. A chuva que caiu nos primeiros dias em que lá cheguei, foi o elo necessário que me ligou ao passado. Estava pronto para o novo nascimento, nessa outra cidade, com a mesma fragrância de terra mo-lhada da cidade natal. ______

Imagine-se um jovem recém-formado, iniciando residência médica, ainda com os ideais acadêmicos frescos, ainda com muito dos ideais humanitários juvenis, sendo jogado dentro de hospitais superlotados, desorganizados e pobres. Imagine-se a formação sendo substituída por trabalho ba-rato e excessivo. Ao mesmo tempo tendo de conviver diariamente com a violência de um país em que diferença social e pobreza são crescentes e onipresentes. Depois de toda essa salada, tendo como mestres pessoas totalmente despreparadas para o ensino e profissão, descompromissadas e transgredindo as mais elementares regras de convivência, como decência e educação. O que se passa quando esse jovem assiste nos hospitais, por parte de seus formadores, a uma corrida surda por poder e dinheiro, por vaidade e nome, que não poupa sequer o paciente? E sabendo mais, sabendo que é tão somente um come-ço, que depois da residência vem luta mais renhida pelo merca-do, desigual, contra grupos já formados e senhores de fatias do mercado, máfia branca, médicos em conjunto fortificados, bem posicionados em hospitais e na sociedade, trocando pacientes e influências entre si, fechando definitivamente o acesso para novos valores.

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______ Desconstruindo-se. Ou melhor, não se desconstrói, a vida é como um monturo, que também se alimenta de restos, de sobras, de forma que só se aumenta e se desdobra. Talvez reinventando-se. Com a mesma carga de destroços. Mas antes tentando me olhar no rabo, ou no meu princípio, como a cobra de duas cabeças. Acreditei que tornar-se homem era somente a consequência de ser, de existir? Como se cada experiência por que passei tives-se deixado uma marca que tivesse sido automaticamente codificada com um ensinamento a mais, de forma que me tornasse ao final um homem melhor e mais sábio? Não teria de ter sido também uma construção voluntária, suada, pedra sobre pedra? Ao tentar ser sempre melhor profissio-nalmente, investi paralelamente em me tornar um ser humano mais completo? Existiria na realidade essa separação entre pessoal e pro-fissional, que me foi ensinada? Poderia na realidade ser um bom mé-dico, sem que tivesse avançado no entendimento do meu próprio ser e do mundo que me cerca? Como decifrar o seu segredo, meu bom amigo, como enten-der a dor, como facilitar o caminho para a cura de sua enfermidade, se eu ainda sequer entendi o que sou e onde estou? O homem não é máquina. O mundo é tampouco máquina... Frases que já me pareceram óbvias e banais, mas que na rea-lidade jamais houvera realmente entendido. Tento entendê-las. Tento me rearrumar, ou me reinventar. Hora de romper o invólucro da rotina e de buscar novos ares. Concorri a uma bolsa de estudos na Alemanha, doutorado, consegui, vamos lá, vamos plainando para de-pois da Serra Negra, vamos desaparecer além do horizonte, a sede por conhecer é muita.

dade “porta” de um hospital geral, desde que sem condições técnicas para tal. Eu era o único médico de plantão, de corpo presente, quan-do chegou na urgência um jovem com ferimento por faca no abdome. Estava em choque, por provável sangramento interno, pois foram fei-tas as medidas de ressuscitação necessárias, mas a pressão arterial só se mantinha a custo de muito volume. Havia indicação precisa de cirurgia de urgência. O especialista de plantão à distância, não foi localizado, estava numa festa. O diretor clínico, pediu-me que me comunicasse com ou-tros da especialidade. Era madrugada, ninguém se dispunha a ir, por razões as mais variadas. Em novo contato com o diretor, sugeri então que iria fechar a porta da urgência e subiria para operar o paciente. Ele só me perguntou se eu sabia operar. Tudo foi providenciado de imediato. Fiz uma incisão mediana, própria para rápido acesso e grande o suficiente para se ter uma visão ampla, a ponto de se localizar o sangramento onde estivesse, sem perda de tempo. Aberto o abdome, muito sangue acumulado, ferimento no fígado, mas não muito extenso, respirei aliviado, sangramento sob con-trole, nenhuma outra estrutura acometida, preparava-se para suturar a lesão, quando então chegou o cirurgião do corpo clínico do hospital. Entrou arrogante no campo, nem sequer se apresentou, nada pergun-tou, expliquei-lhe de qualquer forma os achados e em que ponto estava a cirurgia. Perguntou sobre a minha procedência, onde havia aprendi-do a operar, como fizera uma incisão tão longa e desnecessária... “O paciente corria risco de vida, a abertura generosa do abdome foi, para no menor tempo possível, localizar o sangramento e estancá-lo”, res-pondi. Sobreveio constrangedor silêncio e cansaço arrasador. Pouco tempo depois, pedi as contas, nunca mais dei plantão em “portas” de hospitais. Enfim, cada passo que tomei naquela noite, naquele plantão, cada medida, cada palavra, as decisões, as táticas de acesso cirúrgico, a convicção com que realizei tudo, salientando-se que ainda era muito jo-vem e ilustre desconhecido na cidade, tenho como um dos momentos mais gratos da vida profissional.

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Gira, girou! Botões, camisa nova

“Quando o sol, através da janela, Projeta a antiga luz por sobre a mesa,

É dado então o sinal, e o jogo se reaviva, Alternância entre luzes e sombras, júbilo e miséria

humanos. Da janela tampouco se incomoda o sol,

Nasce do próprio homem o contraponto”

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Morávamos em minúsculo apartamento do alojamento para estudantes do Goethe Institut. Ali havia estudan-tes e profissionais de mais de cem países desse vasto

mundo, dos cinco continentes, com os mais diferentes planos de estudos. A cozinha era conjunta e nos momentos das refeições, principalmente à noite e nos finais de semana, reuníamo-nos em toda a diversidade cultural, firmando amizades, e aprendendo um pouco da experiência de cada. Foi um caminho singular: do sertão do Ceará para Fortale-za, daí para Marília e desta direto para a Alemanha. Sem intermé-dios. Portanto tudo me despertou curiosidade e espanto. Como me encantou a pequena cidade, fundada por volta do século doze, cortada pelo rio Dreisam, na vizinhança do Reno e a poucos qui-lometros da França e da Suíça, como o vértice de um triângulo de influências históricas e culturais, cujos outros vértices ficavam em Colmar (França) e Basel (Suíça)!!! Terminado o período de estudos do idioma, deixamos com saudades Freiburg rumo a Frankfurt. Desejei sinceramente um dia retornar. Em Frankfurt, moramos inicialmente no aloja-mento da universidade dividindo o apartamento com um casal de chineses. Ele era físico e tinha o hábito de trabalhar à noite e dor-mir de dia. Tínhamos quartos e banheiros separados e dividíamos cozinha e sala. Sorte que os quartos eram bem grandes, de forma que o transformamos em sala e dormitório. Para chegar ao Hospital de Clínicas, primeiro passava-se pelo conjunto arquitetônico para grandes feiras (Messe), cami-nhava-se então ao longo da avenida da estação ferroviária prin-cipal (Hauptbanhof), cruzava-se o rio Meno, para se alcançar, do outro lado da margem, o complexo hospitalar da universidade. Fazia o percurso a pé, com as últimas sombras da madrugada, o dinheiro era curto, contado. Na estação havia muitas seringas, agulhas, sangue, pegadas noturnas dos viciados em drogas que lá se acumulavam, sob os olhares beneplácitos dos policiais. Avan-

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vam fadas, mas pessoas velhas e emburradas, mesmo jovens, com a onipresente idéia de que o outro só lhe vinha perturbar a paz. Em suma, tudo era tão organizado, tão nos mínimos de-talhes, que o homem se tornara secundário, não aparecia na pai-sagem, era apenas parte da grande engrenagem, em que não se podia ultrapassar o risco, a borda, o muro, a próxima nota ao grito e ao riso– a tentativa de ser feliz. Esse paraíso era pois um grande embuste. Não se encontrava lá.Não estava no Brasil tampouco.

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A polonesa me falou da aldeia. Era pequena, as pessoas se conheciam, e nos arredores havia bosques e muitos lagos. Trabalhava com médico russo. Percorriam o povoado e zonas mais distantes, para acudir aos enfermos. Ela possuía a chave da farmácia, distribuía remédios, carinhos, atenções, enfim, tinha o seu papel. Nos finais de tarde, ia com o marido e as crianças, na lam-breta, a um lago. Falava com os olhos distantes, a voz embargada. Falava dos horrores da guerra, quando criança e, aí, já apenas sussurra-va, enquanto preparava o café e lavava a louça, em seu pequeno cubículo, da área de limpeza, de uma enfermaria, de um grande hospital, numa importante cidade, da Alemanha unificada.

------------- Passeando pelo centro de Frankfurt, paramos para assistir aos festejos em comemoração à cultura espanhola. Música fla-menga, ritmo pontuado por bater de pés e de mãos, dançarinas que evoluíam pelo palco em movimentos que era a própria músi-ca, toda a elegância e sensualidade do povo. A platéia constituía-se de gente simples, lembrei-me das

çando por entre escombros humanos, divisava já do rio, o outro lado, o da reconstrução. Georg, Friedhelm, Roland, Martin, já lá estavam, no hos-pital, reparando vidas, construindo conhecimentos, formando profissionais... A vocês, caros amigos e irmãos, nos quase três anos de convivência, que depois soubemos para toda a vida, so-mos para sempre gratos. ______

A paisagem era a mesma: banco de madeira envelhecido pelos anos e intempéries; fundo claro de folhas caídas, coloridas, outonais; árvores centenárias, com velhos troncos escuros e no-dosos; raios de sol filtrando-se por entre suas copas... Parecia um daqueles lugares paradisíacos que se mostravam em calendários, ou em postais, expostos em locais de trabalho ou em salas de aula. Quantas vezes, aqueles já cansados do trabalho, procuravam-nos com olhar sonhador ! Mas outra era a realidade, pulei para dentro, entrei para o quadro, e parei para observar: faltava o homem no banco. Falta-vam crianças brincando por entre as árvores. Era frio, era muito frio, que nem mesmo os raios de sol aqueciam. Não se podia mes-mo senti-los, o sol ou o frio, quando se via apenas o calendário. E se crianças existiam, tampouco poderiam correr, gritar, falar alto, porque bastava que se percebesse: um pouco para depois das árvores, a zona habitacional, o círculo de casas, que de tão lindas pareciam de boneca. Nessas casas morava gente, gente que odia-va barulho e que preferia cachorro a criança, portanto: mais uma mentira do quadro, da paisagem. Esse cenário fictício se espalhava por toda Europa. Os rios e riachos que cortavam as cidades, estavam lá somente para em-belezá-las? Quem já viu rios sem peixes ou riachos sem meninos vencendo as águas? As casas tinham enfeites nas janelas, mas voltados para a rua, não para o conforto e prazer do morador. Dentro, não mora-

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com bolsa de estágio na Alemanha, jamais voltou a sua terra na-tal. Em Havana ficaram ex-mulher, duas filhas e os pais, na época ainda vivos. Era-lhe proibida a comunicação com as filhas, seja por carta ou telefone, o que lhe deixava triste, mas o mais das vezes mostrava-se tranqüilo, porque dizia-me ser mais importante para elas estando na Alemanha. Representava assim a perspectiva de futuro melhor, além de lhes mandar regularmente dólares por turistas alemães. Era excelente cirurgião e foi se mantendo na Uni-Frankfurt tanto pelo talento quanto pela solidariedade dos chefes. Agentes da embaixada cubana sempre lhe telefonavam, cobrando seu retorno. Um dia combinou encontro com dois de-les na Hautpbahnhof, estação ferroviária central, estava inseguro, pediu que o acompanhássemos de longe, por segurança. Nessa época, final de 1993, estagiava no hospital o Dimitri, jovem mé-dico da Macedônica. Acompanhamos de longe o encontro e os seguimos até que entraram no café do andar de baixo da esta-ção. Nesse momento, notamos que outras três pessoas também o obervavam, o que nos deixou preocupados, por isso subimos para localizar o posto policial. Quando voltamos já não mais os encontramos, Gabriel e os outros. Tememos que algo de mal acontecera. Comunicamos à polícia, que só caracterizava seques-tro após vinte e quatro horas de desaparecimento. Telefonamos então para o nosso chefe que ficou de contactar a namorada, Ro-mina, enfermeira do hospital. Estávamos preocupados e espera-mos um retorno. Logo tudo ficou esclarecido: os outros três eram os cunhados italianos, com a mesma missão protetora, e o nosso amigo Gabriel já se encontrava em casa, talvez se refestelando com deliciosa pizza.

espanholas que trabalhavam no hospital da Uni-Frankfurt, além de portuguesas, turcas, sérvias... Confundiam-se com o serviço e vendo-as trabalhar não se imaginava o que havia por trás daqueles rostos cansados e iguais. Por trás de qualquer pessoa há um povo, por trás de cada, o orgulho e a paixão de assim ser, a violência contra um, é a vio-lência contra todos. As mulheres da limpeza eram as espanholas que cantavam e que dançavam com incomparável beleza. -----------------------

E era findo o nosso tempo em Frankfurt, um dos palcos desse vasto mundo, em que se sentia de perto o hálito de qualquer região da terra. Inesquecíveis os momentos passados nas casas de concer-tos e na antiga ópera, Alte Opern. Tínhamos dinheiro suficiente para comprarmos os lugares mais baratos, portanto os mais dis-tantes e em plano mais alto do palco, mas o bastante para acom-panharmos maravilhados as inúmeras óperas, concertos e espetá-culos de dança, de duas temporadas seguidas. No hospital tivemos contato com pessoas as mais diferen-tes e interessantes. Uma delas, era oriunda dos horrores da guer-ra na Bósnia, trabalhava como faxineira, mulher de meia idade, cabelos longos e pretos, cabisbaixa, que enquanto nos contava sobre a vida, punha-se a chorar. Estava só, veio como fugitiva, muitos membros da família, muitos amigos e conhecidos haviam morrido ou desaparecido. Do seu marido há alguns meses não tinha notícia. Nós a ouvíamos calados, não compreendíamos a intensidade da dor, chegávamos apenas à superfície e assim, das margens, não sabíamos do que se acumulara nas águas profundas. Era sua companheria a senhora turca, muito simpática, que mal se comunicava em alemão, apesar da longa vida de imigrante, mas cuja bondade alcançava a linguagem universal. Gabriel, era um cirurgião cardíaco, que ao deixar Cuba

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Botões, camisa apertada, laçada

“O conhecimento que não se reverte em prática é inútil, só alimenta o

vazio e a distância entre a intenção e o gesto, entre o que se

articula e o que se faz, e se não se faz, não se é”

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De volta da Alemanha, após doutorado, subi as esca-darias do Hospital de Clínicas de Marília em passos lentos. Em cada degrau aumentava desproporcional

o esforço, como se as pernas se tornassem mais pesadas, como se o desencanto pelo que via se traduzisse em cansaço. Sim estava sujo o hospital, estava feio, era chocante a falta de re-cursos e a desorganização. Antes de entrar na sala dos médicos e secretaria da cirúrgica, parei para tomar fôlego e forças, eu temia pelo que estaria por vir. Foi como se houvesse saído em longas férias. Dos diri-gentes, dos docentes, dos residentes, apenas perguntas casuais, nenhuma curiosidade real, como se tudo só dissesse respeito a mim e mais nada. Sequer convites para expor as experiên-cias que tive, igual onde tivesse sido, desde que tivessem sido diversas e que houvessem implicado em vivências reais talvez interessantes, razão esta por quê o intercâmbio sempre existiu podendo ser sempre muito enriquecedor. Ademais, eu havia sido custeado pelo povo, pelo di-nheiro do contribuinte, eu havia saído de instituição de ensino com o objetivo de intercambiar conhecimentos, dar em retor-no o que havia aprendido, oferecer alternativas de pesquisa, enfim, algo em troca que não fosse apenas o meu crescimento individual. Nada, nenhuma continuidade, recomecei de onde havia interrompido, fora apenas um interlúdio, e agora a solidão. Solidão da súbita falta de interlocutores, da negação a uma continuidade, da sensação de inutilidade, e da desesperança. Desesperança pela falta de pespectivas, criando em mim vazio que se foi lentamente se distendendo, como bolha que me fa-ria mais adiante sair novamente do Brasil. O conhecimento que não se reverte em prática é inútil, só alimenta o vazio e a distância entre a intenção e o gesto, entre o que se articula e o que se faz, e se não se faz, não se é. Eu precisava portanto ser e teria pois que imergir rapidamente

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des em conciliar pesquisa com o trabalho. Friedhelm, convi-dou-me para integrar grupo de pesquisas e atividades normais de enfermaria e centro cirúgico do Hospital de Clínicas (Uni--Klinikum) da Universidade de Freiburg (Albert-Ludwigs--Universität Freiburg). Foi com muita alegria que recebi esse convite. Concorremos, eu e Ieda, com projetos de pesquisas, a bolsas de estudos, e conseguimos. Nossa filha na época tinha dois anos e seis meses de idade. Assim, em maio de 1998, estávamos de volta à Ale-manha, desta vez com a família maior, de mais um acrescida, evidentemente com muito ânimo e esperançosos. Havia aquela vontade e disposição ingênuas, aquele deslumbramento com a vida e com os rumos que tomava, talvez próprio de sonhado-res contumazes.

no dia-a-dia da prática assistencial. ______

E assim foi se reconstituindo o fio, a rotina se delinean-do e mergulhamos naquele dia a dia que assemelha tudo, dias como pequenas contas de colar que se alonga na monotonia da repetição. Na verdade, aqui e ali, acontecimentos nos tiravam da letargia de volta à lucidez da vida que passava e carecia de lustro e de brilho. Um dos acontecimentos foi a gravidez de Ieda. A frase, as palavras, é lógico, não traduzem em nada a emoção sentida durante os nove meses de gestação e o nascimento de nossa filha. Ela havia retomado a residência médica, e, na verdade, não havíamos planejado a gravidez para o momento. Uma mu-lher, residente de cirurgia, grávida, casada, não iria ser fácil... Ah, mas ela lutou, lutou bravamente, enquanto se desenvolvia dentro dela, segura e com muito amor, a pequena Cacá. Eu acompanhava maravilhado, meio que em sonho, na verdade ainda meio sem entender o que viria em mudanças em nossa vida. Enquanto isso, foi crescendo a pequena Anna na barri-ga da mãe. Sinais de vida: coração disparado, como o de beija--flor, chutes na barriga da mãe, pulos, soluços, crescimento gradual, tudo acompanhado e registrado, no lugar da memória que permanece sempre, incólume, imutável. No dia dezessete de novembro de 1995, nasceu a pe-quena. Pura magia. Ponto de chegada e de partida, marco, nova forma de pensar a vida e de enxergar o mundo. Desde o nas-cimento, experimentei nova forma de amor, inexprimível dese que visceral e inexplicável, como os mistérios que permeiam a vida e o universo. ______

Estava insatisfeito no Brasil, eram muitas as dificulda-

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À vontade, em casa!84 85

“Contemos as horas, fui a causa de teu sorriso a menos?Mea culpa

Como não machucar, como evitar?Que eu te magoo às vezes, com a mais terrível das dores,

eu sei.Não sou capaz de te completar a frase,

Não sou tua próxima página.Sentemos – com carinhos, com mimos,

Talvez possamos ensandecer as perguntas, afugentar os presságios (maus)...

Um sorriso seria nesse instante, a nossa sobrevivênica.Como um sol que irrompesse, solucionando sombras

(Até que viessem novamente, mas seria uma outra história).

Escuta, bem que poderíamos colar enfeitinhos nessa tristeza,

Poderíamos pintar esse meu pêlo encanecido,E fingir que está somente em repouso o músculo.

Saiba, novas músicas aprendi que poderiam te distrair,O baralho, recomecemos o jogo,

1,2,3: os sorrisos colemos uns aos outros, e aos nossos corpos,

Serei o palhaço dessas horas perdidas,Não deixemos naufragar o amor, amada,

Não deixemos”

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Casei com a pessoa mais doce, dorme encolhida por sob as cobertas, uma criança indefesa. Ao mesmo tempo, mulher plena, a todo instante me consertando os passos bêbados, a

todo momento cerzindo com linha segura, a segurança de nosso lar, a certeza de nosso futuro. ______

Ontem, ao final da tarde, fomos ao parque, ao lado do jardim botânico, o Palmengarten, em Frankfurt. Grande área verde, grama-da, bem arborizada, tem estrutura para a prática de esportes, ou sim-plesmente deitar-se ao sol. Estendemos a esteira, jogamos baralho, conversamos. O sol ainda era forte, apesar de tarde avançada, naqueles dias só se punha por volta das vinte e uma horas. Contemplamos jovens brincando, algazarra de pássaros nas árvores, a beleza do crepúsculo que se desenhava, e decidimos sentir o momento, sem pressa, abrindo-nos às lufadas renovadoras do ar. O futuro foi assim fugindo com os últimos raios do dia, sobre ele não cabia mais a ânsia, fez-se noite, voltamos mais leves para casa, contentes apenas por saber que outra manhã viria. ______ Por vezes gostaria de a encher de mimos – tão leve, doce e encantadora pode se tornar. Ela fecha os olhos, passeio com a mão pelo rosto, pelo dorso, sentindo o repousante contato com a pele de seda. Mais algumas palavras, ela enlaçada em mim como a um brin-quedo, e, à minha pergunta, não obtendo resposta, constato: dormiu súbito e profundamente. ______

No caminho para Roma. Pela autoestrada, ainda na Alema-nha, observo a paisagem: bosques inteiros replantados, a monotonia das mesmas árvores. Cai a tarde e a noite já “retinge” os campos. O ônibus, há muito, segue faceiro sem sobressaltos, só o ba-

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Nenhum que emprestasse movimentoNenhum que empurrasse com o lombo

O peso da intransigência e da decadência.Louvam nas suas margens o antigo faustoOs pequenos homens, os empedernidosOrgulham-se dos palácios onde outrora

Foram esmagados e emudecidosE das catedrais, como a de VienaAssentada por sobre lápides, com

Um colar de monumentos ornamentadaE tão esclerosada que sequer ouveAs lamúrias do Danúbio que passaO senhor de tantos homens que

Em suas margens completaram o cicloE com pontes o ornaram e o celebraram

Mas agora o pobre sequer ouveO baque surdo de um corpo que cai

Sequer percebe o barulho de um novo rio que se formaUma corrente que vem da ÁfricaE vem da Ásia, da outra América

Uma massa que escorre como lágrimaDo antigo bloco, por sobre a Europa.

A delicada dama, a fria, a tiranaSenhora da fome e dos preconceitosSenhora das guerras, algoz suprema

Semeadora de discórdia pelos continentesRainha de tantas posses, ladra dos pobres

Comerciante voraz e inescrupulosaMãe dos genocídios.

______

Em Capri: mar azul, rochas, escarpas, grutas, casas constru-ídas como ninhos sobre pedras, belas vilas, flores, limões, jardins, fragâncias...E a multidão: cotoveladas, empurrões, universo de tu-ristas disputando tão parco espaço. Outrora podia-se aqui viver em paz? Imagino a música tocada por Liszt, povoando Anacapri de ma-gia e de silêncio.

rulho dos carros que passam como ondas e a repetição da melodia entrecortada dos campos e das casas. Aqui e acolá uma novidade: campos de girassóis, ou as ruínas de algum castelo no alto de uma colina. Tanto fausto outrora e agora só pedras. Depois da Alemanha, a Suíça imersa em sonhos, noite que cobre os Alpes. Ao abrir os olhos: a Itália repleta de sol, cruzando a Toscana, rumo à Roma. Para aqui descem os pinguins da outra Europa. Úmbria, co-linas alternando-se com campos cultivados, casas espalhadas a esmo pela paisagem, o sol que a tudo assiste e possui. Com os dorsos des-nudos passam grupos de ciclistas, músculos às vistas, risos que os precedem, sentimentos que gesticulam. ______

Em Florença, por sob a ponte velhaGesticula o velho Arno, rabujento

Nada entendi do que me falou o ArnoPassei, e ele lá continuou no seu leitoPor sob a velha ponte, confabulando.

Acho que já está velho, o ArnoDevagar, já não consegue com suas águas

E anda apoiando-se nas margens, equilibrando-seSabe por acaso notícias do Chico?E do Amazonas, e do MississipiCaudalosos, pais de tantos rios?

O velho Arno já não é mais um rioFoi controlado, governado, confinado

Como o Tevere, de tão fundo, enjauladoOu o Reno, cavalo cansado, dorso brilhante

De tão usado, de tão gastoPara não falar do Sena que

Da ponte Alexandre III até a NeufPareceu não se mover, observeiDe um final de tarde, cautelosoAs águas, nenhum sinal de peixe

Nenhum que arrastasse o fio das águas

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Corpos: emoção e razão

“Guardei o pio da coruja, guardei o coaxar dos sapos no mato, guardei o estrondo do trovão ecoando na noite escura, guardei cada ruído numa caixinha e posso ouví-los, às vezes, quando dou corda e escuto, a minha própria música”

Cinara Mattioti90 91

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Dré e Cacá desceram as escadas, atravessaram de mãos dadas a Hohemarkstrasse, para pegar o bonde na esta-ção Portstrasse. Três paradas adiante, mais três quadras

a pé, até a escola. Dré entrou na escola, no verão do ano escolar de 2007, está muito feliz. De manhã cedo precisa de muito apoio para acordar, vestir roupas, tomar leite, escovar os dentes, pentear cabelos, pôr per-fume e se despedir. Cacá tem acordado sozinha, é sempre muito responsável, em breve com doze aninhos e já diz gostar platoni-camente de colega da escola. Como vão à escola sozinhos, também vão ao supermerca-do fazer compras, à padaria, à biblioteca municipal alugar filmes ou livros, até mesmo comprar sorvetes no final da Vorderstrasse, rua de comércio, mais movimentada. Vivem sem sombra de violência, sem seu hálito morno na nuca, como um fantasma, sem susto intermitente, o medo ace-lerando o sangue...Vivem a liberdade de águas que correm, em leitos que lhes pertencem desde tempos imemoriais, donas do passo, espaço e ritmo. Em breve, porém, voltaremos ao Brasil e eles deixarão de ser livres. Dois passarinhos que teremos de prender. Duas crian-ças que teriam de estar construindo suas experiências, vivencian-do assombros da vida, do dia a dia, estarão privadas de liberdade. Cada pessoa com quem converso já foi de alguma forma vítima de assalto, violência, de arma de encontro à cabeça ou à barriga. Os que não morrem na hora, fazem-no lentamente, tensos, ner-vosos, de estresse crônico e de medo. Eles passam a sofrer de doenças que o gatilho disparou, iniciadas após o aperto do cano da arma contra o peito, despertando automaticamente a maqui-naria, o fogo correndo como pavio, pelo sangue, pelos nervos, destruindo mais adiante a vida, a família. Nosso povo, alegre e descontraído, vive hoje na sociedade enferma, de depressivos, histéricos, psicóticos, suicidas, assassi-nos. O povo brasileiro não joga o futebol alegre, de dribles e

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qualquer, como que deixado ao acaso, meio escamoteado, dis-farçado, imitando pulmão, um bicho-camaleão, só mesmo apal-pando-se para percebê-lo, o cranco endurecido entre dois dedos. À sua volta pequenos gânglios escurecidos, infartados, pareciam nada aos olhos desarmados. Mas se movimentava, subterrânea, a onda negra, a que ia consumindo o corpo, apagando a vida, até o breu... E a velha dama assim invadida era um corpo, uma carcaça, sem nome, sem dignidade. - Quem dela se lembrava? A jovem, a fogosa, a que viveu para si? A quem mesmo isso tudo interessava? A cirurgia já há muito acabara e na ante-sala se anestesiava outro corpo sem história e sem memória. ------------------- E lá se vai Marinella, a italiana, limpando, limpando o chão, limpando as flores, os copos, as unhas, o corpo... Marinella que não se cansa, limpando, limpando... Mas cuida, Marinella, que se encheu de pó a alma. De pó que não se enxerga, de sujeira que não se esfrega. Cuida Marinella, antes que seja tarde! ______

Sei muito da minha dimensão humana. Da distância que existe entre o que penso e faço. Da incerteza espreitando a cada decisão que tomo. Do pensamento superficial. Da preguiça inte-lectual. Do egoísmo incontrolável. Do medo subjacente em cada sentimento. Do pavor da morte. Do agir covarde quando se exi-jia o heroismo. Sei que estou numa transitória ordem, patinando em cima do caos e que se o imprevisível de repente me atingir – posso ser nada, ou um homicida, ou um tarado, ou um louco a perseguir as sombras que não soube dissipar. Sei portanto da mentira que sou e nesse momento estou extremamente lúcido – não tenho a mínima condição de contar vantagens ou de ser uma criatura arrogante.

embaixadas. Já não samba mais como antes. A garota de Ipanema vive apenas nos discos. As cadeiras nas calçadas viraram contos do passado que se perde na confusão de lembranças remotas. Dré se enrola na bandeira do Brasil, ama as cores da flo-resta, céu azul, festa, abraço, sorriso, aconchego, quer rever ami-gos, a casa que deixamos, a cachorrinha que nos espera e o colo bondoso e amoroso dos avós. Dré quer voltar para o Brasil que não mais existe. ______

- Como se chamava a Frau? De onde veio, qual sua histó-ria? Teve uma infância feliz ou sofreu as penúrias do pós-guerra? Foi uma bela jovem, decerto. Vivera o movimento estu-dantil dos anos sessenta, defendera certamente os ideais feminis-tas, o que a tornara uma alemã independente, voluntariosa, deste-mida e cheia de si. - Uma gravata com os músculos das coxas, derrubava de gozo qualquer homem. Ah, era intensa, tinha sede, tinha fogo! Quem não se lembra de seus escandalosos orgasmos? Agora estava ali, imóvel, guardada, etiquetada, sob narco-se. Agora ali estava: um outro corpo, velho, esquálido, que uma jovem há muito abandonou. Uma casa velha. Pelo menos assim é tratada. A paciente tem câncer de pulmão e a cirurgia é iniciada: anestesia rápida e eficaz, corpo posicionado, campos postos, e o bisturi em precisa inclinação abre de uma só feita um talho no tórax, alcançando, em passos sucessivos, o pulmão. Lá está o sujeito passivo, o fole vazio, de capa rosada com manchas pretas moteada, pegadas indeléveis do cigarro. Lá o encontra o cirurgião, o órgão imóvel, ao lado de coração que bate como um autômato, incomodado. - Onde o câncer? Onde os tentáculos, as garras, a foice, o avanço? Onde a lama, o líquido viscoso, o asqueroso, invadindo? Nada, só o silêncio, mas aos poucos, tateando-se, ei-lo: num lugar

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sa. Veio-me, como num clarão, a intuição: fiquei um pouco para trás das duas crianças, de forma que ficamos em fila, arranjando--lhe espaço para que passasse, no lado certo da mão de tráfego de pedestre, desde que eu estava desaforadamente na sua linha preferencial. Nesse exato momento, senti as linhas retesadas do seu rosto relaxarem, precipitando até a formação de sorriso e os olhos se desanuviarem, agradecida que estava pela continuidade da organização espacial do dia e por termos sido tão somente ameça projetada que por sorte não se confirmou.

---------------- Frau Dr. Zeil é cirurgiã. Trabalha rápido com pinça e te-soura nas mãos. Sob seu domínio, o bisturi rasga certeiro a pele e tecidos. Parece estar em eterna pressa, seguindo as ordens do chefe, sempre, como soldado. Tem força para erguer sozinha o paciente, e desenvolveu métodos, malabarísticos até, de lidar so-zinha com os instrumentos na cirurgia, de forma que em muito não precisa de auxiliares. Não titubeia em dar ordens, trocar pala-vras ríspidas, chamar à atenção, quando está com a razão. Mesmo porque, pouco depois, meio que já esqueceu o ocorrido, talvez pela impressionante capacidade de não ouvir as palavras desa-gradáveis, ou, pelo menos, de parecer não ouví-las. Não é casada. Parece não ter filhos. Tem na sala de trabalho um único retrato, em que parece estar de férias e tem ao lado crianças, “mas são sobrinhos”, fala com um sorriso. Os cabelos são curtos, para me-lhor caber no gorro cirúrgico. É magra e senta-se quase como homem. Algumas vezes, se perguntada, não se lembra dos dados do paciente. Mas está sempre ao lado dele, pronta, quando ainda o estão anestesiando, preparando-se para colocá-los em posição cirúrgica, e colocando-lhes, com rapidez, sonda vesical. Fui seu assistente em cirurgias quando por algumas ve-zes, como por descuido, muito rapidamente, percebia em seus olhos, sorriso e afeição: era quando deixava entrever na menina

______passou a vida a acumular riquezasdos companheiros nenhum havia

que lhe ofuscasse em brilho

passou

por ruas e becosquando nem bem o sol nasciaprestava-se a domar o medo

acumularacumular

era o que mais bem lhe fazia

passou

não percebeu

(no céu o sol resplandecialevava o vento um gravetoque na lápide se enroscou)

-------------------------

Percebi que, a cerca de sessenta metros, ela parecia nervo-sa e me olhava apreensiva. Parecia incomodada e como que luta-va por tomar decisão, reação que li nos olhos inquietos, quando já distava de nós uns vinte metros. Era uma mulher jovem, que trajava comportado conjunto de saia, blusa e jaqueta de mesmo tom creme e sapatos pretos de saltos. Eu diria que trabalhava em banco, ou nalguma repartição pública alemã, em pausa de almoço. Com nossa aproximação, sua perturbação atingiu níveis insupor-táveis, como se estivesse à beira de decisão súbita e tempestuo-

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clo, e a doença tranforma-se em processo crônico, que se auto--alimenta, e se reproduz continuadamente. O homem, o paciente, torna-se refém da doença e da medicina.

---------------

as saúvas a meus péssimplesmente desconhecem

o que soue a destrutiva força

que me impeleenquanto a natureza a pino

me beija as facescomo a uma flor

dos olhos, a entreaberta janela de alma feminina e humana. Frau Dr. Zeil é cirurgiã habilidosa, mas esqueceu a quali-dade que poderia ter sido seu grande trunfo – ser feminina, cujo significado afetivo e humano implica, normalmente, melhor en-xergar o outro, o que contribui para humanizar o cuidado. Os centros cirúrgicos são, em geral, fábricas de produção em larga escala, e o ser humano: peça da mesma maquinaria. ---------------

Estou em um ambulatório de cirurgia especializada. Pode ser em Frankfurt, em Freiburg, em Marília, em qualquer lugar dessa Abendland. O médico, que se protege em sua sala, manda chamar os pacientes, um após o outro. O paciente já chega teme-roso, em ambiente hostil, longe de suas referências. O médico, sem que ao menos o encontre nos olhos, direciona-se para a parte de seu corpo que geme, conversa em código com esta, tentan-do enquadrá-la em alguma de suas fórmulas para diagnóstico. A doença é então ajustada em fórmula, transformada em número, e acionada em viagem por entre diversos aparelhos e exames. O paciente levando a sua parte doente, entra nessa ciranda como se fosse máquina também, rodopiando, objeto à mercê da tecnologia e do descaso, de onde sai com o laudo, confirmando o diagnósti-co e indicando a causa do mal. Próximo passo, também orientado por uma fórmula: o tratamento. Óleo diesel ou muda-se de peça? Tem como reparar, doutor? O tratamento é para a parte que geme, não importando o resto da carcaça. E então, depois de feita a receita, entrega-se ao preenchimento de papéis. O paciente, descartado, vai para casa, guardando na memória o nome da doença, que passa até a exibi--la, como uma placa, e com a sacola de medicamentos a tiracolo. Após satisfatória mas breve melhora, a doença recrudesce, e ele volta ao consultório, novoamente enquadrado, protocolado, medicado, melhorado, até que tudo se reinicia, repetindo-se o ci-

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Estranhos em terras estrangeiras

“pousou com graça os pés na relvae não sabia que o movimentosutil em siguardava uma sucessão de momentos

e que em cada alternavam-seprimeira e terceira horasconcepção versus mortecada momento exigia em sia decisão pousou com graça os pés na relva

e não tomou conhecimento”

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Luccio nasceu em Londres, voltou com a família para Sicília, depois emigrou para a Alemanha, em busca de trabalho. Em viagem de passeio a Londres, encontrou Laura, com dezesseis

anos, também filha de italianos. Casaram-se, vivem e trabalham na Ale-manha, tiveram dois filhos. Começaram a erguer casa na Sicilia, sem pressa, na medida que se vá alcançando dinheiro, para onde pretendem voltar, quando aposentados. Cecilia casou-se com Bruno. Ela veio da Sardenha, o irmão morava em Bad Homburg, jovem de vinte e poucos anos, ele morreu em acidente na estrada, Cecilia ficou sozinha e isto lhe marcou profun-damente, mas depois encontrou Bruno e família, que acolheram-na. O pai de Bruno viveu cerca de oito anos trabalhando na Ale-manha, antes de trazer a família, onde viveram por cerca de trinta anos. Depois da aposentadoria voltou com a esposa para Salerno, a cidade de origem. Ficaram os dois filhos homens, casados, e voltaram com a única filha e marido, também de origem italiana. Na Alemanha, Bruno aprendeu o ofício do irmão, mecânico de automóveis, com o qual ganhou a vida, montou família e educou os filhos. Já compraram um apartamento em Salerno, perto dos pais, onde pretendem um dia viver. Totti tem um pequeno restaurante italiano. Vive com a espo-sa e um filho. Há pouco perdeu o amigo, que subiu de Munique até Frankfurt em busca de emprego, apareceu de repente dizendo ser da mesma região na Itália, Bari, contando muitas histórias e lorotas. Era casado com uma africana, e tinha uma filha de 6 anos, mas o casamen-to não ia bem. Eu o conheci numa noite de sexta-feira todo vestido em preto, criatura bem magra, tagarela, ansiosa, apresentando-se por si própria, intrometendo-se nas conversas, dando opiniões inesperadas e mal recebidas. Falou algumas vezes ao celular, do lado de fora do restaurante, indo e vindo pela calçada, gesticulando demasiado. Em momentos, dissera ter falado com a filha e sorrira. Saimos juntos nessa noite, jogar bilhar. Foi parceiro do Totti e perderam. Como tudo que até agora demonstrara, fora maior sua propaganda de jogador do que o era de fato. Cruzamo-nos mais uma ou duas vezes, ele, ave negra e desesperada. E assim passaram-se quatro semanas, sempre às sextas,

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Sua condição: mulher árabe, imigrante, muçulmana, na AlemanhaLogo a comunidade lhe arranjou um esposo

Ele: imigrante, clandestino, do Iêmen, que não falava alemãoSamira se casou, em Frankfurt, na rua Münchener, na mesquita

No andar de cima do mercadinho AlimDepois foi operada, uma, duas vezes, do coração

Não tardou teve uma filha, que não podiaTornou-se mãe, esposa dedicada, prestimosa

Amou o marido, que trabalhava à noite, na Hauptbahnhof, a estaçãoDa distante Riad, somente notícias, a mãe, e o pai, que morreu

Ficou ainda mais só.Samira não tem maldade, quer apenas viver bem, com os seus

Não pode voltar para casa, tem que se tratar sempreMas as pessoas dela desconfiam, a dócil Samira, em sua burca.

Seu marido quis outro filho, um filho homem, os médicos disseram não

Samira caminha tímida, como fugitiva, pelas ruas de OberurselA filha se desgarra de sua mão e corre

Transeuntes lhe evitamMal sabem o quanto é frágil, amiga, sensível, bondosa

Ninguém supõe que carrega no útero um filho, um homem. ______

Minhas palavras batiam de encontro aos olhos opacos do pro-motor e caíam como pássaros. Formou-se na córnea uma parede bran-ca que refletia a luz, de nada adiantava. Ao final do discurso, me vi só, terrivelmente só, as pessoas eram miragens, e somente a cabeça do promotor falava, com os olhos mortos, parede branca, incandiando No pó de sua mesa de trabalho, as palavras jaziam mortas, e de nada adiantava, a lembrança do vôo, do canto, a projeção do céu cortando um naco da janela entreaberta, de nada adiantava mais Agora era eu, parado, e a minha alma se fechando, como se fizesse noite adiantada, como se a mente escura do magistrado tivesse

íamos ao restaurante, já por volta da meia-noite, pouco antes de fe-char. O amigo havia conseguido emprego, trabalhava numa pizzaria, saiu algumas vezes com o Totti, não esquecia a família distante, algo que, não sabíamos, não ia bem, o casamento se desfizera, a mulher lhe deixara, talvez até traíra, não se sabia, mas havia sombra em cada ato seu, em cada palavra, confundindo-nos o entendimento. Totti falara--lhe algumas vezes da necessidade de se cuidar mais, estava cada vez mais magro, não comia bem, não dormia quase... Um dia saiu para o trabalho e a sua vida findou súbita, embaixo do caminhão, consumido pelas chamas. Partiu como veio, intempestivamente, sem pedir licença. Fez, sem pedir, parte das nossas vidas e nos deixou também assim: sem pedir, de repente, batendo a porta. Deixou-nos perplexos, sem enten-der e até sem perdoá-lo por isso. Deixou-nos com a dolorosa sensação de termos nos fechado ao pedido de socorro, ao canto angustiado, e à tentativa última de se segurar na vida. Foi-se para sempre a ave negra, apagou-se em terra estranha, em total solidão, longe de Bari, dos pais e da filha, que talvez ainda o esteja esperando. Francesca é também sarda. Casou-se com Nuno, outro que veio do sul da Itália. Ele é funcionário do Hospital de Clínicas, Uni-Klinikum, da Universidade Frankfurt, como reparador de instalações elétricas. Tiveram dois filhos, um casal. Francesca luta, há três anos contra a esclerose múltipla, doença nervosa, degenerativa, que lhe vai limitan-do progressivamente, apagando a energia, como se por curto-circuitos, deformando-a e afogando-a aos poucos nas sombras. O que têm em comum? O fato de viverem na Alemanha há mais de trinta anos e ainda se sentirem estrangeiros. O fato de não só se sentirem mas de serem tratados assim. O fato dos filhos, nascidos e educados na Alemanha, não se sentirem alemães. O destino pratica-mente traçado – eternos estranhos em terras estrangeiras. ______

Na Münchener Strasse, em cima do Alim-Market, Samira se casouSaiu de Riad, doente, em busca de tratamento, caiu na Europa

Seu passaporte, o coração enfraquecido, insuficiente

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E nesse campo, corre solta a hipocrisia. Produtos “bio”, vida saudável, louvação à natureza, enquanto o país é um dos maiores par-ques industriais do planeta, enquanto as estradas se atulham de carros, que são exportados para os quatro cantos do mundo. Não importa que tenham também exportado as fábricas: o dinheiro retorna em euro, e a malícia e a esperteza só entornam mais o caldo, a autoria intelectual continua a mesma. Esteriotipados. Presos a um sistema. Trancafiados dentro da própria criação. A criatura maior que o criador. Sem liberdade dentro da própria casa, do próprio quarto. Sem identidade, as regras asseme-lhando todos... Preço demasiado caro para se viver. ______

Fui buscá-los no Kindergarten, na pré-escola. Escondiam-se no jardim para que os procurasse: Dré e Nicolas. Nicolas, filho de imi-grante polonesa com pai alemão, já separados. Dizia-se, informalmen-te, que o percentual de casais separados na Alemanha pós-moderna sempre ultrapassara a marca dos cinqüenta por cento. Ela era jovem, bonita, dona de loja de calçados no centro de Oberursel. Vivia sempre com bastante pressa, tanta, que dava-se a impressão, o filho ser para ela um estorvo. Nicolas tinha um comportamento agressivo e era às ve-zes triste. Eles eram amigos, brincavam juntos, e nesse dia resolveram construir um barco, em que viajariam para o Brasil. Dré, afogueado pela correria, trazia o desenho, a bandeira e o protótipo do barco em papelão, enquanto falava muito a respeito do projeto, não se importando com o vento frio de janeiro. Em casa, pôs--se a trabalhar, sempre requisitando minha ajuda. - Pai, precisamos de um pau para prender a bandeira. - Pai, o papelão se desmancha em água, então de que vai ser nosso barco? Decidimo-nos por madeira, mas era preciso antes terminar o projeto no papel. Bem, a bandeira fora feita: misto de bandeiras do Brasil, da Itália, da Polônia e da Alemanha, representando a descendên-

o poder de anular a luz e chacoalhar as sombras Virei-me, dei de costas, ficou ele lá, brincando com as leis de plástico, jogando aviãozinhos de papel no espaço caduco, saturado, de sombras, preconceitos e de mofo. ______

Esteriotipados: o modo como escrevem, como contam, como falam e como sentem. São tão iguais entre si !!! Como educam as crian-ças, como lidam com os cães. Existem hora e momento para relaxar e para tolerar. Existe o instante em que criança pode ser criança, com direito até ao sorriso complacente dos adultos. Esteriotipados: no modo como andam, como se vestem e cor-tam os cabelos. Há que se correr, põe-se o traje esporte completo, não importa a idade, o corpo e o modelo. Há que se andar de bicicleta, o traje é o típico, justo, marcando, colorindo. Lugar, horário e regras para tudo: para conversar na rua, para o volume de voz permitido, para dan-çar, para gritar, para ouvir música ou mesmo para dar risadas. Demore-se uma fração de segundo a mais no semáforo, e já se ganha de imediato uma sonora buzinada, igual quem está atrás, se jovem, se idoso ou se mulher. E a buzinada é exatamente igual, em vo-lume, duração e intensidade. Mude-se a sua mão ao andar em calçada, escada rolante ou degraus, corre-se o risco de ser xingado, como no trânsito, como se fôssemos carros. Cumprimente-se primeiro a mulher, mesmo que esta esteja em posição complicada ao alcance da mão, mesmo que o homem já esten-da a mão, pois que fique com a mão estendida e o sorriso de bobo. A leitura é santa e o silêncio é sagrado, mesmo que o que se lê não mude em nada o ato, o fazer, mesmo que o silêncio seja para ruminar egoís-mo e solidão. Acontece que regras são sinônimo de civilização. Como se o mundo em seu natural fosse um estado da mais perfeita ordem. Como se a vida não suportasse o imprevisto, o caos, o imponderável. Como se a emoção e a criatividade, fossem tão somente sub-ítens, cataloga-dos, da razão.

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esquecer o leme – respondeu Dré ao meu “por quê”, enquanto me ro-deava, subindo a poltrona, e requerendo de todas as formas a atenção do pai. - Não, eu não vou ficar só escrevendo. Prometo que vou dirigir com atenção. Mas agora é hora de dormir, amanhã a gente discute sobre o projeto do barco. Não podemos construir o barco em casa, porque é muito grande e precisa de muita madeira e talvez até de aço para que os tubarões não comam o casco. Por isso a gente termina o projeto e manda para Itália. Lá existem indústrias que constróem barcos. Precisamos somente ter paciência, até que ele fique pronto. Depois, é só montar e zarpamos para o Brasil. Agora, hora de dormir, amanhã discutimos mais sobre isso, certo? - Pai, o que significa discutir? – perguntou já com os olhos pesados. - Troca de opiniões. Digamos que você quer o barco de um jeito, mas o engenheiro acha que fica melhor de outro, discute-se então para ver quem tem razão. No final teremos um barco em que cada um contribuiu com uma opinião.- Está bem, pai. Amanhã vamos “lutar o barco” – Falou e logo estava dormindo. “Lutar o barco”. Discutir. Bem, de alguma forma discutir pode significar luta de opiniões, com maior ou menor violência ou fervor. ______

Cai neve, cai, mas cai sem demora.Vem bojuda, felpuda, algodoada, dançando no ar.

Cai sem barulho, sem molhar, no meu rosto, nas vidraças, pelas ruas.Neve branca, neve pura.

Vem pelas crianças, alegres, iguais a ti.Pela monotonia do inverno cinza.

Flocos grandes que se esparramam,Flocos leves que flutuam e dançam,Por que tanta demora nesse ano?

cia dos dois e o país onde atualmente moravam. No corpo do barco, Dré adicionou canhões, direcionados em todas as direções, inclusive para o céu e direto para o mar (acho que para os tubarões). Além disso, na parte de defesa e ataque, firmou bem no casco espécies de foices afiadas, que poderiam retalhar o inimigo pirata, além dos sempre temí-veis tubarões. Expliquei-lhe que, como desenhado, o barco era muito, muito alto, e os tubarões ficariam lá embaixo, na água, muito difícil de nos alcançarem. Que nos alcançassem, pois nesse momento eu já fazia parte da tripulação, mamãe também, e tia Cleuza, e, com alguma relu-tância, a irmã Anna. Deixou que ficássemos no que seria o seu quarto, pois para o Nicolas havia outro, e lugar para bagagens, cozinha e, em cima, ao lado do mastro, restaurante rodeado de canhões. - E quem vai dirigir o barco à noite? – perguntou, muito preo-cupado. - Eu, meu filho, o papai dirige à noite – falei para que se acal-masse. Imediatamente voltou-se ao desenho e estabeleceu um lugar próprio para o leme, pois seria longa a viagem até o Brasil, e precisava--se de alguém que dirigisse à noite. Ops, Letizia chegou, logo estava no barco, ela e Pietro, os italianos, todo mundo no mesmo quarto do barco que teria...qual nome mesmo? - Um nome chique, pai – falou Dré. - Para você, qual é um nome chique? – perguntei, curioso. - Pode ser: Barco dos Deuses, Blumenschein, “rinoçaronte” (acho que quis dizer rinoceronte), Praia das Pessoas, Herzboot – falava cada dos nomes de forma pausada, enquanto eu aprovava e aplaudia todos. - Mas, entre esses, Dré, qual o mais chique? - Herzboot. Ficou aprovado o nome, com muita admiração. O próximo passo foi o estabelecimento de regras. - Pai, vai ser proibido levar computador, sabe? – falou Dré de forma determinada. - Porque senão, pai, você vai querer só ficar escrevendo, e vai

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Casa vazia, ecos do passado

“Não há ausência total, nem tanto assim.Enquanto ainda suas marcas perseverem,

No silêncio que acolheu o seu riso,Nos ladrilhos que sustentaram o peso,

No vácuo que deixou moldada sua figura,Como se ainda há pouco houvesse estado.

Não desapareceu de vez, não poderia,Senão correria em desespero a razão, veja

Ainda em sua casa dormem sono solto as lembranças,

Ainda estão quentes os lençóis, o forro da cadeira,

A disposição da mesa onde a nódoa do café se mistura às migalhas do

pão.

Era como se houvesse saído somente há pouco

Quando ouviu o chamado do táxi,

E foi ao hospital, com cirurgia marcada.Portanto, lembremos, enquanto isso,

Aquele gesto de amor, seu, sobreviveuNo jardim, a orquídea que quase morreu

Desde ontem floresceuPara quê relembrar o Chico que foi?

Para quê reativar a dor?

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Noite distante e fria. Sou uma casa vazia, velho sobra-do de escadari as, onde ecos de passos se acumula-ram ao longo dos anos. Pode-se ouví-los na noite

que teima em não dormir. Aos poucos as lembranças vão se enchendo de passos, quando silenciam, e, a um canto, senta-do à mesa, magras pernas cruzadas, revejo o saudoso amigo e professor, o mesmo que me acolheu enquanto vivi em Ma-rília. O cigarro à mão, com a outra afasta os cabelos lisos que lhe caem sobre os olhos. Apruma-se um pouco na cadeira, toma um gole de cerveja, e se põe a recitar Fernando Pessoa. Ele nasceu em fazenda, no Triângulo Mineiro, onde o pai trabalhava como empregado, e a mãe cuidava dos filhos. Venceu a infância, em que perdeu os dentes, andou descal-ço, e as unhas dos pés ficaram para sempre deformadas por micoses. Venceu a pressão de organização social e política, que tornava o analfabetismo e a pobreza capitanias heredi-tárias, alienando crianças e forçando-as a seguir o mesmo caminho dos pais. Entrou na Faculdade de Medicina da USP, em São Paulo, e se sustentou, pagando os próprios estudos. Deu plantões. Foi aluno brilhante. Terminados os estudos, especializou-se em cirurgia vascular, casou-se e, por várias circunstâncias, foi parar em Marília, interior de São Paulo. Lá, foi um dos primeiros e dos melhores professores da Fa-culdade de Medicina, onde participou na formação de médi-cos. A história poderia parar assim, culpa de relatos técni-cos, em que as palavras se destacam mais que os personagens. Mas ele foi personagem por demais vivo, interessante, cria-tivo, inteligente, provocador, para ser alfinetado numa folha como inseto morto. Foi um neurônio esticado ao máximo, com sensibilidade tão aguçada, que o barulho do mundo, o tato, o sopro, os mesmos que lhe trouxeram vida e movimen-to, aproximaram-no da doença e da morte. Não se sabe bem o que lhe aprontou a vida, as cicatri-

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E agora sinto-me confortável para contar histórias, talvez as possa contá-las por longas horas, pequenas passa-gens, pedaços que a memória traz, rosário de contas, relató-rio de vida. ______

Eu o procuro de volta, nas lembranças, e o vejo numa clara manhã de sábado, em Recife, levando-me a passear. Re-cordo-me do homem pacato, de fala mansa, fazendo as vezes de anfitrião. Sentamos à mesa de um boteco na praia, bebe-mos cerveja, com tira-gosto de agulhas fritas, enquanto jo-gávamos conversa fora. Nessa época vivia uma relação com uma colega de trabalho, também delegada de polícia. Dessa união nascera um filho com síndrome de Down. - “Mais um?” – pensei comigo mesmo – “ Meu Deus, quanto sofrimento na vida desse homem!” – Não que filho com essa doença, significasse necessariamente sofrimento, mas pensei no contexto de sua vida, e procurei em seu rosto as marcas – “Não, não tornou-se louco, não virou lunático” – continuei em pensamento – “ou revoltado, sequer lamenta-dor contumaz, pelo contrário, nada referiu sobre o passado e só procurou ser gentil.” O que talvez, relembrando, já fosse o grande problema, a superfície tranquila guardando o interior revolto, mas no momento não me dei conta disso. Depois me levou à loja de quinquilharias do irmão, o seu contrário, o senhor de todos os risos e malandragens. Com ele os momentos perdiam em peso, ficavam leves, sem qualquer gravidade. Era um perturbador de qualquer ordem imposta, e tinha, por hábito, menosprezar etiquetas e outras regras sociais. Em pouco tempo os perderia, por diferentes motivos. O querido malandro, pelo excesso – de bebida, de descuido com a saúde, de alegria, de liberdade e de açúcar no sangue. O meu amigo e anfitrião, dos dois irmãos o circunspecto,

zes que deixou, mas o fato é que se afogou paulatinamente na poesia e na bebida. Enquanto o corpo ruía, o espírito resistia, triste decerto, mas entremeado com desconcertante humor. Permaneceu sempre generoso, sempre ágil, de assom-brosa memória, reunindo jovens em torno de si, apontando caminhos, enquanto foi descendo o seu próprio. Às vezes paro e observo meu filho brincando, ten-to fotografá-lo nas lembranças, memorizá-lo na lucidez do momento, e torná-lo eterno... Tentei isso algumas vezes com ele? Deixei a pessoa, por trás do professor, se confundir com o frio e desumano cotidiano, perdendo-o muitas vezes, sem ouví-lo como devia? Decerto. Decerto. Mas sei que naqueles momentos, encurralado por minhas próprias limitações, fiz o melhor que pude e fui o que poderia ter sido. Ele me res-peitou como fui. E eu o guardo assim, carinhosamente, na lembrança. ______

E nesta sede, neste burburinho, começo a ter uma his-tória para contar. Lembranças, acenos de amigos que ficaram pela estrada, a desenfreada infância, a conturbada adolescên-cia, o jovem tímido e ambicioso, o médico, o imigrante em tantas terras, o marido, o pai... E tantos anos já passaram! Em volta desfolham-se e renovam-se as árvores, o frio vem e vai, passa e repassa a temporada das flores, por longos meses encurtam-se os dias, depois se alongam em delicioso bocejo. Nada há que interfira nesse ritmo. Houve somas e subtrações, perdas e ganhos, lenta transformação, não sentida, somente agora, que paro e pen-so e lembro-me. Ou me tornei múltiplos? Pois na verdade sinto a infância incólume, que continua sonhando lá no pé de araçá, defronte à casa branca. Ela nem morreu, nem se trans-formou, continua a mesma, esperando que se lhe dê a mão e se lhe conte histórias.

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Durou mais uns dois anos? O que fez nesse tempo? Hou-vesse eu por lá passeado, teria me levado, em sua habitual mansidão, pelos bairros velhos de Recife? Ele morreu num dia qualquer, o que importam datas? Morreu já cansado que estava de tanto tatear na negritude de uma vida trágica. Uma pistola, tiro à queima-roupa, na cabe-ça, e enfim o silêncio total, a curva do esquecimento, o nada e o descanso que já há tanto merecia.

também pelo excesso – de dor, de tragédia, e de falta de sor-te. As duas: pedras brutas, verdadeiras, dionisíacas, não vidas “maricas”, repletas de medo e de regras. Ambos perderam, no caminho, a mãe, por suicídio: pôs fogo no próprio corpo, no banheiro de casa. Mas um deles, o amigo de quem falo, casou-se com uma prima. Não sabia, mas antes de casar, ela já havia tido algumas crises, que depois se soube, esquizofrenia. Logo após o nascimento do filho, os sintomas da doença se tornaram mais presentes, as crises mais frequentes. Um dia, o fogo também a levou, da mesma forma, derramando álcool sobre o corpo, deixan-do-se ir em fogo e cinzas. O filho a tudo assistiu, sem que pudesse salvá-la. E ninguém soube o quanto ficou dos gri-tos de dor e pavor ecoando no cérebro de apenas sete anos. Ninguém soube de quanto se impregnou do cheiro de carne queimada. Ninguém jamais soube das cicatrizes... O filho, já órfão de avó, ficara órfão da mãe, e um pouco também do pai, que se tornou alcoólatra, e lhe trouxe uma mãe postiça, que lhe deu um irmão com problemas de desenvolvimento mental. Ele, que tinha muitos primos, tias e tios que na me-dida do possível com ele se preocuparam, terminou a infân-cia e atravessou a adolescência sem grandes problemas, mas de qualquer forma, e sempre, às voltas com um psicanalis-ta. Tornou-se jovem adulto, já então com alguns distúrbios comportamentais, que demandaram psiquiatra. Um dia, ao ser chamado com urgência, seu pai se deparou com um agru-pamento de pessoas e carros de polícia em frente a sua casa, forçou passagem e se defrontou com o corpo do filho quei-mado, jogado, largado, quase sem vida, contra o leito quente e duro do asfalto.... O filho sucedeu a mãe, que repetira a vó. O pai que perdera a mãe, perdeu também a esposa, e agora perdia o fi-lho. O pai que perdera o amor, agora também perdia a vida.

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Cordões de fogo, caminhos, rios e manhãs

“Cordões de fogo da Alemanha, estradas de Marília, vales que conduzem a Assis, maquinaria que governa o mundo, respondam-me o que somente e a bem da verdade me angustia: onde encontrar o contentamento que tanto procuro?”

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Um rouxinol canta na manhã ensolarada, canta como se martelasse as vigas prateadas da manhã, canta trazendo os ecos de outros pássaros que já ouvi. O sol dessa primavera que iniciou mais cedo me convida a ficar na sacada, olhos fechados, entregue ao calor de seus raios, já que o frio foge para o descanso das sombras. - Ouvir o canto, sentir o sol morno, fechar os olhos e viajar... O chocalhos preguiçosos de bois mansos e vagarosos se deixam ouvir na distância, o estalido súbito de bola de gude de encontro à outra, o pião se desprendendo do cordão como o ruflar de asas da rolinha, o vento instigando a pipa novinha em folha, que dança agarrada pelo cabresto, como égua prestes a sair em disparada... Barulhos da infância. Sau-dades do mugir nostálgico e solitário do gado quando a noite caía. Saudades do cair vigoroso da chuva improvável noite toda, mundo afora, vida inteira... - Ah, essa chuva que nunca me deixou! Guardei o pio da coruja, guardei o coaxar dos sapos no mato, guardei o estrondo do trovão ecoando na noite es-cura, guardei cada ruído numa caixinha e posso ouví-los, às vezes, quando dou corda e escuto, a minha própria música. A Alemanha me presenteia hoje com essa manhã. Amo a Alemanha de bosques, rios, poetas e filósofos. Amo a Alemanha de Bach, de Beethoven, de Schumann, cuja música toca na vitrola do universo, pontuando a dança dos astros. Amo a Alemanha dos meus sonhos, que, por vezes parece nunca ter existido, como a neve branca e pura da noite, que se transforma em lama escura, sujando as botas e os casacos de imigrantes, que cedo se dirigem ao trabalho. ______

Dirigindo o carro a ruiva senhora aproximou-se para estacionar. Adiantada a manhã, o sol estava a postos no céu

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mercedes metálica. Ela suava bastante e parecia realmente contrariada. Desloquei então os olhos, em direção ao pon-to para onde ela mirava e contra o qual imprecava, decerto com palavras que fariam Goethe desconcertado, Qual não foi minha surpresa quando vi saindo da frente do carro um pássaro, lépido, faceiro, saltitante, sem demonstrar sequer surpresa, sem desespero, movimentando-se porque era da sua natureza movimentar-se, mas não por causa da senhora algoz do volante, desde que sequer a percebia. Parecia buscar comida por entre as pedras da rua, e nesse seu caminho des-preocupado, saiu da frente do carro, deixando assim o cami-nho livre, para que a senhora esbaforida estacionasse o carro metálico e seguisse o planejado dia, ainda que reclamando de tantos pássaros desajeitados e pouco civilizados que sequer conhecem as regras do trânsito. -------------------- Pela estrada Rosa Luxemburg faço parte do cordão de luzes: cordão que vai para Bad Homburg, cordões que se cruzam até Frankfurt. Enquanto aguardo no semáforo, vejo fila interminável de carros. - Como cabem tantos? - Quantos caminhos levam a Frankfurt? - Quantos cordões se entrecruzam na Alemanha, como emaranhado de vasos sanguíneos? Em pouco deixo a Rosa Luxemburg e recebo permis-são para entrar noutro cordão, destino: Nordwest Kranke-nhaus, hospital, onde devo chegar ainda para a primeira ci-rurgia da manhã. O carro é um Opell 1995, vermelho. Pela frente vejo agora no máximo três ou quatro carros, para trás também, tenho a impressão que somos apenas nós, a peque-na comunidade de carros que nosso campo de visão alcan-ça...Como os guetos nas metrópoles, o naco de pessoas que se organizam em nós de uma corda linear, onde não se en-

de poucas nuvens, transmitindo o calor de final de primavera, através dos vidros fechados do mercedes que parecia novo. Bem próximo de onde me encontrava, iniciou as manobras. Chamou-me atenção o rosto suado e a pressa que, de resto, tem o alemão, no trânsito ou alhures, como se o estivesse esperando algo muito importante, nos limites da sua capaci-dade intelectual e laboral. Prossegui pela calçada em direção ao trabalho, a duas quadras do destino. Súbito, duas, três, quatro buzinadas en-surdecedoras, e onda de adrenalina me foi bombeada no cor-po, crisparam-se-me em sentido de espera todas as células, voltei em direção ao barulho... A senhora, com o volante em punho, transmitia todo o ódio, toda indignação, contra a situação que veio interpor aos seus propósitos pré-determi-nados. Comunicação hodierna, a buzina como forma de lin-guagem, de expressão de sentimentos: podia ser breve e não muito alta, o que era raro, em sinal de cumprimento, mas na maior parte das vezes, sinônimo de raiva e de protesto, des-carregava-se nela todo o ódio contido, expressava-se através dela uma animosidade covarde, telefônica, e não era muito raro que a manifestação fosse tão súbita e imprevisível, que a surpresa e a velocidade impedissem que o ser humano posto em cheque, vítima de tão violento ataque, sequer tivesse tem-po de se defender, ou de, ao menos, identificar o acusador. As formas virtuais, telepáticas, indiretas de comuni-cação, eu particularmente abominava, como as mensagens escritas. No laboratório de pesquisas, onde trabalhava, fun-cionários da mesma sala comunicavam-se (brigavam, repre-endiam-se, discutiam) através de recados, escritos, pregados em paredes ou lousas, enquato tomavam o desjejum juntos, calmamente, discutindo sobre futebol. Pois bem, assim me encontrei, ouvindo as buzinadas da senhora ruiva e obesa, por detrás dos vidros fechados da

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longa distância. Como se nesse início de noite, um veio se estendesse em rede entre todos os riachos e rios que conheci, formando uma rede viva, uma rede de vasos, do meu sangue percorrido. Veias do rio Cocó de Fortaleza. Artérias do riacho do Machado em Várzea Alegre. Partes de mim remontadas. Como um jogo. Não, eu sequer imaginava, que um dia meu corpo trans-poria o oceano, juntando e assemelhando águas, montando essa geografia. Fui andando, cavucando, da Serra Negra em diante, e acontecimentos, estonteantes, improváveis, foram me definindo estradas, como relâmpagos na noite escura e deles fui construindo vivências, tornando-me o que sou: mis-tura de águas, rios de cada cidade, somando-se, subtraindo-se e permutando-se. Como posso falar de mim, sem falar dos meus rios e riachos? Na bela manhã de primavera, sento para sonhar. Abril se aproxima rápido, trazendo, na sacola, mais um aniversário. Ah, o correio poderia tardar mais!! Como na infância, em que as horas se espreguiçam na divertida vida, e assim demoram a passar. Talvez também seja assim na velhice, como com a idosa senhora que mora sozinha no andar de cima, que im-possibilitada de vencer as escadas, escolheu a cozinha para passar os dias e a janela como o relógio da vida. Mas nessa manhã, quero escolher as doces lembran-ças como um travesseiro, onde vou me afundar e sonhar de novo, como se a vida que já foi pudesse novamente vir a ser. A vida que foi boa, posso contar pelas manhãs. As manhãs da infância com vovó na casa branca. Após as noites de chuva, as manhãs claras e límpidas de Várzea Alegre, com as ruas de pedras, que o sol ajudava a polir. As manhãs de domingo em Fortaleza, onde a praia do Futuro nos preenchia de sol e mar, alimentando a alma de energia e beleza. A ma-

xerga início e fim, onde se tem a ilusão de liberdade e indivi-dualidade. Um indivíduo, mas só até onde a vida alcança, ou engana(-se), perdido na paisagem adulterada e pré-fabricada. Entre Marília e Assis, nesse momento, deve ser assim também, carros avançando pela estrada Wahdir Farid, pas-sando a Serra dos Gaviões, depois os vales verdejantes até a outra serra, onde a pequena Echaporã se equilibra. Assis se encontra ao final de ondulante reta, como a coluna vertebral, por onde os cordões de carros são a medula, elétrica, ferida aberta, nervos que intercomunicam o mundo em um só. Cordões de fogo da Alemanha, estradas de Marília, va-les que conduzem a Assis, maquinaria que governa o mundo, respondam-me o que somente e a bem da verdade me angus-tia: onde encontrar o contentamento que tanto procuro? ______ O melro-d’água pousa sobre a pedra nas margens do riachinho Ursel, que nasce nas montanhas de Feldberg e desce coleando, passando por Oberursel. No percurso, é atravessado e ornamentado por pequenas pontes de madeira, até alcançar a prefeitura, onde, de tão cuidado, com margens floridas e leito de pedras lustrosas, parece criança saída do banho, em roupa de passeio. Não muito longe, em Frankfurt, o rio Meno corre len-to, moroso, tardo, como o berro de um boi ao final do dia... Apesar de largo e turvo, ninguém o escuta, mas continua se-guindo o curso, como quem reza ou aos poucos morre. Bem mais ao sul, nas tardes azuis de Freiburg, o Drei-sam desliza entre pedras polidas, seguindo o leito que não parece dele, pois que construído e maquiado, parecendo per-feito, pobre rio sem peixes. Por assim falar, há ainda quem pesque no Rio do Pei-xe, o rio que tanto cruzei entre Marília e Assis? Talvez, em se encostando o ouvido ao chão, possa-se ainda ouvi-lo na

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de saias brancas plissadas e blusas azul-marinho, e os filhos homens em roupa domingueira, mas de calças curtas, botas e meias até metade das canelas . Estamos felizes e paira certa ingenuidade no ar, razões porque se tornou muito antiga a foto, utópica, etérea, totalmente deslocada pelo tempo. Mi-rávamos um futuro que nos desmentiria. Sonhávamos uma vida que jamais existiria. Fomos naquele instante, o que ja-mais tornaríamos a ser. Aquela manhã, jamais se repetiria. Mas o instantâneo do retrato, ficou para sempre.

nhã em que cheguei a Marília, cidade que do alto do espigão ainda se enrolava na névoa, espreguiçando-se... Bela Marília, linda menina, formosa senhora. Por ruas silenciosas, abrindo as cortinas de tantas manhãs, eu e meu mais que amigo nos dirigíamos para a Faculdade de Medicina, Famema, ouvindo no rádio os lamentos apaixonados das músicas de raízes. O Hospital de Clínicas aparecia muitas vezes como se pousado em nuvens, da névoa que subia dos vales, enbran-quecendo a cidade em clima de sonho. Veneza surgiu na manhã clara, após cansativa noite de trem, como a súbita revelação do paraíso terreno, como se uma jovem pura, de inolvidável feição, postada frente a mim logo após a estação de trem, arrancasse a roupa, mostrando o corpo de deusa, e eu parasse estupefado, sem palavras, frente a tanta beleza. Na ilha de Capri sentado no alto de uma escarpa, mi-rando o azul profundo do mar, sentindo as fragâncias de li-mões nos pomares, senti pela primeira vez que minha mulher era aquela ilha, era o meu sonho do distante, do belo, do indefinido...A poesia de meus melhores dias. E para que as manhãs se fizessem, foram necessários os galos e os pássaros. No tempo da casa branca, os galos se esgoelavam festejando o dia e espalhando orvalho. Mas aqui, na Alemanha, têm sido os pássaros...Fui com Cacá para a es-cola e no caminho lhe lembrei de silenciar os outros barulhos do dia, para que ouvisse a algazarra dos pássaros. Quando levei Dré lhe falei baixinho de um passarinho que entre os galhos de uma árvore se escondia, chamando-o pelo nome. Meus dois filhos são dois pequenos seres que enfeitam e fa-zem todas as manhãs dos meu dias. E se apenas uma foto houvesse que recordasse ou re-sumisse todas as manhãs que tive, as minhas manhãs, uma existe em que estamos reunidos, nossa família, papai de cha-péu de feltro, mamãe em vestido estampado de seda, as irmãs

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Quando falo: calo

“neblina, névoalenta névoa a mover-se

lento brotar, lento nascercristal de água por sobre

as pedras

róseas faces, rubros lábios,

túrgidos seios

morno ventre,

morno leito, pri-mordial desejo

manhã primeira”

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Manhãs, manhãs, manhãs...Eu sempre as vejo da varanda das lembranças. A minha infância está impregnada de manhãs frescas

e cheias de claridade. Minha alma quando se isola de mim e se recolhe ao labirinto, faz com freqüência nas manhãs, após noites mal-dormidas. Pode ser o jeito como o sol nasce, entre nuvens, no contexto do céu. Ou a textura da brisa, o perfume que traz, a forma como me acaricia. Ou mesmo o canto do pássaro, ou a tristeza que se me enrosca como um gato, buscando con-forto...Vejo-me então transpondo o portão, como o de Alice, e reencontrando esboços de sensações que um dia tive. As manhãs me lembram o verde que nasce, após noite de chuvas e tempestades. As manhãs são as crianças desper-tas, a adolescente que se olha ao espelho, sacudindo os cabe-los e decifrando o eterno, são os rastros dos amores notur-nos no corpo redivivo, nos lençóis desarrumados, é a nudez do corpo feminino saindo do banho fresco e perfumado. Elas nascem diferentes quando são os galos que as acordam, elas são puras e angelicais quando banhadas pelo orvalho, ou quando nas invernadas brotam da terra fertiliza-da, da terra agradecida. Sentam-se na rede de sol a sol, serra a serra, balançan-do-se ao sabor do vento, tocando nuvens...convidando-nos a nada ser, a nada fazer... Fui envolvido pelas luminosas manhãs do sertão, colo-ridas de branco, azul e dourado, que preencheram minh’alma. Depois, fui abandonado pelas mesmas manhãs, quando o sol do meio-dia as afugentou. Chorei quando as busquei e não as encontrei nas tardes vastas, nos solitários crepúsculos, nas incontáveis noites que se sucederam como uma corrente de dores e de alegrias, cujos elos lembravam o relógio que não parava, a areia se derramando na ampulheta do tempo, as gotas se sucedendo na torneira aberta da vida.

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século, no ano da grande seca de 1932, uma pena, chumaço, sussurro, um gemido calado. Mesmo o sol inclemente não calou o choro na teimosia de nascer e de viver?Morou muito tempo em Várzea Alegre, pequena e ingênua cidade, afastada do pesado hálito do mundo. Por isso sobre-viveu? Não, vieram o casamento, filhos e, depois, aconteci-mentos e imprevistos da fortuna, que a afastaram da vida calma, e fizeram-na mudar-se para a capital, Fortaleza, pu-xando atrás de si uma corda de 8 meninos, marido, mãe, e vó branca. Daí o bafo quente do mundo, egoísta e desumano, a pegou de cheio. Cambaleou. Caiu? Caminha em casa e não se nota. Reza, o tempo todo reza, reza para si, reza para todos, encolhidinha na cama, de-bulhando o rosário, recontando a vida, os anos, enfrentando os medos, repassando-os, repassando-se, para Deus e para os seus que já se foram. É uma criatura do amor, o seu sujeito é o ser humano, a sua referência, o seu motivo. Indistintamen-te e de imediato considera e tem respeito ao outro. Subjuga e é subjugada pelas regras da convivência, do relacionamento interpessoal. Sofre por bem amar, por enxergar o próximo. E nesse jeito extremamente humano só se lembra de gente, só referencia gente, só chora por causa de gente. Por assim ser, também tem inveja, tem medo, enfim: também é pequena, humanamente pequena, um pequeno graveto, que uma mão desavisada pode quebrar. Mas na delicadeza, na humanida-de, concentra o mistério, todo colorido e toda fortaleza do mundo, por isso sobreviveu e sobrevive, incansável, como as gotas de vida que perpetuam a espécie. Assim, tem seu lugar onde estiver, criatura universal, que logo encanta,.mãe para quem já não mais tem ou está distante, avó para quem dela se aproxime, carinhosa, poliglo-ta em seu silêncio de rugas, que já não mais precisa demons-trar nada, pois sua presença por si basta. Fala não ter ódio, sequer raiva. A vida seguiu o curso,

Significou que fui, uma vez na vida, de forma plena? Significou que a partir de então foi em suma a caminhada de perdas? A vida seria assim, alçada do céu e rolando pela encosta de encontro ao nada absoluto, ao último minuto em que já estaríamos despidos de tudo? Desmanchados? Nus? Encontrei o meu pai na laje fria do necrotério, den-tro da roupa lisa, um tanto frouxa, parecia ainda menor do que era, naquele recinto apertado e sem vida. Hoje, acordei pensando nele, ou talvez tenha sido a manhã de luz que o trouxe. Chegou pela estradinha branca, eu pude vê-lo desde que emergiu ao pé da ladeira de muitas árvores, e se aproxi-mou a trote no cavalo castanho. Trazia o chapéu de feltro na cabeça e vestia-se em terno branco, de brim. Como era bo-nito o meu pai! Sentamo-nos na varanda de sombra fresca e carinhoso vento e miramos as plantações em silêncio. Estava triste, como sempre, mas somente um tantinho assim, que não lhe apagava o brilho... Um carro passa súbito e me arranca dos devaneios. Sorrio agradecido para o vento e para a manhã que já se adianta. Outras virão e trarão de novo o meu pai. ______

Em algum lugar, na fronteira entre Paquistão, Afe-ganistão e Tajiquistão...Numa estrada serpenteando monta-nhas, bem no alto do mundo...Um lugar onde todas as do-res possam parecer pequenas, em que os problemas diários dissolvam-se na poeira, como pequenos hábitos, e onde a grandiosa solidão dos picos nevados alongando-se no céu, permita-nos meditar mais sobre a nossa verdadeira dimensão. Nesse lugar, não aqui. Nesse lugar quero fechar os olhos ao sol e dormir. ______ Ela, um graveto soprado ao mundo, nos meados do

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puro ciúme e despeito, sob o sol de meio dia no sítio Inharé, na cidade de Várzea Alegre, quando ela grávida do terceiro filho, levava comida para o pai na roça. José foi o mesmo que de incontrolável e excessivo amor, ou não sei que ferida d´alma, matou sua esposa num domingo fatídico, em Marília, e depois se matou... Eu os pude ver no pronto socorro, jo-gados em macas diferentes, mas por acaso virados um para o outro, e como que mirando-se, no vazio dos olhos e da exis-tência perdida. Impressionantes os meandros da vida, ines-crutáveis seus precipícios, a morte sombreando escandalosa-mente cada manisfestação vital. Maria se tornou uma lenda e virou santa para as pessoas da região. De longe se pode ver a capelinha branca encrostada na serra. - Carmen um dia existiu, pai? – Dré me pergunta com entonação triste. Carmen, José, o amor, a vida, a paixão desenfreada, o ciúme, o egoísmo, a fatalidade, a loucura, o instinto homici-da... - Sim, Dré, um dia Carmen existiu, viveu em Sevilha, na Espanha – Eu lhe respondo com convicção, sabendo que vida e arte são ao final um só corpo, mistura de ficção e re-alidade. Carmens e Josés vivem e morrem, a cada instante, dentro de cada um de nós. ______

Pode-se proteger uma família de classe média alta, morando em casa própria, em bairro abastado e tranqüilo, nos arredores de alguma cidade na Europa Central. Pode-se protegê-los e o estado os protege com extre-ma competência e inegável astúcia. Passear por esses bairros é um exercício de grato des-lumbramento: ruas limpas, pintadas em cores harmoniosas, jardins graciosos e meticulosamente cuidados, casas bonitas, enfeitadas e elegantes, como se recém-saídas do banho, car-

cuidou dos filhos, cuidou com deslevo da mãe com Alzhei-mer e do marido, totalmente dependentes, nos últimos anos de vida. Cuida de netos, reza horas a fio cuidando dos ou-tros... Hoje passeia visitando os filhos, veste-se elegante, tem os trocados da aposentadoria que a mão não acostumada tei-ma em retê-los, anda firme e com aprumo, relembra a vida sem arrependimentos, rebusca planos para o futuro, e cuida da saúde como quem não para, a sofrer, com a realidade da morte. Descemos as escadas de madrugada para irmos para o aeroporto. Embaixo, enquanto a esperava, pensei assim: de tão leve, passará pelos sensores de lâmpadas do prédio sem que seja notada. E as luzes não se acenderam. E ninguém acordou. O avião a enguliu e saltou para bem longe. Não chorei, estava contente por tê-la e por ainda ter podido me reconfor-tar em sua luz. Dré, meu filho, de manhã cedo, quando acor-dou, chorou ao saber que tinha partido, mas quando calou, estava sereno – a avó passou a viver nele, e ele nem percebeu. ______

Ontem foi o primeiro dia de abril de 2007. Ficamos em casa, enquanto lá fora brilhou o sol e os pássaros canta-ram até altas horas. Dentro de casa também ouvimos música, Carmen de Bizet. Bela ópera, belas árias, como bela é a vida com os diversos e misteriosos desígnios. As crianças assisti-ram pesarosas e excitadas o desfecho fatal da ópera. Eu me desloquei do enlevo dado pela beleza que a obra inspira, até à beira do desconforto e da tristeza, aquele negro precipício que às vezes se enxerga quando se debruça na própria alma, ou na arte, ou na beleza superlativa. Carmen e José morrem a todo instante no vasto mun-do. Carmen foi a mesma Maria, que um dia Bil matou, por

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Olhando o passado, vejo que os anos se acotovelaram, em corrida cega e muitas vezes circular. Adicionaram-se vi-vências é claro, grandes e miúdas, algumas muito valorizadas, outras arquivadas e nem sequer cadastradas, mas muitas que me ajudaram a melhor me posicionar no mundo. Vejo também que, no caminho para tornar-me médi-co, perdi o homem que era, e o homem a quem seria destina-do servir. Fui de alguma forma vítima de fábrica equivocada de lunáticos, destinados a cuidar dos outros, quando, na ver-dade, só se afastavam mais e mais dos homens... Ao cabo de muitos anos, percebi que só enxergava, na verdade, a mim mesmo, e que assim seria impossível entender verdadeira-mente o outro. Em todo o tempo, menosprezei o todo maravilhoso e complexo que compõe o ser humano, fiando-me somente na doença como causadora única dos males. As pessoas, eu nunca as busquei nos olhos, eu sempre e apenas as senti na respiração, nas pulsações, ou no puncionar das veias. Eu as tirei dos lares, das comunidades e as internei em hospitais, sujos e hostis, para tratar de minha própria insegurança e ignorância. Se estavam melhorando ou não com a terapêuti-ca, busquei resposta nos monitores, nas máquinas e exames complementares. O deslizar elegante do bisturi, o aprofundar-se no cor-po através dos tecidos, a anastomose perfeita sempre foram meus parâmetros de cura, não importando o conceito de cura ou de impacto na qualidade de vida do paciente. Signifiquei para muitos a esperança, a salvação, a tá-bua última da vida, e me comportei como tal, quando, na verdade, muitas vezes a cura estava em cada um deles. Quando fui chamado para ajudar os que afogados em dores e desespero, já no limiar do final da vida, procuravam as mãos sábias de um médico, que os conduzisse com con-

ros novos e silenciosos... Sente-se como se esses espaços fossem imunes ao so-frimento, à tristeza, e até a pensamentos ruins. Como se a civilização houvesse chegado a um padrão de mais elevado requinte e o comportamento humano houvesse se assenho-rado de tanta sabedoria, que tudo o que houvesse de mais pérfido na natureza do homem, como preconceito, racismo, inveja, perversão sexual...em outro distante mundo existisse e lá não tivesse acesso. Esse seria o retrato perfeito, o projeto vitorioso da modernidade. O empresário volta de um dia de trabalho e se refestela nesse mundo de maravilhosa fantasia. A criança que só tem sentimentos bons corre ao seu encontro. A esposa lhe pede opinião sobre uma campanha beneficiente para crianças famintas de algum lugar miserável do globo. O político, ao lado do empresário, trabalha para per-mitir a existência desse mundo ótimo. Em seus escritórios, distantes de casa, articulam guerras, pressionam países en-dividados, trapaceiam-nos no comércio, empobrecem-nos mais, distroem-nos, inclusive as florestas. E em casa, no bairro distante e confortável, vem a es-posa arrecardando roupas para campanhas humanitárias. A senhora que esbarro na rua e que me identifico como brasileiro, comove-se até o mais profundo do seu ser ao falar sobre imagens de violência, de pobreza, e de destrui-ção da natureza, que às vezes vê estampadas em algum jornal ou na TV. São as bolhas multicoloridas desse mundo de ilusão: senhoras, senhores, sentados em cada uma delas, reconfor-tados, tomando licor, fumando charutos, discutindo ameni-dades, sorrindo, enquanto as bolhas revoam ao som de uma música de Mozart...

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enfrentando problemas, que os fazia gigantescos. Mas por outro lado também sente algum aprumo, pelo tanto que ca-minhou com os próprios pés e, ainda, uma certa mansidão, uma compreensão maior, por ter vivido no mundo simples, de homens simples, de valores simples, em contato com a natureza pobre em recursos, mas de onde se tirava o sustento e a alegria das pequenas coisas. Os meus pais nos passaram a educação sábia do exemplo, da conduta honesta, do agir em consonância direta com as palavras. Foi tudo, enfim, como houvera de ter sido, na época, nas circunstãncias, no que al-cançou o braço e a fortuna. Sem recomeços e sem remendos.

forto e segurança ao desconhecido, fugi apavorado porque nada sabia sobre a morte. Encontrei-me amiúde cercado por conceitos que eu mesmo, mestres, artigos e congressos apontavam como os melhores, quando na realidade careciam de provas e tempos depois se revelaram falsos... Mergulhei nos segredos do corpo físico, em viagem por entre células e moléculas, na busca da verdade, até que percebi que poderia se tornar a viagem sem fim, sem volta, com risco de perder a própria noção do todo e da individu-alidade: todas as pessoas assemelhadas nas mesmas reações físico-químicas, o lodo da mesmice, o pântano onde todas as cores se afogavam. Na verdade, uma viagem para dentro do meu próprio orgulho e egoísmo, enevoando o mundo em volta, tornando-nos como loucos conversando com o pró-prio espelho. Enfim, por nunca ter procurado verdadeiramente as pessoas, em suas crenças, conceitos de doença, felicidade e fortuna, deixo aqui o meu depoimento e a minha mea culpa. E assim sucederam os anos nesse mundo diverso: es-cola, trabalho, profissão, casamento, filhos, vitórias, derrotas, dificuldades, mas tendo sempre os sonhos costurando a se-quência dos dias. Efetivamente, moldou o meu eu, a infância na casa branca e a adolescência na casa amarela, em Fortaleza, com as lapidadas finais. Sei que parte do que sou recebeu a educação que me passaram os irmãos, primos ou amigos. Que parte dos pre-ceitos éticos, morais, os recebi de forma indireta, por mode-lo, por exemplos. Que segredos de sexo, dúvidas comporta-mentais, não me foi permitido o ouvido seguro dos pais. De forma que aquela mesma criança que fala, aquela tímida, cabisbaixa, tem nos olhos as sombras da solidão, da insegu-rança, das tantas vezes em que precisou se recolher, sozinho,

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A espiral e o princípio

“mar azul, céua tartaruga passeia na tardefechando a cortina do diao papagaio do alto observapássaros se esgoelamdevagar anoitece”

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Ieda me levou até a estação rodoviária de Marília, as crianças assis-tiam um filme na televisão, não devem ter notado a saída. Havia chovido durante o dia e para me proteger do vento e do frio me

refugiei na sala de espera da estação. Sentado, com fones de ouvido, parecia ouvir música, mas na verdade estava às voltas comigo mesmo. Pulava de lembranças a pensamentos e, cheio de expectativas, prepa-rava-me para uma viagem estranha, de volta ao presente onde deixara o passado. Era como se houvesse feito uma pausa, encontrado a árvore frondosa na estrada, com boa sombra, e decidido então fosse a hora, não do abandono, mas do descanso. Não o descanso da vida, mas o da rotina, o das participações. Há muito tempo me distanciara de mim mesmo, distanciamento fortuito e progressivo, de forma que, subita-mente, em dia tranquilo e ameno, me procurara, e não mais me encon-trara. Meu rosto tornara-se máscara de tintas superpostas. Precisava reencontrar o rosto original. Desta forma, refazendo a estrada de volta, nas lembranças, no silêncio da sombra, eu me obriguei a buscar no passado os fragmentos do que fui. A viagem de retorno, desfazendo as camadas, reabrindo as cortinas. Meia-noite, o ônibus parou na estação. Despachei a mala e me acomodei na poltrona. Próxima parada: São Paulo, depois Fortaleza, por fim Várzea Alegre. Já me preparando para dormir, sob a hipnose do ruído continuado do motor, lembrei-me da conversa com o psica-nalista, há alguns anos... -“Quanto tempo na Alemanha?”, perguntou-me; -“Ficaremos mais dois anos” -“A família completa?” -“Sim” -“E como você vê essa viagem?” -“Profissionalmente, acreditamos que será muito bom, mas será melhor ainda para a família, por vários motivos, até para a nossa intimidade, vamos estar mais juntos, necessariamente. Tenho andado meio longe de casa...” -“Entendo, mas precisa ir tão longe para reencontrar a famí-

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rido, ficando assim viúva e virgem. Conta-se que, depois, essa mulher deu-se ao trabalho de domesticar cobras venenosas, até que uma delas a picou, e ela morreu. Remexendo o passado, remoendo, continuei viagem. As per-guntas engarrafavam-se no juízo então bastante preguiçoso, sonolento, guardando-as para serem respondidas depois, pelo exercício do tempo, cada em sequência, conforme fossem os dias se esticando. Lembrei-me da condição de médico, senti alívio por ter esses dias de folga. Com os olhos perdidos na placidez das nuvens, pensava sobre essa profissão que agora me incomodava. Não fora sempre as-sim, antes eu cria que, em meio à corrida para a formatura, especializa-ção, encaixe no mercado de trabalho, carreira docente, pós-graduações, etc., chegaria o dia em que, alcançada a maturidade profissional, pu-desse enfim dizer confiante: sou médico! Pois bem, após vinte e cinco anos de formado, concluí que ainda não podia fazer essa afirmação, mas ao contrário, pareceu-me até que estava mais longe dela. - O que aconteceu? Por onde andei? O que fiz da vida? - Olhando o passado, vejo os anos em movimento cego e mui-tas vezes circular. Perguntas, frases, que voltavam sempre, incomodando. “Es-tou fazendo o caminho de volta”- pensei – “desde o inverno de 2007, quando as formulei na sala do apartamento em Oberursel, até Várzea Alegre de inesquecíveis invernos na infância. Quem sabe acalmo um pouco as águas revoltas e barrentas?”. O avião sobrevoava agora a região onde ela teoricamente se encontrava, via-se no monitor do computador: final da cauda de Per-nambuco, Piauí á esquerda, e sul do Ceará. Pela janela, a oitocentos qui-lometros por hora e altitude de dez mil metros, cruzando um céu sem nuvens, procurava em vão algum sinal da cidade na paisagem distante. À medida que aproximou-se o Nordeste, elas tornaram-se esparsas, mais distantes umas das outras, interligadas por estradas de terra, múlti-plos riscos vermelho-claros no cinza-escuro da caatinga. Avançávamos com velocidade, pequenas cidades se sucediam, iguais, e nada havia que lembrasse as Serras Negra, Dos Cavalos, Do Gravié, o riacho Do

lia?”- perguntou o psicanalista após uma pausa, À sua pergunta, sorri de imediato, era claro que não, ele tinha razão, na verdade a viagem teria que ser outra: para o auto-conheci-mento que não tinha, sob o risco de me perder e à família de roldão. Cruzando São Paulo, trajeto rodoviária – aeroporto Cumbica, sequer me dei conta, estava tão absorto, afundado no próprio cansaço, fruto de excesso de trabalho e de estresse acumulado, que nem mesmo o imponderável daquela cidade improvável conseguiu me despertar a curiosidade e me retirar do lodo da inércia. Faziam cerca de trinta anos que não retornava à terra natal. A falta dela, a ausência, doía-me continuada, indefinida, distante, imprecisa: poderia até já ter deixado de existir. E se continuou, de fato mudou, ou lá está como os répteis, que desde tempos imemoriais louvam o sol sobre pedras? No avião tentei iniciar um diálogo com a jovem que sentou na poltrona ao lado. A bem da verdade não era afeito a conversas ligeiras e descartáveis, mas estava incomodado, talvez por ansiedade de logo chegar, de forma que não conseguia ler, nem dormir, sequer divagar sobre qualquer tema. Aventurei-me, pois, após alguma hesitação: - “Você é cearense?”, perguntei virando-me para ela. - “Sou”, respondeu, surpreendida, pelo súbito assédio. -“Morando em São Paulo, vai a Fortaleza a passeio?”, continuei um tanto desconcertado. - “Sim”, ponto final, sem reticências, nada que aparentasse que-rer continuar o diálogo. Virei-me para a pequena janela da aeronave, que nesse momen-to flutuava por sobre o tapete de nuvens brancas, borrifado, aqui e acolá, por manchas cinza e verde escuras, sinalizando vales, montanhas, rios, mundo que de cima parecia estático, inerte, abandonado. - “Vou ao encontro de quê?” Uma antepassada de nome Ana casou-se, em 1791, com um parente, que não compareceu ao casamento por achar-se doente, sen-do representado por um procurador. Pois bem, Ana viajou logo após o casamento para onde estava o marido, que nesse ínterim havia mor-

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de Crato... Depois, já no meio da sala, virei-me para a parece lateral, onde, contrastando com a penumbra, um cartaz colorido anunciava a corrida de touros em Madri, destacando-se o garboso e elegante toureiro de Sevilha. Na platéia que o aplaudia, pude imaginar a sombra do tio Júlio, que passou seus últimos anos de vida, sozinho, naquela casa, remo-endo as lembranças da Espanha, onde vivera e trouxera para sempre consigo, o país do seu coração. De resto, a sala vazia, a distância, as lembranças... “- Devo prosseguir casa adentro?”, pensei comigo mesmo. Prossegui devagar, silencioso, em direção ao corredor. “- Estaria Vó branca revirando um dos seus baús?”, continuei com cuidado. “- Na mesa da cozinha encontrarei Tio Júlio montando um de seus belos elefantes de contas coloridas, pedrinha por pedrinha, minu-ciosamente, esnobando o tempo?” “- Tio, como está com a ferida na perna, esse câncer que não lhe dá tréguas? Sentindo muitas dores? Por quê buscou a solidão na velhice, tio, ainda assim muito doente? De toda uma vida passada entre o Rio de Janeiro e a Espanha, por quê agora nessa casa grande, nesse campo ermo, entre pavões, buganvílias e as lembranças?” - “Não”, recuei, “Não prosseguirei, temo perturbar esse equilí-brio, esse silêncio de vozes e de passado”, recuei definitivamente, “Vol-tarei depois, mais forte”, decidi emocionado, com as lágrimas ofuscan-do a razão. Quando dei as costas e fui saindo, ainda ouvi o ranger de redes na sala de dentro, no escuro repousante do meio dia, e uma voz que dizia: “- Se acorda vovó. Não consigo mais dormir”, era a voz da criança que um dia fui, quando passava dias a fio nessa casa, eu e a vó, acordando do sono do meio-dia, quando nos deitávamos, ela me con-tava histórias e depois dormíamos. Prendi a respiração e apressei os passos, temi quebrar o en-canto que o silêncio e o calor do sertão, com tanto esmero conservou.

Machado, a lagoa Dos Patos...Era o onipresente sertão, grande e imu-tável. Uma autoestrada cortava a paisagem até se perder de vista, direção sul--norte, seria a Do Algodão, aquela mesma que há quarenta anos nos levou de mudança para Fortaleza? Sorri, ao lembrar da velha Kombi, pneus estourados, na estrada, enquanto descíamos ao asfalto quente e deserto. Aquela viagem, a mesma viagem, a que nunca terminou na verdade. Desde então, mudanças maiores, menores, definitivas, mas as mesmas expectativas e angústias.

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Voltamos ao carro, e descemos a ladeira ao encontro da casa branca. A ladeira estava desmatada, a cruz fincada em uma de suas margens não mais existia, e a estrada não era mais branca. Chegamos. -Cadê a imensidão das terras até a serra, do algodoal que pare-cia enorme, da mata fechada de altas árvores? -Cadê o curral, o gado, o pé de cajarana que ficava logo ao seu lado? -Cadê a casa branca, imensa, de grandes espaços, o calçadão alto, amplo, onde me deitava no colo da vó branca? “- Cadê aquele mundo fantástico, misterioso, que eu filtrava com meus olhos na infância?” “- Cadê o passado, cadê aquela criança?” “- Dormia agora no silêncio da casa, ao meio dia, em sua rede, ao lado da Vó?” Silêncio! Parei no limiar da porta. Prendi a respiração, dei mais um passo, entrei na sala principal, de imediato recebi os cumprimentos da e do Vô José Bitu, que da pare-de, ao centro, me olhavam com gravidade, imobilizados no gesto que o pintor os captou. Ao lado, Tio Moacir me observava do alto de sua juventude, quando morreu vítima de um acidente de carro, na estrada

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Grangeiro...Papai, quando jovem, tinha um comércio na Extrema aos sábados, posso imaginar os rolos de tecidos dispostos nas prateleiras: chita, brim, gabardine...a escolha, o tecido se desenrolando como onda no balcão da loja, as mãos hábeis do vendedor segurando o rolo, a tre-na na medição, a tesoura direcionando na quantidade, e o rasgo hábil, certeiro, silvando no ar, encomenda pronta para uma máquina de cos-tura, de onde sairia um terno, ou um vestido de muitas flores, colorido. Para alcançar a Extrema, papai atravessava aquela serra a cavalo. Vicente ainda me indicou ao longe os sítios: Mocotós, Ara-puá, e Canidezinho. Mocotós eram as terras de papai André e mamãe Dondon, bisavós paternos. Tinham um engenho de rapadura, os fi-lhos nasceram, casaram-se, construíram casas em volta da casa-grande, os netos vieram, a família cresceu, sob a ordem e comando de mamãe Dondon, mulher sábia, de muita fibra, o sítio ficou pequeno, Várzea--Alegre ficou pequena, os netos, bisnetos, de Fortaleza ganharam o mar, de Recife alçaram vôos, de forma que os dois, os bisavós daquele sítio esquecido, alcançaram o mundo com seus gens, ajudaram a res-pingar de vida o planeta, de pessoas honestas, unidas e orgulhosas de suas raízes. Por fim, apurei os olhos para enxergar as Ingazeiras, lugar onde minha vó branca nasceu, Isabel Bastos de Oliveira, filha de Manoel Bastos de Oliveira. Pelo sobrenome e por alguns hábitos locais, não seriam descendentes de cristãos-novos, judeus fugidos do ódio da In-quisição em Portugal e Espanha ? Como esses lugares, na verdade pequenas vilas e sítios, me so-avam importantes, distantes e estranhos, quando criança !

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Acordei e o dia já havia se imposto totalmente, com cores bem claras e ainda umas poucas gotas de chuva respingando em algumas copas de árvores. Vicente chamou meu irmão da estrada. No curral, um punhado de vacas mestiças, cerca de 10 apenas, com os bezerros apartados enquanto eram ordenhadas. Devido a chuva essa atividade

Temi romper de uma vez por todas o fio, que desde que parti, desde que da infância me despedi, me manteve tenazmente vivo. -----------------------------

Na casa de minha prima Ieda, na de vó Branca, na bodega do Buzuga, o canto dos capotes, dia e noite, relógio do tempo, pêndulo balançando indiferente ao sol, à chuva, à minha presença. Decidimos ir para a serra do Gravié nesse terceiro dia. Chama-mos Vicente, um sertanejo silencioso, disposto, sábio, como uma velha árvore, que já existia antes do meu nascimento e perdurava altaneira e cheia de sabedoria. Vicente trabalhou com meu avô José Bitu, depois com a vó branca, quando o vô morreu, e agora tem suas próprias ter-ras, seu próprio gado. Ele nunca saiu do Inharé, ficou, sempre ficou, forte e profunda raiz, naquele solo que absorveu parte do nosso passa-do. Na invernada levava, ao lado do avô José Bitu e outros vaquei-ros, o gado até os Inhamuns, para sua propriedade Várzea do Forno, no município de Arneiroz, divisa com Auiaba. Lá, o gado ficava em ter-ras soltas, sem divisas, de janeiro até por volta de agosto. Para se juntar novamente a boiada, a demora era às vezes de até 8 dias, contando-se com vaqueiros bons, como Seu Manelim e Antônio Catapora. Eram vaqueiros típicos, encourados, destemidos e duros, como os espinhos das moitas de mofumbo. Eles formavam uma classe social à parte, des-de que a cada 4 cabritos, 4 borregos ou 4 bezerros que nascessem, recebiam 1 de cada, de pagamento. O leite das vacas pertenciam a eles durante todo o ano, com exceção de 1 mês, que ia para o patrão. E assim eles acumulavam posses e propriedades. No topo da serra divisei Várzea-Alegre, seus distritos e tudo o que antes se havia de mim escondido, o para depois da serra, o além do horizonte, o desconhecido. De lá desnudei do manto de mistério as outras serras: Negra, Dos Cavalos, Boriz...De lá, do outro lado da serra, as outras terras: Riacho do Meio, Unha-de-gato, Charneca. Per-guntei a Vicente quais cidades existiam para depois das serras Negra e Dos Cavalos, guardei esse seqüência: Extrema, Carrapateira, Junco, e

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beira da estrada”, despedia-me enquanto o carro subia a ladeira rumo a Fortaleza. Estava no carro o homem, ficava lá o menino, isso me reconfortava, eu não o havia perdido. “Chagas abertas, coração ferido, Sangue derramado de Nosso Senhor Jesus Cristo Ficai entre nós e o perigo” Minha mãe, sua irmã e filho, meu primo, rezavam em voz alta, enquanto cortávamos a cidade deixando para trás a lagoa e a igreja de São Raimundo. Já na autovia passaram a rezar os terços. Jesus morreu às 3 horas da tarde, e assim sua morte ainda era lembrada. A reza, de repetitiva, tornou-se autômata, como o canto dos capotes que ficaram para trás. Paus d’Arco floridos alternavam-se na paisagem. Em São Ca-etâneo mantinha-se firme uma capelinha branca, construída em 1872. Para o Poço do Mato viera uma vez quando criança, com a comitiva do padre, numa festa religiosa. Como tudo me parecia enorme !Próxima cidade: Iguatu. Refazendo a antiga rota, de lá em diante, o caminho não tinha volta. O passado ficara para trás, tudo certo, nada a refazer, em cada momento fui honesto ao escolher, de acordo com o que acreditava e percebia, de acordo com o contexto e com a educação que tive, de resto seguia a vida de muitos caminhos e de muitas serras, em Marília minha família me esperava. O menino que fui me acena, de longe, e sorri.

Fim...

ficou um pouco atrasada. Na estrada, as salsas floridas enfeitavam as margens. Do oitão, na lateral da casa, sentia os reflexo dos raios do sol nas paredes brancas. Antes, meu avô comandava daqui os negócios. Era arredio, silencioso...Teríamos alguma semelhança também nos sentimentos, na forma de encarar a vida e a morte? Mamãe veio me fazer companhia, fica muito contente quando venho lhe visitar. Papai também ficaria.. Caso estives-se eu o esperaria ao final da tarde, surgindo da ladeira, em seu cavalo. Papai estava presente em tudo, até mesmo no vento que me afagava. Ele não morreu, mas se fragmentou no ar, virou pólen, senti-mento, lembrança, o perfume da laranjeira, o cheiro do cavalo, do ar-reio, da sela, papai apeando e esse retrato pendurado na parede branca da alma. ------------------------

Cinco da manhã, preparos para a partida. Estava dormindo na rede, na sala de visitas da casa branca. Abri a velha porta de trancas e, do calçadão, desci ao terreiro ainda meio molhado de orvallho. Antiga-mente dava para o curral do velho touro Bisão, que já não mais existia. Era como se ainda estivesse lá, branco, lento, paciente, rebolando sua corcova, quando andava, mas afobado e desajeitado quando cubria a vaca. Procurei a manga, que já se impacientava para acordar, enquanto o céu se demorava com o manto de estrelas. Lá estavam elas reen-contradas: Cruzeiro do Sul, Estrela d’Alva, Três Marias, estrelas que as luzes da cidade esconderam. “- Deus meu, eu nunca saí daqui”, pensei, enquanto do pé de algaroba do oitão da casa pássaros desandaram a cantar. Aos poucos a manhã tingia de luz a madrugada tarda e já dava para vislumbrar o velho pé de Coité que mal cobria o cacimbão de-solado. Faltava o vai-e-vem de mulheres com latas d’água na cabeça transpondo o passadiço, a algazarra das crianças tomando banho de cuia... Mas a manhã era a mesma. Hora da partida. “Adeus algarobas floridas, permaneça firme velho genipapo da

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Mosaico de cores

Esses são instantâneos da vida dos meus filhos, Anna Ca-rolina (Cacá) e André (Dré), momentos densos, precio-sos, intensos, que não pretendem quantificar o amor que

tenho, tão só permitir-lhe janela para outros vôos. O vento tem levado as folhas mas essas ficaram enrosca-das na lembrança. Eu as tenho genuínas, inteiras... Essa segunda parte do livro vem completá-lo, permeia cada página que escrevi, como um mosaico, que nada seria sem estas pequenas partes coloridas. Soltos no livro, ficariam sem a luz necessária, assim os convido, caros leitores, a entrarem neste espaço da memória, mas com cuidado, pé ante pé, sem que eles percebam... Meus pequenos, meus filhos, quantos bons momentos para se sentir saudade. Saudades gostosas, que certamente antecedem outras que virão... Aqui um pouquinho, um testemunho do muito amor. José Bitu Moreno

Time present and time pastAre both perhaps present in time future,And time future contained in time past.

(Burnt Norton, T.S.Eliot)

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Mas o Antônio já havia crescido e ficado grandeGuardou os coelhinhos e a Tonica

E não deixou, papaiNão deixou que o Jäger os matasse !!!

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Dré

Tossiu a noite inteiraO corpo miudinho

Que sua mãe abraçouMas nada, nada houve

Que parasse a tosse ______

Cacá

Eu soube: caiu o seu dentinhoEnquanto comia uma maçã

Correu para mostrar à professoraLogo vieram os amiguinhos

Enquanto você sorria orgulhosa

Agora vai virar ouro, a mãe disse.Agora foi embora aquele mais um

Que o papai tanto admirouE quanto tempo já passou.

Filhinha, mais devagarMais devagar com o andor

Já estou a mais do meio da estradaE vem você atrás correndo rápida

Correndo tão rápida

Fragmentos infantis

Dré (1 ano e 6 meses)

Reconhece o barulho da chave na portaReconhece os passos, pressente o cheiro

Ouve até a fala ainda não formuladaE seu grito ecoa por todo o apartamento

Alegre, urgente, estridenteSúbito, desvencilhando-se do grito,Surge a criatura ágil, roliça, miúda

Esbaforida, no próprio limite – só sorrisosE seus braços me envolvem – essa árvore já encurvada

E seus beijos são pássaros, pequenos, em bandoPousando nos já encrostados galhos

Mas então se desgarraE correndo é agora impaciente pôneiQue dispara pelo espaço imaginário

Sem cercados, para bem longeDo meu alcance

______

Cacá

Papai, eu sou mesmo uma sonhadora...........................................

Sonhei que do Antonio e da TonicaNasceram muitos coelhinhos

Lindos, papai, branquinhos, como a Tonica........................................................

Depois veio um Jäger, um caçador

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Filhinha, sabe o que sinto agora?Um misto de alegria e de dor

______

Cacá

Você escreveu: “A rosa brilha e o cravo é amoroso”

Você pintou mamãe e papai

Cravo e rosaPássaro e pétalaAmor, eterno

Doce serTransfiguração de nosso ser

Nós lhe amamos tantoTanto

______ Cacá,

Como você cresceu e está linda!(Faz uma cara de desagrado,A boca prenuncia um choro,

Responde:)“Eu não quero crescer

Daí você fica velho e morreE eu não quero que você morra”

______

Dré

Sorrindo, acordouEra um anjinho

Esfregou os olhos

Borrifou de magia os lençóisE a manhã que a um canto se sentou

Dourou-se inteirinha com o pó.

Ainda o sono no corpo enroscadoTeimou em se ir

Em abandonar seu próprio calorCobriu em silêncio o aveludado corpinho

Que ainda sorrindo voltou a dormir

Dré

A nuvem encheu a barriga de água,Daí foi fazer xixi,

Daí, choveu

Dré

Mãe, meu coração doeu,Caiu no chão, e quebrou...

(Dré aos 2 anos e 11 meses, resistindo contra o sono, chorando, ressentido)

______

Cacá

Ah, esse outono que quer chegar antesMinha filha me detém

Com um gesto interpela a sombra que me ameaça“Papai, você não está feliz ?“Eu estou feliz”, continua

E procura meus olhos e sorri e faz gracinhas

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Sem sequer ter importunado o silêncioQue de novo a envolve

Com manto de muitas cores

Cacá

Enquanto dirijo ouço a pergunta do banco traseiro“Papai, quando o senhor ficar velho vai morrer?”

Silêncio“Sim, mas papai vai ficar do céu olhando você”

Choro“Mas papai, eu não quero que o você morra”

“Sempre vamos ficar juntos, filhacomo o meu retrato que você carrega consigo”

Novo silêncio“Papai, quando eu ficar grande vou casar?”

“Todos se casam um dia e têm filhos e netos”De novo o choro

“Mas papai eu posso também ficar adulta e não casar?”“Sim filha, também pode, não é necessário casar”.

Tocava no rádio uma músicaVirei mais uma esquina e já se aproximava a escola

De súbito entendi: “Mas não precisa temer, nada vai nos separar

Vamos estar sempre juntosPapai e você, você e papai

Como duas fotografias coladas”

______

Dré

Ele sorri mirando o nada e agita as mãos como se aplaudisse:

Espera enfim um sorriso “Papai, fica feliz comigo”

Minha filha, como fazer, como façoCom a sombra que onipresente se me interpõe?

Um novo riso, ela tenta me trazer de voltaOs grandes olhos atentos, ameaçando choro

“Sim filha, o papai está feliz, muito feliz”E mergulho na cândida alegria

Esquecido

Ouvi os passos miúdos aproximando-seOlhos relutando em abrir-se

“Papai, eu sou o gatinho branco e tenho uma longa cauda”“Que bonito filha, que belo sonho”

“Não pai, não foi sonho, foi o Peter Pan, eu sou o gatinho bran-co”

E pôs-se a miar lambendo o bracinho erguido com a mão fletidaJá estava então no meu colo e a beijei enlevado

“Vamos então gatinho branco, hora de se trocar, hora da escola”Já então desvencilhada miava de quatro pela sala

“Mas, pai, gatinhos não usam roupas” Olhava-me incrédula enquanto eu não a alcançavaFoi então que a vi: o mais lindo e gracioso gatinho

E por uma semana foi assim: um bravo gatinho brancoEnfeitando nossa vida de ternura e encanto

Cacá

Está a um canto agora parecendo silenciosaAproximo e escuto o seu silêncio

A um passo de entrar no seu mundo“Papai vem, você é o príncipe, bom dia príncipe”

Conduz-me no diálogo passando-me as falasComo cheguei me vou

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a platéia apaixonada concentra-se ainda mais e expõe ruidosa o seu aplauso

______

Cacá

Filha, o que houve, o que você olha no céu o azul, mamãe, é tão azul o céu do Brasil

e o sol a um canto, as nuvens brancascomo nas pinturas que eu fazia

Cacá

Não mamãe, não estou tristenão preciso voltar para lá

minhas amigas da Alemanhasão minhas amigas da Alemanha

elas estão lá, ficaram láaqui vou ter outras amigasque vão ser novas amigas minhas amigas brasileiras

(mais uma que a mãe aprendeu)

______

Dré

“Papai, a gente morre para viver e vive para morrer”“Como assim filho?”

“Simples, quando estamos no céu, morremos para viver na terraE quando estamos aqui, vivendo, morremos para voltar ao céu”Assim dito, encerra-se na sapiência de 8 anos de vida, fecha mais

uma página do livro de enigmas e se dá por satisfeito.

um palhacinho faz estripolias no ardá cambalhotas, canta, chorae tropeça nos sapatos de pau

ele sorri encantadoo palhacinho o olha gozado

não percebem os dois anões que entramo trapezista, a bailarina, o tigre

nem a porta que se fechae me trancafia do outro lado

______

Cacá

Papai, você não viu, ontem à noite, antes de dormir ?estávamos deitados e papai lia histórias

você viu a borboleta?era grande, colorida e pousou perto de mim

assim, pertinho dos olhosbateu as antenas, uma de encontro à outra

soltou poeira fina e luminosaque me atingiu como neve os olhos e adormeci

você não viu, papai, não viu a borboleta ?

______

Cacá e Dré

Lá estão os dois entretidosela pôs a roupa de bailarina

e dança ao som de música infantilele a mira encantado e de todo concentrado

aos maiores arroubos da bailarina, às piruetasbalança encantado as perninhas e dá boas gargalhadas

a bailarina o encara agradecida e se esmera nos próximos passos

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Fui envolvido pelas luminosas manhãs do sertão, coloridas de branco, azul e dourado, que

preencheram minh’alma. Depois, fui abandonado pelas mesmas manhãs, quando o

sol do meio-dia as afugentou. Chorei quando as busquei e não as encontrei nas tardes vastas, nos solitários crepúsculos, nas incontáveis noites que se sucederam como uma corrente de. dores e de alegrias, cujos elos lembravam o relógio que não parava, a areia se derramando na ampulheta do

tempo, as gotas se sucedendo na torneira aberta da vida.

José Bitu nasceu em Várzea Alegre, sul do estado do Ceará, sertão, no dia vinte e seis de abril de 1959. Quarto de oito filhos de Edwardes Batista Moreno e Maria Bitu Moreno, herdou o nome do avô materno, falecido pouco antes do seu nascimento. Formou-se em medici-na pela Universidade Federal do Ceará (1983). É especialista em cirurgia geral, angiologia, cirurgia vascular e endo-vascular. Tem mestrado e doutorado pela Universidade Estadual Paulista e Universidade Johann Wolfgang Göethe, Frankfurt, Alemanha. Fez pós-douto-rado na Universidade Albert-Ludwig, Freiburg. Foi pesquisador na Johann Wolfgang Göethe Universität, de 2006 a 2008 e também, em 2007, na Heinrich Heine Universität, em Düsseldorf. Desde 1988, é docente na Faculdade de Medicina de Marília (Famema), onde desenvolve diversas atividades com no-tável dedicação e competência. Espe-cialista em Gestão em Saúde, atuou por cerca de 5 anos nesta área no Hospital Regional de Assis, São Paulo.Seu “tempo” são os filhos Anna, André e a esposa Ieda; e o “espaço”, o da convivência. Os passatempos preferi-dos são: música e leitura. E sempre uma caderneta à mão para o registro continuado deste observador da vida e das pessoas.