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JÚLIA ROSSETI PICININ ARRUDA VIEIRA TRANSMISSÃO DA PROPRIEDADE IMÓVEL PELO REGISTRO DO TÍTULO E SEGURANÇA JURÍDICA: UM ESTUDO DE HISTÓRIA DO DIREITO BRASILEIRO. Dissertação de Mestrado Realizada sob a orientação do Professor Titular Ignácio Maria Poveda Velasco, do Departamento de Direito Civil – Área de História do Direito - da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. SÃO PAULO 2009 1

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  • JLIA ROSSETI PICININ ARRUDA VIEIRA

    TRANSMISSO DA PROPRIEDADE IMVEL PELO

    REGISTRO DO TTULO E SEGURANA JURDICA: UM

    ESTUDO DE HISTRIA DO DIREITO BRASILEIRO.

    Dissertao de Mestrado Realizada sob a orientao do Professor Titular Igncio Maria Poveda Velasco, do Departamento de Direito Civil rea de Histria do Direito - da Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo.

    SO PAULO2009

    1

  • JLIA ROSSETI PICININ ARRUDA VIEIRA

    TRANSMISSO DA PROPRIEDADE IMVEL PELO REGISTRO DO TTULO E

    SEGURANA JURDICA: UM ESTUDO DE HISTRIA DO DIREITO BRASILEIRO.

    DISSERTAO DE MESTRADO PARA A OBTENO DO TTULO DE MESTRE PELO DEPARTAMENTO DE DIREITO CIVIL REA DE HISTRIA DO DIREITO DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE SO PAULO.

    ORIENTADOR: PROFESSOR TITULAR IGNCIO MARIA POVEDA VELASCO.

    UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    2009

    UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    2

  • DEPARTAMENTO DE DIREITO CIVIL

    BANCA EXAMINADORA

    Presidente e Orientador __________________________________________

    1 Examinador _________________________________________________

    2 Examinador_________________________________________________

    So Paulo,____ de ___________de 2009.

    Aos meus queridos pais, pela confiana e apoio.

    3

  • AGRADECIMENTOS

    4

  • AO PROF.TITULAR IGNCIO MARIA POVEDA VELASCO,

    Pelos ensinamentos e constante incentivo pesquisa.

    FAPESP - FUNDAO DE AMPARO PESQUISA DO ESTADO DE SO PAULO,

    Pela ajuda financeira em tempos difceis.

    A propriedade um direito, cujo conhecimento a todos interessa, no apenas para ser respeitada, mas em bem da ordem pblica, interessada na segurana do direito em geral. E para tal segurana indispensvel que todos conheam ou possam conhecer a quem esse direito pertence

    5

  • Lysippo Garcia

    Resumo

    6

  • VIEIRA, Jlia Rosseti Picinin Arruda. Transmisso da propriedade imvel pelo registro do ttulo e segurana jurdica: um estudo de histria do direito brasileiro. 2009.234f. Dissertao (Mestrado em Direito). Universidade de So Paulo, Faculdade de Direito, Programa de Ps-Graduao em Direito Civil, So Paulo, 2009. O presente trabalho tem como objetivo estudar a evoluo da disciplina da transmisso da propriedade imvel pelo registro do ttulo no direito brasileiro, relacionando-a com as seguranas do direito de crdito, do direito de propriedade e do comrcio. O estudo, ao percorrer o perodo entre a Lei de Terras de 1850 e o Cdigo Civil de 2002, constri uma intrnseca relao entre as necessidades polticas, econmicas e sociais e as previses do direito sobre a matria em cada fase temporal. Com base em contextualizaes histricas, legislaes e doutrinas jurdicas, a dissertao busca demonstrar, que a normatizao do modo de transferir a propriedade imvel pelo registro do ttulo no Brasil, decorreu do interesse, em momentos distintos, em proporcionar segurana ao crdito, ao direito de propriedade e ao comrcio.

    Termos de indexao: transmisso da propriedade imvel, registro de imveis, segurana jurdica, histria do direito, ttulo para a transferncia da propriedade imvel.

    Rsum

    VIEIRA, Jlia Rosseti Picinin Arruda. Transmission de la proprit immeuble par le registre du titre et scurit juridique: une tude de lhistoire du droit brsilien. 2009. 234f. Dissertation (Master en Droit).

    7

  • Universidade de So Paulo, Faculdade de Direito, Programa de Ps-Graduao em Direito Civil, So Paulo, 2009.

    Ce travail a pour but dtudier lvolution de la discipline de la transmission de proprit immeuble par le registre du titre dans le droit brsilien, en la rapportant aux scurits du droit du crdit, du droit de proprit et du commerce. L tude dans son parcours entre la Loi des Terres de 1850 et le Code Civile de 2002, construit un intrinsque lien entre les ncessits politiques, conomiques et sociales el les prvisions du droit sur la matire dans chaque phase temporelle. Sur les fondements des contextes historiques, des lgislations et des doctrines juridiques, la dissertation cherche dmontrer que la mise un place des normes de la faon de trasfrer la proprit immeuble par le registre du titre au Brsil, a decoul de lenvie, dans de diffrents moments, doffrir de la scurit du crdit, au droit de proprit et au commerce.

    Mots-cls: transmission de la proprit immeuble, registre dimmeubles, scurit juridique, historique du droit, titre pour la transmission de proprit immeuble.

    SUMRIO

    1 INTRODUO..................................................................................................................................10

    8

  • 2 TEMPOS DE INSEGURANA: REGULARIZAO DA TRANSMISSO DA PROPRIEDADE IMVEL COMO CONSEQNCIA DA BUSCA PELA SEGURANA JURDICA DO DIREITO DE CRDITO.......................................................................................................................................20

    2.1 Contexto histrico...............................................................................................................20

    2.2 Ordenaes Filipinas e Lei oramentria n. 317 de 1843...................................................30

    2.3 Lei n. 601 de 1850: Registro do Vigrio............................................................................41

    2.4. Lei Hipotecria n. 1.237 de 1864.......................................................................................54

    2.5 Registro Torrens: decreto n. 451-B de 1890.......................................................................81

    3 SEGURANA JURDICA DO DIREITO DE PROPRIEDADE X SEGURANA JURDICA DO COMRCIO: POSIO DO DIREITO BRASILEIRO..........................................................................................................94

    3.1 Contexto histrico...............................................................................................................94

    3.2 Antecedentes do Cdigo Civil de 1916..............................................................................104

    3.3 Cdigo Civil de 1916..........................................................................................................135

    3.4 Primeiros anos de vigncia do Cdigo Civil: correes e complementaes.....................155

    4 SEGURANA JURDICA DO DIREITO DE PROPRIEDADE: A BUSCA PELA CORRESPONDNCIA ENTRE A REALIDADE FTICA E A REALIDADE JURDICA (ASSENTO REGISTRAL)..................................................166

    4.1 Contexto histrico...............................................................................................................166

    4.2 Antecedentes da lei n. 6.015 de 1973: Lei de Registros Pblicos......................................174

    4.3 Lei de Registros Pblicos: a instituio da matrcula.........................................................191

    4.4 Antecedentes do Cdigo Civil de 2002..............................................................................198

    4.5 Cdigo Civil de 2002......................................................................................................211

    5 CONCLUSES...................................................................................................................................217

    6 REFERNCIAS....................................................................................................................................220

    9

  • 1. INTRODUO1

    O direito de propriedade imvel e conseqentemente sua transmisso uma das

    matrias do Direito Civil sobre as quais difcil legislar, no s por envolver uma srie de

    particularidades, como, por exemplo, o sistema de registro imobilirio2 que deve englob-lo,

    mas principalmente pelas seguranas que deve garantir. 1 Para a apresentao formal da dissertao, foram utilizadas as normas definidas pela Associao de Normas Tcnicas Brasileiras (ABNT). Nas hipteses em que a ABNT no faz previso, as notas de rodap e a referncia foram elaboradas de maneira coerente com as demais determinaes. Uma nota de rodap explicativa indicar todas as vezes que isso ocorrer ao longo do trabalho. 2 Conjunto de normas jurdicas que regulam as modificaes jurdico-reais de imveis, com o fim de proporcionar publicidade, autenticidade, segurana e eficcia aos atos jurdicos.

    10

  • Uma legislao bem elaborada acerca da transmisso da propriedade imvel inter

    vivos (que desde o Cdigo Civil de 1916 especificada como a realizada pelo registro do

    ttulo) deve ter como foco a segurana jurdica e a segurana do comrcio, de maneira a

    permitir que o homem planeje com antecedncia e responsabilidade sua vida.

    Atualmente, a transferncia da titularidade de determinado bem ocorre por meio

    do registro de instrumento particular, escritura pblica ou ttulo judicial em livro especfico na

    Serventia de Registro de Imveis competente (livro 2 Registro Geral art. 176 da lei n. 6015

    de 1973). A exigncia do registro para a transmisso visa garantir, em um primeiro momento,

    a segurana do direito de propriedade e, em seguida, a do comrcio e do crdito. No entanto,

    nem sempre a modificao do proprietrio do imvel no Brasil ocorreu por meio do registro

    do ttulo, nem mesmo ela conseguiu assegurar a estabilidade jurdica e comercial esperada.

    Estudando o histrico da transmisso da propriedade imvel no Brasil desde o

    sculo XIX, quando ainda eram aplicadas as Ordenaes Filipinas, parece que por muito

    tempo bastou unicamente a tradio para a transferncia da propriedade imvel. Com o tempo,

    ao buscar segurana nas relaes jurdicas envolvendo bens imveis, o legislador brasileiro

    abordou, em perodos diversos, trs seguranas distintas. Inclusive, a regulamentao da

    transmisso da propriedade imvel inter vivos veio como conseqncia da procura pela

    concretizao de outros objetivos como, por exemplo, o de permitir a hipoteca de imveis.3 Na

    dissertao, esse perodo foi denominado de Tempos de insegurana, justamente pelo fato

    de a segurana da transmisso no estar garantida, j que importava unicamente o registro

    geral das hipotecas.

    3 TROPLONG ensinava que o processo tinha sido inverso no direito romano, ou seja, primeiro ocorreu a regulamentao da transmisso de bens imveis, depois foi utilizada a estrutura j existente para a proteo do crdito. Nada, porm mais estranho s idas de credito, do qual os creadores primitivos do direito romano no tiveram a mnima preoccupao. mistr uma sociedade j avanada para cogitar disto, e quando os romanos chegaram ao ponto em que o movimento das relaes sociaes pe em jogo o interesse dos terceiros, encontraram todo um systema de translao da propriedade anteriormente desenvolvido, sob outras influencias e independentemente desse interesse. O credito pde sem dvida delle aproveitar-se numa certa medida, mas no foi por causa delle que originariamente se introduziram no direito as formalidades exteriores, que eram a alma desse systema. S PEREIRA, Virgilio de. Direito das Cousas. Art. 524-678. In: LACERDA, Paulo de. Manual do Cdigo Civil Brasileiro. Rio de Janeiro: Jacintho Ribeiro dos Santos, 1924, p. 111/vol.VIII. Para evitar repeties futuras, deixa-se esclarecido que ao longo do trabalho todos os trechos transcritos foram fiis redao feita pelos respectivos autores. Assim diversas vezes o portugus utilizado no seguir as regras gramaticais vigentes hoje.

    11

  • Dessa maneira, em um primeiro momento o centro das atenes foi a segurana

    jurdica do crdito garantido por um bem imvel. Depois vieram as discusses doutrinrias

    acerca das seguranas do comrcio e do direito de propriedade. Por fim, a busca incessante por

    conciliar as trs seguranas jurdicas, conciliao esta fundamental para o fortalecimento das

    instituies civis e da economia.

    A transmisso da propriedade imvel s se tornou o foco dos debates, na ocasio

    da elaborao do Cdigo Civil de 1916, em virtude do posicionamento divergente de vrios

    autores acerca do sistema imobilirio que deveria ser empregado no Brasil, defendendo uns a

    filiao ao sistema germnico, outros ao francs, ou ainda propugnando pela adoo de um

    novo regime. Contudo, como a modificao jurdico-patrimonial est diretamente relacionada

    segurana do crdito, do comrcio e do direito de propriedade, nada mais razovel que

    estudar a evoluo da transmisso da propriedade imvel por meio destas. Afinal, como se

    demonstrar ao longo da pesquisa, essa relao intrnseca, j que a regulamentao da

    transferncia de domnio de bem imvel pelo registro do ttulo no Brasil surgiu como

    conseqncia da necessidade de se garantir as seguranas acima enumeradas.

    Assim sendo, fundamental que se determine com preciso o significado que este

    estudo atribuiu a cada uma das trs seguranas jurdicas envolvidas na transmisso da

    propriedade imvel no Brasil independente, as quais sero abordadas ao longo desta

    dissertao, quando do estudo histrico-jurdico da transmisso da propriedade imvel inter

    vivos.

    Segundo JOS JOAQUIM GOMES CANOTILHO4, os elementos fundamentais do Estado de

    Direito so os princpios da segurana jurdica e da confiana legtima. Por meio deles o

    Estado procura garantir um mnimo de certeza s pessoas quanto a seus direitos e s

    expectativas juridicamente criadas, proporcionando a toda sociedade a confiana na tutela

    jurdica. Os princpios da segurana jurdica e da confiana legtima esto totalmente

    associados, podendo-se mesmo dizer que este um subprincpio ou uma espcie daquele.

    Assim, em geral, a segurana do direito est ligada aos elementos objetivos da ordem jurdica

    (garantia de estabilidade jurdica, segurana de orientao e realizao do direito) e proteo

    4 Ao longo da dissertao, quando o autor for citado pela primeira vez, constar seu nome e prenome. Nos demais casos, apenas o nome pelo qual ele conhecido no mundo jurdico.

    12

  • da confiana legtima aos elementos subjetivos da segurana (calculabilidade e previsibilidade

    dos indivduos em relao aos efeitos jurdicos dos atos dos poderes pblicos).5

    Considerando a confiana legtima uma espcie da segurana jurdica, afirma-se

    que o cumprimento do princpio da segurana exige: clareza, racionalidade e transparncia na

    ao estatal. Para participar de relaes jurdicas, o indivduo acredita na manuteno das

    normas vigentes, confiando em que elas sejam cumpridas e, portanto, que a atuao estatal

    seja totalmente previsvel.

    Conforme os ensinamentos de CANOTILHO, para a obteno da segurana jurdica no

    relativo a atos normativos, exige-se a preciso das normas jurdicas, ou seja, a sua necessria

    configurao material e formal em termos lingisticamente claros, compreensveis e no

    contraditrios. Essa preciso composta de dois elementos fundamentais: a) clareza da norma,

    sem a qual fica comprometida a interpretao, dificultando a obteno de uma soluo jurdica

    para o problema concreto, b) normas exatas, sem as quais no ser possvel fundamentar

    situaes do cidado favorveis ou contrrias ao ordenamento jurdico, protegendo seus

    direitos e interesses. No sendo a norma precisa o bastante, sua utilizao ser evitada pela

    prpria Administrao, j que a aplicao possivelmente trar inmeros conflitos judiciais.6

    A segurana jurdica ser analisada ao longo do trabalho sobre trs aspectos: como

    segurana jurdica do direito de crdito, do direito de propriedade e do comrcio.

    Na segurana jurdica do direito crdito, o objetivo assegurar o crdito garantido

    por um bem imvel.7 Em outras palavras, o ordenamento certifica o credor que em caso de

    inadimplemento da obrigao, o pagamento da dvida e das despesas de cobrana ser feito

    pela quantia obtida com a venda do imvel hipotecado.

    Na segurana jurdica do direito de propriedade, o ordenamento jurdico assegura

    ao proprietrio do bem o seu direito sobre ele, mesmo que haja algum vcio na

    correspondncia entre a realidade jurdica e os livros registrais, que leve terceiro de boa-f a

    5 Direito Constitucional e Teoria da Constituio. Coimbra: Almedina, 1998. p. 250.6 Direito Constitucional e Teoria da Constituio. Coimbra: Almedina, 1998. p. 250.7 A fim de que o objeto do trabalho no fique muito extenso, apenas a garantia real do credito feita por bens imveis ser estudada.

    13

  • adquirir, em conformidade com a lei, o mesmo imvel, porm de falso proprietrio (exemplo:

    a escritura pblica ou contrato particular de transmisso foram fraudados).

    J a segurana jurdica do comrcio entendida como a confiana que as pessoas

    devem depositar nas transaes jurdico-patrimoniais. O indivduo busca a concretizao

    dessas transaes de forma harmoniosa, sem que seja prejudicado por circunstncias para ele,

    adquirente, desconhecidas. O intento adquirir o bem com a certeza de que ele permanecer

    em sua esfera de poder at uma futura venda, sem qualquer gasto suplementar (como por

    exemplo, de um litgio judicial). A crena no comrcio fundamental para que haja um

    mercado competitivo e prspero. Para JOS SORIANO DE SOUZA NETO, justamente a

    contraposio entre a segurana do direito de propriedade e a segurana do comrcio que

    aparece como problemtica de difcil soluo pelo legislador, afinal, como ser visto adiante,

    no se pode obter uma seno com o sacrifcio da outra. 8

    Esclarecido o sentido ofertado a cada termo, chega o momento de relacion-los

    com a transmisso da propriedade imvel pelo registro do ttulo.

    Ao se falar em transferncia de bem imvel, o enfoque da segurana pode variar

    de acordo com as necessidades econmico-sociais da poca. Nos primeiros anos do Brasil ps-

    independncia, o contexto histrico exigia uma maior ateno ao direito de garantia real do

    crdito, j que ele passou a ser importante para o desenvolvimento da agricultura por permitir

    a circulao dos ttulos de propriedade, facilitando a transmisso imvel e conseqentemente

    assegurando o pagamento de vultosos emprstimos.

    Para que o ordenamento assegure sem surpresas um imvel como garantia por

    meio do instituto da hipoteca indispensvel que a propriedade esteja determinada e que a

    modificao jurdico-real esteja definida.9 Em outras palavras, um bom comeo seria

    regulamentar a transmisso da propriedade imvel, estabelecendo a qualificao de seu

    proprietrio e os limites dessa propriedade. Tomadas essas precaues, possvel diminuir os

    custos da transao (j que havendo uma maior certeza quanto titularidade da propriedade

    adquirida, o litgio judicial torna-se algo mais remoto) e das taxas de emprstimos (afinal, o 8 Publicidade Material do Registro Imobilirio: efeitos da transcrio. Recife: [s.d.], 1940. p. 9.9 FREITAS, Augusto Teixeira. Consolidao das Leis Civis. Rio de Janeiro: Typographia Universal de Laemmert, 1865. p. CXLV.

    14

  • credor tem maior garantia para o caso de inadimplemento, pois acredita que no perder o

    dinheiro investido, uma vez que a execuo real certa). Com transmisses e taxas niveladas

    a valores mais baixos, h aumento nas relaes comerciais e, como resultado, maiores

    investimentos e crescimento econmico.

    Portanto, difcil pensar em um registro de hipotecas sem que haja um registro de

    bens imveis, no qual conste sua titularidade, as transmisses e nus ocorridos ao longo do

    tempo. No entanto, os legisladores brasileiros s perceberam essa intrnseca relao, quando o

    dispositivo da Lei Oramentria n. 317 de 1843 e os de seu regulamento, decreto n. 482 de

    1846, no tiveram o efeito jurdico e econmico esperado. Essas normas regularam o registro

    de hipotecas sem, contudo, fazer meno transcrio dos ttulos. Assim, foi preciso a

    promulgao de uma nova lei que atendesse s necessidades de uma sociedade, em que o

    comrcio passava a ser intenso e o valor da propriedade imvel aumentava.

    Foi quando surgiu a lei n. 1.237 de 1864, defendida pelo Conselheiro Nabuco, para

    tentar solucionar os problemas no resolvidos pela Lei Oramentria e seu regulamento.10 A

    Lei Hipotecria de 1864 deu um novo rumo constituio de hipoteca, fomentando o uso do

    direito de garantia, ao instituir a transcrio de todos os ttulos para transmisso dos imveis

    por atos inter vivos em registro pblico e ao dispor que a transferncia do imvel s se

    operava a respeito de terceiros, com a transcrio e a partir de sua data. Pelo que tudo parece,

    a previso da transcrio rompeu com o direito anterior que dispunha ser a tradio suficiente

    para a aquisio da propriedade11.

    Diante dessas consideraes, fica fcil entender porque foi dito que a

    regulamentao da transferncia da propriedade imvel decorreu da preocupao com o

    direito de garantia real e no do desejo de bem definir a maneira de modificar a titularidade

    desse bem.

    10 Como ser estudado no item 2.4, o projeto de reforma da Lei Hipotecria foi apresentado por um grupo de deputados liderados por Igncio Joaquim Barbosa Cmara dos Srs. Deputados em 1853. Nabuco de Arajo, membro da comisso especial nomeada para analisar o trabalho, passou a defender a reforma, propondo a criao de um registro dos atos translativos da propriedade imvel. 11 Como ser melhor compreendido no item 2.2, o modo de aquisio da propriedade imvel inter vivos previsto nas Ordenaes Filipinas ser analisado indiretamente por meio das obras de autores que estudaram o tema. Para que fosse possvel afirmar (com certeza) que a tradio era suficiente para a aquisio da propriedade imvel no Brasil colnia, o ideal seria que as Ordenaes fossem lidas minuciosamente, trabalho que no foi objeto desta dissertao.

    15

  • Apesar da inovao trazidas pela Lei Hipotecria de 1864, ela se mostrou

    incompleta j que no previa a transcrio das transmisses causa mortis e de atos judiciais,

    impedindo a formao de uma cadeia de titularidade nos livros registrais.

    Em 1890, diante da necessidade de adotar um sistema registral que acabasse com a

    falibilidade e incerteza da propriedade territorial, surgiu o Registro Torrens, que, apesar de

    garantir a segurana do crdito e do comrcio, no se popularizou pelo fato de exigir um

    procedimento longo e oneroso.12

    Com a elaborao do Cdigo Civil de 1916, discutiu-se mais uma vez a

    necessidade de adotar um sistema registral, que alm de garantir a segurana do crdito, do

    direito de propriedade e do comrcio, estivesse ao alcance de todo pblico (um processo de

    registro simples e acessvel).

    Se a legislao conseguisse atender todas essa exigncias, geraria reflexos

    sensveis na sociedade e na economia. Uma transao imobiliria um importante mecanismo

    de alocao de recursos. No entanto, ela depende de que aquele que negocia tenha a

    propriedade exclusiva e livre sobre o objeto da troca, pois, caso contrrio, o custo da

    negociao se encarece. Em outras palavras, as transaes de bens e direitos devem ocorrer

    com celeridade e eficcia, e para isso indispensvel que haja certeza da titularidade do bem e

    que a modificao patrimonial faa do adquirente o verdadeiro proprietrio. Haver menor

    custo de transao na medida em que essas precaues dispensam gastos de litgios ou

    vigilncia, no exigindo definio judicial do direito.13

    Entretanto, um esforo pessoal de busca no o bastante para se descobrir a

    situao jurdica do imvel, que envolve a titularidade, os encargos que o oneram e outros

    direitos que recaem sobre ele. Na realidade, necessria uma instituio que fornea todas

    essas informaes, e nesse caso destaca-se o registro imobilirio, hiptese em que seu conceito

    12 Essas caractersticas negativas que levaram ao desuso do Registro Torrens decorreram da exigncia da lei de levantamento topogrfico (inclusive com planta, memorial descritivo), despacho de juiz togado, publicao de editais, decurso de prazo para a impugnao de terceiros e outros. Como as despesas so suportadas pelo adquirente e o processo judicial demorado, at hoje o Registro Torrens pouco utilizado, apesar de previsto facultativamente para imveis rurais. O Registro Torrens ser analisado em diversos pontos do trabalho, sendo o item 2.5 totalmente dedicado a ele.13 GUERREIRO, Jos Augusto Guimares Mouteira. O Registro Imobilirio. Necessrio instrumento do progresso econmico-social. Revista de Direito Imobilirio, So Paulo, n.45, ano 21, p. 87 e 88, 1998.

    16

  • aproxima-se de um cadastro real. Com efeito, registrar a transmisso apenas a parte inicial

    do indispensvel para uma completa segurana do comrcio, sendo tambm necessrio o

    registro dos encargos e outros direitos sobre o imvel.

    No sendo a legislao completa o bastante, o legislador ter que optar pela

    segurana do comrcio (que com maior preciso garantir a segurana do crdito) ou pela

    segurana do direito de propriedade.

    Se o sistema registrrio preza pela segurana do comrcio, est seguro o terceiro

    de boa-f que confia nas informaes contidas nos livros fundirios, mesmo no caso de fraude

    (exemplo: terceiro de boa-f adquire imvel de pessoa que, apesar de estar inscrita no livro,

    no proprietria. Descoberta a fraude, o comprador tem direito ao bem e o real proprietrio

    obtm unicamente uma indenizao daquele que o vendeu indevidamente). Protegido o direito

    do terceiro de boa-f, fica desprotegido o direito de propriedade do titular do bem, vtima de

    alguma fraude ou confuso do oficial. Dessa feita, no havendo a total correo do livro

    registral, a segurana jurdica da propriedade e a segurana do comrcio contrapem-se, j que

    no se pode obter uma sem a renncia da outra.

    J o ordenamento, que enfatiza a segurana do direito de propriedade, possibilita

    ao real proprietrio o direito sobre seu imvel, mesmo que no havendo correspondncia entre

    a realidade jurdica e os dados contidos no registro, algum de boa-f adquira-o de um falso

    senhor do bem.

    claro, que a esperana de todos os pases que adotam o sistema com cadastro,

    que este traga dados corretos e atualizados sobre o imvel e seu titular, para que no haja

    necessidade de prevalecer uma segurana sobre a outra. No entanto, apesar das aspiraes, no

    o que normalmente acontece.

    No direito brasileiro, a primeira tentativa de se obter um cadastro imobilirio (que

    futuramente pudesse vir a garantir a segurana do direito de propriedade e do comrcio)

    ocorreu com a promulgao da Lei n. 6015, de 1973, que instituiu a matrcula e sua

    obrigatoriedade. A matrcula o instrumento que individualiza a propriedade imobiliria,

    determinando suas dimenses e limites e qualificando seu proprietrio. Como aps 30 anos da

    17

  • promulgao da lei, ainda eram muitos os imveis sem matrcula, o que tornava longnqua a

    conciliao entre a segurana do direito de propriedade e do comrcio, o legislador brasileiro

    buscou uma soluo alternativa por meio do usucapio do pargrafo nico do artigo 1.242 do

    Cdigo Civil de 2002.

    A partir de ento, a proteo segurana do direito de propriedade passou a

    preponderar sobre a segurana do comrcio por um determinado perodo, ou seja, passados os

    cinco anos e cumpridos os requisitos do usucapio do pargrafo nico do artigo 1.242, o

    ordenamento passa a garantir a segurana do comrcio.

    Por fim, destaca-se que alm da matrcula e do instituto do usucapio, tiveram

    papel importante na procura pela presena das diversas seguranas na transmisso da

    propriedade imvel pelo registro do ttulo, o surgimento de alguns princpios basilares do

    sistema registral comum (que se contrape ao Sistema Torrens) como a publicidade formal (lei

    n 1.237 de 1864), a especialidade (instituda pelo dec. n. 169-A de 1890) e a continuidade

    (dec. n. 18.542 de 1928).14

    Apresentados os principais tpicos que sero desenvolvidos na dissertao, resta

    indicar que o presente estudo, focado na transmisso da propriedade imvel inter vivos e nas

    diversas seguranas, ser feito sobre o prisma da histria do direito.

    Estudar o tema pela histria do direito parece ser o meio mais apropriado por

    permitir uma anlise panormica da relao entre as necessidades econmico-politico-sociais e

    a incessante busca do legislador, ao longo dos sculos XIX e XX, para atend-las. A escolha

    desse perodo temporal, mais especificamente da Lei de Terras de 1850, a lei 10.931 de 2004,

    justifica-se na medida em que se verifica a partir do sculo XIX, a mudana de uma concepo

    tradicional para uma concepo moderna no tocante propriedade, poltica de terras e

    mo-de-obra no Brasil.

    A terra que por muito tempo foi domnio da Coroa, doada principalmente como

    recompensa a servios prestados ao rei, significava prestgio social. Um prestgio que no s

    derivava do reconhecimento de altas qualidades do proprietrio, mas tambm pelo controle

    14 Todos esses princpios sero estudados em momento oportuno.18

  • que este tinha sobre inmeros escravos e homens livres (arrendatrios e meeiros). Com a

    mudana de concepo, a terra passou a ser domnio pblico, adquirida por quem pudesse

    explor-la com lucratividade e utilizando mo-de-obra livre (principalmente imigrante). O

    imvel passou a ser uma mercadoria que proporcionava ao seu proprietrio poder

    econmico.15

    Diante da mudana de concepo, a propriedade imvel transformou-se em objeto

    de inmeras transaes comerciais e em garantia de emprstimos. Com isso, a busca pela

    segurana jurdica tornou-se incessante, alterando e aperfeioando inclusive a maneira de

    transmitir a propriedade imvel por meio do registro do ttulo.

    Para isso, o estudo baseou-se principalmente na anlise de textos legislativos (e

    obrigatoriamente nos debates que os antecederam) e na doutrina de cada perodo. No mbito

    legislativo, o estudo da transmisso da propriedade imvel pelo registro do ttulo e as diversas

    seguranas que o envolvem inicia-se com as Ordenaes Filipinas, justamente por ser a

    legislao sobre a qual recai a Lei de Terras (primeira lei referente propriedade imvel aps

    o perodo de anomia denominado de extralegal ou de posses). Em seguida, analisa-se a matria

    principalmente na lei n. 1.237 de 1864, decreto n. 451-B de 1890, Cdigo Civil de 1916,

    Decreto 18.542 de 1928, Lei 6.015 de 1973 e Cdigo Civil de 2002. No mbito doutrinrio,

    so objeto de estudo as obras de autores como o Conselheiro NABUCO, TEIXEIRA DE FREITAS, RUY

    BARBOSA, LAFAYETTE PEREIRA, CLVIS BEVILQUA, LYSIPPO GARCIA, PHILADELPHO AZEVEDO, SORIANO

    NETO, AFRNIO DE CARVALHO, entre outros.16

    Ao final da dissertao, estando todos os pontos explorados, ser possvel

    visualizar o quadro completo da relao entre a transmisso da propriedade imvel pelo

    registro do ttulo e as trs acepes da segurana jurdica no direito brasileiro dos sculos XIX

    e XX. Desse modo, espera-se que tal quadro contribua para o estudo de histria do direito,

    facilitando futuras pesquisas sobre o tema.

    15 COSTA, Emlia Viotti da. Da Monarquia Repblica: momentos decisivos. 8 ed., So Paulo: Fundao Editora UNESP, 2007. p. 174.16 As obras utilizadas no presente estudo sero indicadas em momento oportuno.

    19

  • 2. TEMPOS DE INSEGURANA: REGULARIZAO DA

    TRANSMISSO DA PROPRIEDADE IMVEL COMO

    CONSEQNCIA DA BUSCA PELA SEGURANA JURDICA DO

    DIREITO DE CRDITO.

    2.1. CONTEXTO HISTRICO17

    No h como, no sculo XIX, escrever sobre a contextualizao histrica da

    transmisso da propriedade imvel e dessa forma sobre terras, sem discorrer sobre a mo de

    obra escrava e da imigrao, isso porque os trs elementos estiveram intrinsecamente ligados

    durante todo o perodo do Imprio, inclusive no Segundo Reinado, poca em que se situa essa

    primeira parte do estudo.

    Na realidade, mo de obra e poltica de terra so noes que sempre esto de

    alguma forma relacionadas, variando apenas com a fase de desenvolvimento econmico pelo

    qual o pas est passando.

    17 Todos os contextos histricos desta dissertao sero fundamentados em um ou dois autores principais. O intuito que o texto fique coerente, uma vez que h diferena significativa na interpretao dos estudiosos sobre alguns momentos histricos.

    20

  • No sculo XIX, o Brasil era aos poucos atingido pela expanso dos mercados e do

    sistema capitalista, que exigia uma reavaliao dos dois elementos acima. Gradativamente, a

    terra e o trabalho foram sendo assimilados economia comercial e industrial. Tratava-se de

    um perodo de aumento populacional, migraes internas e internacionais, concentrao da

    populao nos centros urbanos, desenvolvimento da indstria, acmulo de capitais e

    melhoramento dos meios de transporte.18

    Para LAURA BECK VARELA o interesse do capitalismo comercial e industrial era

    utilizar a propriedade imobiliria como garantia de emprstimos, permitindo que as relaes

    jurdicas reais deixassem de ser fundadas na obrigatoriedade de cultivo. No importava que a

    terra fosse improdutiva, o importante era que ela estivesse delimitada e registrada, o que

    asseguraria possveis emprstimos.19

    Por mais que a obrigatoriedade do cultivo no fosse mais exigncia das legislaes

    de terra surgidas ao longo da segunda metade do sculo XIX, no h como negar que com a

    economia comercial e industrial, houve uma expanso das reas cultivadas para fins

    comerciais e uma reduo daquelas destinadas agricultura de subsistncia. Prova disso que

    o Segundo Reinado, iniciado com a coroao de D. Pedro II, em 1840, aps o conhecido golpe

    da maioridade, caracterizou-se como um perodo de intensa cooperao entre a Coroa e as

    oligarquias de fazendeiros de caf. Inclusive, os ganhos obtidos pelo governo com o caf

    foram fundamentais para reduzir a dvida da Coroa com os britnicos.20

    A expanso do mercado intensificou o uso da terra e do trabalho escravo o que, em

    muitos casos, gerou a expulso de arrendatrios e meeiros e a expropriao das pequenas

    propriedades e das terras comunitrias.21

    18 VIOTTI DA COSTA, Emilia. Da Monarquia Repblica: momentos decisivos. 8 ed., So Paulo: Fundao Editora UNESP, 2007. p.171.19 Das Sesmarias propriedade moderna: um estudo de histria do direito brasileiro. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 6.20 SKIDMORE, Thomas E. Uma histria do Brasil. So Paulo: Paz e Terra, 1998. p. 67.21 VIOTTI DA COSTA, Emlia. Da Monarquia Repblica: momentos decisivos. 8 ed., So Paulo: Fundao Editora UNESP, 2007. p.172.

    21

  • A situao impunha, cada vez mais, o surgimento de uma legislao que regulasse

    a propriedade e solucionasse o problema da mo de obra at ento predominantemente

    escrava.

    A inquietao quanto necessidade de elaborar uma legislao referente a estes

    dois temas, terra e trabalho, vinha do fato de que, com a Resoluo de 17 de julho de 1822, o

    Sistema de Sesmarias, j pouco aplicado na prtica, tinha sido formalmente encerrado. A partir

    de ento, o pas passou a viver um perodo de anomia no relativo a terra, prevalecendo as

    ocupaes. Quanto ao trabalho, a situao era pior, j que ainda se utilizava mo de obra

    escrava e a presso inglesa para a contratao de trabalhadores livres tornava-se cada dia mais

    enrgica.

    Diante da importncia da terra e do trabalho, indispensvel o estudo de cada um

    dos temas.

    No relativo a terra, o regime de sesmarias foi transplantado para o Brasil por meio

    das Ordenaes Manuelinas e Filipinas. Sua primeira manifestao na colnia ocorreu por

    meio da carta dada a Martim Afonso de Souza, em 20 de novembro de 1530, na qual o rei lhe

    permitia conceder sesmarias das terras que encontrasse a quem pudesse aproveitar.22

    Segundo RUY CIRNE LIMA, entre procurar a administrao indo at o governador, e

    depois at o rei, para obter uma concesso de sesmarias, ou apossar-se de um pedao de terra e

    cultiv-lo, era provvel que os colonizadores optassem pela segunda.23 Assim, por muito

    tempo, na colnia e mais tarde aps a independncia, a ocupao aparecia como a melhor ou

    mesmo nica forma de ter acesso propriedade imvel.

    Citando um relatrio de GONALVES CHAVES24 divulgado em 1822, CIRNE LIMA

    indicava que esse Sistema de Sesmarias mal aplicado trouxe como conseqncia para o pas

    uma vasta rea ocupada, em contraste com a pouqussima populao, poucas reas livres

    22 LIMA, Ruy Cirne. Pequena Histria Territorial do Brasil: Sesmarias e Terras Devolutas. 2ed., Porto Alegre: Sulina, 1954. p. 32.23 Ibidem., p. 31, 32 e 37.24 Como no h previso expressa na ABNT, optou-se por escrever os nomes de todos os autores em caixa alta.

    22

  • possveis de serem repartidas, grandes latifundirios, mas muitas famlias sem terra para

    cultivo e agricultura em atraso.25

    Para RAYMUNDO FAORO, a sesmaria deixou como herana senhores de terra com

    extensas fazendas que no cultivavam, nem permitiam que outros o fizessem. Ainda,

    lavradores meeiros e moradores de favor, vivendo da agricultura de subsistncia e totalmente

    excludos da agricultura de exportao.26

    Para que esse quadro fosse alterado, era imprescindvel que uma nova concepo

    da poltica de terras substitusse a tradicional, existente no pas desde o sculo XVI.

    Segundo EMLIA VIOTTI DA COSTA, pela concepo tradicional, a terra era domnio da

    Coroa, que a transmitia por meio de doao queles que se mostrassem fiis e prestativos ao

    rei, razo pela qual ser proprietrio significava antes de tudo prestgio social, do qual derivava

    poder econmico. Como era o monarca que doava a terra, ele podia impor certas condies,

    como regular o uso e a ocupao, limitar o tamanho da rea e estipular quantas concesses

    uma nica pessoa poderia receber.27

    Aos poucos, essa concepo tradicional foi substituda por uma noo moderna,

    transio apenas concluda no sculo XX. Pela concepo moderna, a terra passou a ser

    considerada domnio pblico, servindo o Estado unicamente como intermediador em sua

    aquisio. A terra tornou-se uma mercadoria, podendo ser adquirida por todo aquele que

    pudesse explor-la com lucratividade e ser proprietrio comeou a representar poder

    econmico, do qual podia advir prestgio social. Sendo a terra uma mercadoria, coube ao

    proprietrio estipular suas prprias condies.28

    25 O autor define com as seguintes palavras o que foi o relatrio e quem era Gonalves Chaves Memorias economopolticas sobre a Administrao Publica do Brasil, compostas no Rio Grande de S. Pedro do Sul e offerecidas aos Deputados do mesmo Brasil, por hum portuguez, residente no Brasil, h 16 annos; que professa viver s do seu trabalho, e deseja o bem da Nao, ainda com preferncia a seu prprio. Pequena Histria Territorial do Brasil: Sesmarias e Terras Devolutas. 2ed., Porto Alegre: Sulina, 1954. p.42 e 43.26 O autor ressaltava o fato de que, diferentemente do pequeno agricultor, o grande fazendeiro tinha a possibilidade de enviar seus descendentes para ocupar cargos pblicos, caso a agricultura no prosperasse como esperado, diante de catstrofes naturais e econmicas. Os Donos do Poder; formao do patronato poltico brasileiro. Porto Alegre: Globo, 1958. p. 419.27 Da Monarquia Repblica: momentos decisivos. 8 ed., So Paulo: Fundao Editora UNESP, 2007. p. 174.28 Ibidem., mesma pgina.

    23

  • J quanto mo de obra escrava, as primeiras medidas relativas ao trfico foram

    tomadas devido presso inglesa. A exigncia britnica tinha tanto motivao moral e

    ideolgica, pois era fruto da expanso de idias iluministas, como tambm econmica. O fator

    econmico era explicado pela dificuldade que as colnias caribenhas britnicas passaram a ter

    para a obteno de escravos, diante da proibio de seu comrcio nos Estados Unidos, em

    1807. Com a mo-de-obra escassa, os custos aumentaram, deixando as colnias pouco

    competitivas se comparadas a Cuba e ao Brasil. Para que o equilbrio retornasse, seria

    fundamental que a escravido fosse abolida nesses pases.29

    Apesar do Brasil assinar tratados de abolio do trfico negreiro com a Inglaterra

    (com quem estava endividado), eles no foram implementados at 1850, quando o Parlamento

    Brasileiro aprovou lei proibindo o comrcio de escravos. A demora foi resultado da outra

    presso que o governo brasileiro sofria, a dos fazendeiros de caf e outros proprietrios de

    terra, que acreditavam que, com o fim do uso da mo-de-obra escrava, haveria um colapso na

    agricultura.30

    Foi apenas em 1850, como resultado da presso inglesa, que o trfico de escravos

    foi proibido, coincidindo com um perodo de grande expanso do caf.31 Nessas

    circunstncias, os fazendeiros tiveram que recorrer ao trfico interno de escravos, comprando-

    os de reas decadentes do pas. Mas tambm, comearam a se interessar pela possibilidade de

    trazer mo de obra de pases europeus.32 Assim, como ser visto no item 2.3, no foi por acaso

    que a Lei de Terras de 1850 foi decretada no mesmo ano da lei que aboliu o comrcio de

    escravos.

    29 SKIDMORE, Thomas E. Uma histria do Brasil. So Paulo: Paz e Terra, 1998. p.78 e 79.30 SKIDMORE, Thomas E. Uma histria do Brasil. So Paulo: Paz e Terra, 1998. p. 80.31 Como motivos para a aprovao pelo Parlamento Brasileiro da proibio do comrcio de escravos, SKIDMORE aponta: a presso naval inglesa, inclusive com ameaa soberania brasileira, o medo da elite de no conseguir controlar os escravos (o receio do haitianismo, referncia rebelio de escravos ocorrida no Haiti, em 1790) e irrupes de febre amarela e clera na dcada de 1840, atribudas aos escravos recm-chegados. Ibidem., mesma pgina.32 VIOTTI DA COSTA, Emlia. Da Monarquia Repblica: momentos decisivos. 8 ed., So Paulo: Fundao Editora UNESP, 2007. p. 193.

    24

  • Com o aumento do ritmo cafeeiro33, ter crdito tornou-se uma necessidade maior

    do que ter a prpria fazenda. O crdito era necessrio, principalmente para a obteno de mo

    de obra escrava, um investimento que oscilou de 1850 a 1886 entre 30 e 70% sobre o valor

    total da empresa. At o solo com o tempo aumentou de preo, chegando a valer depois da

    grande expanso do caf, dez vezes o valor original.34

    Acontece que, ocorrida a proibio do trfico, a tendncia era que a obteno de

    crditos se tornasse mais escassa. Afinal, at ento, o crdito era fornecido pelos traficantes de

    escravos que parcelavam o valor de suas mercadorias, permitindo que o senhor de terras no

    gastasse todo seu capital no momento da compra. Em troca, cobrava altos juros, que anexados

    ao preo do escravo, eram por poucos percebidos.35

    Assim, com o fim dos emprstimos inseridos na venda de escravos e a necessidade

    de mo de obra, os fazendeiros tiveram que procurar outra maneira de obter capital. No lugar

    do traficante, surgiu como principal intermedirio entre eles e a cidade, a casa bancria. Diante

    do novo quadro, os fazendeiros viram um sbito aumento de seus ganhos, uma vez que os

    emprstimos eram concedidos a juros baixos. 36

    Quem no gostou da nova situao foram os antigos traficantes, que antes ficavam

    com grande parte do lucro do trfico e com as altas taxas de juros. Como no conseguia

    concorrer com a eficincia de alocao de recursos dos bancos, essa classe criticava

    veementemente a nova sociedade empresria, utilizando seus contatos no parlamento, para que

    medidas contrrias aos banqueiros fossem tomadas. Por esse motivo, rapidamente foi

    aprovado o projeto de criao do banco nacional, que, futuramente, acabou levando ao

    fechamento das casas bancrias privadas.37

    O banco oficial dificultava a obteno de crdito, o que gerou a elevao das taxas

    de juros e a ampliao dos ganhos dos rentistas. Como a nova situao desestimulava o

    33 Segundo MURILO DE CARVALHO, j na dcada de 1840, o caf passou a ser o principal produto de exportao do Brasil, ultrapassando at mesmo o acar. Perfis Brasileiros: D. Pedro II. So Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 42 e 138.34 FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder; formao do patronato poltico brasileiro. Porto Alegre: Globo, 1958. p. 412.35 CALDEIRA, Jorge. Mau: empresrio do Imprio. So Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 242 e 273.36 CALDEIRA, Jorge. Mau: empresrio do Imprio. So Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 273.37 Ibidem., p. 301.

    25

  • investimento e aumentava o interesse pelo capital especulativo, s permaneciam no mercado

    de crdito aqueles que no tinham outra opo, ou seja, os fazendeiros de caf.38

    S que essa tarefa de obter financiamento, na maioria das vezes, era realizada por

    intermedirios, j que para o fazendeiro era difcil trabalhar no campo e ir com freqncia

    cidade. Esses intermedirios eram chamados de comissrios, um comerciante que, na base da

    confiana, ligava a plantao e a exportao, arrumando financiamento, enviando mercadorias,

    comprando insumos para a fazenda e, por fim, adquirindo toda a safra.39

    Para JORGE CALDEIRA, o comissrio, ao fornecer crditos misturados com

    mercadoria, substituiu os traficantes como financiador da economia cafeeira, ficando com todo

    o lucro da lavoura. Ele conseguia essa proeza, porque o valor de tudo que comprava para os

    fazendeiros era somado e abatido quando da venda da safra, e recebia por essa tarefa altos

    juros.40

    Por mais que o lucro dos fazendeiros fosse pequeno, e ainda que desconfiassem da

    atuao do comissrio, no tinham interesse em romper esse elo de confiana. Afinal, tinham a

    certeza de que sempre haveria crdito, j que o intermedirio no arriscaria perder seu posto

    lucrativo. Dessa maneira, era mais interessante pagar caro pelo dinheiro, mas saber que ele

    jamais faltaria, mesmo nos momentos de necessidade, do que optar por baixos juros bancrios

    e viver na dvida de emprstimos futuros.41

    Por isso se diz que por algum tempo, no Brasil imperial, no havia interesse de

    grande parte da sociedade no surgimento de leis que regulassem o crdito real. Como ser

    visto nos itens seguintes, essa falta de preocupao em regulamentar direitos de garantia,

    como a hipoteca, vai levar tambm a uma incipiente legislao referente transmisso da

    propriedade imvel. Dessa maneira, justamente por no haver interesse em organizar as

    terras no pas ou o direito de garantia real, que afastada a previso de uma transmisso

    38 Ibidem., mesma pgina.39 Ibidem., p. 302.40 O autor afirmava que os comissrios Disfaravam a usura com mesuras: sempre que o fazendeiro ia ao Rio, cumulavam-no de atenes, alugavam boas carruagens, quebravam o galho dos filhos estudantes, arrumavam uma casa em Petrpolis para as frias da famlia. Mau: empresrio do Imprio. So Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 302.41 Ibidem., p. 303.

    26

  • imobiliria inter vivos que trouxesse segurana ao crdito, ao direito de propriedade e ao

    comrcio.

    No entanto, com o passar do tempo, a necessidade de crditos em um comrcio

    movimentado tornou-se cada vez mais evidente, no sendo suficientes medidas paliativas. Tal

    exigncia levou deputados e senadores a discursarem e aprovarem projetos sobre a matria,

    como o decreto n. 482 de 1846, regulando o artigo 35 da lei oramentria de 1843.42

    Alm da dificuldade na obteno de crdito, tornou-se cada vez mais difcil obter

    mo de obra escrava, o que fez com que alguns fazendeiros optassem por trazer imigrantes

    europeus para trabalharem como meeiros em fazendas de caf. Os fazendeiros pagavam a

    passagem, prometiam emprego e boas condies de trabalho em troca do servio na lavoura.

    De incio, a iniciativa fracassou, provavelmente pela impossibilidade de conciliar os dois tipos

    de trabalho, o escravo e o livre, na mesma plantao. A maneira desumana pela qual os

    imigrantes eram tratados levou alguns pases europeus a se manifestarem contrrios

    imigrao para o Brasil. Como resultado, obteve-se a certeza de que para o uso de mo de obra

    livre prosperar, seria fundamental o fim do trabalho escravo.43

    Diante do fracasso inicial da imigrao, aqueles que se opunham substituio de

    trabalhadores escravos por livres, acabaram intensificando seu discurso.44 Na realidade, esses

    utilizavam qualquer argumento para desqualificar o uso de imigrantes na lavoura, mesmo que

    fosse o mais absurdo.45

    Acontece que, com o passar do tempo, os prprios fazendeiros paulistas

    comearam a questionar se o uso de mo de obra livre no seria to eficaz e mais barato que a

    escrava. Ademais, seria significativo para o pas que o controle da mo de obra no 42 O assunto ser desenvolvido no item correspondente a esta legislao.43 SKIDMORE, Thomas E. Uma histria do Brasil. So Paulo: Paz e Terra, 1998. p. 106.44 Ibidem., p. 77.45 Interessante a passagem contada por CALDEIRA em seu livro. Segundo o autor, as fazendas de Mau diferenciavam-se totalmente das demais, j que elas tinham alto grau de eficincia. Utilizaram-se nas plantaes os primeiros arados vapor do pas, e tcnicos estrangeiros eram trazidos para dirigir a lavoura. A fim de provar a sua idia de substituio dos escravos por trabalhadores contratados por tempo determinado, j que depois eles seriam liberados para trabalharem por conta prpria, o empresrio contratou coolies chineses. Ao invs da experincia de Mau ser observada de perto, para que o sistema de substituio de escravos pudesse ser aproveitado, a Cmara dos Deputados criou uma comisso de inqurito para analisar se a insero de trabalhadores asiticos no pas no traria conseqncias trgicas formao do homem brasileiro, se no levaria degenerao da raa. Mau: empresrio do Imprio. So Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 519.

    27

  • dependesse de um status legal, ou ainda, da sobrevivncia econmica e que o domnio poltico

    no ficasse merc de uma instituio especfica.46

    Acresce-se a isso o fato de que, no final da dcada de 60 e incio da 70, o

    movimento abolicionista comeou a ganhar um apoio mais amplo, destacando-se figuras como

    Joaquim Nabuco, Jos do Patrocnio, Andr Rebouas, Lus da Gama e outros. Interessante

    como entre todos os abolicionistas, Andr Rebouas tenha sido o nico a defender a

    necessidade da reforma da terra, ou seja, de perceber que os dois elementos, terra e trabalho,

    estavam intrinsecamente relacionados.47

    Para este libertrio, a propaganda abolicionista buscava alm da abolio imediata

    e sem indenizao, o fim do monoplio territorial das mos da aristocracia rural, que ele

    chamava de landocracia. ANDR REBOUAS acreditava que o escravismo, agravado pela

    concentrao territorial, era o maior responsvel pelo estrago da economia brasileira,

    impedindo o progresso da Ptria, da a necessidade de medidas enrgicas que atacassem os

    dois problemas. As medidas deveriam ser distintas, j que o fim da escravido no seria

    suficiente para eliminar os latifndios.48

    Outros fatores importantes na intensificao do apoio da sociedade ao movimento

    abolicionista foram: a percepo da elite de que o Brasil jamais seria visto no exterior como

    um pas moderno, enquanto houvesse escravido, e o mal estar entre polticos e militares,

    principalmente aps a intensa participao dos negros na Guerra do Paraguai.49

    Diante dessa gradativa mudana, foi cada vez maior o nmero de imigrantes que

    passaram a chegar ao Brasil para trabalhar na lavoura e substituir a mo de obra escrava.

    Todavia, eles foram introduzidos em grande nmero nas fazendas brasileiras apenas na dcada

    46 SKIDMORE, Thomas E. Uma histria do Brasil. So Paulo: Paz e Terra, 1998. p. 106.47 Ibidem., mesma pgina.48 Para ANDR REBOUAS, no havia nada de mais injusto do que um trabalhar na terra e o outro gozar dos frutos desse trabalho, a terra deveria pertencer e quem nela trabalhasse. SANTOS, Sydney M.G. dos. Andr Rebouas e seu tempo. Rio de Janeiro: Vozes Ltda, 1985. p. 470, 471 e 538.49 SKIDMORE, Thomas E. Uma histria do Brasil. So Paulo: Paz e Terra, 1998. p. 99 e 106.

    28

  • de 1880 50 e principalmente aps a abolio, quando chegaram grandes levas de italianos,

    espanhis e portugueses.51

    Interessante perceber como em nenhum momento, durante a ampla e longa

    discusso da necessidade de se obter trabalhadores para a agricultura brasileira, houve quem

    defendesse a utilizao de negros libertos. Para THOMAS E. SKIDMORE52 os motivos eram claros:

    a elite considerava o trabalhador no branco fisicamente inferior e incapaz de hbitos srios de

    trabalho, era mais fcil controlar os imigrantes europeus: estes trariam as qualidades que os

    nordestinos no tinham e ajudariam a melhorar a linhagem tica do pas.53

    Muitos dos imigrantes europeus que vieram para o Brasil, ficaram pouco tempo no

    campo, mudando-se para a cidade na primeira oportunidade. Isso decorreu do fato de que

    muitos dos europeus que aqui chegavam nunca tinham sido empregados em fazendas, tendo

    no Velho Mundo trabalhado em fbricas, no comrcio ou com servios. E, mesmo aqueles que

    eram trabalhadores rurais, estavam acostumados com uma outra realidade, outro solo, clima,

    tcnica de plantio, o que dificultava muito a integrao.54 Apesar de todos esses empecilhos, os

    imigrantes solucionaram o problema principal da economia brasileira no momento, ou seja, a

    falta de trabalhadores.

    Outro dado importante desse perodo foi a disseminao entre a elite brasileira de

    correntes ideolgicas como o Positivismo e o Republicanismo, que levaram a proclamao da

    Repblica em 1890.

    50 VIOTTI DA COSTA, Emlia. Da Monarquia Repblica: momentos decisivos. 8 ed., So Paulo: Fundao Editora UNESP, 2007. p. 195.51 Segundo BORIS FAUSTO entre 1887 e 1930 entraram no Brasil cerca de 3,8 milhes de estrangeiros. Histria do Brasil. 6a ed., So Paulo: Universidade de So Paulo: Fundao para o desenvolvimento da Educao, 1999. p. 275. 52 Uma histria do Brasil. So Paulo: Paz e Terra, 1998. p. 106.53 SANTOS ressalta que ANDR REBOUAS no compartilhava essa viso depreciativa do trabalho do negro, pelo contrrio, acreditava que ela no se justificava quando se observava que havia sido o escravo o responsvel por tornar o Brasil imprio o maior produtor de caf do mundo. Andr Rebouas e seu tempo. Rio de Janeiro: Vozes Ltda, 1985. p. 476.54 SRGIO BUARQUE DE HOLANDA in prefcio na obra de THOMAZ DAVATZ acentua que A agricultura de tipo europeu era, sobretudo impraticvel nos lugares incultos e remotos (...) no h talvez exagro em declarar que os mtodos brbaros da agricultura indgena eram em alguns casos os que convinham. DAVATZ, Thomas. Memrias de um colono no Brasil. So Paulo: Martins Editora, 1972. p. XVI e XVIII.

    29

  • A teoria positivista agradou diversos seguimentos da populao. Afinal,

    condenava a Monarquia, desejo da elite; defendia a separao do Estado e da Igreja, elogiada

    por estudantes, professores e militares; aspirava incorporao do operariado sociedade

    moderna e a adoo de polticas sociais pelo governo, o que melhorou a viso das classes

    operrias sobre a Repblica. As propostas concretizar-se-iam por meio de um Executivo forte

    e intervencionista.55

    Os militares foram o grupo social que mais se identificou com a verso positivista

    da sociedade e da Repblica. O interessante era que para as teses positivistas, um governo

    militar seria um retrocesso. Mas, como no Brasil os militares tinham uma formao cientfica

    que se opunha formao literria da elite civil, eles se identificavam com a doutrina

    positivista, uma vez que ela enfatizava a Cincia e o desenvolvimento industrial. Ocorreu

    assim, uma adaptao do ideal importado da Europa.56

    J quanto difuso do republicanismo, para SKIDMORE ela ganhou fora com dois

    acontecimentos: primeiramente, com o enfraquecimento poltico de D. Pedro II que, na poca

    da Guerra do Paraguai, havia convocado um governo conservador apesar da maioria na

    Cmara dos Deputados ser liberal, gerando a crise de 1868. Em segundo lugar, porque a elite

    no se conformava com o fato dos Estados Unidos, um pas republicano, ter passado por uma

    rpida industrializao, enquanto o Brasil, monrquico, mantinha-se agrrio. 57

    J para JOS MURILO DE CARVALHO, a grande protagonista do fim da monarquia no

    Brasil foi a Guerra do Paraguai. Afinal, o conflito elevou a dvida externa brasileira, gerou a

    crise de 1868, intensificou a luta pela abolio, provocou corporativismo militar e intensificou

    o republicanismo.58

    No dia 15 de novembro de 1889, a tendncia republicana acabou sendo

    concretizada, ocorrendo o fim do Segundo Reinado e o incio da Repblica.59

    55 CARVALHO, Jos Murilo de. A formao das almas: o imaginrio da Repblica no Brasil. So Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 27.56 CARVALHO, Jos Murilo de. A formao das almas: o imaginrio da Repblica no Brasil. So Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 27 e 38.57 Uma histria do Brasil. So Paulo: Paz e Terra, 1998. p. 98 e 99.58 Perfis Brasileiros: D. Pedro II. So Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 124. 59 Interessante o quadro que MURILO DE CARVALHO traa sobre o governo de D. Pedro II. Diz o autor: Em quase meio sculo de reinado, D. Pedro II presidiu soluo dos grandes problemas que, quando ele subiu ao trono,

    30

  • 2.2. ORDENAES FILIPINAS E LEI ORAMENTRIA N. 317 DE 1843

    Com a proclamao da Independncia em 7 de setembro de 1822 e a aclamao de

    D. Pedro Imperador em 12 de outubro do mesmo ano, o Brasil tornou-se uma unidade poltica

    livre e independente. Dessa forma, o pas deveria apresentar uma legislao prpria,

    desassociada da portuguesa. No entanto, como no era possvel substituir imediatamente a

    legislao em vigor com novas leis que satisfizessem as necessidades do novo Imprio,

    promulgou-se a lei de 20 de outubro de 1823, dispondo que continuariam em vigor na parte

    que no tinham sido revogadas entre outras legislaes, as Ordenaes Filipinas. 60

    As Ordenaes Filipinas entraram em vigor em 11 de janeiro de 1603, no reinado

    de Felipe III (Felipe II de Portugal) da dinastia castelhana. Nada mais eram do que uma

    atualizao das Ordenaes Manuelinas, j que alm de reunir seus dispositivos, incluam a

    Coleo de Duarte Nunes Leo e as leis a ela posteriores. As Ordenaes Filipinas foram

    aplicadas sem qualquer reforma at o advento do Cdigo Civil, ou seja, 1867 em Portugal e

    1917 no Brasil.61

    Como as Ordenaes Filipinas mantiveram-se em vigor no Brasil at 1917, no h

    como analisar qualquer instituto civil sem antes fazer uma breve anlise de como era regulado

    por esse monumento legislativo, mesmo que atos normativos esparsos tenham alterado com o

    tempo as suas determinaes.

    ameaavam a prpria existncia do pas. beira da fragmentao em 1840, o Brasil em 89 exibia poucos sinais de fratura. O trfico fora extinto, e a escravido fora abolida. O processo foi demasiado lento, mas at o fim, o imperador e os abolicionistas tiveram de enfrentar a resistncia tenaz de proprietrios e da maioria da representao nacional. A instabilidade poltica havia sido substituda pela consolidao do sistema representativo e pela hegemonia do governo civil, em ntido contraste com o que se passava em pases vizinhos. Na poltica externa o Brasil definira com clareza e preservara seus interesses na regio platina, e ganhara respeitabilidade diante da Europa e dos pases americanos. Pessoalmente, o monarca conquistara o respeito internacional pela dignidade e patriotismo com que exercera o poder e pela proteo que dispensara s cincias e s letras. Muito ainda restava por fazer, sobretudo no campo da educao, da descentralizao do poder, da formao do povo poltico. Como ele mesmo notou, tudo andava devagar demais no Brasil. Mas, posto que lentamente, estavam lanadas as bases para a construo do pas. Ibidem., p. 221 e 222. 60 TRPOLI, Csar. Histria do Direito Brasileiro. Revista dos Tribunaes, So Paulo, vol. 2, p. 153, 1947.61 POVEDA VELASCO, Igncio Maria. Ordenaes do Reino de Portugal. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo, v.89, p. 24, 1994.

    31

  • Foi o que aconteceu com a transmisso de imveis inter vivos que, por muitos

    anos aps a Independncia do Brasil, continuou a ser regrada pelas Ordenaes Filipinas,

    sendo aos poucos, com o surgimento de leis esparsas, modificada.

    Antes de tratar sobre a maneira como alguns autores vm interpretando os

    dispositivos das Ordenaes referentes matria, importante que se faa uma pequena

    digresso.

    Atualmente, a transmisso da propriedade imvel inter vivos ato complexo,

    envolvendo o ttulo, em que as partes celebram o negcio jurdico e o registro na Serventia

    competente, momento em que a transferncia concretiza-se. Assim, para examinar esta

    modificao jurdico-real fundamental estudar o ttulo e o registro, j que no sistema

    registrrio atual, o registro causal, estando sempre vinculado ao ttulo translatcio.

    Por esse motivo, para que ao longo da pesquisa sejam analisadas as seguranas que

    norteavam a transmisso da propriedade imvel pelo registro do ttulo, ser muitas vezes

    necessrio analisar tambm o histrico do ttulo.62 Feita esta pontual observao, passa-se para

    o estudo do primeiro monumento legislativo que tratou sobre a matria da transmisso de bens

    imveis inter vivos no Brasil.

    Pelo que parece, nas Ordenaes Filipinas, a transmisso da titularidade de bens

    mveis e imveis ocorria por meio da tradio, no sendo exigida qualquer outra formalidade.

    A tradio, como modo de adquirir domnio, consiste na entrega que o senhor de

    coisa corprea, com animus de transferir o domnio, faz a outrem que deseja adquiri-la.63 um

    modo derivado de aquisio de propriedade, ou seja, no cria o domnio, pressupe sua

    existncia e limita-se a transferi-lo.

    Analisando o contrato de compra e venda, mais especificamente o Livro 4, Ttulo

    V, 1 das Ordenaes Filipinas, CNDIDO MENDES DE ALMEIDA conclua que para que o contrato

    62 No entanto, destaca-se que o objeto desta dissertao a segurana do registro e no dos ttulos de transmisso, assim sendo, a abordagem deste tema ser realizada apenas de forma acessria, para complementar quando necessrio o assunto principal da pesquisa. 63 PEREIRA, Lafayette Rodrigues. Direito das Coisas. Rio de Janeiro: Jacintho Ribeiro dos Santos, [188?], p. 108/vol.1

    32

  • ficasse perfeito, era indispensvel que o vendedor transferisse o domnio sobre a coisa ao

    comprador, quando este lhe entregasse o preo.64

    Esse entendimento era reforado pela interpretao que VIRGLIO DE S PEREIRA

    fazia da leitura do Ttulo II desse mesmo Livro que afirmava:

    ... tanto que o comprador e o vendedor so acordados na compra e venda de alguma certa

    cousa por certo preo, logo esse contracto perfeito e acabado 65

    Segundo o autor, essa disposio no podia ser interpretada como se apenas o

    contrato transferisse a propriedade. O uso da expresso perfeito e acabado nada mais era do

    que influncia do Corpus Iuris Civilis e cpia de seus brocardos jurdicos.66

    Para S PEREIRA a expresso no queria dizer consumado. Na realidade, a

    transferncia da propriedade dependia no s do acordo entre as partes, como tambm que

    suas intenes de transferir ou adquirir domnio fossem externadas pela tradio. Assim,

    apenas com a tradio da coisa o contrato consumava-se e ocorria a transferncia da

    propriedade. Tal assertiva confirmava-se quando, ao analisar a continuao das Ordenaes,

    percebia-se que caso o vendedor no entregasse a coisa ao comprador, cabia ao de perdas e

    danos (pessoal) e no a ao real de reivindicao, como ocorreria caso o simples acordo

    transferisse a propriedade.67

    Dessa maneira, pelo que tudo indica da leitura da obra dos autores que se

    dedicaram (por meio da anlise do contrato de compra e venda) ao estudo da transferncia da

    propriedade imvel nas Ordenaes Filipinas, o direito brasileiro exigia para a transmisso do

    domnio a tradio da coisa.

    Com a necessidade de um comrcio cada vez mais dinmico, a tradio real, ou

    seja, a entrega da coisa, foi sendo gradativamente substituda pela tradio ficta, assumindo a

    forma de constituto possessrio, que nenhuma publicidade dava tradio. Dessa forma, para 64 Philippino. Rio de Janeiro: Typographia do Instituto Philomathico, 1870. p. 783/vol.4. 65 Ibidem.,p. 780. Como no h previso na ABNT, optou-se por transcrever os dispositivos legais com menor letra e maior margem, a fim de que se destaquem do restante do texto. 66 S PEREIRA, Virglio de. Direito das Cousas. Art. 524-678. In:LACERDA, Paulo de. (Org.). Manual do Cdigo Civil Brasileiro. Rio de Janeiro: Jacintho Ribeiro dos Santos, 1924. p. 94/vol. VIII.67 S PEREIRA, Virglio de. Direito das Cousas. Art. 524-678. In:LACERDA, Paulo de. (Org.). Manual do Cdigo Civil Brasileiro. Rio de Janeiro: Jacintho Ribeiro dos Santos, 1924. p. 94 e 95/vol. VIII.

    33

  • os bens imveis, foi utilizada a clausula constituti que substitua a tradio. Pela clusula,

    operava-se a transferncia da posse do bem sem a efetiva tradio, ou seja, o vendedor

    declarava possuir a coisa no em seu prprio nome, como senhor, mas em nome do

    adquirente, como detentor. Assim, a tradio de bens imveis ficava reduzida a clausula

    constituti que quase sempre era inserida nas escrituras pblicas pelo tabelio.68

    Como com a clausula constituti nada se revelava exteriormente a terceiros,

    desaparecendo o elemento que at ento tinha sido responsvel pela publicidade das

    transaes, ou seja, a tradio, facilitou-se a ocorrncia de fraudes e a ocultao de nus reais.

    Na realidade, a tradio como sinal de transferncia da propriedade de bens

    imveis, ou como meio de publicidade, j h muito tempo no era mais um mecanismo

    eficiente, e isso se devia principalmente ao fato da posse e da propriedade serem institutos

    separados, ou seja, quem tivesse a posse no necessariamente teria a propriedade.69 Assim, no

    s a tradio ficta, mas tambm a tradio real, no mais atendiam s necessidades do

    momento, que exigia um ato externo que proporcionasse certa notoriedade e publicidade s

    modificaes reais, ou seja, s transmisses de imveis e instituies de nus.

    Para FRANCISCO DE PAULA LACERDA ALMEIDA, as fraudes j eram comuns quando a

    transmisso de imveis ocorria pela tradio, tendo se tornado mais freqentes com a adoo

    da clausula constituti, j que a coisa, ao permanecer sob a posse do alienante continuava

    parecendo lhe pertencer, o que facilitava a venda de um mesmo imvel a compradores

    distintos, gerando prejuzos.70

    Mesmo com tantas deficincias, foram as Ordenaes Filipinas que ao longo de

    quase todo sculo XIX regularam a transmisso da propriedade imvel.

    68 Para BORGES mesmo aps a previso no Cdigo Civil de 1916 de que a transmisso da propriedade imvel ocorria com a transcrio do ttulo no registro, a inscrio da clausula constituti nas escrituras pblicas continuava necessria. Nas palavras do autor, A clusula, muitas vzes, principalmente em questes possessrias, produz efeitos jurdicos apreciveis e decisivos, de modo que de tda prudncia que ainda seja inserta nas escrituras e contratos em que h transferncia de posse. O Registro Torrens no Direito Brasileiro. So Paulo: Edio Saraiva, 1960. p.14.69 TEIXEIRA DE FREITAS, Augusto. Consolidao das Leis Civis. Rio de Janeiro: Typographia Universal de Laemmert, 1865. p.CLVI.70 Direito das Cousas. Rio de Janeiro: Jacintho Ribeiro dos Santos, 1908. p. 165.

    34

  • At 1822, a populao podia adquirir, conforme a legislao vigente, a

    propriedade imvel por meio de sesmarias doadas pela Coroa. Segundo FAORO, no incio do

    sculo XIX, o sistema de sesmarias na prtica j havia chegado ao fim. A terra no mais era

    cedida pelo Estado, era adquirida pela herana, pela doao, pela compra e venda e, sobretudo,

    pela ocupao, sucesso e alienao da posse.71

    CIRNE LIMA confirmava essa assertiva ao afirmar que a Resoluo de 17 de julho de

    1822 apenas sancionou fato j consumado, ou seja, o regime de sesmaria no mais pertencia

    estrutura territorial brasileira. O mesmo autor ressaltava, que se apoderar de terras devolutas e

    cultiv-las tornou-se to comum entre os colonizadores que, com o tempo, transformou-se em

    modo legtimo de adquirir a propriedade. No incio era um modo de aquisio paralelo s

    sesmarias, mais tarde, o que as substituiu.72 Assim, a ocupao foi substituindo a concesso de

    terras feita pelo Poder Pblico.

    Na poca em que a sesmaria no s era prevista na lei, mas tambm aplicada na

    prtica, para se obter um pedao de terra era necessrio encaixar-se em um desses dois casos:

    primeiro, ter bom relacionamento com os representantes de Portugal na Colnia, j que muitas

    vezes ela era concedida em agradecimento a algum servio prestado ao rei; segundo, no

    tendo agradecimentos a receber, a pessoa deveria provar que era um homem de posses, ou

    seja, que tinha recursos suficientes para investir em um latifndio exportador de cana-de-

    acar e em seu prprio engenho. Esta exigncia surgiu a partir da instalao do Governo-

    Geral, quando a concesso de sesmaria deixou de ter como finalidade exclusiva a ocupao e

    defesa do territrio para visar o aumento das exportaes.73 A partir de ento, a propriedade

    sesmarial passou a ser condicionada, exigindo-se o cultivo para a manuteno da posse e

    obteno do domnio.74

    Apesar da exigncia legal de aproveitamento do solo para a permanncia do

    domnio e da previso de reas mximas para doao, a ausncia de fiscalizao

    71 Os Donos do Poder; formao do patronato poltico brasileiro. 5ed., Porto Alegre: Globo, 1958. p. 409/vol. 2.72 Pequena Histria Territorial do Brasil: Sesmarias e Terras Devolutas. 2ed., Porto Alegre: Sulina, 1954. p. 43 e 47.73 Ibidem., p. 36.74VARELA, Laura Beck. Das sesmarias propriedade moderna: Um estudo de histria do direito brasileiro. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p.121.

    35

  • governamental permitiu que a lei no fosse aplicada como prevista. Dessa forma, houve a

    concentrao territorial ligada a um grupo restrito, que apesar de possuir a terra no a

    explorava.

    A tendncia para o latifndio parecia estar arraigada na cultura dos colonizadores.

    At mesmo a ocupao, que inicialmente diferenciava-se das sesmarias por envolver apenas

    pequenas propriedades para o cultivo agrcola do colono livre e seus familiares, mudou de

    aspecto. Os posseiros, contrariando o costume que autorizava a ocupao desde que houvesse

    o efetivo cultivo75, conforme proviso de 14 de maro de 1822, passaram a acumular cada vez

    mais terra, deixando parte dela improdutiva.

    Com o intuito de conter essa situao, uma Resoluo de Consulta da Mesa de

    Desembargo do Pao, de 17 de julho de 1822, assinada por Jos Bonifcio, suspendeu a

    concesso de sesmarias at a convocao da Assemblia Constituinte76. No ano seguinte, essa

    deciso foi ratificada numa proviso do Desembargo. Apesar de se prever que a questo da

    terra seria objeto de discusso na Assemblia Constituinte, no foi o que aconteceu.77

    A Carta Constitucional de 1824 no fez qualquer referncia s sesmarias, apenas

    previu em seu art. 179, dirigido s garantias fundamentais do cidado, a proteo do direito de

    propriedade. Com isso, aboliu o confisco e consagrou o respeito propriedade, assegurando

    prvia indenizao quando o bem fosse desapropriado por utilidade ou necessidade pblica.

    Segundo o entendimento de PIMENTA BUENO, o fruto do trabalho do homem pertencia

    unicamente ao homem, por isso a propriedade devia ser-lhe garantida em toda sua plenitude,

    independente se constitua bem mvel, imvel, corpreo, incorpreo.78 No entanto, o autor 75 A proviso de 14 de maro de 1822 estimulava a ocupao na medida em que determinava que posses de terrenos cultivados prevaleciam sobre sesmarias posteriormente concedidas Hei por bem ordenar-vos procedais nas respectivas medies e demarcaes sem prejudicar quasqner possuidores, que tenho effectivas culturas no terreno, porquanto devem elles ser conservados nas suas posses, bastando para titulo as reaes ordens, porque as mesmas posses prevaleo s sesmarias posteriormente concedidas. ARARIPE, Tristo de Alencar. Cdigo Civil brazileiro ou Leis Civis do Brazil. Rio de Janeiro: Laemmert & C., 1885. p. 439. 76 Resoluo de 17 de julho de 1822 - Houve S.M.I. por bem resolver a consulta que subio sua augusta presena com data de 8 de julho do anno prximo passado pela maneira seguinte: Fique o suplicante na posse das terras que tem cultivado, e suspendo-se todas as sesmarias at a convocao da assembla constituinte Ibidem., p. 440.77 CARVALHO, Jos Murilo de. A construo da ordem: a elite poltica imperial. Teatro de Sombras: a poltica imperial. 3 ed., Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2003. p. 332.78 O autor completava dizendo que sem a garantia do direito de propriedade no h ampliao dos esforos ou fadigas, no h incremento ou expanso da riqueza e bem-estar social. Em seguida, questionava se algum agricultor se esforaria em plantar o trigo se no tivesse a garantia de que a propriedade sobre a produo seria

    36

  • entendia que como o homem vivia em sociedade, deveria ter deveres para com esta, para com

    a defesa do Estado ou outras relaes do bem comum. Assim, se o bem pblico legalmente

    verificado exigisse o uso ou o emprego da propriedade do cidado, a sociedade deveria ter o

    direito de realizar a desapropriao, desde que existisse uma lei prevendo os casos em que

    caberia tal medida, regras que regulassem a indenizao e que estabelecessem que antes desta

    ser previamente realizada, no haveria desapropriao.79

    Como a Carta Constitucional no previu a questo da terra e nenhuma lei veio

    completar esta lacuna, o Brasil passou por um perodo de total anomia quanto aos bens

    imveis. Alm das Ordenaes Filipinas que dispunham sobre a transmisso da propriedade,

    nenhuma outra legislao tratava da matria. O perodo foi designado pelos autores como

    extralegal ou de posses, e correspondeu aos anos de 1822 a 1850, quando foi promulgada a Lei

    de Terras. Durante este perodo, foram poucas as tentativas do governo de solucionar a

    questo. As ocupaes de bens imveis j to comuns na poca das sesmarias80, tornaram-se

    ainda mais corriqueiras. Segundo RICARDO PEREIRA LIRA, nesse perodo a situao da terra no

    Brasil enquadrava-se em um desses casos: sesmarias concedidas e regularizadas; sesmarias em

    que os concessionrios s tinham a posse e no o domnio pela falta de uma das exigncias

    legais; terras ocupadas sem ttulo; terras que nunca tinham sido concedidas e terras devolutas,

    ou seja, as dadas em sesmaria que tinham cado em comisso revertendo ao patrimnio

    imperial.81

    Essa catica situao da propriedade imvel, aliada ao problema da mo-de-obra,

    fez a elite brasileira reavaliar a necessidade de uma poltica de terras. Como resposta aos

    anseios desse grupo, ao tentar regularizar a propriedade rural e fornecer trabalho de acordo

    com as necessidades e condies da poca, surgiu a Lei de Terras de 1850. O projeto foi

    discutido pelo Conselho de Estado, em 1842, e enviado a Cmara dos Deputados no ano

    sua. Direito Pblico Brasileiro e anlise da Constituio do Imprio. Rio de Janeiro: Jos Bushatsky Editor, 1958. p. 419 e 420. 79 Ibidem., p. 420.80 Conforme escreve RUY CIRNE LIMA, Apoderar-se de terras devolutas e cultiv-las tornou-se cousa corrente entre os nossos colonizadores, e tais propores essa prtica atingiu que pde, com o correr dos anos, vir a ser considerada como modo legtimo de aquisio de domnio, paralelamente a princpio, e, aps, em substituio ao nosso to desvirtuado regime de sesmarias. Pequena Histria Territorial do Brasil: Sesmarias e Terras Devolutas. 2ed., Porto Alegre: Sulina, 1954. p. 47.81 Campo e cidade no ordenamento jurdico brasileiro. Rio de Janeiro: Riex, 1991. p. 24.

    37

  • seguinte. Toda essa tramitao, que teve fim apenas em 1850, ser objeto de estudo no

    prximo item. No momento, a anlise centrar-se- na Lei Oramentria n. 317 de 1843 que

    colocou em destaque outra preocupao daquele tempo.

    Como j foi dito, por muitos anos, no Brasil, o trfico e a compra de escravos eram

    as alternativas mais usuais para aplicao de capital. Com as constantes ameaas inglesas

    escravido negra, as pessoas passaram a procurar outra maneira de investimento. Uns

    gastaram seu dinheiro adquirindo grandes volumes de mercadorias importadas, outros

    passaram a investir em negcios prprios e em ttulos, buscando ampliar ainda mais sua

    fortuna.

    Esses novos investidores apoiaram-se no Banco do Brasil, na poca, de

    propriedade de Irineu Evangelista de Souza. Irineu, por meio da casa bancria, pegava

    dinheiro daqueles que sem ter mais a opo tradicional desejavam guardar seu capital com

    segurana e receber pequenos rendimentos por meio de juros, e emprestava a produtores

    necessitados a baixo custo.

    Essa nova situao estimulou a economia. O capital at ento retido, destinado

    unicamente ao trfico negreiro, passou a buscar novas alternativas, sendo utilizado no s na

    agricultura, mas tambm no comrcio, servios e at em uma incipiente indstria (a maioria de

    propriedade do prprio Irineu Evangelista). Com a economia estimulada, um futuro

    crescimento econmico parecia prximo, mas para isso era necessrio organizar uma

    legislao coerente com esse momento histrico.

    O sistema capitalista exige uma propriedade apta a ser objeto de emprstimos.

    Aquele que deseja obter capital para qualquer ordem de investimento precisa garantir o seu

    pagamento e, para isso, o instituto jurdico da hipoteca torna-se indispensvel. Um emprstimo

    seguro possibilita maior quantidade de dinheiro, garantido a juros menores.

    O deputado J. M. Pereira da Silva, na sesso de 18 de maro de 1843 defendeu

    perante a Comisso de Justia Civil o entendimento de que era absolutamente necessria a

    adoo de uma lei que fixasse regras invariveis e um sistema claro de hipotecas, com o

    objetivo de assegurar a propriedade individual e acabar com os abusos que uma legislao

    38

  • civil imperfeita permitia.82 O mesmo deputado apresentou um projeto sobre a matria em 1 de

    abril de 184383. Diante da iniciativa, a Comisso de Justia Civil, em sesso do dia 19 de abril,

    entendeu estar exonerada de organizar um projeto sobre hipotecas, j que o deputado tinha

    oferecido um, limitando-se unicamente a apresentar um parecer aps a discusso da matria84.

    O projeto de J. M. Pereira da Silva acabou esquecido, no sendo nem mesmo utilizado como

    base para a elaborao de leis posteriores sobre o instituto.

    Foi nesse momento que surgiu a Lei Oramentria n. 317, de 21 de outubro de

    1843, que apesar de ter como objetivo principal fixar receita e orar despesa para o exerccio

    de 1843-1844 e 1844-1845, estabeleceu em seu artigo 35 o Registro Hipotecrio com o fim

    restrito de inscrever hipotecas. Ressalta-se que esse dispositivo era o nico da lei que fazia

    referncia ao registro hipotecrio, no sendo resultado do projeto de Pereira da Silva, mas sim

    uma acanhada demonstrao da (des) preocupao dos legisladores com a matria. A Lei

    Oramentria de 1843 previa:

    Art. 35 Fica creado hum Registro geral de hipotecas, nos lugares e pelo modo que o

    Gverno estabelecer nos seus Regulamentos

    Esse artigo foi regulamentado em 14 de novembro de 1846 pelo decreto n. 482,

    sem, contudo, fazer meno transcrio das transmisses da propriedade imobiliria em

    nenhum de seus 33 artigos. O novo decreto referia-se unicamente hipoteca, dispondo acerca

    do local em que ela deveria se registrada (art. 2 e 3), a pessoa responsvel em requerer o

    registro (art. 5) e em execut-lo (art. 1), os documentos necessrios (art. 6), o procedimento

    (art. 10 a 12), os efeitos do registro (art. 13 a 15), os casos de averbao (art. 18 a 20), os

    livros (art. 22 e 23), a responsabilidade dos Tabelies de registro (art. 29), os emolumentos

    cobrados (art. 32), entre outros.

    Assim, uma lei prescrevendo sobre a hipoteca surgiu antes de qualquer poltica

    que visasse a corrigir a situao fundiria catica por que passava o Brasil recm

    82 BRASIL. Annaes do Parlamento Brazileiro. Camara dos Srs. Deputados. Primeira Sesso de 1843. Tomo Segundo. Rio de Janeiro: Typographia da Viva Pinto & Filho, 1882. p. 324. 83 BRASIL. Annaes do Parlamento Brazileiro. Camara dos Srs. Deputados. Primeira Sesso de 1843. Tomo Segundo. Rio de Janeiro: Typographia da Viva Pinto & Filho, 1882. p. 595 e 596.84 BRASIL. Annaes do Parlamento Brazileiro. Camara dos Srs. Deputados. Primeira Sesso de 1843. Tomo Segundo. Rio de Janeiro: Typographia da Viva Pinto & Filho, 1882. p.792.

    39

  • independente. Apesar das Ordenaes Filipinas tratarem da transmisso de bens imveis, que

    ocorria pela tradio, no havia qualquer previso de delimitao ou registro de terras. Na

    verdade, o Alvar de 5 de outubro de 1795 havia exigido que se medissem e demarcassem as

    sesmarias, no entanto, muito pouco foi feito nesse sentido. A ineficcia da determinao foi

    tamanha, que um ano depois, o Alvar de 10 de dezembro suspendia a exigncia, oferecendo

    como justificativa o nmero nfimo de geometras, motivo esse, alis, que foi utilizado outras

    vezes.85

    Quanto ao registro, DUARTE COELHO PEREIRA (primeiro donatrio da capitania

    hereditria de Pernambuco por carta de doao de 10 de maro de 1534), instituiu um registro

    da carta de sesmaria no livro das datas em Pernambuco com carter meramente administrativo,

    objetivando ter maior controle sobre as distribuies. No entanto, com o Regimento dos

    Provedores em 1549, o registro passou a ser obrigatrio, sujeitando a sua no realizao em

    prazo determinado, perda da concesso. O registro deveria ser feito na Provedoria e tinha

    como funo informar a autoridade sobre reas ainda desocupadas.86 Acontece que, mais uma

    vez a exigncia no foi cumprida por muitos sesmeiros87 e a Coroa, em poucos casos,

    penalizou os irregulares. Dessa feita, perdeu-se a oportunidade de obter-se um quadro, ainda

    que incipiente, da situao das terras na Colnia.

    Como difcil pensar em um registro de hipotecas sem que haja um registro das

    transmisses da propriedade imvel, o dispositivo da Lei Oramentria e seu regulamento no

    tiveram grande repercusso jurdica e econmica.88 A razo do surgimento de uma legislao

    to insuficiente explicada por CALDEIRA, para quem havia total desinteresse de grande parte

    da sociedade em regular o sistema de crdito, uma vez que a organizao mercantilista do

    trfico negreiro privilegiava o poder pessoal dos donos do dinheiro. Dessa maneira, em

    1848, ainda no havia no pas ttulos com garantias legais, a ausncia de normas jurdicas

    85 COSTA PORTO, Jos da. O sistema sesmarial no Brasil. Braslia: Universidade de Braslia, [1979?]. p. 110 e 113.86 COSTA PORTO, Jos da. O sistema sesmarial no Brasil. Braslia: Universidade de Braslia, [1979?]. p. 97-99.87 Conforme COSTA PORTO, Depois de janeiro de 1699, havia casos em que o colono, recebendo a carta, no a registrava por astcia, tentando fugir ao pagamento do foro, segundo se adverte em parecer de 1739: alguns colonos no haviam efetuado o pagamento do foro - . Ibidem., p. 98.88 BORGES, Joo Afonso. O Registro Torrens no Direito Brasileiro. So Paulo: Saraiva, 1960. p.16.

    40

  • sobre a matria fazia com que a cobrana de dvidas perante a justia se tornasse praticamente

    impossvel e a deciso sobre falncias e concordatas se arrastassem por anos. O malefcio

    trazido por essa situao era enorme, j que assegurar o crdito apenas por meio da garantia

    pessoal diminua a quantidade de capital emprestado e impedia o desenvolvimento de um

    sistema financeiro.89

    Se de um lado, grande parte da sociedade no se preocupava com o sistema de

    crdito, de outro, havia uma pequena parcela que lutava pela sua regulamentao. Nesse

    contexto, destacam-se Irineu Evangelista e todos aqueles que, com sua influncia,

    conseguiram que a discusso sobre a matria fosse pelo menos iniciada entre os legisladores.

    Da a incluso do artigo 35 na Lei Oramentria e o Regulamento de 1846.

    Como grande parte da sociedade estava desinteressada por mudanas, provvel

    que as insuficincias da Lei Hipotecria no tenham preocupado, naquele momento, esses

    mesmos legisladores. Todavia, mais tarde, com a ampliao das relaes comerciais e o

    aumento do valor da propriedade imvel, eles perceberam que era preciso a promulgao de

    uma nova lei. E para que a lei garantisse um bom Registro de Hipotecas, era indispensvel a

    previso de um sistema registral.

    2.3. LEI N. 601 DE 1850: REGISTRO DO VIGRIO

    Foi apenas em 1842 que a questo da terra (e no s da hipoteca) retornou pauta,

    quando o ministro do Imprio Cndido Jos de Arajo Viana, por avisos de 6 de junho e 8 de

    julho, requereu Seo dos Negcios do Imprio do Conselho de Estado que elaborasse

    projetos legislativos sobre sesmarias e colonizao estrangeira, ou seja, imigrao.90

    Na realidade, segundo CALDEIRA, como o gabinete conservador vinha, s

    escondidas, preparando o pas para o fim do trfico negreiro, ele j tinha designado alguns

    amigos para elaborar um projeto de lei sobre terras, que assegura