juliano zaiden benvindo - ativismo judicial no stf. um debate sobre os limites da racionalidade

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Ativismo Judicial no Supremo Tribunal Federal: Um Debate sobre os Limites da Racionalidade Juliano Zaiden Benvindo 1 Quando lançamos o olhar sobre as transformações que têm ocorrido na prática decisória do Supremo Tribunal Federal nos últimos anos, normalmente as percepções são de uma ampliação de sua presença em temas sensíveis no espectro do debate político, uma adoção crescente, especialmente por alguns de seus Ministros, de metodologias constitucionais consagradas internacionalmente e, em especial, sua tentativa de se consolidar como corte constitucional mais à semelhança do que se observa em outros países, especialmente da Europa. Não é estranho, nesse contexto, que se observe um de seus Ministros, Gilmar Mendes, afirmar que “o Congresso tem condições mais democráticas para legislar, com audiências públicas, mas na omissão legislativa é preciso decidir” 2 ou que “a Corte Constitucional existe para tomar as decisões mais racionais” 3 . Por outro lado, reações começam a aparecer a essa movimentação. O Senador Pedro Taques (PDT-MT), por exemplo, enfatiza que “estamos caminhando para o ativismo judicial, em que onze deuses decidem o que é bom. Não é legítimo numa democracia. Eles não foram eleitos” 4 . Do mesmo modo, o jurista Ives Gandra Martins deixa bem claro que “[prefere] o pior dos congressos ao melhor do STF para fazer leis” 5 . Enfim, a verdade é que, sim, estamos em um novo momento da prática judicial constitucional, um momento que demanda uma reflexão cuidadosa e uma compreensão da complexa relação entre política e direito, que, nas circunstâncias, parece ter adquirido uma forte motivação para sua problematização. Essa nova configuração de nossa realidade constitucional e, em particular, os movimentos realizados pelo Supremo Tribunal Federal resgatam o debate sobre o ativismo judicial, que começa a ganhar fôlego no Brasil. No âmbito internacional, o tema já há muito tem sido fortemente trabalhado por autores como Mark Tushnet 6 , Jeremy Waldron 7 , Larry Kramer 8 , Robert Cover 9 , Ingeborg Maus 10 . No Brasil, alguns autores 1 Professor de Direito Público da Universidade de Brasília. Doutor em Direito pela Universidade Humboldt de Berlim e pela Universidade de Brasília. É coordenador dos Grupos de Pesquisa “Observatório do Supremo Tribunal Federal” e “Pensamento Social”, ambos da UnB. 2 Revista Isto É, 20/07/2011 3 MENDES, Gilmar. “Entrevista – Gilmar Mendes”. Correio Braziliense. Política. Brasília-DF. 17.08.08. 4 Revista Isto É, 20/07/2011 5 Jornal do Commercio, 28/03/2011. 6 TUSHNET, Mark. Taking the Constitution Away from the Courts. Princeton: Princeton University Press, 1999. 7 WALDRON, Jeremy. Law and Disagreement. Oxford: Oxford University Press, 1999. 8 KRAMER, Larry. The People Themselves: Popular Constitutionalism and Judicial Review. Oxford: Oxford University Press, 2004. 9 COVER, Robert M. The Origins of Judicial Activism in the Protection of Minorities. In: The Yale Law Journal. Vol. 91, N. 7, Jun. 1982.

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Ativismo  Judicial  no  Supremo  Tribunal  Federal:  Um  Debate  sobre  os  Limites  da  Racionalidade  

Juliano Zaiden Benvindo1

Quando lançamos o olhar sobre as transformações que têm ocorrido na prática decisória do Supremo Tribunal Federal nos últimos anos, normalmente as percepções são de uma ampliação de sua presença em temas sensíveis no espectro do debate político, uma adoção crescente, especialmente por alguns de seus Ministros, de metodologias constitucionais consagradas internacionalmente e, em especial, sua tentativa de se consolidar como corte constitucional mais à semelhança do que se observa em outros países, especialmente da Europa. Não é estranho, nesse contexto, que se observe um de seus Ministros, Gilmar Mendes, afirmar que “o Congresso tem condições mais democráticas para legislar, com audiências públicas, mas na omissão legislativa é preciso decidir”2 ou que “a Corte Constitucional existe para tomar as decisões mais racionais”3. Por outro lado, reações começam a aparecer a essa movimentação. O Senador Pedro Taques (PDT-MT), por exemplo, enfatiza que “estamos caminhando para o ativismo judicial, em que onze deuses decidem o que é bom. Não é legítimo numa democracia. Eles não foram eleitos”4. Do mesmo modo, o jurista Ives Gandra Martins deixa bem claro que “[prefere] o pior dos congressos ao melhor do STF para fazer leis”5. Enfim, a verdade é que, sim, estamos em um novo momento da prática judicial constitucional, um momento que demanda uma reflexão cuidadosa e uma compreensão da complexa relação entre política e direito, que, nas circunstâncias, parece ter adquirido uma forte motivação para sua problematização.

Essa nova configuração de nossa realidade constitucional e, em particular, os movimentos realizados pelo Supremo Tribunal Federal resgatam o debate sobre o ativismo judicial, que começa a ganhar fôlego no Brasil. No âmbito internacional, o tema já há muito tem sido fortemente trabalhado por autores como Mark Tushnet6, Jeremy Waldron7, Larry Kramer8, Robert Cover9, Ingeborg Maus10. No Brasil, alguns autores

1 Professor de Direito Público da Universidade de Brasília. Doutor em Direito pela Universidade Humboldt de Berlim e pela Universidade de Brasília. É coordenador dos Grupos de Pesquisa “Observatório do Supremo Tribunal Federal” e “Pensamento Social”, ambos da UnB. 2 Revista Isto É, 20/07/2011 3 MENDES, Gilmar. “Entrevista – Gilmar Mendes”. Correio Braziliense. Política. Brasília-DF. 17.08.08. 4 Revista Isto É, 20/07/2011 5 Jornal do Commercio, 28/03/2011. 6 TUSHNET, Mark. Taking the Constitution Away from the Courts. Princeton: Princeton University Press, 1999. 7 WALDRON, Jeremy. Law and Disagreement. Oxford: Oxford University Press, 1999. 8 KRAMER, Larry. The People Themselves: Popular Constitutionalism and Judicial Review. Oxford: Oxford University Press, 2004. 9 COVER, Robert M. The Origins of Judicial Activism in the Protection of Minorities. In: The Yale Law Journal. Vol. 91, N. 7, Jun. 1982.

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começaram a se debruçar sobre o tema 11 , tais como Jacinto Nelson de Miranda Coutinho12, Umberto Machado Oliveira13, Elival da Silva Ramos14. Essa é uma tendência que deve se manter constante em nossa realidade, na medida em que, no constitucionalismo atual, os embates entre a política e o direito parecem realmente se dar institucionalmente entre o parlamento e o judiciário, sobretudo quando se avança o processo de democratização. Há, de fato, “uma difusa tendência a estender de maneira considerável o papel dos juízes e, em particular, o controle de constitucionalidade15.

Este artigo visa a examinar esse tema a partir da dicotomia constitucionalismo/democracia no âmbito da aplicação do direito. A preocupação será mostrar que, por trás da ampliação da presença do Supremo Tribunal Federal em diferentes temas da prática social, se consolida, contudo, na cultura constitucional brasileira, uma compreensão que tende a enfraquecer o sentido deontológico dos direitos fundamentais em favor da interpretação da Constituição como uma “ordem concreta de valores”. Isso também ocorre por intermédio da adoção maciça do princípio da proporcionalidade como solução racional – para não dizer mágica – de importantes controvérsias constitucionais. Aqui a questão do enfraquecimento do sentido deontológico da Constituição é revestido pela crença de que a adoção consistente de uma determinada metodologia é capaz de produzir o resultado adequado à controvérsia. Enfim, a partir do sentido fraco que a Constituição passa a ter, abrem-se soluções que trazem a dimensão axiológica para a aplicação do direito sem que haja o efetivo filtro institucional que poderia ensejar um melhor relacionamento entre as atividades do parlamento e o judiciário. Em outras palavras, com o enfraquecimento da Constituição, agora interpretada como uma carta de valores, promove-se a direta confusão entre discursos de justificação e discursos de aplicação 16 . Nada está mais diretamente relacionado à discussão do ativismo judicial no contexto brasileiro. E nada está mais

10 MAUS, Ingeborg. Judiciário como Superego da Sociedade: O Papel da Atividade Jurisprudencial na “Sociedade Órfã”. In: Novos Estudos CEBRAP, N. 58, Nov. 2000, pp. 183-202. 11 Em meu livro On The Limits of Constitutional Adjudication: Deconstructing Balancing and Judicial Activism (Heidelberg; New York: Springer, 2010), ainda sem tradução para o português, examinei o problema desse conflito entre política e direito, no contexto do debate sobre o ativismo judicial, a partir de uma análise comparada entre o Brasil e a Alemanha. 12 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Constituição e Ativismo Judicial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. 13 OLIVEIRA, Umberto Machado. Ativismo Judicial. Curitiba: Juruá, 2010. 14 RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial - Parâmetros Dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. 15 FIORAVANTI, Maurizio. Constitucion. De la Antigüedad a Nuestros Días. Madrid: Editorial Trotta, 2001, p. 164. Tradução livre. 16 Adota-se aqui a terminologia de Klaus Günther. Para ele, discursos de justificação de uma norma são relevantes apenas para a norma, independentemente de sua aplicação a um dado caso concreto. Eles concernem apenas à validade da norma por meio da consideração, em abstrato, de todos os possíveis interesses existentes em conformidade com as circunstâncias atuais. É, portanto, o típico discurso existente no âmbito do parlamento, que foca na validade do argumento. Por sua vez, os discursos de justificação já assumem, de antemão, a validade normativa e se centram nas particularidades de uma determinada realidade. Seu foco não é a validade da norma, mas, sim, sua adequação a uma situação particular, conduzindo, assim, o raciocínio jurídico a uma dependência com os fatos e possíveis reinterpretações das normas válidas aplicáveis a um certo caso. É o típico discurso da jurisdição, portanto. Para maior compreensão do tema, vide GÜNTHER, Klaus. Der Sinn für Angemessenheit: Anwendungsdiskurse in Moral und Recht. Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 1988.

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conectado a uma compreensão equivocada dos limites da racionalidade no âmbito da aplicação do direito constitucional.

2.  Os  Limites  da  Racionalidade  Jurídica:  Breve  Problematização  

Não raramente as críticas dirigidas ao ativismo judicial estão espelhadas em concordâncias ou não com determinadas decisões tomadas pelas cortes constitucionais. Assim, por exemplo, decisões polêmicas como a que tratou da união homoafetiva17 ou a que estendeu a lei n° 7.783/89, referente ao direito de greve na iniciativa privada, aos servidores públicos 18 são normalmente acompanhadas dos dizeres mais inflamados favoráveis ou contrários ao ativismo judicial. Aqui há uma combinação de interesses diretamente relacionados ao mérito do caso propriamente com uma concepção mais abstrata ou teorética do sentido do ativismo judicial. Porém, parece que as questões referentes a esse novo olhar que se abre na prática constitucional brasileira precisa ir mais diretamente ao problema da racionalidade que passou a ser construída como possível argumento legitimador dessa configuração mais interveniente do Supremo Tribunal Federal em diferentes temas da vida social. As palavras anteriormente apresentadas do Ministro Gilmar Mendes sobre a capacidade da corte constitucional de proferir decisões mais racionais têm um poder persuasivo acentuado em termos de legitimação do discurso. A dúvida é, contudo, se esse argumento pretensamente racional é capaz de justificar a controversa percepção de uma maior politização das decisões do Supremo Tribunal Federal.

É um tema complexo. Os estudos sobre racionalidade do discurso jurídico esbaram naturalmente em um problema maior de matriz filosófica, que já há muito não é dos mais pacíficos. De perspectivas que tratam o discurso jurídico como um caso especial do discurso moral19 às que afirmam apenas a co-originalidade entre ambos discursos – o moral e o jurídico20, a teoria constitucional convive com dilemas de fundamentação que promovem resultados práticos diversos no âmbito da aplicação do direito. Por exemplo, apenas para focar nessas duas perspectivas anteriormente indicadas, na prática constitucional torna-se altamente natural a adoção de técnicas metodológicas ligadas a estrutura do balanceamento, tal como o princípio da proporcionalidade, quando o discurso jurídico é concebido como uma espécie do discurso moral. Essa conclusão, contudo, é altamente questionável quando se passa a trabalhar ambos os discursos – o moral e o jurídico – na premissa da co-originalidade e, não, da especificidade21.

17 ADI 4227 e ADPF 132 18 MI 670, 708 e 712. 19 Vide ALEXY, Robert. Theorie der juristischen Argumentation. Die Theorie des rationalen Diskurses als Theorie der juristischen Begründung. Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 1983. 20 Vide HABERMAS, Jürgen. Faktizität und Geltung. Beiträge zur Diskurstheorie des Rechts un des demokratischen Rechtsstaats. Frankfurt a.M.: 1998, p. 135-150. 21 Vide a crítica de Habermas a Alexy exatamente a partir dessa confusão entre moral e direito em HABERMAS, Jürgen. Reply to Symposium Participants, Benjamin N. Cardozo School of Law. In: Cardozo Law Review, Vol. 17, 1996, p. 1529-1535.

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Se for para radicalizar ainda mais esse debate, é possível perceber os problemas do limite da racionalidade jurídica quando se volta a análise para os dois aspectos principais que a conformam: a justiça, retratada especialmente pela dimensão da alteridade, e a historicidade, que ganha contornos bastante intrincados quando lançada para o âmbito institucional do direito. Primeiramente, a questão da alteridade, que traz o tema da justiça, não é passível das mais simples concordâncias doutrinárias. Nesse aspecto, há divergências centrais sobre sua compreensão nas dimensões de finitude de nossa realidade, incapaz de incluir inteiramente o Outro em seus mais diferentes contextos. É o que se verifica, por exemplo, na percepção mais radicalizada da alteridade no âmbito da justiça, que Derrida tão brilhantemente trabalhou em sua obra Força de Lei22, ao apontar as aporias que estão presentes no ato de julgar, que decorrem da própria complexidade dessa prática de lidar com o paradoxo da imprescindibilidade da busca da justiça e sua inevitável impossibilidade. Ou concepções que irão se centrar na questão do reconhecimento23 a partir de uma rediscussão de algumas premissas hegelianas; outras que irão resgatar o debate liberal sobre a tolerância e o respeito, mas agora fortemente inseridos no contexto de solidariedade por vias de uma razão comunicativa24; ou mesmo algumas que irão desenvolver uma interpretação mais ligada a uma eticidade comunitária contra uma perspectiva de racionalidade moral universal25. Por isso, se a questão da alteridade impõe limites à racionalidade jurídica, especialmente porque insere a impossibilidade da inclusão plena do Outro no direito, ela já nasce problemática em função das diferentes interpretações possíveis sobre esse processo de sua inserção em sociedades democráticas complexas e plurais.

Mas as complicações sobre os limites da racionalidade jurídica não se limitam a esse aspecto envolvendo o tema da alteridade. Elas atingem o outro lado dessa dicotomia, que se refere à historicidade, agora compreendida a partir das práticas realizadas dentro das instituições do direito. A historiografia já há muito se choca com diferentes percepções de como entender, compreender e interpretar a história. Autores como Fernand Braudel26, Reinhard Koselleck27 e Peter Burke28 são exemplos de um novo momento de se pensar a história em sua devida complexidade, não apenas como uma sequência de eventos, mas algo que envolva a temporalidade em seu sentido mais pleno. O recado dado pela hermenêutica, especialmente após a publicação da magistral obra Ser e Tempo de Martin Heidegger29, foi de um impacto talvez sem precedentes no processo de levar a temporalidade para o centro do ato de compreensão e isso, inevitavelmente, teve reflexos profundos no papel que a história adquiriu para o direito. Ela, sem maiores rodeios, passou a significar a outra vertente dos limites da racionalidade jurídica, que se 22 DERRIDA, Jacques. Force de Loi. Le “Fondement Mystique de l’Autorité”. Paris: Éditions Galilée, 1994. 23 HONNETH, Axel. Kampf um Anerkennung. Zur moralischen Grammatik sozialer Konflikte. Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 1994. 24 HABERMAS, Jürgen. Die Einbeziehung des Anderen. Studien zur politischen Theorie. Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 1999. 25 Vide MACINTYRE, Alasdair. After Virtue. A Study in Moral Theory. Notre Dame: University of Notre Dame, 2007. 26 BRAUDEL, Fernand. Écrits sur L’Histoire. Paris: Flammarion, 1993. 27 Vide KOSELLECK, Reinhard: Zur Semantik geschchtlicher Zeiten. Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 1988. 28 Vide BURKE, Peter. History and Social Theory. Cambridge: Politiy Press, 2005. 29 Vide HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. São Paulo: Vozes, 2006.

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coloca em uma dicotomia paradoxal com a justiça, entendida no sentido mais complexo do debate sobre a alteridade anteriormente aqui suscitado. Não é sem motivo que autores como Hans-Georg Gadamer, seguindo a mensagem heideggeriana, já começaram a se interessar pelo direito como um exemplo fundamental para se trabalhar a temporalidade no processo interpretativo. E, mais recentemente, o problema da história institucional tornou-se o mote talvez mais central, juntamente com a justiça, em teorias voltadas também para aplicação do direito, como se observa em Ronald Dworkin30 e Jürgen Habermas31.

Enfim, a grande conclusão a que se quer chegar a partir dessa leve digressão sobre os limites da racionalidade jurídica é que não é possível trabalhar o ativismo judicial dissociado dessa complexidade. Não que não seja da mais alta relevância entender esse tema levando em consideração determinadas análises diretamente vinculadas a uma decisão aqui e ali, como normalmente ocorre. Aliás, essa ligação com a realidade de julgamentos é mais do que necessária para as conclusões sobre tão importante assunto. Porém, é essencial que se proceda também a uma análise sobre os fundamentos do discurso jurídico e, especialmente, o discurso jurídico proferido pelas cortes constitucionais. E isso, infelizmente, tem sido pouquíssimo explorado pela doutrina brasileira. Nossa tradição constitucional parece conviver com uma carência acentuada de críticas às decisões da corte. O que prevalece, infelizmente, é o olhar observador e reverenciador dos argumentos apresentados pelo Supremo Tribunal Federal. “A reflexão sobre as atividades do STF é um esforço escasso na teoria constitucional brasileira”32, já alertava Baracho Júnior. O tema referente ao ativismo judicial torna-se, por conseguinte, uma questão praticamente casuísta, mas pouco analítica das questões mais estruturantes da relação entre política e direito, que, como já introduzido, esbarra em questões sobre a compreensão da justiça e da historicidade, temas nada triviais.

3.  A  Racionalidade  Limitada  e  o  Ativismo  Judicial  do  STF:  o  Avanço  do  Discurso  Axiológico  

As diferentes perspectivas sobre os limites da racionalidade no âmbito do ativismo judicial precisam ser enfrentadas, caso se deseje compreender, em sua devida dimensão, as dificuldades da relação entre política e direito em um contexto de afirmação do princípio da separação de poderes. Porém, o propósito aqui é apenas instigar a discussão, não exatamente aprofundá-la33. Quer-se mais afirmar que, por trás de posições normalmente tomadas pelo Supremo Tribunal Federal em suas decisões, podem se encontrar concepções as mais diversas sobre o sentido da racionalidade jurídica na prática

30 Vide DWORKIN, Ronald. Law’s Empire. Cambridge: Harvard University Press, 1996. 31 Vide HABERMAS, Jürgen. Faktizität und Geltung, p. 238-291. 32 BARACHO JÚNIOR, José Alfredo de Oliveira. O Supremo Tribunal Federal e a Teoria Constitucional In: SAMPAIO, José Adércio Leite.. 15 Anos de Constituição: História e Vicissitudes. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 211. 33 Para uma análise mais detida sobre esse assunto, vide meu livro On The Limits of Constitutional Adjudication: Deconstructing Balancing and Judicial Activism (Heidelberg; New York: Springer, 2010).

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decisória. Porém, nos últimos anos, uma dessas concepções passou a dominar parcela dos argumentos apresentados nas decisões daquela corte e sua presença tem, de fato, se tornado cada vez mais evidente. Trata-se do argumento, certamente não com a sofisticação doutrinária que ele acompanha, de que o discurso jurídico é um caso especial do discurso moral, aos moldes de um autor ultimamente muito influente em nossa realidade: Robert Alexy34. Talvez essa premissa referente à especificidade do discurso jurídico diante do moral não acarrete uma direta compreensão do leitor, mas possivelmente termos como balanceamento e princípio da proporcionalidade sejam mais notórios.

É bem verdade que Alexy nem de longe é o responsável pela construção do que se entende por princípio da proporcionalidade, que é, sim, um mecanismo argumentativo que, especialmente após a década de cinquenta, ganhou força no contexto do constitucionalismo alemão. Autores muito antes de Alexy já se debruçaram sobre o tema35 e interpretações diversas sobre seu significado e justificação foram construídas. Mas também é verdade que Alexy talvez tenha sido o autor de maior projeção internacional a trabalhar o assunto e, sem dúvida, o mais presente em decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal quando se está em discussão o princípio da proporcionalidade36. A razão para tanto, além da contemporaneidade do tratamento por ele dada à matéria, é que ele continuamente busca desenvolver a premissa de que o princípio da proporcionalidade é capaz de promover racionalidade ao discurso jurídico37, o que é feito pela apresentação da estrutura triádica das máximas da adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito (ou balanceamento). É um forte motivo para a construção de uma legitimidade discursiva por intermédio da racionalidade metódica38. A fala do Ministro Gilmar Mendes sobre a racionalidade das decisões da corte corrobora essa compreensão.

Além do mais, a premissa de que o discurso jurídico é um caso especial do discurso moral revela outra construção que ganha forte peso no contexto constitucional nacional, que é afirmação reiterada de que nossa Constituição é uma “carta de valores”. Não é sem motivo que, para Alexy, “a gradual satisfação de princípios corresponde à

34 Vide ALEXY, Robert. Theorie der juristischen Argumentation. Die Theorie des rationalen Diskurses als Theorie der juristischen Begründung. Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 1983. 35 Vide KRAUSS, Rupprecht von. Der Grundsatz der Verhältnismäßigkeit in seiner Bedeutung für die Notwendigkeit des Mittels in Verwaltungsrecht (Hamburg: Appel, 1955); LERCHE, Peter. Übermaß und Verfassungsrecht: zur Bindung des Gesetzgebers an die Grundsätze der Verhältnismäßigkeit und der Erfordelichkeit (Goldbach: Keip, 1961); SCHLINK, Bernhard. Abwägung im Verfassungsrecht (Berlin: Duncker & Humblot, 1976); HIRCHBERG, Lothar. Der Grundsatz der Verhältnismäßigkeit (Göttingen: Otto Schwartz & CO, 1981). 36 Em uma pesquisa simples na jurisprudência do STF, pôde-se encontrar, no mínimo, 32 referências à Robert Alexy. Vide, por exemplo, ADI 4451-MC-REF/DF (DJ 30/06/2011); RE 511961/SP (DJ 17/06/2009); ADPF 130/DF (DJ 30/04/2009); HC 84078/MG (DJ 05/02/2009). 37 Vide ALEXY, Robert. Theorie der Grundrechte. Frankfurt a. M: Suhrkam, 1994; ALEXY, Robert. Die Gewichtsformel. In: JICKELY, Joachim; KREUTZ, Peter; REUTER, Dieter. Gedächtnisschrift für Jürgen Sonnerschein. Berlin: de Gruyter, 2003; ALEXY, Robert. Constitutional Rights, Balancing, and Rationality. Ratio Juris, Vol. 16, N. 2, Jun/2003. 38 Vide ALEXY, Robert. Balancing, Constitutional Review, and Representation. International Journal of Constitutional Law, vol. 3, n. 4, 2005.

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gradual realização de valores”39, o que, em último momento, significa que, para ele, não há diferença efetiva entre princípios jurídicos e valores. Aliás, para Alexy, valores, especialmente quando o balanceamento está em análise, podem ser formulados em termos de princípios e princípios em termos de valores sem perda de sentido40. Essa conclusão decorre de sua tese do caso especial e é ela que corrobora, por sua vez, o princípio da proporcionalidade nos termos por ele defendidos. É um instrumento, afinal, que funciona perfeitamente para balancear princípios e valores de acordo com uma proporção, mas se torna altamente problemático quando princípios são entendidos em sua dimensão deontológica e em seu código binário lícito/ilícito41. Nessa compreensão deontológica do direito, afinal, não é possível haver princípios mais ou menos aplicáveis. Ao contrário, a partir de uma análise pormenorizada das especificidades do caso concreto, determina-se qual é o princípio adequado à situação entre os prima facie aplicáveis; não uma proporção entre eles42. Por isso, afirmar que a Constituição é uma “carta de valores” talvez traga muito desse sentido mais fraco da Constituição, que pode ter seus princípios balanceados em prol de qualquer valor coletivo considerado relevante pelo Supremo Tribunal Federal, como um valor econômico, político, religioso, etc. Naturalmente, isso levanta, mais uma vez, o debate sobre o ativismo judicial.

De qualquer forma, é sempre temerário caracterizar a prática de uma corte a partir da referência a uma concepção teórica. Afinal, a própria aplicação do que se denomina de princípio da proporcionalidade, na qualidade metodológica que Alexy apresenta, não é tão rigorosamente observada nas decisões da corte, apesar de que, em alguns casos, especialmente nos votos do Ministro Gilmar Mendes, há, sim, um cuidado em trabalhar tal princípio em um sentido rigorosamente metodológico que raramente se observa no contexto alemão, país que inspirou Alexy. Contudo, o que aparenta resolver o problema da racionalidade jurídica também oculta seus inerentes riscos e abafa muito da complexidade do ato de decidir. Esse paradoxo é que precisa ser mais bem refletido: a racionalidade jurídica tão defendida a partir da adoção do princípio da proporcionalidade e, por trás desse instrumento, da premissa do caso especial talvez não seja exatamente a mais adequada para se pensar a legitimidade da corte constitucional. Por quê?

4.   A   Concepção   de   Racionalidade   Limitada   como   Contra-­‐Argumento   ao  Argumento  Axiológico  

39 ALEXY, Robert. Theorie der Grundrechte, p. 125, tradução livre. 40 Ibid., p. 125, tradução livre. 41 Essa perspectiva focada no aspecto deontológico do direito pode ser observado em autores que enfatizam a prevalência de argumentos de justiça sobre concepções de bem. Vide, para tanto, RAWLS, John. A Theory of Justice. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1999; DWORKIN, Ronald. Law’s Empire. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1986; HABERMAS, Jürgen. Faktizität und Geltung. Beiträge zur Diskurstheorie des Rechts und des demorkatischen Rechtsstaats. Frankfurt a.M: Suhrkamp, 1992; GÜNTHER, Klaus. Der Sinn für Angemessenheit: Anwendungsdiskurse in Moral und Recht. Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 1988. 42 Vide GÜNTHER, Klaus. Der Sinn für Angemessenheit: Anwendungsdiskurse in Moral und Recht. Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 1988.

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A tese apresentada aqui sucintamente decorre de alguns supostos que já foram bem levemente apresentados nos tópicos anteriores. A partir da compreensão da intrincada relação entre constitucionalismo e democracia, que é a outra vertente da relação entre direito, sua história e prática, por um lado, e justiça como alteridade, pelo outro, pode-se dizer que o constitucionalismo brasileiro caminha para um processo que, se parece incrementar-se em termos de racionalidade, enfraquece-se em termos de legitimidade democrática. Essa conclusão pode indicar um paradoxo, especialmente quando vemos que exatamente o argumento centrado na racionalidade metodológica – como acontece, por exemplo, com a aplicação do princípio da proporcionalidade - surge como um importante contraponto ao problema da legitimidade das decisões judiciais. Novamente, aqui aparece a capacidade racional da corte como uma forma de legitimação de seu discurso. A qualidade “técnica” de suas decisões é, pois, ressaltada. Porém, a leve digressão anteriormente introduzida sobre as diferentes concepções que podem surgir sobre o significado e limites dessa racionalidade indicam, ao menos, que a concepção pautada na tese do caso especial e aplicada por intermédio do princípio da proporcionalidade talvez não seja suficientemente hábil a legitimar seu discurso. Afinal, a imediata conclusão de que um método é capaz de prover racionalidade à decisão não é tão pacífica assim. Aliás, depois do giro hermenêutico, tornou-se uma pressuposição fortemente combatida. E muito menos se poderia pensar que, por intermédio de sua adoção, se caminha para um processo de legitimação pelo discurso43. Há premissas que precisam ser mais bem exploradas anteriormente a essas conclusões. Entender a complexidade do discurso sobre a alteridade e a historicidade é, pois, um recado necessário a esse caminhar em direção a uma melhor justificação racional de nossas práticas constitucionais.

Com base nessas percepções, pode-se lançar a premissa que será central para uma melhor compreensão da conclusão lançada no parágrafo anterior. O recado da dicotomia historicidade/alteridade (justiça) permite construir uma concepção de racionalidade limitada que deriva não apenas das tensões e complexidades de uma história hermeneuticamente compreendida em cada novo momento, mas também da impossibilidade de se alcançar a alteridade do Outro. Sem entrar em detalhes sobre a complexidade do debate sobre a alteridade – e, pois, justiça -, essa premissa já permite antever algumas conclusões à realidade hoje vivenciada por nosso constitucionalismo cada vez mais referenciado pelas decisões tomadas pelo Supremo Tribunal Federal. Quando se fala que o constitucionalismo brasileiro caminha para um processo que, se parece incrementar-se em termos de racionalidade, enfraquece-se em termos de legitimidade, está-se apenas aplicando aquela premissa a nossa prática constitucional. Isso porque ela assume, de antemão, que a racionalidade tem limites, que o discurso jurídico é altamente falível e que, portanto, talvez a racionalidade hoje apresentada como justificadora da nova postura do Supremo Tribunal Federal – mais interventiva em assuntos diversos de interesse social, por exemplo – simplifique demasiadamente a complexidade em que ela naturalmente se insere. Em outras palavras, talvez as

43 Essa conclusão de que a adoção de uma determinada metodologia, que expressa a dimensão do discurso jurídico como caso especial do discurso prático, é capaz de ensejar uma forma de legitimação pela argumentação é trabalhada por Robert Alexy. Vide, para tanto, ALEXY, Robert. Balancing, Constitutional Revie, and Representation. International Journal of Constitutional Law. Vol. 3, N. 4, 2005, pp. 572-581.

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mensagens normalmente retratadas pelos argumentos lançados nas decisões do Supremo Tribunal Federal espelhem concepções de uma racionalidade que se justifica a partir de premissas que não são objeto de maior reflexão e, portanto, são metafísicas. Como consequência, a legitimidade de suas decisões se enfraquece.

Quando o Supremo Tribunal Federal, por exemplo, assume como naturalmente justificado afastar um determinado princípio constitucional, historicamente consagrado como garantia individual contra possíveis intervenções do Estado, por um valor econômico imediato, é possível verificar um possível problema nos limites de sua racionalidade argumentativa, se assumida a concepção de racionalidade limitada anteriormente descrita. O caso paradigmático do “Apagão” 44 , em que garantias individuais relativas, sobretudo, à proteção ao consumidor foram desconsideradas em razão de seu peso inferior relativamente “ao colapso do sistema”45 energético é uma explicitação clara dessa conclusão. Do mesmo modo, a quase impossibilidade da intervenção federal devida à contínua desobediência pelos estados às ordens judiciais de pagamento de precatórios, como predomina na jurisprudência do STF, explicita uma argumentação que considera o aspecto econômico – ou outros valores sociais não diretamente relacionados ao caso concreto46 - como mais relevantes. Em ambos os casos, a qualidade racional da decisão poderia advir de um balanceamento em que se lança um determinado valor – econômico ou político, por exemplo – como aspecto principal a ser considerado, mesmo que em detrimento de um dado princípio constitucional. São conclusões que fazem todo o sentido, se assumida a posição de que o direito é apenas um caso especial do discurso moral e que, por isso, pode ser inserido em análise de proporcionalidade tal como qualquer outro valor.

A partir da concepção de racionalidade limitada antes descrita, talvez fique mais simples entender o problema dos exemplos acima apresentados. Em ambos os casos, a decisão judicial nitidamente deu prevalência para um discurso politizado em termos do que é melhor para todos a partir de um cálculo político-econômico. O princípio constitucional, que deveria proteger situações particulares de indivíduos diretamente afetados pela decisão, foi preterido em favor de um cálculo utilitarista. É aqui que reside a possível confusão entre política e direito e é também, nesse contexto, que aparece uma motivação para se pensar o ativismo judicial. Quando o Supremo Tribunal Federal age em prol de um cálculo utilitarista, em que um valor econômico ou político prevalece sobre um princípio constitucional historicamente consagrado voltado para a defesa do indivíduo, aparece um possível problema de legitimidade, porque passa agir em defesa de um interesse tipicamente majoritário da sociedade. Defende-se o que se poderia entender por democracia sem constitucionalismo, pois se volta para o povo, mas se esquece dos limites que se fazem necessário impor à vontade da maioria. Esquece-se dos limites da razão, na medida em que se afasta de uma história institucional que consagrou o princípio constitucional como um dever que impõe ao poder uma esfera de atuação também limitada. Por outro lado, afasta-se da justiça como alteridade, porquanto o Outro é preterido em prol de um discurso que, em último momento, afirma o argumento em favor da maioria, cuja análise não é referendada institucionalmente, pois muitas vezes não 44 ADC 9 (DJ 23/04/2004). 45 ADC 9 (DJ 23/04/2004). Voto da Min. Ellen Gracie. 46 Vide, por exemplo, IF 2.915-5 (DJ 28/11/2003).

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decorre do direito, mas de um valor aleatoriamente escolhido pelo juiz como mais relevante para o caso concreto. Enfim, ao enfraquecer a Constituição, os limites da razão são esquecidos e, portanto, a dicotomia historicidade/alteridade (justiça) torna-se menor como justificação legitimadora da prática jurídica.

Por outro lado, com base nessa concepção de racionalidade limitada, talvez seja possível construir um argumento a favor da atuação do Supremo Tribunal Federal no caso da união homoafetiva, recentemente por ela julgado47. Tanto sob o prisma da alteridade como da história institucional, o argumento favorável à união homoafetiva consegue ser fortemente justificado. Primeiramente, porque se trata de um típico caso de afirmação da igualdade, no intuito de incluir o Outro na sociedade. Esse primeiro aspecto impõe ao exercício da jurisdição o dever de agir em prol de garantir a todo ser humano o direito de ser recebido de braços abertos por todos, mesmo a contragosto de pessoas que compartilham concepções de bem diversas. Por outro lado, a decisão retrata um resgate de nossa história institucional recente, que afirma a democracia inclusiva e participativa como uma condição do exercício da cidadania, acompanhando, aliás, já um conjunto de decisões judiciais, tomadas em diferentes contextos pelas cortes brasileiras, que já viam reconhecendo os direitos dos casais homossexuais. Há uma forte carga de legitimidade tanto pela perspectiva da alteridade como por nossa história institucional. E isso implica adoção de uma dimensão preservadora do sentido forte da Constituição, que prevalece mesmo em oposição a concepções de bem que buscam afastar o direito de minorias, como, de fato, ainda é largamente presente no Brasil. É o típico caso de atuação positiva da corte constitucional em direção ao fortalecimento da democracia constitucional. Não vejo como uma possível interferência do judiciário no legislativo. Pelo contrário, a corte constitucional nada mais fez do que garantir o espaço das minorias e isso, sim, é um dos seus mais explícitos campos de atuação.

5.  Conclusão  

Logicamente, esse posicionamento não é pacífico, como também não são as conclusões apresentadas em relação aos casos antes mencionados. Porém, ele parte de uma premissa que, de início, foi aqui defendida: a racionalidade jurídica tem limites, que se encontram tanto na dimensão da alteridade, como na perspectiva da historicidade. Obviamente, não foi aqui aprofundada essa discussão, como já antecipado, mas ela revela fortemente que a defesa do sentido deontológico do direito tem alguma razão de existir, especialmente quando se está em discussão um tema como o ativismo judicial. Quando se enfraquece o texto constitucional, quando seu conteúdo passa a ser interpretado como uma simples “carta de valores”, tais limites podem ser facilmente usurpados em prol de um monólogo da Corte, que não dialoga com os canais institucionais e democráticos de construção do direito. Surge, por conseguinte, um problema típico de legitimidade da corte. Sem limites, há o contínuo risco do monólogo e da construção arbitrária do conteúdo decisório, o que é um sério ataque à democracia constitucional.

47 ADI 4277 e ADPF 132.

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Quando se pensa mais amplamente nossas instituições do direito, sabe-se, de antemão, que o direito é um constructo que perpassa diferentes canais democráticos, em que cada um estabelece as condições de afirmação de uma cidadania tão longamente esquecida após anos de regime ditatorial no Brasil. Não é o resultado apenas de decisões da Corte, mas de um longo processo de aprendizado institucional, que compreende as complexidades do dilema de julgar. Um ato penoso – uma “loucura”, já alertava Derrida relembrando Kierkeggard48, que não pode, em hipótese alguma, enfraquecer o conteúdo constitucional e tampouco deixar de continuamente incluir o Outro, mesmo na impossibilidade de alcançá-lo plenamente. E também não pode esconder tais complexidades por intermédio de uma crença na capacidade de um método prover racionalidade e seus limites. Há de se ter responsabilidade e isso implica sermos transparentes e coerentes em nossas decisões, não porque elas conseguem se justificar a partir de um instrumental teórico pretensamente racionalizador do discurso, mas se justificar racionalmente porque atingem as mais íntimas condições do exercício democrático de nosso constitucionalismo. Talvez seja esse o recado central para o relacionamento entre a política e o direito e, por conseguinte, para a devida compreensão do ativismo judicial.

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48 Vide DERRIDA, Jacques. Force de Loi, p. 58.

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