benvindo - racionalidade jurídica e validade normativa - 2008

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RACIONALIDADE JURÍDICA E VALIDADE NORMATIVA Da metafísica à reflexão democrática Racionalidade-Juridica-MIOLO-corrigido.pmd 10/11/2008, 17:07 1

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RACIONALIDADE JURÍDICA

E VALIDADE NORMATIVA

Da metafísica à reflexão democrática

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Juliano Zaiden Benvindo

ARGVMENTVMBelo Horizonte

2008

RACIONALIDADE JURÍDICA

E VALIDADE NORMATIVA

Da metafísica à reflexão democrática

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Todos os direitos reservados à

ARGVMENTVM Editora Ltda.

© Juliano Zaiden Benvindo

ARGVMENTVM Editora Ltda.

Rua dos Caetés, 530 sala 1113 - CentroBelo Horizonte. MG. BrasilTelefax: (31) 3212 9444

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CONSELHO EDITORIAL COLEÇÃO STVDIVM:

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As idéias contidas neste livro são de responsabilidade do seu autore não expressam necessariamente a posição da editora.

S612w

Simões, Eduardo, 1976-Wittgenstein e o problema da verdade / Eduardo Simões. – Belo Horizonte, MG :

Argvmentvm, 2008.

160 p. – (STVDIVM ; 10)

Inclui bibliografiaISBN 978-85-98885-40-7

1. Wittgenstein, Ludwig, 1889-1951. 2. Verdade. 3. Linguagem e línguas – Filosofia.I. Título. II. Série.

08-4316. CDD: 193CDU: 1(43)

03.10.08 03.10.08 008999

MODELO MODELO MODELO

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A Francisco e Ângela

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SUMÁRIO

AGRADECIMENTOS ....................................................................................... 09

PREFÁCIO

Miroslav Milovic ................................................................................. 11

INTRODUÇÃO ............................................................................................. 15

CAPÍTULO IA Metafísica da Natureza na Validação Normativa:Pressupostos para uma Crítica Reflexiva .................................................... 19

1.1. Introdução .................................................................................. 19

1.2. O Ponto de Partida: A Metafísica Clássica – As Condições de umaFundamentação Natural ...................................................................... 23

1.2.1. A Metafísica Essencialista: A Primazia do Teórico ......................... 231.2.2. A Metafísica Essencialista no Âmbito Prático: A Phronesise a sua Falta de Reflexividade – A Primeira Crítica Antimetafísica ............ 261.2.3. Da Filosofia Clássica ao Direito Natural: A Metafísica dosFundamentos Naturais do Direito .......................................................... 311.2.4. As Premissas da Crítica ao Direito Natural:A Racionalidade Metafísica .................................................................. 35

1.3. Pensar o Direito Natural: a Pluralidade de Perspectivas .................. 38

1.3.1. O Jusnaturalismo e a Irreflexão sobre a Validade Normativa:A Manutenção das Estruturas do Essencialismo e a Prevalênciada Teoria sobre a Prática ..................................................................... 381.3.2. A Alteração da Força do Direito Natural diante do Direito Positivo: A Reestruturação da Tensão entre Validade e Facticidade e a Transiçãopara a Subjetividade Constitutiva no Jusnaturalismo de Matriz Kantiana ..... 48

1.4. O Jusnaturalismo Moderno de Vertente Kantiana – A Naturezaa partir da Subjetividade Constitutiva ................................................... 55

1.4.1. A Crítica Kantiana: A Subjetividade Constitutiva e oConfronto com a Natureza .................................................................... 551.4.2. Análise Específica da Afirmação da Liberdade: O Direto Confrontocom a Natureza e a Possível Radicalização do Direito Natural ................... 59

1.5. O Direito Natural Moderno: A Relação Teórico-Práticoe a Possibilidade da Renovação Jurídica ............................................... 65

1.5.1. O Direito Natural em Rudolf Stammler: O Formalismodas Categorias Transcendentais da Consciência ...................................... 651.5.2. O Direito Natural em Giorgio Del Vecchio: A Metafísica Naturalde Cunho Teleológico e a Explícita Migração para o Prático ..................... 74

1.6. Conclusão – As Conseqüências da Falta de Reflexividade Normativado Direito Natural Moderno e os Novos Horizontes ................................ 82

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CAPÍTULO IIA Metafísica Formal-Normativa e a Subjetividade Constitutiva no Direito:A Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen .................................................. 87

2.1. Introdução .................................................................................. 872.2. A Filosofia Transcendental Kantiana: A Subjetividade Constitutiva ... 90

2.3. A Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen e os Pressupostos Kantianos:A Subjetividade Constitutiva e o Ato de Conhecer no Direito ................ 106

2.3.1. Introdução .............................................................................. 1062.3.2. O Projeto Kelseniano e as Bases da Consagração da ModernidadeFilosófica no Direito .......................................................................... 108

CAPÍTULO IIIA Metafísica da Historicidade: A Tradição e a Possibilidade de suaRadicalização no Direito ........................................................................ 129

3.1. Introdução ................................................................................ 129

3.2. A Phronesis Aristotélica: A Ética da Tradição e a Ênfase naFacticidade ...................................................................................... 138

3.3. A Hermenêutica da Tradição e as Condições da Crítica: Os Planos daValidade e da Facticidade ................................................................. 146

3.3.1. A Compreensão e a Tradição Lingüisticamente Mediada .............. 1463.3.2. A Crítica à Hermenêutica da Tradição ....................................... 153

3.4. O Círculo Compreensivo no Direito: A Tensão entre Validade eFacticidade na Jurisprudência ........................................................... 177

CAPÍTULO IVO Esclarecimento e a Dialética Emancipatória da Comunicação:A Renovação Filosófica para uma Modernidade Reflexiva e umDireito que Inclua o Outro...................................................................... 193

4.1. Introdução ................................................................................ 193

4.2. A Teoria do Agir Comunicativo e as Instituições Jurídicas .............. 196

4.3. A Teoria do Agir Comunicativo sob Enfoque Sincrônico ................ 200

4.4. A Teoria do Agir Comunicativo sob Enfoque Diacrônico ................ 217

4.5. O Direito e a Teoria do Agir Comunicativo: O Discurso MoralmenteNeutro e a Validade Normativa conforme uma Postura Pós-Metafísica ... 234

4.6. A Emancipação pela Comunicação? Tópicos para Reflexão Críticasobre o Projeto Habermasiano ........................................................... 249

CONCLUSÃO ............................................................................................ 261

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................... 267

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AGRADECIMENTOS

Meus sinceros agradecimentos ao Professor Miroslav Milovic, pelo grandeaprendizado que com ele obtive em suas aulas, seus livros e em suas orienta-ções. A sentença – há de se refletir sobre os pressupostos – acompanhou todo odesenvolvimento desta pesquisa, sobretudo pela percepção de que, no campodo direito, a reflexão pode ser o grande caminho para a inclusão do outro, que éo grande marco que o pensamento e, sobretudo, a ação jurídica necessitamassumir como própria de sua evolução.

Obrigado a todos que, de uma forma ou de outra, contribuíram com críticas,sugestões, delineamentos, em especial os membros do Grupo de Pesquisa Pen-samento Social; ao Alexandre Araújo Costa, pelas importantes sugestões, aosamigos Henrique José Antão de Carvalho, Márcia Anita Sprandel, Jairo Bisol,pelos efusivos encontros de discussão e muita imersão filosófica.

Aos membros do Grupo de Pesquisa Sociedade, Tempo e Direito, da Univer-sidade de Brasília, em especial aos professores Cristiano Paixão e Menelick deCarvalho Netto, fica aqui minha gratidão pelas observações importantíssimassugeridas no texto. Sou grato também aos demais professores e aos membros daCoordenação de Pós-Graduação por propiciarem um ambiente tão salutar eprodutivo de pesquisa e pelo aprendizado, assim como à Coordenação de Aper-feiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pelo apoio financeiro aolongo da trabalho.

Fica o meu agradecimento a minha esposa, Daniela, assim como aos famili-ares e amigos pelo apoio constante.

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Juliano
Highlight
Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília

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PREFÁCIO

A modernidade parece ter se esquecido de sua própria compreensão. Embo-ra tenha começado com o signo da emancipação, estruturou-se na perda dareflexão sobre sua validade. A preocupação primordial voltou-se para o funcio-namento do sistema, do positivismo, de uma reificação que funciona, porém,não se pergunta sobre a justificação. O geral, o espírito, o transcendente assumiuos espaços do particular, sustentando, desse modo, um essencialismo que sejustificava por si próprio e que se fechava a qualquer alcance da crítica. Osilêncio na justificação imperou na modernidade.

Heidegger já alertava, em sua obra Ser e Tempo, que a questão sobre osentido do ser se perdeu, foi esquecida ao longo da filosofia. A marginilização doser teve conseqüências catastróficas para o pensamento filosófico, porquanto oaparente foi colonizado pelas estruturas metafísicas de um essencialismoinjustificado, que, por sua vez, desfiguraram uma compreensão da temporalidadee transformaram os indivíduos em meros contempladores de uma realidade daqual não participavam. A intersubjetividade, do mesmo modo, não apareceucomo elemento de justificação, na medida em que havia sempre um fundamentometafísico que ocupava o espaço de participação dos indivíduos na esfera públi-ca. Por isso, vale lembrar o diagnóstico da modernidade que Adorno e Horkheimertrouxeram na obra Dialética do Esclarecimento e que pode ser apresentadocomo o signo da resignação. A modernidade é um projeto que não aconteceu. Aemancipação não se operou. Ao contrário, a modernidade colonizou. A filosofia,também, perdeu seu espaço para a ciência, que produz, mas se esquece depensar em si própria. A justificação não está na ciência, afinal.

A justificação, então, ficou em aberto. A inércia na filosofia precisava sersuperada pela questão referente à validez. Havia de se voltar para a justificaçãoque se perdeu no capitalismo tardio, em uma modernidade silenciadora da críti-ca. A reflexão sobre a validez aparece, assim, como o novo recado que a filosofiaprecisava compreender para revitalizar seu espaço antes colonizado por um siste-ma que funcionava, mas não refletia sobre si próprio. Esse é o projeto de suareconstrução. A filosofia, agora, assume a crítica dos pressupostos como condiçãode sua própria dignidade.

É um projeto que parece ter suas bases em uma conexão com a intersubje-tividade como base da justificação. A linguagem revigora a força da reflexãofilosófica. O giro lingüístico e seus desdobramentos abrem o campo a novaspotencialidades de investigação e de exercício da crítica. A validez, agora refle-tida intersubjetivamente, assume seu lugar de destaque. Por outro lado, a filoso-fia, ao assumir a crítica da validade, reconhece a sua própria insuficiência, espe-cialmente no âmbito da democracia. É preciso mais do que uma reflexão sobre

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a validade; é preciso que se reconheça a existência de um sistema de açãoinstitucionalizado que permita uma práxis social também permeada por deveresjurídicos. É, nesse aspecto, que aparece o interesse da filosofia pelo Direito,como um instrumento que supera a inerente falibilidade do discurso e estabilizaexpectativas a respeito do agir humano em sociedades complexas.

Foi pensando nessas questões que o trabalho de Juliano Zaiden Benvindo foisendo elaborado. Como orientador de sua pesquisa, percebi que a crítica dametafísica, que tanto ele procurava trabalhar no pensamento jurídico, somentepoderia ser coerentemente alcançada por uma reflexão sobre a validade normativano Direito. Era necessário, portanto, realizar a conexão entre a filosofia e ospressupostos normativos que tanto condicionaram o pensamento jurídico. O ar-gumento aqui deveria ser articulado a partir da pergunta: como pensar umapossível revitalização das questões jurídicas, em especial após séculos deofuscamento de seus fundamentos? Tal como Habermas sugeriu em seuFacticidade e Validade, a questão sobre os fundamentos e sobre a racionalidade,agora aplicada ao pensamento jurídico, é atual e necessária.

A pesquisa do autor encontra-se na discussão a respeito da importância dareflexão da validez no Direito e na Democracia. Por intermédio de uma largadiscussão sobre as distintas metafísicas jurídicas – sobretudo três: metafísicaclássica, metafísica formal-normativa (própria do positivismo de Hans Kelsen) emetafísica da historicidade –, o autor consegue desvendar os problemas quepermearam o pensamento jurídico, ao mesmo tempo em que vai apresentando opropósito de seu trabalho. Procurar articular uma compreensão da reflexãonormativa, da validade no Direito, demonstra a importância do propósito de suapesquisa, que é um projeto de reconstrução moderna do Direito, desenvolvidoespecialmente a partir da reflexão crítica de Jürgen Habermas, principal refe-rência utilizada, sem, contudo, a ela se limitar.

A pesquisa tem um claro propósito de trabalhar questões cruciais da filosofiae suas conseqüências no pensamento jurídico, o que foi alcançado por uma fortededicação e interesse do autor em ir além do debate tradicional do Direito. Oautor consegue transportar muito bem as questões filosóficas para o plano jurídi-co e vice-versa, o que torna seu trabalho singular nessas questões. Ao contráriode um imediato contato com o debate jurídico sobre a democracia, JulianoZaiden Benvindo foi ao encontro do debate filosófico, dos problemas estruturaisque a filosofia apresentava e, assim, desvendou problemas filosófico-jurídicosque, muitas vezes, são menosprezados ou mesmo esquecidos. Por outro lado, apartir da transposição da análise para o plano jurídico, muitas questões filosófi-cas foram esclarecidas e os problemas de uma modernidade sem justificaçãoforam sendo revelados.

É uma alegria prefaciar a pesquisa de meu orientando Juliano ZaidenBenvindo, que, durante seu mestrado pela Faculdade de Direito da Universida-de de Brasília, conseguiu trazer ao público uma obra que raras vezes se encontra

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na literatura jusfilosófica, seja porque vai além do debate jurídico, alcançando osmeandros de várias questões cruciais da filosofia, seja porque apresenta o deba-te sobre a validade normativa e justificação no Direito como elemento centralpara se pensar a democracia. Muitos leitores irão se surpreender com esse deba-te, ainda infelizmente incipiente para muitos, mas necessário para se questionaro essencialismo na filosofia e no Direito, assim como superar a cultura da iden-tidade que domina o pensamento moderno. É uma obra que demonstra que afilosofia, quando articulada com o Direito, tem a potencialidade de reestruturara práxis cotidiana e ajudar o homem a sair de um deserto metafísico que o ilude,que o afasta de uma participação direta na sociedade e do jogo democrático.Pensar uma filosofia que insira o outro, tendo o Direito como um potencialpromotor desse movimento, abre espaço para o novo, em que a sugestão deHabermas pode ser um importante recado. O livro que ora se apresenta aopúblico é uma conseqüência da compreensão da importância desse debate. Comopensar o Direito como um projeto? Como revitalizar o projeto do Direito a partirdo discurso? Como superar a metafísica que tanto iludiu o Direito e o apartou dacrítica de seus próprios fundamentos? Em que medida o Direito e a filosofiadevem se conectar para superar o mesmo e abrir espaço para um pensamentoque insira o outro? Como pensar o Direito e a Democracia? Como pensar ajustificação no Direito? Essas perguntas sugerem que há de se resgatar o planode validade, ou melhor, é preciso que ele seja relembrado e refletido.

Este livro é uma abertura para se pensar alternativas e para levantar oquestionamento a respeito dos caminhos que a filosofia possibilita ao encontrarsaídas às questões que são continuamente confrontadas na modernidade doDireito. Aqui aparecem os debates sobre a racionalidade e sobre umaracionalidade reflexiva no plano jurídico, assim como a questão democrática,que, por meio do discurso, possibilita a crítica às estruturas reificadoras dopensamento jurídico.

Leiam com a convicção de que novas dimensões podem se abrir a partir dacompreensão do que esta obra tanto reforça: a necessidade de se pensar ospressupostos, a justificação no Direito. Termino, por isso, este prefácio com esterecado: é preciso pensar o Direito e, para tanto, é preciso pensar sua justificação.

Miroslav MilovicUniversidade de Brasília

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INTRODUÇÃO

“Refletir rigorosamente sobre os pressupostos da normatividade” – expres-são que tanto norteia muitas das aulas ministradas pelo Professor Miroslav Milovicno curso de Filosofia do Direito da Universidade de Brasília – foi o incentivopara se desenvolver esta pesquisa. Ao invés de se “contemplar” o mundo – diziao Professor –, faz-se necessário ir ao encontro dos fundamentos e, ao mesmotempo, à descoberta de uma racionalidade questionadora de tudo, inclusive desuas próprias bases. O mundo não pode caminhar para o silêncio, para oenclausuramento da crítica, porque essa postura consolida o conformismo, amanutenção das mesmas estruturas. Torna-se necessário descobrir as alternati-vas que a filosofia pode fornecer a respeito da racionalidade, no intuito de exporque é possível um outro mundo e uma outra concepção sobre a próprianormatividade.

Em sua obra Filosofia da Comunicação: Para uma Crítica da Modernidade,Milovic finda sua pesquisa parafraseando a Bíblia: “No início era o Verbo... estamensagem adquire agora um certo tom de esclarecimento”.1 Essas poucas pala-vras fazem reverberar muito de sua experiência direta com os desenvolvimentosda Teoria Crítica da Escola de Frankfurt e expressam como é possível revitalizaro debate a respeito da racionalidade. Em torno do recado habermasiano de queé preciso acreditar na razão – afinal, a reflexão pode ser a premissa para aemancipação social –, o trajeto da investigação começava a ser consolidado. Aindagação que surgia, portanto, era: como pensar o verbo no Direito? A essequestionamento acrescentou-se outro: será que o pensamento jurídico tem refle-tido sobre os pressupostos da normatividade?

Foi com base nessas premissas que nasceu o interesse em querer entrar noâmago de importantes teorias jurídicas para tentar nelas encontrar a possibilida-de da reflexividade rigorosa sobre os pressupostos normativos. O objetivo eraprocurar desvendar até que ponto se poderia afirmar existir, nesses pensamen-tos, a preocupação efetiva em debater os fundamentos que guiam as ações hu-manas. E, para tanto, foram escolhidas três escolas do pensamento no Direito –cada uma com particularidades muito distintas entre si – que representam muitodo que tem sido defendido e debatido teoricamente ao longo da História. Sãoelas: o jusnaturalismo; o formalismo-normativo de matriz kelseniana; e ohistoricismo de origem hermenêutica-tradicionalista.

Sob o entendimento de que há de se acreditar no potencial transformador deuma racionalidade fundada em premissas discursivas e que, por essa via, se torna

1 MILOVIC, Miroslav. Filosofia da Comunicação. Para uma Critica da Modernidade. Brasília:Editora Plano, 2002, p. 301.

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2 Horkheimer e Adorno, em sua Dialética do Esclarecimento, utilizam o termo “esclarecimento”para exporem a diagnose crítica da proposta moderna. Em alemão, o termo empregado éAufklärung.3 HORKHEIMER, Max; ADORNO, Theodor W. Dialética do Esclarecimento: Fragmentos Filo-sóficos. RJ: Jorge Zahar, 1985, p. 19.4 HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-Metafísico. RJ: Tempo Brasileiro, 2002, p. 60.

possível ter esperança em uma sociedade crítica de sua própria normatividade, opresente livro adotará, como parâmetro argumentativo, os estudos da Teoria Crí-tica da Escola de Frankfurt, em especial as pesquisas desenvolvidas em torno daTeoria do Agir Comunicativo de Jürgen Habermas. Como contraposição ao pen-samento de que “o programa do esclarecimento2 [é] o desencantamento do mun-do”,3 defende-se que o esclarecimento decorre de seu “reencantamento” surgidode uma “razão já operante na própria prática comunicativa cotidiana”.4 Ao con-trário das teorias que não refletiram sobre seus próprios pressupostos – eis arazão de sua inerente condição metafísica –, a proposta discursiva visa a tentarencontrar as condições de afirmação de um pensamento pós-metafísico, ao con-solidar a comunicação como um critério, por excelência, auto-reflexivo.

São essas as razões que fazem com que este livro nasça com a hipótese de que,nas diferentes escolas do pensamento jurídico analisadas, a metafísica se perpe-tuou. Evidentemente conformadas por novas orientações que cada uma dessasteorias adotou, as metafísicas consolidaram-se pela não reflexão rigorosa dos pres-supostos da normatividade. Daí a necessidade de se investigar uma “sintomatologiada metafísica” no âmbito da racionalidade jurídica, propósito deste livro e queserá firmado ao revelar em que aspectos se pode concluir que, não obstante tenhahavido radicais transformações na forma de se conceber a própria normatividade,os seus pressupostos mantiveram-se silenciados ou afastados da crítica rigorosa.

Como decorrência dessa percepção prévia, cada um dos capítulos seguintesserá intitulado com base em uma determinada metafísica analisada. O desejoinicial é desvendar como cada uma das metafísicas normativas se consolidou, aomesmo tempo em que se quer procurar as relevantes conseqüências derivadas desua presença. Acredita-se que o projeto baseado no discurso fornece saídas inte-ressantes ao silêncio promovido pelas distintas metafísicas; cada uma delas preci-sará, por isso, ser contrabalançada com uma projeção da comunicação no âmbitoda reflexão sobre os pressupostos normativos. Essas duas vertentes – a metafísicae a teoria discursiva – expressam, afinal, duas possibilidades de se portar dianteda normatividade: uma aceitação pacífica de seus fundamentos ou umaaceitabilidade questionadora de todo seu desenvolvimento, respectivamente.

Primeiramente, será analisada a “metafísica da natureza no Direito”. Emseguida, o enfoque se voltará para a “metafísica formal-normativa de matrizkelseniana”. Por fim, será feita a investigação a respeito da “metafísica dahistoricidade de origem hermenêutica-tradicionalista”. A essas três metafísicas,

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será contraposta, no último capítulo, uma análise crítica da estrutura do pensa-mento discursivo habermasiano aplicado também ao âmbito da normatividade.Com essa perspectiva, as posturas metafísicas no pensamento jurídico são con-frontadas com uma pretensa saída pós-metafísica adotada pela Teoria do AgirComunicativo de Habermas.

No primeiro capítulo, o jusnaturalismo será abordado e a “natureza” – metafísicamais explicitamente presente no pensamento jurídico – revelará uma pluralidadede significações e distintas complexidades. Devido a esse fato, dois enfoquesfilosóficos serão prioritariamente debatidos: o primeiro decorrerá da primazia do“teórico” (advindo do pensamento clássico e do essencialismo) sobre o “prático”(a phronesis é o ponto de referência nessa análise) na configuração do direitonatural que centralizou seu objeto na contemplação da natureza; já o segundo,por sua vez, focalizará a “subjetividade constitutiva” originária da deduçãotranscendental kantiana no âmbito do prático e abordará o direto confronto coma natureza, tal como a entendia a filosofia clássica, e a conseqüente consolidaçãoda liberdade em Kant. A partir do confronto com a natureza, todavia, afirmou-seoutra configuração do direito natural de vertente kantiana, em que a naturezapassa a se caracterizar como uma estrutura mental constitutiva da própria experi-ência. Nesse propósito, serão analisados dois autores que expressaram esse novopensamento para o jusnaturalismo: Rudolf Stammler e Giorgio del Vecchio.

Em seguida, será examinada a metafísica formal-normativa de matrizkelseniana. O objetivo será mostrar que, embora a Teoria Pura do Direito tenhabuscado afastar as distintas metafísicas típicas do pensamento jurídico-científico,ela acabou por consolidar outra metafísica. As conclusões alcançadas nesse ca-pítulo adotarão como parâmetro o estudo da dedução transcendental kantianano âmbito teórico e buscarão revelar que o ato de conhecer a norma, se, por umlado, tem de adotar a postura purista, por outro, não consegue debater as própri-as premissas desse ato de conhecer. O estudo da subjetividade constitutiva emKelsen será o foco principal desse capítulo, no intuito de revelar o silêncio que sepromoveu a respeito dos pressupostos da normatividade em seu pensamento,mesmo dentro do purismo por ele procurado na Ciência do Direito.

O terceiro capítulo abordará a “metafísica da historicidade”, em que a“hermenêutica da tradição” será adotada como parâmetro para se verificar que areflexão, mesmo quando se volta para o prático, pode ainda operar dentro dasmesmas estruturas que inviabilizam a comunicação coletiva. A discussão princi-pal girará em torno dos limites da filosofia hermenêutica gadameriana e da cons-trução de uma “ética da tradição”. Em seguida, buscar-se-á mostrar que a críticareflexiva deve operar em um plano não confundível com o da facticidade, pois acomunicação pode se mostrar distorcida ou mesmo inexistente. No âmbito espe-cífico do direito, tanto Gadamer, em sua análise da interpretação jurídica, comoKarl Larenz, em seu estudo sobre a aplicação do Direito (Jurisprudência), serãoas bases para se mostrar até que ponto se pode constatar a existência da reflexão

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rigorosa sobre os pressupostos normativos dentro do “círculo hermenêutico dacompreensão”.

Investigadas cada uma das três distintas metafísicas no âmbito do Direito, oúltimo capítulo buscará elucidar uma saída reflexiva e esclarecedora daracionalidade. Visará a desenvolver as premissas do pensamento habermasianoexpresso em sua Teoria do Agir Comunicativo para, em seguida, verificar a ex-tensão de seus fundamentos ao âmbito da reflexão normativa a ser promovidapelo Direito. Para tanto, serão analisadas a defesa de um “discurso moralmenteneutro” e a sua postura “pós-metafísica” na consagração da tensão entre “vali-dade” e “facticidade” no plano jurídico. Por meio da abordagem dos limites dacomunicação social, buscar-se-á debater algumas das discussões a respeito doDireito no contexto de uma teoria discursiva de projeção emancipatória.

Este livro pretende mostrar o quanto o Direito esteve marcado por uma faltade reflexividade sobre seus próprios pressupostos. Aliás, silenciou-se, não ex-pandiu os potenciais de sua própria racionalidade. A sua razão manteve-se cegaem relação aos fundamentos do agir humano. No entanto, essa análise dos pres-supostos normativos do Direito revela uma saída reflexiva que credita potencialà racionalidade. A razão pode, sim, transformar; pode revelar um novo mundo.A razão pode ser, acima de tudo, social. Portanto, desvendar o caminho de uma“razão social” que reflita constantemente sobre seu próprio desenvolvimento e,ao mesmo tempo, aplicá-la ao pensamento jurídico a partir da crítica a suasdistintas metafísicas é o objetivo deste livro.

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CAPÍTULO 1

A METAFÍSICA DA NATUREZA NA VALIDAÇÃO NORMATIVA:

PRESSUPOSTOS PARA UMA CRÍTICA REFLEXIVA

1.1. INTRODUÇÃO

Da leitura da obra Lições de Filosofia do Direito – em especial, o capítulo“Fundamento Racional do Direito” – de autoria do jusfilósofo italiano Giorgiodel Vecchio, surgiu a inspiração para a produção deste capítulo. Em um tópicocujo título poderia ser encontrado em obras de diferentes autores e defensoresantigos do direito natural – A natureza humana como fundamento do direito -,uma sentença chamou a atenção. Após ter debatido longamente diferentes con-cepções sobre o normativo e tentado mostrar suas insuficiências, del Vecchioconclui que: “resta-nos agora o recurso de atendermos à natureza humana – istoé, procurarmos na própria consciência do homem o fundamento último do Direi-to”.1 Seu pensamento, embora relativamente recente (1930), utiliza os pressu-postos teóricos da filosofia kantiana aplicados ao Direito, revelando que o discur-so do jusnaturalismo parece ainda perdurar com forte intenção justificadora danormatividade.

Por outro lado, o primeiro capítulo da obra Direito e Democracia entreFacticidade e Validade, de Jürgen Habermas, cujo título é “O Direito comoCategoria da Mediação Social entre Facticidade e Validade”, trouxe à tona osargumentos centrais de sua Teoria do Agir Comunicativo, enfatizando que “aintegração social, que se realiza através de normas, valores e entendimento, sópassa a ser inteiramente tarefa dos que agem comunicativamente na medida emque as normas e valores forem diluídos comunicativamente e expostos ao jogolivre de argumentos mobilizadores (...)”.2

De um lado, del Vecchio apresenta a natureza humana como “fundamentoúltimo do Direito”, de outro, Habermas salienta, como condição da integraçãosocial promovida pelo Direito, a diluição das normas nos jogos comunicativos ea constante argumentação sobre os fundamentos em que se assenta o “normativo”.Enquanto o primeiro sustenta a existência de uma natureza como “um princípiovivo que anima o universo e se exprime na infinita variedade do seu desenvolvi-mento (...), uma razão anterior que dá normas a todas as coisas e lhes assina asua própria tendência”,3 Habermas quer refletir sobre as bases da validação do

1 DEL VECCHIO, Giorgio. Lições de Filosofia do Direito. Vol. II. Coimbra: Armênio AmadoEditor, 1972, p. 354.2 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade. Rio de Janeiro:Tempo Brasileiro, 1997, p. 58.3 DEL VECCHIO, Giorgio. Lições de Filosofia do Direito. Vol. II, op. cit., p. 12.

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Direito sem se silenciar na definição de um fundamento último. Estes dois pla-nos revelam o constante confronto entre a afirmação da natureza e a reflexãosobre os fundamentos da normatividade. Enfim, do querer buscar, na natureza,o fundamento irrefletido do normativo à necessidade de se expressar a críticados fundamentos como condição efetiva de um Direito que consiga promover osprocessos de integração social pautados por uma racionalidade pós-metafísica.

Não será este capítulo, todavia, o palco em que se apresentará o estudodetalhado da consolidação dessa racionalidade. Na verdade, a discussão queora se inicia tem muito mais o intuito de confrontar a fundamentação natural noDireito, conformá-la em sua estrutura metafísica, para, em seguida, realizar acrítica de seus pressupostos, abrindo espaço para reflexão rigorosa. Enfim, ocaminho é perpassar por algumas características do jusnaturalismo, emboramaleável em sua própria configuração – o que torna mais complicada a análise–, mostrar suas incongruências para, então, enfrentá-lo a partir da referência àreflexividade no âmbito normativo. É um trabalho que exigirá a pressuposiçãode ser a natureza um conceito complexo, como também, por conseqüência, opróprio direito natural. Do mesmo modo, não é objeto desta pesquisa examinartodas as diferentes concepções de direito natural, porém, apenas algumas quepermitam desenvolver o tema proposto.

Assim, a partir das características mais relevantes que deram ao jusnaturalismoa possibilidade de se estabelecer como uma filosofia de contornos próprios,mesmo que variáveis, pergunta-se: por que a pressuposição da natureza nãoensejou as condições da reflexão? E, como derivação desse questionamento,quer-se saber como a natureza afirmou o silêncio sobre os fundamentos, oumelhor, como a natureza silenciou a sua própria autocompreensão Ora, essesilêncio não só impossibilitou a crítica como sustentou a continuidade da irreflexão,mesmo que alterada pela afirmação da subjetividade constitutiva nos jusnaturalistasde matriz kantiana

Sem desmerecer as variações que a justificativa natural apresentou no pensa-mento jurídico, o primeiro passo que deve ser tomado para se compreender acomplexidade que apresenta a questão da natureza no Direito é buscar, nosprimórdios da filosofia, a consagração da metafísica. Natureza e metafísica, “coi-sa em si” e essência necessária (ou substância) são marcas que dão ensejo àpossibilidade de se pensar o direito natural como justificativa “validante” danormatividade. Assim, por trás da realidade do Direito, existe algo que supera ascondições do tempo e do espaço, algo que é causa de sua própria dinâmica: umDireito, portanto, cuja referência é uma essência necessária, condição mesmade sua existência. Em síntese, não há Direito sem uma específica correlação coma essência que lhe confere unidade e coerência. A partir da filosofia clássicasurgem os argumentos para se poder dizer e garantir a possibilidade de umfundamento que engendra todo o campo da normatividade. E, com base nessesparâmetros, a dicotomia direito natural e direito positivo tinha todas as condi-

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ções preenchidas para ser o campo dos embates mais ricos no pensamentojusfilosófico.

Infelizmente, mesmo nos jusnaturalistas de matriz kantiana, aqui analisadosStammler e del Vecchio, a auto-reflexividade normativa como um critério deintegração social não foi também diretamente trabalhada. Esses aspectos mos-tram, portanto, que a transição de uma postura reverenciadora do mundo para asubjetividade constitutiva não chegou a abalar o campo da crítica no jusnaturalismo.O discurso do direito natural, mesmo radicalmente reestruturado pela referênciakantiana, sustentou-se como um critério último que o direito não precisava com-preender; um fundamento de validade que se apresentava sem ser submetido aum jogo discursivo, em um debate sobre a sua própria razão de ser. Um silênciosobre a validade do direito é o que se fez perpetuar na perspectiva do direitonatural.

Mas, não cabe aqui realizar, minuciosamente, uma investigação sobre asdiferentes configurações do direito natural. Não se trata, portanto, de um estudoespecífico sobre sua história. Pretende-se mostrar os limites da discussão sobrea normatividade natural e, assim, estabelecer os primeiros parâmetros para sevislumbrar uma “reflexividade rigorosa”4 no plano normativo. A história dasidéias será apresentada apenas onde for preciso, ou seja, para indicar como afalta de reflexividade se manteve em diferentes concepções do jusnaturalismo.

Dois parâmetros devem ser tomados para entender este capítulo: 1) o direitonatural, como também o próprio conceito de natureza, apresentaram, ao longodos séculos, variações radicais em sua estrutura de recurso justificador danormatividade; 2) as variações do direito natural e do conceito de natureza,contudo, nas investigações adiante desenvolvidas, não promoveram a reflexãorigorosa sobre as estruturas justificadoras da normatividade. Em resumo, portrás das discussões mais profícuas a respeito do direito natural, a irreflexãosobre a validade jurídica perpetuou-se. É um silêncio, portanto, que abre deforma mais nítida as possibilidades de apresentar as insuficiências de seu proje-to: a ausência de crítica é o caminho para a desestruturação da validação jurídi-ca, se a comunicação passa a ser encarada como uma condição da integraçãosocial. Por isso, o jusnaturalismo consagra-se quando outros mecanismosestabilizadores do confronto argumentativo são inseridos socialmente, seja uma

4 “Reflexividade rigorosa” é apresentada como a reflexão crítica sobre os pressupostos normativos,em que eles são submetidos a uma constante discussão sobre suas premissas, isto é, a um jogocomunicativo que faz dos pressupostos algo articulado intersubjetivamente e colocado ao crivoda crítica. Para tanto, segundo a estrutura dos dois mundos de Habermas, que será vista noúltimo capítulo, há de se estabelecer uma tensão entre os planos da validade e da facticidade.Assim, as pretensões de validade, antes pensadas em um plano não-coercitivo de perspectivauniversalista (validade), devem ser projetadas no empírico, na facticidade, de modo que possamser compreendidas e debatidas em concreto. No âmbito do Direito, a problemática da validadee da relação com o empírico (adequação de normas jurídicas) adquire particularidades especí-ficas, tendo em vista a ênfase institucional que lhe é inerente.

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O direito natural se firmou sobre uma base metafísica fora de si mesmo, mas não se esforçou para tentar elucida-la, compreende-la.
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referência teológica, seja a própria consolidação da autoridade humana sobre ascoisas. Porém, no momento em que tais mecanismos não mais se sustentam porsi só, da irreflexão sobre as bases da normatividade se sobressai a crise davalidade jurídica e, como conseqüência, a tensão entre a validade e a facticidadefaz exigir um encontro de um fundamento auto-referenciado e auto-refletidosocialmente.

Enfim, o caminho a percorrer inicia-se nos pressupostos da filosofia clássica,passa pela discussão sobre a manutenção de suas estruturas no discursojusnaturalista ao longo de algumas de suas distintas configurações, expõe a insu-ficiência do jusnaturalismo moderno e alcança as possibilidades de se pensar areflexão no Direito.

Por outro lado, para enriquecer a discussão, será realizado um embate coma natureza, mostrando os limites que a primazia do teórico, advinda da filosofiaclássica, ensejou. São estes os passos dados neste capítulo: se, da filosofia clássi-ca, é possível extrair os pressupostos da compreensão do direito natural, poroutro lado, da filosofia kantiana, sobretudo a partir da afirmação do prático,consegue-se realizar o primeiro embate com a natureza: a liberdade não está nocampo teórico e se contrapõe à metafísica da objetividade. E, desse embate,aprimorado pela perspectiva hegeliana de realização do espírito no mundo, sur-ge a conclusão de que a liberdade é o campo da reflexão. Estão dadas, assim, ascondições para se poder antever – ainda que de forma metafísica sobre ospróprios caminhos da liberdade e, também, do normativo5 – a primeira impor-tante reação a uma relação de mera contemplação do mundo que advém dafilosofia grega. Sobretudo pelo estabelecimento da subjetividade constitutiva,estão assentadas as condições da possível ruptura com a passividade e a exposi-ção de que a reflexão pode estar além do campo teórico.

Desse modo, esta pesquisa inicia-se com uma primeira instigação: como su-perar a natureza elucidando a possibilidade da reflexão rigorosa? E, a partirdesse caminhar, quer-se poder pensar a autonomia individual ao invés da acei-tação de ser o homem constituído pelo mundo. A reflexão, no âmbito normativo,por conseguinte, não está no plano teórico enquadrado pelo conceito de nature-za, mas no âmbito da liberdade. Essa abertura para o prático é o primeiro passoda discussão que, mais adiante, será retomada: a auto-reflexão dos fundamentosda normatividade e sua “destranscendentalização” e descentralização são condi-ções para se poder descobrir uma resposta à crise de validação jurídica.6 Enfim,do silêncio a respeito dos próprios fundamentos, passando por importantes con-figurações jusfilosóficas, até as condições que possibilitam articular os funda-mentos justificadores da normatividade no jogo dos argumentos mobilizadores:é este o caminho a trilhar.

5 Será mais bem compreendido no estudo do pensamento kantiano a respeito da liberdade, quetambém não é, em si, questionada.

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1.2. O PONTO DE PARTIDA: A METAFÍSICA CLÁSSICA – AS CONDIÇÕES DE UMA FUN-DAMENTAÇÃO NATURAL

1.2.1. A METAFÍSICA ESSENCIALISTA: A PRIMAZIA DO TEÓRICO

Uma importante palavra que pode sintetizar parcela substancial do pensa-mento filosófico clássico é “metafísica”. Palavra de contornos complexos e designificações diversas que a história da filosofia consagrou, em suas linhas origi-nárias, pode ser compreendida como aquilo que transcende o que é sensível, oque está além do físico. Assim sendo, se a metafísica é desenvolvida, em Platão,a partir de uma ênfase explicitamente transcendental, com foco na dualidademundo das idéias e mundo físico, em Aristóteles, ela é radicalizada em umadireta ontologia tomada mediante a busca da essência nas coisas. São dois pla-nos distintos, mas conexos, para se conceber o papel da filosofia: enquanto, emPlatão, há de se alcançar a Idéia7 que consagra a verdade, em Aristóteles, ofilósofo deve encontrar a essência necessária que faz a realidade ser como ela é,tomada com base em uma imanente atividade contemplativa do mundo. É umadistinção, porém, que não afasta suas semelhanças: o eixo de sustentação filosó-fico, seja transcendente ou imanente, garante a aceitação do essencialismo8 comocritério justificador da realidade.

Existe algo que supera a realidade, que condiciona sua própria razão de ser.Em Platão, tudo o que existe no mundo concreto decorre diretamente da Idéia,que deve ser observada “para ser sensato na vida particular e pública”.9 Estabe-lece-se, assim, uma causalidade entre a Idéia e o real que faz o homem se ater,como premissa do alcance da sabedoria, à metafísica. Há de se buscar, dessemodo, um pressuposto metafísico da razão. E é ele que deve guiar a vida daspessoas, que dá coerência e unidade à realidade. Por isso, a filosofia é umconhecimento superior centrado na compreensão dos pressupostos.

6 Será mais bem investigado no quarto capítulo.7 Platão, no clássico Mito da Caverna, relatado no Livro VII da República, deixa claro que,paralelamente ao mundo físico, existe algo mais verdadeiro, um mundo das idéias. Acima doobjeto, do concreto, existe uma Idéia que consagra a verdade. Nas palavras de Platão, em diálogocom Gláucon, “no limite do cognoscível é que se avista, a custo, a Idéia do Bem; e, uma vezavistada, compreende-se que ela é para todos a causa de quanto há de justo e belo” (PLATÃO.A República. 517 c. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2ª. ed., p. 321). Assim, aquilo queexiste no mundo concreto decorre diretamente da Idéia: “no mundo visível, foi ela que criou aluz, da qual é senhora; e que, no mundo inteligível, é ela a senhora da verdade e da inteligência,e que é preciso vê-la para se ser sensato na vida particular e pública” (Idem, 517 c, p. 321).8 O essencialismo, decorrente dessa necessidade de se encontrar algo além dos objetos que lhedá coerência e unidade, seja transcendente ou imanente, demonstra a prevalência do geralsobre o particular: o que vale não é o objeto particularmente observado, mas a essência que hápor trás dele.9 PLATÃO. A República. 517 c. op. cit., p. 321.

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Exatamente por estar nesse patamar e ter como objeto o conhecimento dospressupostos, a filosofia deve se irradiar por todos os campos do conhecimento. APolítica e o Direito, por conseqüência, devem ter, como elemento, umafundamentação metafísica que unifica a experiência concreta.10 Ademais, acausalidade entre a Idéia e o real acarreta a indissociabilidade dos pressupostosde qualquer fenômeno concreto. Não há Direito e Política, portanto, dissociadosde “valores” (pressupostos), que, por sua vez, embora em planos diferentes, devemser observados na prática cotidiana.

Apesar de em um plano mais concreto – a metafísica aristotélica é imanente,ao contrário da transcendência platônica –, Aristóteles apresenta as “categori-as”, que nada mais são do que uma pergunta sobre a estrutura, os fundamentos,a essência do mundo. Por isso, sua filosofia está situada no âmbito da metafísica.

Na obra Metafísica, Aristóteles tenta desvendar o objeto característico dafilosofia e chega à conclusão de que ele se encontra em revelar o aspecto funda-mental de toda realidade. Esse fundamento da realidade é que dá ensejo àanálise da “substância” como o “ser por excelência”.11 No livro VII da Metafísica,

10 Como uma importante manifestação metafísica no pensamento filosófico, o platonismo revelaque existe algo além do concreto que pode guiar a vida das pessoas. Na verdade, a busca poresses pressupostos é tão crucial em sua filosofia que, na República, se propõe um governo defilósofos. Há de existir uma coincidência do poder político e da filosofia nos governantes. Mas oque é mais interessante nessa discussão é que a justiça é o fundamento da comunidade, comouma condição do nascimento e vida do Estado. Percebe-se, assim, que a idéia de justiça comouma virtude metafísica ecoa na filosofia platônica, sobretudo porque ela está dirigida pelo maiorfundamento platônico: a Idéia do Bem. Platão aduz que “a idéia do bem é a mais elevada dasciências, e que para ela é que a justiça e as outras virtudes se tornam úteis e valiosas” (PLATÃO.A República. 505 a. op. cit., p. 304). Logo, nasce daí a compreensão de que a justiça é umpressuposto a ser perseguido com fundamento na Idéia do Bem. Em síntese, estão abertas asportas de um fundamento metafísico da justiça e, por conseqüência, a questão do Direito étambém uma questão sobre os pressupostos.São esses pressupostos que dão coerência e unidade à realidade. Descobrir o Bem é o passomais elevado da educação do homem. O Bem representa, no plano do ser (das idéias), o que éo sol no mundo visível: “podes, portanto, dizer que é o Sol, que eu considero filho do Bem, queo Bem gerou à sua semelhança, o qual bem é, no mundo inteligível, em relação à inteligência eao inteligível, o mesmo que o Sol no mundo visível em relação à vista e ao visível” (Ibidem, 508c, p. 310). Desse modo, tal como o Sol, no mundo concreto, permite não apenas que as coisassejam vistas, mas também compreender “a sua gênese, crescimento e alimentação” (Ibidem,509 b, p. 312), o Bem se apresenta como um princípio supremo a partir do qual se irradiamtodos os valores objetivos, entre eles, como analisado, a justiça.11 Se, portanto, em Platão, o fundamento do ser se encontra alheio, como um valor transcenden-te, em Aristóteles, o valor está no próprio ser. Abbagnano é muito claro ao escrever que “anormatividade do ser é, para Platão, estranha ao ser mesmo: o ser é no valor, não o valor no ser.Aristóteles descobriu, ao contrário, o intrínseco valor do ser” (ABBAGNANO, Nicolas. Historiade la Filosofia. Barcelona: Montaner y Simon, 2ª ed., 1964, p. 114. Tradução livre). O princí-pio, portanto, que dá unidade ao ser é intrínseco a ele. Com o pensamento aristotélico, osvalores são intimamente ontológicos e se circunscrevem a uma esfera propriamente humana.Assim, discutindo a metafísica, pode-se compreender a ontologia. A passagem abaixo é elucidativa:

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Aristóteles aduz que a substância é a estrutura necessária do ser e que é suacausa e princípio.12 Ao mesmo tempo, ela é o único referencial do conhecimen-to: “pois há ciência de uma coisa, quando conhecemos sua essência”.13 É essasubstância que dá ao objeto a configuração de não ser apenas a soma de diferen-tes elementos. Como princípio, a substância representa a própria causalidade efinalidade da existência do ser; é o que transforma o ser em algo necessário.

Da ênfase sobre a metafísica surge a discussão sobre o essencialismo.14 Não éinteresse da filosofia aristotélica estudar o particular, pois não se encontra nessepatamar o conhecimento, mas no geral, nas essências captadas a partir do mun-do dado.15 O pensamento aristotélico quer descobrir essa essência necessáriaque faz a realidade ser como ela é. Portanto, não obstante por caminhos diferen-tes, Aristóteles segue a idéia platônica de haver o mundo e os pressupostos.16

“Aristóteles realizou uma inversão do ponto de vista platônico. Segundo Platão, os valoresfundamentais são os morais, que não são puramente humanos, senão cósmicos, e constituem oprincípio e o fundamento do ser. Segundo Aristóteles, o valor fundamental é o ontológico,constituído pelo ser enquanto tal, pela substância; e os valores morais se circunscrevem à esferaeminentemente humana. Quando Aristóteles nega que o universal seja substância, refere-secabalmente ao universal platônico, que está verdadeiramente separado do ser, enquanto é umvalor distinto do ser. O que ele sustenta constantemente contra o platonismo é que o valor do seré intrínseco ao ser: a doutrina da substância” (Ibidem, p. 117).12 Vide ARISTÓTELES. Metafísica. Livro VII, 1-3. Madrid: Editorial Gredos, 1970, Vol. I, p.323. Tradução livre.13 ARISTÓTELES. Metafísica. Livro VII, 6, 1031 b. op. cit., p. 343. Tradução livre.14 Essa discussão – consciência que trata do geral e consciência do particular – tornou-se, bemmais recentemente, um dos embates mais frutíferos no âmbito filosófico, sobretudo após ascontribuições da fenomenologia de Husserl, que gera um confronto direto com esse essencialismometafísico que esteve fortemente presente na filosofia durante séculos. Para Husserl, o ser nãoestá nos objetos, nem tampouco nos sujeitos, como se poderia concluir a partir da perspectivakantiana. Para ele, o essencialismo metafísico nos objetos obscureceu a dimensão do sujeito,como também favoreceu a contaminação da filosofia pela ciência. Por outro lado, pensar o serna consciência como uma coisa estática é também problemático. Ao invés desses caminhos,Husserl propõe que a consciência não é uma coisa, uma estrutura essencial. Conforme bemsalienta Miroslav Milovic, analisando a fenomenologia, “a consciência são os fluxos, as vivências,para as quais não interessam os objetos, mas os fenômenos, ou os objetos como aparecem paraa consciência (...). A consciência não é uma coisa, mas um ato, e os objetos intencionais são “osobjetos tais como são vividos nesses atos” (MILOVIC, Miroslav. Comunidade da Diferença. Riode Janeiro: Relume Dumará; Ijuí, RS: Unijuí, 2004, p. 48).15 Por isso, Aristóteles dedica muito mais atenção à segunda substância. A primeira, afinal,volta-se para o ser da essência, como o ser determinante, necessário da realidade concreta, istoé, o ser individual. Por sua vez, a segunda substância é a essência do ser, aquilo que está portrás do particular, sua natureza intrínseca.16 A passagem abaixo, de Abbagnano, é esclarecedora:“Por esta mesma correção trazida por ele ao platonismo reforça-se a primazia da vida teorética:a investigação que se dirige à substância do ser, qualquer que este seja, adquire de tal modo umvalor tão alto que expressa o tipo mais perfeito da vida humana. E com isso o espírito da filosofiaaristotélica revela sua fidelidade ao ensinamento de Platão. A filosofia é certamente uma ciênciaobjetiva, indagadora de seu objeto próprio, o ser, como uma técnica própria, a lógica; mas sua

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Desvendar as essências – essa pode ser a conclusão derradeira que mostracomo o pensamento clássico está imbuído da metafísica. Desse modo, seja pelaprocura das essências em valores alheios ao ser – como no platonismo –, seja porquerer buscá-las no próprio ser – como em Aristóteles –, o que se observa é queo caminhar filosófico grego não se separa de uma constante pergunta sobre o quehá por trás do mundo dado, sem, todavia, dele se apartar. Os pressupostos, dessaforma, são o cerne de toda essa investigação. Existe, assim, uma verdadeirametafísica da objetividade: não se afasta do mundo e tenta nele encontrar osfundamentos que consagram sua essência. Há de se observar o concreto atélograr deixar à vista o que lhe dá coerência e unidade, o que o torna algo neces-sário. Interessa aos gregos a idéia, a forma, o geral, isto é, a essência e a estruturado ser.17 Há muito mais do que apenas o mundo concreto; há também os pressu-postos que não são abertos para a ciência, mas, sim, para a filosofia.18 Não setorna, portanto, complicado reafirmar a anterior conclusão de que a política, oDireito, em resumo, as atividades humanas estão saindo da metafísica.19

1.2.2. A METAFÍSICA ESSENCIALISTA NO ÂMBITO PRÁTICO: A PHRONESIS E ASUA FALTA DE REFLEXIVIDADE – A PRIMEIRA CRÍTICA ANTIMETAFÍSICA20

No âmbito normativo, a metafísica essencialista adquire novos contornos,como uma extensão das discussões já realizadas no plano teórico. O prático –campo em que é analisado o Direito – vê-se também contaminado pelas premis-sas de uma constante procura pelos pressupostos. Os problemas sobre a

possessão constitui a mais alta e feliz forma de vida para o homem. A doutrina de Platão consisteessencialmente no problema do homem que busca o ser. A doutrina de Aristóteles consisteessencialmente no problema da ciência do ser. Mas ao homem mesmo Aristóteles assinala comotelos supremo a possessão desta ciência: e assim volta a estabelecer o problema platônico”(ABBAGNANO, Nicolas. Historia de la Filosofia, op. cit, p. 129. Tradução livre).17 É importante ressaltar, de qualquer maneira, que a metafísica grega não se limitou apenas aoestudo do ser. Essa poderia ser considerada a metafísica como ontologia, que apresenta umaspecto genérico. Todavia, também existia a pergunta sobre Deus e isso é manifesto nas princi-pais obras dos autores gregos. Essa metafísica especial também indica a possibilidade de seperguntar sobre os fundamentos em um outro plano que não aquele próprio do ser. O queimporta, porém, é perceber que, em qualquer dos casos, a questão sobre a essência e sobre osfundamentos permanece: é esse o grande papel que assume a filosofia.18 Percebe-se, nitidamente, nesse aspecto em particular, a grande diferença do pensamentogrego em relação ao pensamento moderno. Para os gregos, a filosofia é um conhecimentosuperior capaz de alcançar as estruturas do ser, cabendo à ciência o estudo do mundo dado. Amodernidade, porém, desfigurou essa distinção, contaminando radicalmente a filosofia pelaciência.19 Em uma primeira análise, o que se verifica é a estreita conexão das diferentes manifestaçõesdo agir com questões éticas, como algo intrínseco, inseparável. Todavia, ao se fazer uma pesqui-sa mais densa, conclui-se que existe, por trás desse relacionamento, a necessidade de se pautarpor um pressuposto metafísico.20 Vide no terceiro capítulo, no tópico 3.2, o estudo mais detalhado sobre a phronesis aristotélica.

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normatividade, sobre as virtudes do homem perante a sociedade são impregna-dos de uma fundamentação essencialista. O que prevalece continua sendo umaproposta contemplativa do mundo, sem, todavia, serem fornecidos os argumen-tos para uma postura de transformação da realidade. Em Platão, essa conclusãoé nítida, uma vez que toda discussão referente aos diferentes valores práticos,como a justiça e a política, se encontra intimamente relacionada com a idéia dobem, que é o valor supremo insuperável e sobre o qual não há que se argumen-tar. Deve-se, sim, contemplá-lo. Aristóteles, no âmbito da filosofia prática, porsua vez, busca o fundamento das atividades humanas na felicidade (vida boa).

Essa discussão assume uma grande relevância para a filosofia do direito, quandose verifica o íntimo entrosamento – poder-se-ia dizer uma dificuldade inerente àpromoção da ruptura dos planos – entre a política e a moral, entre o direito e amoral. A conexão entre as virtudes morais e o direito revela também o íntimocontato com pressupostos metafísicos na filosofia prática aristotélica. A grandediferença que se observa em relação ao pensamento platônico é a direta referên-cia ao homem, remontando a sua perspectiva da substância. Essa busca pelosfundamentos no próprio homem gera efeitos distintos na análise dos fenômenossociais, podendo ser encontradas, em Aristóteles, discussões bastante interessan-tes sobre o direito e a idéia da justiça. Na Ética a Nicômacos, Aristóteles aduz que“a virtude e a maldade dependem somente dos homens”,21 sendo ele responsá-vel pela escolha dos meios segundo a razão. Agir conforme a razão é o que deter-mina a virtude, cuja maior expressão ética é a justiça22. Sob a justiça, funda-se oDireito, que Aristóteles já distinguia em público e privado, em positivo e natural.

Segundo Aristóteles, “o justo é, portanto, o respeitador da lei e o probo, e oinjusto é o homem sem lei e ímprobo”.23 Essa definição é complementada pelaafirmação de que “justos [são] aqueles atos que tendem a produzir e a preservar,para a sociedade política, a felicidade e os elementos que a compõem”.24 Por sera “maior das virtudes”25, ela não se refere apenas ao homem privado, devendotambém se estender ao relacionamento com o próximo, sendo um “bem de umoutro”26. Aqui, portanto, já aparece bem nitidamente a relação do conceito defelicidade com a dimensão do público.

21 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. Livro V, Cap. I, 1129 b. São Paulo: Abril Cultural, 1ªed., 1973, Col. Os Pensadores, Vol. IV, p. 321.22 Conforme Aristóteles, a justiça se divide em distributiva e comutativa. A primeira refere-se àdistribuição de bens e honrarias de acordo o mérito de cada qual, apresentando um aspectoproporcional: “eis aí, pois o que é justo: o proporcional; e o injusto é o que viola a proporção”(Ibidem, 1129 b, p. 322). Por sua vez, a justiça comutativa tem uma função corretiva, equili-brando vantagens e desvantagens entre os homens e estabelecendo uma proporção aritmética.23 Ibidem, p. 322.24 Ibidem, p. 322.25 Ibidem, p. 322.26 Ibidem, p. 322.

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Ademais, Aristóteles já enfatizava a existência de uma justiça natural. Con-forme o autor, “da justiça política, uma parte é natural e outra parte legal:natural, aquela que tem a mesma força onde quer que seja e não existe umarazão de pensarem os homens deste ou daquele modo; legal, a que de início éindiferente, mas deixa de sê-lo depois que foi estabelecida”.27 A eqüidade apa-rece exatamente como uma correção da lei operada por intermédio do direitonatural, baseado nessa justiça natural. De qualquer modo, como antes aludido,“a justiça é algo essencialmente humano”,28 o que condiz com os fundamentospor ele trabalhados acerca da metafísica. Isso fez com que o homem pudessetrabalhar a normatividade a partir de uma essência que ele apenas contempla,não se sentido, pois, ator do processo de constituição desses pressupostos.Aristóteles, desse modo, fornece as bases para as características primordiais dojusnaturalismo pautado por uma normatividade essencialista.

Esse essencialismo expressa-se sob o signo da felicidade. É a partir de seuestudo que se discutem as virtudes desenvolvidas por Aristóteles, porquanto elase relaciona com um agir conforme a razão. A felicidade expressa o telos darazão prática e corresponde à realização da essência humana. Verifica-se, assim,que a prática aristotélica é fortemente conexa com a teoria: ambas partem deuma premissa racional que, em último momento, irá retomar o projeto ontológicodesenvolvido por Aristóteles no estudo da substância. Para se alcançar a felici-dade – que expõe a essência humana –, há de se agir conforme a razão, queconfere o caráter virtuoso da ação. Conseqüentemente, uma determinada ativi-dade, como o Direito e a Política, tem de se reportar às “virtudes morais”29

(âmbito prático), porém, paralelamente a esse valor, deve ter, como finalidadepressuposta, o intuito de alcançar a “essência humana” (âmbito teórico), que,por sua vez, se refletirá em uma racionalidade contemplativa do mundo.

Portanto, se a felicidade reside “nas atividades virtuosas”,30 não surpreendeperceber que o encontro dessa felicidade é mais pleno quando se consegueatingir um patamar de mera contemplação da realidade. Somente assim o ho-mem alcança a sua auto-suficiência: “mas o filósofo, mesmo quando sozinho,pode contemplar a verdade, e tanto melhor o fará quanto mais sábio o for”.31 Aatividade do filósofo é a mais plena de felicidade: “e essa atividade parece ser aúnica que é amada por si mesma, pois dela nada decorre além da própriacontemplação”.32 Agir conforme a razão é o caminho para a felicidade, é o agirvirtuoso: “se, portanto, a razão é divina em comparação com o homem, a vida

27 Ibidem, p. 322.28 Ibidem, p. 322.29 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. 1177b. ob. cit., p. 430.30 Ibidem, X, 6, 1177a, p. 428.31 Ibidem, X, 7, 1177 b, p. 429.32 Ibidem, p. 429.

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conforme a razão é divina em comparação com a vida humana”,33 ensina-nosAristóteles em sua Ética a Nicômacos.34

Para tentar resolver as próprias dificuldades que se encontram na análise dasatividades humanas, muito menos seguras do que os fundamentos trabalhadosna teoria sobre a metafísica, Aristóteles consagra a “prudência”, ou phronesis,como guia da atividade do homem.35 Ela indica o complexo de virtudes queforam sendo adquiridas contingentemente de modo habitual e que foram con-formando a consciência histórica a almejar a essência humana como finalidadepressuposta. Aristóteles explicita que ter prudência é apresentar o “poder [de]deliberar bem sobre o que é bom e conveniente para ele, não sob um aspectoparticular (...), mas sobre aquilo que contribui para a vida boa em geral”.36 Aphronesis, dessa forma, parte de uma deliberação humana, que é típica da Tópi-ca37 e que consolida uma idéia de comunidade. Ser prudente é ter “uma capaci-

33 Ibidem, p. 429.34 A respeito da relação teórico-prático, o livro Curso de Derecho, de José Corts Grau, esclareceque: “Assim como os princípios do entendimento especulativo se fundam na noção do ser, os doentendimento prático se fundam na noção de bem. E como o bem e o ser são conversíveis e oentendimento prático não é potência distinta do especulativo, senão que ambos são hábitos deuma mesma potência, infere-se que a verdade prática – em nosso caso a verdade ético-jurídica– fica referida ao ser, e a conduta moral pode ser considerada com um veritatem agere. Aconduta humana implica uma normatividade; a norma, uma verdade prática; esta, uma verdadeespeculativa e esta, uma entidade. Ou em outros termos: sobre a base ôntica da natureza e o fimdo homem, o entendimento alcança certas verdades que projeta sobre a conduta e, nessavigência da verdade sobre a conduta, estriba a norma. (GRAU, José Corts. Curso de DerechoNatural. Madrid: Editora Nacional, 2ª ed, 1950, pp. 186/187. Tradução livre).35 Existe uma dificuldade na tradução do termo phronesis para a língua portuguesa. Para algunsautores, phronesis é traduzida como prudência apenas, sobretudo após a influência aristotélicatraduzida por São Tomás de Aquino para o latim. Para outros autores, faz-se uma distinção entresabedoria, que é a tradução de phronesis, em oposição à sapiência, como o grau mais elevado dafilosofia teórica, referindo-se às coisas mais altas e universais. Em algumas traduções, além domais, faz-se a distinção entre sabedoria (teórica) e sabedoria prática. Para os fins desta pesquisa,adotar-se-á o termo “prudência” para designar a phronesis, por ter sido o mais habitual.36 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. VI, 5, 1140 a. op. cit., p. 344.37 A passagem abaixo deixa muito claro como Aristóteles distingue a Tópica, voltada para asdeliberações e fundamentada em argumentos plausíveis, da ciência, que se destina a tirarconclusões necessárias, evidentes e demonstráveis.“Segue-se daí que, num sentido geral, também o homem que é capaz de deliberar possuisabedoria prática. Ora, ninguém delibera sobre coisas que não podem ser de outro modo, nemsobre as que lhe é impossível fazer. Por conseguinte, como o conhecimento científico envolvedemonstração, mas não há demonstração de coisas cujos princípios são variáveis (pois todaselas poderiam ser diferentemente), e como é impossível deliberar sobre coisas que são pornecessidade, a sabedoria prática não pode ser ciência, nem arte: nem ciência, porque aquiloque se pode fazer é capaz de ser diferentemente, nem arte, porque o agir e o produzir são duasespécies diferentes de coisa. Resta, pois, a alternativa de ser ela uma capacidade verdadeira eraciocinada de agir com respeito às coisas que são boas ou más para o homem” (ARISTÓTELES.Ética a Nicômacos. VI, 5, 1140 a, b, op. cit., p. 345).

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dade verdadeira e raciocinada de agir com respeito às coisas que são boas oumás para o homem”;38 é ter a competência para alcançar o “justo meio” nasdiferentes modalidades de virtudes morais.

Agir virtuosamente, por conseguinte, é estar de acordo com uma prudênciano agir, que, todavia, se limita a representar um referencial da conduta que é aexpressão da própria essência humana.39 Suas premissas se voltam para a ontologiaaristotélica, já que o encontro da atividade contemplativa de busca da essênciado homem se torna o próprio telos do agir. Logo, se, no âmbito teórico, aracionalidade é plena quando voltada para a contemplação da realidade, noprático, a felicidade é alcançada quando se passa a agir virtuosamente, confor-me os critérios da phronesis, que, em última análise, também apregoam a con-templação do mundo.

A dúvida que se irradia dessa conclusão é se o telos de contemplação domundo possibilita um agir que se direciona para a construção de novos contextossociais ou, ao contrário, se configura um critério normativo mantenedor dasmesmas estruturas da realidade. Como antes inferido, a filosofia aristotélica nãose volta para a mudança, mas para a observação das substâncias, das essênciasnecessárias das coisas, que, também no prático, se tornam uma finalidade a seralmejada. De fato, parece que a phronesis espelha esse essencialismo que seconstrói dentro de um conformismo da razão. No prático, âmbito em que sepoderia antever uma ação humana fomentadora de transformações, o que seobserva é uma filosofia que se contenta em ser apenas uma admiradora domundo, em nítida demonstração da primazia do teórico sobre o prático.

Quando Aristóteles declara que a phronesis decorre da capacidade de deli-berar sobre o que é bom “não sob um aspecto particular (...), mas sobre aquiloque contribui para a vida boa em geral”,40 a filosofia prática parece se restringirà apresentação de como o geral se mostra ao particular. A essência, os hábitosadquiridos de modo setorial sobrepõem-se à própria autonomia individual. Ape-sar do critério adotado se referir ao homem, ele pode se limitar a espelhar umadeterminada realidade a que está habituado, sem, entretanto, serem estabelecidasas condições para a própria crítica dessa realidade.41 Isso porque, em últimaanálise, o que prevalece é uma racionalidade voltada para a simples observaçãodo mundo dado, para a compreensão observável do justo meio das virtudesmorais e, sobretudo, para a concretização do que é habitual. A crítica fica enclausu-rada no modelo transferido pela própria historicidade, o que é agravado pelatendência do pensamento clássico a apenas admirar o mundo, e, não, promoveras ações voltadas para sua efetiva transformação. A essência, afinal, pode signi-

38 Ibidem, p. 345.39 Para melhor compreensão da problemática, vide tópico 3.2, no terceiro capítulo, em que ametafísica da phronesis é analisada com mais detalhes.40 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. VI, 5, 1140 a, op. cit., p. 344.41 A crítica, afinal, segundo o modelo da phronesis, é limitada pelo próprio contexto de aplicação.

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ficar exatamente esse bloqueio à atitude humana formadora de novas possibili-dades construtivas do mundo. Ao não desejar transformar, mas apenas contem-plar a realidade, a razão não se traduz em possibilidades de formação de novoscontextos sociais, e, sim, em aceitação de uma realidade que satisfaz à observa-ção filosófica. E, por isso, essa racionalidade não se renova. O critério último dafilosofia prática clássica não é questionável. É a “razão conformista”.

A phronesis, por isso, mantém uma íntima relação com o mundo, com afacticidade, a partir da qual se retira toda a normatividade, que não é, contudo,rigorosamente refletida. É uma normatividade que não discute os próprios pres-supostos, porque a própria prudência, que é o fundamento final do agir práticoe que revela o telos da essência humana, também é fornecida pelo mundo. Areflexão, se houver, ocorre no mesmo plano do que está sendo refletido e, porisso, não é rigorosa, mas passível de distorção. Em uma perspectiva comunicati-va de matriz habermasiana, a phronesis configura uma metafísica, cuja reflexividadeé limitada pelo contexto de aplicação.

1.2.3. DA FILOSOFIA CLÁSSICA AO DIREITO NATURAL: A METAFÍSICA DOS FUN-DAMENTOS NATURAIS DO DIREITO.

A abordagem sobre o prático desenvolvida por Aristóteles trouxe a discussãosobre a existência da configuração essencialista no pensamento clássico. Ametafísica da phronesis assume a vertente de guia para a conduta humana, que,tal como na teoria, não enseja a “reflexão rigorosa” 42 sobre os pressupostosnormativos – pois é limitada pelo contexto de aplicação43 – e revela o telos dealcance da essência humana: a vida boa ou a felicidade. O essencialismo metafísicoesteve acentuadamente presente no pensamento filosófico, estabelecendo umaracionalidade conformista, que deseja contemplar o mundo, mas não transformá-lo44. É nesse contexto temático que se enraízam as características da normatividadenatural. Da mesma forma que se poderia dizer que, para todo objeto, existe umpressuposto que lhe dá unidade e coerência, no âmbito jurídico, o direito naturalé entendido como o fundamento ou princípio de toda normatividade.

42 A “reflexão rigorosa”, segundo a perspectiva habermasiana, deve prever a tensão entrevalidade e facticidade. A phronesis mantém-se enclausurada nas estruturas do mundo e congre-ga, em um mesmo patamar, validade e facticidade. Em síntese, a phronesis opera no plano dafacticidade. Sua normatividade decorre das estruturas consubstanciadas na historicidade. Avalidade, por isso, é sempre uma validade dentro de um modelo. Essas características diferemacentuadamente da Teoria do Agir Comunicativo. (No terceiro capítulo, essa problemática serámais bem desenvolvida).43 Vide tópico 3.2, referente ao estudo da phronesis, no terceiro capítulo.44 Talvez pelas próprias características da sociedade grega – altamente estratificada –, o que seobserva é que se, por um lado, a filosofia clássica deve se voltar para o estudo dos pressupostosmetafísicos que dão coerência e unidade à realidade, por outro, essa tarefa não visa a mudar omundo, mas apenas contemplá-lo. Não é dos gregos a intenção de mudança do mundo. Apesar

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Aristóteles estabelece seu conceito de natureza como “aquilo de onde proce-de, em cada um dos entes naturais, o primeiro movimento, que reside nelesenquanto tais”,45 que é passível de ser aplicado, no âmbito da normatividade,como um fundamento que exprime a essência e a dinâmica das normas. Por suavez, seu conceito de direito é concebido como o conjunto de “atos que tendem aproduzir e preservar a felicidade, e os elementos que a compõem, para a comu-nidade política”,46 inserindo a felicidade, tal como antes analisada, dentro doobjetivo do direito, como seu fim inerente de realização e perfeição da razão.Desse modo, para Aristóteles, o Direito está relacionado com a perfeição darazão, que, segundo ele, é o grande suporte para uma coexistência justa.

A racionalidade conformista, baseada na metafísica essencialista clássica, abre,assim, as portas do direito natural. Em Aristóteles, como apresentado, os objeti-vos imediatos do Direito são a promoção e a preservação da felicidade na comu-nidade política. E a felicidade nada mais é do que o fim a que se dirige natural-mente o homem, como o próprio caminhar em direção à perfeição da razão.Direito e racionalidade estão, pois, enraizados em um pressuposto de realizaçãoda natureza (essência) humana. É coerente, assim, o pensamento aristotélico deque existe um Direito que condiz com esse pressuposto, isto é, um direito naturalque é válido em todos os lugares e que mantém sempre a mesma força,47 inde-

de se embasar em algo além do físico, em última análise, o pensamento grego ainda não sedesvencilhou do próprio mundo dado, objeto de contemplação devido a sua direta correlaçãocom as idéias. Assim, o mesmo mundo se abre para a ciência e para a filosofia. Platão é enfáticoao perceber que há uma gradação entre a compreensão do mundo sensível até aquele do mundodo ser, enfatizando, portanto, uma hierarquia do mundo. Mas, mesmo alcançada a sabedoria apartir de uma razão voltada para os pressupostos, o homem deve se voltar à realidade humana eaplicar, no mundo sensível, o que aprendeu nessa descoberta dos fundamentos. No Mito daCaverna, após a descoberta da luz, o homem volta à caverna e lá aplica a sua sabedoria. Domesmo modo, uma vez lhe revelados os fundamentos, o homem deve empreender esses conhe-cimentos na comunidade. Por isso, mesmo que Platão tenha defendido a hierarquia dos mun-dos e, por conseguinte, a hierarquia do conhecimento, em último momento, todo conhecimentose volta para a contemplação da realidade. Há, pois, uma fascinação pelo mundo.45 ARISTÓTELES. Metafísica. Livro V, 4, 1015a. op. cit., Vol. I, p. 228. Tradução livre.46 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos, V, I, 1129 b 11. op. cit., p. 92.47 Segundo Gadamer, o direito natural para Aristóteles, em hipótese alguma, pode ser consideradoinalterável. A natureza das coisas, que expõe o direito natural, ao ser aplicada, tem de pressuporuma possível alterabilidade: “Na medida em que a natureza das coisas deixa uma certa margemde mobilidade para a imposição, este direito natural pode mudar” (GADAMER, Hans-Georg.Verdad y Metodo. Salamanca: Ediciones Sígueme, 9ª ed, Vol. I, 2001, p. 391. Tradução livre).Além do mais, Gadamer critica a concepção do direito natural sob a perspectiva dogmática:“A teoria jusnaturalista posterior se remete a esta passagem [‘o direito natural é, em todas aspartes, uno e o mesmo’], apesar da clara intenção de Aristóteles, interpretando-a como se elecomparasse aqui a inamovibilidade do direito com a das leis naturais. Porém, o certo é, exata-mente, o contrário. Como mostra precisamente esta passagem, a idéia do direito natural, emAristóteles, somente tem uma função crítica. Não se pode empregá-la em forma dogmática, istoé, não é licito outorgar a dignidade e a invulnerabilidade do direito natural a determinadosconteúdos jurídicos como tais” (Ibidem, p. 391).

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pendentemente da aceitação ou não dos homens.48 A procura pelas essências nafilosofia clássica permitiu estabelecer a distinção entre o Direito decorrente dasconvenções humanas e o Direito derivado da natureza. Essa distinção acompa-nharia o pensamento jusfilosófico desde então.

A natureza qualifica-se como pressuposto validante da normatividade. Não éde se estranhar que, tal como no recurso às essências dos objetos efetuado pelafilosofia clássica, os alicerces do Direito estejam ligados a um pressuposto teóricoessencialista, que não é, porém, objeto de reflexão rigorosa. Resgatar, portanto,a filosofia clássica não tem outro intuito senão a própria exposição de que ojusnaturalismo garantiu, ao longo dos séculos, a manutenção, mesmo que implí-cita, de uma justificação irrefletida para o Direito. Embora tenha havido, obvia-mente, alterações no modo de apresentar sua justificação natural, a estrutura dametafísica manteve-se praticamente a mesma. Desse modo, o que precisa sermais bem investigado é como se deu a manutenção de uma justificação teóricairrefletida como pressuposto validante da normatividade.

A indagação implica uma pesquisa que enfatiza, de início, que o pressupostonatural do Direito sustentou, ao longo dos anos, a característica do pensamentogrego de íntima conexão entre a teoria e a prática, embora pela afirmação, emúltima instância, da primazia teórica. Na filosofia clássica, “o entendimento prá-tico não é potência distinta do especulativo”49 e, desse relacionamento, infere-seque a verdade, no plano prático, também está pautada pelo ser.

É desse ponto que devem ser tomadas as bases para a compreensão danormatividade natural: toda conduta humana implica uma determinadanormatividade, que, por sua vez, representa uma verdade de cunho prático, emúltimo grau, fundamentada na teoria do ser. Assim, sobre a estrutura da metafísicaontológica, estão fundadas as bases da compreensão da normatividade natural.A conclusão de que a política, o direito, em resumo, todas as atividades huma-nas estão saindo da metafísica, por conseqüência, é coerente com a primazia quea filosofia clássica dá ao estudo dos pressupostos a partir de um íntimo relaciona-mento entre racionalidade e sensibilidade.

Ao se dar a primazia ao estudo dos pressupostos, a filosofia clássica identifi-ca-se com a busca pelo conhecimento.50 Essa incessante procura pelo saber é oque guia a atividade do filósofo. Isso, todavia, não significa que o homem já

48 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos, V, 1 16, 1135 a 1. op. cit., p. 103.49 GRAU, José Corts. Curso de Derecho Natural. op. cit., p. 186. Tradução livre.50 Embora a filosofia clássica se volte para os fundamentos – o que, em uma primeira análise,poderia ser algo contrário à perspectiva de identificá-la com o conhecimento, já que vai além domundo dado –, na verdade, o que se verifica é uma manutenção do íntimo contato com o mundo.Assim, mesmo que se paute pela metafísica do ser, a filosofia clássica, em último momento, serestringe ao objetivo e, por isso, mantém a característica de a filosofia ser o conhecimento.Somente na modernidade, sobretudo com Kant, essa perspectiva seria alterada a partir da idéiade liberdade, adiante analisada.

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nasça com o conhecimento.51 A filosofia grega prega o íntimo entrosamentoentre o sensível e o racional como condição do conhecer. É verdade que não sechega a questionar a própria racionalidade e a subjetividade52 nessa pesquisa –afinal, a metafísica não questiona os seus próprios fundamentos –, mas, ao me-nos, se entende, como premissa, que existe algo como uma luz iluminadora docaminhar da investigação, que necessita entrar em contato com o mundo paraobter o verdadeiro conhecimento. Assim também ocorre com a normatividade:a ação humana está pautada por uma verdade prática, que fornece as bases paraa boa conduta. Embora de formas distintas – a Idéia do Bem em Platão e daphronesis em Aristóteles –, o que se verifica é que o homem possui a capacidadede discernir os princípios normativos, havendo, portanto, uma luz – que não équestionada, mas simplesmente aceita – que estabelece as condições para sealcançar a melhor conduta.

A tendência a realizar uma boa ação, que seja a expressão da pura racionalidadehumana, é o que está naturalmente presente no homem. Assim, o que é natural éesse saber como bem agir, como conduzir a vida de forma virtuosa. Como salien-ta José Corts Grau, ao analisar a filosofia clássica, “o bem, o fim e a ordem seconjugam em nosso entendimento prático como se conjugam na realidade”.53 Aíntima interação entre o teórico e o prático fornece os argumentos para se perce-ber que a própria perfeição humana consiste em uma “perfeição da razão”, quese direciona para o entendimento (teoria), campo do científico, e para a vontade(prático), âmbito das virtudes. E essa perfeição da razão, a partir do pensamentoaristotélico, se encontra na felicidade promovida pelo direito natural.

Essa ação fundada na razão – e que determina uma certa normatividade –direciona-se a uma finalidade. Aristóteles, em sua obra Metafísica, esclareceque “o que tem entendimento opera sempre em vista de algo, e isto é um termo;o fim, com efeito, é um termo”.54 Por isso, ao se pensar a normatividade, há dese conceber que a ação humana tem, como essência, o cumprimento de seu fiminerente. Aduz Grau que “nossa tendência irrefreável ao bem é a tendência aalcançar os fins conforme nossa natureza racional e livre”.55 Encontra-se nessaconexão entre ação e finalidade a própria característica do prático: “toda a im-portância que para o entendimento especulativo têm os princípios, têm-na os fins

51 Nem sempre a filosofia se identificou com o conhecimento. Em Kant, como adiante seráanalisado, a filosofia pôde ser identificada também como uma pesquisa sobre a liberdade,abrindo as portas, assim, para o prático na filosofia moderna.52 É interessante perceber que, embora a filosofia clássica não trabalhe a subjetividade, ametafísica do ser acaba por incitar a possibilidade do sujeito, que, todavia, somente foi percebi-da pelos modernos. Questionar o ser, afinal, acaba apresentando uma certa afirmação do sujeitodo conhecimento e isso fica nítido quando se desenvolve a projeção de um entrosamento entreracionalidade e sensibilidade.53 GRAU, José Corts. Curso de Derecho Natural. op. cit., p. 188. Tradução livre.54 ARISTÓTELES. Metafísica. Livro II, 2, 994 b, 10-16. op. cit., Vol. I, p. 92. Tradução livre.55 GRAU, Jose Corts. Curso de Derecho Natural. op. cit., p. 189. Tradução livre.

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para o entendimento prático e para as disciplinas ético-jurídicas”.56 O jusnatu-ralismo, desse modo, nasce dessa correlação entre a ação e os fins, pautada poruma normatividade que se fundamenta em uma racionalidade tida como ineren-te ao homem no encontro da melhor conduta.

A faculdade de escolher os meios mais adequados para atingir certas finali-dades é que dará sustentação ao Direito, uma vez que ele estabelece os critériospara serem alcançadas as finalidades almejadas. O direito, nesse contexto, assu-me as funções de colocar o homem em direção a uma normatividade que estejade acordo consigo mesmo, isto é, com sua própria capacidade inerente de discernirqual conduta é racionalmente coerente. Em síntese, o direito natural confere aohomem a condição de ser pensante no âmbito da normatividade e, sobretudo, setorna um guia cujos fundamentos se encontram em normas que o iluminam emdireção à conduta tida como a mais racional, sem que, contudo, essa normatividadeseja rigorosamente questionada. Caso, porém, ela o seja, o homem estará en-trando em conflito com sua própria condição natural de ser pensante. Questio-nar a normatividade natural é questionar a própria condição humana.

Os alicerces para se estabelecer a crença em uma ordem absoluta que confe-re unidade à racionalidade humana e, por conseguinte, ao Direito não poderiamestar mais bem estabelecidos. Até porque a dúvida sobre os pressupostosnormativos naturais é associada a uma dúvida sobre a própria racionalidade.Assim, com fundamento na postura irracional do confronto com a normatividadenatural, surge a idéia de desordem e, como bem salienta Grau, “a comunica-bilidade das normas e das instituições básicas nos faz vislumbrar a existência deuma ordem baseada nas relações necessárias, conhecidas e representadas emum Ser necessário, e não no azar histórico ou em meras leis de probabilidade”.57

Esse “Ser necessário”, que produz a ordenação da própria condição humana,não necessariamente é alheio ao homem: pode ser representado pela própriaracionalidade, que, embora nele referenciada, adquire o status universal eatemporal, como se houvesse um consenso universal sobre a existência de umanormatividade superior à positiva. O homem pensante é, portanto, a expressãoparticular de um consenso universal que consolida o essencialismo. O homempensante é, do mesmo modo, a expressão da razão que faz o direito natural sedefinir como pressuposto validante da normatividade.

1.2.4. AS PREMISSAS DA CRÍTICA AO DIREITO NATURAL: A RACIONALIDADEMETAFÍSICA

A investigação sobre a metafísica clássica e suas derivações no campo práti-co, com ênfase na questão do Direito, trouxe à tona os elementos necessáriospara se iniciar a crítica a sua falta de reflexividade rigorosa na validade normativa:uma natureza em que não se pensa, que é apenas descrita como uma essência a56 Ibidem, p. 189. Tradução livre.

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expor a própria razão de ser do Direito. É um jusnaturalismo centrado em umaracionalidade que, em última instância, apela para a noção de phronesis, que,por sua vez, consagra o essencialismo a partir do conceito de felicidade. Nocampo da racionalidade jurídica, portanto, a afirmação de um direito naturalobscureceu as possibilidades da crítica rigorosa da validação normativa.

A primeira importante conclusão é a passividade em relação ao mundo. De-fender a normatividade natural não promove as condições da reflexão rigorosa,na medida em que o indivíduo, crente de sua racionalidade, aceita pacificamentea ordenação que lhe é emanada segundo o entendimento concebido como uni-versal e superior à transição do tempo. Sob outro enfoque, sua reflexão é restritaà aceitação daquilo que se entende – e, não, se reflete – como expressão daessência humana: a racionalidade, que, por sua vez, é contemplativa do mundo(metafísica da objetividade), tentando nela encontrar sua substância. Ao não sepromover a reflexão, ocorre a restrição do potencial transformador da razão: elaé confundida com passividade, com a simples contemplação de uma normatividadeque sustenta a essência humana como finalidade pressuposta.

A razão conformista, desse modo, não promove as condições para a críticasocial, uma vez que não favorece a formação de atores sociais, mas de espectadoresdo mundo. Por conseqüência, não impulsiona as condições para aproximar oindivíduo de uma participação coletiva e discursiva a respeito dos caminhos danormatividade. O jusnaturalismo estabelece as condições do isolamento, na medidaem que a racionalidade particular passa a ser condicionada por uma perspectivaessencialista que se porta como um consenso universal a que a razão deve sedirigir. De fato, o essencialismo, embora seja a expressão do geral, isola o indivíduoem sua mera posição de espectador do mundo. A aceitação da normatividadenatural não necessita do diálogo. O jusnaturalismo afirma, pois, o monólogo.

São diversas as características que a normatividade natural, sob o enfoque dopensamento clássico, apresenta: essencialismo, fundamentação metafísica nãoquestionada, promoção da contemplação do mundo, limitação da autonomiaindividual, afirmação do monólogo. O direito natural assume a propriedade deessência necessária, como a manifestação mais perfeita da normatividade. E, talcomo Aristóteles defendeu ser a natureza “aquilo de onde procede, em cada umdos entes naturais, o primeiro movimento, que reside neles enquanto tais”,58 odireito natural é a normatividade essencial cujo movimento está em si própria.

O direito natural não é, por conseguinte, questionado, porquanto não é so-mente causa eficiente, mas também causa final e formal59 da normatividade (a

57 Ibidem, p. 189.58 ARISTÓTELES. Metafísica. Livro V, 4, 1015a. op. cit., Vol. I, p. 228. Tradução livre.59 O direito natural é tanto causa que dá início ao movimento, à normatividade em geral (causaeficiente), como também é o fim a que o direito positivo deve visar (causa final). O direito naturalpode, também, ser compreendido como substância, como a essência necessária de todanormatividade (causa formal).

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essência, afinal, é apenas apresentada – e, não, criticada – no pensamento clás-sico). Ele é, portanto, além de um complexo de normas, o próprio princípio domovimento do Direito. Por outro lado, sobretudo a partir do resgate do aristotelismono Renascimento, ele se confunde com a idéia de ordem e necessidade,60 comoum fundamento metafísico (universal e atemporal) que dá sustentação – ou con-dição de validade – ao direito positivo. Isso é facilmente identificável pela pró-pria qualidade ordenadora e de princípio do movimento que a normatividadenatural é concebida em relação a todo o Direito. Essa comunicação entre odireito natural e o direito positivo cria as condições para a conclusão de que umalei positiva que esteja em desacordo com o direito natural é contrária à razão,que, por sua vez, não problematiza essa essência necessária de todo o Direito.Tanto a normatividade natural quanto a racionalidade são apresentadas comotemas que não necessitam de discussão.

Ao invés da reflexão rigorosa sobre os pressupostos de validação do Direito,aceita-se sua condição ordenadora social injustificada. A direta correlação que sefaz do direito natural com a idéia de convivência justa e ordenada, em si, éapresentada sem maiores questionamentos: o jusnaturalismo fornece os funda-mentos a que recorre, em última instância, toda ordenação. Em síntese, a baseda normatividade repete a estrutura da filosofia clássica: contemplação com aresde admiração pelo objeto, sem, todavia, estabelecer as condições da reflexãosobre seus pressupostos. Embora se reconheça que haja algo além do mundodado, embora se afirme que exista algo além das normas positivas – Platãodistingue lei de justiça61 e Aristóteles, na obra Ética a Nicômacos,62 separa odireito legítimo (ou positivo) do direito natural –, em último momento, a referên-cia é o resgate do mundo concreto, do objeto visível. Os pressupostos são apenasapresentados como uma essência que dá unidade à experiência concreta.

A normatividade vale por si mesma: eis a principal razão que tornou ojusnaturalismo uma presença marcante no pensamento jusfilosófico, como umaresposta final aos questionamentos sobre o Direito. Não é complicado entenderque, para todas as questões que surgissem sobre a normatividade, sempre sedesejou explicitar uma razão de ser da regulação jurídica. E a resposta maisfacilmente encontrada – até porque condizia com as próprias características dopensamento predominante, advindo da filosofia clássica, de uma procura pelaessência dos objetos, em uma nítida atitude contemplativa do mundo – foi bus-car a justificativa do Direito em um critério também voltado para o mundo, istoé, para o conceito de natureza.

Assim, da mesma forma que a filosofia clássica incita a procura pela essênciados objetos, o jusnaturalismo é entendido, em sua configuração clássica, como a

60 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Mestre Jou, 1ª ed., 1970, p. 670.61 Vide os diálogos do Político em Platão (Cf. PLATÃO. Diálogos II – Fedon, Sofista, Político.Rio de Janeiro: Ediouro, 1989).62 Cf. ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. V, 7, op. cit., pp. 331-332.

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“compreensão essencial e absoluta do Direito pela explicitação dos seus constituti-vos fundamentos ontológicos (...) que logo se [projeta] numa intenção normativa”.63

Tal como no pensamento grego, existe a nítida prevalência do teórico sobre oprático ou, em termos mais precisos, de uma prática dominada pelo essencialismoda teoria clássica. Nas palavras de Castanheira Neves, “se [é] prática na suaintenção de validade e na sua projeção normativa, [é] manifestamente teoréticano sentido da sua fundamentação”.64 O critério de validade final, de cunhometafísico e essencialista, torna a teoria a precursora da justificação prática ou,em outros termos, é a “filosofia que [define] anteriormente o nomos da prática, eque [é] compreendida no seu sentido e função como uma normativa ‘filosofiaprática’”.65 São, portanto, aspectos que indicam que a doutrina do direito natu-ral é o reflexo mais nítido, no âmbito da normatividade, das características datradição filosófica que têm prevalecido no pensamento ocidental durante sécu-los: racionalidade metafísica, prevalência do teórico sobre o prático, profundoessencialismo e falta da reflexão crítica sobre os pressupostos normativos.

1.3. PENSAR O DIREITO NATURAL: A PLURALIDADE DE PERSPECTIVAS

1.3.1. O JUSNATURALISMO E A IRREFLEXÃO SOBRE A VALIDADE NORMATIVA: AMANUTENÇÃO DAS ESTRUTURAS DO ESSENCIALISMO E A PREVALÊNCIA DATEORIA SOBRE A PRÁTICA

As premissas da crítica à racionalidade metafísica imbuída no pensamentoclássico promovem os argumentos para se investigar, sucinta e diacronicamente,como o direito natural evoluiu, mantendo, contudo, uma direta referência àscaracterísticas antes estudadas. Em diferentes perspectivas do jusnaturalismo, aherança clássica, mesmo que alterada em determinados aspectos, adiante anali-sados, manteve-se presente. É uma herança cujas conseqüências iniciais já fo-ram apresentadas, indicando, desse modo, o caminho crítico que será tomadotambém neste tópico. A investigação anterior das premissas da filosofia clássicano âmbito normativo e, sobretudo, suas conseqüências (racionalidade metafísica,prevalência do teórico sobre o prático, profundo essencialismo e falta de refle-xão crítica sobre os pressupostos normativos) sustentam as características geraisencontradas em importantes configurações do jusnaturalismo. Surge, assim, umadiscussão que procurará verificar, em algumas manifestações do pensamentojusnaturalista, como essas características se mantiveram e, ao mesmo tempo,compreender os limites que a referência à normatividade natural causou à refle-xão crítica sobre a validade normativa.63 NEVES, Castanheira A. A Crise Actual da Filosofia do Direito no Contexto da Crise Global daFilosofia: Tópicos para a Possibilidade de uma Reflexiva Reabilitação. Coimbra: Coimbra Edito-ra, 2003, p. 24.64 Ibidem, p. 24.65 Ibidem, p. 24.

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A história fez do direito natural um complexo de significações. Diferentespercepções da natureza e, por conseguinte, de sua conformação no normativosurgiram. Contudo, parece que irreflexão sobre a validade normativa, mesmo naalteração da postura de como encarar o direito natural, se consagrou ao longodos séculos. Houve a mudança de postura, a alteração do olhar – por exemplo,da ênfase objetiva para a subjetiva nos jusnaturalistas modernos –, sem, todavia,se escapar da aceitação de temas indiscutíveis do pensamento que dão sustenta-ção ao Direito. A riqueza manifestada na variabilidade de configurações dojusnaturalismo deve-se, por isso, menos à capacidade de se refletir sobre suasbases do que em sua propensão a “reencantar” o mundo às vezes tomado pelaaridez sobre os fundamentos do normativo.

Como uma tentativa de abrir os olhos para o estudo do pensamentojusnaturalista, o caminho a seguir quer desvendar, em importantes manifesta-ções que consagraram a natureza no normativo, a presença de um silêncio sobreos pressupostos da normatividade. A história, assim, se conjuga com o anseio deexpor que, dos argumentos já trazidos pelos gregos até o alcance da subjetivida-de constitutiva aplicada ao Direito, a validade jurídica não foi rigorosa e critica-mente debatida. A evolução jurídica direcionou-se, em distintos aspectos, para aincompreensão da validade normativa. A natureza, na verdade, fechou o campode sua própria crítica. Perpassar, portanto, pela história do direito natural é umpasso importante para se perceber que os pressupostos poderiam ter sido ques-tionados, mas não o foram.

A investigação que ora se inicia parte, dessa maneira, de duas consideraçõesprévias: 1) o direito natural, como também o próprio conceito de natureza, apre-sentaram, ao longo dos séculos, variações radicais em sua estrutura de recursojustificador da normatividade; 2) as variações do direito natural e do conceito denatureza, contudo, nas investigações que ora serão iniciadas, não alteraram aestrutura de justificação irrefletida da normatividade: seja a natureza um funda-mento teórico uno, universal, derivado de uma essência decorrente de umaracionalidade contemplativa do mundo (como nas formulações mais antigas),seja ela um fundamento teórico formal derivado de uma subjetividade constitutiva,cujo conteúdo progride como decorrência de sua adaptabilidade às variações dapráxis (como nas formulações mais recentes), em qualquer das perspectivas, nãose incita propriamente a reflexão crítica sobre os fundamentos da normativi-dade. Há, na verdade, a crença de que o direito natural institui os valores conce-bidos como justificados em si e, portanto, apartados da crítica.

Tomadas as características antes analisadas da filosofia aristotélica, a nature-za é, em síntese, a essência necessária das coisas,66 “aquilo de onde procede,em cada um dos entes naturais, o primeiro movimento, que reside neles enquan-66 Aristóteles apresenta a natureza da seguinte forma: “a natureza é o princípio e a causa domovimento e do repouso da coisa à qual é inerente primeiramente e por si, não acidentalmente”(ARISTÓTELES. Physics. Livro II, 1, 192 b, 20. Lincoln: Univ Nebraska, 1961, p. 53. Tradu-

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to tais”.67 Com esse conceito, o mundo calou-se diante do entendimento acríticode que as coisas têm de apresentar algo que lhes dá unidade e lhes confere aperfeição em sua substância. E, como projeção desse entendimento, o campo dapráxis68 foi dominado por uma prevalência da teoria consubstanciada no concei-to de natureza, o que atingiu, como antes analisado, diretamente a questão davalidade normativa. Expressão da regulação de condutas – campo, pois, dapráxis – o Direito manteve sua justificação, contudo, fiel a uma aceitação irrefle-tida do pressuposto teórico trazido pelo jusnaturalismo. Ao invés de um agirbaseado em um fundamento derivado de uma aceitabilidade – porque inseridonos jogos comunicativos expressivos da tensão entre validade e facticidade –,uma aceitação tida como necessária e evidente do fundamento natural prevale-ceu. Essa discussão incita uma análise mais detida, decorrente da seguinte per-gunta: por que e como o Direito natural fomentou as bases da irreflexão críticasobre os pressupostos normativos teóricos que se expressam na prática normativa?

A resposta deve ser buscada, inicialmente, no conjunto de traços definidoresda filosofia clássica antes investigada. A idéia de natureza surge exatamente des-sa procura pela essência das coisas: o direito natural é concebido como essênciade toda normatividade. O fundamento teórico “natureza” apareceu, na Grécia,desse modo, como uma “instância polêmica contra as leis ‘convencionais’”.69 Aoinvés de se interessar pela dinâmica das convenções sociais representadasnormativamente pelo direito positivo, o mais relevante era seguir a natureza,campo da verdadeira justiça. O direito natural era o fundamento normativo detoda coexistência justa e, como tal, haveria de apresentar o distanciamento ne-cessário da práxis, isto é, deveria ser aceito independentemente da vontade e tersua validade universal e atemporal não questionada. Ao contrário das particula-ridades humanas, dever-se-ia dar primazia ao conhecimento de suas essências,campo que ultrapassava qualquer questão referente ao tempo e ao espaço.

Esse pressuposto do direito natural traria, já no período de Roma, tendoCícero seu maior expoente, a associação das normas naturais a princípios ante-riores a qualquer instituição humana e uma vinculação restrita do direito positivoao direito natural, isto é, somente haveria direito se ele derivasse dos princípiosfundamentais da natureza. Segundo Cícero, “a raiz do Direito está na Nature-

ção livre), deixando explícito que a natureza não é algo que deriva da atividade humana; é,como próprio do interesse de sua filosofia, “a forma ou a substância da coisa, em virtude daqual a própria coisa se desenvolve e se torna o que é” (Ibidem, Livro II, 1, 193 a 28 e ss., p. 56.Tradução livre).67 ARISTÓTELES. Metafísica. Livro V, 4, 1015a. op. cit., Vol. I, p. 228. Tradução livre.68 Práxis ou “filosofia prática” é o campo da filosofia que se volta para o agir humano, para suaconduta e para os efeitos da produção do homem no mundo. O Direito está intimamente relaci-onado à práxis, na medida em que ele estabelece condutas a serem seguidas. Sua fundamenta-ção, contudo, foi tomada por uma nítida prevalência da teoria ao longo dos séculos, tendo anatureza como um importante exemplo.69 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. op. cit., p. 261.

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za”,70 não sendo possível “separar da Natureza a Lei e o Direito”.71 Seu propó-sito, portanto, foi estabelecer que a lei não é apenas o resultado de uma conven-ção social; ela é, acima de tudo, uma exigência racional emanada da natureza.72

O direito natural, semelhantemente ao que se verificou quando se estudou opensamento clássico, é uma essência que guia o homem a praticar o bem e aevitar o mal. Ao mesmo tempo, Cícero expunha algo que já havia sido desenvol-vido pela filosofia clássica e que seria retomado, de forma mais radical, namodernidade: a consagração de que o direito natural é a revelação da lei darazão no homem; ele decorre da “razão reta conforme à natureza”73 e, portanto,“desconhecê-la é fugir de si mesmo; é renegar sua natureza”.74 Incitou-se, as-sim, novamente, o liame entre direito natural e racionalidade.75

Essa característica passaria, porém, antes de alcançar a modernidade (quan-do as discussões iriam trabalhar a racionalidade a partir de uma ênfase nosujeito), por uma radicalização sobre a natureza humana: o direito natural não éapenas fruto da razão; antes, é algo inerente ao indivíduo, como um instinto

70 CÍCERO, Marcus Túlio. Das Leis. Livro I. São Paulo: Cultrix, 1967, p. 47.71 Ibidem, p. 47.72 As palavras abaixo, de Cícero, mostram a íntima vinculação do Direito com a natureza, comotambém os riscos dos desvirtuamentos dos princípios naturais:“Assim, chegamos à conclusão de que a Natureza nos criou para que participássemos todos doDireito e o possuíssemos em comum. Tal é o sentido que neste discurso atribuo ao Direito,quando afirmo que se baseia na natureza; mas, tamanha é a corrupção proveniente dos mauscostumes, que destrói o que poderíamos chamar de lampejos que nos foram dados pela nature-za, fomentando e reforçando os vícios contrários. Se os homens ajustassem seus pensamentos ànatureza e confirmassem o dito do poeta de que ‘nada humano lhes é estranho’, todos respeita-riam igualmente o Direito. Assim, os que receberam a razão da natureza, também receberam ajusta razão e conseqüentemente a lei, que nada mais é que a justa razão no campo das conces-sões e das proibições. E se receberam a lei, também receberam o Direito. Agora, como a razãofoi dada a todos, temos como resultante que todos receberam o Direito. Por esse motivo, Sócratespossuía boas razões para execrar – como era de seu costume – o que primeiro alienou a utilidadedo Direito para lamentar o que havia sido, segundo ele, o início de todas as desgraças (...)”.73 CÍCERO. Marco Túlio. Livro III, XXII. Paris: Firmin-Didot et Cir Libraries, 1881, p. 329.Tradução livre.74 Ibidem, p. 329.75 A passagem abaixo sintetiza as linhas básicas do pensamento ciceriano:“Ele [o direito natural] é uma lei verdadeira, a reta razão conforme a natureza, imutável, eterna,que chama o homem ao bem por seus comandos e o desvia do mal por suas ameaças (...). Nãose pode nem infirmá-la pelas outras leis, nem derrogar a qualquer um seus preceitos, nem ab-rogá-la totalmente; nem o senado nem o povo podem nos afastar de seu império; ela não temnecessidade de intérprete que a explique; não existirá uma em Roma, uma outra em Atenas,uma hoje, uma outra em um século, mas uma única e mesma lei eterna e inalterável rege, aomesmo tempo, os povos, em todos os tempos; o universo inteiro está submetido a um únicomestre, a um único rei supremo, ao Deus todo poderoso, que concebeu, meditou, sancionou essalei: desconhecê-la é fugir de si mesmo e, por haver negado a própria natureza humana, descon-tará as mais graves penas, mesmo se tiver conseguido escapar daquilo que em geral é considera-do suplício (...) (CÍCERO. Marco Túlio. Livro III, XXII. op. cit, p. 329. Tradução livre).

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“escrito no coração dos homens”.76 E, assim, a filosofia teológica do início daIdade Média teria mais motivos para associar o instinto natural do homem a umamarca de Deus. Surge o que seria a peculiaridade principal dessa filosofia: anormatividade natural é “uma força impressa pela natureza na criatura humanapara dirigi-la a fazer o bem e a evitar o mal”.77

A ligação entre homem, Deus e natureza estava tão intimamente definida quejá não havia mais espaço para questionamentos: a natureza ordenadora efundamentadora da normatividade era a própria essência do querer divino ou,em termos mais claros, “a natureza era considerada o produto da inteligência eda potência criadora de Deus”.78 Todavia, seguir a normatividade natural não selimitava apenas a um encontro com a divindade; era, também, sobretudo apartir da perspectiva agostiniana, o caminho que levava o homem, por meio deseu livre-arbítrio,79 ao bem. Transgredir, afinal, os ditames da natureza erasubmeter a alma ao corpo. Não seguir o direito natural, pois, aproximava ohomem do mal. Assim, como decorrência da inserção por Santo Agostinhoda discussão sobre o livre-arbítrio para explicar o mal no mundo, o direitonatural assumiu a função de parâmetro definidor dos limites da liberdade dohomem. Em uma investigação mais detida, o direito natural servia para limi-tar a possibilidade de o homem praticar o mal, isto é, agir contrariamente

76 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. op. cit., p. 262.77 RUFINO. Apud: ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. op. cit., p. 262.78 BOBBIO, Norberto. Locke e o Direito Natural. Brasília: Editora Universidade de Brasília,1997, p. 31.79 A filosofia teológica de Santo Agostinho não trabalhou a liberdade sob a perspectiva normativa,apenas a liberdade do particular, no intuito de se encontrar uma resposta para a existência domal no mundo. As passagens abaixo, extraídas do livro VII de suas Confissões e do Livro V daCidade de Deus, revelam como o livre-arbítrio (vontade) é o responsável pelo mal do mundo:“Procurei o que era a maldade e não encontrei uma substância, mas sim uma perversão davontade desviada da substância suprema – de Vós, ó Deus – e tendendo para as coisas baixas:vontade que derrama as suas entranhas e se levanta com intumescência” (AGOSTINHO, Santo.Confissões. Livro VII, 16. São Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 190).“(...) Nem peca o homem precisamente porque Deus soube de antemão que havia de pecar;diria mais, não se põe em dúvida que o homem peca quando peca, justamente porque Aquelecuja presciência não pode enganar-se soube de antemão que nem o destino, nem a fortuna, nemoutra coisa havia de pecar, senão o próprio homem, que, se não quer, com certeza não peca;mas, se não quer pecar, também isso Ele o soube de antemão” (AGOSTINHO, Santo. Cidadede Deus. Livro V, Cap. X. São Paulo: Editora das Américas, 1961, p. 271).A passagem abaixo aborda a questão do livre-arbítrio para Santo Agostinho:“O pecado é, segundo Agostinho, uma transgressão da lei divina, na medida em que a alma foicriada por Deus para reger o corpo, e o homem, fazendo mau uso do livre-arbítrio, inverte essarelação, subordinando a alma ao corpo e caindo na concupiscência e na ignorância. Voltadapara a matéria, a alma acaba por secar-se pelo contato com o sensível, dando a ele o pouco desubstância que lhe resta, esvaindo-se no não-ser e considerando-se a si mesma um corpo. (...) Aqueda do homem é de inteira responsabilidade do livre-arbítrio humano (...)” (PESSANHA,José Américo Motta. Vida e Obra. In: AGOSTINHO. Santo. Confissões. op. cit., p. 21).

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aos parâmetros da fé: o direito natural existia para limitar o livre-arbítrio ou,a partir de outro foco de análise, havia somente uma liberdade para todos.80

Verifica-se que a natureza continuou a ser, na filosofia teológica agostiniana,um conceito irrefletido e a fé se tornou o novo guia da ação humana. Devido aofato de Santo Agostinho ter buscado seus parâmetros em um recurso de fé,evidentemente, a questão da reflexão rigorosa sobre os pressupostos danormatividade natural não haveria de ocorrer. Eles foram aceitos como dignosde crença. E, desse modo, a afirmação da natureza obscureceu a compreensãoda práxis, que se manteve ligada a um conceito irrefletido.

Em suas linhas-mestras, também a filosofia escolástica não alteraria essa pers-pectiva. O projeto de São Tomás de Aquino, por exemplo, retomou o pensamentoaristotélico de procura pelo ser das coisas, embora tenha feito a sua distinção como ser de Deus. A inserção do ser de Deus surgiu para explicar a própria causali-dade do mundo:81 o finito, o mundo, tudo é causado pelo infinito, pelo divino.82 Ofinito é apenas a reprodução imperfeita da ordem infinita de Deus. Na filosofiatomista, portanto, as características da discussão sobre a normatividade naturalforam resgatadas a partir de uma adaptação da filosofia clássica ao contexto cris-tão. Nessa adaptação, o direito natural foi compreendido como instinto e razão.83

80 É um caminho distinto daquele seguido por Kant para afirmar a liberdade. A liberdade, emKant, está no campo da prática. De fato, a filosofia kantiana trouxe o resgate da prática tãoesquecida desde a filosofia grega. Essa discussão será futuramente retomada. Em Santo Agos-tinho, o livre-arbítrio somente é inserido para explicar o mal do mundo, mantendo, como aspec-to essencial de sua filosofia, a primazia do teórico. Santo Agostinho quer mostrar que é necessá-rio superar a razão, que há algo além do mundo dado. É a metanóia, a transformação espiritualque possibilitará ao homem descobrir o novo, aquilo que está acima da racionalidade humana.Assim, há uma metafísica teológica acima da metafísica grega. Todavia, a filosofia continuasustentando o mundo dado, embora, acima dela, exista a fé. Em última análise, os cristãoscontinuam expondo, na filosofia, a mesma estrutura do pensamento clássico, não superando aespiritualidade grega. A filosofia continua sendo, tal como nos gregos, o campo do conhecimen-to. Por sua vez, a metafísica cristã também continua a estabelecer o silêncio, não podendojustificar-se. É uma questão de fé.81 Diferentemente de Aristóteles (que dizia terem os objetos sua própria causalidade – a coisa“em si”, a substância), São Tomás de Aquino estabeleceria que o ser não é uno. Como salientaAbbagnano, “Santo Tomás acaba na contingência do ser do mundo e em sua dependência dacriação divina” (ABBAGNANO, Nicolas. Historia de la Filosofia. op. cit., p. 397. Traduçãolivre).82 Vide AQUINO, São Tomás. Suma Teológica. Ia. Parte. Questão XIII, Art. V. Porto Alegre:Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes, Livraria Sulina Editora; Caxias do Sul:Universidade de Caxias do Sul, 2ª ed., 1980.83 As inclinações fundamentais da natureza podem ser encontradas na questão n. 94, art. 2º, dasegunda parte da Suma Teológica:“(...) Mas assim como o ente é a noção absolutamente primeira do conhecimento, assim o bemé o primeiro que se alcança pela apreensão da razão prática, ordenada à operação; porque todoagente opera por um fim, e o fim tem razão do bem. Daqui que o primeiro princípio da razãoprática é o que se funda sobre a noção de bem e se formula assim: “o bem é o que todos

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São Tomás de Aquino explicitou que existem dois campos cuja relação é dedependência e subordinação: a razão está subordinada à fé, à revelação. Comodecorrência, existe uma lei eterna, originada de Deus, que é a causa de todaordenação e a expressão da razão divina, cujo conhecimento somente ocorreparcialmente mediante sua manifestação no mundo.84 Dela, deriva-se a lei danatureza, que o homem pode conhecer por intermédio de sua racionalidade.Segundo Aquino, a lei natural “não é outra coisa senão a impressão da luz divinaem nós. É, pois, patente que a lei natural não é outra coisa senão a participaçãoda lei eterna na criatura racional”.85 No campo mais concreto, previu as leisdivinas, como verdades expostas nas escrituras, e as leis humanas, as mais im-perfeitas e contingentes.86 A lei decorrente da atividade humana tem de estar de

apetecem”. Em conseqüência, o primeiro preceito da lei é este: “o bem tem de ser feito ebuscado; o mal tem de ser evitado”. E sobre este se fundam todos os demais preceitos da leinatural, de sorte que, quando se tem de fazer ou evitar, cairá sob os preceitos desta lei namedida em que a razão prática o capte naturalmente como bem humano.“Por outra parte, como o bem tem razão de fim, e o mal, do contrário, segue-se que tudo aquiloa que o homem se sente naturalmente inclinado o apreende a razão como bom e, portanto,como algo que deve ser procurado, enquanto que seu contrário o apreende como mal e evitado.Daqui que a ordem dos preceitos da lei natural seja correlativa à ordem das inclinações natu-rais. E assim encontramos, antes de tudo, no homem uma inclinação que lhe é comum comtodas as substâncias, consistente no que toda substância tende, por natureza, a conservar seupróprio ser. E, de acordo com esta inclinação, pertence à lei natural tudo aquilo que ajuda àconservação da vida humana e impede sua destruição. Em segundo lugar, encontramos nohomem uma inclinação para bens mais determinados, segundo a natureza que tem em comumcom os demais animais. E desta inclinação, consideram-se de lei natural as coisas que a nature-za ensinou a todos os animais, tais como a conjunção dos sexos, a educação dos filhos e outrascoisas semelhantes. Em terceiro lugar, há no homem uma inclinação ao bem correspondente ànatureza racional, que é sua própria, como é, por exemplo, a inclinação natural a buscar averdade acerca de Deus e a viver em sociedade. E, segundo isto, pertence à lei natural tudo oque se refere a esta inclinação, como evitar a ignorância, respeitar os concidadãos e todos osdemais relacionados com isto”.84 Segundo São Tomás de Aquino:“Em si mesmas, as coisas de Deus não estão ao alcance de nosso conhecimento; sem embargo,manifestam-se a nós seus efeitos, tal como diz o Apóstolo em Rom 1,20: As perfeições invisíveisde Deus são alcançadas por nosso entendimento por meio das coisas criadas.“Se bem que cada um conheça a lei eterna na medida de sua capacidade, tal como acabamosde explicar, ninguém pode alcançar sua perfeita compreensão, posto que não pode se manifes-tar totalmente em seus efeitos. Por isso, conhecer a lei eterna da maneira indicada não querdizer que se conheça toda a ordem pela qual as coisas se encontram perfeitamente ordenadas”(AQUINO. São Tomás. Suma Teológica. IIa. Parte, Questão 93, Art. 2º).85 AQUINO, São Tomás. Suma Teológica. IIa. Parte, Questão 91, Art. 2º.86 A passagem abaixo resume como o pensamento de São Tomás de Aquino mostra o essencialismoque já advinha do pensamento clássico, pois a razão prática, em último momento, irá sempre sebasear em um pressuposto teórico que não é, todavia, rigorosamente refletido:“A lei, como já expusemos (q. 90 a.1 ad 2), é um ditame da razão prática. Por sua vez, oprocesso da razão prática é semelhante ao da especulativa, pois uma e outra conduzem a deter-

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acordo, tal como na relação de causalidade entre infinito e finito, com os parâmetrosdefinidos pela lei natural, que é o reflexo da lei eterna: “da lei natural, que é aprimeira regra da razão, deve ser derivada toda lei humana”.87

Assim, tal como já se verificava no período clássico, o direito da natureza, noperíodo medieval, era o fundamento de toda a normatividade; era ele o modelo aser seguido pelo direito positivo. Em seus aspectos principais, a metafísica danatureza manteve-se como a própria razão de ser de toda a normatividade; anatureza tornou-se, por conseguinte, o campo da racionalidade que não discutiaos seus parâmetros.88 Sob outra vertente de análise, verifica-se que o essencialismodo pensamento clássico foi estendido para uma perspectiva que também colocavaa razão prática a serviço de um fundamento teórico irrefletido. Del Vecchio ilustrabem como a ação humana (âmbito da práxis) foi limitada pelo contexto da prima-zia do teórico na filosofia tomista, ao incitar que, ao homem, “sua autonomia nãolhe é plenamente reconhecida na ordem teórica (como sujeito do conhecimento),nem na ordem prática (como sujeito das ações). A heteronomia domina”.89

A partir de outro enfoque (que não contradiz o que até então foi exposto,mas, sim, o complementa), o direito natural, ao invés de se basear em uma or-dem universal cósmica ou divina, pôde ser concebido como uma “técnica racio-

minadas conclusões partindo de determinados princípios, segundo vimos acima (ib.). De acordocom isto, devemos dizer que, assim como na ordem especulativa partimos dos princípiosindemonstráveis naturalmente conhecidos para obter as conclusões das diversas ciências, cujoconhecimento não nos é inato, senão que o adquirimos mediante a indústria da razão, assimtambém, na ordem prática, a razão humana tem de partir dos preceitos da lei natural, como deprincípios gerais e indemonstráveis, para chegar a assentar disposições mais particularizadas. Eestas disposições particularizadas descobertas pela razão humana recebem o nome de leis huma-nas, supostas as demais condições que se requerem para constituir a lei, segundo o dito anterior-mente (ib. a. 2-4). Por isso, diz Túlio na Retórica que, em sua origem, o Direito procede danatureza; logo, com a aprovação da razão, algumas coisas se converterão em costumes; finalmen-te, estas coisas surgidas da natureza e aprovadas pelo costume foram sancionadas pelo temor e orespeito às leis” (AQUINO. São Tomás. Suma Teológica. IIa. Parte, Questão 91, Art. 3º).87 De acordo com São Tomás de Aquino:“Segundo diz Santo Agostinho em I De Lib. Arb., a lei que não é justa não parece que seja lei.Por isso, terá força de lei na medida em que seja justa. Agora, nos assuntos humanos se diz queuma coisa é justa quando é reta em função da regra da razão. Mas a primeira regra da razão éa lei natural, como já vimos (q. 91 a.2 ad 2). Logo, a lei positiva humana tem força de leiquando deriva da lei natural. E se algo está em desacordo com a lei natural, já não é lei, senãocorrupção da lei” (AQUINO, São Tomás. Suma Teológica. IIa. Parte, Questão 95, Art. 2º).88 Sob o ponto de vista político, a afirmação da natureza como guia da normatividade apresentoualgumas conseqüências relevantes: se, por um lado, poderia ser uma limitação ao poder estatal,por outro, poderia ser a justificativa de sua autoridade. A irreflexão sobre a justificativa danormatividade causou, desse modo, a possibilidade de as normas serem empregadas consoanteos interesses que se destacavam na sociedade. Em termos mais diretos, pela permanência daprimazia da teoria a partir da consolidação da natureza, a práxis social foi obscurecida, o quefomentou um Direito fora da pauta democrática.89 DEL VECCHIO, Giorgio. Lições de Filosofia do Direito. Vol. I. op. cit., p. 83.

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nal de coexistência”.90 Essa concepção tornou-se mais explícita na modernidade,em que a referência à ordem divina se converteu em ordem matemática que aciência deveria desvendar. Assim, a partir da metafísica natural conformadapela metafísica teológica surgiu, na modernidade, a metafísica natural conforma-da pela ciência. E, como conseqüência dessa alteração de postura, a racionalidadeassumiu o papel central no âmbito do jusnaturalismo.91

Tal como a filosofia foi sendo preterida conforme avançava a ciência, anormatividade natural sofreu a transformação de justificação de cunho teológicoem uma justificação de cunho científico.92 Isso, porém, não alterou as estruturasda metafísica em que se assentava o recurso à natureza no campo da norma-tividade: o avanço da ciência não transformou a irreflexão sobre o fundamentonatural da normatividade. Segundo o projeto moderno, a natureza era o núcleodas verdades científicas, repetindo, apesar de expor o enfoque racional-matemá-tico, a primazia da teoria em detrimento da compreensão da práxis social. E, aoassumir essa postura, novamente a natureza manteve sua condição de recursojustificador da normatividade sem ser, contudo, lançado ao crivo da críticaintersubjetiva. Logo, foi uma transição que reafirmou o silêncio. Afinal, a funda-mentação – e, portanto, a validade normativa – não é o campo das provascientíficas, mas, sim, da crítica.

Diante da compreensão de ser a natureza tanto a causa eficiente como acausa final dos objetos ou, o que significaria o mesmo, sua substância ou essên-cia necessária, a dicotomia “natureza e práxis” promoveu, sobretudo no pensa-mento moderno, o contraste entre natureza e convenção social ou, mais direta-mente, entre “natureza e cultura”, “natureza e história”, “natureza e civilização”.93

A primazia do teórico acarretou a contemplação da realidade no intuito de seconseguir desvendar, nos objetos, a substância que lhes dava coerência e unida-

90 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. op. cit., p. 263.91 O direito natural moderno também apresentou algumas variações que não enfatizaram aracionalidade como cerne da sua descoberta. É o que salienta Abbagnano na passagem seguin-te, explicitando a presença de algumas características dogmáticas do período anterior no pensa-mento de Locke:“Locke, no Ensaio sobre a Lei Natural, negava que esta lei fosse um ditame da razão e aconsiderava como sancionada e impressa nos corações humanos por uma potência superior; demodo que a razão não faz mais do que descobri-la e não é sua autora, mas intérprete” (Ibidem,p. 264).92 É interessante, nesse aspecto, a análise empreendida por Juan Llambías de Azevedo a respei-to da filosofia do direito de Hugo Grocio, que teria aproximado os princípios do direito naturaldo projeto científico dos epistemólogos do século XVII e de uma razão matemática, o que, porconseqüência, gerou uma laicização do direito natural:“A invariabilidade essencial do direito natural torna possível, segundo Grocio, constituir comele uma verdadeira ciência cujos preceitos têm de ser descobertos seguindo o método maisacima exposto. O direito positivo, ao contrário, por ser variável e diferente segundo os países,está fora da ciência” (AZEVEDO, Juan Llambías. La Filosofia del Derecho de Hugo Grocio.Montevideo: Pena & Cia, 1935, p. 43. Tradução livre).

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de. E, ao assim proceder, fechou os olhos para o entendimento do própriomovimento da prática nas sociedades, porque era justificado em um pressupostoteórico que não instigava a reflexão crítica.

A teoria, desse modo, conquanto fosse o campo da especulação filosófica eda contemplação objetiva, era a expressão do distanciamento da justificaçãocrítica do real. Isso porque o fundamento, por um lado, não era discutido naspráticas sociais e, por outro, era aceito sem possibilitar, em contrapartida – atéporque contrariaria sua perspectiva contemplativa –, projetos para uma açãomodificadora da realidade que decorressem de um pressuposto normativo soci-almente discutido. No Direito, os resultados desse propósito não entrariam emcontradição com as características gerais do desenvolvimento filosófico: tambéma primazia da teoria fomentou, a partir da dicotomia “direito natural e direitopositivo”, o silêncio da crítica aos pressupostos normativos. Contemplar a natu-reza – e o direito natural – era o caminho; mudá-la e criticá-la contrariaria aessência de toda regulação. Por isso, a mudança – nas convenções –, se ocorres-se, teria de seguir a natureza, que, porém, não fornecia as bases para sua espe-cífica reflexão. Em última análise, a mudança (nas convenções) não se sustenta-va reflexivamente na sociedade.

O jusnaturalismo racionalista da modernidade, em suas características bási-cas anteriormente mencionadas, continuou a expor o essencialismo de outrora.A própria afirmação de uma natureza respaldada pela ciência acompanhou essatradição: a ciência, afinal, de modo geral, não estimula a ênfase no particular;ela, ao manter a primazia do teórico sem estabelecer as condições da crítica,domina estrategicamente94 as possibilidades de se conceber uma racionalidadeque promova o auto-esclarecimento dos atores sociais e a auto-reflexão dos fun-damentos da normatividade, características que exigem a superação da dicotomiateoria e prática.95

Paradoxalmente, a racionalidade científica que sustentou essa transição doconceito de natureza – e, por conseguinte, do direito natural – acabaria, séculosadiante, por intermédio do positivismo jurídico,96 negando o recurso à justifica-ção natural dentro do espectro jurídico-científico. Por ora, porém, o que deveser destacado é que a postura moderna inicial fez da natureza a garantidora deum Direito concebido como uma técnica racional da qual se deduziam, como emuma derivação lógico-analítica necessária, princípios evidentes da normatividade.

93 Vide BOBBIO, Norberto. Locke e o Direito Natural. Brasília: Editora UnB, 1997, p. 29.94 O termo estrategicamente reflete a discussão adiante retomada (Cap. IV) sobre a racionalidadesistêmica da ciência, que, sem o devido contraponto comunicativo, coloniza as possibilidades dacrítica.95 O debate sobre a racionalidade e a ciência será retomado no quarto capítulo.96 O positivismo jurídico analisado neste livro é o de matriz kelseniana, expresso em sua TeoriaPura do Direito, mais especificamente, em sua segunda edição.

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E, assumindo de vez a postura científica, a evidência não podia ser questionada.Nesse contexto, a evidência derivada da fé foi substituída pela evidência deriva-da da pesquisa individual pautada pela natureza racional humana. É um novotempo que, todavia, não alterou as estruturas da metafísica natural. O que semodificou foi, na verdade, o eixo de sustentação da evidência.97

1.3.2. A ALTERAÇÃO DA FORÇA DO DIREITO NATURAL DIANTE DO DIREITO PO-SITIVO: A REESTRUTURAÇÃO DA TENSÃO ENTRE VALIDADE E FACTICIDADE E ATRANSIÇÃO PARA A SUBJETIVIDADE CONSTITUTIVA NO JUSNATURALISMO DEMATRIZ KANTIANA98

Todo esse desenrolar histórico, analisado de modo sintético e generalizado,ressalta que, não obstante a procura pelos fundamentos da realidade normativatenha apresentado variações de acordo com a concepção de natureza, em seusparâmetros básicos, não houve projeção do novo em seus diversos contextos: asbases da “irreflexão” mantiveram-se praticamente intactas. Em vez disso, verifi-cou-se a alteração da força da justificação natural diante do direito positivo,mantendo-se, todavia, a lacuna crítica de outrora. A alteração, portanto, não sedeu nas condições da reflexão, mas na forma como a justificativa se apresentavaao direito positivo. A tensão entre validade e facticidade transformou-se, sem, noentanto, se promover a crítica da validação normativa. De qualquer maneira,como decorrência da modificação do eixo de sustentação da evidência, ocorreua reestruturação da tensão entre validade e facticidade.

97 É interessante notar que, na crença na evidência, está a própria problemática da ciência.Aristóteles, em sua obra Organon, mais particularmente nos Tópicos, advertia que, em últimaanálise, a ciência não se desvincula da dialética, campo das opiniões (doxa). Toda evidência,portanto, se seguida a cadeia analítica, confronta-se com os primeiros princípios, que não sãoauto-evidentes, mas objetos de argumentação e de debate. Em Aristóteles tem-se, assim, umaimportante confrontação com a procura incessante de uma fundamentação, a partir das provascientíficas, de todo conhecimento. É o que a passagem a seguir elucida:“Aristóteles pensa, com efeito, que a dialética não constitui somente uma sadia ginástica mentalou uma arte de se trabalhar habilmente discussões. Ele afirma que a dialética é positivamenteútil à ciência e isso de duas maneiras: a dialética ensina, em princípio, a levantar “aporias”, aexpor o pró e o contra, por conseguinte, a se orientar em uma situação de julgar com competência.Ademais, e essa afirmação parece ter intrigado mais de um aristotélico, “ela serve para conhecer osprincípios” (LE BLONDE, J. M. Logique et Méthode Chez Aristote. Paris: Libraire PhilosophiqueJ. Vrin, 3a ed., 1973, p. 7. Tradução livre. Grifo não presente no original).Infere-se, portanto, que mesmo o conhecimento científico, tal como concebido por Aristóteles,não afasta a presença da dialética, uma vez que, graças à existência de princípios, é que sedesenvolve a ciência. “Reconheçamos, portanto, a aporia e a complexidade da dialética: ela seapresenta como uma disciplina ambígua, oposta por um lado ao método científico e, por outro,intimamente ligada à ciência, uma vez que ela a prepara e a fundamenta. Ela apresenta umprimeiro problema de método” (Ibidem, p. 8).98 O termo jusnaturalismo de matriz kantiana, nesta pesquisa, restringe-se às perspectivas dedois autores adiante analisados: Rudolf Stammler e Giorgio del Vecchio.

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Essas conclusões podem ser verificadas ao se retomar, com mais cuidado, odelineamento anterior apresentado sobre as diferentes configurações do direitonatural: 1) por um lado, em sua configuração mais antiga (clássico-medieval), odireito natural era concebido como parte de uma cadeia hierárquica em que odireito positivo tinha, no direito natural, o seu fundamento, cabendo àqueleapenas regular diferentes circunstâncias em uma adaptação histórico-social dojusnaturalismo à situação concreta, em nítida obediência à máxima bonumfaciendum, male vitandum (fazer o bem e evitar o mal); 2) com peculiaridadesdistintas, por outro lado, o direito natural, em sua exposição moderna, adquiriua conformação de “sistema de uma normatividade abstratamente deduzida deaxiomas teológicos e ético-racionais (...) ou a partir de certos postulados antropo-lógico-racionais”.99 Tornou-se um direito da razão – e, portanto, idealizado emsua perfeição – que tinha a função crítica em relação ao direito contextualizadoem sua história, isto é, ao direito positivo. Ao invés de uma cadeia hierárquicaque constituía a realidade positiva, o direito natural moderno apresentava senti-do e constituição diversos do direito positivo, como seu critério de avaliaçãoética. Ele não mais determinava diretamente o conteúdo da norma positivada,mas avaliava a sua consonância com os princípios tidos como naturalmente obti-dos pela razão.100

Apesar dessas diferenças, em qualquer das manifestações da normatividadenatural, existia uma procura pela justificação do Direito no conceito aberto eirrefletido de natureza. É esse o diferencial da metafísica da natureza no Direito:mesmo quando se apresentou como critério de avaliação ética do direito positi-vo, em último grau, a metafísica da natureza esteve presente e expôs, sim, umarazão de ser justificadora, embora não constitutiva, da normatividade. Quando,porém, essa justificativa foi enfraquecida pela própria expansão do intuitocientificista do Direito no estudo da norma jurídica, perdeu-se o interesse sobreo direito natural como modelo de normatividade ideal.101

99 NEVES, A. Castanheira. A Crise Actual da Filosofia do Direito no Contexto da Crise Global daFilosofia. Tópicos para a possibilidade de uma reflexiva reabilitação. op. cit., p. 25.100 Segundo Gadamer, o direito natural aristotélico também possuía função crítica em relação aodireito positivo. Para ele, a sua característica é ter uma “função crítica enquanto que legitima aapelação ao direito natural somente ali onde surge uma discrepância entre dois direitos”(GADAMER. Verdad y Método. op. cit., pp. 391-392).De qualquer modo, há de se atentar que, embora apresentasse tal função, no pensamentoaristotélico, o direito natural representava a essência necessária da normatividade e, por isso,tinha a função de dar unidade e coerência às normas. Havia, pois, um elemento de princípioordenador na concepção do direito natural que estava por trás do direito positivo. Do mesmomodo que não há objeto sem uma essência, não há que se falar em Direito sem o direito natural.Essa correlação era mantida, ao contrário da modernidade, que, cada vez mais, foi relegando odireito natural a uma função distanciada do direito positivo.101 É essa a lição que transmite a passagem abaixo, expondo a perda de sentido por que passouo direito natural e, também, a razão de ser do conseqüente positivismo jurídico, que muito sedeve à gradual perda de vinculação ontológica entre o direito natural e o direito positivo:

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A perda da vinculação ontológica promovida pela modernidade estabelece-ria a necessidade de um novo critério de validação normativa que pudesse serexplicado por meio da estrutura formal-metodológica de uma teoria científica.Uma nova tensão entre validade e facticidade iria surgir, sem, contudo, estabe-lecer as condições da reflexão crítica. Novamente, os critérios de validação doDireito não construiriam as possibilidades de uma auto-reflexão dos pressupos-tos da normatividade. Na verdade, o cientificismo no Direito de matriz formal-normativa,102 como será analisado no próximo capítulo, ao negar a metafísicanatural, acabou por consagrar outra metafísica: em vez de buscar as essências apartir do conceito de natureza, passou-se a querer encontrar a “norma em si”,compreendê-la nos limites de sua própria essência. São características que per-mitem afirmar uma modificação da postura essencialista e, não, das condiçõesdo questionamento discursivo sobre a validação normativa.

É essa investigação epistemológica que passou a vigorar. Nas palavras deCastanheira Neves,

a filosofia do direito não se ocuparia do “direito da natureza”, mas só da “nature-za do direito” – competia-lhe a determinação dos seus pressupostos constitutivos,atingir a sua conceitualização fundamental, a explicitação das suas decisivas im-plicações práticas, numa palavra, a sua intengibilidade e nada mais.103

A filosofia do direito foi, portanto, reduzida à epistemologia jurídica.A ciência dominou os campos em que se poderia ocorrer a possibilidade da

crítica e, dessa maneira, efetivou-se o abandono gradual – mas intenso – dafilosofia, que passou a assumir os contornos de mera teoria do direito. O “desen-cantamento do mundo” weberiano104 atingiu o Direito rigorosamente: a

“(...) É que este “direito natural” moderno ou os seus sistemas normativos jusracionalistashaviam perdido, como já o denunciava o seu próprio dualismo, a vinculação ao ser enquanto tal– não se inseriam com o direito positivo num sistema integrante que globalmente radicaria noser –, pois não eram verdadeiramente mais do que sistemas racionalmente construídos, emborainvocando como base axiomas e postulados que se pretendidam “naturais” na sua evidênciaética. E daí, paradoxalmente, que esse direito natural moderno não fosse verdadeiramenteDireito. É que, também para o Direito, ou particularmente para o Direito como entidade práti-ca, a “essência” não comprova nem garante a “existência”: o Direito não o é (não é Direito) semum particular modo de “existência”, sem um específico modo-de-ser. Para que o Direito possareconhecer-se como tal não basta a sua intencionalidade normativa, há que revelar-se determinantedimensão da práxis – desde logo em termos de vinculante validade para a ação ou interação”(NEVES, A. Castanheira. A Crise Actual da Filosofia do Direito no Contexto da Crise Global daFilosofia. Tópicos para a possibilidade de uma reflexiva reabilitação. op. cit., p. 25).102 O cientificismo no Direito, analisado neste trabalho, cinge-se à proposta da segunda edição daTeoria Pura do Direito de Hans Kelsen, que será analisada no capítulo seguinte.103 Idem, p. 34.104 Para tanto, vide WEBER, Max. Ciência e Política: Duas Vocações. São Paulo: Cultrix, 10ªed., 2000.

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racionalidade jurídica foi dominada pelo avanço da racionalidade estratégica105

e, ao procurar a fundamentação estritamente epistemológica de seus objetos,conforme salienta Jürgen Habermas, “o enfoque metódico destinado a imunizaro cientista contra os preconceitos locais [foi] supervalorizado e interpretado comosendo o do primado, internamente fundamentado, da teoria frente à práxis”.106

O próprio cientificismo adquiriu os contornos de uma nova metafísica: o seuobjeto foi supervalorizado; a teoria foi supervalorizada. Tal como na metafísicada natureza, a fundamentação da teoria recaiu sobre si mesma, sem fornecer ascondições do questionamento.107

A crise não tardaria – e ela não se deveu apenas ao fato da história não poderser unidimensionada, existindo, pois, movimentos antagônicos e não condizentescom a tendência majoritária. Mais do que os possíveis confrontos com perspecti-vas diversas, o “cansaço perante o frio intelectualismo positivista” 108 foi o fatoque definiu as bases da procura pelo novo. Por sua vez, a redução da razão àreferência formal ao método, em que a validade dos conteúdos se volatiza navalidade lógico-formal, também não mais condizia com a amplitude dos fenôme-nos dispersos e plurais: “a inserção das realizações teóricas em seus contextospráticos de formação e de aplicação desperta a consciência para a relevância doscontextos cotidianos do agir e da comunicação” 109 – salientaria Habermas. Ocientificismo jurídico de matriz formal-normativa não conseguiu responder – atéporque não era o seu objetivo – aos problemas mais inerentes à condição huma-na.110 E esse novo olhar que se abria revigorava o sentido da própria filosofia: não

105 “Racionalidade estratégica”, que adiante será analisada, significa uma forma de racionalidadeem que os indivíduos agem movidos pelo sucesso pessoal e, não, pela solidariedade social(intersubjetividade participativa). Ao invés da promoção da crítica construtiva sobre os diferen-tes fundamentos da normatividade, aceita-se pacificamente a construção normativa baseada emprojetos de afirmação da individualidade e da dominação de um sobre o outro.106 HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-Metafísico. op. cit., 2002, p. 42.107 As palavras de Jürgen Habermas são ilustrativas a respeito da “compreensão absolutista deuma teoria” que o positivismo jurídico promoveu:“(...) No desprezo pelo materialismo e pelo pragmatismo sobrevive algo da compreensão abso-lutista de uma teoria, que não se eleva somente sobre a empiria e as ciências singulares, mas é“pura” no sentido da eliminação catártica de todos os vestígios de seu contexto do surgimentoterreno. Assim se fecha o círculo de um pensamento da identidade, que se introduz a si mesmona totalidade que pretende abranger, cuidando, portanto, de satisfazer à exigência de funda-mentar todas as premissas a partir de si mesmo” (Ibidem, p. 42).108 NEVES, A. Castanheira. A Crise Actual da Filosofia do Direito no Contexto da Crise Global daFilosofia. Tópicos para a possibilidade de uma reflexiva reabilitação. op. cit., p. 34.109 HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-Metafísico. op. cit., p. 43.110 Afinal, como salienta Castanheira Neves, “o homem não pode renunciar por muito tempo – jáque seria isso negar, impossivelmente, a vocação de se assumir a si próprio no que transcende –à reflexão sobre o sentido da sua existência e do mundo em que existe” (NEVES, A. Castanheira.A Crise Actual da Filosofia do Direito no Contexto da Crise Global da Filosofia. Tópicos para apossibilidade de uma reflexiva reabilitação. op. cit., p. 34).

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mais uma “filosofia epistemológica”; não mais uma “filosofia científica”; masuma filosofia que superasse a metafísica advinda da primazia da forma lógico-deôntica na construção de uma metodologia pura para a ciência do Direito.

Diante da crise de validez decorrente de uma proposta científica de origemformal-normativa, a tensão entre validade e facticidade foi atingida na medidaem que se tornou necessário estabelecer um novo critério justificador danormatividade. É nessa procura pelo novo critério que diferentes correntes depensamento surgiriam.111 Entre elas, destacou-se o resgate das premissas dodireito natural, agora, evidentemente, conformado pelas implicações que o tem-po gerou na base de sua tradição. Pensar no jusnaturalismo, em uma primeiraanálise, é a justificativa mais facilmente encontrável para realizar um embatecom a primazia dada à forma pelo pensamento jurídico-científico.

Devido ao “cansaço perante o frio intelectualismo positivista”, criaram-se ascondições para se renovar um discurso já não tão inédito e cujos pressupostosmetafísicos já haviam sido outrora fortemente combatidos. Ao contrário da refle-xão crítica sobre os fundamentos, ocorreu o restabelecimento da natureza, agoraassumida em sua vertente kantiana. Contudo, se a história da filosofia do direito jáhavia atravessado dois campos antagônicos que não responderam aos anseios dareflexão sobre os fundamentos normativos, por que não surgiu, dessa percepção,a possibilidade da crítica? Por que, ao revés, entre as diferentes teorias, destacou-se o resgate do direito natural, conquanto marcado por novas características?

Não é sem motivo que os debates contemporâneos, no âmbito da filosofiajurídica, estejam pautados pela tensão entre facticidade e validade, entre o Direi-to como um fato social e os fundamentos que o justificam. E não é de se estranhar

111 A passagem abaixo ilustra a complexa gama de novas perspectivas que apareceram, noDireito, como confrontação com a anterior prevalência do positivismo jurídico:“Com efeito, a característica então do pensamento filosófico em geral foi uma riquíssima manifes-tação de novas correntes e perspectivas propostas a assumirem essa problemática (constituída jápelo repor com outro sentido de antigos problemas, já pela enunciação de totalmente novosproblemas) com as suas muito particulares exigências reflexivas. Foi o neokantismo, já formal (oude Marburgo, referido à Primeira Crítica), já material ou culturalista (sud-ocidental ou de Baden,numa revisão da Segunda Crítica); foi o vitalismo (a vida, dita então “o tema do nosso tempo”, ea “razão vital”, a história e a “razão histórica”; o élan vital e o intuicionismo), foi o neohegelianismo(o Espírito e a razão histórico-dialética); foi a fenomenologia (a intencionalidade e a razão eidética);foi uma nova ontologia (o ser estratificado que uma razão ontologicamente crítica analisa e se fazo ponto de partida de uma metafísica “indutiva” entendida como philosofia última e não comophilosophia prima); foi a axiologia material (o ser específico dos valores e a razão axiológica); foio marxismo (o materialismo histórico-dialético e a razão econômico-social-classista); foi oexistencialismo (o ser como existência humana ou a manifestar-se como mediação da existênciahumana e a razão transcendente e decidida); foi a antropologia filosófica (o homem como proble-ma e a razão cultural); foi o personalismo (a pessoa como centro assumido e irradiante numarazão ético-comprometida); foi o neopositivismo (o ser como experiência empírica e objecto cien-tífico e a razão também empírico-analítica); foi o neotomiso e a neo-escolástica (os temas renova-dos da philosophia perennis e a razão ontologicamente analógica); etc”. (Ibidem, p. 35).

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que, em tempos relativamente recentes, tenha ocorrido uma retomada das dis-cussões sobre o direito natural, embora apresente particularidades próprias, comoum confronto contra as mazelas trazidas pelo cientificismo no Direito que primoupela forma lógico-deôntica em sua estrutura.

A pergunta que surge é se esse recurso à natureza cumpre o papel de alteraras estruturas trazidas pela proposta científica de matriz formal-normativa ao pon-to de possibilitar a reflexão crítica sobre os pressupostos normativos. A resposta– até como decorrência das discussões já travadas e adiantando a futura investi-gação – há de ser negativa, mesmo que alterada, como adiante analisada, apostura em relação à natureza. Ambas as estruturas – seja a do jusnaturalismo,seja a do cientificismo jurídico formal-normativo – carregam a irreflexão sobreos fundamentos da validade normativa: o direito natural, pela aceitação pacíficado conceito de natureza como recurso último a estabelecer parâmetros à normapositivada; o cientificismo jurídico formal-normativo, pela tentativa de se esqui-var do debate sobre os fundamentos, afirmando, em contrapartida, umaepistemologia jurídica restrita à norma. Na verdade, o cientificismo jurídico for-mal-normativo esqueceu-se de que a objetivação derivada da centralização nanorma não se sustenta por si só e que a própria negativa do debate sobre osfundamentos faz com que a norma passe a ser o refúgio epistemológico parado-xalmente fundamentador dentro do âmbito formal-deôntico, sem, contudo, serquestionado o próprio ato de conhecer a norma.112

O diagnóstico do recurso à natureza, desse modo, espelha a inconformidadecom a aceitação veemente dos critérios lógico-formais para explicar a normativi-dade. Seu regresso, pode-se assim dizer, sugere que o conteúdo normativo e afundamentação jurídica têm de ser valorizados: eis o aspecto positivo desse “reen-cantamento do Direito”. O aspecto negativo, por outro lado, foi delineado naslinhas anteriores, em que se buscou expor a sintomatologia que o recurso àmetafísica da natureza produz: uma repetição do mesmo, uma constância dasestruturas em que se assenta o normativo. Sua retomada é, desse modo, umdescontentamento com a possibilidade de um desencantamento radical do Di-reito. Todavia, essa procura por uma nova perspectiva para o pensamento jurídi-co fundada na natureza não altera a lacuna reflexiva. Ela não abre as possibilida-des para se trabalhar discursivamente os argumentos justificadores do normativo.Essa é uma característica nuclear do direito natural.

112 Vide o próximo capítulo, em que se analisa a Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen. Paraeste autor, a norma, dentro da estrutura lógico-formal de validade por ele proposta, adquirepropriedades de validação de outra norma de hierarquia superior. No ápice dessa estrutura,encontra-se a norma fundamental, que é apenas um conceito lógico-formal necessário parafechar sua estrutura metodológica de validação normativa. A fundamentação – se é que se podeempregar esse termo no âmbito de uma estrutura formal – limita-se a um jogo de validaçãonormativa de base lógico-deôntica.

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Parece que o mundo do Direito girou ao redor do mesmo eixo. Apesar dasgrandes mudanças que a própria história e a cultura promoveram, as estruturasde sua validação não sofreram grandes abalos: a irreflexão sobre os pressupos-tos da validade perpetuou-se e a práxis jurídica foi obscurecida.

O que se renovou, porém, foi a perspectiva kantiana projetada sobre o con-ceito de natureza: ao invés de uma procura pelas essências das coisas, ojusnaturalismo moderno procurou as condições do conhecimento na afirmaçãoda “subjetividade constitutiva”. Foi uma alteração radical de postura que, contu-do, como adiante analisado, não fomentou a crítica da validade normativa, por-que, da mesma forma que Kant não discutiu as próprias bases das categorias noconhecimento, os jusnaturalistas afastaram os “princípios fundamentais do Di-reito” do campo de argumentação possível em debates coletivos. O silênciomanteve-se em outro campo – o da subjetividade – e, por conseqüência, airreflexão sobre o conceito de natureza, mesmo que alterada sua projeção, nãofez desaparecer a estrutura de repetição das estruturas que já advinham desde afilosofia clássica: a não-discussão social da fundamentação normativa.

Na medida, entretanto, em que se projetam novos horizontes sobre o estudodo direito natural, mesmo que a irreflexão sobre a validade normativa aindaperdure, algumas sugestões começam a aparecer. Afinal, a tomada da filosofiakantiana poderia trazer algumas respostas ao campo do prático, fato que haviasido relegado pelas teorias do jusnaturalismo que buscaram fundamento na filo-sofia clássica. E, nessa nova projeção, algumas premissas para a posterior possi-bilidade da reflexão sobre os pressupostos normativos já podem ser verificadas,sobretudo pela “revolução copernicana” que se deu pela afirmação da subjetivi-dade constitutiva no âmbito do Direito. Algumas perguntas, assim, irão nortear aanálise seguinte: 1) como se deu a inserção da subjetividade constitutiva noâmbito da validade?; 2) A mudança do enfoque na validação normativa nãoestaria ainda dentro de um espectro metafísico?; 3) Por que, mesmo consagran-do a subjetividade constitutiva, a reflexão rigorosa sobre os pressupostos normativosnão se efetivou?; 4) Por que, da subjetividade constitutiva, não se alcançou aintersubjetividade constitutiva apta a fomentar os processos de uma racionaliza-ção comunicativa?

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1.4. O JUSNATURALISMO MODERNO DE VERTENTE KANTIANA – A NATUREZA APARTIR DA SUBJETIVIDADE CONSTITUTIVA

1.4.1. A CRÍTICA KANTIANA: A SUBJETIVIDADE CONSTITUTIVA113 E O CONFRON-TO COM A NATUREZA

A grande alteração que se projetou no pensamento jusnaturalista moderno,adiante investigado, foi a perda de um interesse em procurar nas coisas ou emuma referência teológica a essência que conforma o conceito de natureza. Nolugar de ser captada a partir da contemplação do mundo ou de uma identificaçãocom uma ordem cósmica, teológica ou científica, o jusnaturalismo moderno114

buscou, no sujeito, a sua referência. É uma transformação em seu conceito quemodificou sua postura diante do mundo: não mais uma mera contemplação dodado ou de uma ordem, mas uma constituição da experiência concreta a partir dosujeito. A natureza, agora, não advém das coisas, mas das categorias, que hão deser pressupostas na mente. Não está mais em seu conceito clássico – e em suasderivações ao longo da história – a referência do normativo. Um distinto olharsobre a validade normativa, com base no novo conceito de natureza, apareceupara responder aos anseios que não foram objeto de interesse pelo cientificismojurídico formal-normativo de matriz kelseniana.

Antes, porém, de serem desenvolvidos os reflexos dessa postura kantiana nocampo da validade normativa, é necessário investigar algumas importantes pre-missas trazidas pela Crítica da Razão Pura e pela Crítica da Razão Prática. Doisenfoques devem ser trabalhados nesse propósito: o primeiro é a afirmação dasubjetividade constitutiva, que altera a referência à natureza; o segundo, por suavez, é o confronto realizado por Kant com a natureza tal como tradicionalmentevinha sendo compreendida pela filosofia. Ao invés de seu significado alcançadopor meio da contemplação do mundo, Kant afirma a “liberdade”.

O confronto entre a liberdade e a natureza abriu as portas para a discussão doprático e representou, como um importante momento para a filosofia, um abalonas estruturas da primazia do teórico. Essas premissas permitirão investigar, porum lado, como se deu a transformação no conceito de natureza e, por outro,como a referência ao prático e a questão da liberdade puderam ser desenvolvidaspelos jusnaturalistas modernos. Por intermédio dessas premissas, portanto, po-dem ser feitas as seguintes interrogações, que nortearão a análise que ora seinicia: 1) Como se deu a mudança de postura em relação à natureza a partir dasubjetividade constitutiva?; 2) O que significa essa subjetividade constitutiva emcomparação com uma atitude contemplativa do mundo advinda da filosofia clás-sica?; 3) Como essa subjetividade constitutiva fomentou as possibilidades do prá-

113 Será mais detalhadamente trabalhada no capítulo seguinte.114 Toda referência ao jusnaturalismo moderno de matriz kantiana, nesta obra, limita-se àsperspectivas de Rudolf Stammler e Giorgio del Vecchio.

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tico?; 4) Como o prático apareceu na filosofia kantiana?; 5) Será que as discus-sões do prático e da liberdade foram realmente desenvolvidas pelosneojusnaturalistas?; 6) Será que a ênfase na razão teórica acabou por obscurecero avanço sobre a liberdade que Kant realizou na Crítica da Razão Prática? Paradar início às respostas às questões formuladas, o primeiro passo é investigar,sinteticamente, alguns elementos da filosofia kantiana.

Já em sua introdução à Crítica da Razão Pura, Kant estabeleceu os alicercesde uma modificação radical na estrutura da filosofia: em contraposição a umaatitude de buscar, nos objetos, a sua essência, Kant afirmou a subjetividadeconstitutiva. Assim, se, por um lado, “cronologicamente (der Zeit nach), nenhumconhecimento precede nossa experiência e é com ela que tudo começa”,115 poroutro, isso não significa que o conhecimento “derive todo da experiência”.116

Em síntese, o ato de conhecer antes do conhecido há de ser investigado.Reviravolta de grandes proporções no pensamento filosófico, a preocupação

passou a se direcionar para uma direta correlação entre sujeito e objeto. Não sepode remeter a investigação a um encontro das essências das coisas; deve-se,pelo contrário, se verificar como é possível conhecer. Há, por trás da experiên-cia, faculdades a priori, independentes dos sentidos. São, pois, “certos conceitosprimitivos e certos julgamentos que esses conceitos produzem e que devem serformados inteiramente a priori, independentemente da experiência”.117 São eleso núcleo que possibilita alcançar uma “verdadeira universalidade e uma neces-sidade estrita”.118 Em poucas palavras, estava inserida a projeção do sujeito nopensamento moderno, porém, um sujeito que constitui as próprias possibilida-des do conhecimento – subjetividade constitutiva, portanto.

A investigação mais detalhada da filosofia transcendental kantiana será traba-lhada no capítulo seguinte. O que ora, porém, deve ser adiantado é, precisamen-te, a afirmação da subjetividade constitutiva como o novo momento do pensa-mento moderno e, por conseqüência, sua confrontação com as características dafilosofia clássica: a metafísica centrada nos objetos, a partir de então, passa a serancorada no sujeito. É com base nessa perspectiva do sujeito que se pode des-vendar a constituição da experiência de um modo universal e necessário. Aexperiência, por conseguinte, deixa de ser referida a uma mera contemplação domundo dado e passa a exigir a relação “sujeito-objeto” de modo constitutivo. Asfaculdades mentais são a condição para que seja possível a própria experiência.

Assim, nas palavras de Miroslav Milovic, os propósitos da filosofia kantianapodem ser sintetizados em dois focos: “primeiro, a tentativa de revelar a estrutu-

115 KANT, Emmanuel. Critique de la Raison Pure. Paris: Librairie Félix Alcan, 1920, p. 39.Tradução livre.116 Ibidem, p. 39. Tradução livre.117 Ibidem, p. 43. Tradução livre.118 Ibidem, p. 43. Tradução livre.

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ra das faculdades espirituais e, segundo, provar sua validade objetiva – a de queo objeto é possível somente com base nessa estrutura”.119 A validade do conhe-cimento, dessa forma, deixa de se basear no encontro – tal como fez a filosofiaclássica – das essências das coisas. A validade, em Kant, está “relacionada aoproblema da constituição da experiência”.120

O desenvolvimento da Crítica da Razão Pura é voltado para a tentativa de secomprovar a existência dos juízos sintéticos a priori, que representam, assim, osconhecimentos universais e independentes da experiência. Ao contrário da rela-ção trazida pela filosofia clássica (como se verifica em Aristóteles, entre a maté-ria, como algo indeterminado e em potência, e a forma, como princípiodeterminante e atuante – o que incitava o interesse pela busca desses princípiosque conferiam unidade e coerência à matéria), Kant afirmou uma estruturainversa, enfatizando que a “forma” é o que indica a subjetividade constitutiva eleva ao conhecimento e a matéria, o que é captado pelo conhecimento: “a ‘ma-téria’, oferece-a a posteriori a experiência; a ‘forma’ surge a priori no sujeito”.121

Isso, pois, como aduz Luis Recaséns Siches, significa que “as formas do enten-dimento não só explicam o conhecimento, senão, ademais, os objetos do mesmo.Não são apenas as condições da possibilidade da experiência, senão, também,as condições da possibilidade dos objetos da experiência”.122

É um confronto frontal com as características do direito natural tradicional.Não há mais que se encontrar a essência das coisas em sua própria realidade,mas, sim, desvendar as formas que, ao se conjugarem com os fenômenos, permi-tem o conhecimento. A partir dessa alteração de postura, os pressupostos devalidação do Direito não podem mais ser extraídos da observação da natureza, daexperiência, mas da compreensão da consciência individual. Dessa investigação,poderão ser extraídos os “princípios a priori do Direito”. Antes de partir para oconhecimento do mundo, há de se perceber que já é concebido, a priori na mentehumana, a percepção do valor da pessoa, que é a origem de todo o Direito.

A partir da conjugação inseparável da forma com a matéria, do sujeito com oobjeto, estão assentadas as condições para a consolidação da filosofia prática.Assim, como aduz Milovic, “o teórico e o prático têm, na filosofia de Kant, omesmo ponto de origem”.123 E, nessa possibilidade de estender os pressupostosarticulados na teoria ao prático, novos contornos a respeito do jusnaturalismotêm de surgir. De fato, Kant estabeleceu a primazia do prático, mediante o

119 MILOVIC, Miroslav. Filosofia da Comunicação: Para uma Crítica da Modernidade. op. cit.,p. 51.120 Ibidem, p. 51.121 GRAU, José Corts. Curso de Derecho Natural. op. cit., p. 112. Tradução livre.122 RECASÉNS SICHES, Luis. Panorama del Pensamiento Jurídico en el Siglo XX. México:Editorial Porrua, 1ª ed, 1963, p. 50. Tradução livre.123 MILOVIC, Miroslav. Filosofia da Comunicação: Para uma Crítica da Modernidade. op. cit.,p. 49.

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enfoque na liberdade. Com base na subjetividade constitutiva, na consagraçãoda liberdade, o confronto com a natureza é o grande passo para se verificar queo direito natural moderno surge com outro conceito de natureza. Ela não mais seconfunde com a experiência ou com uma ordem alheia ao sujeito, mas com aidéia do direito que há por trás de toda sua positividade e que deve ser pressupostana consciência individual. A “idéia do Direito” é a representação do que existea priori no campo do normativo. São os princípios fundamentais do direito, queadquirem validade universal.

Com a extensão dos pressupostos kantianos ao plano jurídico, estão assegura-das as condições de um jusnaturalismo com contornos próprios. Por um lado,dá-se o confronto com os pressupostos do direito natural tradicional por meio dabusca dos princípios normativos a priori da consciência. Por outro lado, parado-xalmente, mantêm-se uma certa continuidade da procura pelo geral, agora cen-tralizado no sujeito constitutivo, e a irreflexão sobre os pressupostos normativos,uma vez que a própria subjetividade constitutiva não é questionada.

O ataque às premissas do direito natural clássico,124 no âmbito do prático,espelhou-se na subjetividade constitutiva tomada a partir da autonomia individu-al. A subjetividade constitutiva, ao consagrar a liberdade, insurge-se diretamen-te contra os pressupostos de uma normatividade que já é apresentada ao mundocomo certa e inviolável: a normatividade da natureza estabelece os limites daatuação do homem, que deve aderir aos seus pressupostos e lhes conferir obedi-ência. Contudo, Kant incitou que o “eu” solitário é quem sabe e articula asregras do pensamento e – mais do que isso – o eu articula a própria liberdade.Não há mais, portanto, a simples obediência a uma razão universal previamentedada, mas uma razão que, de si, se projeta no mundo.

Por isso, mais do que uma subjetividade que mostra a possibilidade da expe-riência, Kant quis enfatizar que o “eu” pode articular as condições do prático: osujeito constitui a sua própria liberdade por intermédio da objetivação de suavontade. E, nesse propósito, Kant mostrou a insuficiência da ciência, que nãoconsegue atingir a compreensão da autonomia individual. Ao dar, pois, primaziaao prático, novos caminhos para o jusnaturalismo puderam se abrir no terrenonormativo.

Como, porém, articular as possibilidades do prático com uma filosofia dodireito que sempre primou pelo teórico? Como conciliar natureza e liberdade noDireito? São questões que serão ulteriormente analisadas. Por ora, o que deve serenfatizado é que Kant abriu os olhos da ciência ao mostrar que a palavra racio-nalidade não pode ser pensada apenas com critérios teóricos, tampouco fundadaem um critério derivado da contemplação do mundo. Concluiu, assim, que a124 Denominar-se-á direito natural clássico aquele que deriva dos pressupostos da filosofia clás-sica e que tem como característica, no conceito de natureza, a procura pela essência das coisas,em explícita aplicação de uma metafísica da objetividade.125 HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-Metafísico. op. cit., p. 41.

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ciência não consegue tudo desvendar. Afinal, a questão da liberdade é de interes-se filosófico e, não, epistemológico. É o resgate do valor de uma filosofia que seesvaía na frieza de um mundo desencantado e se obscurecia a partir de um“conceito forte de teoria”.125 Em Kant, a filosofia adquire um novo valor, pois nãovisa apenas a afirmar o conhecimento, mas, principalmente, a liberdade.

1.4.2. ANÁLISE ESPECÍFICA DA AFIRMAÇÃO DA LIBERDADE: O DIRETO CONFRON-TO COM A NATUREZA E A POSSÍVEL RADICALIZAÇÃO DO DIREITO NATURAL

Com ênfase na liberdade tem-se o confronto com a natureza. O mundo nãopode fornecer as condições da normatividade; ela deve ser tomada a partir dascategorias formais da consciência individual conjugadas com a realidade empírica.Logo, mais do que a constituição da experiência, que não responde aos anseiosde mostrar a possibilidade da razão humana, deve-se buscar um referencialprático, que Kant estabelece na liberdade. Conforme aduz Milovic, “a liberdadenão pode ser objetivada, assim como não pode ser objeto de uma reflexão teóri-ca”.126 Ao lado, portanto, da causalidade que se volta para a natureza, é precisoestabelecer uma causalidade fundada na liberdade.

Na parte final da Crítica da Razão Pura, Kant consolidou a subjetividadeconstitutiva em sua dimensão prática, expondo que a razão também se expressade acordo com fins. A racionalidade, além de constituir a experiência, constituia moral, que deve se afastar de tudo o que há de empírico, tal como o fez quandohavia estudado o conhecimento. A moral, desse modo, não se deduz da nature-za; ela é alcançada por meio da transcendência aplicada ao prático, em que aliberdade é afirmada como a própria razão de ser da moral.127

O âmbito do prático, em que se insere a questão da liberdade, deve possuiruma unidade sistemática moral que se emancipa da natureza. Ele deve possuiruma “realidade objetiva”. Existe um mundo moral a ser concebido, que nãopassa, segundo Kant, “de uma simples idéia, mas uma idéia prática que pode edeve realmente ter influência sobre o mundo sensível, a fim de torná-lo, tantoquanto possível, conforme essa idéia”.128 São novos patamares que possibilitari-

126 MILOVIC, Miroslav. Filosofia da Comunicação: Para uma Crítica da Modernidade. op. cit.,p. 70.127 Nas palavras de Kant, ao verificar que o teórico não consegue abarcar todo o plano da razão:“(...) É necessário, portanto, que uma espécie particular de unidade sistemática seja possível, euquero falar da unidade moral, no momento em que a unidade sistemática natural não pôde serdemonstrada pelos princípios especulativos da razão, porque, se a razão tem a causalidade emrelação à liberdade em geral, ela não a tem em relação a toda a natureza, e que, se os princípiosmorais da razão podem produzir atos livres, as leis da natureza não o podem. Portanto, osprincípios da razão pura, em seu uso prático e notadamente em seu uso moral, têm uma realida-de objetiva” (KANT, Emmanuel. Critique de la Raison Pure. op. cit., p. 627. Tradução livre).128 Ibidem, p. 627. Tradução livre.

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am, conforme adiante investigado, a construção de um jusnaturalismo pautadopor uma idéia que se projeta sobre o mundo, que deve guiá-lo, regulá-lo demodo a se adequar a ela. Trata-se de uma idéia, dessa maneira, que não é senãouma “realidade objetiva”,129 que tem de se relacionar com o mundo sensível,“considerado como um objeto da razão pura em seu uso prático”.130

Na Crítica da Razão Prática, Kant consagra a idéia de liberdade, enfatizandoque ela determina a vida moral. Enquanto no âmbito do conhecimento teóriconão se consegue alcançar a “coisa em si”, mas apenas sua realidade fenomênica,no âmbito da moralidade, a liberdade expressa o próprio nôumeno,131 o que fazestabelecer, de vez, a primazia do prático em sua filosofia. É no contexto dosprincípios práticos que se afirma a possibilidade da “determinação universal davontade”132 a partir de sua subordinação a determinadas “máximas”, que ex-pressam leis práticas “válidas para a vontade de todo ser natural”.133 Dessemodo, a vontade deve se ligar às máximas objetivas, desligadas de qualquerdeterminação empírica. É, por esse enfoque, que se pode conceber sua autono-mia, que há de projetar sua universalidade, tal como enunciado por Kant em suaFundamentação da Metafísica dos Costumes: “assim o princípio, segundo o qualtoda a vontade humana seria uma vontade legisladora universal por meio detodas as suas máximas”.134 Ela se torna autônoma quando “é para si mesma asua lei (independentemente da natureza dos objetos do querer)”,135 quando aescolha da ação se estabelece “de modo que as máximas da escolha estejamincluídas simultaneamente, no querer mesmo, como lei universal”.136

129 Ibidem, p. 627. Tradução livre.130 Ibidem, p. 627. Tradução livre.131 Na Crítica da Razão Pura, Kant é enfático ao afirmar que o conhecimento somente consegueatingir os “fenômenos”, jamais a “coisa em si”. A essência dos objetos, que tanto foi tomadacomo parâmetro pela filosofia clássica, deixa de ser a referência para o conhecimento. A dedu-ção transcendental kantiana, a partir da ênfase nos juízos sintéticos a priori, quer mostrar que épossível conhecer antes do conhecido e, portanto, seria um contra-senso estabelecer, comocondição, a “coisa em si” para a formação do conhecimento. No pensamento prático, todavia,Kant verifica que a liberdade expõe a sua própria realidade. A passagem abaixo é ilustrativa:“(...) Na Crítica da Razão Prática, Kant demonstra que a lei moral provém da idéia de liberdadee que, portanto, a razão pura é por si mesma prática, no sentido de que a idéia racional deliberdade determina por si mesma a vida moral e com isso demonstra sua própria realidade. Emsuma, o incondicionado e absoluto (inatingível pela razão no terreno do conhecimento) seriaalcançado verdadeiramente na esfera da moralidade; a liberdade seria a coisa-em-si, o noumenon,almejado pela razão. Nesse sentido, a razão prática tem primazia sobre a razão pura” (BERLINCK,Marilena de Souza Chauí. Kant. In: História das Grandes Idéias do Mundo Ocidental. Vol. II.São Paulo: Abril Cultural, Col. Os Pensadores, 1973, p. 498).132 KANT, Emanuel. Crítica da Razão Prática. São Paulo: Brasil Editora, 4ª ed., 1959, p. 37.133 Ibidem, p. 37.134 KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. São Paulo: Abril Cultural,Col. Os Pensadores, Vol. XXV, 1ª. ed., 1973, p. 233.135 Ibidem, p. 238.136 Ibidem, p. 238.

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A autonomia, desse modo, como “único princípio da moral”,137 é concebida apriori, contrastando-se com a natureza. A pergunta kantiana é como pensar aautonomia individual sem que, para tanto, se tenha de aceitar, passivamente, ofato de o homem ser constituído pelo mundo – eis um direto confronto com ojusnaturalismo clássico. E, a partir dessa autonomia da vontade, é que se podecompreender a liberdade. Para Kant, “a vontade é uma espécie de causalidadedos seres vivos, enquanto racionais, e liberdade seria a propriedade dessa causa-lidade, pela qual ela pode ser eficiente, independentemente de causas estranhasque a determinem”.138

A liberdade, portanto, se liga diretamente à moralidade: “uma verdade abso-lutamente boa é aquela cuja máxima pode sempre conter-se a si mesma em si,considerada como lei universal”.139 Uma lei que parte do sujeito constitutivo paraadquirir sua validade universal consagra, pois, a própria liberdade individual, namedida em que a vontade se torna autônoma ao seguir estritamente apenas amáxima moral que não é derivada da natureza. “A liberdade é o campo darazão”.140 Como aduz Miroslav Milovic, “a filosofia teórica indica tão-somente apossibilidade da liberdade, mas é a prática que torna possível realizar sua deter-minação mais precisa, determinação feita na forma mesma da lei prática, cujonome é imperativo categórico que adquire, desse modo, validade como princípiomoral”.141 A validade objetiva da vontade – que é condição para a vontade livre142

– faz exigir que ela se estenda a todos os seres racionais. Assim, por ela partir dasubjetividade transcendental, ela se subordina a uma legislação universal, que é afundamentação do prático. É somente com a projeção universal que se podeaferir se a conduta individual é moral. É a partir da referência às máximas daconduta humana, ao imperativo categórico, que se pode reconhecer o ser livre.

Parece que, nesse ponto, Kant estabeleceu as premissas da afirmação daintersubjetividade. Todavia, tal como na dedução transcendental da Crítica daRazão Pura, a liberdade é entendida com base nas faculdades a priori da cons-ciência. É, portanto, o indivíduo que estabelece as condições de sua afirmação.

137 Ibidem, p. 238.138 Ibidem, p. 243.139 Ibidem, p. 243.140 Hegel radicalizaria ainda mais essa perspectiva kantiana. Em sua Fenomenologia do Espírito,Hegel elucida que a liberdade não é só um fato; ela se relaciona com o social. A liberdade é ao campo da razão; porém, mais do que isso, a liberdade é o campo da reflexão (não um “fato damente”). Ele quer pensar o eu que pensa, justificar a razão que aparece na Revolução France-sa, superando, portanto, a ideologia kantiana que se contentou com os fatos. Para tanto, videHEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. A Fenomenologia do Espírito. Petrópolis: Vozes, 4a. ed.1999.141 MILOVIC, Miroslav. Filosofia da Comunicação: Para uma Crítica da Modernidade. op. cit.,p. 75.142 KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. op. cit., p. 244.

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Segundo Kant, “a todo ser racional que tem uma vontade temos que atribuir-lhenecessariamente também a idéia da liberdade, sob a qual ele unicamente podeagir”.143 Ela é, desse modo, condição do agir moral despido da natureza. Arazão individual, “autora dos seus princípios, independentemente de influênciasestranhas”,144 é a fonte da qual se pode estabelecer a validade objetiva por meioda extensão da vontade, conforme às máximas, a todos os homens.

Não há, enfim, verdadeira socialização, mas projeção abstrato-formal da von-tade em um plano universal ou, nas palavras de Milovic, “apenas um teste lógicoda possibilidade dessa universalização”.145 A validade intersubjetiva das máxi-mas não deriva de um real contato com o outro, mas de um isolamento dohomem em sua própria racionalidade. Não há espaço para o diálogo no projetokantiano.

A interioridade secularizada da liberdade é, por isso, o obscurecimento deuma efetiva socialização.146 A certeza da liberdade é a própria interioridadehumana, que pode universalizar a ação. O social, assim, continua a ser ummistério em seu pensamento, suplantando a própria significação da lei moral emrazão de sua não-direta referência intersubjetiva. A autonomia não está no soci-al, mas no sujeito: “o ser moral é ser moral para si próprio”.147 Falta em Kant,portanto, além da própria reflexão rigorosa sobre a subjetividade transcendental,a compreensão efetiva da intersubjetividade, que, assumida sua “constitutividade”,supera as dicotomias tão bem consolidadas em sua filosofia: sujeito-objeto, for-ma-matéria, teórico-prático. Ao invés das dicotomias, a cristalização da efetivaparticipação dos sujeitos comunicantes, como condição da construção de umaracionalidade auto-reflexiva, dialógica, descentralizada e “destranscendentali-zada”, pode ser o projeto para uma radicalização da intersubjetividade.148

Por outro lado, Kant não discute as próprias premissas de sua filosofia. Sejano campo teórico, em que as formas categoriais da consciência não são debati-das, seja no plano prático, em que a própria liberdade não é, em si, questionada,

143 Ibidem, p. 244.144 Ibidem, p. 244.145 MILOVIC, Miroslav. Filosofia da Comunicação: Para uma Crítica da Modernidade. op. cit.,p. 98.146 Hegel contrasta com esse pensamento, salientando que a liberdade não é interior; ela é sociale se realiza historicamente. A Revolução Francesa, afinal, é o fato concreto que afirma a liber-dade. Logo, ela não é algo que se fecha no sujeito, mas, sim, um acontecimento que deriva darealização da idéia no mundo. Já são os primeiros passos para uma possível consolidação daintersubjetividade. É a razão que surge em decorrência de um fato social. A razão é especulativae realiza o essencial no mundo. Para Hegel, a impotência da razão kantiana é não ter mostradocomo ela se realiza na realidade, apenas apresentando a razão como um mero fato. Hegel querver como a razão está saindo para o social. Para tanto, vide HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich.A Fenomenologia do Espírito. Petrópolis: Vozes, 4a. ed. 1999.147 MILOVIC, Miroslav. Anotações de aula.148 Essas características serão mais bem investigadas no quarto capítulo.

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o que se verifica é um contentamento com os fatos da mente em seu pensamen-to. Como alude Milovic, “parece que Kant, na realidade, não se debruça sobreessa fundamentação, ou melhor, sobre a autotematização da pressuposta estru-tura espiritual”,149 aspecto que seria, na Fenomenologia do Espírito, questionadopor Hegel.150 No âmbito do prático, “a fundamentação da validade normativa doimperativo categórico é substituída pela ‘explicação metafísica da fatualidadedesse imperativo’”.151

A radicalização, portanto, da filosofia clássica por ele promovida não chegoua postular a reflexão sobre sua específica fundamentação decorrente da consa-gração da subjetividade constitutiva. Nas palavras de Milovic, “por um lado, asubjetividade transcendental universal é postulada, ao passo que, por outro,pode-se ver que o sujeito individual é capaz de conduzir-se moralmente aouniversalizar logicamente suas ações, sem refletir acerca dessa subjetividadeconstitutiva”.152 E, na verdade, o próprio Kant incita essa impossibilidade: “masa razão ultrapassaria logo todos os seus limites se se arrojasse a explicar como éque a razão pura pode ser prática, o que seria a mesma coisa que explicar comoé que é possível a liberdade”.153 Não é, desse modo, interesse de Kant ultrapas-sar os limites por ele impostos nos “fatos da mente”.154 Como decorrência talvezda falta de discussão de seus pressupostos, Kant não conseguiu superar a dicotomiasujeito-objeto, sempre, mantendo, portanto, as condições da predicação.

De qualquer maneira, sua filosofia é um direto confronto com a natureza e,por conseguinte, com o direito natural tal como tradicionalmente concebido. Anatureza, para Kant, não traz as respostas à racionalidade; ela não é a base dajustificação. Aliás, ela obscurece a própria compreensão de sua dimensão. ParaKant, o Direito somente faria sentido enquanto definidor das condições da liber-dade individual em relação àquela de outrem. O Direito, assim, é o campo daafirmação da liberdade exterior, da transposição da liberdade individual para os

149 MILOVIC, Miroslav. Filosofia da Comunicação: Para uma Crítica da Modernidade. op. cit.,p. 77.150 Na Fenomenologia do Espírito, Hegel questiona os “fatos da mente” consolidados na filosofiakantiana, estabelecendo, em contraposição, que a razão não pode ser apenas apresentada, eladeve ser mostrada em sua estrutura histórica. A filosofia não pode aceitar os fatos, ela devearticular as condições da razão, por meio da mediação entre o sujeito e o mundo (contrastando-se, pois, com a estrita separação da dicotomia sujeito-objeto de Kant). Todavia, o próprio Hegel,em sua metafísica idealista, acabou contentando-se com o fato do espírito, que também não foiobjeto de reflexão. Para uma análise detida dessa problemática, vide MILOVIC, Miroslav. Filo-sofia da Comunicação: Para uma Crítica da Modernidade. op. cit., pp. 121-170.151 Ibidem, p. 77.152 Ibidem, p. 84.153 KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. op. cit., p. 253.154 MILOVIC, Miroslav. Filosofia da Comunicação: Para uma Crítica da Modernidade. op. cit.,p. 76.

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outros, embora essa “intersubjetividade” seja constituída a partir do “fato damente”, na clausura da razão individual.155

Com fundamento no projeto kantiano, novas filosofias do jusnaturalismo sur-giram. De um direito natural clássico, que não mais conseguia abarcar a comple-xidade do fenômeno jurídico, surge, assim, um jusnaturalismo com pressupostoskantianos, mesmo que, em alguns casos, desvirtuados para se adequarem aopensamento jusfilosófico. A partir dessa mudança, indaga-se: como conciliar, noDireito, a perspectiva de um direito natural a priori com as contingências derealização da normatividade? Até que ponto o jusnaturalismo moderno conse-guiu superar os limites de um formalismo de intuito purificador no plano jurídi-co-científico? Como se deu a conjugação do teórico com o prático no pensamen-to jusfilosófico? Por que ainda acreditar na possibilidade de um fundamentouniversal e necessário da razão jurídica? Em que medida o resgate do direitonatural poderia construir o novo no Direito? São vários os questionamentos quemerecerão maior análise.

Para tanto, dois importantes autores que procuraram trabalhar as premissaskantianas, no âmbito jurídico, serão tomados como parâmetro: Rudolf Stammler,mais formalista, e Giorgio del Vecchio, que avançou sua filosofia, de forma maisexplícita, para o campo prático no Direito. São duas visões que partem de umareferência filosófica forte: o kantismo aplicado ao normativo. Um kantismo, obvi-amente, revigorado pelas contribuições e influências do próprio desenvolvimentojusfilosófico de então, mas que conservou suas bases para se tentar estabelecer,novamente, a necessidade da natureza no pensamento jurídico. É o que se passaa investigar.

155 Nas linhas finais de sua Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Kant salienta que “ouso especulativo da razão, com respeito à natureza, conduz à absoluta necessidade de qualquercausa suprema do mundo; o uso prático da razão, com respeito à liberdade, conduz também auma necessidade absoluta, mas somente das leis das ações de um ser racional como tal” (KANT,Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. op. cit., p. 256). É uma inversão doeixo em que se sustentava o direito natural: o absoluto não está mais na natureza, tal como atéentão compreendida, mas na mente, nas categorias da razão. Diferentemente, portanto, de sepensar que a natureza articula as condições da integração social, como se pode verificar nosautores contratualistas, é a liberdade, concebida a priori, que fomenta essa integração. Por talrazão, a possibilidade de se conceber Kant como um jusnaturalista tardio, como muito usual-mente é associado, somente se sustenta caso se radicalize o conceito de natureza, que não émais ligado à experiência ou a uma essência por trás do mundo, porém, sim, a uma fundamen-tação eminentemente humana, a partir da subjetividade constitutiva. A natureza, dessa forma,desloca-se do mundo para o sujeito, mantendo, porém, a íntima e inseparável ligação entreambos, como uma matéria e forma.

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1.5. O DIREITO NATURAL MODERNO: A RELAÇÃO TEÓRICO-PRÁTICO E A POSSIBILI-DADE DA RENOVAÇÃO JURÍDICA.

1.5.1. O DIREITO NATURAL EM RUDOLF STAMMLER: O FORMALISMO DAS CATE-GORIAS TRANSCENDENTAIS DA CONSCIÊNCIA

Uma das expressões mais evidentes dos pressupostos kantianos no Direito éencontrada em Rudolf Stammler, que, conforme esclarece Michel Villey, buscaconciliar “o fato da mobilidade com a racionalidade do Direito”.156 Para tanto, adistinção entre forma e matéria, tal como anteriormente analisada, forneceu apossibilidade de tal conjunção: se, por um lado, não se pode negar que o Direitoé multifacetado, apresentando as mais diversas configurações contextuais, poroutro, existe nele algo formal, algo que há de ser pressuposto na mente. Ascontingências do Direito, por si só, não conseguem revelar nenhum conhecimen-to que possua validade universal e necessária. É preciso a síntese das percep-ções obtidas a partir das manifestações concretas do Direito com as formasmentais da razão, com as categorias. E a tarefa do Direito é, tal como umaextensão da Crítica da Razão Pura, realizar uma análise crítica dos conteúdosmentais jurídicos, diferenciando seus elementos formais e materiais.157

Para determinar algo como jurídico, há de se pressupor as formas puras donormativo. Para Stammler, encontrar o sistema de formas puras a partir dasquais se pensa juridicamente158 é o caminho da compreensão do complexo jurí-dico. Assim, a forma, concebida a priori, é o que possibilita a própria constitui-ção da realidade do Direito e, por sua não-referência direta à experiência, possuios caracteres de universalidade e atemporalidade.

A referência direta à Crítica da Razão Pura faz da pesquisa uma busca peloreconhecimento da possibilidade da experiência jurídica. Todavia, o Direito,diferentemente da ciência, não está no plano do “ser”, mas do “dever-ser”. Essadiferença de plano faz com que seja estabelecido um parâmetro diverso para ainvestigação normativa. Enquanto Kant, em último momento, quer afirmar apossibilidade da ciência natural, Stammler quer desvendar a possibilidade daciência jurídica. Para tanto, incita um pressuposto teleológico no Direito. Naspalavras de Recaséns Siches, ao analisar a obra de Stammler, “a ciência doDireito e, conseqüentemente, o Direito mesmo se alojam dentro do reino dafinalidade: o Direito constitui dentro desse reino aquele setor integrado por finse meios de diversos indivíduos, mutuamente entrelaçados, reciprocamente con-

156 VILLEY, Michel. Leçons d´Histoire de la Philosophie du Droit. Paris: Dalloz, 1957, p. 101.Tradução livre.157 STAMMLER, Rudolf. Tratado de Filosofia del Derecho. Madrid: Editorial Reus, 1a. ed,1930, p. 7. Tradução livre.158 Ibidem, p. 9. Tradução livre.

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dicionados, de um modo autárquico e inviolável”.159 A ciência do Direito, assim,não se confunde com o plano das ciências naturais, tendo, por conseguinte, dese emancipar de qualquer intento empírico. Ao invés de procurar, nos objetosdo Direito, em suas instituições particulares, as condições do normativo, pressu-põem-se as formas a priori que formam seus conceitos universais e necessários eque constituem a possibilidade da experiência jurídica.

Antes de se encontrar, na experiência, a referência normativa, há de seestabelecer, na consciência, o que seja jurídico. Com base na subjetivação dosfundamentos normativos – que se situam, conforme a concepção de Stammler,nas faculdades a priori da consciência –, a teleologia de sua teoria é afirmada.Para esse autor, as formas da consciência, no plano normativo, ordenam-sesegundo as categorias da finalidade. E, nesse propósito, é preciso conceber umquerer “despsicologizado”. Nas palavras de Stammler, o querer é “um puromeio de ordenação, a saber, o procedimento lógico para determinar modifica-ções, segundo o pensamento fundamental condicionante de fim e meio”.160

É necessário se eleger o meio mais adequado para se lograr determinadafinalidade almejada. Existe, assim, um pressuposto de realização e produção dealgo mediante um instrumento eleito adequado. No âmbito do normativo, há umquerer que ordena à consciência estabelecer finalidades e eleger os meios paraalcançá-las. Como estrutura lógica – e não psicológica – o querer é o que confor-ma o Direito, que é uma “espécie e modalidade condicionante do propor eperseguir fins”.161

Pelas propriedades da estruturação do querer, já se pode inferir que o conceitode direito é nitidamente formal. Porém, mais do que apenas um modo do querer,o Direito é um querer “entrelaçante”,162 com base nos fins referenciados nosdiversos indivíduos, cuja validade objetiva independe da adesão dos obrigados(cunho autárquico) e que leva consigo a intenção de ser regular e permanente.Em síntese, Direito é o querer “entrelaçante”, autárquico e inviolável.163 É, noentanto, um produto da mente, uma categoria especial: o conceito puro do Direito

159 RECASÉNS SICHES, Luis. Panorama del Pensamiento Jurídico en el Siglo XX. Vol. I. op.cit., p. 51. Tradução livre.160 STAMMLER, Rudolf. Tratado de Filosofia del Derecho. op. cit., p. 66. Tradução livre.161 Ibidem, p. 89. Tradução livre.162 Stammler esclarece que o querer “entrelaçante” se destina a conjugar o querer de vários emuma funcionalidade recíproca. Como salienta Karl Larenz, “isso sucede no sentido de que cadaum toma o querer do outro como meio para a consecução de seu fim, ao modo como, porexemplo, o comprador toma o afã do vendedor de obter dinheiro por sua mercadoria como meiopara a consecução de sua própria finalidade: a aquisição da mercancia” (LARENZ, Karl. LaFilosofia Contemporânea del Derecho y del Estado. Madrid: Editorial Revista de Derecho Priva-do, s/d, p. 52. Tradução livre).163 Vide RECASÉNS SICHES, Luis. Panorama del Pensamiento Jurídico en el Siglo XX. Vol. I.op. cit., 1ª ed., 1963, p. 55.

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é “apenas uma forma lógica, sob a qual se nos apresenta certa ordem defenômenos”.164

Em razão desse fato, em qualquer manifestação jurídica concreta, por trásdela, é preciso conceber a existência do conceito de Direito. É ele, na verdade,que permite qualificar uma realidade normativa. Como aduz Recaséns Siches, “oconceito do Direito se encontra íntegro em todos e em cada um dos fenômenosjurídicos, passados, presentes e futuros: é aquilo em função do qual adota umarealidade o caráter jurídico”.165 O normativo é composto pela relação forma-matéria de modo inseparável. Assim, há sempre as particularidades concretas derealização do Direito (matéria) e o conceito do Direito que lhe confere a qualifica-ção jurídica (forma).

Uma “axiologia formalista”, tal como Recaséns Siches denominou a teoria deStammler, pode ser considerada uma interessante qualificação de seus pressu-postos teóricos. De fato, ao contrário do conceito que a natureza apresentou aolongo dos séculos – seja uma referência teológica, seja uma oposição à cultura,seja uma inerência humana – Stammler procura uma natureza que consiga seafastar da ligação com o mundo dado e, nesse intuito, encontrar sua validadeuniversal e atemporal. Em nítida crítica ao pensamento clássico do jusnaturalismo,Stammler esclarece que “um direito natural que contenha a regulação de açõeshumanas concretas, isto é, que formule regras com conteúdo, não pode, denenhuma maneira, ter validade para todos os tempos e povos”.166 O interesse deStammler, portanto, está em desvendar o que há por trás desse conteúdo, o queo conforma.

É nesse patamar que se encontra o “critério da justiça”, que deve ser indepen-dente de qualquer conteúdo histórico. O critério da justiça, desse modo, tem deser formal, concebido a priori. É ele, conjugado com a experiência particular, quepoderá estabelecer se o Direito é justo ou não. Não existe, assim, um Direito idealjusto afastado das relações empíricas: “todo o Direito exige um material empíricoe é, por conseguinte, necessariamente “positivo”. Não existe, pois, nenhum “Di-reito justo em si mesmo”, mas apenas Direito positivo justo ou injusto (ou emparte justo ou em parte injusto)”.167 Essas palavras demonstram, tal como nopensamento kantiano, a necessidade da relação forma-matéria, sujeito-objeto. Ajustiça que advém dessa relação é, portanto, uma forma universalmente válidaque conforma a experiência normativa e, dessa conformação, é que se podeantever a possibilidade da justeza de um direito particular. A justiça – comoforma categorial da consciência – constitui o seu predicado, isto é, o Direito justo.

164 Ibidem, p. 56. Tradução livre.165 Ibidem, p. 56. Tradução livre.166 Ibidem, p. 60. Tradução livre.167 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,5ª ed., 1983, p. 104.

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Porém, mais do que uma forma categorial, a justiça é uma idéia que unificaa experiência de forma harmônica168 e, nesse processo, alcança-se a comunida-de pura. De acordo com Recaséns Siches, ao analisar o pensamento stammleriano,“uma comunidade pura é o enlace entre os fins de diversos homens, não toman-do jamais como critério uma ação com validez somente subjetiva”.169 Embora osfins permaneçam autônomos, os homens buscam se relacionar em direção a umobjetivo comum. Nesse aspecto, aproxima-se o pensamento de Stammler doimperativo categórico kantiano, como uma vontade que se direciona para a uni-versalidade. Está estabelecido um ideal social, que é expresso de modo inteira-mente formal: a justiça, afinal, é uma forma categorial – idéia – que realiza aharmonização da experiência concreta. Há, desse modo, uma única idéia dejustiça – que é formal, afastada de todas as contingências contextuais –, masexistem vários Direitos justos, conforme a sua adequação a esse ideal deharmonização. O Direito, por conseqüência, deve almejar uma harmonia socialperfeita, uma “comunidade de homens de vontade livre”.170

Não é difícil perceber que, em suas linhas gerais, evidentemente dentro deuma adequação ao plano do normativo, a obra de Rudolf Stammler desenvolvemuito mais os pressupostos kantianos da Crítica da Razão Pura do que da Críticada Razão Prática, que estaria mais de acordo, para Kant, embora dependente doque foi trabalhado na primeira Crítica, com as questões normativas. Não é semmotivo a observação de Larenz de que “não se pode dar por alcançado o intentode Stammler de determinar o conceito de Direito como uma espécie formal dopensamento”. Na mesma crítica, aduz Grau que “o nervo de sua construção seráuma ilusão formalista, que crê poder operar intelectualmente dentro desse novonominalismo de conceitos puramente formais”.171 A formalidade assumiu as ver-tentes de determinação do próprio desenvolvimento empírico do Direito, tudo nointuito de tentar estabelecer a possibilidade de um “direito natural de conteúdovariável”. O conceito de Direito adquire validade universal e atemporal e seuconteúdo, expresso nas contingências do mundo, apresenta a variabilidadecontextual que não pode ser refutada.

Essa teoria apresenta uma complexidade bem mais acentuada do que a clás-sica afirmação do direito natural. Stammler, afinal, conseguiu separar a essênciadas coisas, tal como o fez Kant, e, nesse processo, pôde estabelecer a dinâmicado mundo sem ter de retirar desse campo objetivo uma essência absoluta. Aoseparar em planos diversos – subjetivo e objetivo –, a essência não surge de umparadoxo absoluto-dinâmico do mundo, porque os planos são outros: a essêncianão se encontra no objeto; ela o constitui e, para tanto, está em outro referencial:na subjetividade constitutiva.

168 RECASÉNS SICHES, Luis. Panorama del Pensamiento Jurídico en el Siglo XX. Vol. I. op.cit., p. 63. Tradução livre.169 Ibidem, p. 63. Tradução livre.

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Seu equívoco, porém, foi ter primado excessivamente pelo teórico e esqueci-do de trabalhar, mais arduamente, os pressupostos práticos do normativo. Nascorretas palavras de Larenz, a insuficiência da teoria de Stammler está no “equí-voco do princípio do ponto de partida: a translação do método da Crítica daRazão Pura àquele setor que Kant havia denominado ‘razão prática’”.172 Aoinvés de procurar uma razão que determina a vontade, Stammler buscou apli-car, ao âmbito normativo, uma razão como princípio do conhecimento.173 E, aofazer isso, não obstante tenha efetivamente trabalhado a subjetividade constitutiva,limitou-a sobremaneira ao campo teorético.

Pensada a razão como motivo determinante e de validade universal do querer,não é um método para a ordenação de conteúdos da consciência, “senão umaregra caracterizada como dever-ser”, e, então, o conceito de regulação não éobtido aqui a partir da legalidade teorética da razão, senão da legalidade práticado querer racional, resultando, ao lado das leis da natureza, as de liberdade. Paratanto, dentro da filosofia kantiana, a Crítica da Razão Prática haveria de ser oponto de partida para a investigação do conceito do Direito, o qual não deveria,então, ser concebido como um método lógico de ordenação, senão como umprincípio teleológico da determinação da vontade, ficando, com isso, estabelecidaa questão da idéia como tema de validade universal. Também Stammler trabalhaa questão da idéia, sendo um indiscutível mérito seu frente ao positivismo o terintroduzido de novo a noção da idéia na filosofia jurídica de nossos dias. Mas oponto de partida equivocado de sua teoria do conceito de Direito se faz tambémaqui evidente, obrigando-se a uma concepção formalista da essência da idéia, aqual, da plenitude significativa concreta do conceito filosófico de idéia, só deixaexistir uma determinação totalmente abstrata e falta de conteúdo.174

Como anteriormente trabalhado, a idéia, expressa, sobretudo, no conceito dejustiça, visa a harmonizar a experiência possível com um objetivo comum. Nas-ce, nesse aspecto, a referência ao ideal social de Stammler. Todavia, conquantose pudesse verificar, nesse âmbito, a possibilidade do prático, Stammler conce-be a idéia dentro dos espectros do conhecimento. José Corts Grau é enfático aodizer que o neokantismo em Stammler “rechaça o quanto na Crítica da RazãoPrática e na Metafísica dos Costumes haja de sentimento e de convicção cega eaté de pragmatismo, para tomar o Kant considerado como autêntico, o da Críticada Razão Pura (...)”.175 A idéia é, pois, ato de conhecer, não ato do agir.176 É,

170 GRAU, José Corts. Curso de Derecho Natural. op. cit., p. 121. Tradução livre.171 Ibidem, p. 121. Tradução livre.172 LARENZ, Karl. La Filosofia Contemporânea del Derecho y del Estado. Madrid: EditorialRevista de Derecho Privado, s/d, p. 53. Tradução livre173 Ibidem, p. 54. Tradução livre.174 Ibidem, p. 54. Tradução livre.175 GRAU, José Corts. Curso de Derecho Natural. op. cit., p. 110. Tradução livre.176 LARENZ, Karl. La Filosofia Contemporânea del Derecho y del Estado. op. cit., p. 54. Tradu-ção livre.

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tal como as categorias, “uma espécie e modalidade universalmente válida dopensar”.177 O a priori, no pensamento de Stammler, acaba se confundindo commera forma da consciência. Do mesmo modo que Kant desejou encontrar ocomplexo de proposições absolutas da consciência com validade universal,Stammler o fez no plano do Direito. Mas, ao contrário de sua fonte, Stammlertransladou as formas jurídicas para o plano do “dever-ser”, âmbito, portanto, decunho teleológico.

No lugar de tomar os parâmetros da Crítica da Razão Prática, Stammlercontentou-se em buscar as formas absolutas e universais do conhecimento e,assim, aplicá-las ao âmbito normativo. Para Stammler, o terreno da moral e doDireito não foi corretamente desenvolvido no sistema ético kantiano178 e, porisso, “sua própria obra pretende realizar, na filosofia prática, o que fez, nafilosofia do conhecimento da realidade física, a Crítica da Razão Pura de Kant”.179

É a metafísica da subjetividade que não altera, efetivamente, a incompreensãodo prático que já advinha desde o pensamento clássico. A primazia do teórico,mesmo que agora centrado nas formas a priori da consciência, se mantém. Éuma curiosa ambivalência, se tomado o projeto kantiano. Afinal, Kant, em últi-mo momento, quis afirmar a primazia do prático, mesmo que, para tanto, tives-se, na Primeira Crítica, de realizar um estudo denso a respeito do “como conhe-cer antes do conhecido”. Stammler, assim, ficou no meio do caminho do projetokantiano. Todavia, mesmo dando primazia à procura das “formas categoriais donormativo”, já não aparecem algumas sugestões sobre o prático em sua teoria?

Em sua concepção de justiça, já se verifica uma tentativa de aplicar as formascategoriais do Direito ao espectro social. Para Stammler, a idéia de justiça buscauma perfeita harmonia com a experiência jurídica, o que sustenta a comunidadepura. Por sua vez, essa comunidade deriva-se do encontro dos fins de diferenteshomens, “não tomando como critério uma vontade com validade somente subje-tiva”.180 Não obstante os fins continuem autônomos, essa comunidade pura éformada por homens livres, em que, tal como sustentava Kant na Crítica da RazãoPrática, “nenhum homem deve ser considerado, em sua qualidade de pessoamoral, como mero meio para outro”.181 Nesse campo, já são sugeridas algumasquestões próprias do prático, isto é, a idéia de uma comunidade livre, fundada emum critério de vontade que deve se apartar das particularidades contextuais e seafirmar como forma de validade universal. Assim, está expresso o ideal social,como um patamar a que se aspira alcançar no desenvolvimento do Direito.

177 Ibidem, p. 54. Tradução livre.178 RECASÉNS SICHES, Luis. Panorama del Pensamiento Jurídico en el Siglo XX. Vol. I. op.cit., p. 69. Tradução livre.179 Ibidem, p. 69. Tradução livre.180 Ibidem, p. 63. Tradução livre.181 Ibidem, p. 63. Tradução livre.

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Stammler, dessa forma, aplica, a sua teoria, as premissas do imperativo cate-górico kantiano e, nesse propósito, já se pode conceber um primeiro passo parao prático. Ao apresentar a comunidade pura, busca-se encontrar uma vontadeque não se baseie apenas no sujeito, mas que consiga ser projetada universal-mente, como um ideal a se alcançar. Por outro lado, mesmo quando está noplano teórico, na tentativa de estabelecer as formas categoriais do normativo, ointuito de transladar os pressupostos kantianos da Primeira Crítica para o planodo dever-ser – e afirmar, assim, uma teleologia – já contamina o teórico poralguns pressupostos do prático. A relação meio-fim não pode ser entendida ape-nas como uma questão teorética. Pelo contrário, mesmo que os pressupostossejam concebidos como formas categorias do pensamento – e não a partir dabusca de uma validade objetiva da vontade –, a própria defesa de uma teleologia,por intermédio da subjetividade constitutiva, já demonstra uma premissa paraação. Por sua vez, ao estabelecer um padrão a ser alcançado pelo Direito positi-vo a partir do ideal de justiça – ideal social –, mesmo que seja sustentado teori-camente, enseja-se também o campo para a consagração da “comunidade dehomens livres”, o que, de imediato, traz, em seu bojo, a questão da liberdade,que é, em síntese, o objeto do prático kantiano.

De qualquer modo, o projeto de Stammler peca por seu rigoroso formalismo.Em primeiro lugar, porque o próprio formalismo pode não ter passado de umailusão, na medida em que, sobretudo quando discute a justiça, os resultados porele alcançados não chegam a ser puramente formais, “senão que se fundam emuma idéia concreta de valor, a saber, no valor de personalidade humana comoautofim”.182 Em segundo lugar, embora a relação forma-matéria tenha sido fir-mada em seu projeto, a formalidade acabou por obscurecer a práxis, concebidapor um mero jogo de determinação mediante a subjetividade constitutiva lançadaao campo de uma intencional validade universal.

Em um momento em que, segundo Castanheira Neves, “tudo convocava apráxis ao histórico-concreto e a normatividade jurídica se entendia inseparadada sua problemático-concreta realização”,183 estabelecer, no plano do normativo,a ênfase nas formas categoriais da consciência é a própria negativa da possibili-dade construtiva de um Direito embasado em uma intersubjetividade constitutivade matriz comunicativa. Em oposição à tentativa de se querer buscar a formavalidante da normatividade, a saída poderia ser encontrar sua “constitutividade”em sua concreta realização e a conseqüente superação das dicotomias forma-matéria, sujeito-objeto mediante a inserção de uma racionalidade auto-reflexivano plano intersubjetivo. É uma superação, por conseguinte, que desmonta a

182 Ibidem, p. 68. Tradução livre.183 NEVES, Castanheira A. A Crise Actual da Filosofia do Direito no Contexto da Crise Global daFilosofia: Tópicos para a Possibilidade de uma Reflexiva Reabilitação. op. cit., p. 44.

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tradicional distinção do prático e do teórico: o teórico e o prático se cruzam, apartir de então, em um mesmo projeto de validação normativa.184

Por outro lado, o formalismo de Stammler peca por consagrar o geral nasformas categoriais da consciência. Não obstante a ênfase gire agora em torno dasubjetividade constitutiva, novamente a prevalência da filosofia se volta para oestudo das formas gerais e abstratas que condicionam a experiência. O interesse,apesar do resgate dos pressupostos kantianos projetar a essência sobre o sujeito,continua sendo o que se aparta dos particularismos, das contingências históricas,enfim, das situações de contexto. Em contraposição a essa premissa, a consciênciapoderia tratar do particular – diria, afinal, Husserl185 – e, dessa forma, estariafinda a necessidade de se encontrar, no geral, a possibilidade da constituição domundo. O particular, dessa forma, adquire a possibilidade de ser validado e nãomais apenas as formas que atingem uma aparência generalizada incapaz deabarcar a verdadeira realidade. É um novo momento da filosofia que atinge,diretamente, os pressupostos desenvolvidos por Stammler a partir do pensamentokantiano.

Sob outra perspectiva, Stammler nada mais fez do que aplicar a lógica dasciências naturais e transportá-la para o plano do Direito. O Direito, como fenô-meno histórico-cultural, “[escapa-se] pelos espaços da rede dos conceitos geraislógico naturalistas”,186 o que torna, por conseguinte, incoerente querer torná-lo,mesmo que no plano do dever-ser, uma reformulação de uma filosofia que seestabeleceu para, em última análise, se voltar para as ciências da natureza. Esseaspecto, mesmo que seu plano fosse mostrar as insuficiências do empirismo,acabou por remeter sua teoria a uma epistemologia jurídica, a uma teoria doconhecimento jurídico apenas. É uma teoria do conhecimento, ademais, quenão consegue abranger a complexidade social, porque, por um lado, é fundadana filosofia kantiana, que não projeta a subjetividade sobre um campo verdadei-ramente intersubjetivo: a própria universalidade do imperativo categórico, afi-nal, é estritamente subjetiva; por outro, porque, no campo social, as relações serealizam sem essa direta correlação sujeito-objeto. Na verdade, a dinâmica soci-al ultrapassa as esferas de uma tentativa de universalizar a intenção normativa apartir da subjetividade constitutiva. Antes da relação sujeito-objeto, a dinâmicasocial convalida-se por meio da intersubjetividade constitutiva, que há de serconcebida nos jogos comunicativos auto-referenciados socialmente.

No intuito de conseguir conciliar as realidades contextuais do Direito com oquerer encontrar fundamentos constitutivos do normativo com validade univer-

184 Para maior esclarecimento, vide o último capitulo.185 Vide HUSSERL, Edmund. Meditações Cartesianas. Introdução à Fenomenologia. São Paulo:Madras, 1ª ed., 1973.186 RECASÉNS SICHES, Luis. Panorama del Pensamiento Jurídico en el Siglo XX. Vol. I. op.cit., p. 70. Tradução livre.

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sal, Stammler acabou, tal como Kant, dependendo, em excesso, do rigor dasrelações sujeito-objeto, matéria-forma. Conquanto Kant tivesse, afinal, realizadoa inversão das condições do conhecimento pela afirmação da subjetividadeconstitutiva, em último momento, ele não conseguiu se separar do mundo, emuma simples radicalização do projeto cartesiano. E, da mesma forma, Stammlerprocurou desvendar as formas categoriais do Direito para, em último momento,estabelecer uma teoria do conhecimento normativo.

Se tomada, contudo, a crítica de Husserl a Kant, percebe-se que o “ser”pode não ter cunho objetivo, nem subjetivo. Ao invés de se conceber a consciên-cia como uma estrutura essencial formal, ela pode ser os “fluxos, as vivências,para as quais não interessam os objetos, mas os fenômenos, ou os objetos comoaparecem para a consciência”.187 Para Husserl, “o eu reduzido não é uma partedo mundo, da mesma forma, inversamente, o mundo e seus objetos não sãopartes reais do meu eu”.188 Ao contrário de uma estrita relação sujeito-objeto,em que se consolidam as estruturas mentais como constitutivas do mundo, há dese pensar que a consciência pode ser um ato e que os objetos aparecem do modocomo são “vividos nesses atos”.189

A relação sujeito-objeto fica superada pela afirmação da própria atualizaçãodo ato de conhecer. Nas palavras de Husserl, “os objetos só são propriamenteconhecidos como aqueles que são dados, no fundamento da intuição atual”.190 Osfundamentos, portanto, em que se baseou Stammler são diretamente atingidos,pois se verifica que a estrutura da consciência não pode ser algo rígido, como umacoisa determinadora da objetividade. Para Husserl, como aduz Milovic, “Kantnão entendeu a estrutura intencional da consciência”.191 Ao se transferir essaperspectiva para o plano normativo, pode-se dizer que Stammler também nãoentendeu a estrutura intencional da consciência. É um aspecto que se torna maisgrave pelo próprio obscurecimento das contingências históricas e particularida-des contextuais da experiência jurídica: a defesa categorial rígida dos pressupos-tos normativos, na verdade, é a própria negação de uma consciência que possa sevoltar para o particular. E, ao não se voltar para o particular, a validade normativaacabou se inviabilizando como objeto de reflexão.

A irreflexão sobre a validade normativa, desse modo, prevalece mesmo coma afirmação da subjetividade constitutiva no Direito. Do mesmo modo que Kantnão discutiu os pressupostos da consciência, tampouco a própria liberdade,Stammler se contentou em descobrir os fundamentos normativos a priori doDireito, sem realizar, nesse caminhar, a crítica desses fundamentos. Eles foram

187 MILOVIC, Miroslav. Comunidade da Diferença. op. cit., p. 48.188 HUSSERL, Edmund. Meditações Cartesianas. Introdução à Fenomenologia. op. cit., p. 43.189 Ibidem, p. 45.190 HUSSERL, Edmund. Investigações Lógicas. SP: Abril Cultura, 1ª ed., 1973, p. 56, § 15.191 MILOVIC, Miroslav. Comunidade da Diferença. op. cit., p. 48.

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apresentados apenas como condição necessária para se qualificar juridicamentea experiência, sem serem, contudo, inseridos no âmbito dos possíveis temas dereflexão rigorosa da normatividade. Em síntese, embora se quisesse conceberuma modificação de postura em relação à validação normativa a partir da subje-tividade constitutiva, a própria fundamentação somente teve seu eixo de susten-tação alterado, não a sua reflexividade. Da tentativa, pois, de se perguntar “comoconhecer” antes do “conhecido” não surgiu a possibilidade da crítica. E, devidoa esse silêncio, a justificação normativa não se libertou de seu espectro metafísico,agora, porém, sustentada por uma metafísica da subjetividade, que não estabe-lece as condições para uma auto-argumentação da própria consciência e – apartir da projeção sobre o campo jurídico – da própria fundamentação normativa.Nas palavras de Milovic, ao analisar a filosofia kantiana, “isso representa tão-somente a explicação do conhecimento, não abrangendo a questão da legitimi-dade da reivindicação por conhecimento”.192 Em Stammler, assim, tem-se aplena aplicação da metafísica da subjetividade ao plano normativo.

Por intermédio dessa extensão, apresenta-se o paradoxo, a exemplo da filosofiakantiana, em suas premissas teóricas. Para justificar a objetividade da experiêncianormativa, Stammler postula a subjetividade transcendental; porém, ao assimfazê-lo, “as premissas comunicativas dessa subjetividade não são discutidas; comoconseqüência, ela perde sua universalidade”.193 Pela permanência da relaçãosujeito-objeto em suas premissas teóricas, não se promove a auto-reflexão dospressupostos da consciência, tampouco se postula a relação efetiva do sujeito comos outros: a intersubjetividade é trabalhada apenas como uma característica dasformas a priori da consciência, como uma decorrência da dedução transcendental.Assim, Stammler, tal como Kant, “postula a subjetividade universal e, por outro,permanece no plano do sujeito monológico, solipsístico, da ‘reflexão isolada’”.194

1.5.2. O DIREITO NATURAL EM GIORGIO DEL VECCHIO: A METAFÍSICA NATURALDE CUNHO TELEOLÓGICO E A EXPLÍCITA MIGRAÇÃO PARA O PRÁTICO

A projeção do pensamento kantiano sobre o Direito iria, de qualquer modo,adquirir contornos diversos e, em alguns casos, contrastar com as característicasbastante formais que Stammler desenvolveu em seu Tratado de Filosofia doDireito. Como um projeto mais recente e já imunizado contra as críticas que oformalismo stammleriano recebeu, o jurista italiano Giorgio del Vecchio tambémiria desenvolver diversas premissas trabalhadas na Crítica da Razão Pura noplano jurídico e, de modo semelhante a Stammler, determinar o conceito de

192 MILOVIC, Miroslav. Filosofia da Comunicação. Para uma Crítica da Modernidade. op. cit.,p. 64.193 Ibidem, p. 67.194 Ibidem, p. 67.

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Direito e o ideal jurídico. Todavia, como salienta Castanheira Neves, del Vecchioconsagrou características que o tornariam “menos kantiano e maisjusnaturalista”.195 No campo da “idéia do Direito”, del Vecchio se liberta dokantismo e estabelece uma preocupação ainda mais densa com a teleologia doque aquela desenvolvida por Stammler, alcançando, assim, um pensamento ju-rídico de grande originalidade. Metafísica normativa de cunho teleológico é oque se afirmará como nova expressão do direito natural, agora superando aformalidade do rigor categorial desenvolvido por Kant.

A começar pelo conceito próprio de natureza, já se vislumbram os novosparâmetros que sua filosofia jurídica assenta: “a natureza é, neste sentido, prin-cípio vivificante que anima a imensa mole do universo, exprimindo-se na infinitavariedade dos seus desenvolvimentos”.196 Certa relação da natureza com osmovimentos do próprio Direito – como uma idéia a se realizar na história – jáparece expor a influência do idealismo alemão em seu pensamento. Todavia,não obstante afirme ser ela “aquela substância, que reconhecemos já imune dasangústias da causalidade” 197 – em confronto, pois, com as características dojusnaturalismo clássico –, del Vecchio volta a resgatar a referência subjetiva,mesmo que direcionada a fins, na expressão da “razão interior que a todas ascoisas dá normas e lhes marca as suas próprias funções e fins”.198 Assim, nareferência deontológica do Direito, na investigação do direito justo,199 a naturezaultrapassa o campo da mera regulação normativa, adquirindo verdadeira“constitutividade” de cunho teleológico. E, nessa concepção que estabelece aidéia do Direito como uma estrutura de fins abarcando um mundo tambémestruturado teleologicamente, nas palavras de Cabral de Moncada, o pensamen-to de del Vecchio “já está muito para além do kantismo e constitui uma novametafísica”.200

De qualquer modo, del Vecchio, tal como Stammler, na procura pelo concei-to do Direito, consagra, explicitamente, o pensamento kantiano. Em seu capítulo“Fundamento Racional do Direito”, mais especificamente no subtítulo “O Senti-mento Jurídico”, o autor inicia já estabelecendo o primado das faculdades men-tais: “o homem tem uma faculdade originária, não induzível da experiência,graças à qual nos é possível distinguir a justiça da injustiça”.201 Essa faculdade

195 NEVES, Castanheira A. A Crise Actual da Filosofia do Direito no Contexto da Crise Global daFilosofia: Tópicos para a Possibilidade de uma Reflexiva Reabilitação. op. cit., p. 37.196 DEL VECCHIO, Giorgio. Lições de Filosofia do Direito. Vol. II. op. cit., p. 351.197 Ibidem, p. 357.198 Ibidem, p. 357.199 Ibidem, p. 331.200 MONCADA, Cabral de. “Prefácio”. In: DEL VECCHIO, Giorgio. Lições de Filosofia doDireito. Vol. I. op. cit., p. 13.201 DEL VECCHIO, Giorgio. Lições de Filosofia do Direito. Vol. II. op. cit., p. 332;

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originária, por sua vez, é a “fonte primária da evolução do Direito”.202 De formasucinta, pode-se dizer que se está novamente buscando estabelecer um conceitonormativo que supera as próprias experiências particulares, que deve ser conce-bido a priori para qualificar determinado contexto jurídico. Há, desse modo,uma “noção de juridicidade, distinta e superior às variações do conteúdo”,203 oumelhor, uma “forma lógica que tem um valor objetivo enquanto correspondecom a realidade”.204 Novamente, o conceito de Direito é tomado pelos pressu-postos da Crítica da Razão Pura, como uma noção de validade universal decunho essencialmente formal. Toda experiência jurídica, para assim ser qualifi-cada, tem de ser conjugada com o conceito formal de Direito. É um discursoque, em suas linhas básicas, assemelha-se sobremaneira àquele de Stammler. Aforma categorial expressa no conceito jurídico é o que possibilita a própria expe-riência do Direito.

No âmbito da idéia do Direito, sim, é que se pode constatar a superação daperspectiva formal kantiana. Para tanto, resgata del Vecchio determinados pressu-postos do direito natural clássico, como a afirmação ciceriana “natura iuris abhominis repetenda est natura”,205 tudo a expor as insuficiências das teorias quetentaram negar existência ao fundamento da natureza (ceticismo), aproximá-la deum propósito empírico (realismo empírico ou historicismo), buscar nela uma trans-cendência de cunho teológico (teologismo) ou sua redução à utilidade (utili-tarismo).206 Entretanto, em contraposição ao pensamento clássico, tanto em suamanifestação causal207 – que, para del Vecchio, é incapaz de fornecer uma axiologiaao Direito –, como no campo teleológico, a natureza deve ser concebida a priori.

202 Ibidem, p. 333.203 RECASÉNS SICHES, Luis. Panorama del Pensamiento Jurídico en el Siglo XX. Vol. I. op.cit., p. 81. Tradução livre.204 Ibidem, p. 81. Tradução livre205 DEL VECCHIO, Giorgio. Lições de Filosofia do Direito. Vol. II. op. cit., p. 355.206 Ibidem, p. 355.207 Del Vecchio esclarece que o “princípio da causalidade não permite distinguir, pois, realidadee valor das coisas. A explicação causal limita-se à redução sistemática dos fenômenos às suascondições determinantes, segundo um tipo ou esquema mecânico, em virtude do qual cadaconseqüente está ligado ao seu antecendente. As diferenças específicas e qualitativas ficam defora, ou são convertidas em termos de gênero ou quantidade (DEL VECCHIO, Giorgio. Liçõesde Filosofia do Direito. op. cit., p. 355). Por isso, “o princípio causal fornece-nos, por conseguinte,a noção da realidade como série necessária de fenômenos; mas desta série não indica o princípionem o fim. Não indica o princípio: pois, considerado o ponto mais extremo que o dito critérioalcança, o princípio seria um efeito sem causa. Tampouco indica o fim: pois seguindo o mesmoraciocínio, este seria uma causa sem efeito. Acresce que a lei da causalidade não possui sentidoalgum, a não ser a respeito dos modos de ser, ou seja, a respeito das modificações registradaspela realidade. Logo, supõe essa mesma realidade que se modifica. Por outras palavras: umasubstância ou substrato, que suporte e produza as variações. Mas a lei da causalidade é impotentepara fornecer qualquer idéia desta substância, como impotente é para lhe explicar a origem(Ibidem, pp. 354-355).

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E, particularmente na ênfase teleológica, está manifesta a metafísica ideal que delVecchio firma no pensamento jurídico. A natureza, em sua característica teleológica,nas próprias palavras desse autor, é uma metafísica.208 Atira-se à realidade comouma estrutura teleológica, “animada por uma potência espontânea e inesgotávelque dirige seus processos e a conduz a necessários graus de superioridade”.209

A sua filosofia normativa, desse modo, estabelece duas possíveis referências ànatureza, que estão em constante consonância e integração mútua.210 Ambas asestruturas, afinal, fundam-se como duas formas a priori da consciência. Nessepatamar, del Vecchio enfatiza, semelhantemente a Kant, que a experiência somentese torna possível mediante a relação sujeito-objeto: “o mundo surge, pois, comouma representação do sujeito, como uma posição do eu, como o princípio, a basee a condição de toda possível realidade e verdade, como a sede das idéias, emfunção das quais tudo se desenvolve e se efetua”.211 A subjetividade constitutiva,portanto, também é efetivamente consolidada no pensamento de del Vecchio,mas aqui, mais do que em Stammler, ela se projeta sobre um nítido referencialético: a subjetividade constitutiva é o referencial ético. Com a idéia do direitonatural, del Vecchio quer expressar que o Direito se realiza com a projeção delasobre o plano concreto: a razão jurídica consagra-se com a realização da idéia,lembrando a “realização do espírito hegeliano”, sem questionar, todavia, os fatosda subjetividade. Para del Vecchio, o “eu” é concebido “não apenas comopersonalidade empírica, mas como ‘órgão das idéias’; afirma-se, logo, comoprincípio absoluto e autônomo”.212 E, por absolutizar o “eu”, ele não necessitaser questionado. A irreflexão sobre os pressupostos da normatividade também seapresenta em sua filosofia.

É a partir da idéia – por estabelecer a subjetividade constitutiva como referencialético – que aparece a possibilidade do prático em del Vecchio. De forma maisexplícita em sua teoria do que na de Stammler, seu pensamento é que, a partir do“caráter absoluto da pessoa, da supremacia do sujeito sobre o objeto”,213 a liber-dade é promovida. Nada mais diretamente relacionado com o imperativo categó-

208 Ibidem, p. 357.209 RECASÉNS SICHES, Luis. Panorama del Pensamiento Jurídico en el Siglo XX. op. cit., p.85. Tradução livre.210 Del Vecchio esclarece que sua concepção metafísica de natureza, “em vez de contradizer,antes integra e completa a concepção causal. Da urdidura dos enlaces causais emergem tanto asrelações como os valores; e se no que concerne ao aspecto quantitativo permanece necessário eintangível o equilíbrio entre o prius e o posterius, todavia em cada natural desenvolvimentoverifica-se um incremento qualitativo, devido ao qual aquele equilíbrio se rompe e o segundotermo supera o primeiro, colocando-se com relação a ele numa relação de meio para fim (DELVECCHIO, Giorgio. Lições de Filosofia do Direito. Vol. II. op. cit., p. 357).211 RECASÉNS SICHES, Luis. Panorama del Pensamiento Jurídico en el Siglo XX. op. cit., p.85. Tradução livre.212 DEL VECCHIO, Giorgio. Lições de Filosofia do Direito. op. cit., p. 361.213 Idem, p. 364.

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rico kantiano do que defender a “substancial identidade com o ser dos restantessujeitos”,214 na busca da universalidade objetiva, contrapondo-se à natureza. Aoinvés de se ligar à natureza de forma causal, há de se firmar a máxima “atua, nãocomo meio ou veículo das forças da natureza, mas como ser autônomo, dotado deprincípio e fim”.215 O homem não pode ser arrastado pela natureza; deve, nolugar disso, dominá-la. A liberdade, assim, surge, em del Vecchio, como umaconfrontação com a natureza tal como compreendida pelo jusnaturalismo clássi-co. A liberdade está na espontaneidade do homem seguir suas determinaçõessegundo um valor objetivo universalizável, em sua “substancial identidade com oser dos restantes sujeitos”.216

Consagra-se a liberdade de agir no fato de o homem se determinar conformea si mesmo. A transcendência no campo ético, desse modo, estabelece as condi-ções para se superar a natureza. Suas ações são valoradas como a expressão daliberdade, “mediante o seu aferimento por aquele critério dado pela íntimaconstituição do sujeito, correspondendo à sua própria lei”.217 É uma metafísicaestabelecida no campo ético: o homem se autonormatiza; ele estabelece as pró-prias condições do normativo segundo um critério de universalidade objetiva.Nas palavras de del Vecchio, em estrita aplicação da filosofia prática kantiana,“ao homem cumpre, em suma, transcender a sua existência física de indivíduopelas suas deliberações, para se afirmar na sua qualidade de princípio, de serracional ou universal, até a si mesmo se identificar ao ser dos outros sujeitos”.218

O imperativo categórico, assim, é consolidado, não obstante com outras pala-vras: “opera como se nele operasse a humanidade, ou como se qualquer outrosujeito estivesse no lugar dele”.219 A partir do indivíduo, de sua razão, transcen-de-se à universalidade objetiva.

No âmbito do prático, por intermédio do referencial ético, dedica-se del Vecchioao normativo. E, nesse âmbito, estabelece-se o sentimento de justiça, como uma“prerrogativa perpétua e inviolável da pessoa”.220 Mas, novamente extraindo daCrítica da Razão Prática seus argumentos, del Vecchio afirma a máxima aplicávelao plano jurídico: “todo o homem, só por ser tal, pode aspirar a não ser tratadopelos outros homens como se fosse tão só meio ou elemento do mundo sensí-vel”.221 O Direito, desse modo, estabelece a pretensão universalmente válida decada sujeito respeitar os limites de sua liberdade. É por meio dessa concepção donormativo, que é ínsita à pessoa, que as relações sociais devem ser estabelecidas.

214 Ibidem, p. 365.215 Ibidem, p. 365.216 Ibidem, p. 365.217 Ibidem, p. 367.218 Ibidem, p. 368.219 Ibidem, p. 368.220 Ibidem, p. 369.221 Ibidem, p. 372.

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Percebe-se, assim, que o social de del Vecchio não parte de uma referênciaintersubjetiva, mas estritamente subjetiva, mediante a transcendência a umauniversalidade objetiva do normativo. As relações sociais, desse modo, surgemde uma “universalidade do sujeito”222 e, não, de um relacionamento intersubjetivo:o outro é projetado apenas com base em uma perspectiva metafísica, como umaabstração da norma em direção a um valor objetivo a partir da liberdade indivi-dual. Assim, mesmo que del Vecchio sustente que “o princípio fundamental dejustiça [exija] a valoração objetiva da pessoa na trama das relaçõesintersubjetivas”,223 a intersubjetividade não é tomada como critério de constitui-ção da própria experiência, mas como resultado de uma aplicação do imperativocategórico. Em síntese, a intersubjetividade deriva do monólogo.

A partir do processo de transcendência, del Vecchio firma o essencialismono Direito. De fato, como aduz Recaséns Siches, o sujeito, ao buscar universalizarsua vontade, está purificando-a, tornando-a absoluta.224 Ao se confrontar com anatureza, o sujeito “ascende do empírico ao metaempírico, do sensível ao inteli-gível, do particular ao comum de todos os seres e abarca com sua determinaçãoum mundo inteiro”.225 A essência domina o particular. A objetivação que se fazno campo normativo, a partir do imperativo categórico, não altera as proprieda-des da subjetividade como constituinte da experiência possível. São novos aresque, de modo parecido com a teoria stammleriana, repetem a procura pelogeral, pela essência agora baseada na possibilidade de o sujeito, como referencialético, estabelecer, a priori, as condições universalizantes e objetivas da vontade.E, desse essencialismo axiológico, não se estabelece a possibilidade da críticareflexiva da validade normativa, que perdura como valor absoluto, verdadeirodogma não discutível em si.

A consolidação do prático na filosofia de del Vecchio deu um passo adianteem relação a Stammler ao expor que o Direito não pode ser concebido apenascomo uma Teoria do Conhecimento, fundada em uma transposição das formascategorias da consciência para um plano do dever-ser. Ao invés disso, del Vecchioestabeleceu a subjetividade constitutiva como verdadeiro referencial ético, apli-cando, para tanto, pressupostos do prático. O que ele realiza é a construçãoefetiva de uma metafísica pela afirmação da idéia do direito natural e, nessecaminhar, acaba consagrando determinadas características de um idealismo pós-kantiano.226

222 Ibidem, p. 372.223 Ibidem, p. 373.224 RECASÉNS SICHES, Luis. Panorama del Pensamiento Jurídico en el Siglo XX. op. cit., p.87.Tradução livre.225 Ibidem, p. 87. Tradução livre.226 Nas palavras de Cabral de Moncada:“O idealismo de del Vecchio é, além disso, uma forma de idealismo parecida em vários aspectoscom muitas outras que pulularam na história da filosofia do século XIX e do atual, em que,

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Nesse sincretismo de concepções, todavia, não se encontra, em del Vecchio, apossibilidade da crítica rigorosa dos pressupostos normativos. A sua metafísicadeu à idéia uma amplitude tão marcante na própria configuração da racionalidadenormativa – como uma expressão de sua realização na experiência jurídica –,que, contudo, acabou por dificultar a reflexão sobre as próprias bases dessaracionalidade que se projetava sobre o mundo. A superação da natureza, construídaa partir da idéia e da liberdade, ainda se manteve ligada a uma subjetividadeconstitutiva que não se fez efetivamente social: a intersubjetividade foi apresentadaapenas como um resultado da validação realizada pela busca de um critério universale objetivo do normativo. E, com base nessa constituição monológica do mundo,não se promoveu, por conseqüência, a “tematização” discursiva da racionalidade.Sem o diálogo, a razão escapa de uma auto-reflexão e de sua “constitutividade”social, porque não se dilui nos processos de comunicação que se realizamsocialmente, mas se fecha em um âmbito em que o próprio eu não discute aspossibilidades de superação de sua concepção absoluta. Torna-se, assim, dogma– dogma da consciência, dogma da liberdade, em suma, dogma da razão.

Ao contrário da transcendência, a razão deve se “destranscendentalizar”,encontrar-se no social por meio de uma referência intersubjetiva e reflexiva. Aoinvés da centralização na perspectiva do sujeito, deve-se conceber a descen-tralização dos argumentos em diferentes esferas de compreensão social. E, aoalcançar esses pressupostos, superam-se as dicotomias sujeito-objeto, teórico-prático, forma-matéria, radicalizando, portanto, a racionalidade mediante suaarticulação dialógica. Ao superar a metafísica que contaminou também seu pen-samento, firmam-se as condições de uma racionalidade apta a transformar asociedade e que seja, devido a sua auto-reflexividade e “constitutividade”intersubjetiva, transparente.227

São reflexos, por isso, de um nascimento de um direito natural que não é tãonovo assim. Conquanto esse pensamento parta da filosofia kantiana, em últimainstância, o que se observa é a repetição de importantes características dametafísica clássica: os pressupostos do direito – universais, atemporais, essênci-as, portanto, de toda normatividade – são projetados sobre a própria realidade

como já foi notado por Recaséns, tornam a aparecer muitos momentos derivados de todas asgrandes correntes do idealismo alemão pós-kantiano. Fichte, com a sua concepção do “eu”,princípio absoluto e autônomo, do qual toda a realidade do não-eu não passa de ser umafunção; Schelling, com o seu organicismo teleológico e metafísico, inspirador do sistema deKrause; Hegel, com o seu palogismo, também metafísico, de uma razão universal que acaba porse fazer natureza, consciência e espírito, a si mesmo se contemplando como pensamento abso-luto, etc. Todos estes momentos, com efeito, surgem aqui e além como ingredientes de rápidafulguração que logo se diluem, absorvidos na síntese do pensamento delvecchiano. Nele, pode-ria dizer-se, estão em germe todas as formas conhecidas do idealismo ocidental. Poderíamostambém chamar-lhe, por essa razão, um idealismo eclético (MONCADA, Cabral. In: DELVECCHIO, Giorgio. Lições de Filosofia do Direito. Vol. I. op. cit., p. 15).227 Esses aspectos serão mais bem desenvolvidos no quarto capítulo.

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normativa positivada. Não há nada mais diretamente relacionado às premissasda filosofia clássica do jusnaturalismo. Apesar da referência às categorias doconhecimento, ao ato de conhecer antes do conhecido, parece que as estruturasnão se alteraram. Novamente, é a essência natural – agora forma consubstanciadana subjetividade – se lançando ao mundo. A mudança de enfoque para o sujeitonão fez desaparecer o contentamento com os fatos. Simplesmente, a “coisa emsi” da filosofia clássica - que não poderia mais ser desvendada pelas limitaçõesda experiência (a discussão sobre o nôumeno e “fenômeno” kantiano é a refe-rência nesse contexto) – transformou-se em “princípios jurídicos em si” pressu-postos na mente.

O projeto neojusnaturalista, portanto, teve o seu mérito menos em explicar oscritérios da compreensão da validade normativa do que em mostrar – da mesmaforma que era o projeto kantiano para a ciência em geral – os limites da ciênciano Direito. Por isso, a relevância de sua teoria está em ter reapresentado aomundo jurídico a necessidade de uma preocupação teleológica com o Direito e,sobretudo, uma reafirmação de sua vinculação ao “valor justiça”.

É um resgate de uma axiologia, contudo, cuja relatividade não permite com-bater a norma positivada: o direito natural apresenta apenas “valor axiológico-intencionalmente regulativo”, não “jurídico-materialmente constitutivo”.228 Essadistinção em relação à tradição da metafísica natural fez com que a própriaconcretização do valor afirmado na idéia do Direito não se tornasse uma exigên-cia para a validação da norma positiva. Assim, del Vecchio, diria que “a verda-deira atitude perante o ideal não consiste em exigir que ele se imponha sempreaos fatos, ou modele sempre a realidade empírica, mas em compreender que eledeve orientar a dita realidade”.229 Portanto, a idéia assume os contornos de umaorientação da norma positivada. Até para não contrariar os dois planos de suanatureza – causal e metafísica – deve-se entender que o direito natural, “poressência, vale e vigora como tal, e não deixa de ser válido, mesmo que o contra-riem os fatos”.230 Na verdade, conforme salienta Castanheira Neves, “a validadejurídica seria independente da axiologia referida pela justiça, autônoma daspróprias exigências da idéia do Direito, e, como conseqüência, o Direito injustonem por isso deixaria de ser Direito”.231 São assim as palavras de del Vecchio:“o direito positivo injusto nem por isso deixa de ser direito (...). Impõe-se sempreanalisá-lo nas suas causas, visto pertencer, como direito positivo, a série dosfatos causais”.232 São características que possibilitavam a continuidade do proje-

228 NEVES, Castanheira A. A Crise Actual da Filosofia do Direito no Contexto da Crise Global daFilosofia: Tópicos para a Possibilidade de uma Reflexiva Reabilitação. op. cit., p. 37.229 DEL VECCHIO, Giorgio. Lições de Filosofia do Direito. Vol. II. op. cit., p. 377.230 Ibidem, p. 377.231 Ibidem, p. 377.232 Castanheira Neves, todavia, salienta que essa característica não é marcante na filosofia de delVecchio apresentada na obra denominada La Giustizia, pois esse autor sustenta que o direito

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to positivista no Direito, pois a idéia do Direito não tinha o condão de determinaras condições da norma positivada,233 mas apenas ser uma referência axiológica.

Sem o confronto material com as condições de realização do Direito, não sefomentam as possibilidades do efetivo embate construtivo de novos campos donormativo. Sem a compreensão de que é exatamente a supervalorização normativaadvinda do cientificismo jurídico de intuito purificador uma das causas da “crisede validade do Direito” – o que transforma sua substancialidade em formadespregada dos contextos em que se insere, em uma nítida configuração metafísica–, não faria sentido reafirmar outra metafísica, malgrado com enfoque trans-cendental, como tentativa de restabelecer o equilíbrio dinâmico da tensão per-manente entre validade e facticidade. A idéia do Direito – embora garantisse umreferencial axiológico ao direito positivo – não tinha força para se tornar umpressuposto hábil o suficiente para promover a autocrítica normativa: o seudistanciamento do social – até pela referência kantiana da subjetividade (e nãointersubjetividade) constitutiva – e a impossibilidade de sua autocompreensãopor intermédio de argumentos tornaram-na uma nova referência dogmática.Não há mais uma ordem divina, não há mais uma razão voltada para o mundo,mas um mundo constituído pela razão: eis o novo dogma que não é superado poressa teoria. É o silêncio da razão, um silêncio que, nas palavras de MichelMiaille, gera a “impossibilidade para um jusnaturalista dizer o que é o Direitonuma situação dada”.234 Enfim, é a mais clara percepção de que o argumentojusnaturalista, mesmo “renovado”, não se sustenta ao crivo da crítica.

1.6. CONCLUSÃO – AS CONSEQÜÊNCIAS DA FALTA DE REFLEXIVIDADE NORMATIVADO DIREITO NATURAL MODERNO E OS NOVOS HORIZONTES

A crise de validade decorrente do cientificismo jurídico de matriz formal-normativa, em suas características gerais, não foi superada pela reafirmação danatureza, mesmo que condizente com a perspectiva da subjetividade constitutivaque se buscava incitar. Não se promoveu a efetiva reabilitação de um equilíbrio na

natural é “válido e eficaz contra um sistema jurídico positivamente vigente”, e sendo este contrá-rio às exigências elementares da justiça, que são as razões primeiras de sua validade”, legítimaseria “a reivindicação do direito natural contra o positivismo que o renegue” (NEVES, A. Cas-tanheira. A Crise Actual da Filosofia do Direito no Contexto da Crise Global da Filosofia. Tópicospara a possibilidade de uma reflexiva reabilitação. op. cit., p. 37).233 Nem todas correntes do jusnaturalismo contemporâneo seguiram essa tendência. Conformebem salienta Neves, autores como Radbruch, Cabral de Moncada, H. Coing apresentaram umdireito natural de cunho constitutivo: “a reflexão filosófico-jurídica voltava a ser “edificante”:assumia-se com um sentido fundamentalmente normativo e constitutivo e não apenas intencio-nalmente regulativo” (Ibidem, p. 38) – como ocorria no pensamento de Stammler. Assim,conforme tais teorias, o direito natural de cunho axiológico – como uma referência ética pressu-posta – constituía o Direito e daria as condições de sua própria existência.234 MIAILLE, Michel. Introdução Crítica ao Direito. Lisboa: Ed. Estampa, 2ª ed, 1994, p. 271.

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constante tensão entre facticidade e validade. O direito natural moderno, ao con-trário de suas configurações anteriores, surgiu em um contexto em que as discus-sões sobre a legitimidade normativa e os fundamentos que lhe davam sustentaçãonecessitavam de uma compreensão coletiva mais efetiva. A autoridade que anorma expressava em relação à vontade do Estado, afinal, já era um dos objetosde questionamento – eis um dos fatores da crise da validade no Direito.

No intuito de promover uma reativação do discurso sobre os pressupostosnormativos, o jusnaturalismo moderno não enxergou além do mero retorno daidéia de natureza, consubstanciada, agora, nas formas categoriais da consciência.Não percebeu, portanto, que além de reapresentar fundamentos, há de se discuti-los. Caracterizou-se, desse modo, como uma axiologia muda, que não era mere-cedora de discussão, porque se encontrava pressuposta, naturalmente, pela men-te humana. Assim a filosofia jurídica, mesmo querendo superar o formalismocientífico de intuito purificador do ato de conhecer a norma, não superou a crisedos fundamentos. E, por isso, a tensão entre validade e facticidade estabeleceu-secom outros contornos, sem se compreender que a própria discussão sobre avalidade poderia ser a abertura para o novo no Direito. Ao invés de um novocritério de validade, o mundo jurídico precisava refletir sobre o critério adotado.

O jusnaturalismo, como tem sido reiteradamente discutido neste capítulo,em suas diferentes configurações, é a revelação mais clara da metafísica que temimpregnado o pensamento jusfilosófico ao longo dos séculos. Isso porque afasta,a partir de um resgate valorativo subtraído de reflexão rigorosa, a justificativadas normas de uma contextualização que possibilite a mobilização comunicativados argumentos. O jusnaturalismo, dessa forma, ao silenciar a crítica e a auto-re-ferência social dos argumentos justificadores da normatividade, debilita, na esteirado pensamento habermasiano, as possibilidades de promoção de umaracionalidade que consiga fazer as normas e valores se diluírem nas práticascomunicativas dos agentes sociais.

Sem a perspectiva de colocar os argumentos justificadores da normatividadeem um contexto de comunicação social, o jusnaturalismo consolida uma racio-nalidade jurídica em crise. Primeiramente, porque traz o resgate de uma necessi-dade absoluta de encontrar um fundamento último para a normatividade, contra-riando a postura jusfilosófica contemporânea que, nas palavras de CastanheiraNeves, “se dedica doravante menos à construção de sistemas sobre fundamentosseguros do que à desconstrução generalizada e à radicalidade de um questio-namento relativizado sobre o conhecimento”.235 E essa visão mais recente não ésenão o reflexo do próprio descontentamento com a impossibilidade de se com-preender reflexivamente os fundamentos que buscaram validar a realidade. Sema reflexão, a relativização dos fundamentos torna-se uma conseqüência previsível.

235 NEVES, Castanheira A. A Crise Actual da Filosofia do Direito no Contexto da Crise Global daFilosofia: Tópicos para a Possibilidade de uma Reflexiva Reabilitação. op. cit., p. 16.

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No âmbito do Direito, em que a tensão entre validade e facticidade é uma carac-terística inerente, a discussão filosófica sobre a crise dos fundamentos atingiudiretamente a sua compreensibilidade.236

Em segundo lugar – e como decorrência do primeiro argumento –, ojusnaturalismo, em particular o pensamento stammleriano, consagra o queHabermas denomina “conceito forte de teoria”.237 A vida contemplativa e aaceitação irrefletida das formas categorias da consciência são interpretadas comoo ápice do acesso à verdade, que, todavia, não possibilitam compreender acomplexidade dos contextos em que essa verdade é buscada. Assim, como es-clarece Habermas, “o que se mantém é a interpretação idealista do distanciamentoem relação ao contexto de interesses e da experiência cotidiana”.238 Essa prima-zia do teórico, que faz obscurecer a prática, torna-se especialmente complicadano âmbito do Direito, porque – de modo semelhante ao que se verificará naanálise da metafísica presente no pensamento kelseniano expresso na TeoriaPura do Direito – dificulta a compreensão do “Direito vivo”.239 Ao absolutizar ateoria, eliminam-se todos os elementos singulares que o contexto promove, acar-retando, por conseguinte, um distanciamento da própria justificação que a teoriavisa a promover. Em síntese, incita-se o fundamento descontextualizado: “assimse fecha o círculo de um pensamento da identidade, que se introduz a si mesmona totalidade que pretende abranger, cuidando, portanto, de satisfazer à exigên-cia de fundamentar todas as premissas a partir de si mesmo”.240

236 Assim, na esteira dessa discussão, Nietzsche afirmou que a prevalência, no pensamentofilosófico, dos fundamentos tornou a atitude humana ressentida perante a vida, já que o mundoaparente perde valor, tendo o homem de buscar uma razão de ser em alguma crença. Emcontraposição a essa atitude, fazia-se necessário, promover o niilismo, que representaria uma“rejeição radical de valor, de sentido, de desejabilidade” (NIETZSCHE, Friedrich. FragmentosFinais. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 2002, p. 48), em síntese, “os valores supremos sedesvalorizam” (Ibidem, p. 54). Ao invés dos fundamentos, portanto, deve-se dizer “que não hánenhuma verdade; que não há nenhuma constituição absoluta das coisas, nenhuma “coisa comotal”, “coisa em si” (Ibidem, p. 55). É uma mudança de pensamento, desse modo, que confron-taria diretamente o essencialismo do direito natural. Afirmar o niilismo, nesse projeto nietzschiano,realizaria a valorização das coisas propriamente ditas, não correspondendo a “nenhuma realida-de, porém apenas um sintoma de energia e força [pelo] postulador do valor, uma simplificaçãopara a finalidade da vida” (Ibidem, p. 55). Por sua vez, Heidegger, em nítido combate à metafísica,buscaria, em sua obra Ser e Tempo, uma retomada do valor do ser como se apresenta à mente,enfatizando-se, portanto, a aparência em contraposição a uma procura essencialista dos funda-mentos (Vide HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes, 12ª ed., 2002).237 HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-Metafísico. op. cit., p. 41.238 Ibidem, p. 42.239 Termo empregado por Chaïm Perelman para explicitar o Direito tal como desenvolvidocotidianamente nos diferentes jogos argumentativos realizados socialmente. Para tanto, videPERELMAN, Chaïm. Ética e Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1ª ed., 2000.240 HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-Metafísico. op. cit., p. 42.241 Ibidem, p. 43.242 Ibidem, p. 43.

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Por isso, sobretudo no âmbito do prático, em que se avultam as situações decontexto e de historicidade, uma racionalidade que, em última análise, buscaum fundamento teórico justificador da realidade prática não mais se sustenta ou,nas palavras de Habermas, “a irrupção da consciência histórica [faz] com que asdimensões de finitude [ganhem] em termos de força de convicção e se [configu-rem] em oposição a uma razão não situada, idealisticamente endeusada”.241

Ocorre, desse modo, uma “destranscendentalização dos conceitos tradicionaisfundamentais”.242 Não é, portanto, sem motivo que os jusnaturalistas modernos– como Stammler e, sobretudo, del Vecchio –, diante da própria necessidade detentar, mesmo que sem total êxito, compreender os planos da contextualizaçãodo Direito, procuraram conciliar a sua idéia com sua realização empírica.

O jusnaturalismo moderno, dessa forma, já surge com a concepção de que háde se conciliar uma teleologia com o direito natural, estabelecendo, porém, umametafísica que não compreende as suas próprias bases, que é causa de suainsuficiência. Já se encontram concessões à formalidade kantiana nesses autorespara adequar seus pressupostos às características do Direito: Stammler já incitouuma teleologia em sua teoria ainda impregnada de formalismo; del Vecchio, porsua vez, “alargou ainda mais esse buraco, já aberto nas grades da dita prisão,pelo teleologismo stammeleriano”.243

Em suas diferentes manifestações, contudo, mesmo nos jusnaturalistas mo-dernos, não foi possível abarcar o novo no pensamento jusfilosófico. Diferente-mente de uma razão irrefletida e idealizada, deve-se afirmar uma racionalidadeque consiga estabelecer laços com a pluralidade e diferenças contextuais. Combase nessa modificação de postura, percebe-se o prejuízo de um pensamentoque visa a encontrar, na unidade, o próprio critério de alcance de uma justifica-ção universal da realidade. Não há mais que sustentar, dessa forma, uma unida-de redutiva e fundamentadora do mundo, em que se ignora o papel da diferen-ça. Ao contrário, há de se impelir “um discurso que não ignore as diferenças,mas também não as veja como mônadas cegas umas para as outras e antessolicitadas a um reconhecimento mútuo superador, em que façam justiça umasàs outras”.244 A racionalidade tem de inserir a diferença em seu próprio discursoe consolidar a multiplicidade dos contextos como uma exposição de sua própriacondição de viabilidade. Isso, sobretudo, se deve à percepção de que “a inser-ção das realizações teóricas em seus contextos práticos de formação e de aplica-ção desperta a consciência para a relevância dos contextos cotidianos do agir eda comunicação”.245

243 MONCADA, Cabral de. “Prefácio”. In: DEL VECCHIO, Giorgio. Lições de Filosofia doDireito. op. cit., p. 13.244 NEVES, Castanheira A. A Crise Actual da Filosofia do Direito no Contexto da Crise Global daFilosofia: Tópicos para a Possibilidade de uma Reflexiva Reabilitação. op. cit., p. 19.245 HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-Metafísico. op. cit., p. 43.

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A racionalidade, conseqüentemente, não se sustenta a partir da justificaçãosegura de uma verdade incontestável. Aliás, a própria aptidão para a contesta-ção da justificativa fornece as bases para a afirmação da racionalidade, orainserida nos jogos argumentativos contextualizados e descentralizados. Comodecorrência, no lugar da procura da verdade justificadora e da unidade ordenadorada realidade, defende-se a solidariedade como nova intencionalidade da razão,que agora assume uma pluralidade irredutível. Em síntese, a crise da racionalidadepromove a própria crise dos alicerces do direito natural. A desabsolutização darazão, portanto, postula a superação de um critério centralizado da fundamenta-ção normativa. Não mais se sustenta o mistério, mas, sim, a transparência navalidade do Direito. São abertas, assim, as possibilidades de um repensar ascondições de nossa própria cultura jurídica.

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CAPÍTULO II

A METAFÍSICA FORMAL-NORMATIVA

E A SUBJETIVIDADE CONSTITUTIVA1 NO DIREITO:

A TEORIA PURA DO DIREITO2 DE HANS KELSENE A RACIONALIDADE JURÍDICA

2.1. INTRODUÇÃO

O estudo da metafísica da natureza, realizado no capítulo anterior, incitouimportantes problemas a respeito da validade normativa. Nas diferentes configu-rações do direito natural analisadas, percebeu-se que o silêncio a respeito dospressupostos normativos se perpetuou. Mesmo com a alteração efetuada porjusnaturalistas modernos, como Stammler e del Vecchio – que passaram a ado-tar elementos da filosofia kantiana em suas teorias –, não se fomentaram ascondições da reflexão rigorosa sobre a validade do Direito. Ao mesmo tempo, amanutenção do essencialismo pela vertente também manifestada na afirmaçãodas categorias aplicadas ao pensamento jurídico – a idéia do Direito – afastou apossibilidade de maior interesse nas particularidades contextuais de realizaçãodas normas. Desse modo, embora por caminhos diversos, o jusnaturalismo nãoincitou o questionamento de suas bases normativas: a natureza, que é o cerne desua teoria, não chegou a ser verdadeiramente apresentada como um argumentoapto a ser diluído em uma comunicação social efetivamente debatedora de suarazão de ser. Ela foi apenas apresentada como um elemento cuja sustentação eraapenas aceita, mas, não, levada ao crivo da crítica. O monólogo do jusnaturalismoe seu afastamento da socialização nas bases de sua sustentação, portanto, fize-ram com que a crise da validade normativa, se tomada a perspectiva comunica-tiva, se mantivesse irresoluta.

Ao lado da metafísica da natureza, o pensamento jurídico conheceu a metafísicaformal-normativa. Curiosamente nascido do intuito de se afastarem da Ciência doDireito todos os elementos concebidos como alheios ao seu objeto, muitos consi-derados de elevado grau metafísico, o cientificismo jurídico – aqui analisado o devertente kelseniana – acabou por estabelecer outra metafísica. O paradoxo insta-lou-se precisamente no objeto específico que a ciência do Direito deveria estudar:

1 É importante, desde o início, destacar que o ato de constituir não significa criar. Quando sesustenta que Kelsen estabelece a subjetividade constitutiva no ato de conhecer a norma, não seestá querendo afirmar que o sujeito do conhecimento – o cientista jurídico – cria a norma, poisessa é uma atividade típica da política jurídica para este autor. Ele, na verdade, estabelece asdistintas significações que se podem extrair da norma, dando-lhe a devida dimensão teórica.Essa característica será mais bem compreendida a partir do paralelo com a dedução transcendentalkantiana, analisada neste capítulo.2 Será adotada a segunda edição da Teoria Pura do Direito neste capítulo.

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a norma. É precisamente em seu conceito, características e supervalorização quea metafísica formal-normativa irradiou-se como uma implícita, mas severamentepresente, causa da irreflexão sobre os pressupostos normativos.

É interessante perceber que a mudança de postura a respeito dafundamentação jurídica não chegou a abalar as estruturas de irreflexão sobre avalidação normativa. Ao contrário do que se poderia imaginar em uma primeiraanálise, essa mudança de enfoque não fez desaparecer a metafísica, mas, somente,deu-lhe contornos distintos: a própria tentativa de afastamento do debate sobreos fundamentos do plano da ciência jurídica, no intuito de se elaborar uma“ciência”, acabou por incitar uma nova metafísica.

Este capítulo nasceu do intuito de desvendar, a partir do estudo da TeoriaPura do Direito, de Hans Kelsen, como essa configuração metafísica também seirradiou nos planos da ciência jurídica de matriz formalista. Embora mais implí-cita e mais complexa, ao se pesquisar cuidadosamente sua obra, percebe-se quevários elementos até então investigados permanecem no pensamento kelseniano.Dessa forma, o estudo ora iniciado visa a revelar que, malgrado a partir de umavertente lógico-formal, Kelsen manteve, dentro do núcleo de sua teoria, umametafísica implícita, pautada por importantes características de matriz kantiana,sobretudo a subjetividade constitutiva. E, tal como Kant não debateu suas cate-gorias da mente, Kelsen estabeleceu um verdadeiro silêncio no cerne do ato deconhecer a norma, que também não é rigorosamente refletido.

A norma é “conhecida” – esse é o campo de observação do cientista jurídico.Mas a “reflexão”, que tanto poderia aparecer a partir da crítica ao jusnaturalismo,que é característica da escola kelseniana, infelizmente, permaneceu adiada. Ointuito de construir a ciência jurídica pautada pelo objeto exclusivo da normadirecionou os esforços para a afirmação do conhecimento como atividade dojurista. O conhecimento científico, porém, centralizou-se em seu objeto específi-co. Se essa “pureza” pudesse levar o Direito a sustentar a existência de umcampo de estudo científico próprio, porque se relacionaria com as propriedadesda metodologia científica do início do século XX, ela também poderia levar aoesquecimento do que não é apenas adjacente, porém, sim, constituinte do pró-prio processo de compreensão da norma: a reflexão rigorosa da validade normativanos diferentes estádios do desenvolvimento do Direito.

O conhecimento não equivale à reflexão rigorosa. Enquanto o ato de conhecerlimita-se ao estudo do objeto, a reflexão deseja alcançar o estudo dos pressupos-tos normativos. Nos termos adotados pelo pensamento habermasiano, a reflexãorigorosa opera a partir da dimensão da validade e, com base nas discussõestravadas entre os diferentes intérpretes, que levam suas pretensões de validade aum contexto dialógico, alcança-se a dimensão empírica, acarretando, por conse-guinte, uma integração social pautada pela comunicação. “Parece que a integraçãode coletividades sociais [mediante] um agir que se orienta por pretensões devalidade só foi assegurada a partir do momento em que o risco de dissenso pôde

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ser interceptado na própria dimensão de validade”.3 Essa mudança de enfoque,que será analisada em capítulo futuro, não chegou a ser desenvolvida pela teoriakelseniana. A validade, aliás, foi reduzida a um simples conceito formal de relacio-namento entre os diferentes patamares hierárquicos das normas. O que ultrapas-sasse esse limite da compreensão metodológico-científica da Teoria Pura do Direi-to era relegado a outros campos próprios de pesquisa que não a ciência jurídica.

O querer tornar-se ciência, bastante enfatizado na Teoria Pura do Direito, foibem sucedido naquilo que Kelsen verdadeiramente propunha. Dentro dos mol-des por ele adotados – método lógico-formal, centralização no objeto específicodo conhecimento jurídico (purificação em torno do ato de conhecer a norma),procura pelo conhecimento –, torna-se difícil incitar a crítica, porque seu pensa-mento é denso e fortemente argumentado.

Muito do que tem sido debatido a respeito de sua teoria, por esse fato, tem selimitado a expor as insuficiências de seu método para a amplitude do fenômenojurídico. As críticas, portanto, caracterizam-se por sua exterioridade. Tentam com-bater a Teoria Pura do Direito por intermédio da demonstração, por exemplo, daimpossibilidade da pureza dentro da vasta gama de relações que o direito fornece.Sem dúvida, essa forma de objeção é de grande relevância, uma vez que mostrao quanto Kelsen se fechou dentro de seu método teórico, mesmo que intencional-mente. Contudo, ela deixa de revelar que, apesar de todo esforço em se afastardas metafísicas que tanto contaminaram a ciência jurídica, Kelsen não deixou deser um metafísico. Da mesma forma que um cientista, ao analisar seu objeto, nãoreflete a respeito dos próprios pressupostos de sua atividade, Kelsen, conscienci-osamente (pois seu intuito de purificação é adotado como um critério arbitraria-mente por ele definido como necessário para a Teoria Pura do Direito), fez aciência jurídica muda em relação à reflexão sobre seus próprios fundamentos,relegando essa preocupação a outras tantas searas do saber. E, ao não refletirsobre as bases de sustentação de seu próprio pensamento, a metafísica – ora for-mal-normativa, porque parte de sua característica lógico-formal – é consagrada.

Nesse intuito, o estudo buscará entrar no interior da Teoria Pura do Direitopara, em seguida, revelar a partir de que perspectiva se pode verificar a existên-cia de uma metafísica formal-normativa em seu núcleo. Ao analisá-la, perceber-se-á a presença forte da metafísica da subjetividade que já se consolidava nopensamento filosófico, em especial após os trabalhos de Kant. Essa projeçãosobre o campo do direito pôde ser muito bem trabalhada por Kelsen, mesmoque, em seu tempo, outras contribuições filosóficas, como as de teóricos daEscola de Viena, em especial o primeiro Wittgenstein,4 o tenham influenciadopara a formação de sua Teoria. A partir de Kant, Kelsen descobriu a subjetivida-

3 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade. op. cit., p. 43.4 Para tanto, vide WITTGENSTEIN, Ludwig. Tratactus Logico-Philosophicus. São Paulo: EDUSP,3ª ed., 2001.

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de constitutiva e o intuito de expor como conhecer antes do conhecido – a ênfaseno ato de conhecimento (pureza). Com base na Escola de Viena, Kelsen ganhousubsídios para construir sua estrutura lógico-formal.

A investigação será centralizada na questão sobre a subjetividade constitutivae, em seguida, como uma conseqüência, no processo de conhecimento normativo.Com base nessas premissas, poder-se-á compreender, a partir do núcleo formadorde sua Teoria Pura do Direito, a dimensão de sua metafísica. Nesse intuito,primeiramente, é necessário examinar a filosofia transcendental kantiana para,em seguida, mostrar as correspondências entre esta filosofia e a Teoria Pura doDireito. Esse paralelo revelará importantes ligações complexas que muito permitirãoconcluir a respeito da presença paradoxal da metafísica no pensamento kelseniano.

2.2. A FILOSOFIA TRANSCENDENTAL KANTIANA: A SUBJETIVIDADE CONSTITUTIVA

Não é raro encontrar, em abordagens que tratam especificamente de Kelsen ede sua Teoria Pura do Direito, a tentativa de estabelecer um paralelo entre seuspressupostos teóricos e aqueles desenvolvidos por Kant, em especial na Crítica daRazão Pura. Nesse sentido, por exemplo, Kassius Pontes aduz que “o formalismokelseniano é a repercussão mais concreta, no Direito, da influência de Kant naconstrução da modernidade”,5 Castanheira Neves, por sua vez, apresenta Kelsendentro de sua análise do neokantismo jurídico.6 Essas correlações têm, evidente-mente, uma razão de ser: Kelsen expressa, no Direito, a consolidação de impor-tantes temas discutidos por Kant. Isso, apenas a guisa de introduzir o debate,pode ser verificado na limitação do conhecimento jurídico à norma, na separaçãoentre os planos do ser e do dever-ser, na possibilidade de conhecimentosdesvinculados da experiência (como os juízos sintéticos a priori). Conquanto todasessas correlações sejam relevantes, normalmente se olvida de algo fundamentalque pode ser inferido também a partir da Crítica da Razão Pura e de seu paralelocom a Teoria Pura do Direito: a afirmação da subjetividade constitutiva, mesmoque essa subjetividade não seja debatida explicitamente dentro do espectro dateoria pura kelseniana.

É essa abordagem que tomará o foco central deste capítulo. As outras corre-lações serão apresentadas apenas posteriormente, como uma explicitação dainfluência realmente presente de Kant no pensamento kelseninano. Todavia,para estudar essa subjetividade constitutiva, primeiramente, há de se perguntar:o que significa essa subjetividade constitutiva? Não é uma pergunta simples e,

5 PONTES, Kassius Diniz da Silva et al. “Lógica e Hermenêutica do Direito à Luz do ModeloTópico-Retórico: História e Implicações”. In: O Raciocínio Jurídico na Filosofia Contemporâ-nea. São Paulo: Carthago Editorial, 1ª ed, 2002, p. 25.6 NEVES, Castanheira A. A Crise Actual da Filosofia do Direito no Contexto da Crise Global daFilosofia. Tópicos para a Possibilidade de uma Reflexiva Habilitação. op. cit., p.36.

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para respondê-la adequadamente (mesmo que de forma resumida), é necessáriose trabalhar uma característica que se evidencia na modernidade, com ênfase apartir de Descartes: a formação da metafísica da subjetividade.

O cogito pode ser o primeiro passo para entender o que se pretende trabalharneste tópico. Quando Descartes, nas Meditações, apresenta a dúvida metódica,no intuito de justificar o método, sustentando que o “eu sou” é uma “coisa quepensa” e que, portanto, “uma coisa que duvida, que concebe, que afirma, quenega, que quer, que não quer, que imagina também e que sente”,7 ele está, defato, estabelecendo um novo paradigma no âmbito da filosofia: a ênfase nosujeito do conhecimento. A partir desse momento, o “eu penso” passa a ser oreferencial da razão. A certeza agora está no sujeito que pensa, não mais naexistência da coisa pensada. Pode ser que o objeto pensado não exista, mas éimpossível que não exista o sujeito pensante daquele objeto.8

É um momento muito sério na filosofia. Contrariando a tradição filosóficaque advém dos gregos, passa-se a ter um referencial na subjetividade. A questãodo sujeito é desenvolvida na filosofia e é a partir dessa ênfase que se dão asbases para a superação paulatina da metafísica da objetividade. Ao se concluirque se estabelece uma nova metafísica, surge a pergunta: por que ela permane-ceu, embora em outro plano? Isso se deve, em uma primeira análise, ao fato deque os fundamentos passam a ter como referência o sujeito e, não mais, osobjetos. Altera-se, desse modo, o seu eixo de sustentação.

De qualquer forma, essa questão somente poderá ser respondida após oestudo da filosofia transcendental kantiana, adiante efetuado. O que pode seradiantado é que essa metafísica se manteve, porque, conquanto afirmada a sub-jetividade, ela não foi categoricamente refletida. Em Descartes, a subjetividade épraticamente apenas apresentada, para, posteriormente, ser enfatizado o queera seu propósito: o método. Em última análise, portanto, Descartes utiliza osujeito com um propósito epistemológico: é o sujeito do conhecimento, cujaexistência decorre de sua explícita relação com o mundo, o dado, os objetos.Descartes, logo, apesar de começar demonstrando a existência do sujeito a par-tir do pensamento, ainda tem muito da filosofia clássica. A filosofia ainda seconfunde com o conhecimento.9

7 DESCARTES, René. Meditações. São Paulo: Abril Cultural, Col. Os Pensadores, Vol. XV, 1ªed, 1973, p. 103.8 Verifica-se, nesse aspecto, uma grande diferença em relação à filosofia clássica. Enquanto afilosofia clássica deseja encontrar a essência dos objetos, esquecendo-se, nesse processo, dedebater verdadeiramente o sujeito, o pensamento moderno passa a referenciar a filosofia nosujeito. A essência deixa de ser encontrada nas coisas e se projeta sobre a razão humana, sobreo conhecimento. Dessa forma, enquanto a filosofia clássica desenvolve a metafísica da objetivi-dade, o pensamento moderno consagra a metafísica da subjetividade.9 Vide observação realizada na introdução deste capítulo: o conhecimento não opera no âmbitoda validade e, portanto, não se confunde com a reflexão rigorosa.

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Ao não debater a subjetividade, Descartes mostra seu entendimento de serela um fato, uma evidência, que decorre do ato de pensar. Ele não trabalha,portanto, as condições que levam a esse pensar; não estuda os pressupostos damente. Ligado a uma tradição matemática e a uma lógica renovada pela geometria,o seu intuito parece mais a de um cientista limitado à observação de seu objetodo que a de um filósofo que deseja questionar os pressupostos da consciência.

O ato de pensar, por conseguinte, é um fato que não é objeto de questionamentoe é essa certeza que possibilita a afirmação da existência humana. É a consolida-ção da autoridade do pensamento como condição da existência. Diferentementedos gregos que buscavam nos objetos a sua essência, a sua substância, agora osujeito é quem pode afirmar a certeza de toda a estrutura do mundo. Esse novo“eu” que fundamenta a realidade adquire uma justificação absoluta, converten-do-se em um pressuposto universal do conhecimento. A evidência, agora comreferencia no sujeito, torna-se um critério de verdade.

Esse sujeito cartesiano, porém, não possui o poder de constituir a realidade.Em última instância, o sujeito é um mero observador do mundo. É por isso queMilovic conclui que “Descartes ainda é, nesse sentido, realista. Ele acredita nomundo objetivo e pergunta-se como mostrar a existência deste mundo (...). Osujeito cartesiano não precisa constituir nada, a não ser colocar as condições doverdadeiro conhecimento”.10 A relação, portanto, entre sujeito e objeto mantémuma estática contemplativa. Ele apenas é o referencial da razão, do conhecimen-to, mas não um referencial da constituição, modificação do mundo.

Em razão desse fato, pode-se assumir que Descartes deu um passo funda-mental à filosofia ao afirmar a subjetividade. Porém, essa afirmação não gerou areflexão sobre esse novo parâmetro e sobre as condições da consciência, comotambém não acarretou a possibilidade do sujeito constituir a experiência exter-na. É a partir dessa premissa que se poderá verificar o que Kant traz de novo emrelação à subjetividade. Como sintetiza Milovic, Descartes “descobriu o ego, masnão entendeu seu sentido transcendental”.11 Em Descartes, a filosofia, tal comoantes afirmada, confunde-se com o conhecimento ou, em termos mais precisos,a filosofia passou a ter sua orientação pautada pelos parâmetros da ciência e, porconseguinte, reduziu-se a uma descrição do mundo, em que o conceitos sãodescobertos e, não, criados.

Foi esse cientificismo e a preocupação com o método que contaminaram oDireito, dando ensejo ao surgimento de um positivismo legislativo incipiente. Énesse contexto que se formaram os fundamentos de um exegetismo jurídico.Não é difícil verificar que a filosofia cartesiana, ao não trabalhar o poder deconstituição dos objetos pelo sujeito, acabou legitimando, de certa maneira, umaestática na interpretação normativa. O sujeito, afinal, não conforma o objeto ou,

10 MILOVIC, Miroslav. Comunidade da Diferença. op. cit., p. 12.11 Ibidem, p. 43.

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em termos mais jurídicos, o intérprete não conforma a norma. Tem-se, assim,um intérprete que deve, apenas, contemplar a norma e aplicá-la rigorosamentetal como explicitada no ordenamento jurídico. Em síntese, é a conformação doautomatismo judicial, em que ao juiz é negado o poder de interpretação.

É evidente, assim, que a filosofia cartesiana forneceu importantes elementospara o surgimento do positivismo jurídico que negava o poder constitutivo dosujeito no processo de conformação da norma jurídica.12 Entretanto, algo novohaveria de ser elaborado na filosofia e que forneceria outros subsídios para senegar o automatismo jurídico, sem, contudo, impossibilitar a afirmação de umaTeoria Pura do Direito. Essa novidade pode ser analisada a partir da Crítica daRazão Pura de Kant: a afirmação do sujeito constitutivo.

É a partir da crítica ao “dogmatismo cartesiano” 13 que Kant irá apresentar osujeito constitutivo. Não mais apenas a construção de um sujeito que contemplaseu objeto, mas um sujeito que o conforma, o constitui, dando-lhe o devidosignificado. No prefácio à segunda edição da Crítica da Razão Pura, Kant aduzclaramente o seu propósito de renovação na filosofia:

(...) Até agora se supôs que todo o nosso conhecimento deveria regular-se pelosobjetos; porém todas as tentativas de estabelecer algo a priori sobre ele através deconceitos, por meio dos quais o nosso conhecimento seria ampliado, fracassaramsob esta pressuposição. Por isso, tente-se ver uma vez se não progredimos melhornas tarefas da Metafísica admitindo que os objetos devam regular-se pelo nossoconhecimento, o que concorda melhor com a desejada possibilidade de um co-nhecimento a priori deles, o qual deve estabelecer algo sobre os objetos antes deeles nos serem dados.14

O sujeito, agora, não é um mero espectador da experiência concreta; elecontribui, efetivamente, para essa experiência. Segundo Milovic, “Kant procurademonstrar que é em nome dessa contribuição que o conhecimento, isto é, aexperiência torna-se verdadeiramente possível”.15 O homem passa a ser, portan-to, o “último móvel de sua tendência a transcender a experiência”.16 Por isso,sua filosofia chama-se transcendental. Afinal, como salienta o próprio Kant, arazão pura é aquela que “contém os princípios para conhecer algo absolutamen-

12 É importante destacar que o formalismo kelseniano não nega essa possibilidade de o sujeitoconstituir a norma. Na verdade, esse é um importante diferencial em sua teoria e que correspondeao seu grande avanço em relação a teorias jurídicas anteriores, como os desenvolvimentos daEscola da Exegese.13 MILOVIC, Miroslav. Comunidade da Diferença. op. cit., p. 12.14 KANT, Immanuel. Critica da Razão Pura. São Paulo: Abril Cultural, Col. Os Pensadores,Vol. XXV, 1ª ed., 1973, p. 12.15 MILOVIC, Miroslav. Filosofia da Comunicação. Para uma Crítica da Modernidade. op. cit.,p. 50.16 ABBAGNANO, Nicola. História de la Filosofia. Tomo II.op. cit., p. 383. Tradução livre.

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te a priori”.17 E transcendental, segundo este autor, é “todo conhecimento queem geral se ocupa não tanto com os objetos, mas com o nosso modo de conheci-mento de objetos, na medida em que ele deva ser possível a priori”.18

Em Kant, portanto, a relação com os objetos é outra, não estando eles mais“fora de nós”.19 Por isso, pode-se concluir que, também na Crítica da RazãoPura, Kant contrapõe-se a um jusnaturalismo metafísico que coloca fora do ho-mem os princípios que norteiam a sua relação com a experiência. Não é mais anatureza que dá a conformação dos objetos, mas, sim, a própria racionalidadehumana. Segundo Kant, “pode-se julgar antecipadamente pelo fato de o objetonão consistir aqui na natureza das coisas, que é inesgotável, mas no entendimen-to, que julga sobre a natureza das coisas, e isto também, por outro lado, somentecom vistas ao seu conhecimento a priori”.20

A subjetividade, segundo essa perspectiva, não existe apenas para possibili-tar o conhecimento do mundo, como uma referência inicial da experiência. Oprojeto kantiano é mais amplo: ele quer provar que é possível um saber autênticoe também transcender a experiência, mostrando que existem “juízos sintéticos apriori”, cujo predicado acrescenta algo ao sujeito e que adquire uma validadenecessária que a experiência é incapaz de, por si só, oferecer. É como umafundamentação última do saber humano autêntico. Busca-se, então, uma razãoindependente da experiência que possa fundamentar exatamente essa experiên-cia. Como destaca Abbagnano, Kant “realizou sua revolução copernicana”,21

pois “em vez de admitir que a experiência humana se modela sobre os objetos,em cujo caso seu valor seria impossível, supõe que os objetos mesmos, enquantofenômenos, se modelam sobre as condições transcendentais da experiência”.22

A subjetividade transcendental passa a ser o referencial da possibilidade dadeterminação dos objetos.23 Essa mudança de referencial – o sujeito constitutivoe, não mais, o objeto ou um mero sujeito contemplativo – permite mostrar apossibilidade de haver, nesses juízos sintéticos a priori, a generalidade (universa-lidade) e a necessidade.

Está nesse aspecto a razão de suas principais obras serem iniciadas com otítulo Crítica.24 Está exatamente nesse ponto também um dos aspectos centrais

17 KANT, Immanuel. Critica da Razão Pura. op. cit., p. 33.18 Ibidem, p. 3319 Ibidem, p. 33.20 Ibidem, p. 33.21 ABBAGNANO, Nicola. História de la Filosofia. Tomo II. op. cit., p. 385. Tradução livre.22 Ibidem, p. 385. Tradução livre.23 MILOVIC, Miroslav. Filosofia da Comunicação. Para uma Crítica da Modernidade. op. cit.,p. 55.24 Milovic, a partir da crítica de Hegel ao termo “Crítica” empregado nos títulos das obraskantianas, esclarece que “Hegel pensa novamente sobre tudo isso e de novo vai se perguntarsobre a autoconsciência, no sentido de que não podemos meramente aceitar os fatos. Como

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que iria Hegel25 atacar, exatamente porque Kant, apesar de ter afirmado o sujei-to constitutivo, não discutiu a própria subjetividade, tornando-a um argumentonão questionável. Milovic bem enfatiza que “nem Descartes nem Kant discutemos pressupostos da autoconsciência”.26 Por isso, segundo este mesmo autor,“para Kant, a autoconsciência é o fato da nossa estrutura mental, que não pode-mos problematizar mais”.27 E, por não ter refletido sobre ela, sua filosofia pare-ceu se encontrar em um círculo vicioso.28

Essa discussão é deveras rica, mas ultrapassa sobremaneira os propósitosdeste capítulo. O que importa recuperar de todo esse debate é que Kant, aoafirmar a subjetividade constitutiva, não debate a própria subjetividade, ficandounicamente na discussão referente às faculdades do conhecimento e às possibi-lidades de construção de uma razão pura desvencilhada da experiência concre-ta. Porém, como bem salientou Hegel, o passo fundamental de Kant foi “subme-ter a investigação ao conhecimento”.29 Embora “a modernidade [articule] aspróprias sombras porque não se pode falar sobre seus aspectos básicos”,30 e,por isso, não questione a própria auto-reflexão e a racionalidade, a filosofiakantiana abre espaço para uma subjetividade não mais contemplativa, masconformadora da experiência.

filósofos, temos de ser críticos e os filósofos críticos não aceitam os fatos. Para Hegel, Kant nãoé o exemplo do filósofo crítico mesmo tendo colocado a palavra “crítica” nos títulos de todas assuas principais obras” (MILOVIC, Miroslav. Comunidade da Diferença. op. cit., p. 13).25 Para tanto, vide HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. A Fenomenologia do Espírito. Petrópolis:Vozes, 4a. ed. 1999.26 MILOVIC, Miroslav. Comunidade da Diferença. op. cit., p. 13.27 Ibidem, p.13.28 A passagem seguinte de Hegel é elucidativa:“(...) A filosofia de Kant se chama também filosofia crítica, enquanto se propõe como fim, nosdiz seu autor, o ser uma critica da faculdade do conhecimento; antes do conhecimento, énecessário investigar, com efeito, a capacidade para conhecer (...). O conhecimento é apresen-tado, assim, como um instrumento, como uma maneira que temos de apoderarmo-nos da verda-de; portanto, antes de ir até a verdade mesma, deveremos conhecer, antes de tudo, a naturezae a função de seu instrumento. Deveremos ver se este é capaz de render o que dele se exige, queé captar o objeto; deveremos saber o que faz mudar no objeto, para que não confundamos estasmudanças com as determinações do mesmo objeto.“É algo assim como se se quisesse agarrar a verdade com pinças ou garras. O que se postula é,na realidade, isso: conhecer a faculdade cognitiva antes de conhecer. Com efeito, o investigar afaculdade de conhecer não é outra coisa que conhecê-la; seria difícil dizer como é possívelconhecer sem conhecer, intentar apoderar-se da verdade antes da verdade mesma (...). Porconseguinte, toda vez que a investigação da faculdade cognitiva é já um intento de conhecer,não é possível que Kant chegue ao resultado a que quer chegar, pois não se trata de chegar a si,já que já está em si (...). Não obstante, é um passo grande e importante o que dá Kant aosubmeter a investigação ao conhecimento” (HEGEL, G. W. F. Lecciones sobre la Historia de laFilosofia III. México: Fundo de Cultura Econômica, 1977, p. 421. Tradução livre).29 Ibidem, p. 421. Tradução livre.30 MILOVIC, Miroslav. Comunidade da Diferença. op. cit., p. 13.

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Essa investigação suscita diversas dúvidas, tais como: 1) o que, afinal, é essaexperiência, já que ela ultrapassa uma mera relação sujeito/objeto fundada emuma contemplação da realidade?; 2) Como é possível construir uma racionalidadepura que se desvencilhe e se torne independente da experiência sensível?; 3)Como a metafísica da subjetividade constitutiva kantiana pode ser superada apartir das falhas que sua filosofia não chegou a abordar?

O primeiro e o segundo questionamentos estão intimamente relacionados.Kant afirma que “todo pensamento deve, por meio de certos caracteres – sejadireta (directe) ou indiretamente (indirecte) –, relacionar-se, por fim, com intui-ções e, conseqüentemente, em nós, com a sensibilidade, porque de outro modonenhum objeto nos pode ser dado”.31 Essa afirmação deixa claro que o pensa-mento está relacionado com a experiência. Os conceitos decorrem exatamente dopensamento sobre os objetos concretos. O conhecimento, segundo Kant, nasceda síntese de dois elementos: a matéria, que advém desse contato empírico coma realidade, e as formas a priori, que é responsável por fazer com que “o múltiplodo fenômeno possa ser ordenado em certas relações”,32 isto é, por conformar,constituir esse objeto. Conhecer, dessa forma, decorre de uma relação direta deconformação dos objetos sensíveis, na condição de fenômenos, de múltiplos emalgo ordenado, unificado.33 Nas formas a priori, portanto, é que se encontra ocritério de validade do conhecimento por meio da síntese que se opera entre osujeito e o seu predicado. O sujeito, assim, é quem fundamenta essa unidade. Adedução transcendental representa precisamente esse processo em que, “unifi-cando as representações, o eu penso as enlaça em uma unidade originária, que éa estrutura objetiva da experiência”.34

Essa “unidade transcendental da consciência” é, pois, segundo Kant, o queestá presente nessas faculdades cognitivas do sujeito e “[pelas quais] todo omúltiplo dado em uma intuição é reunido em um conceito de objeto”.35 Essesconceitos nascem, portanto, de uma relação dessas faculdades a priori com arealidade: “a unidade da consciência é o único elemento que constitui a relaçãodas representações a um objeto, por conseguinte, a sua validez objetiva e, porisso, que elas se tornem conhecimentos, e sobre o que enfim repousa a própriapossibilidade do entendimento”.36 Nesses termos, de acordo com Heidegger, “oato que representa uma unidade, que unifica ao representar, caracteriza a essên-cia desse tipo de representação que Kant nomeia um conceito”.37 De fato, para

31 KANT, Immanuel. Critica da Razão Pura. op. cit., p. 39.32 Ibidem, p. 39.33 ABBAGNANO, Nicola. História de la Filosofia. Tomo II. op. cit., p. 388. Tradução livre.34 Ibidem, p. 388. Tradução livre.35 KANT, Immanuel. Critica da Razão Pura. op. cit., p. 85.36 Ibidem, p. 84.37 HEIDEGGER, Martin. Kant et le problème de la Métaphysique. Paris: Gallimard, 1953, p.132. Tradução livre.

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Kant,38 o “entendimento é, falando de modo geral, o poder de conhecimentos(...),39 que consistem na relação determinada de representações dadas a umobjeto”.40

Nasce desse processo unificador, por sua vez, a experiência. Ela “é constitu-ída precisamente pelas relações objetivas estabelecidas entre os fenômenos: suacondição é, pois, uma unidade que não tem nada que ver com percepção, por-que é válida objetivamente”.41 Isso significa, como salienta Milovic, que “a expe-riência exterior possui, igualmente, premissas transcendentais”.42 E, de fato, opropósito kantiano, tanto quando se volta para a teoria, como para a prática, éestabelecer um critério objetivo válido universalmente. A experiência revela,assim, a possibilidade, como condição de sua própria existência, dos juízos sin-téticos a priori. É por meio da sua afirmação, isto é, da conclusão da existênciadesses juízos, que se pode estabelecer uma validade objetiva do conhecimento.São dois os propósitos da filosofia kantiana: “primeiro, a tentativa de revelar a

38 A passagem seguinte elucida o que se estabelece na filosofia kantiana:“O princípio supremo da possibilidade de toda intuição, em relação com a sensibilidade, segun-do a estética transcendental, era: todo o múltiplo da intuição está submetido às condiçõesformais do espaço e do tempo. O princípio supremo da mesma, em relação com o entendimen-to, é: todo o múltiplo da intuição está submetido às condições da unidade sintética originária daapercepção. Todas as múltiplas representações da intuição, enquanto nos são dadas, estãosubmetidas ao primeiro princípio; todas essas mesmas representações, enquanto devem poderser conectadas em uma consciência, estão submetidas ao segundo princípio. Com efeito, semisso nada pode ser pensado ou conhecido, porque as representações dadas não possuem emcomum o ato “eu penso”, da apercepção, e desse modo seriam reunidas em uma autoconsciência”(KANT, Immanuel. Critica da Razão Pura. op. cit., p. 84).39 Kant realiza uma distinção entre pensar e conhecer, que é de grande importância para aexplanação ora em curso:“Pensar um objeto e conhecer um objeto não são, portanto, a mesma coisa. O conhecimentorequer dois elementos: em primeiro lugar, o conceito, pelo qual em geral um objeto é pensado (acategoria) e, em segundo, a intuição, pela qual ele é dado. Com efeito, se ao conceito não pudesseser dada uma intuição correspondente, seria ele, segundo a forma, um pensamento, mas semnenhum objeto, não sendo possível através dele absolutamente nenhum conhecimento de qual-quer coisa, porque, tanto quanto eu saberia, nada haveria, nem poderia haver, ao qual meupensamento pudesse ser aplicado. Ora, toda intuição possível a nós é sensível (Estética); por-quanto, o pensamento de um objeto em geral mediante um conceito puro do entendimento podetornar-se conhecimento em nós somente enquanto tal conceito for referido a objetos dos sentidos(...). Por isso, as categorias não nos oferecem também, mediante a intuição, nenhum conheci-mento das coisas, a não ser através da sua aplicação à intuição empírica, isto é, elas prestam-sesomente para possibilitar o conhecimento empírico. Este chama-se, porém, experiência. Porconseguinte, as categorias não possuem nenhum outro uso para o conhecimento das coisas,senão enquanto estas forem consideradas objetos de experiência possível” (Ibidem, p. 89).40 Ibidem, p. 84.41 ABBAGNANO, Nicola. História de la Filosofia. Tomo II. op. cit., p. 388. Tradução livre.Grifo não presente no original.42 MILOVIC, Miroslav. Filosofia da Comunicação. Para uma Crítica da Modernidade. op. cit.,p. 58.

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estrutura das faculdades espirituais e, segundo, provar sua validade objetiva – ade que o objeto é possível somente com base nessa estrutura.” 43

A experiência, portanto, representa o marco dessa objetivação obtida pormeio do processo unificador dos objetos realizado pelas faculdades cognitivas. Adedução transcendental configura essa busca pelas “condições da validade doconhecimento universal e necessário” 44 ou, em outras palavras, a explicitaçãode que “as condições subjetivas da consciência têm validade objetiva”,45 sem-pre, porém, com uma referência à experiência exterior.

O “princípio supremo de todo conhecimento humano”, a possibilidade última daexperiência humana, é uma possibilidade ao mesmo tempo subjetiva e objetiva: jáque é ao mesmo tempo a possibilidade do homem de se determinar comodeterminante ante um material determinável em geral, e a possibilidade destematerial de se determinar em conformidade com a capacidade determinante dohomem. O homem é inteligência (espontaneidade) em virtude da mesma possibi-lidade pela qual os fenômenos constituem uma totalidade organizada (experiên-cia). Com o reconhecimento dessa possibilidade, Kant fundava o valor do conhe-cimento humano, precisamente sobre a natureza finita do homem, isto é, sobre ocaráter não criador de sua atividade cognitiva. Com efeito, em virtude de suanatureza finita, o homem é subjetivamente uma pura possibilidade de unificação,que se converte em concreta e operante somente frente a um múltiplo sensívelque lhe seja dado: mas, por outra parte, este ser-lhe dado do múltiplo sensível nãoé mais que a possibilidade do mesmo para se organizar em unidade.46

Ao conceber o homem como uma “pura possibilidade de unificação” do mun-do sensível e, não, como um criador da experiência, fica nítido que o ato deconhecimento apresenta uma dependência com a sensibilidade, com a exterioridadefenomênica. Ao expor a finitude do homem, verifica-se que a pureza do ato deconhecer não torna o “eu penso” “uma autoconsciência criadora”,47 sempre,portanto, sendo necessário uma referência à experiência exterior. Como aduzAbbagnano, “se o eu penso fosse o ato de uma autoconsciência criadora, nãoteria nada fora de si e não existiriam coisas externas a ele”.48 A finitude é afirma-da por Kant e expõe que há sempre uma relação do ser pensante finito com oexterior. Não sem motivo conclui Heidegger que, para Kant, “nosso conhecimen-to não é criador na ordem ôntica”.49

Encontra-se, nesse aspecto, o marco da filosofia kantiana. A subjetividade,exatamente por ser o referencial para a experiência (totalidade organizada), é a

43 Ibidem, p. 51.44 Ibidem, p. 57.45 Ibidem, p. 58.46 ABBAGNANO, Nicola. História de la Filosofia. Tomo II. op. cit., p. 391. Tradução livre.47 Ibidem, p. 391. Tradução livre.48 Ibidem, p. 392. Tradução livre.49 HEIDEGGER, Martin. Kant et le problème de la Métaphysique. op. cit., p. 130. Tradução livre.

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que “se manifesta nas ciências, no método da construção geométrica ou no daenumeração aritmética, na observação e na medição empíricas ou na realizaçãode experimentos físicos”.50 Por isso, para Kant, como ele bem enfatizou nosProlegômenos, a “natureza é a existência das coisas enquanto determinadas porleis universais”.51 A natureza não é algo externo;52 a “ordem necessária dosfenômenos (natura formaliter espectata) [está] condicionada pelo eu penso epelas categorias e se modela sobre elas em vez de constituir seu modelo”.53

Por conseguinte, Kant trabalha a filosofia em prol da ciência, dando-lhe suadignidade na explicitação do como conhecer antes do conhecimento empírico. Éo que faz Milovic concluir que, “por um lado, a posição filosófica [kantiana] temque determinar as condições de validade do pensamento; por outro, Kant inves-tiga a validade do pensamento com base na experiência existente da ciêncianatural”.54 Ele quer demonstrar que é a partir de uma referência às condiçõessubjetivas da consciência que se poderá tornar válida a experiência exterior e éexatamente essa validade que transformará esse conhecimento em universal enecessário. É com base nessa preocupação distinta da clássica filosofia que Cassireraduz, sobre a filosofia kantiana, que “agora, em vez de perguntar sobre o quedescansa a sujeição necessária às leis das coisas como objetos da experiência,perguntamos como é possível conhecer em geral a conformação às leis da experi-ência mesma com respeito a seus objetos”.55 A metafísica está intimamente rela-cionada com o sujeito, como uma metafísica da ciência.56 É por intermédio dessametafísica da subjetividade constitutiva que se encontrarão os princípios de vali-dade da experiência exterior e, portanto, de sua certeza.

A certeza da experiência exterior obtida mediante esse relacionamento comesses princípios de validade, porém, não permite que se consiga alcançar a “coisaem si”. Nesse aspecto, encontra-se um dos elementos mais relevantes da Críticada Razão Pura, por meio do qual se estabelece a capacidade de se conhecerunicamente os “fenômenos” e, não, os nôumenos. Os fenômenos são o que apare-ce para o sujeito e que são passíveis de conhecimento. Por sua vez, os nôumenosrevelam-se como o não-fenomênico, aquilo que as faculdades a priori são incapa-zes de alcançar.

50 CASSIRER, Ernst. Kant: Vida y Doctrina. México: Fondo de Cultura Econômica. 1963, p.185. Tradução livre.51 KANT, Immanuel. Prolegômenos. São Paulo: Abril Cultural, Col. Os Pensadores, Vol. XXV,1ª ed., 1973, p. 129.52 Nesse aspecto, poder-se-ia pensar que Kant é um jusnaturalista, não sob a perspectiva daexterioriedade, mas, sim, da idéia universal que está na base de sua teoria “objetivadora”.53 ABBAGNANO, Nicola. História de la Filosofia. Tomo II. op. cit., p. 392. Tradução livre.54 MILOVIC, Miroslav. Filosofia da Comunicação. Para uma Crítica da Modernidade. op. cit.,p. 61.55 CASSIRER, Ernst. Kant: Vida y Doctrina. op. cit., p. 199. Tradução livre.56 Ibidem, p. 185. Tradução livre

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(...) Não se pode chamar tal objeto (object) nôumeno: pois esse termo designaprecisamente o conceito problemático de um objeto para uma intuição totalmentedistinta e para um entendimento totalmente diverso dos nossos, e isso é, porconseguinte, ele próprio um problema. O conceito de um nôumeno não é, portan-to, o conceito de um objeto (objects), mas o problema inevitavelmente ligado àlimitação de nossa sensibilidade e que está em saber se os objetos inteiramenteindependentes dessa intuição não podem ser dados (...). Esses objetos não po-dem, portanto, ser negados absolutamente, mas na falta de um conceito determi-nado (já que nenhuma categoria é boa para isso), eles não podem mais ser afirma-dos como objetos de nosso entendimento.57

Essa passagem explicita, de modo simples, o que representa o nôumeno paraKant: é o que a sensibilidade humana não é capaz de alcançar e, pois, é o não-fenomênico. Como esclarece Abbagnano, é “pura possibilidade negativa e limita-tiva”;58 é o “objeto de uma intuição não-sensível”;59 é o “conceito limite”.60 Aomesmo tempo, deve-se entender que o nôumeno não é o fundamento do fenôme-no, como uma substância que lhe dá a “razão de ser”, mas, simplesmente, algoinalcançável pela sensibilidade humana.

A partir da discussão referente à dedução transcendental e ao nôumeno, comotambém do estabelecimento dessa relação constitutiva do sujeito com o objeto ede uma constante relação entre ambos, verifica-se que, embora as faculdades apriori independam da experiência sensível, elas não podem se justificar e ter suaexistência demonstrada sem essa correlação com a experiência. O que se podeconcluir, de tudo o que foi sinteticamente abordado, é que a relação sujeito/objeto é uma necessidade inseparável da investigação filosófica de Kant.

O aprendizado que surge da dedução transcendental e da doutrina do nôumeno,na forma definitiva que estes fundamentos tomaram na segunda edição da Crítica,é que o ato originário constitutivo da subjetividade pensante do homem é, aomesmo tempo, o ato instaurador de uma relação bem fundada entre o homem e arealidade objetiva do mundo da experiência. A mais íntima e escondida essênciada subjetividade humana se revela na obra de Kant como uma relação com oobjeto: com um objeto que não é uma realidade desconhecida, senão amultiplicidade empírica do mundo em que o homem vive.61

Com base na discussão sobre a relação sujeito/objeto de Kant se pode come-çar a verificar a possibilidade da crítica a sua teoria. Outro aspecto relevanteencontra-se, como antes inferido a partir da reflexão hegeliana, na falta de dis-cussão sobre os próprios pressupostos de sua Crítica. A terceira indagação antes

57 KANT, Immanuel. Critique de La Raison Pure. Paris: Presses Universitaire de France, 9ª ed.,1980, p. 247. Tradução livre.58 ABBAGNANO, Nicola. História de la Filosofia. Tomo II. op. cit., p. 397. Tradução livre.59 Ibidem, p. 397. Tradução livre.60 Ibidem, p. 397. Tradução livre.61 ABBAGNANO, Nicola. História de la Filosofia. Tomo II. op. cit., p. 398. Tradução livre.

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apresentada, então, pode ter as suas primeiras respostas ora trabalhadas. Ela,de qualquer modo, permite que se fragmente em dois questionamentos diversos,mas correlacionados: 1) como superar essa relação sujeito/objeto que é umaconstante no pensamento kantiano?; 2) O que fazer se Kant não reflete sobre ospróprios pressupostos de sua filosofia transcendental?

As duas perguntas estão relacionadas, porque ambas se referem aos pressu-postos que a filosofia deve articular para alcançar um novo patamar de funda-mentação do saber. De fato, Kant “não se compromete com a tematização dafilosofia transcendental”62 e, portanto, o caminho da crítica a sua teoria precisarádesvendar alguma possibilidade que ultrapasse a relação sujeito/objeto. Ao sefazer isso, a fim de não se cair em uma nova metafísica, será necessário refletirrigorosamente sobre os pressupostos do agir filosófico. Para esse intuito, porém,seria preciso fazer todo um caminhar da discussão filosófica entre sujeito/objeto,que extrapolaria, em demasia, os propósitos deste livro.63 O que se quer discutir

62 MILOVIC, Miroslav. Filosofia da Comunicação. Para uma Crítica da Modernidade. op. cit.,p. 62.63 Vide, por exemplo, a filosofia hegeliana, em que, para superar essa discussão referente àfinitude do homem trabalhada por Kant, se volta para a afirmação de uma “síntese” entresujeito e objeto a partir da consolidação da idéia, do espírito. Com a realização do espírito,perde sentido a incapacidade da consciência alcançar a “coisa em si”, porque o verdadeirosurge da síntese desses opostos. A passagem a seguir, de Hegel, explicita esse movimentodialético:“Esse movimento dialético que a consciência realiza em si mesma, tanto no seu saber quanto noseu objeto, enquanto, a partir dele, o novo objeto verdadeiro surge para a consciência mesma échamado propriamente experiência. Nessa ordem de idéias deve-se ainda salientar, no processoque acaba de ser mencionado, um momento por meio do qual será lançada uma nova luz sobreo aspecto científico da exposição que vamos empreender. A consciência sabe alguma coisa, esteobjeto é a essência ou o “em-si”. Mas também para consciência ele é o “em-si”. Com isso entraem cena a ambigüidade desse verdadeiro. Vemos que a consciência tem agora dois objetos, umo primeiro “em-si”; o segundo o “ser-para-ela” desse “em-si”. À primeira vista este último pareceser somente a reflexão da consciência em si mesma, uma representação apenas do seu saber doprimeiro objeto e não de um objeto como tal. No entanto, tal como já foi antes mostrado, oprimeiro objeto muda para a consciência no curso do processo. Ele deixa de ser “em-si” e torna-se de tal sorte para a consciência que é o “em-si” somente “para ela”. Desse modo, entretanto, o“ser-para-ela” desse “em-si” é então o verdadeiro, ou seja, é a essência ou é o seu objeto. Essenovo objeto contém a nadidade (nichtigkeit) do primeiro e é a experiência que sobre ele foi feita”(HEGEL, G. W. F. A Fenomenologia do Espírito. São Paulo: Abril Cultural, Col. Os Pensadores,Vol. XXX, 1ª ed., 1974, p. 55).Essa unidade é alcançada pela realização do espírito, que faz superar a relação sujeito/objeto epermite alcançar a coisa em si. Segundo Milovic, “já está postulado por Hegel que o pensamen-to é objetivo apenas na medida em que compreende a coisa em si. Pela especulação, Hegelsupera a diferença entre sujeito e objeto e abre a perspectiva da mediação histórica. Somente aespeculação, e não a reflexão, como é o caso de Kant, pode adotar a relação novamente postu-lada do sujeito e objeto ou, em outras palavras, a história” (MILOVIC, Miroslav. Filosofia daComunicação. Para uma Crítica da Modernidade. op. cit., p. 66).

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é apenas se, a partir de Kant, é possível já prever algum caminhar que permitadar as bases de uma fundamentação “destranscendentalizada”64 à razão.

Primeiramente, ao se enfatizar o pensamento kantiano, percebeu-se a dis-cussão em relação à subjetividade constitutiva transcendental. Este filósofo, des-se modo, tem como foco específico de análise essa transcendência. As limitaçõesde sua teoria, porém, encontram-se precisamente na falta de discussão dos pres-supostos dessa transcendência, isto é, na ausência de debate sobre a auto-refle-xão, a autoconsciência. Apresentam-se as faculdades, as categorias a priori, maselas não são objeto de crítica; são, na verdade, apresentadas como argumentosnão questionáveis, como premissas para a validação da experiência exterior.

A superação dessa discussão, por conseqüência, refere-se a uma explicaçãoda existência dessas faculdades, categorias a priori, ou melhor, refere-se a novaperspectiva para a fundamentação da filosofia. Isso é conseguido – já antecipandoo que futuramente será mais detidamente trabalhado – a partir de uma concepçãocomunicativa.65 Por isso, explicitar essas limitações é o primeiro importante passopara a busca de um novo fundamento – que pode ser “destranscendentalizado”– a partir de um enfoque na comunicação social. Por outro lado, a exposiçãodessa necessidade de um novo patamar filosófico que trabalhe os fundamentosda consciência é também uma premissa para se compreender, no Direito, comodesenvolver uma racionalidade que não desemboque em uma a metafísica clássicaque lhe esteve normalmente associada.

O estudo da Crítica da Razão Pura, embora se queira trabalhar o “comoconhecer” antes do “conhecido” (isto é, o que a consciência fornece que conformaa experiência concreta), demonstra que não ocorre a “tematização” dos pressupostosda transcendência ou, como bem salienta Milovic, “a reflexão teórica não atinge aquestão de como ela é verdadeiramente possível como argumentação significativa”.66

Encontra-se nesse aspecto particularmente, segundo este autor, o principal motorpara a “questão sobre a crise da racionalidade da era moderna em geral”.67

64 “Destranscendentalizar” a razão, nos termos adotados por Habermas, é uma “idealizaçãoperformativa, efetuada na execução do agir comunicativo e da argumentação” (HABERMAS,Jürgen. Agir Comunicativo e Razão Destranscendentalizada. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,2002, p. 25). É lançar a razão, antes referenciada apenas no sujeito, ao jogo concreto depráticas mundanas. Essa “destranscendentalização” é a ponte empírica que Habermas adotaem seu discurso pragmático, estudado no quarto capítulo deste livro. De qualquer modo, adian-ta-se que se trata de uma “transformação da razão ‘pura’ em uma razão ‘situada’” (Ibidem, p.31). É uma razão que se contrapõe à abstração realizada pelo intuito purificador verificado nopensamento kantiano. É fazer com que “o sujeito final [deva] encontrar-se ‘no mundo’, semperder absolutamente sua espontaneidade ‘testemunhadora do mundo’” (Ibidem, p. 31).65 A questão da comunicação e sua projeção no âmbito jurídico serão analisadas no quartocapítulo. O que se deseja é apenas apresentar a problemática e perceber como isso pode seranalisado também a partir da obra Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen.66 MILOVIC, Miroslav. Filosofia da Comunicação. Para uma Crítica da Modernidade. op. cit.,p. 62.67 Ibidem, p. 63.

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A sensação que a filosofia kantiana transmite pode ser considerada umaagonia paradoxal: por um lado, tem-se o interesse em desvendar o “comoconhecer”, explicar como a relação sujeito/objeto pode ser alterada por umamudança de referencial ao consagrar a subjetividade constitutiva; por outro lado,todavia, esse novo patamar na compreensão filosófica parece ficar no meio docaminho, isto é, apesar da mudança do referencial constitutivo, não se trabalhamos próprios pressupostos da racionalidade, contentando-se com a mera existênciadas faculdades a priori. Em síntese, a racionalidade não é devidamente trabalhada.Não o é, primeiramente, por trazer como fundamentação final um fato afastadoda argumentação crítica; em segundo lugar, por não perceber a possibilidade dasuperação do fundamento transcendental a partir da ênfase no diálogo e naintersubjetividade. E, para conseguir estabelecer essa nova possibilidade defundamento transcendental, um importante passo é permitir que a relação sujeito/objeto assuma uma conformação distinta, isto é, “sujeito/co-sujeito”.

A intersubjetividade, desse modo, pode ser o primeiro tema a ser considera-do para um avanço referente à relação sujeito/objeto. Kant, não obstante tenhatrabalhado a intersubjetividade ao buscar a universalidade por meio datranscendência, não a entende como uma “comunidade de comunicação”. Naverdade, segundo Milovic, em Kant, “a intersubjetividade é abordada dentro daestrutura geral das faculdades cognitivas (...). Ele não fala da intersubjetividadeno sentido de uma comunidade”.68 Por isso, em última análise, Kant cai noparadoxo de afirmar uma intersubjetividade monológica.

O enfoque na comunicação, dessa forma, assume o papel de um novoparadigma filosófico. Estudar as premissas da racionalidade fundada na idéia daintersubjetividade e na comunidade de comunicação pode ser um importantecaminho para fazer ruir uma metafísica que contaminou a filosofia ao longo deseu desenvolvimento. A análise dessas premissas, como também a articulaçãodelas no plano jurídico, será feita em capítulo futuro. A importância, porém,desse debate – e que vale como aspecto primordial para a discussão jurídica – éque, ao articular a intersubjetividade em um plano da comunidade de comunica-ção, e, não mais, como fazia Kant, na esfera das faculdades cognitivas apenas, oplano filosófico torna-se efetivamente social, descentralizado e derivado de umprocesso de “destranscendentalização” da razão. A partir de então, consegue-seformular uma filosofia que consiga trabalhar as questões tanto da teoria, comoda prática, sempre com um pressuposto social expresso na comunidade de co-municação. É ela que dará significado e validade à experiência objetiva.69

68 Ibidem, p. 63.69 Essa mudança de postura abre o caminho para a dicotomia comunidade de comunicaçãoideal e comunidade de comunicação real adotada pelo pensamento habermasiano (analisado noquarto capítulo) e sinteticamente apresentada na passagem abaixo de Miroslav Milovic:“Ao invés da relação sujeito-objeto, tem-se agora a relação “sujeito/co-sujeito”. O que está clara-mente pressuposto em qualquer argumento que faça sentido é a idéia da comunidade de comu-

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A investigação de uma proposta pragmática e sua abordagem no plano daracionalidade jurídica pode ser um patamar que consiga superar o que tantocontaminou o Direito: uma metafísica fundada na natureza ou uma metafísicaformal-normativa. Nesse momento da discussão, quer-se apenas apresentar, comouma prévia de abordagem, o que será desenvolvido futuramente. O adiantamen-to sintético do que será trabalhado tem uma finalidade muito clara: explicitar queo problema da racionalidade pode ser analisado por uma nova compreensão doque significa essa racionalidade, que, possivelmente, não é a que se está habitu-ado a entender a partir da filosofia kantiana. A razão pode não estar relacionadacom uma mera subjetividade constitutiva, mas, sim, com uma intersubjetividadeconstitutiva. Por enquanto, fica apenas a instigação da futura investigação.

O aprendizado dessa discussão é que Kant necessitou da relação sujeito/obje-to como uma premissa argumentativa, até porque o seu objetivo final acabousendo explicitar uma justificativa para o conhecimento científico. Milovic esclare-ce que “a relação do sujeito para consigo mesmo (o tema da auto-reflexão) e paracom os outros (o tema da intersubjetividade) não é investigado ulteriormente”.70

Por isso, trabalhar a linguagem ou mesmo a questão de uma intersubjetividadeconstitutiva não aparece como uma questão relevante para a fundamentação filo-sófica kantiana. Ao invés dos fatos da consciência, das faculdades a priori, há dese entender, na esteira de Milovic, que “as comunidades de comunicação real eideal são as condições necessárias sob as quais se pode afirmar o que se pensa ereivindicar o que fora declarado, o que significa que o cogito não é o bastante paranos satisfazer como a instância filosófica final”.71 Ao contrário, portanto, de dizer“penso, logo existo”, como na filosofia cartesiana, ou uma transcendência quedeixa de ser universal exatamente por não trabalhar as “premissas comunicativasdessa subjetividade”,72 dizer “penso, alguém existe”.73 Há de se enquadrar, nosfundamentos da racionalidade, o outro. Ao invés do monólogo, estabelece-se odiálogo, a comunicação, o entendimento recíproco realizado no âmbito da comu-nidade de comunicação. Do mesmo modo, como sustenta Habermas, deve-sepromover o que ele denomina “destranscendentalização”, que “conduz, por um

nicação, ao passo que o que está indiretamente pressuposto é a idéia da comunidade de comuni-cação ideal. É ela que nos permite afirmar o que declaramos como verdadeiro relativamente aomundo objetivo, como correto em relação ao mundo social, como sincero em relação ao mundosubjetivo e como compreensível. Em outras palavras, relativamente ao significado, pressupõe-sea comunidade de comunicação real, enquanto que em relação à validade, pressupomos a ideal.Ademais, a comunidade de comunicação real mostra o presente, e a ideal aponta para o futuro.Percebe-se na pragmática da linguagem a idéia da presença de tempo” (Ibidem, p. 207).70 Ibidem, p. 66.71 Ibidem, p. 67.72 Ibidem, p. 67.73 Essa expressão, apresentada em aula por Miroslav Milovic, tem a qualidade do impacto: elaexpõe que o fundamento da reflexão deve partir de uma premissa intersubjetiva, ou melhor, apartir do relacionamento com o outro.

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lado, à inserção dos sujeitos socializados em contextos do mundo da vida; poroutro lado, à convergência da cognição com o falar e o agir”.74

São características que alteram, como sustenta Habermas, o “conceito domundo” 75 e, por conseguinte, a própria compreensão da relação sujeito/objeto,que, com base nesse novo patamar filosófico, parte de um pressuposto pragmá-tico.76 Por outro lado, sob essa dimensão, “a distinção entre aparência e “coisaem si” perde também seu sentido”.77 A pragmática na filosofia, por consequência,abre as portas para uma fundamentação filosófica que ultrapassa os fatos dasfaculdades a priori, do cogito, assumindo, em seu lugar, a linguagem, que édevidamente refletida.

Essa concepção filosófica fornece as bases para uma nova percepção doDireito. Afinal, segundo Habermas, “a linguagem passa a ser considerada comoum médium universal de incorporação da razão”78 e, conseqüentemente, aracionalidade jurídica deve ser trabalhada com um enfoque comunicativo. Des-se modo, a realidade deve ser compreendida por intermédio do pressuposto deuma “comunidade de interpretação, cujos membros se entendem entre si sobrealgo no mundo, no interior de um mundo da vida compartilhadointersubjetivamente”.79

Diante dessas saídas que se abrem para a filosofia, surgem as indagações:qual foi o alcance, no plano da racionalidade, da Teoria Pura do Direito de HansKelsen? Será que ele conseguiu desenvolver a racionalidade ao ponto de supe-rar a relação sujeito/objeto e estabelecer a comunicação no Direito? Será queKelsen, ao introduzir a problemática da linguagem, deu os passos de uma inicialpragmática jurídica? Em termos mais abrangentes, essas questões foram, emalgum momento, uma preocupação concreta para Kelsen?

Essas perguntas serão analisadas no tópico seguinte, tendo como base o quefoi trabalhado a respeito da filosofia kantiana. Como se perceberá, Kelsen é umteórico que fornece muito mais sugestões para a superação de sua própria teoriado que ele próprio poderia imaginar. Talvez, um dos passos para se verificaressa afirmação é, precisamente, compreender como é trabalhada a interpreta-ção em sua Teoria Pura do Direito, tema de grande relevância que o torna umformalista avançado e um cientista consciente de seu tempo e do contexto emque se inseria. E, para desde já levantar o interesse sobre a discussão, muito sepoderá descobrir a partir de uma análise da subjetividade constitutiva em Kelsen.

74 HABERMAS, Jürgen. Agir Comunicativo e Razão Descentralizada. op. cit., pp. 38-39.75 Ibidem, p. 39.76 Ibidem, p. 39.77 Ibidem, p. 39.78 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade. Vol. I. op. cit., p. 25.79 Ibidem, p. 31.

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2.3. A TEORIA PURA DO DIREITO DE HANS KELSEN E OS PRESSUPOSTOS KANTIANOS:A SUBJETIVIDADE CONSTITUTIVA E O ATO DE CONHECER NO DIREITO

2.3.1. INTRODUÇÃO

Estudar Hans Kelsen a partir da subjetividade constitutiva é um desafio quelevanta algumas curiosidades. Primeiramente, pode-se perguntar, após ter sidotrabalhada a questão da subjetividade constitutiva em Kant: como fazer esseparalelo com Kelsen? Em segundo lugar, pode surgir uma pergunta teleológica:qual a finalidade dessa investigação? Não estaria ela demasiadamente superadapela filosofia jurídica de autores contemporâneos?

Essas perguntas serão respondidas ao longo do desenvolvimento deste tópi-co. Para iniciar o debate, não se pode olvidar o papel que a Teoria Pura doDireito de Hans Kelsen assume no contexto do Direito. É a expressão, se não amais relevante, ao menos a de maior impacto na modernidade jurídica. Jamaishouve, anteriormente à Teoria Pura do Direito, um tratado de tamanha densida-de para especificar o objeto do Direito, centrado na norma. Tal como se verifi-cou na modernidade na busca de um método seguro de análise da realidadeconcreta, Kelsen desejou alcançar a plena objetividade no plano jurídico. Issosomente poderia ser conseguido a partir do momento em que se aceitasse, deforma inequívoca, que a norma fosse o foco a que deveria se ater o cientista dodireito e, ao mesmo tempo, desse o referencial do fenômeno jurídico-científico,observado a partir da Teoria Pura do Direito.

É importante, de qualquer modo, enfatizar que Kelsen, ao contrário do quese poderia pensar em uma primeira análise, não desejou reduzir a atividadejurídica dos profissionais a um estudo da norma. Aliás, ele reconheceu a grandeamplitude que assume o Direito nos diversos contextos em que se manifesta. Oseu objetivo, portanto, foi buscar consolidar uma Teoria Geral do Direito quepudesse ser investigada a partir de um enfoque formal e deontológico. Assim,haveria, no seu intuito purificador, uma Teoria Pura aplicada à formação de umaciência jurídica que não se limitaria a determinado contexto factual e cujo cernenão se confundiria com sociologias, filosofias ou outros saberes que, de diferen-tes maneiras, atingem o Direito em realidade. Kelsen, logo, não confunde aCiência do Direito com o Direito.

Essa discussão já é mais do que conhecida nos estudos contemporâneos defilosofia jurídica. O que, talvez, não tem sido propriamente trabalhado (e, infeliz-mente, muitas vezes confundido ou desenvolvido de maneira equivocada) é comoa objetividade da Teoria Pura do Direito é alcançada. Não basta afirmar queKelsen estuda a norma e que seu enfoque seja essencialmente teórico. É neces-sário investigar a discussão sobre a metafísica da forma que passa a rondar oplano jurídico-científico. Isso, por decorrência, gera a dúvida se a racionalidadebuscada por Kelsen é aquela em que a Ciência do Direito deveria se fundar.

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Possivelmente, essa objetividade fundada em uma metafísica da forma expressauma razão que dificulta as possibilidades de legitimação normativa e decontextualização social do fenômeno jurídico, mesmo que tais preocupações nãotenham sido o foco de sua teoria científica. São indagações que, com base noestudo de sua Teoria Pura do Direito, começam a surgir. Percebe-se, portanto,que, ao se estudar Kelsen, se estão abrindo as portas do questionamento queadiante será trabalhado de forma mais pormenorizada: a racionalidade jurídica.

A centralização do Direito na norma jurídica acaba por transformá-la emverdadeiro fetiche. Como sustenta o jusfilósofo marxista Michel Miaille, “ofetichismo da norma e da pessoa, unidos doravante sob o vocábulo único deDireito, faz esquecer que a circulação, a troca e as relações entre as pessoas são,na realidade, entre coisas, entre objetos, que são exatamente os mesmos daprodução e da circulação capitalistas”.80 A norma, desse modo, passa a ser umreferencial abstrato distante da contextualização social, adquirindo qualidadesintrínsecas exclusivamente suas. E esse referencial – a norma – é o que confor-ma a possibilidade de uma racionalidade jurídica, tal como se evidencia emKelsen. O cientista do Direito, então, deve se voltar única e exclusivamente paraa norma – esse é o seu objeto. Ao assim proceder, estará realizando a verdadei-ra consagração da aplicação, ao Direito, da racionalidade nos moldes do pensa-mento moderno, sem, contudo, refletir rigorosamente a seu respeito.

Aduz Miaille que “tudo parece ser objeto de decisão, de vontade, numapalavra, de Razão. Jamais aparece a densidade das relações que não são queri-das, de coisas às quais os homens estariam ligados, de estruturas constrangedo-ras mais invisíveis”.81 É essa racionalidade, que tão bem Kelsen evidencia emsua Teoria Pura do Direito, que necessita ser discutida e investigada. A perguntaque tem de se fazer é a seguinte: é possível outra racionalidade que não neces-site se voltar para uma objetividade fundada na metafísica decorrente dasupervalorização da norma jurídica? Por outro lado, é possível superar essametafísica da forma sem ter de reafirmar uma metafísica natural, como o fez ojusnaturalismo? Será que a racionalidade jurídica deve se manter em uma rela-ção sujeito/objeto, tal como se evidencia em Kelsen? Que outra racionalidade épossível?

Essas indagações percorrerão todo o caminhar desta investigação. Por ora,quer-se apenas abrir o debate a partir da análise da Teoria Pura do Direito. Isso,porém, exige que, na pesquisa, como tem sido enfatizado, se discuta a existênciada subjetividade constitutiva na Teoria Pura do Direito de Kelsen. Não é simplesdesenhar em que aspecto se pode encontrar sua existência no pensamentokelseniano. Em uma primeira análise, poder-se-ia descobrir essa subjetividade

80 MIAILLE, Michel. Introdução Crítica ao Direito. Lisboa: Editorial Estampa, 2ª ed. 1994, p.94.81 Ibidem, p. 94.

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constitutiva no âmbito da aplicação das normas pelos juízes. Afinal, o juiz, aoaplicá-las ao caso concreto, “cria uma nova norma” e estabelece um significadoadequado à espécie. Contudo, essa atividade desborda os limites da Teoria Purado Direito, mesmo que analisada em seu oitavo capítulo. Segundo Kelsen, aatividade do juiz é, sobretudo, um “ato de vontade”: “na aplicação do Direitopor um órgão jurídico, a interpretação cognoscitiva (obtida por uma operação deconhecimento) do Direito a aplicar combina-se com um ato de vontade (...)”.82

Assim, a interpretação realizada pelos órgãos jurídicos difere da interpretaçãoefetuada pela ciência jurídica, que é o verdadeiro objeto de sua Teoria Pura, namedida em que, ao ato de conhecimento, é adicionado um ato de vontade.

De qualquer modo, mesmo ao realizar essa distinção, não será possível asubjetividade constitutiva também no plano da ciência jurídica, mais especifica-mente no ato de conhecer a norma? O sentido da norma, afinal, pode ser confor-mado pela razão que o percebe. Pode ser que, com enfoque nessa pergunta, sepossam abrir os horizontes para se debater o caminho para a consagração deuma nova racionalidade aplicada ao pensamento jurídico.

Os passos dessa investigação terão de ser realizados paulatinamente. Emprimeiro lugar, é necessário compreender, de maneira bastante sintetizada, oprojeto que Kelsen visa a realizar. Essa premissa dará os fundamentos para asconclusões que poderão ser inferidas a partir do paralelo entre Kelsen e a filoso-fia transcendental kantiana, como anteriormente estudada. Assim, por intermé-dio da explanação antes realizada do projeto kantiano, é possível partir para umdebate direto sobre como sua teoria pode ser um referencial inicial para umanova abordagem da racionalidade jurídica. O que se deseja é encontrar, naTeoria Pura do Direito, elementos que possibilitem verificar os primeiros passosde uma possível reviravolta jusfilosófica no tema da racionalidade jurídica. As-sim, por meio do confronto com a maior teoria da modernidade jurídica, novosares poderão ser revelados no Direito e isso pode ser feito mediante a análise darelação sujeito/objeto em Kelsen e seu paralelo com a subjetividade constitutivatrabalhada por Kant. Para o início da discussão, será apresentado, portanto, oprojeto kelseniano.

2.3.2. O PROJETO KELSENIANO E AS BASES DA CONSAGRAÇÃO DA MODERNIDADEFILOSÓFICA NO DIREITO

Bastante sinteticamente, pode-se dizer que, partindo da distinção entre juízosde ser e juízos de dever-ser, que é uma característica trabalhada por Kant naafirmação da “finitude do conhecimento”,83 Kelsen cria um plano teórico hábilpara a formulação de uma metodologia científica em que o efetivamente jurídico

82 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 6ª ed., 1998, p. 394.83 Essa distinção entre os planos do ser e do dever-ser é uma característica central do projeto

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– e, portanto, interessante para a ciência jurídica – é o que está prescrito juridi-camente. Logo, tem a Ciência do Direito não o estudo de fatos, mas, sim, ocomplexo de normas, o ordenamento jurídico.84 Seu objeto é analisar a estru-

kelseniano. Evidencia-se, nesse aspecto, já uma presença marcante do pensamento kantiano,muitas vezes considerada como a sua principal contribuição na teoria de Kelsen. Essa separa-ção, todavia, que é a expressão da finitude do conhecimento defendida por Kant, é rejeitada porHegel. Para este autor, o plano do ser e do dever-ser são coincidentes a partir da realização doespírito. A passagem seguinte, de Nicola Abbagnano, elucida esse aspecto:“Daqui nasce a tenaz oposição de Hegel a Kant. Kant havia querido, como se viu, construir umafilosofia do finito, e a antítese entre o dever-ser e o ser forma parte integrante de sua filosofia.Para Kant, as idéias da razão são meros ideais, regras necessárias que impulsionam a investiga-ção científica ao infinito, até uma plenitude e uma sistematização que nunca alcança. Além domais, no domínio moral, a vontade coincide com a razão, e não alcançar nunca a santidade, queé o término de um progresso ao infinito, senão que, em sua atualidade, é própria unicamente deDeus. Em uma palavra, o ser não coincide com o dever-ser, nem a realidade com a racionalidade.Segundo Hegel, ao contrário, esta coincidência é em todo caso necessária. Separar a realidadedo racional significa, segundo Hegel, ver nas idéias e nos ideais nada mais do que pura quime-ras, e na filosofia um sistema de fantasmas cerebrais; ou bem significa que as idéias e os ideaissão algo demasiado excelente para ter realidade ou algo demasiado importante para ser procu-rado. ‘A separação da realidade da idéia, diz Hegel (Enc. § 6) é especialmente grata ao enten-dimento que tem os sonhos de suas abstrações por algo veraz e está muito satisfeito com seudever-ser, que ainda no campo político vai predicando muito a seu gosto; como se o mundotivesse esperado aqueles ditames para entender como deve ser e não ser.’ Posto que, se fossecomo deve ser, onde iria parar a presunção daquele dever-ser? A filosofia não deve, pois, seocupar mais que do ser: ‘Não sabe nada do que somente deve ser e que, por conseguinte, nãoé’ (Enc. § 38). A razão não é tão impotente que não seja capaz de se realizar completamentecomo tal. A realidade é sempre a que deve ser: racionalidade total e perfeita. (ABBAGNANO,Nicola. História de la Filosofia. Tomo II. op. cit., pp. 495/496. Tradução livre).84 Nesse aspecto, em especial, verifica-se um caminhar em direção a uma metafísica da normasob premissas formais, tornando-a um fetiche jurídico. Essa característica tem alguma lembran-ça com a afirmação da existência de determinados conhecimentos que, muito embora partamda experiência, dela se tornam independentes, que são os juízos sintéticos a priori. A passagemabaixo, extraída da Crítica da Razão Pura, é elucidativa:“Não há dúvida de que todo o nosso conhecimento começa com a experiência; do contrário, pormeio do que deveria o poder de conhecimento ser despertado para o exercício senão através deobjetos que impressionam os nossos sentidos e em parte produzem por si próprios representa-ções, em parte põem em movimento a atividade de nosso entendimento a fim de compará-las,conectá-las ou separá-las, e deste modo trabalhar a matéria bruta das impressões sensíveis comvistas a um conhecimento dos objetos que se chama experiência? Segundo o tempo, portanto,nenhum conhecimento precede em nós a experiência, e todo o conhecimento começa com ela.“Mas, embora todo o nosso conhecimento comece com a experiência, nem por isso se originatodo ele justamente da experiência. Pois bem poderia acontecer que mesmo o nosso conheci-mento de experiência seja um composto do que recebemos por meio de impressões e do que onosso próprio poder de conhecimento (apenas provocado por impressões sensíveis), fornece desi mesmo – cujo aditamento não distinguimos daquela matéria-prima -, até que um longo exer-cício nos tenha chamado a atenção para ele e nos tenha tornado capazes de abstraí-lo. (...)“Mais significativo do que todo o precedente é o fato de que certos conhecimentos abandonammesmo o campo de todas as experiências possíveis e parecem estender o âmbito dos nossos

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tura normativa e seu funcionamento, apartando, imediatamente, do objetoda Ciência do Direito tudo aquilo atinente aos fins práticos da aplicação eelaboração normativa, como também tudo aquilo que não possa ser conside-rado objetivamente integrante do complexo normativo. A “Ciência pura doDireito”, por conseguinte, é aquela que não se volta para o conteúdo dasproposições jurídicas – o que fazia a tradicional dogmática ao analisar odireito positivo em matéria a fim de tornar mais simples sua aplicação –,mas, sim, para a estrutura lógica das normas do Direito.

A Teoria Pura do Direito apreende, pois, o conteúdo jurídico do sentido de umcerto evento – que, como tal, é um “fragmento da natureza”, determinado por leiscausais –, ao subsumi-la a uma norma jurídica que retira a sua validade de tersido “produzida” de acordo com outra norma situada acima daquela. Em com-pensação, a Teoria Pura do Direito abandona o aspecto fáctico desse acontecer –por exemplo, os intuitos e os motivos do legislador, bem como a eficácia da regu-lamentação que estabelece – a outra ciência, que é a sociologia do Direito como“ciência de fatos.85

Nesse propósito, a ciência jurídica interessa-se apenas por aquilo que, porabstração, já está prescrito normativamente, buscando estabelecer “a especificidadelógica e a autonomia metódica da Ciência do Direito”.86 Isso não significa queKelsen tenha negado a relevância de aspectos sociológicos e psicológicos nodesenvolvimento jurídico, mas tais aspectos, em hipótese alguma, devem serparâmetros para a formulação de uma “construção conceitual normativa”.87

juízos acima de todos os limites da experiência por meio de conceitos dos quais não pode serdado nenhum objeto correspondente na experiência.“E justamente sobre estes últimos conhecimentos – que se elevam sobre o mundo sensível,onde a experiência não pode fornecer nem guia nem correção – repousam as investigações danossa razão, que pela sua importância consideramos muito mais eminentes e pelo seu objetivoúltimo muito mais sublimes do que tudo o que o entendimento pode aprender no campo dosfenômenos (...)” (KANT, Immanuel. Critica da Razão Pura. op. cit., pp. 23-25).85 LARENZ, Karl. A Metodologia da Ciência do Direito. op. cit., p. 85.86 Ibidem, p. 85.87 Ibidem, p. 85. Esse intuito de criar uma teoria pura, uma metodologia apartada de qualquerelemento não referente ao estrito complexo de normas é apresentado logo de início, no primeirocapítulo da Teoria Pura do Direito, intitulado “Direito e Natureza”, cujo primeiro tópico denomi-na-se “A Pureza”:“A Teoria Pura do Direito é uma teoria do Direito positivo – do Direito positivo em geral, não deuma ordem jurídica especial. É teoria geral do Direito, não interpretação de particulares normasjurídicas, nacionais ou internacionais. Contudo, fornece uma teoria da interpretação.“Como teoria, quer única e exclusivamente conhecer o seu próprio objeto. Procura responder aesta questão: o que é e como é o Direito? Mas já não lhe importa a questão de saber como deveser o Direito, ou como deve ele ser feito. É ciência jurídica e não política do Direito.“Quando a si própria se designa como “pura” teoria do Direito, isto significa que ela se propõegarantir um conhecimento apenas dirigido ao Direito e excluir deste conhecimento tudo quantonão pertença ao seu objeto, tudo quanto não se possa, rigorosamente, determinar como Direito.

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Segundo Kelsen, a Teoria Pura do Direito objetiva conhecer o direito positivo,sem que, em sua análise, se façam juízos de valor sobre tal Direito. Importante,apenas, é analisá-lo consoante sua estrutura e funcionamento dentro do sistema.O interesse encontra-se unicamente em estudar a estrutura formal-normativa: “oconteúdo das normas jurídicas não está, para ela, por qualquer modo pré-deter-minado pela razão, pela lei moral ou por qualquer teleologia imanente, maspode ser todo o conteúdo que se queira”.88 Logo, independentemente de queconteúdo se esteja tratando, é possível que ele seja Direito: “Não existe compor-tamento humano que, em si mesmo, graças àquilo em que consiste, possa serexcluído como conteúdo de uma norma jurídica”.89 A preocupação do cientistajurídico refere-se exclusivamente à norma enquanto objeto formal, independen-temente da matéria por ela proposta.

Essa preocupação exclusivista com a norma evidencia a presença da influên-cia kantiana a respeito da finitude do conhecimento. A norma passa a ser oreferencial que possibilita o estabelecimento de um conhecimento racional noDireito, como é o fenômeno para Kant. O que não é a norma, afinal, afasta-se daciência jurídica, como um verdadeiro limite da razão. Ocorre, então, tal como seevidencia na teoria do nôumeno kantiano antes analisada, uma separação entreo que é passível de cognição e o que o homem, com o uso da razão, não podedesvendar. A desvalorização da razão prática,90 que é uma das característicasdo cientificismo jurídico kelseniano, decorre diretamente desse vínculo comos propósitos kantianos de limitação da capacidade cognitiva a “certos con-ceitos, além dos quais nada poderia ser conhecido”.91 Com maior precisão,Kassius Pontes elucida esse paralelo:

Quer isto dizer que ela pretende libertar a ciência jurídica de todos os elementos que lhe sãoestranhos. Esse é o seu princípio metodológico fundamental” (KELSEN, Hans. Teoria Pura doDireito. op. cit., p. 1).88 LARENZ, Karl. A Metodologia da Ciência do Direito. op. cit., p. 86.89 Ibidem, p. 86.90 Muito embora, reflexamente, a teoria kantiana tenha auxiliado, pelas razões expostas, nadesvalorização da razão prática na ciência jurídica, deve-se, por outro lado, reconhecer que opróprio Kant buscava dar valor à razão prática, na medida em que ela estabelece um princípioobjetivo, como bem salienta Chaïm Perelman na passagem seguinte:“(...)O primeiro capítulo da analítica da razão pura prática começa com definições referentesaos princípios práticos e sua objetividade: “Princípios práticos são proposições que encerramuma determinação geral da vontade de que dependem várias regras práticas. Eles são subjeti-vos, ou seja, “máximas”, quando a condição é considerada pelo sujeito como válida somentepara a sua vontade; mas são objetivos ou leis práticas quando essa condição é reconhecida comoobjetiva, ou seja, válida para a vontade de todo ser razoável”. A racionalidade de uma lei práticajá não concerne, desta vez, a uma relação de necessidade ou de verdade, mas o fato de elaestabelecer um princípio objetivo, ou seja, válido para a vontade de todo ser razoável”(PERELMAN, Chaïm. Ética e Direito. São Paulo: Martins Fontes. 1a. ed. 2000. P. 458).91 PONTES, Kassius Diniz da Silva. “Lógica e Hermenêutica do Direito à Luz do ModeloTópico-Retórico: História e Implicações”. In: PONTES, Kassius Diniz da Silva et al. O Raciocí-

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Estamos diante, aqui, da principal corrente de pensamento que lida com o Direitosob bases epistemológicas. O positivismo jurídico, em suas diferentes versões, temcomo preocupação essencial conferir ao Direito o estatuto de Ciência. Essa ânsiade cientificidade teve algumas conseqüências evidentes, a primeira delas consis-tente na cisão entre sujeito e objeto. A obra de Kelsen é de matriz neokantiana,resgatando, assim, a preocupação com o que pode e o que não pode ser conhecido.Importa examinar o sujeito de conhecimento e seus limites, os quais, na esteira dopensamento kantiano, restringem-se ao mundo sensível, não atingindo a realidade“em si” (nôumeno). Do mesmo modo, o sujeito de conhecimento, no Direito, há deestar adstrito ao que suas faculdades cognitivas podem efetivamente explicar – nocaso, o ordenamento jurídico estatal. Proposições que ultrapassem esse objeto deconhecimento resvalariam para o campo especulativo ou “metafísico”.92

O curioso e paradoxal dessa abordagem kelseniana é que, embora seu intuitotenha sido estabelecer um objeto que pudesse dar a necessária racionalidadejurídica pautada pela objetividade e universalidade, como será analisado adiante,Kelsen caiu em uma nova metafísica. Assim, não obstante tenha querido seapartar de uma metafísica que advinha de algumas correntes de pensamentoque buscavam inserir, na discussão jurídica, o conteúdo da norma (como seevidencia, por exemplo, no jusnaturalismo), Kelsen simplesmente a substituiupela metafísica da forma. Como antes enfatizado, está-se diante do maiorpensamento jurídico que traduz um movimento de fetichização normativa, dando-lhe qualidades intrínsecas desvencilhadas do contexto social em que se insere.

Além do mais, na esteira do pensamento moderno, em Kelsen fica nítida,como bem ressaltado por Kassius Pontes, a “cisão entre o sujeito e o objeto”.Essa cisão é necessária para a configuração de sua metodologia, conquanto, exa-tamente por estar presente a subjetividade constitutiva em Kelsen, a relação entresujeito e objeto ultrapasse uma mera situação contemplativa da realidade. Logo,essa necessidade da relação sujeito/objeto evidencia uma característica tipica-mente moderna no pensamento kelseniano, mas, por outro lado, pode tambémrepresentar já um avanço em relação a uma estática do sujeito com o mundo.

A cisão entre sujeito e objeto é, desse modo, o primeiro passo para se inves-tigar a possibilidade da existência da subjetividade constitutiva em Kelsen. Apergunta que nasce é: como perceber algum paralelo entre aquela subjetividadeconstitutiva que Kant trabalhou em sua Crítica da Razão Pura e a subjetividadeapresentada por Kelsen em sua Teoria Pura do Direito? A abordagem, nesseaspecto, pode assumir dois rumos distintos, mas complementares. O primeiroencontra-se no estudo realizado sobre a interpretação jurídica, em que Kelsenapresenta o ato de vontade do juiz conjugado com seu ato de conhecimento. Osegundo, que apresenta um espectro mais abrangente, atingindo toda a configu-

nio Jurídico na Filosofia Contemporânea. Tópica e Retórica no Pensamento de Theodor VIEHWEGe Chaïm PERELMAN. São Paulo: Carthago Editorial, 1ª ed., 2002, p. 2592 Ibidem, p. 25.

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ração de sua Teoria Pura, está na própria concepção do objeto jurídico, isto é, nadimensão da norma. Assim, são verificáveis dois relevantes motivos em que sepode afirmar a subjetividade constitutiva kelseniana: um, na possibilidade dosujeito (intérprete) conformar seu objeto (norma); outro, na própria concepçãode norma, que em Kelsen está intimamente relacionada com a idéia da experi-ência kantiana, porém, adaptada ao contexto jurídico.

No início do oitavo capítulo da Teoria Pura do Direito, Kelsen enfatiza que háuma “relativa indeterminação do ato de aplicação do direito” 93 e, logo, por maisrígido que seja o ordenamento jurídico, ele “tem de deixar àquele que [o] cum-pre ou executa uma pluralidade de determinações a fazer”.94 Ademais, essapluralidade de determinações pode resultar não apenas da inexistência de umapossível e exclusiva interpretação da norma; ela pode também ser o resultado deuma “intenção do órgão que estabeleceu a norma a aplicar”.95 Portanto, oaplicador tem o poder de definir que interpretação adotar a respeito da norma.

A “interpretação”, por sua vez – e aqui começa a relevância do paralelo coma Crítica da Razão Pura kantiana –, é um “ato de conhecimento”. Esse ato deconhecimento, todavia, na aplicação do Direito, deve ser complementado comum “ato de vontade”. Afirma Kelsen que “na aplicação do Direito por um órgãojurídico, a interpretação cognoscitiva (obtida por uma operação de conhecimen-to) do Direito a aplicar combina-se com um ato de vontade em que o órgãoaplicador do Direito efetua uma escolha entre as possibilidades reveladas atra-vés daquela mesma interpretação cognoscitiva”.96 Ao efetuar a escolha e estabe-lecer como a norma deve ser interpretada, na verdade, está-se criando uma novanorma “autêntica”. Assim, “a interpretação feita pelo órgão aplicador do Direitoé sempre autêntica”97 e, por isso, é “criadora do Direito”.98

O ato de interpretar e, em seguida, de aplicar a norma, para a Teoria Pura doDireito, ultrapassa o plano do simples conhecimento. Isso já representa umaruptura com uma mera “contemplação normativa” do aplicador do Direito. Dequalquer modo, afirma Kelsen que a interpretação cognoscitiva, que se limita aomero conhecimento das significações normativas, “não é criação jurídica”.99

Essa interpretação, ao contrário, somente é capaz de “estabelecer as possíveissignificações de uma norma jurídica”,100 não conseguindo, assim, tomar “qual-quer decisão entre as possibilidades por si mesma reveladas”.101 Essa interpre-

93 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. op. cit., p. 388.94 Ibidem, p. 388.95 Ibidem, p. 389.96 Ibidem, p. 394.97 Ibidem, p. 394.98 Ibidem, p. 394.99 Ibidem, p. 395.100 Ibidem, p. 395.101 Ibidem, p. 396.

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tação cognoscitiva é aquela a que o cientista jurídico deve se ater e, por isso, elaé chamada de “interpretação jurídico-científica”.

Nesse aspecto, surge uma primeira compreensão importante para o que sebuscará analisar a seguir: no campo da Ciência do Direito, interpretar não podeultrapassar os limites da determinação do significado normativo, das distintassignificações lingüísticas da norma. Por outro lado, a aplicação, a produção, acriação da norma não fazem parte da “ciência jurídica”, mas da “política jurídi-ca”. No âmbito da política jurídica, porém, a interpretação alcança um patamarde criação da norma por intermédio da definição de uma significação específicadiante da pluralidade semântica existente.

Em ambos os casos, de qualquer forma, tanto no plano jurídico-científico(interpretação cognoscitiva), quanto no plano da política jurídica (interpretaçãocomo criação normativa) está evidenciado o sujeito constitutivo. A diferençaentre os dois planos encontra-se na possibilidade de criação do objeto. No se-gundo caso, o sujeito não apenas constitui a experiência concreta, não apenasconforma o objeto ao conhecimento; o sujeito cria o próprio objeto a partir de umato de vontade.

Ao defender que o aplicador da norma cria o Direito, na verdade, Kelsennovamente reafirma o seu estreito liame com o pensamento kantiano. Há de selembrar que a aplicação do Direito, em si, é um fenômeno não ligado à Ciência doDireito, isto é, faz parte da “política jurídica” e decorre de um ato de vontade e,não apenas, de conhecimento. Portanto, o processo material de criação normativanão pertence à ciência jurídica, exatamente por extrapolar a capacidade cognoscitivadesse âmbito específico do conhecimento. É fácil perceber uma reafirmação donôumeno kantiano adaptado ao contexto jurídico-científico. De fato, o aplicadordo Direito cria a norma, mas como é realizada essa criação não importa à Ciênciado Direito; está além de seu objeto. Importa à Ciência do Direito apenas a normajá criada. Assim, tal como Kant limitou o conhecimento aos fenômenos, Kelsenlimitou o objeto de sua Teoria Pura à norma. Por outro lado, do mesmo modo queKant sustentou a impossibilidade de se descobrir – na seara do ato de conhecer– a coisa em si na afirmação de uma razão teórica pura, Kelsen, na tentativa deconsolidar uma ciência jurídica pura, retirou o conteúdo da norma do campo deinvestigação apto a ser alcançado pela racionalidade humana.

De qualquer forma, mesmo no caso da não criação normativa e, logo, dentroda esfera jurídico-científica, está-se também afirmando o sujeito constitutivo. Apossibilidade de o sujeito estabelecer diferentes significações para a norma é,efetivamente, a demonstração da possibilidade do sujeito não apenas contemplaro objeto normativo, mas, sim, conformá-lo a um determinado significado objetivo.

Existe uma relativa indeterminação semântica da norma que o jurista ou oaplicador deve resolver. O primeiro o faz descrevendo as distintas possibilidadesde significação da norma; o segundo, por sua vez, diante da pluralidade semân-tica, define aquela que, para uma determinada situação, alcança o critério con-

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siderado mais adequado para o fenômeno extra-científico, segundo o entendi-mento kelseniano. A norma, por assim dizer, não é pura. Puro é, na verdade, oato de conhecimento. É esse ato que deve se desvencilhar da realidade concretae se voltar única e exclusivamente para aquilo que é passível de um conhecimen-to racional na ciência jurídica, que é a norma. Esse ato puro de conhecimento,promovido pelo sujeito constitutivo, é que tem de ser necessário, objetivo euniversal. Não haveria melhor coincidência com o pensamento kantiano.

A pureza do ato de conhecimento no Direito é a demonstração de que a obraTeoria Pura do Direito é, antes de uma simples abordagem sobre o objeto normativo,um verdadeiro estudo sobre o conhecimento jurídico. Talvez, nesse aspecto, seencontre o motivo para se poder concluir que ela representa a maior obra moder-na sobre como conhecer no Direito. Antes de uma mera afirmação do objetonormativo, Kelsen quer estabelecer um novo parâmetro para se conhecer noDireito, apresentando, para tanto, como essa purificação pode ser alcançada.

A indagação que surge, nesse contexto, está em saber como essa purificação épossível. Nesse aspecto, pode-se verificar que Kelsen insere, na ênfase subjetiva,a unificação da experiência do mundo jurídico. E, por meio desse processounificador, consegue-se não apenas alcançar um conhecimento puro, mas, também,um conhecimento universal e necessário. A obra de Kelsen é de nítido interesseuniversalista: por meio do alcance da pureza cognoscitiva, afirma-se a possibilidadede uma forma de conhecer que é a única coerente para a obtenção de umaracionalidade jurídica voltada para uma objetivação da própria realidade. O processode objetivação configura-se na projeção do fenômeno jurídico exclusivamente sobrea norma. É, por meio da norma, que se concebe a possibilidade da experiência.

Com essas afirmações, alcança-se o segundo e principal motivo para se podercompreender a subjetividade constitutiva em Kelsen. Como antes debatido, elaestá presente tanto no processo de interpretação da norma, indicando suapluralidade semântica, como também no próprio processo de criação normativa(neste caso, como ato de vontade conjugado com o conhecimento, o que extrapolaa perspectiva kantiana). Contudo, para se compreender melhor essa subjetivida-de, não basta apenas dizer que o sujeito tem, no projeto kelseniano, a possibilida-de de conformar o objeto por meio do estabelecimento de suas possíveis significa-ções. Antes dessa conclusão, deve-se entender o que a norma representa nessecontexto, pois a conformação realizada mediante a interpretação consolida o en-tendimento de que ela é muito mais do que um objeto concreto. Na verdade, anorma representa o referencial objetivo tal como o fenômeno kantiano e, dessemodo, ela não se confunde com a totalidade do mundo real.

A racionalidade humana dá a conformação do objeto normativo. Essa con-formação, por sua vez, consagra a subjetividade constitutiva. Afirma Kelsen queo que transforma um fato em um “ato jurídico (lícito ou ilícito) não é a suafacticidade, não é o seu ser natural, isto é, o seu ser tal como determinado pelalei da causalidade e encerrado no sistema da natureza, mas o sentido objetivo

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que está ligado a esse ato, a significação que ele possui”.102 Conseqüentemente,o que torna algo jurídico decorre de um contexto de objetivação da realidadeobtido por meio do sentido, isto é, o significado que ele possui para a mente. Éo que Kelsen, em seguida, esclarece: “o sentido jurídico específico, a sua parti-cular significação jurídica, recebe-a o fato em questão por intermédio da normaque a ele se refere com o seu conteúdo, que lhe empresta significação jurídica,por forma que o ato pode ser interpretado segundo esta norma”.103

A norma, por conseguinte, torna-se o referencial objetivo para o conhecimentopuro, desvencilhado, a partir de então, de uma direta relação com a realidadeconcreta. Ela, como bem salienta Kelsen, “funciona como esquema deinterpretação”.104 A interpretação normativa diferencia-se de uma mera inter-pretação causal voltada para a natureza. Segundo Kelsen, “o juízo em que seenuncia que um ato de conduta humana constitui um ato jurídico (ou antijurídico)é o resultado de uma interpretação específica, a saber, de uma interpretação nor-mativa”.105 Assim, a realidade concreta não fornecerá o critério para constatar seo conhecimento caminha em direção ao âmbito estritamente jurídico. O que poderáfornecer esse critério é a norma, referencial objetivo e formal do conhecimento.

Esse conhecimento jurídico, por sua vez, tem como característica o fato de sedirigir “a estas normas que possuem o caráter de normas jurídicas e conferem adeterminados fatos o caráter de atos jurídicos (ou antijurídicos)”.106 Por conseguinte,conhecer, na ciência jurídica, é se voltar imediatamente para a norma, que confereà realidade concreta o status jurídico e, tendo alcançado esse patamar (essa“juridicização”), ela poderá ter alguma relevância para a Teoria Pura do Direito. Anorma, conseqüentemente, tem uma função muito específica para Kelsen: elafornece o elemento de objetivação da realidade, conferindo ao conhecimento jurídicoum referencial que permite se afastar da complexidade e multiplicidade fática.

Logo, a pureza do ato de conhecer no Direito encontra-se na possibilidade deter como objeto de estudo não a realidade, mas aquilo que é apto a caracterizaruma objetividade homogênea. Como argumenta Kelsen, “a ciência jurídica pro-cura apreender o seu objeto ‘juridicamente’, isto é, do ponto de vista do Direi-to”.107 Esse apreender juridicamente, por sua vez, segundo o autor, “não pode,porém, significar senão apreender algo como Direito, o que quer dizer: comonorma jurídica ou conteúdo de uma norma jurídica, como determinado atravésde uma norma jurídica”.108 Assim, o sujeito, ao conhecer no Direito, relaciona-se com o seu predicado, que é o objeto normativo.

102 Ibidem, p. 4.103 Ibidem, p. 4.104 Ibidem, p. 4.105 Ibidem, p. 4.106 Ibidem, p. 5.107 Ibidem, p. 79.108 Ibidem, p. 79.

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A relação, desse modo, é entre sujeito e objeto. Esses dois elementos, talcomo se verificou em Kant, são uma necessidade metodológica na obra de Kelsen.Todavia, o objeto não é apenas apreendido pelo sujeito a partir da observânciadireta da realidade. Na verdade, como analisado, o conhecimento, para Kelsen,volta-se para um referencial que possibilita a concreção de uma objetividadehomogênea apartada da complexidade empírica. Isso leva a concluir que norma,para esse autor, não é apenas o que se prescreve positivamente; é, antes, umreferencial que permite dar ao Direito a possibilidade de um conhecimento puro.Tanto isso é verdade que Kelsen explica que “norma pode ser não só o sentidode um ato de vontade, mas também – como conteúdo de sentido – o conteúdode um ato de pensamento. Uma norma pode não só ser querida, como tambémpode ser simplesmente pensada sem ser querida”.109

A norma assume o evidente papel de resultado de um ato de pensamento. Elaé o objeto do conhecimento puro. Como salienta esse autor, “uma norma não temde ser efetivamente posta – pode estar simplesmente pressuposta no pensamen-to”.110 Está, nesse aspecto, uma das maiores consagrações da subjetividade cons-titutiva já afirmada no Direito. A relação entre Kelsen e Kant nesse tema é tão ín-tima que o próprio Kelsen faz questão de ressaltá-la, como na passagem seguinte:

Também é verdade que, no sentido da teoria do conhecimento de Kant, a ciênciajurídica como conhecimento do Direito, assim como todo conhecimento, tem ca-ráter constitutivo e, por conseguinte, “produz” seu objeto na medida em que oapreende como um todo com sentido. Assim como o caos das sensações só atravésdo conhecimento ordenador da ciência se transforma em cosmos, isto é, em natu-reza como um sistema unitário, assim também a pluralidade das normas jurídicasgerais e individuais postas pelos órgãos jurídicos, isto é, o material dado à ciênciado direito, só através do conhecimento da ciência jurídica se transforma numsistema unitário isento de contradições, ou seja, numa ordem jurídica. Esta “pro-dução”, porém, tem um puro caráter teorético ou gnoseológico. Ela é algo com-pletamente diferente111 da produção de objetos pelo trabalho humano ou da pro-dução do Direito pela autoridade jurídica.112

Consolida-se, com base no próprio Kelsen, a concepção de uma subjetivida-de constitutiva aplicada a qualquer conhecimento e, em especial, à ciência jurí-dica. O sujeito pode constituir a norma, pois ela é resultado de um “ato depensamento”, como antes inferido. Todavia, essa “constitutividade” a isso não

109 Ibidem, p. 10.110 Ibidem, p. 10.111 A “constitutividade” é afirmada por Kelsen na Teoria Pura do Direito, como ele próprio ex-pressa, mas ela se diferencia do processo de aplicação do direito, na medida em que, na aplica-ção, consoante anteriormente exposto, ao ato de conhecimento se acrescenta o ato de vontade.Por isso, na aplicação do direito, a produção jurídica diferencia-se acentuadamente do simplesato de conhecer a norma, mesmo que também este seja pautado pela subjetividade constitutiva.112 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. op. cit., p. 82.

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afirmadas

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se resume. A norma é, na ciência jurídica, a possibilidade da experiência. Asubjetividade constitutiva permite que a multiplicidade normativa seja concebi-da em um “sistema unitário isento de contradições”.113 Evidencia-se, pois, que,tal como em Kant, o pensamento está relacionado com a experiência.

Na Crítica da Razão Pura, Kant salienta que o ato de conhecer decorre deuma relação direta de conformação dos objetos sensíveis múltiplos, na condiçãode fenômenos, a algo ordenado, unificado.114 Na Teoria Pura do Direito, Kelsenestabelece que o ato de conhecer deriva de uma relação direta de conformaçãodo objeto normativo múltiplo, que é o fenômeno jurídico, a algo ordenado, unificado.

A subjetividade é, em ambos os autores, o “fundamento desta unidade”.115

É como se se estabelecesse uma “dedução transcendental jurídica”, em que o“eu penso” enlaça as representações normativas em uma unidade originária,que é a estrutura objetiva da experiência jurídica. Da mesma forma que emKant, também os conceitos jurídicos decorrem de uma relação do conhecimentocom as normas, que são a expressão da experiência no Direito.

Se, por um lado, a experiência para Kant é constituída precisamente pelasrelações objetivas estabelecidas entre os fenômenos (sua condição é, pois, umaunidade que não tenha nada que ver com a percepção, porque é válida objetiva-mente), por outro, para Kelsen, o sistema normativo é constituído pelas relaçõesobjetivas estabelecidas entre os fenômenos normativos e, da mesma forma, essaunidade não tem relação com a percepção, porque tem validade objetiva. Assim,consegue-se, semelhantemente ao propósito kantiano, estabelecer a possibilida-de da experiência jurídica de modo universal e necessário. O conhecimentojurídico puro, afinal, ao constituir o objeto normativo, estabelece a própria possi-bilidade objetiva desse conhecimento.

Tem-se, conseqüentemente, a purificação, na ciência jurídica, a partir domomento em que se consegue alcançar um patamar de objetivação normativapor meio de um processo unificador do fenômeno jurídico realizado pelas facul-dades cognitivas. Quanto mais se fecha no âmbito específico dessa objetivaçãonormativa, mais se está obtendo a validação das condições subjetivas da consci-ência. Em síntese, pode-se concluir que a tentativa de se firmar uma pureza noato de conhecer no Direito é, de maneira semelhante a Kant, uma busca pelas“condições da validade do conhecimento universal e necessário”116 no Direito.É a possibilidade de expressar um conhecimento jurídico válido objetivamente.

O projeto kelseniano, de modo semelhante a Kant, afirma que o sujeito éconstitutivo na medida em que ele “produz seu objeto”,117 assimila-o “como um

113 Ibidem, p. 82.114 ABBAGNANO, Nicola. História de la Filosofia. Tomo II. op. cit., p. 388. Tradução livre.115 Ibidem, p. 388. Tradução livre.116 MILOVIC, Miroslav. Filosofia da Comunicação. Para uma Crítica da Modernidade. op. cit.,p. 57.117 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. op. cit., p. 82.

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todo com sentido”.118 Por isso, para Kelsen, é correto concluir que a interpreta-ção realizada no âmbito da ciência jurídica está também “produzindo” o objetonormativo. A norma, como já analisado, é o objeto da constituição realizada pelosujeito a partir de um ato de conhecimento estritamente jurídico-científico. As-sim, ao invés de apenas contemplar a realidade, Kelsen estabelece um vínculonecessário da constituição da experiência por intermédio da atuação subjetiva.

Isso é um momento fundamental para a discussão sobre a racionalidade noDireito. Com grande densidade teórica, esse autor afirma que a razão jurídicanão está no plano do texto legal. A razão jurídica decorre de um ato de conheci-mento que constitui a experiência normativa. É, tal como se constatou em Kant,a “revolução copernicana” no Direito. A razão jurídica encontra-se em umarelação de “constitutividade” entre sujeito e objeto e, não mais, na simples con-templação do texto legal.

O interessante dessa perspectiva está na capacidade de Kelsen inserir o estu-do da norma dentro do plano essencialmente teórico. Na verdade, ele desprezaa razão prática na ciência jurídica como potencial geradora de conhecimentosobjetivos. Surge, assim, uma certa ambivalência. Afinal, a normatividade é inti-mamente ligada ao prático, uma vez que, em regra, estabelece um dever-serrelacionado com a conduta. Kelsen, porém, tinha plena noção de seu projeto.Ele afirmou categoricamente o plano do dever-ser como aquele próprio do estu-do da ciência jurídica. O conceito de norma, por sua vez, também se refere aoâmbito deontológico. Segundo Kelsen, “com o termo ‘norma’ se quer significarque algo deve ser ou acontecer, especialmente que um homem deve conduzir dedeterminada maneira”.119 O que se pode, então, concluir a partir dessa situaçãoque, sem dúvida, desperta interesse? Como Kelsen consegue fazer essa teorizaçãodo essencialmente prático?

A resposta a essas indagações pode ser inferida a partir da finalidade doprojeto kelseniano. Da mesma forma que Kant desejava defender a possibilida-de do conhecimento científico, Kelsen queria provar a possibilidade do conheci-mento científico do Direito. Por procurar, em último momento, afirmar a “Ciên-cia Jurídica”, a Teoria Pura do Direito é um estudo nitidamente teórico. A norma,embora estabeleça um dever-ser, é antes um referencial do ato de conhecimen-to. Ela, se por um lado, indica como deve ser a realidade, por outro, é o resulta-do da constituição efetuada pelo sujeito. Assim, o conceito de norma, na TeoriaPura do Direito, tem sua relevância constatada pela consolidação do teórico,porque é ela que dá as condições para se conseguir a pureza no conhecimentojurídico.

O projeto kelseniano, conforme essas premissas e segundo o enfoquehabermasiano, se insere em uma “interpretação idealista do distanciamento em

118 Ibidem, p. 82.119 Ibidem, p. 5.

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relação ao contexto de interesses e da experiência cotidiana”.120 Ao querer enfatizaruma Ciência do Direito que, em rigor, expressa o intuito universalista sob a di-mensão teórica e se afasta do prático, tem-se uma “compreensão absolutista deuma teoria, que não se eleva somente sobre a empiria e as ciências singulares,mas é “pura” no sentido da eliminação catártica de todos os vestígios de seucontexto de surgimento terreno”.121 A presença do essencialismo e a necessidadede consagrar a teoria geram uma fundamentação que não consegue compreenderas nuances contextuais da normatividade. As palavras de Habermas abaixo sali-entam o risco de um enfoque que traz uma “concepção forte de teoria” em suadiscussão sobre os aspectos do pensamento metafísico:

O enfoque metódico destinado a imunizar o cientista contra os preconceitos locaisé supervalorizado e interpretado como sendo o do primado, internamente funda-mentado, da teoria frente à práxis (...). Assim, se fecha o círculo de um pensa-mento da identidade, que se introduz a si mesmo na totalidade que pretendeabranger, cuidando, portanto, de satisfazer à exigência de fundamentar todas aspremissas a partir de si mesmo. A independência da condução teórica da vidasublima-se na moderna filosofia da consciência, assumindo a forma de uma teoriaque se fundamenta absolutamente a si mesma.122

Possivelmente, é nesse contexto que se evidencia a característica da concep-ção formalista da norma. Não importa conhecer o conteúdo normativo; importa,na verdade, a norma enquanto objeto constituído pelo conhecimento. O enfoque,portanto, não é o que esse dever-ser tem de concreto, tem de possível no mundoreal. O dever-ser é relevante apenas enquanto estrutura formal constituída peloato de conhecimento. Por isso, para a Teoria Pura do Direito, o fundamental é aestrutura formal normativa e, não, o conteúdo normativo das normas. Dessemodo, se a Teoria Pura se preocupasse com o conteúdo normativo, se tivesse,como algo inerente ao seu projeto científico, a razão prática, não se conseguiriaa pureza do ato de conhecer. Se a Teoria Pura do Direito se voltasse para aorientação do prático, ela não seria científica. A teoria, afinal, pode apenasdescrever o prático; jamais orientá-lo.

O resultado dessa investigação está na verificação de que, também na TeoriaPura do Direito, é consagrada, além de uma metafísica formal-normativa, comoantes investigada, uma metafísica da subjetividade. Isso porque é a subjetividadeconstitutiva que fornece a possibilidade da constituição do objeto normativo e, porconseguinte, da qualificação científica da Teoria Pura do Direito. Essa cientificidadejurídica é alcançada, porque o conhecimento puro passa a ser universal e necessário.

Não ocorre, devido a essas características, a projeção de algo além da relaçãosujeito/objeto na Teoria Pura do Direito. De fato, essa relação representa uma

120 HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-Metafísico. op. cit., p.42.121 Ibidem, p. 42.122 Ibidem, p. 42.

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necessidade metodológica para o funcionamento da teoria kelseniana. É nessepatamar, porém, de modo análogo ao efetuado quando estudada a teoria kantiana,que se pode iniciar a crítica de seu pensamento. Afinal, também na Teoria Purado Direito, embora exista a subjetividade constitutiva, a própria subjetividadenão é objeto de reflexão.

Por outro lado, a questão da racionalidade jurídica está essencialmente liga-da a esse referencial sujeito/objeto e fechada ao plano teórico. A partir dessasconclusões, podem-se elaborar as seguintes perguntas: 1) Como superar a rela-ção sujeito/objeto da qual Kelsen não consegue se separar em sua teoria?; 2)Como a racionalidade jurídica pode ser discutida em patamares distintos daque-les formulados pelo pensamento kelseniano?; 3) É possível encontrar, na TeoriaPura do Direito, pressupostos que permitam indicar um caminho para a crítica àprópria teoria kelseniana?

As duas primeiras perguntas partem das mesmas premissas, que podem serassim divididas: 1) Será a racionalidade jurídica aquela que se volta, em últimaanálise, para a afirmação da ciência?; 2) Será que, exatamente por querer esta-belecer um conhecimento científico do Direito, Kelsen não tenha refletido sobreos pressupostos que configuram a racionalidade por ele defendida?

Ao não refletir rigorosamente sobre a subjetividade, novamente, tal como acrítica de Hegel a Kant, pode-se concluir que Kelsen se contentou com os fatosa respeito da reflexão no Direito. Em rigor, em última análise, a Teoria Pura doDireito acabou se tornando muito mais um verdadeiro estudo sobre o sistemajurídico do que sobre os pressupostos que tornam o conhecimento jurídico pos-sível. A possibilidade, nessa obra, se limitou à norma. Ela passa a ser o únicoreferencial do conhecimento puro do Direito.

Um exemplo importante a respeito da aceitação dos fatos no pensamentokelseniano encontra-se na explicação da “norma fundamental” (Grundnorm). Ela,nas palavras de Kelsen, é a “fonte comum de validade de todas as normaspertencentes a uma e mesma ordem normativa, o seu fundamento de validadecomum”.123 Aparecem, no entanto, as seguintes questões: qual a natureza dessanorma fundamental? Se ela é a justificativa final de validade normativa, é ela ummero pressuposto formal de validade? Kelsen, exatamente em uma questão centralde sua Teoria Pura do Direito, contentou-se com os fatos, à moda de Kant. SegundoKelsen, a natureza da norma fundamental é de uma “pressuposição lógico-transcendental”;124 é simplesmente uma condição transcendental do pensamento.Ela deve ser pressuposta para permitir que se afira a validade das normas jurídicas.Toda a sua teoria do ordenamento jurídico, portanto, está fundamentada em umapressuposição lógico-transcendental que não é rigorosamente objeto de reflexão,mas apenas apresentada como uma necessidade lógico-sistêmica.

123 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. op. cit., p. 217.124 Ibidem, p. 224.

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Essa centralização na norma, por sua vez, torna o projeto kelseniano aindamais formal do que aquele desenvolvido por Kant. Afinal, não obstante Kanttambém não reflita sobre a própria filosofia transcendental, ele, ao menos, esta-belece um contato com a experiência do mundo real. Este autor, como antesanalisado, quer demonstrar que é a partir de um referencial nas condições sub-jetivas da consciência que se poderá tornar válida a experiência exterior. Aomesmo tempo, é exatamente essa validade que transformará o conhecimento emuniversal e necessário. Em Kelsen, todavia, essa experiência exterior, na ciênciajurídica, somente é alcançada a partir do momento em que ela tem como refe-rência uma norma, que objetiva e abstrai o mundo concreto. Assim, Kelsentorna a norma o único elemento possível da experiência jurídico-científica. É elaseu elemento empírico.

O enfoque essencialmente normativo torna ainda mais complicado trabalhar,na Teoria Pura do Direito, algumas premissas que poderiam advir de um enfoquevoltado para a realidade. A discussão, por exemplo, sobre a intersubjetividadeassume, a partir da perspectiva formal-normativa, um contexto muito mais com-plexo e difícil de ser compreendido. Por sua vez, estabelecer, ao contrário darelação sujeito/objeto, uma relação sujeito/co-sujeito é algo impossível de se con-ceber dentro de sua teoria, uma vez que o propósito fundado na comunicação éalgo que exige o retorno a uma dimensão social.

Realizar a crítica do pensamento kelseniano, desse modo, exige, primeira-mente, uma abordagem sobre os pressupostos que possibilitam o conhecimentono Direito. A metafísica formal ligada ao objeto normativo, que passa a ter qua-lidades intrínsecas alheias ao seu ambiente, faz com que não se reflita critica-mente sobre a própria racionalidade no Direito. Afinal, em uma dimensão maissocial e preocupada com situações contextuais – que não era, por uma escolhametodológica, o interesse assumido por Kelsen –, a racionalidade jurídica não selimita a uma mera compreensão do fenômeno normativo decorrente de umaconstituição realizada pelo sujeito. Ela apresenta outros pressupostos que conse-guem fomentar uma projeção comunicativa. Assume-se a preocupação da am-pliação dos espaços de diálogo social no plano dos pressupostos normativos. Édiferente, desse modo, de uma restrição à possibilidade de promover a purifica-ção do ato de conhecer em Direito.

Desenvolver a racionalidade jurídica do modo como efetuou Kelsen incita oafastamento desses pressupostos comunicativos. Valoriza-se a objetivaçãoalcançada pela norma, que teve, como conseqüência – malgrado Kelsen tenhareconhecido que o direito é mais do que a norma e a ciência jurídica –, a suasupervalorização. É a afirmação do essencialismo. Deixa-se de compreender oparticular dentro do Direito. O particular somente tem relevância enquanto polí-tica jurídica, mas não enquanto ciência jurídica. Kelsen, ao assim proceder,associa a racionalidade jurídica ao essencial, ao científico, esquecendo-se dospossíveis outros desenvolvimentos que a racionalidade é capaz de assumir.

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Em síntese, este autor aplica o conceito tradicional de racionalidade, originá-rio da modernidade, e esquece que ela é plural e composta de diferentes verten-tes. O seu pensamento fecha-se na idéia de ciência, que desenvolve uma com-preensão estratégica de afastamento das realidades particulares para se lograr apureza. A razão jurídica é a consagração novamente do objeto (no caso, onormativo), mesmo tendo como premissa a subjetividade constitutiva. Ao esta-belecer um objeto formal do conhecimento jurídico, Kelsen promove os meca-nismos de colonização social pelo direito. E, mesmo que se argumente que nãohá como criticar Kelsen por esses parâmetros, já que sua teoria objetivava cons-cienciosamente esse afastamento e sua construção lógica afirmava ser essa pre-ocupação contextual algo desvencilhado de seu objeto, não há como negar a suaresponsabilidade histórica pelas conseqüências de seu pensamento.

O desenvolvimento de uma alternativa a essa configuração alcançada pelopensamento kelseniano será trabalhado em capítulo futuro. Desde já, porém, énecessário apresentar os pontos que darão ensejo a um questionamento maisdireto, estabelecendo um modo distinto de conceber o conhecimento jurídico e,por decorrência, a própria racionalidade jurídica. Em síntese, podem serestabelecidas as seguintes características do pensamento de Kelsen: 1) a teoriajurídica é racional enquanto voltada exclusivamente para algum objeto definido,mesmo afirmando a subjetividade constitutiva; 2) a ciência jurídica é uma cate-goria monológica trabalhada a partir de uma relação solipsística125 entre sujeitoe objeto; 3) a racionalidade jurídica é limitada a seu sentido instrumental-estra-tégico, na medida em que, na tentativa de alcançar um projeto de ciência, acabapor olvidar o pressuposto comunicativo aplicado ao plano da validade normativa,voltando-se, em última análise, para o seu objeto formal-normativo.

Não há que se falar, em Kelsen, em intersubjetividade, ao menos não en-quanto pressuposto do conhecimento puro. Na verdade, em uma análisekelseniana, a intersubjetidade promoveria a impureza no direito, porque traria,como substrato, um enfoque essencialmente dialógico e, por conseguinte, social.Kelsen é muito enfático na separação dos planos do dever-ser e do ser, sendoaquele específico do Direito. Todavia, a intersubjetividade traz à tona um resgatedo ser. Por isso, o primeiro importante confronto com Kelsen está em atacar aseparação kantiana entre ser e dever-ser e, a partir de então, estabelecer aintersubjetividade como um pressuposto da razão. Ao lado de Kant, que estavaà procura de um conhecimento universal e necessário – e, nesse aspecto, poder-se-ia pensar a intersubjetividade –, Kelsen somente a concebeu “dentro da es-trutura geral das faculdades cognitivas”.126 De modo análogo ao que Milovicafirmou a respeito da filosofia kantiana,127 Kelsen não entendeu a subjetividade

125 Desvencilhada de uma preocupação com os outros; fechada no próprio pensamento.126 MILOVIC, Miroslav. Filosofia da Comunicação. Para uma Crítica da Modernidade. op. cit.,p. 63.127 Ibidem, p. 63.

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no sentido de uma comunidade. Há, em Kelsen, da mesma forma, uma intersubje-tividade monológica.

A questão da racionalidade jurídica, de forma similar à discussão filosóficacontemporânea, também pode adquirir um novo patamar de abordagem a partirdo momento em que se passa a focá-la sob o paradigma comunicativo. Do mes-mo modo como debatido quando foi estudada a filosofia kantiana, investigar aspremissas da racionalidade jurídica fundada na idéia da intersubjetividade e nacomunidade de comunicação pode ser um importante caminho crítico a respeitodas distintas metafísicas que contaminaram o pensamento jurídico.

Ao invés de um enfoque essencialmente formal-normativo, mesmo que cons-tituído pela subjetividade, a razão pode se estender ao social. E, ao assim proce-der, o conhecimento, que tanto foi a busca na Teoria Pura do Direito, deixa deser o âmbito central de preocupação, espaço ocupado agora pela reflexão rigoro-sa sobre os pressupostos normativos como premissa da ação no mundo.

Esse enfoque comunicativo, como já antes ressaltado, possibilita debater acontaminação a que o Direito historicamente esteve submetido, seja a umametafísica fundada na natureza (como ocorre no jusnaturalismo), seja a umametafísica formal fundada na norma (como se verifica no projeto kelseniano). Abase dessa racionalidade comunicativa não é articulada meramente por umasubjetividade constitutiva, mas, sim, por uma intersubjetividade constitutiva. Oque adquire relevância, a partir de então, é “o mútuo entendimento dentro doâmbito da comunidade de comunicação”.128 Altera-se, na esteira do pensamen-to de Habermas, o “conceito do mundo”.129

Ao retirar a metafísica do Direito e ao estabelecer a linguagem como “mé-dium universal de incorporação da razão”,130 a racionalidade jurídica desvenci-lha-se de uma íntima necessidade de consagrar a ciência em último momento.Afinal, a racionalidade jurídica deve ser trabalhada não a partir de uma contem-plação da realidade ou de um elemento formal, como a norma. Ao contrário, arealidade, o mundo, a norma devem partir do pressuposto de uma “comunidadede interpretação cujos membros se entendem entre si sobre algo no mundo, nointerior de um mundo da vida compartilhado intersubjetivamente”.131

Com base nessas premissas, supera-se a distinção entre o teórico e o prático.A linguagem passa a ser o referencial de fundamentação da racionalidade. Essaquestão adquire relevância quando confrontada com o projeto kelseniano. Afinal,esse autor trabalhou a normatividade dentro de um espectro essencialmenteteórico. Por isso, a pragmática pode ser um caminho que consiga trabalhar ospressupostos da consciência voltados para a experiência – e, nesse aspecto, está-

128 Ibidem p. 68.129 HABERMAS. Jürgen. Agir Comunicativo e Razão Descentralizada. RJ: Tempo Brasileiro, 1ªed., 2002, p. 39.130 HABERMAS. Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade. Vol. I. op.cit., p. 25.131 Ibidem, p. 31.

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132 Assim, por exemplo, surgiu o Paradigma Tópico-Retórico, em que importantes autores, taiscomo Chaïm Perelman, Theodor Viehweg, Luiz Recaséns Siches, buscaram enfatizar o processoargumentativo no direito, a partir do resgate da Tópica aristotélica, como fundamento de suaracionalidade. Sob outro enfoque, escolas jurídicas pautadas pelo desenvolvimento contextual dodireito, pela historicidade e pela tradição do fenômeno jurídico, apareceram para enfatizar oprocesso compreensivo baseado em premissas da hermenêutica das tradição (vide próximo capítulo.

se no plano teórico –, como também pode ser um caminho para desenvolveresses pressupostos em direção a um agir promotor da racionalidade comunicativa,superando a dicotomia entre teoria e prática.

Após todas essas conclusões, ainda se mantém a última indagação. Será queKelsen abriu espaço para o prático no Direito? Será que sua Teoria Pura, nãoobstante afirme o teórico, trouxe algumas premissas que possibilitariam a suaprópria crítica? Aqui se encontra um dos aspectos mais instigantes do pensa-mento kelseniano. Ao mesmo tempo, pode-se ainda indagar algo mais radical:será que Kelsen deu as bases para um giro lingüístico no Direito, superando adicotomia entre razão teórica e razão prática? Quando sustenta a relativaindeterminação semântica das normas, Kelsen aponta para a linguagem. Toda-via, essa linguagem é trabalhada dentro do âmbito normativo e, não, como umpressuposto da consciência. Desse modo, a linguagem só é apresentada paramostrar que existe o poder de interpretação do juiz, mas não para refletir sobrea própria subjetividade, a própria consciência.

Muito mais do que uma tentativa pragmática na ciência do direito, o que sepode já evidenciar na teoria kelseniana é a possibilidade do prático, o que gerauma grande curiosidade. Ao afirmar o poder de interpretação do juiz, Kelsen,de modo ambivalente e indireto, abriu espaço para a consolidação da práxisjurídica. Apesar de a Teoria Pura do Direito afirmar o teórico, Kelsen reconheceque existe sempre uma margem de discricionariedade na atuação judicial. E, aoenfatizar isso em sua obra, mesmo que a partir do âmbito da política jurídica e,não, da Ciência do Direito, verificam-se diversas concepções avançadas e que,anos depois, seriam diretamente trabalhadas pelas escolas jurídicas que busca-riam consagrar a razão prática no direito.132 É interessante verificar que Kelsen,mesmo promovendo a purificação da ciência jurídica em bases teóricas, trouxeimportantes subsídios para uma futura discussão sobre a razão prática comofundamento do conhecimento jurídico. O seu projeto de determinação do âmbi-to científico-jurídico, não obstante tenha delimitado o lugar da prática comoirracional, acabou, por vias reflexas, incitando o interesse pelo estudo do práticono Direito.

Essa ambivalência, porém, não faz com que a teoria kelseniana entre emcontradição. Como antes ressaltado, toda essa discussão sobre a aplicação jurí-dica encontra-se dentro do âmbito da política jurídica e, não, da Ciência doDireito. De fato, para Kelsen, tais discussões não se aplicam à Ciência do Direi-to, mas, unicamente, servem como uma análise da prática judiciária. Para segu-

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rança de seu método jurídico-formalista, nenhuma aplicação normativa deve serrealizada em nome da ciência jurídica: “a Ciência do Direito, que só se orientapelo valor da verdade, deve distinguir-se rigorosamente da ‘política jurídica’,que, como conformação intencional da ordem social, se dirige à realização deoutros valores, especialmente da justiça”.133

Enfim, no intuito de evitar que sejam inseridas, no âmbito da Teoria Pura,discussões não estritamente relacionadas com seu objeto – a norma –, Kelsencriou uma separação entre o Direito vivo, tal como ele se desenvolve cotidiana-mente, e a ciência jurídica. Isso, em última análise, resultou na construção dadicotomia razão prática e razão teórica no Direito. Em contrapartida, o que osmovimentos jurídicos valorizadores dos processos práticos do Direito fizeram foiinverter os papéis: a produção do Direito passou a ser a referência da racionalidadejurídica mediante sua compreensão contextualizada em uma realidade historica-mente determinada sob premissas dialógicas.134 Os contextos de racionalidadesão diversos, mas é possível perceber como Kelsen, mesmo afastando a razãoprática de sua Teoria Pura, pôde dar importantes ferramentas à crítica de suaspróprias premissas.

Um importante exemplo a respeito de como Kelsen promoveu a possibilida-de do resgate do prático encontra-se no estudo das lacunas jurídicas. A concep-ção kelseniana entende que “a existência de uma ‘lacuna’ só é presumida quan-do a ausência de uma tal norma jurídica é considerada pelo órgão aplicador doDireito como indesejável do ponto de vista da política jurídica e, por isso, aaplicação – logicamente possível – do Direito vigente é afastada por esta razãopolítico-jurídica”.135 Dessa forma, Kelsen estabeleceu que, na prática, quandose está aplicando o Direito, a presunção da existência de lacunas não apenasocorre quando não existe uma norma específica a reger a situação concreta,mas, também, quando o juiz está diante de uma situação em que, conquantohaja a norma, se vê obrigado, por motivos outros que não ela – o que ele deno-mina de razões político-jurídicas –, a afastá-la para criar, produzir uma normasingular mais adaptável ao caso concreto segundo tais razões. É uma percepçãobastante avançada em relação à doutrina tradicional, porque se afirma direta-mente o poder de interpretação do juiz e, por via conseqüente, sua capacidadeargumentativa. Agora, o aplicador do direito afasta a norma específica para ocaso concreto “por ser considerada pelo órgão aplicador do Direito como nãoeqüitativa ou desacertada, não apenas quando esta não contenha uma normageral que imponha ao demandado ou acusado uma determinada obrigação, mastambém quando ela contenha uma tal norma”.136

133 LARENZ, Karl. A Metodologia da Ciência do Direito. op.cit., p. 94.134 Vide o estudo da metafísica da historicidade realizado no próximo capítulo.135 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. op. cit., p. 274.136 Ibidem, p. 274.

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Nesse aspecto, Kelsen trabalha, diretamente, com a idéia de ficções jurídi-cas, que é por ele estudada com forte densidade. Apesar de ter noção de que “ojuiz – e especialmente o juiz de carreira que está sob o controle de um tribunalsuperior –, que não se sente facilmente inclinado a tomar sobre si a responsabi-lidade de uma criação do Direito ex novo, só muito excepcionalmente aceitará aexistência de uma lacuna no Direito e, por isso, só raramente fará uso do poder,que lhe é conferido, de assumir o lugar do legislador”,137 não se pode negar queexiste uma “margem de discricionariedade” em sua atividade. A assunção deuma determinada significação da norma consoante critérios político-jurídicos faza Teoria Pura do Direito indicar um caminho que seria, anos mais tarde, traba-lhada sob o enfoque da racionalidade prática.

Pode-se já perceber que Kelsen auxilia, paradoxalmente e mesmo que forados estritos limites da Teoria Pura do Direito, na confecção de uma lógica jurídi-ca fundada nos debates argumentativos, uma vez que alarga a atividade judicante;passa a entendê-la como verdadeira criação, produção jurídica; insere, nessadiscussão, a noção de controle institucional e social. Ademais, para Kelsen,como decorrência dessas conclusões, existe uma pluralidade de interpretaçõesde uma norma e, portanto, jamais se pode dizer que a decisão é certa ou errada.“Se o sentido literal da norma aplicável não é unívoco, quem tem de aplicá-laencontra-se perante várias significações possíveis. A interpretação não lhe podedizer qual é a certa; todas são igualmente certas”.138 Essa decisão, ato de vonta-de,139 por sua vez, por ser criadora do Direito, torna-se também direito positi-vo.140 Surge, assim, algo inusitado em sua obra: importantes subsídios para a

137 Ibidem, pp. 275-276.138 LARENZ, Karl. A Metodologia da Ciência do Direito. op. cit., p. 93.139 Kelsen entendia que a aplicação do direito era resultado não de um ato de conhecimento,mas, sim, de um ato de vontade. Esse aspecto resulta de uma defesa epistemológica, já que,para ele, o conhecimento, que opera no plano científico, não se encontra no âmbito da razãoprática, mas, sim, da razão teórica. A passagem a seguir, de Chaïm Perelman, é elucidativa:“(...) Kelsen reconhecia, sem dúvida, que o juiz não é um mero autômato, na medida em que asleis que aplica, permitindo diversas interpretações, dão-lhe certa latitude, mas a escolha entreessas interpretações depende, não da ciência do direito nem do conhecimento, mas de umavontade livre e arbitrária, que uma pesquisa científica, que se quer objetiva e alheia a qualquerjuízo de valor, não pode guiar de modo algum” (PERELMAN, Chaïm. Lógica Jurídica. SãoPaulo: Martins Fontes, 1a ed., 1999, p. 93).140 Vale destacar a interessante observação de Larenz a essa concepção kelseniana:“(...) Quando Kelsen, para se manter longe de tais juízos de valor, declara que a ciência doDireito é incapaz de atingir, através da interpretação de uma norma, juízos certos, “deita acriança fora com água do banho”. Sem dúvida que a decisão judicial constitui sempre um ato devontade, enquanto se propõe a conduzir a uma situação jurídica que seja inatacável pelaspartes. Sem dúvida ainda que tanto a interpretação como a aplicação de uma norma a um casoconcreto requerem mais do que uma dedução e uma subsunção logicamente não controvertíveis.Requerem, antes de tudo, atos de julgamento, que se fundam entre outras coisas, na experiên-cia social, na compreensão dos valores e em uma concepção correta dos nexos significativos.

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construção da crítica de suas premissas mediante o resgate da racionalidadeprática, que foi menosprezada dentro dos parâmetros de sua teoria.

O ressurgimento de uma preocupação fundada na razão prática do Direito éum primeiro importante caminho que possibilita entendê-lo sob uma concepçãodiversa e sob a necessidade de se fundamentar em uma racionalidade que nãonecessariamente tenha de se voltar para a teoria. É um caminho que pode come-çar a fornecer as bases para mostrar que a ênfase na teoria, tal como efetuadapor Hans Kelsen, pode não ser o campo específico da racionalidade jurídica.Surge, porém, já uma dúvida que será analisada no próximo capítulo: será queo Direito deve ser concebido com ênfase na racionalidade prática, fundada naidéia de phronesis e pautada pelas premissas da historicidade? Será que essa é apalavra final para se compreender a razão no Direito? Será que o retorno daphronesis não estaria estabelecendo uma nova metafísica?

Por outro lado, também é possível indagar: o resgate da racionalidade práti-ca no Direito não poderia fornecer as bases para um estudo da racionalidadecomunicativa, uma vez que insere a preocupação dialógica e argumentativa nocentro das controvérsias jurídicas? Em síntese, será que o estudo da razão prá-tica não poderia fornecer as premissas para uma reviravolta pragmática? Afinal,como esclarece Theodor Viehweg, “a forma do diálogo é recomendável justa-mente porque não esconde, ao contrário, deixa transparecer as implicações prag-máticas que podem ser significativas em outro campo”.141 Ao se enfatizar aargumentação, é possível que se estejam dando os fundamentos para uma revi-ravolta lingüística. Viehweg, novamente, enfatiza que “devemos ressaltar umanova corrente crítico-lingüística, que igualmente retoma a situação discursivapragmática, sendo especialmente radical na sua análise”.142 Pode ser um novomomento na problemática da racionalidade jurídica. Pode ser o primeiro passopara uma perspectiva pós-metafísica no Direito.

Nos casos limites o decisivo pode ser mesmo a concepção pessoal de quem julga. De todo omodo, trata-se aí, em larga medida, de processos de pensamento objetiváveis e comprováveispor outrem, não de simples atos de vontade, ou de simples posições. Kelsen não reconhece emprincípio qualquer diferença entre legislação, jurisprudência, atividade administrativa e atuaçãoda autonomia privada. Trata-se sempre para ele de estabelecer uma norma hierarquicamenteinferior no quadro de uma norma hierarquicamente superior. O que é, decerto, uma concepçãosedutora na sua simplicidade, mas de forma alguma uma concepção que corresponda às dife-renças realmente existentes. Ela limita a interpretação jurídica à mera interpretação verbal, àindicação das significações possíveis, de acordo com o sentido das palavras, entre as quais temde escolher quem aplica a norma jurídica. Fica à sua disposição o modo como encontrar aopção. Esta concepção é dificilmente compatível com a função na judicatura do Estado consti-tucional. Não lhe faltam pois vozes críticas (LARENZ, Karl. A Metodologia da Ciência do Direi-to. op. cit., pp. 94-95).141 VIEHWEG, Theodor. Tópica e Jurisprudência. Brasília: Departamento de Imprensa Nacio-nal, 1ª ed., 1979, p.105.142 Ibi dem, p. 105.

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CAPÍTULO III

A METAFÍSICA DA HISTORICIDADE:

A TRADIÇÃO E A POSSIBILIDADE DE SUA RADICALIZAÇÃO NO DIREITO

3.1. INTRODUÇÃO

O estudo da metafísica da natureza e da metafísica formal-normativa fornece-ram os argumentos para se criticar a presença marcante do essencialismo nopensamento jusfilosófico. A primazia do teórico e o obscurecimento do particu-lar, na base de formação das teorias jurídicas, ofuscaram a compreensão dosdiversos fenômenos que se realizam nas práticas cotidianas de vida e, ao mesmotempo, promoveram o silêncio a respeito dos pressupostos normativos. Não hou-ve, por isso, reflexão rigorosa sobre a validade normativa em nenhuma das duasimportantes manifestações metafísicas do pensamento jurídico.

O Direito conheceu, em contrapartida, um caminho de consagração da práxis,da historicidade, do contexto, da tradição. Essa contraposição a algumas impor-tantes premissas da Teoria Pura do Direito, que se fechou em sua estruturaformal-normativa, conferiu os argumentos para se garantir um novo motivo parao pensamento jurídico: não se pode pensar em uma metodologia científica parao Direito sem uma direta referência ao particular, isto é, às condições contextuaisde sua formação e desenvolvimento. Há de se pensar o Direito, em todas as suasdimensões, de modo compreensivo, englobando toda a realidade concreta quelhe é inerente. É um novo olhar sobre o normativo que poderia ensejar a reflexãorigorosa sobre os pressupostos normativos. Mas surgem algumas dúvidas: seráque a sustentação da tradição, do particular conseguiu ensejar a reflexão rigoro-sa sobre os pressupostos normativos? Ou será que ela também desencadeouuma outra metafísica de contornos próprios? Este capítulo buscará, precisamen-te, se desenvolver em torno desses questionamentos. Será que a valorização dapráxis incitou a crítica?

Para tanto, este capítulo adotará, como parâmetro, o estudo da “hermenêuticada tradição”, especialmente a obra Verdade e Método de Hans-Georg Gadamer,por ter trabalhado, minuciosamente, a questão da compreensão. Em seguida,será projetada a análise e a crítica do pensamento hermenêutico sobre a obraMetodologia da Ciência do Direito de Karl Larenz, mais particularmente sobresua investigação de uma “jurisprudência de matriz valorativa” com fundamentotambém de ordem hermenêutica. Essa característica é particularmente visívelem sua obra, na medida em que buscou estabelecer um método jurídico, pauta-do pela afirmação da historicidade e do “círculo compreensivo”, em seu enten-

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dimento a respeito da Jurisprudência. Assim, por exemplo, Larenz1 salientouser a jurisprudência uma “ciência compreensiva”,2 expondo que “o intérpreteestá munido de uma ‘pré-compreensão’, com que penetra o texto”.3 A interpre-tação do Direito, pois, tem de se desenvolver conforme uma “estrutura circu-lar”,4 de modo que o esclarecimento se faça paulatina e reciprocamente com asconclusões alcançadas. Efetua-se, assim, um esclarecimento progressivo, queleva a um novo estádio de compreensão da norma, mediante um constanteprocesso de ida e vinda da premissa maior – a norma – e a premissa menor – asituação fática.

Como se infere, é uma concepção do processo de aplicação do Direito comfortes nuances da hermenêutica gadameriana, ao perceber que a interpretaçãodo Direito é também um ato compreensivo e que, nessa trajetória circular, opeso da tradição deve ser considerado como elemento hermenêutico do compre-ender. A essa condição, no âmbito da aplicação do Direito, Larenz acrescentoua “função regulativa da norma”, sustentando que “o jurista questiona a ‘vinculativi-dade normativa do sentido a compreender’, pois que ele vê – com razão – anorma como bitola com que tem de mensurar o caso”.5 É um resgate da forçados precedentes, ao fomentar, na medida do possível, a aplicação uniforme danorma, realizada por intermédio de um processo dialético.6

Defende-se, assim, uma dialética da aplicação normativa que desembocaráem um “pensamento orientado a valores na jurisprudência”.7 Larenz foi bastanteenfático ao resgatar a condição hermenêutica do compreender para estabeleceros critérios para uma Jurisprudência valorativa, evidenciando que “a Jurispru-dência é, tanto no domínio prático (o da ‘aplicação do Direito’) como no domínioteórico (o da ‘dogmática’), um pensamento em grande medida orientado a valo-

1 A discussão a respeito da obra de Larenz cingir-se-á à parte sistemática sobre a “caracteriza-ção geral da Jurisprudência”, uma vez que, voltada diretamente para a prática do direito, parasua aplicação, se consegue visualizar mais facilmente o círculo compreensivo da hermenêuticada tradição, que também é de matriz prática. Por isso, todas as conclusões alcançadas sobre aJurisprudência de orientação valorativa, no capítulo que ora se inicia, partem das premissasdesenvolvidas neste campo próprio da obra de Larenz.2 LARENZ, Karl. A Metodologia da Ciência do Direito. op. cit., p. 239.3 Ibidem, p. 244.4 Ibidem, p. 242.5 Ibidem, p. 251.6 Segundo Larenz:“Ambas as coisas, a função de bitola da norma – que requer a sua aplicação uniforme – e anecessidade, que ocorre constantemente, de interpretação (ulterior), bem como, por fim, a“retroação” da interpretação e da concretização, uma vez conseguidas, em relação a uma ulte-rior aplicação da norma, têm de ser tomadas em conta, se se quiser que o processo – “dialético”,de acordo com a sua estrutura – de aplicação do Direito não venha a ser considerado unilateral-mente, e nestes termos, de modo incorreto (LARENZ, Karl. A Metodologia da Ciência doDireito. op. cit., p. 252).7 Ibidem, p. 252.

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res”.8 Com a crítica aos métodos tradicionais de compreensão do normativo e doprocesso decisório,9 Larenz contrapôs o entendimento de que “a metodologia daJurisprudência pode, nesta conformidade, caracterizar-se como a sua auto-refle-xão à luz da hermenêutica”.10 E, com fundamento nessa orientação, incitou umavaloração reflexiva da tradição, porque desejava uma metodologia que promoves-se uma “valoração mediatizada por certas reflexões, e deste modo racionalmentefundamentada, que pode estar de acordo com as valorações ‘historicamente trans-mitidas’, mas que delas também se pode afastar”.11

Há uma percepção da importância da “pré-compreensão” – e, pois, dosvalores e princípios obtidos pela experiência de vida –, mas não uma vinculaçãoirrefletida à tradição na construção do novo no Direito. O precedente é condiçãodo compreender, porém, a sua atualização, efetuada pelo “círculo hermenêutico”preconizado por Larenz, é de cunho reflexivo. As premissas da possibilida-de da compreensão, logo, se efetivam por intermédio de uma constantemediação sua historicidade e sua concretização significativa. Como salientaCastanheira Neves, a ênfase na hermenêutica suscita que “se compreendacompreendendo, e em todos os contextos concretos de sua compreensão”.12

É um processo de esclarecimento que se realiza por um constante refletir

8 Ibidem, p. 253.9 Segundo Larenz, a metodologia não pode estabelecer a última palavra, mas deve servir comoguia para o processo compreensivo do direito, abaixo mais bem explicada:“A metodologia não pode tratar de estabelecer regras rígidas, que só precisariam de se seguirpara caminhar com segurança na aplicação das normas jurídicas. A interpretação, e tudo o queela em si coenvolve, não é uma atividade que possa realizar-se somente de acordo com regrasestabelecidas; carece sempre da fantasia criadora do intérprete. Se antes falamos de ‘circuns-tâncias hermeneuticamente relevantes’, é agora de acrescentar que não é possível um catálogoexaustivo de todas as circunstâncias que possam ser hermeneuticamente relevantes. As indica-ções metodológicas permitem na sua aplicação uma margem de livre apreciação, do mesmomodo que a maioria das normas jurídicas. Tais indicações fornecem ajudas de orientação,possibilitam o controlo de um curso de idéias, sobretudo para que se não passem por alto pontosde vistas essenciais, e obrigam o intérprete a prestar contas sobre o seu proceder. Mas quempense que as deve seguir como um escravo simplifica a questão em demasia. Não só para otrabalho jurídico quotidiano como para todos os trabalhos jurídicos importantes, é ajustada aobservação de Gadamer de que ‘é decerto indispensável à ciência a higiene metódica, mas amera aplicação de métodos habituais constitui em muito menor grau a essência de toda apesquisa do que a descoberta de métodos novos – e, por detrás disso, a fantasia criadora doinvestigador’. Certamente que também a conclusão oposta seria falsa, ou seja: uma vez que asindicações metodológicas não são regras aplicáveis sempre da mesma maneira, como que deum modo mecânico, são supérfluas, são meras ‘fórmulas vazias’. Isto significaria uma vez maisrenunciar à medida possível de racionalidade e abandonar tudo à mera arbitrariedade da opi-nião subjetiva” (LARENZ, Karl. A Metodologia da Ciência do Direito. op. cit., p. 294).10 Ibidem, p. 293.11 Ibidem, p. 254.12 NEVES, A. Castanheira. A Crise Actual da Filosofia do Direito no Contexto da Crise Global daFilosofia. Tópicos para a Possibilidade de uma Reflexiva Reabilitação. op. cit., p. 61.

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que intenciona promover a superação dos preceitos em que se funda o Direi-to e alcançar novas saídas construtivas do jurídico.

Como o início da discussão que adiante será mais pormenorizadamente tra-vada, a obra de Larenz instiga à investigação por trabalhar o círculo hermenêuticocomo condição da compreensão da aplicação do Direito. Evidentemente confor-madas pelas características que são próprias do pensamento jurídico, pareceque novas possibilidades de crítica a respeito de determinados pressupostos emque historicamente se assentou o Direito são abertas por essa concepção. Afinal,a hermenêutica, ao aduzir que o pensamento não prescinde dos pressupostos,contrapõe, às metafísicas que não se sustentam com a reflexão rigorosa sobresuas premissas, a “historicidade do ser”. Há, pois, uma celebração da “finitude”do homem, de sua inserção contextual; há, por conseguinte, um confronto comuma racionalidade que se quer fazer distante do mundo histórico-cultural doqual se origina. Nas palavras de Habermas, “a irrupção da consciência históricafez com que as dimensões de finitude ganhassem em termos de força de convic-ção e se configurassem em oposição a uma razão não situada, idealisticamenteendeusada”.13 E, como conseqüência dquele distanciamento da razão, de umatranscendência que se faz apartada do mundo, opõe-se um caminho de “destrans-cendentalização dos conceitos tradicionais fundamentais”.14 É um novo olharsobre o normativo que surge para não mais espelhar a já consagrada primazia doteórico sobre o prático, porém, sim, impelir que o teórico deva ser compreendi-do em seus contextos de práticas vitais.

Conseqüência de um novo momento da filosofia que se irradia pelo pensa-mento jurídico, a tradição aparece para se contrapor a uma concepção absolutis-ta da razão, que não questiona as suas próprias premissas. Em oposição ao olharque não se olha, busca-se atingir a ênfase nas condições concretas de realizaçãoda racionalidade também no plano do Direito. Da “razão não situada, idealis-ticamente endeusada”,15 volta-se “para o contexto contingente de tradições”16

no intuito de possibilitar a compreensão do jurídico. Deve-se ter como exigência,no ato de interpretação do Direito, os conhecimentos prévios necessários; épreciso ter como premissa que “somente este reconhecimento do caráter essen-cialmente preconceituoso de toda compreensão confere ao problema hermenêuticotoda a agudeza de sua dimensão”.17 E, por isso, é indispensável reabilitar atradição, que expõe o homem em sua historicidade, inserindo-o nas realizaçõesconcretas de vida. A moderna investigação aplicável também ao pensamento

13 HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-Metafísico. op. cit., p. 43.14 Ibidem, p. 43.15 Ibidem, p. 43.16 HABERMAS, Jürgen. Dialética e Hermenêutica. Para uma Critica da Hermenêutica de Gadamer.Porto Alegre: L&PM, 1987, pp. 20-21.17 GADAMER, Hans-Georg. Verdad y Método. op. cit., p. 337. Tradução livre.

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jurídico, desse modo, deve ser mediada pela tradição, deve “ouvir cada vez umavoz nova na qual ressoa o passado”.18

A ênfase na historicidade, na finitude do homem como condição do compre-ender – ou, conforme Habermas, “a consciência transcendental deve ser sub-metida às condições da facticidade histórica e da existência intramundana, semque haja prejuízo de sua originalidade do mundo” 19 – suscita que a experiênciaadquirida ao longo dos anos deva ser um parâmetro para guiar as ações. Noâmbito do Direito, a jurisprudência explicita essa experiência obtida, que forne-ce as bases para a ação (aplicação) do Direito. E essa procura por parâmetrosque conduzam a ação mostra a necessidade de um pressuposto normativo, en-contrado na phrónesis aristotélica, que, consoante Klaus Günther, exemplificauma forma de “aplicação contextualmente vinculada”.20

Não sem motivo, Gadamer, que é uma importante referência para Larenz,resgata a phrónesis ao mencionar que a ética aristotélica é uma “espécie demodelo dos problemas inerentes à tarefa hermenêutica”.21 A partir de uma dire-ta ligação com o contexto, a phrónesis apresenta as propriedades que se fazemnecessárias para expressar essa historicidade do ser, a sua temporalidade comocondição da existência. E, ao se voltar para a ação, “ela é normativa e conduzpara o ato volitivo da decisão e da sua realização”.22 Em síntese, ela fomenta amediação entre a tradição e a ação singularmente considerada; ela relaciona aprocura de uma finalidade geral – que é a busca da vida boa (felicidade) – coma realidade particular.

Além do mais, se, por um lado, “a experiência hermenêutica tem que ver coma tradição”23, que, por sua vez, “acede à experiência”,24 por outro, a linguagemaparece como a expressão dessa tradição. Segundo Gadamer, “a tradição não éum simples acontecer que se possa conhecer e dominar pela experiência, senãoque é linguagem”.25 A linguagem demonstra que a hermenêutica visa precisamentea enfatizar a “possibilidade da compreensão”, que não prescinde do “outro” dacomunicação. A linguagem expõe os “pré-juízos”, afirma as condições dacompreensão, que se realizam por intermédio da participação em um mundoconstituído de jogos lingüísticos. É ela o signo da tradição pleno: “frente a todasoutras formas de tradição, a compreensão da tradição lingüística mantém uma

18 Ibidem, p. 353. Tradução livre.19 HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-Metafísico. op. cit., p. 51.20 GÜNTHER, Klaus. Teoria da Argumentação no Direito e na Moral. Justificação e Aplicação.São Paulo: Landy, 2004, p. 253.21 GADAMER, Hans-Georg. Verdad y Método. op. cit., p. 396. Tradução livre.22 GÜNTHER, Klaus. Teoria da Argumentação no Direito e na Moral. Justificação e Aplicação.op. cit., p. 262.23 GADAMER, Hans-Georg. Verdad y Método. op. cit., p. 434. Tradução livre.24 Ibidem, p. 434. Tradução livre.25 Ibidem, p. 434. Tradução livre.

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primazia particular”.26 Se, ademais, “a tradição é de natureza lingüística”,27 ahermenêutica adquire universalidade para Gadamer. Ele radicaliza a universalidadesustentando que “o ser que pode ser compreendido é linguagem”.28 Parece,desse modo, que a comunicação é o novo referencial para a filosofia. Com Gadamer,fortalece-se a impressão de uma tradição lingüisticamente mediada, que é a premissapara a compreensão do presente e para a ação contextualmente vinculada.

São várias as sugestões que aparecem no esboço deste capítulo. Em umprimeiro plano, em contraposição a uma razão que não buscava criticar as suaspróprias premissas – expondo, pois, sua inerente metafísica – a hermenêuticaincita a finitude do homem e a sua temporalidade como condição da compreen-são. A ênfase no particular fomenta um novo olhar para o pensamento. É umarazão que quer se fazer situada. Quer-se, na verdade, “superar as formas domi-nantes do pensamento e abrir as portas para a aparição do particular na filoso-fia”.29 E, com base em uma hermenêutica que promova o resgate da tradição –como se verifica em Gadamer –, quer-se poder sugerir uma jurisprudência decunho valorativo nos moldes formulados por Larenz.

Em um segundo plano, por procurar enfatizar a experiência como condiçãodo compreender, a phrónesis aparece como um parâmetro ético apto a normatizarcondutas de acordo com um telos que supera a mera individualidade, atingindo ascondições gerais da comunidade. Como orientação para a ação “situacionalmente”adequada, a phrónesis faz retomar a “ontologia teleológica” que havia sido relegadapelo formalismo ético kantiano, reforçando, por conseguinte, a dependência dacomunidade e do contexto no processo compreensivo. Ocorre, assim, uma “substan-cialização” da ética e dos pressupostos normativos que passam a acompanhar osdesideratos da historicidade da qual não se pode apartar, uma vez que “ahistoricidade da existência ‘já sempre’ é, ou seja, é precedente e insuperável”.30

Por fim, a ênfase na tradição e na phrónesis abre as portas para a comunica-ção. Há uma vinculação da compreensão com a linguagem, com o outro dodiálogo. Nas palavras de Günther, “a consciência histórica se refere ao ‘outrohistórico’. Gadamer descreve esse processo segundo o modelo de colocar-se nasituação e no horizonte do outro”.31 Enfim, com a hermenêutica gadameriana, aênfase na tradição lingüisticamente mediada sugere a pressuposição, mesmoque fictícia,32 da possibilidade do “diálogo” e de uma “comunidade de comuni-

26 Ibidem, p. 468. Tradução livre.27 Ibidem, p. 475. Tradução livre.28 Ibidem, p. 567. Tradução livre.29 MILOVIC, Miroslav. Comunidade da Diferença. op. cit., p. 100.30 GÜNTHER, Klaus. Teoria da Argumentação no Direito e na Moral. Justificação e Aplicação.op. cit., p. 288.31 Ibidem, p. 291.32 Ibidem, p. 291.

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cação” como condições da reflexão sobre a tradição e, portanto, sobre a própriaautocompreensão.

Não faltam motivos para que a hermenêutica, em especial aquela desenvolvi-da por Gadamer – até porque ele estuda a hermenêutica diretamente vinculadaaos textos –, tenha sido uma importante fonte de apoio para as novas investiga-ções jusfilosóficas. Mesmo que essas premissas (primazia dada à historicidade eà temporalidade como condições constitutivas do ser; orientação normativa definalidade comunitária da phrónesis aristotélica; inserção do outro do diálogo noprocesso do compreender) tenham sido desenvolvidas consoante novas aquisi-ções e outros pressupostos que a filosofia do direito promoveu, elasconsubstanciaram argumentos aptos a promover uma radicalização renovadorada racionalidade jurídica, então em crise derivada de sua “compreensão absolu-ta de uma teoria”.33 A hermenêutica, desse modo, tornou-se a ponte necessáriapara a transição da filosofia da consciência para a filosofia da linguagem. Elaenfraqueceu o primado da teoria frente à práxis, a partir da inserção dos pressu-postos teóricos nos contextos das práticas vitais, e fez superar a clássica dicotomiasujeito-objeto mediante a inclusão do outro do discurso.

A filosofia do direito, por conseguinte, se renova com base em uma filosofiaque quer incitar o particular e expor a práxis como condição da compreensão.Por ser uma filosofia que busca ser prática, os horizontes possíveis de inserçãodos princípios e valores no processo de compreensão do Direito, conforme orealizou Larenz, conseguem se impor como um novo paradigma que supera umaracionalidade cuja não-discussão das premissas acabou por estabelecer umanova metafísica.34 E o repúdio à metafísica – pelo enfoque do ser em sua finitudee temporalidade – foi o objeto que a hermenêutica primou por consagrar.

A relação entre a hermenêutica da tradição e o Direito, portanto, é o focoprincipal deste capítulo. É um entrosamento, como já adiantado, que se realizapor argumentos que conseguiram facilmente ser adaptados ao contexto das dis-cussões jusfilosóficas e que fomentaram uma radicalização da racionalidade ju-rídica. Assim, em contraposição a uma razão que quis se afastar do contextopara exprimir sua pureza lógico-metodológica, a ênfase hermenêutica da com-preensão salienta o contexto como condição de uma nova racionalidade. É umapercepção do fenômeno jurídico que parte de uma autocompreensão, da inser-ção do intérprete em um círculo compreensivo, que não tem apenas cunhometodológico, porém, sim, ontológico.35

Essa discussão, porém, não pode se limitar a apenas debater as mudanças deconcepção no pensamento jusfilosófico. Se o objeto deste livro é a exposição de

33 HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-Metafísico. op.cit., p. 42.34 Vide o capítulo anterior.35 GÜNTHER, Klaus. Teoria da Argumentação no Direito e na Moral. Justificação e Aplicação.op. cit., p. 290.

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Juliano
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ensejar

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distintas metafísicas que contaminaram o pensamento jurídico e as conseqüênciasque essa irreflexão trouxe para a validade normativa, é necessário também con-trapor à hermenêutica – com ênfase em Gadamer, pois foi um dos autores dahermenêutica filosófica que mais influenciaram o pensamento jusfilosófico – suasinsuficiências. Afinal, se, por um lado, a ênfase no contexto, na finitude e natemporalidade do homem torna possível um novo projeto de racionalidade, poroutro, apresenta-se, novamente, o problema da validade normativa. Para Casta-nheira Neves, “não será também num ‘princípio hermenêutico’ nos termos emque o vimos referido, nessa sua tão aberta indeterminação, que lograremos obtero fundamento dessa validade”.36 A preocupação da hermenêutica gadamerianaé, sobretudo, o “problema da possibilidade da compreensão” 37 e, não, o “pro-blema da validade”.38 A tradição, aliás, aparece como uma limitação doquestionamento da validade normativa. Há, portanto, de se radicalizar a própriatradição; há de se defender, para uma discussão sobre a validade normativa, umareflexão crítica que a hermenêutica da tradição não pode oferecer.

Nesse aspecto, “a hermenêutica terá de enfrentar-se com a crítica da ideolo-gia”.39 E Habermas aparece nesse debate para incitar que a tradiçãolingüisticamente mediada precisa ser reconhecida em suas possíveis distorções,consoante interesses que, estrategicamente, dificultam o diálogo e ofuscam qual-quer pressuposto “emancipatório”. O círculo hermenêutico, em que se compre-ende a historicidade do ser, não chega a “questionar a validade do tradicional ea romper o horizonte, que em cada situação nos é novamente traçado pelocírculo da compreensão”,40 o que faz os pressupostos normativos validados pelatradição se colocarem em um patamar acima do juízo. Por outro lado, parecehaver, na teoria gadameriana, uma assimilação da validade à facticidade, o queconfirma a tese de que há um problema de fundamentação41 em sua hermenêutica.Não sem motivo, Klaus Günther dedica um excurso de sua obra Teoria da Argu-mentação no Direito e na Moral42 para, no final, expor que “Gadamer interpretaquestões de fundamentação, que fazem parte da esfera da reciprocidade, comoquestões de aplicação”.43 Dessa discussão, surge a seguinte pergunta: será que

36 NEVES, A. Castanheira. A Crise Actual da Filosofia do Direito no Contexto da Crise Global daFilosofia. Tópicos para a Possibilidade de uma Reflexiva Reabilitação. op.cit., p. 67.37 Ibidem, p. 62.38 Ibidem, p. 62.39 Ibidem, p. 63.40 GÜNTHER, Klaus. Teoria da Argumentação no Direito e na Moral. Justificação e Aplicação.op. cit., p. 290.41 Vide NEVES, A. Castanheira. A Crise Actual da Filosofia do Direito no Contexto da CriseGlobal da Filosofia. Tópicos para a Possibilidade de uma Reflexiva Reabilitação. op. cit., p. 63.42 No original, Der Sinn für Angemessenheit: Anwendungsdiskurse in Moral und Recht.43 GÜNTHER, Klaus. Teoria da Argumentação no Direito e na Moral. Justificação e Aplicação.op. cit., p. 291.

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se consegue, na teoria de Gadamer, conciliar o particularismo do contexto histó-rico com o universalismo do discurso?44

Há, por isso, um rico debate a ser travado, que deverá ser complementadopela discussão dos limites da jurisprudência de orientação valorativa defendidapor Karl Larenz. Enfim, o objeto deste capítulo é expor, dos limites dahermenêutica gadameriana aos limites – também derivados de sua influência noDireito – da jurisprudência de orientação valorativa de Larenz, um novo olharsobre a validação normativa. É um olhar que se apresenta crítico, porque: 1)busca promover a reflexão que se posiciona acima de uma tradiçãolingüisticamente mediada, expondo que a linguagem também pode ser estrategi-camente motivada; 2) reconhece a tensão entre facticidade e validade sem que,nessa relação, se faça a assimilação de ambos, superando, por conseguinte, oproblema de fundamentação que a hermenêutica da tradição não resolveu; 3)procura a universalidade de validação a partir de uma “teoria do discurso” dematriz “pragmática”, mostrando que há de se compreender a linguagem em umpatamar que promova ações comunicativas de cunho emancipatório, a partir dareflexão rigorosa sobre as instituições que a tradição apresenta.

O itinerário que será seguido apresentará, paulatinamente, cada um dos pres-supostos que se farão necessários para a compreensão do objeto deste capítulo.O debate deverá ser aberto – até porque é a base da afirmação da tradição nateoria gadameriana – pelo estudo sintético da phrónesis aristotélica. O intuito éapenas analisar as linhas gerais da ética substancializada por Aristóteles paraverificar nela um “exemplo de aplicação contextualmente vinculada” 45 e, pois,sua possível integração ao propósito de destranscendentalizar o normativo e in-seri-lo no contexto de práticas vitais. A teoria hermenêutica da tradiçãocomplementa esse estudo, promovendo uma ruptura com a “filosofia da consci-ência” a partir da afirmação da “historicidade do ser” e indicando, por conse-guinte, a linguagem como o maior foco expressivo da tradição. Como aduz Milovic,ao analisar o projeto hermenêutico, “em lugar de conhecer, temos de compreen-der”.46 Com a teoria gadameriana, o círculo hermenêutico aparece como a pos-sibilidade do compreender e como manifestação da pressuposição da experiên-cia de vida na ação singularmente considerada. Em Larenz, o círculo compreensivoaparece no processo de elaboração de uma jurisprudência de orientação valorativa,em que os princípios e valores são continuamente rememorados no plano dafacticidade do Direito, em sua aplicação contextualmente vinculada.

Com base nessa discussão, torna-se possível realizar a investigação a respeitodos liames entre a teoria hermenêutica da tradição e o pensamento de Karl

44 Vide MILOVIC, Miroslav. Comunidade da Diferença. op.cit., p. 79.45 GÜNTHER, Klaus. Teoria da Argumentação no Direito e na Moral. Justificação e Aplicação.op. cit., p. 253.46 MILOVIC, Miroslav. Comunidade da Diferença. op.cit., p. 99.

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Larenz, enfatizando, por conseqüência, quais são os limites que se podem proje-tar da crítica à hermenêutica da tradição sobre o projeto de uma jurisprudênciade cunho valorativo. De forma mais enfática, torna-se viável verificar em quemedida se pode compreender a tensão entre validade e facticidade na adequa-ção da hermenêutica da tradição ao contexto dos debates jusfilosóficos de orien-tação valorativa. E, desse diálogo, permite-se promover uma crítica ainda maisradical que a efetuada pela hermenêutica no âmbito da racionalidade. Ao invésde renovar a tradição como novo enfoque filosófico para criticar uma racionalidadeque quis se fazer universal pelo obscurecimento dos contextos de práticas vitais,intenciona-se promover uma racionalidade que visa a superar a tradição ao mos-trar as possibilidades de interação estratégica por ela promovidas. A tradição,nesse novo enfoque, assume, segundo Giddens, o papel de “contrabalança àsintrínsecas possibilidades de desacordo que a comunicação enseja”.47 À tradi-ção, contrapõe-se o conceito de “mundo da vida”, que se caracteriza como um“maciço pano de fundo consensual”,48 que deve, porém, ser minorado peloavanço de uma razão comunicativa: “a expansão da racionalidade, pois, presu-me a diminuição da influência do mundo da vida”.49

A discussão, desse modo, inicia-se com as seguintes perguntas: até que pontoa tradição promove as condições da crítica? Em termos mais jurídicos, em quemedida uma jurisprudência pautada em valores e princípios tradicionalmenteconcebidos favorece a discussão a respeito da tensão entre validade e facticidade?São diversos os caminhos que podem ser tomados. A partir do estudo da phrónesis,deseja-se alcançar as possibilidades de um novo olhar sobre o normativo e umadiscussão a respeito da reflexão rigorosa sobre os pressupostos em que se assentao pensamento jurídico. A partir da crítica à hermenêutica da tradição, quer-se in-citar a sua superação por intermédio de uma concepção de racionalidade que faz,da comunicação, o novo parâmetro para transformar as instituições sociais domi-nadas por processos de integração estratégica. É esse o debate que ora se inicia.

3.2. A PHRONESIS ARISTOTÉLICA:A ÉTICA DA TRADIÇÃO E A ÊNFASE NA FACTICIDADE

Em sua obra Verdade e Método, Hans-Georg Gadamer insere a ética aristotélicano contexto dos debates hermenêuticos. Em um tópico denominado “A AtualidadeHermenêutica de Aristóteles”, afirma que, “junto à phrónesis, a virtude daconsideração reflexiva, aparece a compreensão”.50 Por estar diretamente vinculada

47 GIDDENS, Anthony. “Reason Without Revolution?” In: BERNSTEIN, Richard J. (Org.).Habermas and Modernity. Cambridge: The MIT Press. 1985, p. 101. Tradução livre.48 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade. Vol. I. op. cit., p.40.49 GIDDENS. “Reason Without Revolution?”. op. cit., p. 101. Tradução livre.50 GADAMER, Hans-Georg. Verdad y Método. op. cit., p. 394. Tradução livre.

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ao contexto em que se realiza a ação, a phrónesis restabelece a substancializaçãoda ética e a insere dentro de uma finalidade (telos) em que a intersubjetividadeé estabelecida por meio da idéia de comunidade: a vida boa (felicidade), que ételos da phrónesis e corresponde à realização da essência humana, “não pode seradquirida, nem realizada independentemente de outros seres humanos”.51 A“vida boa” consagra, desse modo, o essencialismo da filosofia aristotélica noâmbito da ética, ao incitar que a finalidade almejada por cada indivíduo deve seidentificar com aquela da pólis.

A primeira importante constatação a respeito da phrónesis, portanto, é que elaé expressão muito maior do que a de uma ética individual; ela, na verdade,estabelece os parâmetros para a política.52 Aristóteles apresenta como phrónesis acapacidade de “deliberar bem acerca do que é bom e conveniente para si mes-mo, não em relação a um aspecto particular (...), e sim acerca das espécies decoisas que nos levam a viver bem de um modo geral”.53 A vida boa, dessa forma,estabelece uma finalidade que faz prevalecer o sentido de comunidade nos pres-supostos da ação singularmente considerada. E, nesse pressuposto ético aristotélico,Gadamer encontra a chave para poder concluir que “agir de modo moralmentecorreto em uma situação concreta pressupõe, nesse caso, a interpretação ade-quada de predeterminadas formas comunitárias de vida e de práticas ensaia-das”.54 Nitidamente, percebe-se que Gadamer vai buscar, na phrónesis, um fun-damento ético apto a validar a sua afirmação da tradição.

Phrónesis torna-se o conceito-chave dessa ética, o qual designa o fato de aconcretização de conteúdos normativos ser efetuada de maneira atualizante, refe-rindo-se às múltiplas perístases de uma situação de ação. Ele precisará suportar osmomentos que, para uma ética pós-convencional, não coincidem. O fim almejávelda vida boa carecerá da concretização em uma situação de ação, cujos sinaiscaracterísticos especiais deverão ser examinados no momento da seleção do meioadequado. A seleção de sinais característicos relevantes dependerá da finalidadecarecedora de concretização, enquanto que, inversamente, a concretização dafinalidade se orientará pelas circunstâncias especiais da situação e pelos corres-pondentes modos de agir. Assim, a ação virtuosa, orientada pelo entendimentoético, dá continuidade a um modo de vida em situações isoladas.55

51 GÜNTHER, Klaus. Teoria da Argumentação no Direito e na Moral. Justificação e Aplicação.op. cit., p. 266.52 Vide GÜNTHER, Klaus. Teoria da Argumentação no Direito e na Moral. Justificação e Aplica-ção. op. cit., p. 268.53 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. 1140 a. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 4ª ed.,2001, p. 116,54 GÜNTHER, Klaus. Teoria da Argumentação no Direito e na Moral. Justificação e Aplicação.op. cit., p. 267.55 Ibidem, p. 267.

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O resgate da phrónesis cumpre, por conseguinte, a proposta de validar aconsciência histórica como premissa para a compreensão da ação humana. Ex-põe, ademais, o entendimento de que “compreender é, então, um caso especialda aplicação de algo geral a uma situação concreta e determinada”.56 A compre-ensão, ao seguir tais parâmetros, portanto, torna visível a relevância do particu-lar no processo hermenêutico, porém, o conforma com base em uma pressupo-sição generalista promovida pela tradição. A razão, por sua vez, realiza a funçãode atualizar essa pressuposição aos casos singulares. Desse modo, seguir a razãoprática é o caminho que aproxima o homem de sua essência. A realização davida boa (felicidade) nada mais é do que a expressão teleológica do essencialismofilosófico aplicado ao âmbito do prático. É ela a exteriorização da própria essên-cia nos contextos de práticas vitais.57 Há, pois, de se “viver de tal modo que amelhor maneira corresponda à execução da parte anímica racional, portanto, àessência, bem máximo almejável pelo ser humano”.58

Como guia da atividade humana, a phrónesis estabelece os parâmetros daação a partir de uma referência ontológica59 e revela o peso da tradição nomomento da escolha racional. É um parâmetro que orientará a deliberaçãopropriamente humana de modo a alcançar o “justo meio” nas diferentes moda-lidades de virtudes morais. E o justo meio nada mais é do que o resultadodesejado pela mediação realizada entre os pressupostos normativos que a phrónesisfornece e a situação individualmente considerada. Em síntese, a phrónesis fazcom que aquele “que atua deva ver a situação concreta à luz do que se exigedele no geral”.60 É um esclarecimento da experiência histórica no processo deaplicação: ela ajuda “a consciência moral a se ilustrar a si mesma graças a esteesclarecimento das grandes características dos diversos fenômenos”.61

Ao contrário de uma ética objetiva que retira seu universalismo sem se repor-tar diretamente às situações contingenciais de referência, a ética aristotélica ins-tiga um constante contato com a realidade. Uma vez que, para Gadamer, “oproblema hermenêutico se aparta evidentemente de um saber puro, superadodo ser”,62 o critério não-objetivo da ética aristotélica se coaduna com o projetode uma hermenêutica da tradição. A phrónesis indica, nesse contexto, o própriocomplexo de virtudes que foram sendo adquiridas setorialmente de modo habi-

56 GADAMER, Hans-Georg. Verdad y Método. op. cit., p. 383. Tradução livre.57 GÜNTHER, Klaus. Teoria da Argumentação no Direito e na Moral. Justificação e Aplicação.op. cit., p. 257.58 Ibidem, p. 256.59 Nesse aspecto, percebe-se o liame entre a teoria e a prática no pensamento filosófico aristotélico.Vide o primeiro capítulo, a respeito da metafísica da natureza, para maiores detalhamentossobre esse entrosamento.60 GADAMER, Hans-Georg. Verdad y Método. op. cit., p. 394. Tradução livre.61 Ibidem, p. 385.62 Ibidem, p. 385.

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tual e que conformaram a consciência histórica de modo a almejar a essênciahumana como finalidade pressuposta. E, já que não se pode, ao contrário daepisteme, obter segurança na concretização desses fundamentos normativos, asituação contingencial aparece como condição para a mediação que a phrónesispromove entre o geral e o particular. O círculo hermenêutico aparece para com-provar que “só se pode aplicar algo quando se possui previamente”.63

Essas conclusões mostram que a phrónesis exige previamente uma “habituação”das virtudes realizadas nos contextos das práticas vitais; ela conforma o sabermoral de modo a superar os objetivos particulares e alcançar uma projeçãogeneralista. Como elucida Günther, “ela só se tornará eficiente se o agente játiver um ethos, portanto, se nas suas aspirações ele já estiver orientado em dire-ção a fins éticos”.64 Por haver essa mediação entre o geral e o particular – ocírculo que a hermenêutica da tradição propõe –, a reflexão aparece como umcaminho necessário para a ponderação do que poderá ser objeto de transforma-ção mediante a ação humana. Mas essa reflexão exige a habituação – que não éesquecida65 – de forma que se torne um componente do ethos66 e se volte para arealização da vida boa.

É exatamente nessa adequação de meios a fins que se pode verificar adistinção entre o saber moral e o saber técnico preconizada por Aristóteles.Enquanto o saber técnico se volta para finalidades particulares, o saber moralvisa a alcançar a vida boa e, pois, um sentido de comunidade que lhe é inerente.Mais do que a projeção da finalidade almejada, entretanto, a grande distinçãoestá na impossibilidade do “aprendizado dogmático” do saber moral. Comobem sustenta Gadamer, “a relação entre meios e fins não é aqui tal que possase dispor com anterioridade de um conhecimento dos meios idôneos, e issopela razão de que o saber do fim idôneo não é, a seu turno, mero objeto deconhecimento. Não existe uma determinação, a priori, para a orientação davida correta como tal”.67

O saber moral é adquirido consoante uma habituação realizada em concreto,diferindo-se radicalmente de uma ética estabelecida a priori com intuitouniversalista. Ele deriva da experiência e, apenas desse modo, conseguirá fazercom que “o telos em uma situação concreta seja estabelecido de modo corre-to”.68 O saber moral deve ser considerado uma “qualidade que leva à verdade

63 Ibidem, p. 388.64 GÜNTHER, Klaus. Teoria da Argumentação no Direito e na Moral. Justificação e Aplicação.op. cit., p. 260.65 GADAMER, Hans-Georg. Verdad y Método. op. cit., p. 388. Tradução livre.66 Vide GÜNTHER, Klaus. Teoria da Argumentação no Direito e na Moral. Justificação e Aplica-ção. op. cit., p. 260.67 GADAMER, Hans-Georg. Verdad y Método. op. cit., p. 393. Tradução livre.68 GÜNTHER, Klaus. Teoria da Argumentação no Direito e na Moral. Justificação e Aplicação.op. cit., p. 263.

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no tocante às ações relacionadas com os bens humanos”,69 que, por sua vez, nãopodem ser estabelecidas previamente pela própria característica variável70 dascoisas humanas. “As mesmas determinações aristotélicas da phrónesis resultamflutuantes, pois este saber se atribui ora ao fim, ora ao meio para o fim”.71 Ocampo da phrónesis não pode partir de um plano metódico-analítico, mas de umaperspectiva tópica72, alcançada de modo opinativo sobre o meio em que se de-senvolve. “As reflexões diretivas não se utilizam de um saber definitivo, contudode opiniões, uma vez que conseguimos ter conhecimento do modificável apenasde modo opinativo”.73

A ética aristotélica, pelo caráter contingencial e, por conseguinte, variáveldas ações humanas, em primeiro lugar, toma, como premissa, uma teleologia decunho essencialista manifesta no conceito de vida boa e uma adequação dessaorientação à situação particular considerada; em segundo lugar, seu funciona-mento se dá por intermédio de uma habituação (experiência)74 de práticas virtu-

69 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. 1140 b. op.cit., p. 117.70 Vide ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. 1140 a, b. op. cit., pp. 116/117.71 GADAMER, Hans-Georg. Verdade y Método. op. cit., p. 393. Tradução livre.72 A diferença essencial do plano tópico (também chamado “dialético”) em relação ao analíticoestá na própria matéria que fundamenta o raciocínio. O raciocínio analítico parte de premissasverdadeiras, imediatas, evidentes e necessárias. Já o raciocínio dialético tem como essência apresença de opiniões verossímeis e aceitas em um determinado lugar e momento. Viehwegassim o aborda:“Os raciocínios dialéticos se distinguem dos demais pela índole de suas premissas, o que écaracterístico deste modo de pensar. Aristóteles faz, pois, uma classificação, ao menos nos funda-mentos, dos raciocínios de acordo com a índole de suas premissas. Raciocínios dialéticos sãoaqueles que têm como premissas opiniões acreditadas e verossímeis, que devem contar comaceitação (endoxa). “Endoxa” – diz Aristóteles – são proposições que “parecem verdadeiras atodos ou à maior parte ou aos mais conhecidos e famosos” (Top. I, 1, 5, 3). Aristóteles parte,pois, da afirmação de que a Tópica tem por objeto raciocínios que derivam de premissas queparecem verdadeiras com base em uma opinião reconhecida” ( VIEHWEG, Theodor. Tópica eJurisprudência. op. cit., p. 25).O objetivo da dialética é encontrar, portanto, por intermédio da argumentação, o plausível ou orazoável, uma parcela da probabilidade que será aceita por determinado auditório, partindo,para tanto, de opiniões (doxa). Nas palavras de Aristóteles, “o raciocínio dialético é aquele queprocede a partir de opiniões” (Tópicos 1, 1, 100 a, 30). Enquanto a dialética trabalha comopiniões, a ciência, para Aristóteles, trabalha com verdades necessárias. O provável, que decor-re de opiniões, pode ser compreendido como aquilo que não é provado de modo apodítico ouque não pode sê-lo. “A dialética deveria, portanto, ser considerada, seguindo essa perspectiva,como uma ´lógica do provável´, enquanto que os Analíticos, teoria da demonstração rigorosa,formulariam uma ‘lógica da prova’” (GARDEIL, A. Apud: LE BLONDE, J. M. Logique etMéthode Chez Aristote. Paris: Libraire Philosophique J. Vrin, 3a. ed., 1973, p. 242. Traduçãolivre). Conforme Aristóteles, a dialética se dirige para as seguintes finalidades:“A dialética é útil para três fins: o exercício, as conversações, a ciência filosófica. Que ela é útilcomo forma de ginástica mental, é evidente à primeira vista: de posse desse método nós pode-remos mais facilmente abordar qualquer matéria que nos for proposta. – Ela é útil para asconversações: se nós tivermos considerado as opiniões comuns, nós saberemos apresentar aos

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osas de modo a se tornarem um ethos voltado ao telos pressuposto, promovendo,desse modo, a escolha racional adequada para a ação no caso particular.

Uma vez entendido que a phrónesis não se relaciona apenas com o universal,mas “deve também levar em conta os particulares, pois o discernimento é práti-co e a prática se relaciona com os particulares”75 e tem nítido contato com aação76 – explicitando-se, dessa forma, seu caráter normativo –, verifica-se que areflexão por ela promovida, embora conforme o telos de perseguir a vida boa, serealiza no imediatismo consciente de cada situação determinada. “O que com-pleta o saber moral é, pois, um saber do que é em cada caso (...)”.77 A referênciaao contexto abre o leque para o processo compreensivo preconizado por Gadamer,uma vez que, “junto a phrónesis, a virtude da consideração reflexiva, aparece acompreensão”.78 Essa compreensão, por sua vez, é “uma modificação da virtu-de do saber moral”.79

É nesse debate que a teoria gadameriana, com fundamento na phrónesis,consegue projetar a “inclusão do outro”. Afinal, a phrónesis indica o caminhopara alcançar a essência humana, em que se concretiza a felicidade e, alémdisso, expõe que o homem é dotado de raciocínio prático e de linguagem. Porser uma capacidade que se obtém mediante a experiência de cada um em distin-tas situações particulares e de seu relacionamento com outros da comunidade –no intuito de aperfeiçoar a natureza humana a fim de torná-la uma “segundanatureza, que seja refletida e eticamente dominada”80 –, a phrónesis promove as

nossos interlocutores, como ponto de partida, não opiniões que lhe são estranhas, mas suaspróprias convicções, e nós afastaremos todo argumento de sua parte que não nos pareça bemformulado. – A dialética, enfim, é útil para as ciências filosóficas: sendo, graças a ela, capaz deapresentar aporias, nós veremos mais facilmente o que é verdadeiro e o que é falso. No mais, elaé útil no que concerne aos primeiros princípios de cada ciência. Com efeito, é impossívelraciocinar sobre eles se fundando nos princípios que são próprios da ciência em questão, umavez que os primeiros princípios são princípios de todas as ciências. Deve-se, pois, remontar atéeles, servindo-se das opiniões sobre cada um deles. E isso, sobretudo, pertence propriamente àdialética: ela se aplica à busca dos princípios de todos os métodos” (ARISTOTELES, L´Organon.Les Topiques, I, 2, 25, 101b. Paris: Libraire Philosophique J. Vrin, 1a ed, 1962. Traduçãolivre).73 GÜNTHER, Klaus. Teoria da Argumentação no Direito e na Moral. Justificação e Aplicação.op. cit., p. 261.74 Gadamer esclarece que “o saber moral contém por si mesmo uma certa classe de experiência(...), que é seguramente a classe fundamental da experiência, frente a qual toda outra experiên-cia é desnaturalizada por não dizer naturalizada” (GADAMER, Hans-Georg. Verdade y Método.op. cit., p. 394. Tradução livre).75 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. 1141 b. op. cit., p. 119.76 Ibidem, 1141 b, p. 119.77 GADAMER, Hans-Georg. Verdade y Método. op. cit., p. 393. Tradução livre.78 Ibidem, p. 394.79 Ibidem, p. 394.80 GÜNTHER, Klaus. Teoria da Argumentação no Direito e na Moral. Justificação e Aplicação.op. cit., p. 264.

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condições para a consagração de uma ética tomada pelo pressuposto de umatradição lingüisticamente mediada. Gadamer afirma que o homem experimenta-do “somente alcançará a compreensão adequada da atuação de outro na medi-da em que satisfaça o seguinte pressuposto: que o mesmo deseje também o justo,que se encontre, portanto, em uma relação de comunidade com o outro”.81 Emsíntese, a atividade compreensiva exige a pressuposição concretamente verificávelde uma comunidade de comunicação: “Fala-se de compreensão quando umconseguiu se deslocar por completo, em seu juízo, para a plena concreção dasituação em que tem de atuar o outro”.82

O círculo hermenêutico, que confere à phronesis a atualidade de um exemplode “aplicação contextualmente vinculada”,83 suscita que a compreensão somen-te se efetiva por meio de um processo de autocompreensão e de uma diretareferência contextual de inclusão alheia: “o homem compreensivo não sabe nemjulga a partir de uma situação externa e não afetada, senão a partir de umapertença específica que o une com o outro, de maneira que é afetado com ele epensa com ele”.84 Desse modo, o telos da phrónesis, ao se identificar com umpressuposto ontológico de afirmação da essência humana e, por conseqüência,expor a linguagem como característica natural, consolida o caráter essencial-mente político85 do homem.

Aristóteles sustentava que o “homem é o único entre os animais que tem odom de fala” 86 e, por fazer uso da linguagem, torna-se membro de uma comu-nidade. É como se existisse, em sua natureza, o impulso para essa participaçãocomunitária.87 As premissas para a constatação de que a ética aristotélica podeser empregada como modelo para a hermenêutica da tradição, com essas consi-derações, são ampliadas: a vida boa somente é alcançada quando se está emdireta relação com o outro. E a hermenêutica gadameriana tem como principalcaracterística o interesse em explicitar que o homem é marcado por uma tradi-ção, está inserido em um âmbito pré-compreensivo que gera os requisitos para odesenvolvimento da linguagem, que, por sua vez, possibilita a “reinterpretaçãoconstitutiva” da realidade.

O processo compreensivo que a phrónesis provoca, uma vez adequado àhermenêutica da tradição, desse modo, vai muito além de uma simples relação

81 GADAMER, Hans-Georg. Verdad y Método. op. cit., p. 395 Tradução livre. Grifo não presen-te no original.82 Ibidem, p. 394. Tradução livre.83 Vide GÜNTHER, Klaus. Teoria da Argumentação no Direito e na Moral. Justificação e Aplica-ção. op. cit., p. 253.84 GADAMER, Hans-Georg. Verdad y Método. op. cit., p. 395. Tradução livre.85 Vide ARISTÓTELES. Política. 1253 a. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 3ª ed., 1997,p. 15.86 Ibidem, 1253 a, p. 15,87 Ibidem, 1253 a, p. 16.

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geral-particular. Gadamer é explícito ao sustentar que o processo autocompreensivoé exigência para a compreensão. A aplicação não se restringe ao “relacionar algogeral e prévio com uma situação particular. O intérprete que se confronta comuma tradição intenta aplicá-la a si mesmo”.88 O círculo hermenêutico é, por isso,ontológico; ele representa a própria existência humana. Além do mais, é umaexistência que se desenrola mediante a linguagem. É ela que faz superar o monó-logo da filosofia da consciência. A inserção da linguagem e do diálogo comocondições da possibilidade compreensiva faz com que a relação sujeito-objetoseja desmistificada, revelando suas insuficiências. A inserção do particular a par-tir da autocompreensão, mesmo que articulada com a pressuposição teleológicade cunho essencialista da vida boa, é o reflexo de que o ser aparece no processohermenêutico, não estando mais enclausurado em uma direta referência objetivaou subjetiva. A presença fenomenológica no pensamento gadameriano faz o pro-cesso compreensivo ser sempre uma constante descoberta, pois transmuda aconsciência coisificada ao plano ativo.

A linguagem permite sustentar essa constante descoberta e promover aautocompreensão como condição constitutiva do mundo. Ao homem “não lhe édado querer ignorar a si mesmo e a situação hermenêutica na qual se encon-tra”.89 A essa ignorância é contraposto o esclarecimento promovido pela phrónesis,uma vez que atualiza a tradição lingüisticamente estabelecida e fomenta a capta-ção das distintas situações concretas para a orientação da ação singularmenteconsiderada. A hermenêutica da tradição, ao resgatar o conceito aristotélico daphrónesis, portanto, reforça a inserção do indivíduo em instituições sociais.

É nesse aspecto que há de ser verificado o plano da phrónesis no pensamentogadameriano: ela estabelece os parâmetros para a consolidação do círculohermenêutico e favorece a projeção da intersubjetividade sobre o pensamentofilosófico a partir de sua ênfase comunitária. Para tanto, promove a exigência deuma limitação da autonomia individual pela referência às instituições. Ocorre,assim, uma possível identificação da phrónesis com a hermenêutica.90 Nas corre-tas palavras de Günther, na phrónesis “Gadamer encontra a grande analogiapara o método hermenêutico da auto-afirmação concreta do intérprete, o qual,dentro da consciência dos efeitos históricos, define o seu lugar frente à experiên-cia situacional de um texto retransmitido pela tradição”.91 Como base para acompreensão política e institucional, como também para a autocompreensão noprocesso histórico a phrónesis ressurge como a abertura para um novo mundonão desvendado pela filosofia da consciência dominada pelo formalismo ético

88 GADAMER, Hans-Georg. Verdad y Método. op. cit., p. 396. Tradução livre.89 Ibidem, p. 396.90 Vide GÜNTHER, Klaus. Teoria da Argumentação no Direito e na Moral. Justificação e Aplica-ção. op. cit., p. 270.91 Ibidem, p. 270.

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Juliano
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histórico, a(inserir vírgula)

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kantiano – o mundo da autodescoberta no processo constitutivo da tradiçãolingüisticamente mediada e da projeção das instituições sobre as condições daexistência. É, pois, o pressuposto de atualização racionalmente motivador queGadamer precisava para ancorar sua hermenêutica da tradição.

3.3. A HERMENÊUTICA DA TRADIÇÃO E AS CONDIÇÕES DA CRÍTICA: OS PLANOS DAVALIDADE E DA FACTICIDADE

3.3.1. A COMPREENSÃO E A TRADIÇÃO LINGÜISTICAMENTE MEDIADA

Na introdução de sua obra Verdade e Método, Hans-Georg Gadamer sintetizao que, adiante, seria defendido em seu trabalho: “A experiência da tradiçãohistórica vai fundamentalmente mais além do que nela é investigável. Ela não ésomente verdade e não verdade no sentido no qual decide a crítica histórica; elaproporciona sempre verdade, uma verdade em que se tem de conseguir partici-par”.92 Ao cientificismo que afastou a historicidade do processo metodológico,Gadamer contrapõe a necessidade de autotransparência93 da tradição lingüisti-camente mediada no caminho investigativo; contra a exteriorização da históriacomo objeto analítico, Gadamer sustenta a historicidade do ser como a aberturapara a descoberta da verdade: a tradição lingüisticamente mediada é o pressu-posto do qual não se pode apartar para se conseguir a compreensão e autocom-preensão constitutiva da própria existência. A pressuposição da finitude humanae, sobretudo, a aceitação de que a pré-compreensão é requisito para a compreen-são são o caminho para a abertura existencial:

Não é somente que a tradição histórica e a ordem de vida natural formem aunidade do mundo em que vivemos como homens; o modo como nos experimen-tamos uns aos outros e como experimentamos as tradições históricas e as condi-ções naturais de nossa existência e de nosso mundo forma um autêntico universohermenêutico com respeito ao qual nós não estamos enclausurados entre barrei-ras insuperáveis, senão abertos a ele.94

A tradição, desse modo, sustenta a abertura para uma nova perspectiva filo-sófica: ela revela que a constituição da realidade somente é possível quando sepassa a aceitar que, em qualquer investigação humana, necessariamente a cons-ciência histórica tem de ser validada. A abrangência da teoria gadameriana é,pois, muito maior do que um simples desenvolvimento a respeito das ciências doespírito. No prólogo de sua segunda edição, Gadamer, em resposta a seus críti-cos, é enfático ao aludir que sua hermenêutica visa a alcançar o “conjunto daexperiência humana do mundo e da práxis vital” 95 e, portanto, é uma “pergunta

92 GADAMER, Hans-Georg. Verdad y Método. op. cit., p. 25. Tradução livre.93 Vide GADAMER, Hans-Georg. Verdad y Método. op. cit., p. 26. Tradução livre.94 Ibidem, p. 26.95 Ibidem, p. 12.

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[de] como é possível a compreensão”.96 A phrónesis, nesse contexto, como antesdesenvolvido, aparece como pressuposto de atualização racionalmente motivadorda tradição para se lograr promover tanto a autocompreensão, como a compre-ensão do mundo.

Para superar a filosofia da consciência – e, por isso também, o interesse emresgatar a ética aristotélica –, Gadamer97 defende, na esteira do pensamentoheideggeriano, que “a compreensão não é um dos modos de comportamento dosujeito, senão o modo de ser do próprio ser-aí”.98 A compreensão é uma posturaexistencial99 e exige a percepção fenomenológica de que a consciência não podeser reificada,100 mas encarada como um ato de contínua atualização. Ahermenêutica, nas palavras de Gadamer, “designa o caráter fundamentalmentemóvel do ser-aí, que constitui sua finitude e sua especificidade e que, portanto,abarca o conjunto de sua experiência do mundo”.101 O grande lema que normal-mente é associado à teoria gadameriana é que “toda compreensão exigeautocompreensão” e isso se deve, muito claramente, ao intento de exortar aparticipação constitutiva que não se resume a uma relação sujeito-objeto, em queprevalece o monólogo. O “ser-aí” constitui-se a partir do entrosamento derivado

96 Ibidem p. 12.97 GADAMER, Hans-Georg. Verdad y Método. op. cit., p. 12. Tradução livre.98 Heidegger, radicalizando a filosofia kantiana, propõe o ser-aí como forma de superar a reificaçãoque a filosofia da consciência promoveu ao enfatizar o sujeito do conhecimento. Ao invés de umsujeito que conhece, Heidegger aduz, na esteira do pensamento fenomenológico, que a consci-ência não é uma coisa, uma estrutura, mas um ato em constante atualização. Porém, ao invés defalar do sujeito, que ainda há no pensamento da fenomenologia de Husserl, Heidegger refere-se ao ser-aí, em que o ser aparece na dimensão da finitude, do tempo. Não se afirma mais osujeito que conhece o objeto, mas o ser-aí que aparece no tempo, na particular dimensãoexistencial que se abre para a compreensão. Para maior esclarecimento, vide HEIDEGGER,Martin. Ser e Tempo. op.cit.., 2002.99 Mais adiante, na crítica à hermenêutica da tradição, será feito um estudo mais pormenorizadoa respeito da influência da hermenêutica heideggeriana no projeto gadameriano, expondo aspossíveis mudanças de perspectiva que a ênfase na tradição trouxe ao pensamento hermenêutico,como também seus limites.100 Como analisado quando estudada a filosofia transcendental kantiana, houve um contenta-mento com os fatos da mente, que não foram objeto de maior investigação. As categorias, asfaculdades mentais foram apenas apresentadas como condição para o conhecimento. Com afenomenologia de Husserl, todavia, a consciência deixa de ser encarada como uma estruturapara conhecer os objetos, uma vez que “a consciência não é uma coisa, mas um ato, e os objetosintencionais são os objetos tais como vividos nestes atos” (MILOVIC, Miroslav. Comunidade daDiferença. Rio de Janeiro: Relume Dumará; Ijuí, RS: Unijuí, 2004, p. 48). Ocorre assim uma“colocação entre parênteses” (HUSSERL, Edmund. Meditações Cartesianas. São Paulo: Masdras,2001, p. 38) do mundo objetivo, uma vez que não mais se enfatiza uma relação sujeito-objetoconstitutiva, mas, sim, uma consciência ativa que se estrutura não a partir dos objetos, mas dosfenômenos tal como aparecem para ela.101 GADAMER, Hans-Georg. Verdad y Método. op. cit., p. 12.

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da participação comunitária, em que o intérprete se compreende como inseridoem uma tradição lingüisticamente mediada.

Em síntese, o diálogo aparece como postura existencial que não pode serafastada, que tem de ser pressuposta como condição da inserção do homem emsua história. Afinal, para Gadamer, “toda compreensão não é nunca um compor-tamento subjetivo em relação a um ‘objeto’ dado, senão que pertence a históriaefetual, isto é, ao ser do que se compreende”.102 Toda compreensão, que mediaentre o passado e o presente, em que a phrónesis aparece como justificativa de“aplicação contextualmente vinculada”,103 é um saber localizado na experiênciado intérprete, que ultrapassa a individualidade a partir da pressuposição comuni-tária e da tradição lingüisticamente mediada como condições do agir.

A tradição, as instituições, enfim, a pré-compreensão adquirida historicamen-te é condição para o processo compreensivo. Ela não é apenas um dado exteriorque pode ser analisado como um objeto de investigação experimental. Ela é amanifestação da “história efetual” a que sempre o intérprete se referirá para a suaprópria autocompreensão. Para Gadamer, a história efetual “designa, por umlado, o produzido pelo curso da história e a consciência determinada por ela e,por outro lado, a consciência deste mesmo ter-se produzido e estar determina-do”.104 É a percepção de que o compreender é sempre uma auto-referênciamediada pela história efetual, que, por sua vez, promove o círculo hermenêutico.A premissa da história efetual destaca a finitude do homem e mostra que o diálo-go é sua expressão mais evidente. A linguagem, assim, é a forma mais particularde consagração da universalidade da hermenêutica para Gadamer. Compreen-der é autocompreensão sustentada por uma tradição lingüisticamente mediada.

Ao afirmar que o “ser que pode ser compreendido é linguagem”,105 Gadamer,afinal, aduz que tudo o que se compreende é, em si, uma produção de umalinguagem. A compreensão do mundo e a própria autocompreensão desenvol-vem-se mediante uma premissa dialógica. Seu projeto pode, então, ser sintetiza-do em uma tentativa de buscar efetuar uma crítica reflexiva às possibilidades dacompreensão vinculada a uma pressuposição lingüística. A razão desenrola-semediante a comunicação e é ela que nos fornece as condições da percepção deque o homem é um ser histórico por excelência. A tradição, portanto, uma vezmediada pela linguagem, sustenta o caráter auto-reflexivo da própria historicidade.O diálogo, afinal, é crítico na medida em que, além de motivar a participação dointérprete, o condiciona a um entrosamento intersubjetivo para a validação datradição. Com a consolidação da intersubjetividade, declara-se que o pensamen-to é inevitavelmente tomado por pressupostos historicamente estabelecidos, mas

102 Ibidem, p. 14. Tradução livre103 GÜNTHER, Klaus. Teoria da Argumentação no Direito e na Moral. Justificação e Aplicação.op. cit., p. 253.104 GADAMER, Hans-Georg. Verdad y Método. op. cit., p. 16. Tradução livre105 Ibidem, p. 567. Tradução livre.

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que são significativamente reconstituídos pelo intérprete no círculo hermenêutico.A intersubjetividade constitutiva faz com que a autocompreensão e a compreen-são sejam um projeto possível.

A “linguagem como meio da experiência hermenêutica” 106 é o aspecto queinstiga o caráter universalista da hermenêutica. A linguagem cumpre esse inten-to ao ser qualificada como “o meio universal no qual se realiza a compreensãomesma”.107 Não há compreensão sem autocompreensão, assim como não háautocompreensão sem a tradição lingüisticamente mediada. O mundo gira emtorno de uma premissa comunicativa, que possibilita o acordo108 sobre o que étransmitido historicamente e explicita a impossibilidade de objetivar essa trans-missão.109 A comunicação é, por excelência, retórica110 e, portanto, sugere umdebate argumentativo em torno das premissas que sustentam a tradição.

Por isso, todo processo hermenêutico deve se desenvolver de modo situacional:ele depende de uma compreensão obtida por intermédio dos jogos lingüísticos,sem que isso, por outro lado, impeça sua projeção universalista. Em resumo,embora “a consciência da história efetual [seja], em primeiro lugar, consciênciada situação hermenêutica” 111 e, portanto, haja sempre de se referir às perístases112

para sua compreensão, a linguagem, tomada como expressão mais significativada tradição, adquire expressão maior do que o contexto promove. Para Gadamer,“o que é objeto do conhecimento e de seus enunciados se encontra (...) abarca-do sempre pelo horizonte do mundo da linguagem”.113 Desse modo, a existênciapressupõe a utilização da linguagem que permita identificar e revelar o objeto doconhecimento. A razão, por conseqüência, é necessariamente discursiva; elatem de pressupor que a fundamentação se dá por intermédio dos “jogoslingüísticos” para se alcançar a verdade.114

106 Ibidem, p. 461. Tradução livre.107 Ibidem, p. 467. Tradução livre.108 GADAMER, Hans-Georg. Verdad y Método. op. cit., p. 463. Tradução livre109 Gadamer critica a objetividade histórica na medida em que visa a afastar o intérprete de seuspreconceitos. Para ele, o “objetivismo histórico que se remete a seu próprio método críticooculta a ligação efetiva na qual se encontra a mesma consciência histórica” (Ibidem., p. 371.Tradução livre)110 Segundo Gadamer: “Agora consideraremos que todo este processo é lingüístico. Não em vãoa verdadeira problemática da compreensão e o intento de dominá-la pela arte – o tema dahermenêutica – pertence tradicionalmente ao âmbito da gramática e da retórica. A linguagem éo meio em que se realiza o acordo dos interlocutores e o consenso sobre a coisa” (GADAMER,Hans-Georg. Verdad y Método. op. cit., p. 462. Tradução livre).111 Ibidem, p. 372. Tradução livre.112 “Perístases” podem ser definidas como o conjunto dos dados particulares de uma situaçãodeterminada, em que se levam em consideração todos os caracteres de espaço e tempo. São osdetalhes que se podem inferir de uma discussão situacionalmente referida.113 GADAMER, Hans-Georg. Verdad y Método. op. cit., p. 539. Tradução livre.114 Gadamer sustenta que:“A melhor maneira de determinar o que significa a verdade será também aqui recorrer ao

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Com a linguagem, Gadamer fecha sua teoria hermenêutica da tradição. Aafirmação da intersubjetividade, por meio dos jogos lingüísticos, demonstra que averdade não é mais obtida por uma relação sujeito-objeto, mesmo que a subjeti-vidade afirmada seja constitutiva. A verdade é intersubjetiva; assume que, paraum objeto ser compreendido, a linguagem deva ser pressuposta para poderidentificá-lo. Em síntese, a existência tem de ser lingüisticamente mediada. Acomunicação como premissa do compreender sustenta que a hermenêutica datradição, por mais que vise ao esclarecimento a partir das perístases relevantes,pode ser universal. A linguagem, afinal, é universal. “Pois a relação humana como mundo é lingüística e, portanto, compreensível em geral e por princípio. Nestesentido, a hermenêutica é, como já temos visto, um aspecto universal da filosofiae não só a base metodológica das chamadas ciências do espírito”.115 Todo ser quese compreende há de ter capacidade de se comunicar e todo objeto que quer sefazer compreendido necessita ser linguisticamente mediado116.

A dinâmica do compreender faz-se pela própria dinâmica da linguagem. “Oser histórico quer dizer não se esgotar nunca no saber-se”.117 A tradição é móvele a atualização realizada pelo círculo hermenêutico projeta novos horizontes.118

A phrónesis aparece, nesse patamar, para despertar o entendimento de que, emtoda ação, há a pressuposição da tradição lingüisticamente mediada, que, porsua vez, se funde com o presente a fim de projetar novos possíveis horizontes. Areflexão que Gadamer empreende em relação à tradição é notória ao afirmarque “o horizonte do presente está em um processo de constante formação, namedida em que estamos obrigados a pôr à prova constantemente todos os nossospré-juízos”.119 E esse pôr à prova os pré-juízos exige a linguagem.

É, dessa forma, pela consagração da intersubjetividade, que se pode efetuara crítica do passado e seu reflexo no presente; é por meio da comunicação que

conceito de “jogo”: o modo como se desprega o peso das coisas que nos saem ao encontro nacompreensão é, a seu turno, um processo lingüístico, até certo ponto um jogo com palavras quecircunscrevem o que um quer dizer. São, em verdade, “jogos lingüísticos” o que nos permiteaceder à compreensão do mundo em qualidade de aprendizes – e quando cessaríamos de sê-lo?” (GADAMER, Hans-Georg. Verdad y Método. op. cit., p. 584. Tradução livre).115 Ibidem, pp. 568-569. Tradução livre.116 A respeito da universalidade da linguagem, Gadamer esclarece:“O modo de ser especulativo da linguagem mostra assim seu significado ontológico universal. Oque acede à linguagem é, desde logo, algo distinto da palavra falada mesma. Mas a palavra sóé palavra em virtude do que nela acede à linguagem. Só está aí em seu próprio ser sensível parase cancelar no dito. E o inverso, o que acede à linguagem, não é tampouco algo dado comanterioridade à linguagem e independente dela, senão que recebe na palavra sua própria deter-minação” (GADAMER, Hans-Georg. Verdad y Método. op. cit., p. 568. Tradução livre).117 Ibidem, p. 372. Tradução livre.118 Para Gadamer, horizonte é o “âmbito de visão que abarca e encerra tudo o que é visíveldesde um determinado ponto” (GADAMER, Hans-Georg. Verdad y Método. op. cit., p. 372.Tradução livre).119 Ibidem, p. 376. Tradução livre.

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se consegue fomentar a mobilidade da compreensão. A comunicação, ademais,é inclusiva e participativa: o intérprete insere-se no processo do compreender.Como já aludido, compreender é também autocompreensão, o que possibilitaconcluir que a reflexão é também um pôr à prova a historicidade pessoal. “Partedessa prova é o encontro com o passado e a compreensão da tradição da qualnós mesmos procedemos. (...) Compreender é sempre o processo de fusão dessespressupostos horizontes para si mesmo”.120 E quando se passa para o plano daaplicação dessa “fusão”, a phrónesis aparece como um importante exemplo de“aplicação contextualmente vinculada”121, cuja problemática será adianteanalisada.

Essa fusão pressupõe uma tradição lingüisticamente mediada. O antever dehorizontes possíveis conjugado com o passado é o trajeto que explicita que aconsciência é “um ato” – e, não, “uma estrutura” – em contínua atualização.“Na realização da compreensão tem lugar uma verdadeira fusão horizônticaque, com o projeto do horizonte histórico, leva a cabo simultaneamente suasuperação”.122 É, nesse âmbito, que se pode entender a história efetual, cujatarefa é a “realização controlada dessa fusão”,123 de forma que possa esclarecerque caminhos tomar para que o ato decorra de uma postura autocompreensivae, por conseguinte, compreensiva de seu tempo. É, também nesse contexto, quese pode perceber que a tradição é o fundamento de validade para Gadamer. Éa tradição lingüisticamente mediada que sustenta todo processo compreensivo etodos os conceitos por ele empregados.

Com a tradição e a fusão que se efetiva no processo compreensivo, Gadamerbusca reabilitar a força do precedente, do passado em contraposição à objetivaçãoempreendida pelo Iluminismo (Aufklärung). Nesse propósito, demonstra a rele-vância dos preconceitos como condição do compreender: “se se quer fazer justi-ça ao modo de ser finito e histórico do homem é necessário levar a cabo umadrástica reabilitação do conceito de preconceito e reconhecer que existem pre-conceitos legítimos”.124 Sem preconceito, não se constitui a historicidade do ser;sem historicidade, não há compreensão do mundo. Por isso, deve-se afirmar ainevitabilidade do preconceito e sua função positiva no processo hermenêutico.Para Gadamer, como bem salienta Paul Ricoeur, o preconceito “não é o pólooposto de uma razão sem pressuposição, mas um componente do compreender,vinculado ao caráter historicamente finito do ser humano”.125 Ele, em síntese, écondição existencial do compreender.

120 Ibidem, pp. 376/377. Tradução livre.121 GÜNTHER, Klaus. Teoria da Argumentação no Direito e na Moral. Justificação e Aplicação.op. cit., p. 253.122 GADAMER, Hans-Georg. Verdad y Método. op. cit., p. 377. Tradução livre.123 Ibidem, p. 377. Tradução livre.124 Ibidem, p. 344. Tradução livre.125 RICOEUR, Paul. Interpretação e Ideologias. RJ: Ed. Francisco Alves, 1983, p. 111.

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Por outro lado, tem-se de aceitar a autoridade, que não mais pode ser conce-bida como uma oposição à razão126 e tampouco uma expressão da dominação.Para Gadamer, autoridade “nada tem a ver com obediência senão com conheci-mento”.127 É, sobretudo, o reconhecimento. Ela “repousa sobre o reconhecimen-to e, em conseqüência, sobre uma ação da razão mesma que, tendo cuidado deseus próprios limites, atribui ao outro uma perspectiva mais acertada”.128 Sualegitimação, pois, não se dá pela obediência, mas pela própria tradição em queela se afirma. A autoridade é legítima quando a tradição lingüisticamente media-da é valida. Nas palavras de Ricoeur, “Gadamer orientava inevitavelmente afilosofia hermenêutica para a reabilitação do preconceito e para a apologia datradição e da autoridade”.129 E é por meio dessa apologia que se torna possívelentender até que ponto a tradição pode ser concebida como a premissa de todocompreender e quais são os limites que precisam ser impostos a essa reabilitação.

A constante presença do pressuposto tradicional, tomado sob uma premissaintersubjetiva capaz de universalizar a hermenêutica, incita, portanto, que ohomem jamais se afaste de sua história. A reflexão é sempre limitada pela finitudeem que se insere o homem. “O que pode se submeter à reflexão está semprelimitado frente ao que vem determinado por uma cunhagem anterior”.130 Antesda reflexão, há a finitude da qual o homem não pode se apartar. Ricoeur, aoanalisar a obra de Gadamer, salienta que “a reabilitação do preconceito, daautoridade, da tradição será, pois, dirigida contra o reino da subjetividade, valedizer, contra os critérios da reflexividade. A história me precede e antecipa-se aminha reflexão. Pertenço à história antes de me pertencer”.131

É, de fato, a consagração do precedente como condição para o presente eprojeção do futuro. O consenso histórico, a tradição lingüisticamente mediadaconstituem o ser. Sem historicidade, o círculo hermenêutico não se sustenta e aprópria existência, que se estabelece nessa fusão reflexiva do passado com opresente, perde seu sentido. Viver é uma experiência com o passado e suamanifestação refletida no presente. É um passado, porém, que faz do esclareci-mento uma vinculação com a consciência histórica. “O que compreende estásempre de algum modo falando em favor de si mesmo”.132

Não há, por conseqüência, reflexão emancipatória sem a aceitação dessacondição existencial. A consciência histórica é a premissa da transparência quefomenta a liberdade. Gadamer esclarece que “a tradição, que não é defesa doanterior, senão configuração continuada da vida moral e social em geral, repou-

126 GADAMER, Hans-Georg. Verdad y Método. op. cit., p. 346. Tradução livre.127 Ibidem, p. 347. Tradução livre.128 Ibidem, p. 347. Tradução livre.129 RICOEUR, Paul. Interpretação e Ideologias. op. cit., p. 105.130 GADAMER, Hans-Georg. Verdad y Método. op. cit., p. 664. Tradução livre.131 RICOEUR, Paul. Interpretação e Ideologias. op. cit., p. 108.132 GADAMER, Hans-Georg. Verdad y Método. op. cit., p. 660. Tradução livre.

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sa sempre sobre um fazer consciente que se assume em liberdade”.133 Queliberdade, porém, se pode vislumbrar a partir do reconhecimento da tradição noprocesso compreensivo? Será que a crítica se sustenta pela apologia da tradiçãolingüisticamente mediada como condição do compreender? Há muito ainda oque investigar. Pode ser que haja outro olhar a respeito da hermenêutica datradição; pode ser que se consiga ir além da reflexão hermenêutica que defendea tradição como premissa do compreender. Mesmo assumindo a finitude do sercomo condição inevitável do processo hermenêutico, é possível que a tradiçãoseja mais radicalizada, expondo os próprios limites de sua apresentação comoum dado histórico pressuposto. É o que será debatido no tópico seguinte.

3.3.2. A CRÍTICA À HERMENÊUTICA DA TRADIÇÃO

No epílogo de sua obra Verdade e Método, Gadamer faz uma provocaçãomuito interessante para um debate mais cauteloso. Em meio à discussão sobreuma possível reflexão emancipatória,134 escreve: “seria uma reflexão vazia eadialética, se se intentasse pensar a idéia de uma reflexão total, em que a socieda-de se elevaria a uma autopossessão definitiva, livre e racional, liberando-se dasataduras tradicionais e construindo novas formas vinculantes de validez”.135 Maisadiante, no intuito de elucidar que o ter consciência da historicidade é o caminhodo esclarecimento, salienta que “o fazer consciente das relações de domínio vi-gentes desempenha sempre uma função emancipatória”.136 Por outro lado, JürgenHabermas, em sua obra Dialética e Hermenêutica, desenvolve os limites da críticareflexiva empreendida pela hermenêutica da tradição, expondo que a emancipa-ção – embora, evidentemente, tenha de pressupor a historicidade e finitude dohomem – exige mais do que o círculo compreensivo propõe.

O interesse pela emancipação, que, para Habermas, é o que norteia a críticareflexiva e, por conseqüência, fomenta ações de promoção da racionalidadecomunicativa,137 requer mais do que pensar em ser a tradição lingüisticamentemediada o baluarte de validação dos conceitos e ações humanas. Ao invés deassumir a tradição como condição do compreender, entendê-la como uma idéiaregulativa da ação humana; ao invés de pressupor a tradição como a origem dacompreensão, radicalizá-la pela exposição de seu possível cunho ideológico. Emsíntese, Habermas quer mostrar que a tradição, a pré-compreensão, as institui-ções a que se reporta o homem podem ser ideológicas. E, como crítico da ideo-

133 Ibidem, p. 664. Tradução livre.134 Ibidem, p. 664. Tradução livre.135 Ibidem, p. 664. Tradução livre.136 Ibidem, p. 664. Tradução livre.137 No capítulo seguinte, será mais bem desenvolvida a filosofia habermasiana pautada pelateoria do agir comunicativo.

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logia,138 aceitar o passado, mesmo que seja atualizado de modo reflexivo, nãopode ser o modelo para se pensar a emancipação.

A apologia da tradição, como bem salientou Ricoeur,139 faz com que se obscu-reça o papel da reflexão no processo compreensivo. Habermas enfatiza que“Gadamer avalia mal a força da reflexão que se desenvolve no compreender”.140

Isso porque ele parte da premissa do consenso histórico obtido como condição dacompreensão sem que se faça a devida correlação de forças ideológicas nesseprocesso. Gadamer salienta que “qualquer práxis social – e verdadeiramentetambém a revolucionária – seria impensável sem a função da retórica”.141 Porém,o próprio consenso pode ser estrategicamente voltado para a manutenção dasmesmas estruturas, sem, por conseguinte, se projetar qualquer propósitoemancipatório.

Não se nega, com isso, o papel do diálogo no esclarecimento, obviamente. Ateoria habermasiana é também de matriz intersubjetiva, mas, ao invés de resga-tar a retórica e, assim, partir do consenso alcançado, ela quer investigar osinteresses existentes em torno da comunicação. Se, por um lado, há ações quepromovem uma expansão do diálogo na sociedade e, pois, projetam o caminhoemancipatório possível, por outro, há ações que desembocam em uma limitaçãoda comunicação de modo a sustentar a repetição do mesmo. Por isso, Habermascontrapõe, ao preconceito gadameriano, o interesse, que consegue melhor abar-car a reflexão sobre as premissas normativas do agir e, ao mesmo tempo, radicalizara própria noção de preconceito.

Como investigado anteriormente, para Gadamer, há de se pressupor a exis-tência de preconceitos legítimos,142 como também defender a sua inevitabilidadee sua função positiva no processo hermenêutico. Mas até que ponto se podeacreditar na legitimidade dos preconceitos? Habermas aduz que “Gadamer trans-forma a intelecção da estrutura preconceitual da compreensão numa reabilitaçãodo preconceito como tal. Mas segue da inevitabilidade da antecipação hermenêutica,

138 O conceito de “ideologia” para Habermas será mais densamente compreendido no próximocapítulo, em que se discutem as bases de sua Teoria do Agir Comunicativo. De qualquer modo,a ideologia, para esse autor, está diretamente relacionada com o desenvolvimento social queofusca as possibilidades de manifestação e expansão do agir comunicativo. Ao invés do diálogo,estrutura-se o monólogo e, por conseqüência, se deixa de realizar a crítica rigorosa dos pressu-postos que guiam a ação humana. O homem, sem a compreensão das próprias referências queguiam sua conduta, é dominado pela perspectiva ideológica que não visa a discutir suas premis-sas, mas apenas apresentá-las como uma verdade a ser “aceita” sem maiores questionamentos.A ideologia, portanto, decorre do obscurecimento do agir comunicativo e do avanço de açõesvoltadas para a manutenção de interesses estratégicos e instrumentais.139 Vide RICOEUR, Paul. Interpretação e Ideologias. op. cit., p. 105.140 HABERMAS, Jürgen. Dialética e Hermenêutica. Para uma Critica da Hermenêutica deGadamer. op.cit., p. 16.141 GADAMER, Hans-Georg. Verdad y Método. op. cit., p. 661. Tradução livre.142 Ibidem, p. 344. Tradução livre.

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eo ipso, que existem preconceitos legítimos”?143 Parece que a hermenêutica datradição não fomenta a possibilidade de desmascarar os interesses que dificultamo caminho para uma emancipação possível por intermédio de ações promotorasda razão comunicativa. Na verdade, ela acredita que a emancipação se dá, sim-plesmente, pela compreensão humana de sua finitude e de sua inserção nessemundo histórico. Para Gadamer, “emancipação como resolução de coações me-diante a consciência (...) é uma proposição muito relativa”.144 Assim, se, paraHabermas, a tarefa filosófica caminha para uma emancipação alcançada pelapromoção do agir comunicativo e pelo desvendamento dos interesses que dificul-tam esse itinerário, para Gadamer, a “emancipação” ocorre pela autocompreensãoe compreensão da tradição lingüisticamente mediada.

Não há, na teoria de Gadamer, uma verdadeira crítica da coação social pro-movida pela tradição. Para ele, “pode-se resolver o caráter coativo das distorçõescomunicativas mediante a ilustração e fazendo conscientes as coisas”.145 Umprimeiro passo, portanto, é dado, na teoria gadameriana, na procura pelo escla-recimento de seu tempo como medida para a resolução de coações sociais.Porém, a resolução é um retorno à condição de ser vinculado às próprias institui-ções da sociedade. Gadamer declara que, uma vez tornadas conscientes as coi-sas, “não se consegue senão reintroduzir o distorcido no mundo de normas dasociedade”.146 É um retorno às estruturas, mesmo que, nesse retorno, interessesque limitam a comunicação continuem prevalecendo. Em última instância, ahermenêutica da tradição não é uma teoria da emancipação possível, mas umespelho das condições da compreensão sem a devida ênfase nos interesses quepodem estar presentes na sociedade.

Segundo Gadamer, “há formas de domínio que podem se experimentar nela[vida sócio-histórica] como coerção e torná-las conscientes implica que se des-perte a necessidade de uma nova identidade com o geral”.147 A consciência,mesmo que se volte para o contexto, é também uma identidade com o geral.Parece que um certo essencialismo aparece, na teoria gadameriana, mesmo queela, pela derivação da hermenêutica heideggeriana, vise a combatê-lo. A ênfasena tradição lingüisticamente mediada e a tentativa de elevar a consciência histó-rica à compreensão do presente, paradoxalmente, ao não se analisarem os pos-síveis interesses que lhe estão por trás, podem configurar uma ideologia. E, maisdo que uma ideologia, podem significar um retorno do essencialismo filosóficopor uma constante necessidade de identificação com o geral.

143 HABERMAS, Jürgen. Dialética e Hermenêutica. Para uma Critica da Hermenêutica deGadamer. op.cit., p. 16.144 GADAMER, Hans-Georg. Verdad y Método. op. cit., p. 664. Tradução livre145 Ibidem, p. 664. Tradução livre.146 Ibidem, p. 644. Tradução livre.147 Ibidem, p. 644. Tradução livre.

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Pela identificação com o geral e a não-promoção do debate efetivamentecrítico a respeito dos interesses tradicionalmente presentes, o conceito de autori-dade também é suavizado. Decorrência da necessidade de expor a relevânciados preconceitos para o processo hermenêutico, Gadamer tenta retirar o autori-tário da verdadeira autoridade ao incitar, como antes aludido, que ela “repousasobre o reconhecimento”.148 E, como a legitimação da autoridade se dá pela suaadequação à tradição, novamente parece que se consagra uma constância dosefeitos, uma repetição do mesmo, embora atualizado pelas perístases relevantes.“A identificação com o modelo produz a autoridade, só através da qual é possí-vel uma interiorização de normas e, portanto, a sedimentação de preconcei-tos”.149 É um aprendizado que se perpetua e que se legitima, porque está emconsonância com o geral, com a “identificação com o modelo”.150

148 Ibidem, p. 347. Tradução livre.149 HABERMAS, Jürgen. Dialética e Hermenêutica. Para uma Critica da Hermenêutica deGadamer. op. cit., pp. 16-17.150 Ibidem, p. 16.151 É interessante verificar que, nesse aspecto, há uma ampla distinção com a hermenêuticaheideggeriana. Embora seja considerado um seguidor de vários pressupostos filosóficos trabalha-dos por Heidegger, Gadamer parece ainda se manter no plano ôntico ao trazer, com tamanhaênfase, a tradição como condição do compreender. Heidegger, ao contrário, quer sair dessanoção de pensar o mundo sob a perspectiva da tradição, que é por ele denominada de ôntico e naqual não há renovação. Buscar na tradição respostas é uma metafísica, pois a relação explícitacom o mundo se mantém, repetindo as mesmas estruturas, o mesmo essencialismo. O seu livroSer e Tempo é exatamente a tentativa de buscar o mundo ontológico, em que o ser aparece notempo, não sendo esquecido pelas estruturas da tradição. Ele quer mostrar a possibilidade do serse abrir no tempo, que é uma atitude de cada um. A compreensão, por sua vez, não parte de umarelação com o mundo, mas do aparecimento do ser-aí. Tal como Husserl, ele quer mostrar que asessências da tradição clássica e moderna (metafísica clássica e metafísica da subjetividade) nãomais devem prevalecer. O ser deve aparecer e, assim, permitir pensar o particular.Muito mais do que em uma relação com os objetos, a consciência se faz nas condições dasignificação. Logo a relação sujeito-objeto é superada pela percepção de que o ser não é nemobjetivo, nem subjetivo. Como na fenomenologia, a consciência não é uma estrutura, mas osfluxos, para os quais interessam os fenômenos tal como eles aparecem. Consciência não éreflexão sobre as coisas, mas um ato. Daí talvez a sua relação com a pós-modernidade paraalguns autores: pensar o ser fora das estruturas da reflexão da filosofia como conhecimento.Heidegger radicaliza ainda mais a fenomenologia ao inserir o ser-aí na discussão, retirando aexpressão sujeito ainda presente em Husserl e deixando claro que o interesse da filosofia é sevoltar para o particular, ao contrário do essencialismo da tradição filosófica. Heidegger querencontrar o ser que ainda não se via na fenomenologia de Husserl (o que ele denominou deinsuficiência ontológica da fenomenologia). O seu desejo é mostrar que o ser só aparece e nãohá lugares privilegiados para pensá-lo, como o pensamento, a razão, a essência, o sujeito. É oser sem as essências que há de ser encontrado (o que não ocorreu quando se focou na metafísicaclássica, no sujeito ou na ciência). É desligar o ser de uma reificação. Para Heidegger – e aquié importante – não há nada dado para ser interpretado. “O mundo das possibilidades é que seinterpreta. A hermenêutica é o poder ser e não relacionar-se com o ser” (MILOVIC, Miroslav.Anotações). O círculo hermenêutico é exatamente o momento em que o ser humano se compre-

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Ao enfatizar a tradição, os preconceitos, a autoridade no processo do compre-ender, Gadamer voltou-se para o mundo, para uma explícita consideração dahermenêutica a partir de uma referência às coisas.151 E, ao centralizar suahermenêutica em um resgate da pré-compreensão como condição do compreen-der, obscureceu-se o caminho da crítica. É necessário radicalizar o reconheci-mento da autoridade, como também o entendimento da finitude humana. É pre-ciso colocar a crítica acima da pré-compreensão. A crítica enclausurada no passado,mesmo que contextualizada no presente, sustenta o conservadorismo. Ela, noentanto, precisa estar acima das coações geradas pelas instituições. Como aduzRicoeur, “um abismo separa, assim, o projeto hermenêutico, que coloca a tradi-ção assumida acima do juízo, e o projeto crítico, que situa a reflexão acima dacoação institucionalizada”.152 A crítica, mesmo que pressuponha a historicidadedo ser, não necessariamente tem de se fechar no mundo da historicidade. Aabertura pode estar em outro patamar; ela pode se encontrar em uma premissanão-coativa. E, com a projeção de um olhar que se faz crítico, porquanto buscasuperar a imanência das estruturas coativas, o conservadorismo pode ser desmas-carado pela antevisão do futuro promovido pela emancipação da linguagem.

A reflexão, para ser rigorosa, portanto, não pode se limitar a tornar transparentea consciência histórica. Para Gadamer, a hermenêutica “tem de refazer o caminhoda fenomenologia do espírito hegeliana enquanto que em toda subjetividade semostra a substancialidade que a determina”.153 Esses termos fazem prever que,para Gadamer, embora a reflexão atualize o passado de modo a se adequar aopresente – e, nesse processo, se realize a autocompreensão –, há o resquício deconsiderar determinante a pré-compreensão, tornando-a, pois, um elemento docírculo hermenêutico muito mais vinculante do que o entendimento habermasianoque diz ser a tradição uma “idéia regulativa”. Substancializar a consciênciahistórica pode não fornecer os subsídios necessários para se contrapor àsreificações institucionais. Validar a autoridade, mediante a consagração de uma

ende não como algo dado, mas como algo possível, como possibilidade. E essa abertura para oser, para sua compreensão, é o que se denomina “autêntico”. O ser pode aparecer – o que podeocorrer com o círculo hermenêutico; ele não é dado.Enfim, hermenêutica é a própria compreensão do ser humano, é como o ser humano entendesua possibilidade. Logo, ao contrário da hermenêutica da tradição, a compreensão não é ligadaao dado, aos textos, à interpretação das estruturas já determinadas. A hermenêutica da interpre-tação dos textos, para Heidegger, não pensa o novo, porque é ligada às estruturas de um mundoque só pensa o dado. O ser tem de ser autêntico, novo – essa é a questão da filosofia paraHeidegger. Conseguir a autenticidade é uma situação contingencial, particular, que aparece. Éa ontologia da finitude: o ser aparece na contingência da vida (pode ou não aparecer), para cadaum (postura existencial). Esse é o sentido da vida: encontrar o ser-aí, entrando no círculohermenêutico e colocando o mundo entre parênteses.Para maiores esclarecimentos, vide HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. op. cit., 2002.152 RICOEUR, Paul. Interpretação e Ideologias. op.cit., p. 124.153 GADAMER, Hans-Georg. Verdad y Método. op. cit., p. 372.

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tradição lingüisticamente mediada, e entendê-la como um reconhecimentoalcançado historicamente podem não promover a crítica rigorosa. Nas palavrasde Habermas, “o substancial do historicamente pré-dado não fica intocado aoser assumido na reflexão. A estrutura preconceitual que se tornou transparentenão pode mais funcionar à maneira de preconceito”.154 O plano da reflexão nãopode, desse modo, se fechar na facticidade; ele deve superar as condições dahistoricidade e mostrar que a emancipação é projetável na medida em que seestabeleçam, no âmbito dos pressupostos normativos, as condições dacomunicação não-coerciva.155

A validade do preconceito, estabelecida pela tradição, permanece, em Gadamer,no mesmo patamar dos preconceitos. A crítica fica enclausurada em seuenvolvimento com os diversos interesses sociais, caso não seja a intersubjetividadelançada ao plano de uma validade não-factual. Em termos mais claros, enquantosubstancializados os preconceitos como condição do compreender e não desen-volvidos como uma idéia regulativa, a hermenêutica da tradição confunde a vali-dade com a facticidade. A intersubjetividade, para uma perspectiva crítica desen-volvida pela pragmática universal da linguagem de Habermas, necessita serentendida como uma orientação não-coerciva do agir. Porém, a hermenêutica datradição, ao tentar estabelecer os preconceitos como condição do compreender,validados no mesmo plano da facticidade, faz com que a intersubjetividade quevalida o conhecimento e a ação seja contaminada pelos interesses tradicionalmen-te concebidos e que estrategicamente dificultam o projeto emancipatório comoreflexão. Se a tradição, para essa hermenêutica, tem de ser pressuposta comocondição validante do compreender, sem que dela se transcenda, a reflexão nãoradicaliza a própria facticidade. Habermas salienta que “a reflexão não trabalhana facticidade das normas transmitidas (überlieferten) sem deixar vestígios”.156 Eos vestígios nada mais são do que a própria incompreensão da ideologia que podeestar presente na pressuposição preconceitual.

154 HABERMAS, Jürgen. Dialética e Hermenêutica. Para uma Critica da Hermenêutica deGadamer. op. cit., p. 17.155 A passagem abaixo de Habermas ilustra o seu posicionamento sobre a limitação ao âmbitoda facticidade:“Que autoridade convirja com conhecimento equivaleria a dizer que a tradição, que atua portrás do educador, legitimaria os preconceitos inculcados aos da nova geração; e que só sepoderiam, então, ratificar na reflexão dos mais jovens. Ao certificar-se da estrutura preconceitual,o jovem tornado maduro transporia o reconhecimento, antes não-livre, da autoridade pessoal dopreceptor, agora refletidamente, para a autoridade objetiva de um contexto de tradição. Só quea autoridade teria permanecido autoridade, pois a reflexão só poderia ter-se movido nos limitesda facticidade do transmitido (Überlieferten). O ato do reconhecimento, que é mediado pelareflexão, não teria alterado nada no fato de que a tradição enquanto tal permaneceu a únicarazão da validade do preconceito (HABERMAS, Dialética e Hermenêutica. Para uma Crítica daHermenêutica de Gadamer. op. cit., p. 17).156 Ibidem, p. 18.

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Para o projeto crítico da ideologia desenvolvido por Habermas, a reflexãorigorosa exige o reconhecimento da comunicação como idéia regulativa, quedeve ser pressuposta como um diálogo sem distorções, livre de coerções para aprojeção emancipatória possível. É uma antecipação que indica ser o plano dareflexão não confundível com o da facticidade, embora dele não se afaste comouma abstração irredutível. Habermas busca expor a constante tensão entre osplanos da validade e da facticidade e é, nesse aspecto, que se encontra a pers-pectiva de uma emancipação que se realiza em concreto. Por isso, a filosofiahabermasiana não desenvolve uma noção de racionalidade absoluta e afastadado contexto. Isso contrariaria os avanços já desenvolvidos pela hermenêutica. Otranscendental pressuposto é “destranscendentalizado” nas práticas de vida.Habermas aduz que “a tensão transcendental entre o ideal e o real, entre odomínio dos inteligíveis e o das aparências se muda para a realidade social dascoordenações de ações e das instituições. É esta transformação da razão ‘pura’em uma razão ‘situada”.157

Ao transpor para o plano das realizações vitais, da realidade de comunica-ção, a transcendência pressuposta regula as possibilidades de agir: ela se“destranscendentaliza”, sem determinar – pois a crítica é sempre almejada – aação contingentemente realizada. Como aduz Milovic, para Habermas, a “con-dição da emancipação não é transcendental, como algo que constitui o pensa-mento científico, mas, sim, ela é condicionada pelo mundo da vida”.158 É ummundo da vida, contudo, que deve ser cada vez mais problematizado pelo avan-ço do agir pautado pela racionalidade comunicativa.

Como um “maciço pano de fundo consensual”,159 o mundo da vida contra-põe-se ao conceito de tradição desenvolvido pela hermenêutica gadameriana aose apresentar não como uma condição insuperável do compreender, porém, sim,como “uma forma condensada e, mesmo assim, deficiente de saber e de po-der”160 que é tomado como uma certeza prévia na reflexão. Uma vez, contudo,que esse saber é utilizado “sem ter consciência de que ele pode ser falso”,161 eleapenas representa uma idéia regulativa que pode ser, a qualquer tempo, levado àcrítica e decomposto “enquanto pano de fundo do mundo da vida”.162 Ele realizao “nivelamento da tensão entre facticidade e validade”.163 Nas palavras de Giddens,“o peso da tradição no mundo da vida age como uma contrabalança às intrínse-

157 HABERMAS, Jürgen. Agir Comunicativo e Razão Destranscendentalizada. op.cit., p. 31.158 MILOVIC, Miroslav. Filosofia da Comunicação. Para uma Crítica da Modernidade. op. cit.,p. 262.159 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade. Vol. I. op. cit., p.40.160 Ibidem, p. 41.161 Ibidem, p. 41.162 Ibidem, p. 41.163 Ibidem, p. 41.

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cas possibilidades de desacordo que a comunicação levanta”.164 Por isso, muitomais do que uma tradição que é condição da reflexão, no pensamentohabermasiano, o que se propõe é que a reflexão rigorosa, voltada para a promo-ção do agir comunicativo, suplante, cada vez mais, o mundo da vida. “Quantomais avançado o processo descentralizador, menos o êxito do consenso é garan-tido pelas crenças pré-estabelecidas ou códigos de conduta. A expansão daracionalidade, portanto, pressupõe a diminuição do mundo da vida”.165

O mundo da vida, desse modo, consegue estabelecer o liame entre os planosda validade e facticidade que a tradição, conforme seu entendimento pelahermenêutica gadameriana, insiste em fechar apenas no âmbito contextual. Porisso, ela precisa ser muito mais do que uma idéia regulativa. Ao não efetuar adistinção entre validade e adequação, como assim denomina Klaus Günther, “ocontexto transmitido pela tradição (...) não se torna apenas ponto de vistainterpretativo em situações, mas adquire um característico pleito de validade”.166

E, por conseqüência, a tradição, que é sobretudo linguagem, acaba por seabsolutizar na medida em que ela é objetivada ao longo da história. “Comoespírito absoluto, ela não pode mais se compreender; ela agora só se faz sentircomo poder absoluto para a consciência objetiva”.167

Nessa dimensão, a hermenêutica da tradição acaba por se voltar para o consensoalcançado e para a manutenção das estruturas já consolidadas historicamente.Por mais que ela insista que “fazer conscientes as relações de domínio vigentesdesempenha sempre uma função emancipatória”,168 o seu trajeto para tanto perma-nece dentro das estruturas de dominação. A reflexão, por conseguinte, é umsempre estar dentro do mesmo modelo. Como Gadamer próprio aduz, “o quepode se submeter à reflexão está sempre limitado frente ao que vem determinadopor uma cunhagem anterior”.169 É essa limitação, tomada por estruturas coercivas,que não satisfaz a uma crítica das instituições. Para Habermas, a hermenêutica“não [reconhece] a força de transcender da reflexão, que também trabalha nela”.170

E, uma vez que não reconhece essa possível transcendência, ela simplifica atensão entre validade e facticidade por meio de uma validação tradicional dos pre-conceitos que dificulta enxergar, na imanência, um projeto de emancipação possível.

164 GIDDENS, Anthony. “Reason Without Revolution?” In: BERNSTEIN, Richard J. (Org).Habermas and Modernity. op.cit., p. 101. Tradução livre.165 Ibidem, p. 101. Tradução livre.166 GÜNTHER, Klaus. Teoria da Argumentação no Direito e na Moral. Justificação e Aplicação.op. cit., p. 282.167 HABERMAS, Jürgen. Dialética e Hermenêutica. Para uma Critica da Hermenêutica deGadamer. op. cit., p. 20.168 GADAMER, Hans-Georg. Verdad y Método. op. cit., p. 664. Tradução livre.169 Ibidem, p. 664. Tradução livre.170 HABERMAS, Jürgen. Dialética e Hermenêutica. Para uma Critica da Hermenêutica deGadamer. op. cit., p. 20.

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A linguagem, que é a expressão mesma da tradição e que constitui a premis-sa de universalização da hermenêutica da tradição, acaba, por decorrência, nãosendo devidamente compreendida. É nesse contexto que a crítica de Habermasà teoria gadameriana alcança a sua maior força: “linguagem também é médiumde dominação e de poder social”.171 Mais adiante, sintetiza o que passa a ser oseu referencial crítico: “a linguagem também é ideológica”.172 Se o plano sefecha na facticidade, se a tradição lingüisticamente mediada não pode ser conce-bida como uma idéia regulativa, os interesses que a linguagem pode representarnão são verdadeiramente desmascarados. A linguagem, se tomada a hermenêuticada tradição, é pressuposta dentro de uma estrutura coerciva. Em termos maisdiretos, a validação no processo compreensivo pode ser ideológica. E, com umapremissa intersubjetiva nesses moldes, a emancipação, entendida como umadecorrência da incitação a um agir orientado ao entendimento, não se sustenta.Afinal, se os interesses estrategicamente motivados podem configurar a premis-sa de validação, por que buscar o entendimento?

A indagação demonstra que, caso a validação se confunda com a adequação,muito mais do que a emancipação, pode se estar, na verdade, promovendoexatamente o seu oposto: a conservação das instituições que dificultam o diálogoesclarecedor da historicidade. É um paradoxo que a hermenêutica da tradiçãonão consegue resolver. Para ela, a emancipação reflexiva, como antes enfatizado,encontra-se, sobretudo, em um estar dentro do modelo, tornando conscientes ahistoricidade e a finitude humana e, por conseguinte, o diálogo aparece como aprópria expressão dessa conscientização. Porém, ele é uma pressuposição con-creta de uma tradição recebida e, não, uma projeção orientadora do agir voltadoao entendimento. Enquanto, pois, na hermenêutica da tradição, o diálogo é umpassado lançado ao presente, na crítica da ideologia, ele é uma premissa para aação promotora de novos contextos comunicativos. É sempre um vir-a-ser; é esseo diferencial que torna o pensamento habermasiano prospectivo, voltado paranovos contextos que radicalizam a tradição recebida. Em síntese, a tradição ésuperada por uma intersubjetividade constitutiva de novos contextos comunica-tivos, isto é, quanto mais a comunicação se difunde e se torna o novo parâmetroracional, menos a tradição mantém a sua força.

Essa é a razão por que a linguagem não pode se confundir com a tradição. Éevidente que o passado transmite linguagem. Porém, a restrição da linguagemao plano factual acaba por gerar uma contradição, caso se deseje conceber umapossível emancipação pautada por premissas comunicativas. Se, por um lado, atradição é, por excelência, linguagem e, por outro, a emancipação reflexiva é umconstante caminho em direção à diminuição do papel da tradição a partir dadifusão de novos contextos comunicativos, como sustentar a identificação de

171 Ibidem, p. 21.172 Ibidem, p. 21.

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ambas? É nesse âmbito que se pode entender que, para um projeto emancipatóriode afirmação da racionalidade comunicativa, há de se transcender o contexto datradição.

Deve-se, portanto, transpor a linguagem para o campo da fundamentaçãoque se expressará na comunidade de comunicação. A validação, por isso, nãodecorre de uma atualização do passado consoante as perístases relevantes docontexto presente. É, na verdade, um constante apontamento para o futuro, emque a premissa idealizada da comunidade de comunicação é projetada da men-te, sempre com referência ao outro, sobre o plano concreto de realização social.

A transcendência prevista não é uma estrutura nos moldes kantianos. É, naverdade, um transcender que se projeta sempre sobre o “destranscender”. As-sim, ao contrário da racionalidade da filosofia da consciência, a razão é“destranscendentalizada”. Por outro lado, todavia, essa “destranscendentalização”não invalida o ato de transcender que é assumido na idéia de comunidade decomunicação. Não é, assim, a afirmação do tornar-se absoluta a consciência,nem tampouco do contexto tradicional. É o reconhecimento da tensão entre osdois planos, tomados a partir de uma ênfase na comunidade de comunicação.

Ao contrário da hermenêutica gadameriana, ao defender que a linguagemdeve transcender o contexto da tradição, a pragmática da linguagem incita apossibilidade de fundamentação na filosofia. A partir da estrutura dupla da co-municação,173 a intersubjetividade é atirada ao âmbito performativo, em que sereivindica a validade de determinado argumento. Por um lado, deve-se enten-der que não se pode escapar da comunidade de comunicação real, responsávelpela compreensão do discurso e do agir. Todavia, não se pode refutar que, emtodo ato de comunicação, há também a pressuposição de uma comunidade decomunicação ideal, a que se atribui a validação do discurso. Em todo agir orien-tado ao entendimento, estão presentes o “expressar-se de modo compreensível;apresentar algo para ser compreendido, fazer-se compreensível; e, finalmente,mutuamente chegar a um entendimento”.174

Não obstante essas suposições se apresentem de modo “contrafático”, elassão imprescindíveis para o agir comunicativo. São as idealizações performativasque estão inevitavelmente presentes no ato discursivo. Há sempre a premissa deque, no diálogo, as pretensões de validade lançadas podem ser justificadas ecompreendidas. Elas se encontram implicitamente presentes no discurso.175 E adistinção entre esses dois planos – a validade, em que a intersubjetividade é

173 Será mais detidamente analisada no capítulo seguinte.174 MILOVIC, Miroslav. Filosofia da Comunicação. Para uma Crítica da Modernidade. op. cit.,p. 200.175 Em todo discurso, Habermas sustenta que estão presentes as pretensões de validade univer-sais de compreensibilidade, verdade, sinceridade e correção. Elas dão o cunho universal àpragmática da linguagem.

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concebida de modo não-coercivo, e a facticidade, em que as pretensões devalidade são compreendidas – sustenta a possibilidade da razão voltada para acomunicação. É nesse aspecto que está o grande alicerce da teoria habermasiana:a consagração da intersubjetividade tomada como parâmetro do dizer e do agirrevela a racionalidade. Milovic salienta que “juntamente com a possibilidade dodiscurso, articula-se a possibilidade da razão; essa se torna a real possibilidadedo discurso mesmo”.176 E, mais adiante, aduz que “a possibilidade da razão éindicada pelas pretensões de validade que constituem a comunicação”.177

Nesse aspecto, nitidamente, há uma radical diferença em relação à hermenêuticada tradição. A razão comunicativa defendida por Habermas apresenta-se a partirde uma constante tensão entre os planos de validação do discurso e sua compre-ensão em concreto. É ela que articula o agir orientado ao entendimento; é ela quetorna possível serem justificáveis as pretensões de validade em sua inserçãocontextual. Por isso, a razão comunicativa é, por excelência, voltada para a açãoe, não, para o simples esclarecimento da tradição lingüisticamente mediada. Aconstante tensão entre validade e facticidade fomenta uma contínua projeção doagir de modo a possibilitar a superação das estruturas coercivas e das instituiçõesque dificultam a comunicação social e, por conseguinte, a compreensão. Diferen-temente da hermenêutica da tradição, a compreensão é, sobretudo, uma supera-ção das estruturas coercivas. Não se limita à reflexão que o círculo hermenêuticopossibilita ao intérprete. Compreender é uma decorrência da radicalização pro-duzida por uma razão que quer suplantar os diferentes interesses que impedem acomunicação social.

Que compreensão se pode defender a partir de uma intersubjetividade con-taminada por interesses que visam à mitigação da comunicação social senãouma compreensão ideológica? Devido a isso, a compreensão não pode simples-mente ser um esclarecimento da consciência histórica e sua manifestação refle-tida no presente, porém, sim, uma contínua superação das estruturas coercivas.A limitação da análise ao plano factual, em que a validação se dá por intermédioda tradição lingüisticamente mediada, não fornece os subsídios para um projetode promoção não-coerciva da comunicação. A coerção, aliás, se torna condiçãodo próprio compreender, já que ela é inegável nas práticas de vida.

Habermas também não nega que, em concreto, diferentes interesses estejamestrategicamente presentes no discurso, porém, ao transpor a validação para umplano não-coercivo, o esclarecimento se transmuda em ação que visa a despertara comunicação social. À facticidade dos interesses estratégicos é contrapostauma facticidade da ação orientada ao entendimento, cuja validade se encontraem um plano não-coercivo. Em síntese, se a validade pode ser estrategicamente

176 MILOVIC, Miroslav. Filosofia da Comunicação. Para uma Crítica da Modernidade. op. cit.,p. 200.177 Ibidem, p. 201,

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condicionada, dificultar a comunicação pode ser um interesse válido. Por outrolado, contudo, se a validade é o campo da reflexão rigorosa, em que a tradiçãotorna-se idéia regulativa e a intersubjetividade é idealizada de modo não-coerci-vo, o agir orientado ao entendimento é a decorrência da “destranscendentalização”da razão, que propõe um projeto de emancipação social pautado pela comunica-ção. A validação em um plano não-coercivo, desse modo, permite antever aemancipação a partir da reflexão rigorosa sobre as estruturas e instituições queagem estrategicamente na sociedade.

A hermenêutica da tradição não realiza, devido a essa limitação que ela pró-pria se impõe, uma investigação crítica do trabalho e da dominação que estãopresentes na comunicação. Habermas salienta que “as forças (Gewalten) não-normativas que se avolumam (para) dentro da linguagem enquanto meta-institui-ção não provêm apenas dos sistemas de dominação, mas também do trabalhosocial”.178 Nesse âmbito, pode-se desenvolver uma forma de coação tomada porinteresses estratégicos que distorcem o entendimento: “neste campo instrumentaldo agir controlado pelo sucesso, organizam-se experiências (Erfahrungen) queevidentemente motivam interpretações lingüísticas e podem alterar modelos trans-mitidos de interpretação, sob coação operacional”.179 E, nesses parâmetros, oconhecimento técnico-científico, que é um tema recorrente nas pesquisas da crí-tica da ideologia trabalhada por Habermas, aparece como uma forma modernade possível promoção da coação fática das circunstâncias naturais na sociedade ea expressão mais significativa das forças produtivas.180

As diferentes formas de coerção presentes socialmente, sob as suas distintasroupagens, provocam uma distorção na compreensão e, por conseguinte, favore-cem a manutenção da dominação e dos interesses estratégicos e instrumentaisentre os homens. É um círculo vicioso que não pode ser diretamente combatido,se aquilo que o valida continua dentro desse mesmo círculo – a tradiçãolingüisticamente mediada permite perpetuar essa lógica das instituições que afe-tam o livre-entendimento. Mantém-se, assim, um círculo vicioso da ideologia.

A ideologia identifica-se, na teoria gadameriana, sobretudo, pela objetivaçãoda tradição sem que seja realizada a crítica de seu próprio potencial validante.Apesar de o círculo hermenêutico ser um processo reflexivo, ele opera dentro dafacticidade. E isso, como antes analisado, não possibilita a reflexão rigorosa.Ricoeur salienta que o cunho ideológico da teoria gadameriana concentra-se emtrês principais traços: “impacto da violência no discurso; dissimulação cuja cha-ve escapa à consciência; e necessidade do desvio para a explicação das cau-sas”.181 Essa investigação não é devidamente desenvolvida por Gadamer. O que

178 HABERMAS, Jürgen. Dialética e Hermenêutica. Para uma Critica da Hermenêutica deGadamer. op. cit., p. 21.179 Ibidem, pp. 21-22.180 Ibidem, p. 22.181 RICOEUR, Paul. Interpretação e Ideologias. op. cit., p. 22.

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valida o dizer e o agir não é lançado à crítica rigorosa, pois a reflexão, nosmoldes da hermenêutica da tradição, não transcende o que está sendo validado.E, ao não se colocar acima da pré-compreensão, asfixia-se a crítica. A ideologia,portanto, não é o campo em que Gadamer irá encontrar o possível obstáculopara o processo compreensivo. Ao contrário, a ideologia pode ser necessáriacomo uma premissa do compreender.

Uma sociologia compreensiva, que hipostasia a linguagem como sujeito da formade vida e da tradição (Überlieferung), prende-se à pressuposição idealista de quea consciência lingüisticamente articulada determina o ser material da práxis vital.Mas o contexto objetivo do agir social não se esgota na dimensão do sentidosuposto intersubjetivamente e transmitido simbolicamente. A infra-estrutura lin-güística da sociedade é momento de um contexto que, embora sempre mediadosimbolicamente, se constitui por coações da realidade (...).182

Não se pode antever a emancipação da linguagem na hermenêutica da tradi-ção. O que prevalece é a compreensão – que pode ser, como antes analisada,distorcida – de uma linguagem fornecida por um consenso que se estabeleceu aolongo da história humana. Compreender é, com efeito, se submeter às normas datradição. Uma simbiose dos planos de validade e facticidade está na base dateoria hermenêutica, gerando, por conseqüência, um problema de fundamenta-ção. Contrariando o pensamento que advinha da filosofia da consciência kantiana,novamente ocorre uma substancialização dos pressupostos normativos. E, para-doxalmente, no intuito de combater a metafísica pela afirmação da historicidadedo pensamento, acabou por consagrar uma metafísica da tradição. Isso porque,se, por um lado, a teoria gadameriana atacou as estruturas da filosofia kantianacentradas na dicotomização sujeito/objeto por intermédio do reconhecimentodas “reflexivas condições constituintes do próprio ato concreto de significação,com a sua historicidade e a sua pré-compreensão”,183 por outro, a reflexão rigo-rosa sobre o próprio potencial validante da tradição não se realizou.

Para Gadamer, a hermenêutica é, por excelência, uma filosofia voltada para aaplicação. Mas esse direcionamento para seu desenvolvimento prático é tomadopor uma normatividade contaminada pelo próprio contexto de aplicação. O inte-resse gadameriano em direcionar parcela substancial de sua obra Verdade e Méto-do para a interpretação mostra que, muito mais do que a discussão sobre a valida-de do conhecimento e do agir, a ênfase havia de ser dada ao problema dapossibilidade do compreender. Porém, compreensão sem a reflexão rigorosa arespeito do problema da validade é passível de gerar o paradoxo da impossibilida-de da compreensão ou a legitimação da compreensão significativamente distorcida.

182 HABERMAS, Jürgen. Dialética e Hermenêutica. Para uma Critica da Hermenêutica deGadamer. op. cit., p. 23.183 NEVES, A. Castanheira. A Crise Actual da Filosofia do Direito no Contexto da Crise Global daFilosofia. Tópicos para a Possibilidade de uma Reflexiva Reabilitação. op. cit., p. 60.

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Toda compreensão exige que sua validade seja também objeto dequestionamento e reflexão crítica. Para tanto, ela deve transcender o contexto deaplicação prática. A metafísica da tradição consolida-se com a irreflexão críticasobre os pressupostos normativos que a própria tradição engloba. Tal como ametafísica da natureza ou a metafísica formal-normativa, há um silêncio a respeitodos pressupostos normativos. Há um nítido problema de fundamentação. Asubmissão ao pleito normativo do tradicional não promove a compreensão. “Terá,na verdade, de reconhecer-se que essa hermenêutica filosófica se fica pela quaestiofacti e não atinge, nem resolve, a quaestio iuris da compreensão – diz-nos o queacontece e segundo que condições sempre que compreendemos, não dá respostaà questão da validade da compreensão-interpretação assim obtida”.184 Ahermenêutica gadameriana, em última análise, ao não sustentar a reflexão rigorosaem seus pleitos de validade – até porque a não-transcendência de seu contexto deaplicação dificulta esse processo –, não consegue relativizar a tradição e, por isso,torna-se cega diante dos interesses que distorcem ou impedem a compreensão.

A phrónesis aristotélica adaptou-se tão bem ao pensamento gadameriano exa-tamente em razão dessa qualidade: a facticidade validada por um pressupostoque também opera no patamar da facticidade. A ação singularmente considera-da, a partir de sua habituação, torna-se consensualmente um determinante geralque valida as contínuas realizações práticas, que, por sua vez, conformam nova-mente o conteúdo do geral. O círculo hermenêutico, a partir da ênfase na phrónesis,apresenta todo o seu processo validante em um mesmo plano de adequação àação concreta. O entusiasmo de Gadamer é tão grande em relação a esse encon-tro com o passado filosófico que conclui que “um dos ensinos mais importantesque oferece a história da filosofia para este problema atual é o papel que desem-penha a ética e política aristotélica à práxis e seu saber iluminador e orientador,a astúcia ou sabedoria prática que Aristóteles chamou phrónesis”.185 Nela,Gadamer encontrou o pressuposto normativo que não saía do potencial compre-ensivo do círculo hermenêutico. É um potencial, contudo, que não necessaria-mente se lança à superação das estruturas e instituições coercivas. A phrónesis,no contexto da tradição lingüisticamente mediada, revela o aspecto normativoque possibilita validar ações estratégicas, como também a repetição dos efeitosque fomentam a distorção na comunicação social.

Como paradigma hermenêutico, a phrónesis é a expressão da identificação dacompreensão com a aplicação.186 O círculo hermenêutico é precisamente essaconstante conformação desses dois planos. Por isso, compreender é tambéminterpretar. Gadamer afirma que “a interpretação não é um ato complementar e

184 Ibidem, p. 64.185 GADAMER, Hans-Georg. Verdad y Método. op. cit., p. 647. Tradução livre.186 GÜNTHER, Klaus. Teoria da Argumentação no Direito e na Moral. Justificação e Aplicação.op. cit., p. 290.

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posterior ao da compreensão, senão que compreender é sempre interpretar e,em conseqüência, a interpretação é a forma explícita da compreensão”.187 Po-rém, essa identificação traz um sério problema de fundamentação em sua filoso-fia. Compreender, estando dentro do contexto de aplicação, sem a possíveltranscendência das condições do compreender, pode gerar o paradoxo daincompreensão.

A coincidência dos dois planos – compreensão e aplicação – mostra que avalidade não é o campo da reflexão rigorosa. Ela, na verdade, já está previamen-te dada pelo contexto da tradição. Günther enfatiza que “a validade será medidapor fazer parte de um determinado contexto, que constitui um modo comunitá-rio de vida”.188 Há uma validade contaminada pelo contexto de adequação:“adequado será sempre aquilo que, dentro do contexto transmitido pela tradi-ção, for válido”.189 Mas até que ponto se pode validar o pleito normativo dopassado, mesmo que conformado pelas perístases relevantes do presente? Comoontologizar a tradição de modo a torná-la a condição existencial do compreen-der, sem a qual o homem se perde enquanto ser finito e temporal?

A universalidade é alcançada, para Gadamer, a partir da referência à lingua-gem. A tradição é, afinal, por excelência, linguagem. Se é ela a premissa devalidação do agir e do compreender, como advogar sua universalidade, se ela seconfunde com o contexto de aplicação? A fundamentação, que opera no âmbitoda validade, exige mais do que uma adequação ao contexto. Günther, que buscafazer uma explícita distinção entre justificação (em que se opera a validade) eaplicação (em que se dá a adequação), argumenta que se deve estabelecer um“alicerce independente para a fundamentação”.190 A universalidade não se en-contra na explícita referência à linguagem tomada em seus parâmetros concretosde realização, em uma intersubjetividade que valida dentro da facticidade, maspor um critério que visa a alcançar uma objetividade pela assunção da imparcia-lidade no campo da fundamentação.191 Trata-se de uma imparcialidade que é

187 GADAMER, Hans-Georg. Verdad y Método. op. cit., p. 378. Tradução livre.188 GÜNTHER, Klaus. Teoria da Argumentação no Direito e na Moral. Justificação e Aplicação.op. cit., p. 285.189 Ibidem, p. 285.190 Ibidem, p. 287.191 Klaus Günther utiliza o princípio de universalização U consoante uma proposta dialógica,contrapondo-se, pois, ao pensamento kantiano, que, apesar de buscar um fundamento formalque não se confunde com a experiência, limita-o ao plano da subjetividade, da consciênciatranscendental. Uma transcendência dialógica, pois, confronta-se com o monólogo kantiano,mantendo, porém, a distinção entre esses dois planos: a validade não opera no mesmo pleito dafacticidade ou, tal como Günther denomina, a fundamentação não se confunde com a adequa-ção. A passagem abaixo é ilustrativa:“Para a fundamentação é relevante exclusivamente a própria norma, independentemente desua aplicação em cada uma das situações. Importa se é do interesse de todos que cada umobserve a regra, visto que uma norma representa o interesse comum de todos e não depende de

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abarcada, ao contrário do imperativo categórico kantiano, de modo intersubjetivo,em que se pretende obter o “consenso universal” a partir de “pretensões devalidade universais” dos participantes da comunicação. Essas pretensões, por suavez, não obstante operem em um plano ideal, exigem, pela própria dimensãotemporal e finita do homem, que sejam lançadas em concreto aos pleitos deadequação de modo imparcial. Semelhantemente a Habermas, embora a teoriade Günther se desenvolva no plano da razão prática,192 opera-se uma tensão entrevalidade e facticidade, entre justificação e aplicação, mas, jamais, uma identifica-ção de ambos os planos. Essa distinção é imprescindível, segundo Günther, parase lograr a transparência no processo compreensivo.

Ao invés de explicitar a tradição como a fonte de validade, deve-se entendê-la apenas como “pontos de vista de interpretação, que deveremos considerarintegralmente em situações e ponderar entre si, antes de examinarmos em umdiscurso à parte a validade daquilo que entendemos como devido”.193 Ao retirar

sua aplicação, mas dos motivos que conseguimos apresentar para que ela tenha de ser observa-da por todos como uma regra. Em contraposição, para a sua aplicação, cada uma das situaçõesé relevante, não importando se a observância geral também contempla o interesse de todos. Emvista de todas as circunstâncias especiais, o fundamental é se e como a regra teria de serobservada em determinada situação. Na aplicação devemos adotar, “como se estivéssemosnaquela situação”, a pretensão da norma de ser observada por todos em toda situação (isto é,como uma regra), e confrontá-la com cada uma de suas características. O tema não é a validadeda norma para cada um, individualmente, tampouco para os seus interesses, mas a adequaçãoem relação a todas as características de uma única situação.“O juízo sobre a adequação de uma norma não se refere a todas as circunstâncias de aplicação,mas exclusivamente a uma. Por isso, adequação significa simplesmente uma restrição da versãoforte de U a uma única situação. A exigência absoluta de que, em algum momento, sejamconsideradas todas as situações é elevada à exigência de que, em uma única situação, exami-nem-se todas as características. É só dessa forma que conseguiremos amortecer o risco quesurge, na versão mais fraca, a partir da desistência de um juízo absoluto de adequação. Adecisão a respeito da validade de uma norma não implica qualquer decisão a respeito de suaadequação em uma situação, e vice-versa. Contudo, ambas representam respectivamente umdeterminado aspecto da idéia de imparcialidade: a exigência das conseqüências e dos efeitoscolaterais, previsivelmente resultantes da observância geral de uma norma, para que os interes-ses de cada um individualmente possam ser aceitos por todos em conjunto, operacionaliza osentido universal-recíproco da imparcialidade, enquanto que, complementarmente a isto, anecessidade de que, em cada uma das situações de aplicação, considerarem-se todas as carac-terísticas, operacionaliza o sentido aplicativo. Ao combinar ambos os aspectos entre si,aproximamo-nos do sentido complexo da imparcialidade, como se fosse por caminhos bifurcados”(GÜNTHER, Klaus. Teoria da Argumentação no Direito e na Moral. Justificação e Aplicação. op.cit., pp. 70-71).192 Esse emprego da razão prática será mais facilmente compreendido no próximo capítulo, emque se verificará que a teoria habermasiana afirma um discurso moralmente neutro, diferente-mente, portanto, da ênfase adotada por Günther, que estabelece premissas morais no próprioâmago de sua teoria jurídica.193 Ibidem, p. 285.

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do mesmo plano o discurso de validade do discurso de adequação, a tradição,tal como se verifica em Habermas, não mais é condição insuperável dos conteú-dos da compreensão e do agir. Ela é apenas um ponto de interpretação, cujavalidade é lançada a um “discurso à parte”.

A fundamentação, afinal, exige uma ampla generalização, uma pretensa pre-visão de que os motivos empregados sejam compreendidos por todos e mutua-mente aceitos. Não se restringe, pois, ao âmbito do contexto da tradição, que é,por excelência, particularizado. É com base na previsão de uma “comunidadeideal de comunicação” que se consegue prever a possibilidade da validação doargumento. Há uma transcendência necessária para se antever a possibilidade defundamentação na filosofia. Não se podem afastar as premissas transcendentaisque requerem “a existência de alguém que argumente, de um outro a quem eledirige a linguagem, a comunidade de comunicação e as pretensões de valida-de”.194 Gadamer, entretanto, funde os elementos performativo e proposicional: ocampo da intersubjetividade é reduzido ao plano de um consenso já alcançado nopassado e assimilado a um presente em constante formação. Por conseqüência,parece que a ação singularmente considerada não tem uma motivação prospectiva,de superação das estruturas, mas, apenas, de manutenção do mesmo: a preten-são torna-se uma determinação do passado. Em termos habermasianos, a teoriagadameriana não contrasta com a possibilidade do avanço de uma racionalidadeestratégica que impeça o avanço do agir orientado ao entendimento.

Não se pode conceber que, em Gadamer, haja a previsão de uma estruturadupla da comunicação, até porque sua teoria tenta contrapor à estrutura kantianada consciência a finitude e temporalidade humanas, rompendo a perspectivatranscendental. De qualquer modo, como bem Günther analisa, no conceito de“fusão de horizonte”, Gadamer projeta uma possível “situação fictícia de diálo-go”,195 em que se afirma uma suposição do outro em uma unidade de sentido.196

Gadamer realiza a distinção entre o outro da validade e o outro da aplicação.197

Essa distinção, todavia, volta a se fundir no contexto de aplicação. Ocorre umafusão dessa pressuposição intersubjetiva de fundamentação e sua aplicação emconcreto. Por isso, compreensão é, categoricamente, aplicação.

194 MILOVIC, Miroslav. Filosofia da Comunicação. Para uma Crítica da Modernidade. op. cit.,p. 196.195 GÜNTHER, Klaus. Teoria da Argumentação no Direito e na Moral. Justificação e Aplicação.op. cit., p. 291.196 Ibidem, p. 291.197 Günther salienta que Gadamer faz a distinção entre o outro da validação e o outro daaplicação, como expresso na passagem abaixo:“Na postura performativa, na qual um outro requer de mim que eu reconheça algo como válido,temos que em princípio pressupor uma reversibilidade dos pontos de vista. Apenas nesse senti-do e tão-somente nele é que somos iguais. Em discursos de aplicação, o caso é diferente: ali ooutro se encontra comigo na diferença de conteúdo quanto à interpretação da sua necessidade,

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A phrónesis encaixa-se perfeitamente nesse processo: ela indica uma unidadede sentido que se realiza no mesmo plano das práticas vitais, dos jogos de lingua-gem em concreto. Pode-se afirmar que a phrónesis é o marco da assimilação doplano da fundamentação ao plano da adequação.198 O âmbito performativo, emque se pressupõe a pretensão ao entendimento mútuo, confunde-se com o âmbi-to da aplicação e isso mostra que a transcendência, para a hermenêutica datradição, é inviável. Não há, assim, justificação transcendental. Algo somente sejustifica enquanto conformado por um processo de adequação ao pleito normativoque a phrónesis carrega. É nela que “o normativamente válido e o adequado emuma situação poderão ser postos em mútua correlação”.199 A phrónesis, assim, éo modelo de legitimação da hermenêutica da tradição como uma filosofia denítido interesse prático. É ela, por sua inerente condição contextual, que poderáestabelecer o caminho da verdade.

Por um lado, percebe-se que a teoria gadameriana retira a força da trans-cendência kantiana. Habermas chega mesmo a dizer que a tradição hermenêutica“não tardaria em explodir o conceito clássico de sujeito transcendental”,200 e,para tanto, “no lugar da síntese transcendental é introduzida a produtividade da‘vida’, aparentemente concreta, porém destituída de estrutura”.201 Por outro

a qual tenho que compatibilizar com a minha própria. Para tanto, devo, em situações concretas,colocar-me na condição do outro e comparar a sua interpretação de necessidade, sob circuns-tâncias concretas, com a minha própria, a fim de, possivelmente, alterar a dele ou a minha, ouponderá-las. Aplicarei a minha interpretação de necessidade como hipótese de norma à respec-tiva situação, e devo ampliar a minha interpretação situacional por (todos) aqueles pontos devista que decorrem da interpretação de necessidade do outro concretamente pessoal. QuandoGadamer constata, ao paralelizar a experiência hermenêutica com a interpressoal, que a ‘aber-tura para o outro, portanto, inclui o reconhecimento de que devo aceitar dentro de mim algoque valha contra mim, mesmo não existindo um outro, que o pudesse impor contra mim’, estáincluindo justamente essa distinção. Em situações de aplicação, nas quais o outro é apenas o‘ponto de vista’, não se trata do outro ‘fazer valer’ algo contra mim, mas de eu considerar osdiferentes pontos de vista ou os sinais característicos relevantes da situação, ou seja, ‘deixarvaler contra mim (ou contra a minha interpretação situacional de necessidade)’. Isso aconteceindependente do papel que outro assuma diante de mim, em uma postura performativa, exigin-do o reconhecimento de um pleito de validade. É a partir do meu próprio motivo interior quesou obrigado a considerar todos os sinais característicos da situação, porque a idéia de imparci-alidade, no sentido aplicativo, obriga-me a colocar sob ponderação não só as diferentes circuns-tâncias, mas também (virtualmente) todas as outras” (GÜNTHER, Klaus. Teoria da Argumenta-ção no Direito e na Moral. Justificação e Aplicação. op. cit., pp. 292-293).Não obstante haja essa distinção, a assimilação entre os pleitos de validade e facticidade realiza-se pela ênfase na aplicação e sempre contextualização do processo compreensivo. Em síntese,a compreensão opera no plano da facticidade.198 Ibidem, p. 294.199 Ibidem, p. 294.200 HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-Metafísico. op. cit., p. 50.201 Ibidem, p. 50.

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lado, porém, essa desestruturação empreendida na filosofia, se transforma aarquitetônica dos conceitos fundamentais,202 não chega a fornecer uma soluçãopara o problema de fundamentação. O que se evidencia é que a ênfase naphrónesis e no círculo da compreensão não gera o questionamento da tradição,que é o pleito de validade. A fusão do horizonte, em que o passado se encontracom o presente, jamais é rompida. Não se radicaliza o tradicional; há sempre avinculação com uma autocompreensão e compreensão do mundo que não sedesprendem do passado. E esse resgate da tradição filosófica e a dificuldade emse analisarem os pleitos de validade normativa geram um problema de insegurança.

É uma insegurança que não se resolve, se permanece uma contínua crença nopotencial validante das normas da tradição. Sem a reflexão rigorosa – que precisatranscender o patamar da facticidade –, o que pode garantir a validade da tradi-ção? Essa indagação, que Günther empreende em outros termos,203 mostra agrande dificuldade que a hermenêutica da tradição gera a respeito de um possívelcaminho para a filosofia. Para combater essa situação, deve-se relativizar o poten-cial validante da tradição. Além disso, ele deve ser levado ao crivo da crítica. Aofazê-lo, a tradição passa a ser entendida como uma idéia regulativa, assumindouma dimensão não absoluta de orientação do compreender e do agir. Por sua avez, a phrónesis passa a assumir uma outra tarefa.204 Günther aduz que “no mo-mento em que já não há validades indubitáveis, que sempre estiveram pleiteandoadequação para si, tanto a validade de uma norma para cada indivíduo, isolado edesvinculado, quanto também a adequação de uma norma em uma situaçãoprecisam primeiro ser estabelecidas”.205 Essa distinção tem de ser empreendida.O resgate da importância das discussões a respeito da validade é retomado poruma clara diferenciação realizada pela estrutura dupla da comunicação. Uma vezque não há certezas a respeito das normas válidas e adequadas para as diferentessituações, o caminho a se contrapor a essa insegurança é alcançado medianteuma promoção do esclarecimento.

O esclarecimento promovido pela perspectiva trazida pela pragmática da lin-guagem contrasta com a insegurança que a hermenêutica da tradição não conse-guiu superar. Além de não enfatizar a possível ruptura com o avanço de estraté-gias que dificultam o agir orientado ao entendimento, ela não logrou suplantar oproblema do relativismo filosófico. É uma dificuldade que decorre da crise de

202 Ibidem, p. 50.203 Segundo Günther: “A questão é o que será da phrónesis, quando o ethos, com o qual elaconstitutivamente está relacionada, houver perdido a sua indubitável validade?” (GÜNTHER,Klaus. Teoria da Argumentação no Direito e na Moral. Justificação e Aplicação. op. cit., p. 294).204 Conforme Günther, “o sentido moral da phrónesis se subdivide, nesse caso, no sentidouniversal-recíproco e no sentido aplicativo da imparcialidade” (GÜNTHER, Klaus. Teoria daArgumentação no Direito e na Moral. Justificação e Aplicação. op. cit., p. 295).205 Ibidem, p. 295.

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fundamentação que a hermenêutica da tradição leva consigo. A pragmática for-mal da linguagem, por estar intimamente preocupada com o problema da funda-mentação, consegue estabelecer um novo patamar que se contrapõe à dificulda-de em se encontrar um guia para as ações. Ao invés de se descobrir, na tradição,o pleito normativo de validação, dá-se relevo ao procedimento que se orienta àformação de um consenso dinâmico, isto é, a um agir orientado ao entendimen-to. Para tanto, estabelece-se a idealização, como antes aludido, no conceito decomunidade de comunicação ideal, que expressará o enfoque contrafático noâmbito da validade.

Habermas observa que “a tensão que existe entre o inteligível e o empíricoirrompe na esfera dos próprios fenômenos, através do conteúdo normativo dospressupostos comunicacionais de uma prática exercida faticamente, ao mesmotempo idealizadores e inevitáveis”.206 Ao contrário da fusão da validade com afacticidade, consolida-se a tensão entre esses dois planos. Não há como se afastarda pretensão, mesmo idealizada, de que os argumentos sejam válidos além dedado contexto, que haja um consenso mútuo a respeito do que se afirma: “o queum falante afirma como sendo válido aqui e agora, num dado contexto, transcendede acordo com sua pretensão, todos os standards de validade locais, dependentesde um contexto”.207 Contra a restrição ao plano da facticidade, em que a validadeé ofuscada em contextos de realização concreta, promove-se uma radicalizaçãoda transcendência kantiana não pela negativa da estrutura dos dois mundos,mas, sim, pela ênfase em uma intersubjetividade não vislumbrada por Kant.

Pela reafirmação da transcendência, sem perder a possível “destranscenden-talização” da razão em contextos de práticas vitais – daí a tensão entre validade efacticidade –, suscita-se uma filosofia participativa e diretamente voltada para oagir orientado ao entendimento. Habermas aduz que “a destranscendentalizaçãoconduz, por um lado, à inserção dos sujeitos socializados em contextos do mundoda vida; por outro lado, à convergência da cognição com o falar e o agir”.208 Éesse entrosamento entre comunicação e ação que dá apoio, conforme sua teoria,ao caminho de superação das estruturas coercivas que dominam as potencialidadesemancipatórias, ofuscando-as. A inserção em um determinado contexto implica,antes de uma direta presença da tradição na validação do compreender e do agir,a pressuposição pragmática de um mundo considerado objetivamente:209 “a ‘ob-jetividade’ do mundo significa que este mundo é ‘dado’ para nós como um mun-

206 HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-Metafísico. op. cit., p. 56.207 Ibidem, p.56.208 HABERMAS, Jürgen. Agir Comunicativo e Razão Destranscendentalizada. op. cit., pp. 38-39.209 Habermas defende a necessidade de manutenção da estrutura dos dois mundos para possibi-litar uma teoria do agir comunicativo: “A diferença entre mundo e mundo interior, reclamadapor Kant, também deve continuar a ser mantida, quando o sujeito transcendental perde suaposição do outro lado do tempo e do espaço e se transforma nos diversos sujeitos capazes de

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do ‘idêntico para todos’”.210 Há, assim, uma estrutura racional já presente nacomunicação.211 Essa idealização, todavia, não se confunde com o a priori kantiano.Na verdade, é uma antecipação que se faz de modo contrafáctico no discursoorientado ao entendimento e exige ser levada ao crivo da crítica.

A validade, por isso, é passível de constante revisão e reconstrução. A tensãoentre validade e facticidade decorre dessa correlação entre um a priori, que seidentifica com a antecipação de condições da comunicação,212 e um a posteriori,que se encontra na reconstrução contínua desse saber prévio a partir das práticascomunicacionais contextualizadas.213 É um constante processo direcionado aoentendimento mútuo prospectivo, na medida em que visa a ampliar as possibilidadesde uma racionalidade fundada na comunicação social. É essa a amplitude que ateoria habermasiana projeta em seu alcance diacrônico: superar as estruturascoercivas por meio de uma racionalidade que quer ser, sobretudo, “ação comu-

linguagem e ação” (HABERMAS, Jürgen. Agir Comunicativo e Razão Destranscendentalizada.op. cit., p. 38).210 Ibidem, p. 39.211 De acordo com Habermas:“Segundo a concepção pragmático-formal, a estrutura racional interna do agir orientado para oentendimento se reflete nas suposições que os atores devem fazer, sobretudo quando se engajamnessa prática. A obrigação de um tal “dever” é para ser entendida antes no sentido de Wittgensteinque no de Kant – não no sentido transcendental das condições gerais, necessárias e sem origeminteligível da experiência possível, porém no sentido gramatical de uma ‘inevitabilidade’ que sededica às correlações conceituais internas de uma conduta exercida, guiada pelas regras dosistema, sem dúvida ‘para nós não previamente viável”. Segundo a deflação pragmática dasproposições kantianas, ‘análise transcendental’ significa a pesquisa das condições presumida-mente gerais, mas de fato apenas posteriormente viáveis, que devem ser satisfeitas, para quepráticas fundamentais determinadas respectivamente a êxitos possam ocorrer. Nesse sentido,‘fundamentais’ são todas as práticas para as quais não há, dentro das nossas formas sócio-culturais de vida, qualquer equivalente funcional nem sequer pensável” (HABERMAS, Jürgen.Agir Comunicativo e Razão Destranscendentalizada. op. cit., pp. 34-35).212 Habermas defende a imprescindibilidade dessas pressuposições que, se por um lado, sãoidealizadas, por outro, têm de ser levadas ao crivo da crítica pelos participantes da comunicaçãoem concreto:“Uma correlação genealógica deve ser presumida:– entre a ‘idéia cosmológica’ da unidade do mundo (ou da totalidade das condições no mundosensível) e a suposição pragmática de um mundo objetivo comum;– entre a ‘idéia da liberdade’ como um postulado da razão prática e a suposição pragmática daracionalidade dos atores imputáveis;– entre a alteração totalizadora da razão que, enquanto ‘capacidade das idéias’, transcende todocondicionado na direção de um incondicionado, e a incondicionalidade das exigências de validezlevantadas no agir comunicativo;– finalmente, entre a razão como ‘capacidade dos princípios’, que assume o papel de ‘tribunalsupremo de todos os direitos e exigências’, e o discurso racional como fórum não previamenteviável de justificação possível”. (HABERMAS, Jürgen. Agir Comunicativo e RazãoDestranscendentalizada. op. cit., pp. 36-37).213 Esse debate será retomado, com mais detalhes, no capítulo seguinte.

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nicativa”. E isso é possível pela transcendência do contexto da tradição, transformadaem idéia regulativa, em ponto interpretativo e, não, determinante do conteúdopresente, mesmo que conformada pelas perístases relevantes do contexto atual.

Por outro lado, assumido o projeto da “pragmática universal da linguagem”,atinge-se diretamente a pretensão de uma filosofia que quer ser, por excelência,prática nos moldes da hermenêutica da tradição. Conquanto a filosofia gadamerianatenha estabelecido os parâmetros para derrubar a tradicional primazia do teóricosobre o prático, ela, nesse processo, fundiu os planos da validade com o dafacticidade. Essa característica, por sua vez, abre as portas para que, no plano davalidade, as normas possam decorrer de uma maleabilidade de interesses cujaorientação se volta para dificultar a comunicação. Por isso, ao contextualismoque “restringe todas as pretensões de verdade à dimensão dos jogos de lingua-gem locais e a regras do discurso que se impuseram faticamente, que equiparatodos os standards de racionalidade a hábitos, a convenções válidas no momen-to”,214 há de se contrapor uma proposta filosófica que consiga superar a dicotomiarazão prática/razão teórica e estabelecer uma pretensão universalista que não secontenta com a ênfase apenas na situação concretamente considerada.

A hermenêutica da tradição, ao estabelecer, no pleito normativo da tradição,o potencial validante, estreitou o campo da razão, identificando-a com o processode fusão do presente com o passado, com os hábitos e convenções adquiridas,sem, todavia, incitar o seu poder mobilizador da comunicação social. Sem a tensãoentre validade e facticidade, não se instauram as condições para uma razão quequer, cada vez mais, promover o entendimento. Isso porque a validação não secontenta com um contexto determinado; ela quer ir além de um consensocontingente; ela quer ser um vir-a-ser constantemente discutido em distintasrealidades. O universalismo que está nessa intersubjetividade pressuposta instigao agir racionalmente motivado a impulsionar, em diferentes realidades, a discussãocrítica de sua validade. A razão, assim, se “destranscendentaliza” e a reflexãorigorosa da validade se efetiva. De acordo com Habermas, “por serem pretensõescriticáveis, elas transcendem os contextos nos quais são formuladas e nos quaiselas pretendem valer”.215 Com esse panorama, a racionalidade é aberta paracolocar ao crivo da crítica tudo aquilo que poderia condicioná-la, como as estruturassociais coercivas. “No espectro da validez da prática cotidiana de entendimentoaparece uma racionalidade comunicativa que se abre num leque de dimensões”.216

Com essa racionalidade, por sua vez, alcança-se, diferentemente do que pro-põe a hermenêutica da tradição, uma “medida para as comunicações sistematica-mente deformadas e para as desfigurações das formas de vida”.217 Em síntese,

214 HABERMAS, Jürgen. Agir Comunicativo e Razão Destranscendentalizada. op. cit., p. 59.215 HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-Metafísico. op. cit., p. 60.216 Ibidem, p. 60.217 Ibidem, p. 60.

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muito mais do que a hermenêutica da tradição, a pragmática universal da lingua-gem garante a crítica, como uma intérprete mediadora do saber filosófico e daspráticas cotidianas.218 Ela fornece os parâmetros para um novo olhar sobre omundo: um olhar que se olha e que, dessa reflexão crítica, visa a superar asdeformações que se encontram no mundo da vida. Contrariamente à ênfase emuma tradição lingüisticamente mediada e no resgate da phrónesis, a pragmáticauniversal da linguagem não quer estar “de posse de uma teoria afirmativa da vidacorreta”.219 Assim, ao invés de estabelecer os parâmetros da ação, como se hou-vesse normas que se apresentam por si só (a tradição lingüisticamente mediada eo ethos que a phrónesis faz repetir), quer-se acreditar na possibilidade transformadoradas pretensões comunicativas e incitar a transparência e a auto-reflexividadeemancipatória pautadas pela comunicação social.

Essa perspectiva que se abre e que antevê uma possível nova dimensão dofenômeno sociológico, suscitando uma contínua suplantação de estruturas quedificultam a comunicação, sugere o enriquecimento nos debates a respeito davalidade no campo normativo. E, a partir desse confronto entre a hermenêuticada tradição e a crítica da ideologia, tem-se um possível caminho do estabeleci-mento da crítica no âmbito do Direito. Afinal, se hoje um dos principais pontosde divergência e discussão é a crise de fundamentação normativa, isso muito sedeve ao ataque que a filosofia da consciência de matriz kantiana sofreu peloavanço dos estudos hermenêuticos. Uma vez que a razão antes enclausurada emsuas estruturas subjetivas foi atirada ao plano das práticas cotidianas de vida, afundamentação, até então inserida nessa dimensão transcendental, foi abalada.Porém, como já investigado, a “destranscendentalização” da razão promovidapela hermenêutica não trouxe, em contrapartida, uma resposta ao problema dafundamentação. A validade, desse modo, foi menosprezada diante do interessesobre as condições da compreensão.

Quando refletida no campo jurídico, todavia, essa característica atinge o cernede seu desenvolvimento. Se, ao invés de expor a tensão entre validade efacticidade, congregam-se fundamentação e aplicação em um mesmo patamar,a possibilidade de reflexão rigorosa é fortemente estremecida. Por isso, a trans-posição, mesmo que contextualizada, da hermenêutica da tradição para o planojurídico pode gerar um sério problema de fundamentação normativa. E, sem areflexão crítica sobre os pressupostos normativos, a legitimidade democráticadas normas jurídicas se enfraquece. Por outro lado, abre-se o leque para oavanço de interesses que não visam a afirmar a participação coletiva nos pleitosde validade, porém, sim, o silêncio motivado por uma estratégia de dominaçãocoletiva, mesmo que implícita.

218 Ibidem, p. 60.219 Ibidem, p. 60.

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Transportar essa discussão para o plano do Direito, portanto, revela um pro-pósito claro: mostrar os limites de uma filosofia do direito que se articula segun-do os parâmetros trazidos pela hermenêutica da tradição, ao se buscar, em umaênfase nas condições de contexto, a primazia da elaboração normativa. O círculocompreensivo, em que se mesclam fundamentação e adequação, apresenta umaargumentação, em princípio, bastante convincente. Todavia, quando se faz aconexão com as discussões filosóficas já bastante consolidadas a respeito daproblemática dos pressupostos normativos e da crise de validade, percebe-seque ela não resolve – antes, complica e pode legitimar distintos interesses soci-ais, mesmo que estrategicamente motivados – nem mesmo a questão da compre-ensão. Como já reiteradamente discutido, a compreensão, sem a transcendênciada tradição, pode ser distorcida. A pergunta, portanto, que abrirá o próximotópico é: até que ponto se pode acreditar nessa filosofia do direito de matrizhermenêutico-tradicionalista como um campo efetivo da compreensão jurídica?Por conseguinte, ao se estender esse questionamento, indaga-se: em que medi-da se pode concebê-la como âmbito de legitimação democrática do Direito?

Esse itinerário é completado com o capítulo seguinte, em que se enfatiza arelação da pragmática universal da linguagem com a perspectiva sociológica(dimensão diacrônica). Assim, partindo-se do confronto com a hermenêutica datradição e, no plano jurídico, com a filosofia do direito de matriz hermenêutico-tradicionalista, poder-se-á encontrar uma saída, em seguida investigada, a res-peito da validade normativa. E, de sua tensão com a facticidade, quer-se mostrarque a legitimação democrática está intimamente relacionada com a participaçãocoletiva dos intérpretes do Direito, que não apenas recebem o conteúdo normativoque irá guiar suas ações, mas, sobretudo, criticam rigorosamente os pleitos devalidade, isto é, os pressupostos normativos. É uma distinta proposta: a críticanão se sustenta quando se estrutura no patamar da facticidade. A crítica faz-serigorosa quando atinge as pretensões de validade, em constante tensão – e, não,identificação – com as práticas cotidianas de vida. No Direito, essa propostainsurge-se contra uma “destranscendentalização” que não radicaliza o âmbitoda validade. É, por isso, que se tem de passar pela investigação dos reflexosjurídicos da hermenêutica tradicionalista como um trajeto a ser vencido.

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3.4. O CÍRCULO COMPREENSIVO NO DIREITO: A TENSÃO ENTRE VALIDADE EFACTICIDADE NA JURISPRUDÊNCIA

Como uma contraposição à filosofia da consciência e, do mesmo modo, auma filosofia que busca a validade do conhecimento no conceito vago de “natu-reza”, a hermenêutica da tradição adaptou-se perfeitamente ao intuito de estabe-lecer uma terceira via apta a suplantar algumas crises do pensamento jurídico.Primeiramente, pela referência à historicidade e finitude do ser, enfraqueceu-seo argumento jurídico que primava pela elaboração de uma estrutura lógico-formal de propósito universalista, cujos parâmetros, em boa parte, advinham dafilosofia da consciência kantiana. Em segundo lugar, pela ênfase na compreen-são e em uma pré-compreensão obtidas segundo os parâmetros da tradição,superou-se uma filosofia que queria encontrar, em uma natureza de matriz obje-tiva ou subjetiva, a justificativa para o Direito, seu fundamento de validação. A“verdade”, agora, está intimamente relacionada com um contexto que constróisignificados, que vão se consolidando consoante uma projeção de comunidade.Enfim, a intersubjetividade, tomada em sua dimensão situacional, manifesta ocaminho da validação normativa e, portanto, o Direito valida-se segundo umprocesso compreensivo que se faz de modo circular, de idas e voltas do intérpre-te ao passado e ao presente, até a consecução de um novo compreender.

A experiência do direito é tão interessante para se vislumbrar o círculo com-preensivo, que Gadamer dedica todo um tópico de sua obra Verdade e Método àhermenêutica jurídica.220 Para ele, a tarefa do jurista é direcionada para umareconstrução da compreensão do sentido original da norma a partir de sua adap-tação ao presente jurídico.221 Há uma “tensão entre o sentido original e atual” 222

que necessita ser enfatizada no processo hermenêutico. A investigação jurídicaexige um acompanhamento das mudanças sofridas no sentido da norma até a suaaplicação em dada situação concreta. A compreensão precisa, além do conheci-mento diacrônico do sentido normativo, que “o passado seja entendido em suacontinuidade com o presente”.223 Nesse aspecto, há de se levar em consideração,na hermenêutica jurídica, a presença de uma tradição operada no âmbito doDireito.

Malgrado conformada pela presença dogmática de uma norma a que tem dese reportar constantemente o intérprete do direito, para Gadamer, essa “bito-la”224 não chega a afastar a inserção da hermenêutica jurídica nos parâmetros

220 Vide GADAMER, Hans-Georg. Verdad y Método. op. cit., p. 396 (O significado paradigmáticoda hermenêutica jurídica).221 Ibidem, p. 398. Tradução livre.222 Ibidem, p. 398. Tradução livre.223 Ibidem, p. 399. Tradução livre.224 Larenz, em contraposição a Gadamer, salienta que a norma expõe um limite no processocompreensivo constantemente renovado:

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das “ciências do espírito”. Para ele, “nela temos o modelo de relação entrepassado e presente que estávamos buscando”.225 É o exemplo claro de umaaplicação contextualmente vinculada: a hermenêutica jurídica é um processo demediação entre uma tradição jurídica e o sentido ora vigente em seu aspectoprático de aplicação. E essa conformação da tradição ao presente expõe que,também para a hermenêutica jurídica, as investigações a respeito da hermenêuticada tradição antes analisadas lhe são diretamente estendidas. “O caso dahermenêutica jurídica não é, portanto, um caso especial, senão que está capacita-do para devolver à hermenêutica histórica todo o alcance de seus problemas ereproduzir assim a velha unidade do problema hermenêutico na qual vêm a seencontrar o jurista, o teólogo e o filólogo”.226 Por isso, da mesma forma que ocompreender está vinculado ao pertencer a uma tradição lingüisticamente medi-ada, a compreensão jurídica também não se afasta da tradição do Direito.227

Essa mediação que se faz entre passado e presente – e que é a expressãomesma do círculo hermenêutico – mostra muito do que se desenvolve no planoprático do Direito. De fato, o juiz é conformado pela tradição jurídica a quenormalmente se atém para elucidar o caso concreto. A sua compreensão do pre-sente não prescinde de uma direta referência ao passado, mesmo que seja paradivergir do que lhe foi transmitido. É nesse aspecto que aparece a noção deprecedente, que busca uniformizar as diferentes possibilidades de interpretaçãonormativa. Essas características revelam, desse modo, que a aplicação do Direito

“Uma ‘bitola’ exige ser aplicada do mesmo modo a todos os casos que hajam de ser medidos porela. Isto não parece ser possível se o seu conteúdo, como Gadamer expressamente pretende queseja o caso também para a interpretação jurídica, ‘tem que ser entendido de novo e de mododistinto em cada situação concreta’ – quer dizer, para cada caso singular. É decerto verdade quenenhum é igual a outro em todos os seus aspectos. Não obstante, se houver de ser utilizada a‘mesma’ bitola, não pode, no entanto, qualquer variação de constelação do caso implicar por siuma nova e distinta interpretação da bitola, pois que, a ser assim, a idéia de ‘medida igual’, umelemento base da ‘justiça’ seria pura ilusão. Torna-se necessário, pois, dar um certo desconto àsteses de Gadamer. Antes do mais, há que observar que toda a concretização (conseguida) de umcritério rector estabelece uma medida para o julgamento de outros casos semelhantes, à face dospontos de vista valorativos. É aqui que reside, entre outras coisas, o grande alcance dos ‘prece-dentes’” (LARENZ, Karl. A Metodologia da Ciência do Direito. op. cit., p. 251).225 GADAMER, Hans-Georg. Verdad y Método. op. cit., p. 400. Tradução livre.226 Ibidem, p. 401. Tradução livre. Grifo não presente no original.227 Segundo Larenz, a tradição do direito é “aquela em que se encontram as normas atualmentevigentes e as formas do pensamento jurídico comumente reconhecidas, mediante o trabalhoprecedente de muitas gerações de juristas, graças ao qual alcançaram a sua configuração atualou de que a atual Jurisprudência se desembaraçou. De fato, esta cadeia de tradição na qual seincluem não apenas as leis, mas também e sobretudo as decisões judiciais e os conhecimentos(ou erros) dogmáticos, constitui o pano de fundo de toda interpretação jurídica – quer proceda“historicamente”, quer sistemática ou teleologicamente. Ela é sobretudo imprescindível no querespeita à compreensão dos tribunais” (LARENZ, Karl. A Metodologia da Ciência do Direito.op. cit., pp. 245-246).

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é uma contínua aprendizagem. O juiz não parte de sua simples consciência paraaplicá-lo; ele necessita de uma base de apoio que a tradição lhe ensina. Essavinculação ao passado, no ato de compreender, é uma premissa para a hermenêuticajurídica pautada pelos parâmetros da hermenêutica gadameriana.

A sua direta ligação com a prática – até porque a filosofia gadameriana é deproposta prática – potencializou a capacidade da hermenêutica da tradição in-fluenciar o pensamento jurídico. Compreender, afinal, carece da aplicação, se-gundo esse pensamento. E o desenvolvimento jurídico faz-se muito em decor-rência de seu funcionamento concreto, a partir de uma consolidação normativarealizada nas decisões judiciais. A ênfase no contexto explicita, além do mais, acontra-argumentação a uma filosofia do direito que queria se fazer universal pelabusca de conceitos lógico-formais e pela “compreensão absolutista de uma teo-ria”228 que lhe era própria, tal como se analisou na proposta teórica de purifica-ção kelseniana. Em contraposição à primazia do teórico, a hermenêutica datradição possibilitou a construção de uma filosofia do direito voltada para apráxis jurídica. Do mesmo modo, em oposição a uma ênfase na primazia doteórico que também era realizada pelo jusnaturalismo, a aplicação não se con-fundia com a exposição, em concreto, das normas genéricas, mas de um proces-so autocompreensivo: “a aplicação não quer dizer aplicação ulterior de umageneralidade dada, compreendida primeiro em si mesma, a um caso concreto;ela é, na realidade, a primeira verdadeira compreensão da generalidade quecada texto dado vem a ser para nós”.229

Em síntese, a hermenêutica da tradição forneceu os subsídios para se estabe-lecer uma filosofia jurídica autocompreensiva e compreensiva de seu tempo,voltando o seu olhar para os desenvolvimentos práticos do Direito. E, ao salien-tar a alteridade pela ênfase dialógica, consolidou um novo trajeto para a investi-gação jusfilosófica: o Direito é conformado por um constante confronto de idéias,que vão moldando os preconceitos advindos de consensos pretéritos para umnovo compreender. Não há nada mais diretamente ligado ao que, realmente, serealiza cotidianamente no mundo jurídico, em que uma tópica de argumentos econtra-argumentos elucida sua própria dinâmica.

Parece que os caminhos para a superação da metafísica no Direito tambémsão trazidos pela hermenêutica. Afinal, ao “destranscendentalizar” a razão ecolocá-la diretamente em contato com as perístases relevantes do caso concreto,a subjetividade constitutiva, distanciada de um contato com o meio, endeusadaem seu potencial validante – sem, entretanto, incitar a reflexão rigorosa sobresuas bases,230 – perde sua razão de ser. Ao invés das faculdades mentais valida-rem a experiência, em que a purificação, na ciência jurídica, é alcançada a partir

228 HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-Metafísico. op. cit., p. 42.229 GADAMER, Hans-Georg. Verdad y Método. op. cit., p. 414. Tradução livre.230 Vide o segundo capítulo.

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do momento em que se consegue um patamar de objetivação mediante umprocesso unificador do fenômeno jurídico pelas faculdades cognitivas,231 afirma-se, na contingência, a inclusão do outro. Compreender é sempre um acordo comos outros, o que retira, de imediato, a pretensão de a subjetividade constitutivaestabelecer os caminhos da validação normativa.

A fundamentação não está mais vinculada a uma estrutura mental que realizaa unificação da experiência, em que se visa a alcançar a pureza no ato de conhecero Direito e promover as condições do conhecimento jurídico universal e necessário.Em oposição a essa perspectiva, a razão – e, por conseqüência, a própriafundamentação da experiência – é lançada ao mundo. Gadamer deseja, dessemodo, realizar o encontro do sujeito com sua realidade. E, nesse encontro, surgea possibilidade da compreensão, que não prescinde do outro do diálogo. O sujeito,uma vez retirado de sua clausura monológica distanciada da experiência, vê-se nacontingência de estar inserido em uma comunidade de comunicação. A validadenormativa, por conseguinte, é dialógica; a validade normativa é hermenêutica.

Porém, novamente parece que se está entrando no caminho da confusão davalidade com a facticidade, que tanto foi discutida anteriormente e que oramerece ser direcionada para o campo específico do direito. A validação normativa,desenvolvida conforme os parâmetros da hermenêutica da tradição, se, por umlado, enfraquece a dedução transcendental kantiana, por outro, torna aindamais difícil sustentar a usual separação entre os planos do dever-ser e do ser.Essa separação, que muito se deve à filosofia kantiana e que foi projetada porKelsen no âmbito de sua Teoria Pura do Direito, sofre um forte abalo quando sepassa a entender a validação dentro do espectro de conformação realizado pelocírculo hermenêutico.

Essa dificuldade é tamanha que Karl Larenz, apesar de muito influenciadopela hermenêutica da tradição ao apresentar sua “jurisprudência de matrizvalorativa”, logo no início da parte sistemática de sua obra Metodologia da Ciên-cia do Direito,232 transfere a problemática da validação normativa para a filosofiado direito. No âmbito prático de aplicação do Direito, para este autor, a respostaà validade normativa não é alcançada em sua plenitude. Larenz salienta que “aesta questão não pode a Jurisprudência dar resposta, porque (...) tem o seu lugarsempre no contexto de uma ordem jurídica existente e da sua Constituição”.233

Muito preocupado em estabelecer, rigorosamente, um método para cada umadas distintas atividades do pensamento jurídico, Larenz faz a clara separaçãoentre a dimensão contextual de funcionamento do Direito, denominada “jurispru-dência”, e aquela de ordem teórica, tal como a “filosofia do direito”, que visa adesenvolver os conceitos e princípios mais complexos do fenômeno jurídico.

231 Vide o segundo capítulo.232 LARENZ, Karl. A Metodologia da Ciência do Direito. op. cit., p. 230.233 Ibidem, p. 224.

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Não obstante essas diferenças nas premissas da investigação do pensamentojurídico, não se pode negar que o problema da compreensão superou o campotradicional da filosofia e atingiu os terrenos mais relevantes das questões complexasdo Direito. Mais do que uma preocupação com a maneira como se podem deduzirlogicamente as normas, os olhares se voltavam para o modo como o Direito poderiaser hermeneuticamente compreendido a partir de sua historicidade e finitude. Oprincipal objeto de estudo jurídico direcionou-se para a realização do Direito,enfatizando-se que a justiça se constrói por intermédio de sua efetivação nosdistintos acontecimentos da vida social. O pensamento jurídico, ao invés de sebasear em uma pressuposição de justiça concebida segundo os moldes do direitonatural ou, mesmo, relegá-la a campo alheio a sua proposta científica, passa aentendê-la como uma decorrência de um processo hermenêutico compreensivo,que, a partir das perístases relevantes, vai moldando a dinâmica do Direito. Assimcomo a fenomenologia desmistificou as categorias mentais da filosofia transcendentalkantiana ao afirmar que a consciência é um ato, a hermenêutica da tradição, ao sereverberar no Direito, instigou a dinâmica de uma justiça em contínua formação,que não prescinde de uma direta referência a seu contexto de realização.

A interpretação jurídica, seguindo os parâmetros da hermenêutica da tradi-ção, é encarada como aplicação. E é nessa aplicação que se efetiva a compreen-são do Direito. Larenz, por exemplo, não apenas salienta que a interpretação e aaplicação são um processo dialético,234 mas também que operam segundo umaestrutura circular, pautada por uma pré-compreensão.235 Porém, ao contrário deum pensamento que poderia advir de uma direta transposição da filosofiagadameriana para o Direito, Larenz não realiza uma radicalização que supera osplanos do dever-ser e do ser. Para ele, apoiando-se em Wittgenstein,236 os “jogosde linguagem” que se realizam no âmbito normativo não se confundem comaqueles operados em concreto.

Alega Larenz que “não se pode definir o dever-ser (...) mediante expressõesdo domínio do fáctico (...), uma vez que uma e outra não querem dizer a mesmacoisa”.237 São patamares distintos. Todavia, a linguagem do normativo vai sendosignificativamente compreendida a partir das vivências cotidianas, de um cami-

234 O processo dialético descrito por Larenz é, por ele, assim sintetizado:“Ambas as coisas, a função de bitola da norma – que requer a sua aplicação uniforme – e anecessidade, que ocorre constantemente, de interpretação (ulterior), bem como, por fim, a‘retroacção’ da interpretação e da concretização, uma vez conseguidas, em relação a uma ulte-rior aplicação da norma, têm de ser tomadas em conta, se se quiser que o processo – ‘dialéctico’,de acordo com a sua estrutura – de aplicação do Direito não venha a ser considerado unilateral-mente, e nestes termos, de modo incorrecto” (LARENZ, Karl. A Metodologia da Ciência doDireito. op. cit., p. 252).235 Ibidem, p. 242.236 Ibidem, p. 242.237 Ibidem, p. 237.

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nho de experimentação, enfim, de uma habituação: “o homem (em formação)depara com o que tem relevância jurídica no quadro da sua experiência quotidi-ana e aprende a conhecer seu significado jurídico, mesmo que de tal não se dêconta”.238 Por intermédio de uma inserção em uma comunidade de comunica-ção, o normativo vai sendo apreendido pelo homem. Esses aspectos permitemconcluir que Larenz, apesar de não querer confundir a validade com a facticidade,necessita enfatizar a interdependência desses dois planos para a conformaçãodo normativo. Assim, por mais que a jurisprudência se volte para um contextoespecífico e se refira a um ordenamento jurídico particularizado, ela sempreopera com uma noção ampla de Direito e, por decorrência, de justiça, que, porsua vez, é captada segundo o processo hermenêutico.

O exemplo trazido pela obra Metodologia da Ciência do Direito de Karl Larenzé bastante ilustrativo para se verificar uma direta construção da hermenêutica datradição no pensamento jurídico, cujos reflexos são fortemente sentidos por umaasseveração de uma jurisprudência orientada por valores. Não obstante Larenzenfatize a problemática da compreensão dentro dos parâmetros da jurisprudên-cia, que, para ele, se restringe a realizar a compreensão das expressões lingüís-ticas das normas e do sentido a elas correspondente,239 essa característica nãoinvalida, no plano jurídico, as discussões anteriormente travadas a respeito dacrítica à hermenêutica da tradição.

Pela ênfase nos desenvolvimentos práticos do Direito empreendida pela juris-prudência, poder-se-ia pensar, em uma primeira análise, que a crítica antes rea-lizada sobre a confusão da validade com a facticidade em Gadamer não é aquiestendida. Afinal, Larenz transfereo problema da validade normativa para o cam-po da filosofia do direito. Ele é muito enfático ao afirmar que “o jurista não pode,com métodos jurídicos, levar a sua indagação para além da validade normativa daConstituição. Tal constitui, como já observado, um problema de filosofia do direi-to”.240 Mas essa transposição não afasta, obviamente, a necessidade de que avalidade seja objeto de discussão em concreto, que exigirá mais do que umareferência à Constituição e ultrapassará o campo da metodologia jurídica. A pre-tensão de validade normativa, em sua amplitude filosófica, é uma constante pre-sença no pensamento jurídico. Segundo Larenz, “se o Direito apresenta umapretensão de validade normativa, não pode deixar de ser levada em conta aquestão, quer da sua fundamentação, quer dos limites dessa pretensão de valida-de”.241 Ele apenas, portanto, entende que, no campo da jurisprudência, o debatesobre a fundamentação do Direito – e, pois, sobre a validade normativa – ficalimitado pelo contexto de aplicação.

238 Ibidem, p. 237.239 Ibidem, p. 239.240 Ibidem, p. 230.241 Ibidem, p. 224.

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Se a jurisprudência para Larenz é uma “ciência compreensiva”,242 ela terá,inevitavelmente, de buscar uma justificação para sua realização. Esclarece eleque “a jurisprudência tem que empreendê-las sempre com referência ao Direitovigente, que procura compreender no seu sentido normativo, e isto quer dizersimultaneamente como uma (entre muitas possíveis) conformação da noção deDireito”.243 Essa conformação, por sua vez, embora se realize consoante a con-tingência analisada, é aberta, como ele mesmo confessa, para distintas justifica-ções. O problema que ora surge, porém, é de outra ordem. Não se está queren-do saber se a jurisprudência é capaz de interpretar a norma, dando-lhe umdeterminado sentido normativo, de acordo com diferentes possibilidades. O quese deseja saber é até que ponto a ênfase no processo hermenêutico-compreensi-vo, por Larenz adotado para desenvolver sua jurisprudência orientada a valores,é capaz de refletir rigorosamente sobre a validade normativa e sobre os funda-mentos justificadores do Direito – e isso mesmo com a relutância desse autor emtrabalhar essa temática no âmbito da jurisprudência.

Larenz, preocupado em estabelecer uma separação metodológico-científicapara cada uma das possíveis manifestações do pensamento jurídico – assim o fazem relação à história, à filosofia, à dogmática do direito, por exemplo –, preferiutransferir essa problemática para um plano jusfilosófico. Não há, em princípio,maiores questionamentos a essa transferência. De fato, a validade normativa éum problema de filosofia do direito.244 Mas a justificação do direito, seu funda-mento de validade, tem de ser refletido em cada aplicação concreta. E isso deuma forma rigorosa, que exige, como antes debatido, a transcendência do con-texto da tradição jurídica. Assim, mesmo na jurisprudência, que é, por excelên-cia, prática, não se pode prescindir da reflexão rigorosa sobre a validade normativa.Em toda realidade jurídica, opera-se a tensão entre validade e facticidade, entreuma pretensão de validade que visa a superar o contexto e uma facticidade quedebate argumentativamente essa pretensão de modo a ser significativamentecompreendida. Caso se limitasse a discussão ao plano meramente concreto derealização, sem a possível transcendência a partir de uma referência à comuni-

242 Ibidem, p. 239.243 Ibidem, p. 239.244 Larenz parece ainda dominado pela tradicional distinção entre os planos teórico e prático, afim de distinguir claramente que o campo das discussões complexas e de difícil solução é dematriz teórica (filosofia jurídica); já em aplicação é objeto da Jurisprudência, de nítida orientaçãoprática. Porém, sobretudo a partir do desenvolvimento da “teoria crítica”, essa distinção precisaser superada. Ao invés da rígida distinção, há de se afirmar uma constante tensão entre os planosda validade e facticidade e, por conseqüência, o teórico transcendente se “destranscendentaliza”nas práticas cotidianas de vida. A direta conclusão que se pode alcançar é que a separaçãometodológica de Larenz camufla essa tensão, que é inexorável ao direito. Para superar a sua pro-posta, deve-se afirmar que a Jurisprudência tem de estar constantemente refletindo rigorosamentesobre os pressupostos normativos, mesmo no âmbito de adequação da norma ao caso concreto.

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dade de comunicação ideal, a jurisprudência se cingiria a mostrar o presente,sem se direcionar para o futuro. É, nesse âmbito, que a ênfase em uma Jurispru-dência compreensiva pode ter um viés conservador e, seguindo a críticahabermasiana, ideológico.

Para elucidar essa discussão, basta perceber que Larenz sustenta que o es-clarecimento da situação presente se dá de acordo com o círculo hermenêutico,que, a partir de uma pré-compreensão, permite o alcance de um novo estádio decompreensão. Essa pré-compreensão é, tal como em Gadamer, condição docompreender. Sem ela, “seria difícil, ou de todo impossível, formar-se uma‘conjectura de sentido’”.245 A aplicação do Direito, conseqüentemente, requerum prévio aprendizado, uma habituação que vai moldando as normasdirecionadoras da ação singularmente considerada. “A sua ‘pré-compreensão’ éo resultado de um longo processo de aprendizagem”.246

Assim como a phrónesis anteriormente investigada, a pré-compreensão mani-festa uma tradição que adquire cunho normativo e, portanto, vai estabelecendoos parâmetros considerados consensualmente corretos para a aplicação do Di-reito. É essa base, tomada por uma tradição lingüisticamente mediada, queestrutura para Larenz a jurisprudência. Essa tradição consubstanciada nas nor-mas vigentes, nos precedentes judiciais, no pensamento jurídico corrente, mastambém no contexto social em que o intérprete se situa, constitui “o pano defundo de toda interpretação jurídica”.247 Diferentemente de Gadamer, entretan-to, Larenz apresenta a função regulativa da norma248 (“bitola que tem de mensuraro caso”),249 o que torna a atividade do jurista mais vinculada ao sentido por elatransmitido, como um parâmetro de eqüidade na aplicação normativa. Essamensuração realizada pela norma, como também a pré-compreensão adquirida,no entanto, por mais que sejam um conhecimento prévio imprescindível para acompreensão do Direito e sua aplicação, deverão continuamente ser reavaliadas,a fim de “questionar e retificar o seu entendimento prévio, face ao sentido que selhe vai revelando”.250

Existe, assim, uma pretensa orientação à reflexão da pré-compreensão. Seconsiderada um guia de orientação provisório, uma pauta normativa inicial quedeva ser, segundo cada novo caso concreto, reavaliada, tudo indica que o pro-cesso hermenêutico é, sempre, questionador de suas bases. E, segundo essa

245 LARENZ, Karl. A Metodologia da Ciência do Direito. op. cit., p. 244.246 Ibidem, p. 244.247 Ibidem, p. 247.248 A norma altera, de certa forma, o processo de compreensão do direito, em comparação coma atividade desenvolvida pelo historiador. A norma exige uma certa vinculação do sentido acompreender, de modo a estabelecer um parâmetro eqüitativo de aplicação normativa. Paratanto, vide LARENZ, Karl. A Metodologia da Ciência do Direito. op. cit., p. 251.249 Ibidem, p. 251.250 Ibidem, p. 248.

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característica, não haveria, em princípio, como negar o sentido prospectivo quelhe é inerente. Contudo, até que ponto essa reflexão consegue superar anormatividade transmitida pela tradição? Será que a metafísica no direito é su-plantada por esse questionamento de suas premissas, ao contrário do que severifica no jusnaturalismo ou mesmo no cientificismo jurídico formal-normativo?

Para responder a essas perguntas, primeiramente, deve-se investigar queLarenz, tal como Gadamer, liga a aplicação do Direito à linguagem. Afinal, ahermenêutica é essencialmente linguagem. Com isso, Larenz visa a superar omonólogo que também se presenciou no âmbito jurídico. Essa mudança de pos-tura, no entanto, está sempre restrita a um processo compreensivo que absolutizaa experiência hermenêutica. Não se encontra no plano da Jurisprudência – atéporque Larenz a restringe ao contexto de aplicação – nenhum interesse em pro-mover a transcendência da reflexão. Em síntese, a Jurisprudência opera sempredentro de um modelo, dentro das estruturas institucionalmente consagradas.

Em uma primeira investigação, estar dentro de um modelo ou das estruturasinstitucionalmente consagradas é inerente à Jurisprudência. Não há, afinal, apli-cação do Direito que prescinda dessas premissas da compreensão. Essa assunçãoprévia, contudo, não pode corresponder a uma passividade em relação à cons-tante permanência de interesses estratégicos que impedem o avanço da razãoorientada ao entendimento. Pelo signo da tradição, normalmente protegida peloprincípio da segurança jurídica, pode estar presente o interesse em perpetuaruma identificação com o modelo, sem incitar, pois, o caminho de superação dasestruturas conservadoras. A reflexão rigorosa, no Direito, por mais que tenha depressupor determinado consenso social, precisa estar acima das coações gera-das pelas instituições. A crítica anterior a respeito da hermenêutica da tradiçãopode ser transporta para o direito para enfatizar que a intersubjetividade – queé reconhecida por Larenz como uma característica própria o desenvolvimentojurídico – precisa corresponder a uma orientação não-coerciva do agir. Aintersubjetividade trazida pela tradição, ao contrário, pode estar carregando con-sigo exatamente essa coação, no intuito de se determinarem os caminhos a se-guir de modo uniforme. Essa característica, no entanto, faz com que a reflexãonão radicalize a própria facticidade.

A projeção da reflexão rigorosa sobre o Direito não significa uma tendência aafastar o princípio da segurança jurídica, como possivelmente poderia ser pensa-do. Ao contrário, o que ela promove é um constante debate sobre os pressupos-tos que orientam a ação no Direito. Afirmar a segurança jurídica sem que ospressupostos que a guiam sejam lançados ao crivo da crítica sustenta umametafísica nas bases da validação normativa. Por isso, malgrado se defenda aimportância desse princípio, isso não afasta a exigência de que ele seja objeto deconstante questionamento. A tensão entre validade e facticidade irrompe nessedebate: até que ponto determinado argumento preserva a segurança jurídica?Mais do que isso, há de se perguntar: que segurança jurídica é desejável?

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É muito simples camuflar, sob a roupagem desse princípio, diferentes orien-tações que impedem a promoção do agir comunicativo. E isso se torna maisdramático quando sequer a reflexão rigorosa é compreendida em sua verdadei-ra dimensão. Muito mais do que tornar transparente a tradição e a historicidadedo Direito, deve-se entender a comunicação como idéia regulativa do agir. Ocírculo hermenêutico, quando transportado para o plano da aplicação do Direi-to, ao invés de entender a tradição jurídica como simples idéia regulativa, fazdela um determinante do compreender. É nesse aspecto que o princípio dasegurança jurídica revela os perigos de sua aplicação sem que ele mesmo sejalevado à crítica. E, por outro enfoque, é nesse âmbito que se verifica o quãorelevante se torna a crítica dos pressupostos normativos – como é o princípio dasegurança jurídica – para se poder pensar um trajeto de superação das estrutu-ras de dominação.

Afinal, como questiona Milovic a respeito da hermenêutica da tradição, “oque significa criticar a subjetividade, voltar para uma perspectiva objetiva, voltarpara a tradição, quando faltam os elementos para poder criticar a própria tradi-ção”?251 Mesmo restrito – como o faz Larenz – a determinado contexto, a defesado círculo hermenêutico no desenvolvimento prático do Direito expõe um impor-tante problema de método. Ele não fornece as bases para a crítica rigorosa dospressupostos normativos.

Não há separação metodológica ilesa que possa partir da afirmação de que,no âmbito concreto de realização do Direito, o círculo hermenêutico é a expres-são de sua compreensibilidade; já o âmbito das discussões complexas, como ospressupostos normativos, se realiza na filosofia jurídica. Essa artificialidade gera-da pelo interesse de Larenz em distinguir cada um dos campos do pensamentojurídico não condiz com a dimensão que o Direito apresenta. Afirmar que não sepode, com métodos jurídicos, problematizar a validade normativa além da Cons-tituição252 é uma escusa que explicita o íntimo contato do autor com a tradicionalconcepção de método advinda da ciência. E isso, sobretudo depois dos avançostrazidos pela crítica da ideologia, não mais se sustenta. Afinal, existe métodojurídico que não desembocará em uma questão de conteúdo filosófico? A Juris-prudência, antes de ser um processo hermenêutico, convive com a tensão entrevalidade e facticidade. Isso ultrapassa o contexto da tradição; está além da restri-ção às normas vigentes em dada realidade.

Inexiste acordo com o passado que possa ser afastado da crítica. Até porqueos acordos podem advir de um propósito ideológico. Há de ir além do sistema,das estruturas jurídicas; há de se repensar a razão. Por isso, a filosofiahabermasiana abre um importante contraponto à hermenêutica da tradição noâmbito do Direito. Ela estabelece os parâmetros para se pensar uma racionalidade

251 MILOVIC, Miroslav. Comunidade da Diferença. op. cit., p. 128.252 LARENZ, Karl. A Metodologia da Ciência do Direito. op. cit., p. 230.

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que não se confunde com a historicidade. Entendida a tradição jurídica comoidéia regulativa, ela passa a ser constantemente problematizada.

Se, por um lado, a tradição jurídica, para a hermenêutica da tradição, é enten-dida como condição do compreender, por outro, a afirmação do agir orientado aoentendimento torna cada vez menos necessário esse “peso” do passado. O escla-recimento argumentativo, pautado pela intersubjetividade não-coativa, torna-semuito mais prospectivo do que a pré-compreensão nos moldes da hermenêuticada tradição. Ao invés de uma aceitação das normas e dos precedentes judiciais,que indicam uma constância dos efeitos, questionar a pré-compreensão sugereuma participação efetiva dos atores sociais. Para tanto, tem-se de superar, aomenos idealmente, as estruturas coercivas do contexto social. Assim, cada vezmais, os próprios intérpretes – que não se restringem apenas a juízes, mas seestendem a toda sociedade – consideram-se “autores racionais das normas”, oque, por sua vez, consagra uma “legitimidade participativa no Direito”.

A legitimidade democrática, portanto, opera em outro patamar: ela decorrede um esclarecimento dos atores sociais a respeito dos diferentes interesses pre-sentes na sociedade, de modo a incitá-los a orientar o agir em prol do entendi-mento. Se tomados os alicerces estabelecidos pela hermenêutica da tradição, acompreensão pode ser contaminada, ou melhor, distorcida, pois os elementos docompreender se encontram no mesmo âmbito da tradição.

Quando Larenz afirma, na defesa de uma jurisprudência orientada a valores,que “compreender uma norma jurídica requer o desvendar da valoração nelaimposta e o seu alcance”,253 não prevê, em comparação com Habermas, a rela-ção da compreensão com uma participação efetiva dos atores sociais baseada emuma pretensão ideal do discurso, a fim de a suplantar os interesses estrategica-mente motivados. Ele simplesmente mostra que o Direito é, por excelência, umâmbito da valoração. E, já que o círculo hermenêutico opera dentro de um mode-lo, os interesses estrategicamente motivados podem ser considerados, sob essaperspectiva, condição do compreender. Em síntese, aquilo que dificulta o enten-dimento coletivo dos pressupostos normativos – o que é essencial para a legitimi-dade democrática do Direito – pode ser transmitido como tradição jurídica, con-cebida como condição da compreensão do Direito e cuja proteção se efetiva peloprincípio da segurança jurídica.

Sob a expressão “tradição do Direito”, torna-se possível camuflar toda umagama de interesses que, em uma investigação mais detida, impedem ou dificul-tam, consoante a crítica da ideologia, a legitimação democrática do Direito. Ametafísica, decorrente da irreflexão rigorosa sobre a validade normativa, sustentatoda uma valoração que, em si, é praticamente apenas dada e, mesmo quando sepensa em discuti-la, permanece-se sempre em uma relação estratégica com ummundo já constituído.

253 Ibidem, p. 253.

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A crítica da jurisprudência orientada a valores, ora analisada a partir dateoria de Larenz, deve partir dessa indagação nuclear: até que ponto suaspremissas são hábeis para incitar a reflexão rigorosa sobre os pressupostosnormativos? Se tomadas as próprias palavras do autor de que “a metodologia dequalquer ciência é, antes do mais e em primeiro lugar, a reflexão desta ciênciasobre o seu próprio proceder, sobre os modos de pensamento e os meios deconhecimento que lança mão”,254 a pergunta pode ser contextualizada nosseguintes termos: será que a metodologia assumida por Larenz realmente refletesobre o seu próprio proceder, seus modos de pensamento e os meios deconhecimento empregados?

Parece que, nesse aspecto, se verifica a dificuldade de se defender, semmaiores críticas, sua teoria. Afinal, para Larenz, a “metodologia da Jurisprudên-cia pode, nesta conformidade, caracterizar-se como a sua auto-reflexão à luz dahermenêutica”,255 mas, como já reiteradamente discutido, mediante essa trans-posição da hermenêutica para o Direito, não se tem êxito na real compreensãodos pressupostos normativos. Os atores sociais, então, realizam uma compreen-são distorcida, tomada pela falta de crítica sobre os pressupostos normativos.

O esclarecimento, segundo seu pensamento, ocorre dentro da estrutura cir-cular da hermenêutica. Chega a ser até curiosa, após toda a discussão até entãoempreendida, a afirmação de que metodologia da jurisprudência, que faz umamediação entre hermenêutica e jurisprudência, “só pode ‘esclarecer’ na medidaem que se eleva acima dos preceitos – e também dos de natureza metodológica– de cada ordenamento jurídico, e os examina à luz dos conhecimentos geraisda hermenêutica”.256 Mas até que ponto “examinar à luz dos conhecimentosgerais da hermenêutica” promove o esclarecimento? É nesse aspecto que há dese realizar a crítica. E, sobretudo, é a partir dessa premissa que se podemantever as possíveis conseqüências da irreflexão sobre os pressupostos normativosno âmbito da aplicação do Direito (ou Jurisprudência, na separação metodológicarealizada por Larenz).

A ênfase no particularismo do contexto histórico, do modo desenvolvido porLarenz no campo da Jurisprudência, acarreta uma dificuldade dentro de suaprópria proposta metodológica. Como antes desenvolvido neste capítulo, ahermenêutica da tradição lança o plano da validade ao campo da facticidade.Larenz, ciente dos problemas que poderiam advir dessa transposição direta parao direito, alega que a linguagem normativa não se confunde com aquela desenvol-vida no plano fáctico, embora não se possa negar a interdependência de ambas.Porém, no plano da Jurisprudência, em que o Direito se realiza em concreto,evidentemente o problema dos pressupostos normativos também está em jogo.

254 Ibidem, p. 289.255 Ibidem, p. 293.256 Ibidem, p. 296.

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Quando, todavia, Larenz restringe a Jurisprudência a determinado contextonormativo, mesmo que ela tenha reflexos objetivos em outras realidades257– e,nesse caminho, defenda a aplicação do círculo hermenêutico-compreensivo – avalidade é analisada de modo “destranscendentalizado”. E, mesmo que elucide abitola da norma, que exige a eqüidade na realização prática do Direito e que seestabelece acima do contexto (afinal, a norma se aplica a distintas realidades), areflexão é contingente; ela opera dentro de um modelo previamente definido.

Não se vê, na discussão da Jurisprudência por Larenz travada, a necessáriatranscendência da reflexão. Os pressupostos normativos, no campo da Jurispru-dência, adquirem importância para seu método enquanto contextualmente relaci-onados, isto é, limitados ao âmbito da Constituição. O que for além disso é objetoda filosofia do direito. Isso porque o círculo hermenêutico é, por excelência, essainserção dos pressupostos normativos no próprio espectro de facticidade, que,por sua vez, fornece as condições de compreensão dos pressupostos normativos.O círculo fecha-se em sua própria dinâmica, sem projetar um possível caminho dese colocar acima do contexto da tradição na discussão da validade normativa.

É esse o motivo por que, em uma primeira investigação, parece possívelseparar as duas ordens de análise. Enquanto compreensão da prática do Direito,o círculo hermenêutico permite o fechamento do debate dentro do que ahistoricidade e a finitude do Direito sob investigação fornecem. É exatamenteisso que Larenz deseja: circunscrever a Jurisprudência a seu desenvolvimentoconcreto dentro de determinado contexto institucional de realização. O que ul-trapassar esses parâmetros já não pode mais a Jurisprudência, com seus méto-dos próprios, responder.

Em síntese, poder-se-ia afirmar que a extensão do círculo hermenêutico paraa defesa de uma jurisprudência de matriz valorativa se realizou perfeitamente.Com a distinção dos campos de investigação – Jurisprudência e filosofia do direito–, o problema que a crítica da ideologia promoveu a respeito da teoria gadamerianase enfraquece, pois o círculo hermenêutico opera dentro de um debate que não seconfunde com aquele próprio da validade normativa em toda sua dimensão filosó-fica. Essa saída é, sem dúvida, bem desenvolvida. Contudo, ao se realizar umexame mais detido, percebe-se que os pressupostos normativos continuam isentosde crítica. Refletir a respeito dos pressupostos normativos, na aplicação do Direi-to, cinge-se a uma dinâmica do círculo hermenêutico. Uma possível transcendênciada reflexão, por conseguinte, não integra o método da Jurisprudência.

257 É o que Larenz denomina de “contributo cognoscitivo da Jurisprudência”. Segundo o autor:“Os enunciados da Jurisprudência referem-se de modo imediato ao Direito vigente aqui eagora. Mas este dá resposta a questões que não se colocam só a esta comunidade jurídica, mas,de modo semelhante, também a outras. Não são só problemas precisamente desta ordem jurídi-ca, mas, em maior ou menor grau, problemas jurídicos gerais” (LARENZ, Karl. A Metodologiada Ciência do Direito. op. cit., p. 288).

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Por decorrência, para se contrapor à Jurisprudência defendida por Larenz,há de se reconhecer um desenvolvimento prático do Direito que, constantemen-te, supere o fechamento compreensivo empreendido pelo círculo hermenêutico.Assim, compreender a finitude e a historicidade, como também a tradição jurí-dica e a vinculação promovida pela bitola da norma, não é suficiente para aaplicação do Direito. É necessário tambem se operar a reflexão rigorosa sobre ospressupostos normativos também na Jurisprudência.

Se a “destranscendentalização” da razão realizada pela hermenêutica conse-guiu estabelecer novos parâmetros para a filosofia e para a filosofia do direito, atranscendência revitalizada pela pragmática universal da linguagem – mesmoque também preveja a “destranscendentalização” e a descentralização da razão(eis a tensão entre validade e facticidade)258 – trouxe a abertura para criticar aideologia também presente na Jurisprudência. As condições do pensamento nãose restringem à imanência de uma prática cotidiana de vida; elas apontam parauma comunidade de comunicação ideal. Com essa nova projeção teórica, passa-se a ter, como base, uma reflexão contínua das premissas do Direito e os pressu-postos normativos são submetidos a um constante debate público, cuja validadese presume a partir de uma estrutura intersubjetiva não-coerciva.

A defesa da reflexão rigorosa sobre os pressupostos normativos, pautada porum enfoque de participantes orientados ao entendimento, traz uma nova visãopara o Direito. Por mais que a tradição e as estruturas jurídicas sejam relevantespara a própria dinâmica jurídica, elas também devem ser constantemente levadasao crivo da crítica. É nesse caminho que se poderá desvendar o agir orientado aosucesso, estrategicamente motivado a dificultar a promoção da comunicaçãosocial, como também estabelecer o campo da discussão a respeito da validadenormativa. Habermas salienta que “a liberdade comunicativa dos cidadãos pode,como vimos, assumir, na prática da autodeterminação organizada, uma formamediada através de instituições e processos jurídicos, porém não pode sersubstituída inteiramente por um Direito coercitivo”.259 E é exatamente odesprendimento desse direito coercitivo que a aplicação da hermenêutica datradição no âmbito da Jurisprudência não enseja. A crítica, ao contrário, operadentro das estruturas coercitivas, até mesmo como condição do compreender.

A integração promovida pelo Direito não pode se espelhar em um “acordonormativo já pronto ou conseguido em fontes de solidariedade”.260 Tampouco oDireito consegue “assegurar-se dos fundamentos de sua legitimidade apenasatravés de uma legalidade que coloca à disposição dos destinatários enfoques e

258 Será mais pormenorizadamente analisada no capítulo seguinte.259 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade. Vol. I. op. cit., p.54.260 Ibidem, p. 55.

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motivos”.261 Há de se refletir rigorosamente a respeito das premissas do pensa-mento jurídico e isso vai muito além de uma referência ao contexto particular.Por isso, como bem aduz Milovic, “a reflexão rigorosa opera justamente nesseâmbito transcendental, porquanto investiga as premissas que haviam sido sem-pre admitidas”.262 O que sempre foi admitido pelo Direito, por conseqüência,passa a ser objeto de crítica. Assim, é mais que bem-vinda a observação desen-volvida por Castanheira Neves: “para além da questão hermenêutica (a questãoda possibilidade ou das condições de possibilidade do compreender), o proble-ma da validade (o problema do fundamento da validade do possivelmente com-preensível ou compreendido) e de uma específica intencionalidade problemáti-co-constituinte”.263

Com essa nova orientação, o problema da aplicação do Direito torna-se umadecorrência de uma reflexão rigorosa que revelará a tensão entre facticidade evalidade. E, dessa tensão, conseguir-se-á realizar a projeção democrática a partirda premissa de uma intersubjetividade não-coerciva e, por sua vez, da conse-qüente “destranscendentalização” da razão no intuito de serem os pressupostosnormativos discutidos e significativamente compreendidos.

O passado tradicional, nesse caminhar, transmuda-se em guia de orientação,em núcleo de interpretação. Com a reflexão rigorosa, a ênfase hermenêutica deaplicação do Direito se enfraquece. À hermenêutica, contrapõe-se a “discussão

261 Ibidem, p. 54.262 MILOVIC, Miroslav. Filosofia da Comunicação. Para uma Crítica da Modernidade. op. cit.,p. 293.263 Neves, abordando, de modo geral a respeito da hermenêutica no pensamento jurídico, assimargumenta (faz-se a observação que Larenz defende uma distinção entre o normativo e o fáctico):“Igualmente esta questão capital ficará sem uma resposta concludente invocando, no contextodo sistema jurídico vigente, tão-só como fundamento padrão da prática jurídica judicativamenterealizanda a prática judicativa realizada, numa fundamentalmente continuidade prática, commargens embora de aberta novidade, que a analogia ou a ‘matriz analógica’ dialógico-argumentativamente sustentaria e justificaria: a consistência prática e da prática, com critério naanalogia, é um factor relevante, mas não pode ser a última palavra da intencionalidade normativa,do próprio sentido normativo da prática jurídica enquanto pretenda ser ela decerto uma práticajurídica válida. E não será também num ‘princípio hermenêutico’ nos termos em que o vimosreferido, nessa sua tão aberta indeterminação, que lograremos obter o fundamento dessa vali-dade. Ou seja, a validade axiológico-normativa que se implica no projeto regulativo do direitoperante a realidade histórico-social não a atingiremos, no verdadeiro sentido da sua específicanormatividade, ficando na imanência da prática jurídica e pela explicação apenas do seu pro-cesso constituinte e da sua consistente continuidade histórica, sem criticamente a transcender-mos aos próprios fundamentos axiológicos (os valores) e normativos (os princípios) da sua inten-cional e válida constituição histórica – ao seu próprio e fundamentante poiético sentido devalidade axiológico-normativa” (NEVES, Castanheira A. A Crise Actual da Filosofia do Direitono Contexto da Crise Global da Filosofia: Tópicos para a Possibilidade de uma Reflexiva Reabili-tação. op. cit., p. 67).

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pública dos intérpretes” que, criticando rigorosamente as pretensões de valida-de, sentem-se e agem como autores racionais da norma. Assim, enquanto umjulgamento hermenêutico se coaduna com uma tradição lingüisticamente medi-ada – e, nesse propósito, possa também criticá-lo em seu contexto –, a aplicaçãodo Direito centrada na reflexão rigorosa enseja uma ampliação dos canais efeti-vos de comunicação. A sua legitimação está intimamente relacionada com aação realizada em concreto. Por isso, reflete-se para emancipar. E emancipar,em Direito, requer superar o contexto de sua tradição. Emancipar, em Direito,exige a ação orientada ao entendimento dos pressupostos normativos.

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CAPÍTULO IV

O ESCLARECIMENTO E A DIALÉTICAEMANCIPATÓRIA DA COMUNICAÇÃO

A RENOVAÇÃO FILOSÓFICA PARA UMA MODERNIDADEREFLEXIVA E UM DIREITO QUE INCLUA O OUTRO

4.1. INTRODUÇÃO

Nos três capítulos anteriores, foram investigadas três importantes metafísicasdo pensamento jurídico: metafísica da natureza, metafísica formal-normativa emetafísica da historicidade. Não obstante apresentem características radicalmentedistintas, todas caminham para um ponto comum de lacuna na reflexão rigorosasobre os pressupostos normativos. Como contrapartida a essas metafísicas, afir-mou-se, paulatinamente, a importância de uma teoria que conseguisse estabele-cer um novo patamar para a reflexão jurídica, utilizando-se, para tanto, a teoriado discurso desenvolvida por Jürgen Habermas.

Contra a metafísica da natureza – sem dúvida, a mais explícita –, a propostahabermasiana estabelece a intersubjetividade como característica essencial parase superar justificativas normativas que, paradoxalmente, não se justificam, poisnão são submetidas à crítica e à auto-referência social, mesmo quando tomadaspela ênfase kantiana da subjetividade constitutiva. Prevalece a crença em umanatureza das coisas ou em uma natureza advinda da razão humana, sem a neces-sária radicalização discursiva dessa própria crença. Contra a metafísica formal-normativa – aqui analisada a partir do projeto kelseniano –, mostra-se que aprimazia do teórico e o intuito de estabelecer o ato de conhecer na ciênciajurídica fecham-se sobremaneira em sua estrutura lógico-formal, que a questãoda validade normativa, nos moldes críticos ora propostos, não é debatida. Atranscendência normativa fica limitada, quando centralizada nas premissasmetodológicas de uma pretensa teoria pura do Direito. E, no momento em quese pensa em superar essa primazia do teórico pela ênfase na práxis do Direito,aduzindo, para tanto, a historicidade e a finitude do ser a partir dos desenvolvi-mentos da hermenêutica gadameriana, uma nova metafísica aparece. A tradi-ção, mesmo quando já se pressuponha a linguagem em suas bases, tambémobscurece a reflexão rigorosa, porque se torna uma premissa normativa que nãotranscende o seu contexto de aplicação. Torna-se, assim, contaminada por pos-síveis interesses estratégicos, inviabilizando a necessária crítica da validadenormativa, que exige ir além do contexto da historicidade.

Este capítulo, por sua vez, quer fornecer os argumentos para se pensar emum caminho de promoção da reflexão rigorosa sobre os pressupostos normativos.Porém, mais do que revelar uma possível saída pós-metafísica, ele quer mostrar

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as conseqüências de uma radicalização da racionalidade. Essa radicalizaçãoatinge, diretamente, a própria concepção de como pensar os pressupostosnormativos.

O Direito assume a sua específica condição discursiva e transforma-se eminstrumento de promoção do agir comunicativo, do agir orientado ao entendi-mento. A partir desse enfoque, pode-se perceber qual é a relevância de seconceber outra racionalidade jurídica, fundada em uma intersubjetividaderegulativa, que, por sua vez, incita uma validade que não se confunde com oplano da facticidade. A premissa de uma comunidade de comunicação ideal ede uma comunidade de comunicação real enseja uma característica que as teo-rias preteritamente analisadas do normativo não alcançaram. Ou elas ficaramem uma transcendência que não consegue se justificar (a validação normativa ésilenciada) ou estabeleceram uma radical “destranscendentalização” queinviabilizou qualquer projeto de emancipação pautado pelo discurso, pois sem-pre se mantiveram dentro do mesmo contexto das instituições e estruturas soci-ais de referência. Por isso, a “destranscendentalização”, nesse processo, estásempre dentro de determinado modelo de estrutura social.

Em oposição a essas concepções, a teoria habermasiana promove a tensãoentre transcendência e “destranscendência”, entre validade e facticidade. Eessa perspectiva favorece um claro propósito de crítica das estruturas sociais porintermédio da ênfase comunicativa. Não sem motivo, Habermas dedicou todauma obra ao estudo do Direito e da Democracia, intitulada Faktizität und Geltung,em português traduzida para Direito e Democracia entre Facticidade e Validade.Nela, estão assentadas as condições de um novo olhar sobre a validade normativa.É um olhar, como reiteradamente tem sido enfatizado nesta pesquisa, que “seolha”. Em termos mais diretos, é uma validade que é objeto de reflexão rigorosaa partir de uma teoria discursiva. Com fundamento na filosofia, assim, alcança-se um novo patamar de reflexão do normativo.

É um capítulo, portanto, que se inicia com as seguintes indagações: 1) comorefletir, de modo rigoroso, a respeito dos pressupostos normativos?; 2) Como sepoderia pensar, nessa dimensão, uma superação da metafísica no Direito?; 3)Em que medida a teoria habermasiana se contrapõe às metafísicas normativasanteriormente aludidas? São indagações que, paulatinamente, poderão mostraruma nova percepção do normativo. Com base em uma ação orientada ao enten-dimento, a própria estrutura do jurídico é radicalizada. Ao invés de uma preten-são conservadora de manutenção do mesmo, às vezes centrada no princípio dasegurança jurídica, quer-se despertar o novo, que é rigorosamente refletido eque não prescinde de uma direta referência social, intersubjetiva de deliberaçãoargumentativa, por meio de uma premissa ideal de validação e de um pressupos-to concreto de compreensão significativa. Em síntese, aqueles princípios a quenormalmente se recorre para justificar determinada conduta são submetidos àcrítica. É o debate coletivo que poderá ensejar novos caminhos para o normativo;

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1 MIROSLAV, Milovic. Comunidade da Diferença. op. cit., p. 79.

é ele que o torna transparente. O movimento, portanto, a partir da ênfase discursivaé: os pressupostos normativos têm de ser transparentes.

Por outro lado, há de se investigar a extensão da teoria habermasiana. Seráque, pela ênfase no universalismo do discurso, se obscurece a própria compreen-são da realidade? Milovic, por exemplo, aduz que a teoria habermasiana “deixaa impressão de que está reduzindo o mundo da vida a uma estrutura comunicati-va”.1 E, para problematizar ainda mais, pergunta-se: será que a comunicaçãoresolve? Até que ponto se pode confiar na comunicação como caminhoemancipatório? Pode ser que outras saídas devam ser procuradas.

Mas, de qualquer forma, não se pode refutar que a teoria habermasiana abrenovas saídas, indica novos caminhos, promove novos olhares. Sobretudo pelaênfase na necessidade de superação das estruturas colonizadoras da razão, apragmática universal da linguagem já demonstra um descontentamento com omundo. É um descontentamento, contudo, que não se cinge a revelar as mazelasque o levaram a tanto. Mais do que investigativa e esclarecedora dos tempos, ateoria habermasiana quer favorecer a construção de um novo mundo e, paratanto, de um novo mundo jurídico. É um mundo pautado pelo entendimento, quefaz da comunicação o alicerce de radicalização das estruturas coercivas e impeditivasda compreensão efetiva do potencial emancipatório de cada um. Esseencorajamento para o novo, mostrando uma possível saída a partir da crença nafilosofia e, por conseqüência, na racionalidade, possivelmente, é o que mais cha-ma a atenção em sua teoria. Ele não é o teórico da diagnose de seu tempo – outrosjá o fazem com o mesmo espírito; ele é um teórico de uma emancipação possível.

O trajeto deste capítulo começa pela investigação de sua teoria no âmbito doDireito. A partir de algumas referências, já se pode prever o que ele tanto visa aargumentar também nesse âmbito do saber. A ênfase no Direito não rompe coma estrutura de sua teoria do agir comunicativo, já anteriormente por ele apresen-tada. É, na verdade, uma extensão de sua teoria a um âmbito em que se podeverificar sua aplicabilidade mediante as instituições jurídicas. Ele quer mostrarque o Direito pode promover o agir orientado ao entendimento. Na verdade, éessa a sua condição de legitimidade.

Para tanto, porém, deve-se compreender algumas características da teoria doagir comunicativo e, nesse caminhar, perceber-se-á o quão radical é seu pensa-mento. Por isso, serão efetuados um estudo sincrônico e outro diacrônico de suateoria. Conseguir-se-á, nesse ponto, perceber a matriz de seu pensamento.Estendê-la ao jurídico, compreendida essa etapa, não gerará maiores dificulda-des. No plano do Direito, afinal, a tensão entre validade e facticidade, que é tãoreiteradamente por ele enfatizada em sua obra, é explícita e é, dessa tensão, quese poderá verificar uma possível saída emancipatória também dentro de estrutu-ras jurídicas e de suas instituições.

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4.2. A TEORIA DO AGIR COMUNICATIVO E AS INSTITUIÇÕES JURÍDICAS

Logo no prefácio de sua obra Direito e Democracia entre Facticidade e Vali-dade, Jürgen Habermas salienta que a Teoria do Agir Comunicativo “não é cegapara a realidade das instituições – nem implica anarquia”.2 E, possivelmente,este é o principal objetivo dessa obra: explicitar que a Teoria do Agir Comunica-tivo tem aplicabilidade na análise das instituições e, além do mais, é um interes-sante foco de estudo para verificar, concretamente, como ela é viável. Com essainvestigação, Habermas explicita que, no estudo das instituições, a “teoria dodiscurso procura reconstruir essa autocompreensão de maneira a afirmar-se contrareduções cientificistas e contra assimilações estéticas”.3 Como uma sugestãomarxista, mas ainda crente no potencial filosófico, é possível tornar a filosofia,também no âmbito das instituições, um importante fundamento transformador,afastando-se de um tradicional papel de mera contemplação do mundo.

Em contraposição a uma “razão que conduz um processo contra si mesma”,4defende-se a possibilidade de uma racionalidade que não caminha para umainstrumentalização e colonização do mundo da vida.5 É necessário, no âmbitodas instituições, “uma solidariedade social a ser recuperada e conservada emestruturas jurídicas”.6 É nesse aspecto que a Teoria do Agir Comunicativo assu-me um papel interessante no âmbito do Direito. Com o enfoque nas condiçõesdos atuais Estados de Direito, afirma Habermas que é preciso assegurar uma“democracia radical”,7 a partir do momento em que os sujeitos privados “tive-rem clareza sobre interesses e padrões justificados”8 e puderem alcançar um“consenso sobre aspectos relevantes”.9

A teoria de Habermas insere-se, portanto, consoante Milovic, na possibilida-de da afirmação da “emancipação como reflexão”.10 Realmente, seu propósito éde esperança em relação ao papel da filosofia como apta a transformar os pres-supostos da modernidade, dando condições aos processos emancipatórios. Éuma resposta otimista sobre a modernidade, tentando nela encontrar os funda-mentos para a superação das estruturas que fizeram, também no âmbitoinstitucional, abafar as possibilidades de emancipação social.

2 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade. Vol. 1. op. cit., p.11.3 Ibidem, p. 11.4 Ibidem, p. 125 Instrumentalização e mundo da vida são conceitos que adiante serão analisados. O primeirodecorre do avanço das ações voltadas para o sucesso e o segundo é um “pano de fundo consensual”a respeito dos pressupostos normativos que se realiza no cotidiano das práticas de vida.6 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade. Vol. 1. op. cit., p. 13.7 Ibidem, p. 13.8 Ibidem, p. 13.9 Ibidem, p. 13.10 MIROSLAV, Milovic. Comunidade da Diferença. op. cit., p. 52.

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Um significado que pode ser retirado de seu pensamento é: ainda é possívelacreditar na filosofia; ela pode fornecer outros critérios para a racionalidade. Aoinvés de se voltar para uma razão que tem promovido os processos de “coloniza-ção do mundo da vida”, estabelecer uma razão baseada na intersubjetividade, nacomunicação social. A teoria habermasiana quer expressar um “voltar para aação, para os seres humanos como atores da própria história”.11 Ela que estabe-lecer a “possibilidade de articular uma sociedade auto-reflexiva que é capaz derepensar as condições da própria constituição e confrontar-se, assim, com a ide-ologia”.12

É um novo olhar sobre a filosofia. É uma refutação ao pensamento sobre aconsumação de seu papel. Afinal, como salienta Castanheira Neves, “a filosofiaterá sido a matriz das condições de possibilidade das várias ciências, mas estas,ao autonomizarem-se e ao assumirem em si mesmas a sua própria críticaepistemológica, dariam por consumado o papel da filosofia nesse sentido”.13

Habermas, ao contrário, quer enfatizar que essa autonomização realizada pelaciência, exatamente por ter caminhado para um processo de colonização domundo da vida, acabou por impossibilitar a metacrítica científica.14 Mais especi-ficamente, revela a ideologia, a fetichização da realidade. Há, por isso, de seinvestigar outros padrões de racionalidade. No lugar de afirmar que foi anuladaa pretensão de validade da filosofia pelo avanço da ciência,15 Habermas destacaa pretensão de validade universal por meio da linguagem.

Ao aplicar a Teoria do Agir Comunicativo no âmbito do Direito, Habermasenfatiza que ela forma “um contexto apropriado para uma teoria do Direitoapoiada no princípio do discurso”.16 Sua Teoria, por assim dizer, consegue esta-belecer um fundamento “social” ao Direito, fato que, paradoxalmente, foi prete-rido por um processo de explícita primazia do teórico, como se verificou naTeoria Pura do Direito de Hans Kelsen, exemplificando o que Habermas deno-mina “conceito forte de teoria”.17 Ao contrário de uma tentativa que, emboraapresente a subjetividade constitutiva, busca tornar o conhecimento científico-jurídico algo relacionado estritamente com o âmbito teórico e, ao mesmo tempo,voltado para o intuito de qualificação científica do Direito, Habermas pretendeencontrar no Direito um mecanismo de promoção do agir comunicativo.

11 Ibidem, p. 65.12 Ibidem, p. 66.13 NEVES, A. Castanheira. A Crise Actual da Filosofia do Direito no Contexto da Crise Global daFilosofia. Tópicos para a Possibilidade de uma Reflexiva Reabilitação. op. cit., p. 10.14 Afinal, a ciência deixa de questionar os seus próprios pressupostos, centrando-se unicamentena busca pelo conhecimento de seu objeto investigativo. Conhece-se, mas, não se reflete arespeito do ato de conhecer.15 MIROSLAV, Milovic. Comunidade da Diferença. op. cit., p. 65.16 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade. Vol. 1. op. cit., p. 24.17 HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-Metafísico. op. cit., p. 41.

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Não se tem mais o interesse por uma redução do Direito ao âmbito daepistemologia jurídica; não mais se aplica um conhecimento jurídico que se afastadas situações contextuais em que é desenvolvido. O Direito pode, assim, assumiruma função relevante para a promoção da “política deliberativa”.18 É um proces-so de asserção de uma nova racionalidade possível também no plano jurídico. Éessa racionalidade, fundada na comunicação social, que dará os subsídios deuma distinta nova compreensão do papel que ele deve assumir.

Na medida em que se freia a mobilização comunicativa de argumentos, provocan-do automaticamente o silenciamento da crítica, as normas e valores autoritáriospassam a formar para os que agem comunicativamente um leque de dados quepermanece subtraído à corrente de problematização de seus processos de enten-dimento. A integração social, que se realiza através de normas, valores e entendi-mento, só passa a ser inteiramente tarefa dos que agem comunicativamente namedida em que normas e valores forem diluídos comunicativamente e expostos aojogo livre de argumentos mobilizadores, e na medida em que levarmos em contaa diferença categorial entre aceitabilidade e simples aceitação.19

O Direito, dessa forma, deve ser articulado de modo a não se voltar para umametafísica formal-normativa, como se evidencia no positivismo jurídico kelseniano,tampouco para uma metafísica natural, própria do jusnaturalismo. Ele deve tercomo premissa, primeiramente, uma preocupação com o outro, enfatizando,portanto, a solidariedade.20 Em síntese, o Direito deve ser compreendido em suaconfiguração essencialmente social. Sua função é promover os processos deampliação de uma comunicação efetiva na sociedade, instigar a política delibera-

18 Habermas salienta que o direito deve seguir os parâmetros de uma teoria discursiva, em quecada cidadão se sente e age como autor racional do direito. A idéia de “política deliberativa”nasce nesse contexto, em que os sujeitos deliberam a respeito das diretrizes propostas, sempredentro de um pressuposto de intersubjetividade de processos de entendimento. Segundo Habermas:“A teoria do discurso conta com a intersubjetividade de processos de entendimento, situadanum nível superior, os quais se realizam através de procedimentos democráticos ou na redecomunicacional de esferas públicas políticas (...). Dessa compreensão da democracia resulta aexigência normativa de um deslocamento dos pesos nas relações entre dinheiro, poder adminis-trativo e solidariedade, a partir das quais as sociedades modernas satisfazem suas necessidadesde integração e de regulação. Aqui as implicações normativas são evidentes: a força social eintegradora da solidariedade, que não pode ser extraída apenas de fontes do agir comunicativo,deve desenvolver-se através de um amplo leque de esferas públicas autônomas de processos deformação democrática da opinião e da vontade institucionalizados através de uma constituição,e atingir os outros mecanismos da integração social – o dinheiro e o poder administrativo –através do médium do direito” (HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade eValidade. Vol. 1. Op. cit., p. 22).19 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade. Vol. 1. op. cit., p.58.20 O termo solidariedade, para Habermas, é empregado não como um conceito “pura e simples-mente normativo”, mas, sim, como conceito de uma teoria da sociedade (Vide: HABERMAS,Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade. Vol. 2. op. cit., p. 22).

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tiva. Ele deve ser trabalhado de modo que “normas e valores [sejam] diluídoscomunicativamente e expostos ao jogo livre de argumentos mobilizadores”.21

Sua teoria permite conceber a construção de um Direito pós-metafísico, cujosfundamentos são auto-referenciados na experiência do mundo da vida.

O pensamento habermasiano, quando suas premissas teóricas podem ser ar-ticuladas também nas discussões jusfilosóficas, permite um confronto com otradicionalismo no Direito, seja sob a perspectiva de um positivismo jurídico fun-dado em uma metafísica formal-normativa, seja sob a de um naturalismo baseadona crença de uma razão natural. Ademais, confronta-se também com o pensa-mento que visa a ancorar o normativo no conceito de tradição lingüisticamentemediada. Inserir a discussão comunicativa possibilita, sobremaneira, resgatar umacompreensão social do Direito e, ao mesmo tempo, conduzi-lo a um questionamentosobre as bases de sua racionalidade.

Discutir a racionalidade jurídica pode ser a mais relevante conclusão que sepode extrair a partir do pensamento habermasiano aplicado ao direito. Em ter-mos mais precisos, a Teoria do Agir Comunicativo evidencia a possibilidade dese questionar a racionalidade jurídica tal como hoje considerada e, paralelamen-te, promover uma nova reflexão sobre os pressupostos em que se fundamenta ofenômeno jurídico. Isso pode ser efetuado por intermédio de um projeto sobrecomo conhecer no Direito e como o Direito pode ser um mecanismo tambémpromotor de uma maior realização democrática. Assim, ao contrário de umatentativa de teorizar o fenômeno jurídico apartando-o de seu contexto social,busca-se encontrar nesse contexto e em sua tensão com o plano de validade apossibilidade fundamentadora da racionalidade jurídica.

A Teoria do Agir Comunicativo de Jürgen Habermas estimula, como se per-cebe, novas possibilidades de compreensão do mundo. Ao tomar a pragmáticacomo um caminho a possibilitar a “emancipação pela reflexão”,22 o projetohabermasiano fornece novos ares ao pensamento filosófico. Ele resgata a impor-tância da filosofia, que retoma o seu crédito diante do descrédito promovidopelas distintas ações sistêmicas no plano social. Como um resgate da filosofia, aTeoria do Agir Comunicativo permite recuperar o valor das discussões jusfilosóficas,tão ultimamente menosprezadas pelo amplo processo da prejudicial necessidadede tornar o Direito uma ciência, o que faz transferir sua metacrítica para umcampo afastado de sua epistemologia.

Afinal, nas palavras de Habermas, “a substituição da teoria do conhecimentopela teoria da ciência evidencia-se no fato de que o sujeito cognoscente não maisse apresenta como sistema de referência”.23 A preocupação, por conseqüência,

21 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade. Vol. 1. op. cit., p.58.22 MIROSLAV, Milovic. Comunidade da Diferença. op. cit., p. 52.23 HABERMAS, Jürgen. Conhecimento e Interesse. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982, p. 90.

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limitou-se a enfatizar o objeto do conhecimento e, não, o conhecimento mesmo.E, da mesma forma que a ênfase científica normalmente o faz, o Direito deixoude compreender o seu papel e – o que é mais grave – parou de trabalhar a suaprópria reflexão e racionalidade. Perdeu-se o sentido do Direito e perdeu-se oseu “encanto”.

É uma retomada do sentido do Direito, uma promoção de um Direito racionalpor intermédio de premissas comunicativas: isso pode ser o que a Teoria do AgirComunicativo possibilita desvendar e, ao mesmo tempo, confrontar com uma rea-lidade de um Direito fundado na racionalidade técnico-científica, que não socializa,mas isola; que não emancipa, mas coloniza. Enfim, permite um embate com umaracionalidade jurídica que caminha para a sua própria destituição ou, nas palavrasde Habermas, uma “razão que conduz um processo contra si mesma”.24

Para, entretanto, compreender como se pode conjecturar no Direito a pro-moção da teoria do agir comunicativo – e, portanto, uma racionalidade jurídicapautada por premissas comunicativas – é necessário, previamente, entender,mesmo que de maneira sintética, o projeto habermasiano. Não é intuito destelivro investigar pormenorizadamente suas premissas teóricas, porque desbordaria,sobremaneira, os seus propósitos. O que se quer é, simplesmente, preparar adiscussão sobre a racionalidade jurídica, expondo como é possível concebê-latendo como fundamentação argumentos pragmáticos. Em síntese, deseja-se de-monstrar como a linguagem pode ser também a base para a reflexão jurídica.Para tanto, a abordagem seguirá, inicialmente, uma análise genérica sincrônicae, em seguida, diacrônica, em que se procurará entendê-la em sua contextualizaçãohistórica.

4.3. A TEORIA DO AGIR COMUNICATIVO SOB ENFOQUE SINCRÔNICO

A teoria do agir comunicativo, retirada dos estudos de filosofia da linguagem,apresenta o propósito de buscar encontrar espécies de competências universais,indo ao encontro das regras básicas de um conhecimento pré-teorético.25 Paratanto, ela busca “isolar, identificar e clarificar as condições requeridas para acomunicação humana”,26 possibilitando, assim, estabelecer uma compreensãoda formação e fundação de uma crítica emancipatória. Habermas demonstra que“a crítica emancipatória não se encontra em normas arbitrárias que nós escolhe-mos; ao contrário, ela é fundada em estruturas de competências comunicativasintersubjetivas”.27

24 Ibidem, p. 12.25BERNSTEIN, Richard. “Introduction”. In: BERNSTEIN, Richard (Org). Habermas andModernity. op. cit., p. 16. Tradução livre.26 Ibidem, p. 16. Tradução livre.27 Ibidem, p. 17. Tradução livre.

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A primeira importante conclusão que se pode retirar do pensamentohabermasiano é a afirmação da intersubjetividade. De fato, Habermas é categóri-co ao estabelecer a intersubjetividade a partir de uma compreensão social mani-festada na comunicação. É essa relação “sujeito/co-sujeito” que dá as bases parauma nova compreensão do mundo. Ao enfatizar essa nova relação, o próprioconceito de mundo é alterado.28 Há sempre por trás desse contato com a realida-de um pressuposto pragmático: “para que possam se relacionar com algo, seja nacomunicação sobre fatos ou nas relações práticas com pessoas e objetos, devem –cada um por si, mas em concordância com todos os outros – partir de um pressu-posto pragmático”.29 A linguagem assume, então, um papel central para a consci-ência e a relação do sujeito com o mundo. Nessa premissa argumentativa, cons-trói-se a possibilidade de uma racionalidade comunicativa. Como salienta Milovic,“juntamente com a possibilidade do discurso, articula-se a possibilidade da ra-zão; essa se torna a real possibilidade do discurso mesmo”.30

Nesse intuito, Habermas, ao estudar a linguagem e o discurso, fomenta acriação de uma teoria baseada no diálogo: o comunicador e o ouvinte tendem aestabelecer um entendimento recíproco. Em resumo, pode-se dizer, apesar daampla complexidade dessa teoria, que a “ação comunicativa é um tipo distinto deinteração social – o tipo de ação orientada para o entendimento mútuo”.31 Oprojeto final é sempre possibilitar as condições de uma compreensão recíproca.Nas palavras de Habermas, a partir do momento em que se promove essa intersubje-tividade, “os membros compreendem seu ‘mundo social’ como a totalidade dasrelações interpessoais legitimamente reguladas”.32 Não se estabelece mais, conse-qüentemente, uma relação solipsística entre o sujeito e o mundo; agora o “mundoobjetivo é também uma suposição necessária desse sistema de referência”.33

É nessa dimensão que se pode ver a influência dos estudos avançados deteoria do discurso trazidos pelo pensamento de Karl-Otto Apel,34 em especial aidéia de “comunidade de comunicação” em oposição ao sujeito transcendentalkantiano, que se enclausura em sua estrutura monológica. Para tanto, a pragmá-tica da linguagem parte dos atos de fala como cerne do processo comunicativo,em que se verifica o nível propositivo, referente ao mundo objetivo, e o nível

28 HABERMAS, Jürgen. Agir Comunicativo e Razão Destranscendentalizada. op. cit., p. 39.29 Ibidem, p. 39.30 Ibidem, p. 200.31 BERNSTEIN, Richard. “Introduction”. In: BERNSTEIN, Richard (Org). Habermas andModernity. op. cit., p. 18. Tradução livre.32 HABERMAS, Jürgen. Agir Comunicativo e Razão Destranscendentralizada. op. cit., p. 62.33 Ibidem, p. 62.34 Para melhor compreensão do pensamento de Karl-Otto Apel, em que ele expõe a transforma-ção da filosofia transcendental a partir de estudos de semiótica e da ênfase nas comunidades decomunicação, vide APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia. Filosofia Analítica, Semiótica,Hermenêutica. Vols. I e II. São Paulo: Loyola, 2000.

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performativo, específico da intersubjetividade. Tal como Kant realizou uma dis-tinção entre o aspecto empírico e inteligível do homem, a teoria discursiva dematriz apeliana também adquire o aspecto duplo dialético da comunidade decomunicação real e ideal. A primeira refere-se à própria comunidade empírica eespaciotemporalmente existente; a segunda, por sua vez, transborda os limitesda realidade e serve como parâmetro para a consecução de um objetivo devalidação de pretensões universais. Ambas estão ligadas pela linguagem: todosos membros da comunidade de comunicação argumentam e são aptos a argu-mentar e, ao mesmo tempo, reconhecem o outro da comunicação (reconheci-mento recíproco em igualdade de direitos), em iguais condições, como requisitofundamental desse processo.

Todo pressuposto normativo, por conseguinte, é lançado a essa dialética decomunidades: as questões jurídicas, por exemplo, tornam-se objeto de delibera-ção racional intersubjetiva, em que cada participante irá, por meio de um pro-cesso argumentativo, verificar o que é correto na ação empreendida. A comuni-dade de comunicação ideal assume, nesse caminhar, a qualidade de condiçãotranscendental de validação normativa, como uma premissa de indivíduos soci-alizados que estariam aptos a compreender os argumentos e avaliar a sua corre-ção. Por sua vez, a comunidade de comunicação real é a direta referência práti-ca de deliberação de modo que ela compreenda o discurso e o agir; é o âmbitoem que o sujeito argumentador se insere socialmente.

Surge, assim, um a priori da comunicação, intransponível, que se baseia nareciprocidade a partir da referência ao outro em iguais direitos de argumenta-ção. Esse a priori, desse modo, adquire a condição de um saber pré-teoréticonecessário para a justificação de qualquer reivindicação humana;35 ele é umaexigência para qualquer validação de pressupostos normativos.

Habermas, obviamente, sabe que está descrevendo um “tipo ideal”, que em muitoscontextos empíricos nós não nos envolvemos em tal argumentação não-coerciva.Nós dificultamos a comunicação ou buscamos estrategicamente manipular os ou-tros. Mas seu principal ponto é que, entretanto, nós, de fato, resolvemos disputase dificuldades na comunicação: pretensões de validade universal “são estabelecidasem estruturas gerais de comunicação possível”, em “estruturas intersubjetivas dereprodução social”. Isso não é verdade apenas em nossas cotidianas interaçõescomunicativas pré-teoréticas, mas também em nossos discursos teóricos, práticose estéticos.36

A comunicação, como fundamento do agir, mostra que é possível a emanci-pação pautada pela racionalidade. A linguagem e a intersubjetividade, condi-

35 Vide NIQUET, Marcel. Teoria Realista da Moral. São Leopoldo, RS: Ed. Unisinos, 2002, p.64.36 BERNSTEIN, Richard. “Introduction”. In: BERNSTEIN, Richard (Org). Habermas andModernity. op.cit., p. 18. Tradução livre.

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ções da razão comunicativa, tornam-se o fundamento de todo “discurso teórico,prático e estético”.37 Como aduz Milovic, a argumentação significativa é tal queela simplesmente não pode ser superada,38 pois “mesmo aquele que nega apossibilidade de fundamentação deve, de alguma forma, argumentar sobre seucaso”.39 Do mesmo modo, Bernstein aduz que “nenhuma disputa sobre preten-sões de validade está além de uma argumentação racional dos participantesenvolvidos”.40 A linguagem, ademais, rompe com a metafísica, pois ela é auto-reflexiva, podendo ser constantemente questionada e discutida. O conhecimentoe o agir têm como princípio a comunicação, que supera a metafísica e, sobretu-do, estabelece a mobilidade em contraposição a uma estática do sujeito diantedo mundo. Em síntese, a teoria habermasiana é voltada para a ação e sempretoma antecipadamente a existência de “uma argumentação não-coerciva e não-distorcida [...] ‘construída em’ nossas interações comunicativas cotidianas pré-teoréticas”.41

Pode-se dizer, conforme Albrecht Wellmer concluiu, que a “pretensão deHabermas é que a noção de racionalidade comunicativa está contida implicita-mente na estrutura do discurso humano como tal e isso significa o padrão básicode racionalidade que o comunicador competente, ao menos em sociedades mo-dernas, compartilha”.42 Assim, como padrão básico da razão, a racionalidadecomunicativa tem de estar presente no ato do comunicador, que “entende orelacionamento interno entre o crescimento de pretensões de validadeintersubjetiva e o compromisso em dar e ser receptivo a argumentos”.43 Por isso,sua teoria é, essencialmente, dialógica: “isso significa que a racionalidade co-municativa também significa uma atitude (racional) específica que indivíduostomam perante outros e perante eles próprios, como também um relacionamen-to específico de reconhecimento mútuo entre diferentes indivíduos”.44

Toda pretensão de validade universal, necessariamente, jamais poderá sereximida de um exame crítico. A validade dessa pretensão universal não decorrede nenhum elemento externo – não há “fontes externas de validade” 45 –, mas,ao contrário, deriva do próprio discurso. É a argumentação que dará, pois,validade a essa pretensão.

37 Ibidem, p. 19. Tradução livre.38 MILOVIC, Míroslav. Filosofia da Comunicação. Para uma Crítica da Modernidade. op.cit., p.186.39 Ibidem, p. 186.40BERNSTEIN, Richard. “Introduction”. In: BERNSTEIN, Richard (Org). Habermas andModernity. op.cit., p. 18.41 Ibidem, p. 19. Tradução livre.42 WELLMER, Albrecht. “Reason, Utopia, and the Dialectic of Elightenment”. In: BERNSTEIN,Richard J. (Org). op. cit., p. 52. Tradução livre.43 Ibidem, p. 52. Tradução livre.44 Ibidem, p. 52. Tradução livre.45 Ibidem, p. 53. Tradução livre.

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Essa reflexiva cautela do discurso humano como o ponto de referência para todasas pretensões de validade pressupõe, tudo indica, que as dimensões de validadeda confiança objetiva, da correção normativa e da sinceridade subjetiva – ou,como Habermas recentemente denominou: o mundo de fatos objetivos, o mundode normas sociais e o mundo da experiência inerente – foram claramente diferen-ciadas entre si. A noção de racionalidade comunicativa reflete a condição cognitivae moral dos humanos em um mundo “desencantado”.46

A argumentação apresenta uma função central em sua teoria. Toda açãocomunicativa expressa a racionalidade comunicativa, que deverá ser avaliada apartir da interação intersubjetiva e ser levada ao crivo da crítica. Esse processoserá realizado por meio do compartilhamento de pretensões de validade, cujajustificativa somente pode ser realizada por meio de argumentos.47 Assim, aargumentação torna-se o elemento primordial para estabelecer, constantemente,o acordo intersubjetivo não-coercivo. É a “racionalização comunicativa”, tam-bém denominada racionalização do mundo da vida, que deverá substituir outros“mecanismos de coordenação de ações, de integração social ou de ‘reproduçãosimbólica’”,48 manifestações de uma racionalidade estratégica ou instrumental.

Como conhecimento pré-teorético, pautado pelos atos de fala, a pragmáticaimpulsiona uma reviravolta na tradicional dicotomia teórico/prático. Na verdade,o projeto habermasiano muito apresenta esse objetivo de determinação racionalda teoria e da prática.49 É a asserção da unidade da razão, que se estabelece empremissas argumentativas, aplicáveis tanto à esfera do teórico quanto a do práti-co. A assunção de uma dialética de comunidades traz, assim, a comuniaçãocomo condição de norma fundamental para todos os domínios da razão filosófi-ca. E, a partir dessa ênfase na unidade da razão, a pragmática da linguagemdesmistifica o pensamento que limitou a razão ao campo do saber teorético-científico, relegando a práxis ao âmbito das irracionalidades. Ao mesmo tempo,reinventa a importância da ação socialmente mobilizadora, em contraposição aosilêncio da ação promovido pelo positivismo filosófico.

Por outro lado, a teoria do discurso indica uma direta referência à prática.Segundo Habermas, a “ação comunicativa é dependente de contextos situacionais,que representam, por sua vez, segmentos do mundo da vida dos participantes eminteração”.50 A pressuposição da comunidade ideal, afinal, ocorre na própria co-munidade real: ela é um objetivo a se alcançar, não obstante jamais alcançável.

46 Ibidem, p.53. Tradução livre.47 Ibidem, p.54. Tradução livre.48 Ibidem, p. 54. Tradução livre.49 Vide MILOVIC, Miroslav. Filosofia da Comunicação. Para uma Crítica da Modernidade.op.cit., p. 254.50 HABERMAS, Jürgen. The Theory of Communicative Action. Vol. I. Reason and theRationalization of Society. Boston: Beacon Press, 1983, p. 279. Tradução livre. Grifo nãopresente no original.

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É essa dialética do querer consolidar, na realidade, os pressupostos ideais decomunicação – ampliando-se, pois, o canal deliberativo socialmente –, que sina-liza o propósito de não mais apenas contemplar o mundo, mas transformá-lo.Habermas, ciente das dificuldades de projeção da comunicação, vê, nesse pro-cesso, a saída para a emancipação possível.

A perspectiva empreendida por Habermas, todavia, muito mais do que umatentativa de renovação da filosofia kantiana a partir da ênfase discursiva, é umaproposta de consolidação de uma teoria da ação comunicativa. O projetohabermasiano, pode-se assim dizer, tem como foco a atividade concretamenteconsiderada de crítica às estruturas e instituições sociais e, não, a preocupaçãoprimordial em estabelecer um fundamento filosófico final intransponível.51

Dessa maneira, a teoria do discurso inicialmente desenvolvida por Apel éutilizada como base para a reconstrução reflexiva das ações socialmente realiza-das, de modo a acarretar uma saída para um mundo estrategicamente dominadopor instituições que impedem a promoção do agir orientado ao entendimento. É,

51 Habermas afasta qualquer elemento normativo-moral das condições a priori da consciência,enfatizando apenas um modelo de transcendência fraca e formal, necessário para a realização dodiscurso. Embora tenha tido forte influência da proposta apeliana, Habermas dela se afastouamplamente ao estabelecer, na obra Direito e Democracia entre Facticidade e Validade, um pro-jeto de discurso moralmente neutro. Niquet faz uma síntese das objeções de Habermas à teoriatranscendental forte de Apel, que busca inserir, no âmbito transcendental, o a priori de supernormasmorais de justiça, solidariedade e co-responsabilidade como orientações da ação. São elas:“(a) Uma supernorma da justiça não acrescenta nada ao conteúdo proposicional de uma moralnormativa do discurso, especificada individualmente para cada caso de juízo moral;“(b) A relevância do ser-moral para o todo de uma vida humana ou de uma forma humana devida não é uma função de argumentos, talvez (até) da filosofia, mas alimenta-se de outras fontes,por exemplo, das de uma socialização exitosa, uma iluminação normativa da vida ou da existên-cia em obras da literatura ou por meio da “força da fala profética que franqueia o mundo”. Esta– não somente metaeticamente – esclarecedora diferença de questionamentos epistêmicos eexistenciais não se deixa resolver pelas fundamentações últimas.“(c) A arquitetônica teórica apeliana da ética do discurso padece de uma “herançafundamentalista” em duplo sentido, a saber, de um lado da equiparação da razão comunicativae prática e de outro da idéia de um discurso filosófico que esclarece e ilumina auto-relativamen-te os fundamentos normativos dos discursos em geral” (NIQUET. Marcel. Teoria Realista daMoral. op.cit., 2002, pp. 97-98).52 Milovic apresenta uma interessante distinção da filosofia reconstrutiva empreendida porHabermas em relação ao modelo transcendental forte de Apel:“Reivindicações valorativas são inerentes à linguagem e esta é, por conseguinte, desnecessáriapara embasar-lhes em qualquer sentido fundamentalista que seja. Habermas vê isso como aprincipal incumbência da pragmática universal que acaba por assemelhar-se à incumbência daciência empírica reconstrutiva. O termo transcendental não é, nessa medida, adequado paraexpressar o projeto da pragmática universal, apesar de que, aparentemente, muito do poder deargumentação existente na pragmática universal depende da tese transcendental sobre as in-comparáveis premissas da argumentação, as quais são, num segundo momento, reconstruídascriticamente com base na distinção feita entre as comunidades de comunicação real e a ideal”(MILOVIC. Filosofia da Comunicação. op. cit., p, 280).

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por isso, desnecessário para Habermas52 qualquer embasamento de sentidofundamentalista que se despregue do contexto da argumentação real,53 nãoobstante necessite do argumento transcendental para justificar suas reivindica-ções de validade. O transcendental, nesse contexto, adquire conotação de idéiaregulativa, fazendo-se necessário buscar o âmbito da mediação com o empírico.54

Niquet afirma que o programa habermasiano pode ser entendido como um “na-turalismo reconstrutivo: como idéia de uma reconstrução sem reivindicação dejustificação transcendental ou apenas de justificação transcendental fraca, quetrabalha com meios filosóficos”.55

Portanto, a reconstrução e fundamentação pragmático-formal habermasiana daética do discurso é fraca em duplo sentido: por um lado, pressuposicionalmentefraca, já que ela não acolhe supernormas ou normas básicas moralmente impregnadasna explicação do círculo de funções do a priori relevante do discurso; por outrolado, analítico-transcendentalmente fraca, já que somente faz uso da idéia da irrefuta-bilidade fática ou da ausência de alternativa do fundamento pressuposicional deuma moral do discurso, e não introduz, para além da utilização metódico-identifi-catória da figura pragmático-lingüística de um autocontradição performativa, nenhumconceito mais pretensioso de fundamentação de validade positivo. A isto acresce ainteressante indicação da circunstância – que possivelmente passou totalmentedespercebida por Apel – de que normas não podem ser, ao mesmo tempo, condiçõesnormativo-transcendentais da possibilidade e da validez dos discursos argumentativose princípios básicos de teor moral de uma moral normativa do discurso.56

É devido a esses aspectos que, logo no primeiro capítulo do Direito e Democraciaentre Facticidade e Validade, Habermas elucida que “a razão comunicativa, aocontrário da figura clássica da razão prática, não é uma fonte de normas doagir”.57 Ela não se caracteriza pelo estabelecimento de padrões substanciais decomo agir em determinadas situações. A sua normatividade é, pois, limitada,ancorada apenas na percepção da comunicação necessária como pressuposto devalidação. Para Habermas, a razão comunicativa “possui um conteúdo normativo,porém somente na medida em que o que age comunicativamente é obrigado aapoiar-se em pressupostos pragmáticos de tipo contrafactual”.58 A transcendência,por isso, é fraca, formada por um conjunto de “idealizações inevitáveis [que formam]a base contrafactual de uma prática de entendimento factual, a qual pode voltar-se criticamente contra seus próprios resultados, ou transcender-se a si própria”.59

53 Vide MILOVIC, Miroslav. Filosofia da Comunicação. Para uma Crítica da Modernidade.op.cit., p. 280.54 Vide Ibidem, p. 281.55 NIQUET, Marcel. Teoria Realista da Moral. op.cit., p. 68.56 Ibidem, p. 100.57 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade. Vol. 1. op. cit., p. 20.58 Ibidem, p. 20.59 Ibidem, pp. 20-21.

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Como condição do agir orientado ao entendimento, a transcendência possibi-lita que, cada vez mais, se promovam as condições de validação dos argumentos,por intermédio de um processo de esclarecimento recíproco. Nas palavras deHabermas, ela “não funciona mais como orientação direta para uma teorianormativa do Direito e da moral”;60 é apenas o “fio condutor para a reconstruçãodo emaranhado de discursos formadores de opinião e preparadores da decisão,na qual está embutido o poder democrático exercitado conforme o Direito”.61

Todo pressuposto normativo, por conseguinte, está fadado a um teste contí-nuo. A transcendência que poderia ser verificada no plano da validade normativa,a partir da premissa da comunidade de comunicação ideal, caracteriza-se apenascomo um referencial hipotético, que tem de ser continuamente submetido à críti-ca. A “destranscendentalização”, tão fortemente debatida por Habermas em suaobra Agir Comunicativo e Razão Destranscentalizada, exibe essa situação.

Segundo Habermas, a dialética das comunidades de comunicação caracteri-za-se por uma tensão contínua. Todo agir orientado ao entendimento parte dequatro pressupostos básicos: 1) todos apresentem uma suposição comum domundo objetivo; 2) há uma recíproca pressuposição de racionalidade entre ossujeitos; 3) afirma-se a validade incondicional que ultrapassa contextos; 4) avalidade, que é exigida para a argumentação, tem de ser apta a consolidar umarazão que sai de uma perspectiva purificadora e passa a se situar no mundo62

(“pressupostos da argumentação repletos de exigências que os participantes con-servam para a descentralização de suas perspectivas de interpretação”).63 Porisso, “a tensão transcendental entre o ideal e o real, entre o domínio dos inteligí-veis e o das aparências se muda para a realidade social das coordenações deações e das instituições”.64 Com essas condições, Habermas suscita uma radicaltransformação nos pressupostos fundamentais. Àquela pureza deontológico-normativa preconizada por Kant se opõe um projeto de intervenção no mundo, oque enfraquece, em contrapartida, a força do transcender.65

Esse processo de “inserção dos sujeitos socializados em contextos do mundoda vida” 66 é o que Habermas denomina de “destranscendentalização”, que éuma decorrência da compreensão do papel da comunicação com os pressupostosda ação ou, como expressa o próprio autor, da “convergência da cognição com o

60 Ibidem, p. 21.61 Ibidem, p. 21.62 HABERMAS, Jürgen. Agir Comunicativo e Razão Destranscendentalizada. op.cit., p. 31.63 Ibidem, p. 35.64 Ibidem, p. 31.65 Percebe-se, claramente, como essa característica entra em direto confronto com o pensamen-to kelseniano de estabelecimento de um conhecimento puro no âmbito da ciência jurídica,fundado em uma transcendência lógico-formal distante do mundo.66 HABERMAS, Jürgen. Agir Comunicativo e Razão Destranscendentalizada. op.cit., p. 38.

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falar e o agir”.67 Com outras palavras, a comunicação social passa a ser o funda-mento para a promoção de processos de ação transformadora da sociedade.

A intersubjetividade, assim, deve ser uma premissa para se compreender afilosofia não como um centro irradiador da contemplação do natural, mas, sim,um instrumento que permite enxergar os fundamentos legitimadores da ação.Nesse intuito, Habermas consagra, com outro enfoque,68 a observação marxistade que não há de se apenas observar o mundo e descrevê-lo, porém, sim,transformá-lo.69 A filosofia habermasiana é um instrumento para a compreensãode uma ação pautada por premissas comunicativas e, para esse propósito, credi-ta valor substancial à filosofia nesse caminho.

A “destranscendentalização” faz com que “o sujeito transcendental [perca]sua posição do outro lado do tempo e do espaço e se [transforme] nos diversossujeitos de linguagem e ação”.70 A razão, desse modo, é situada no tempo e noespaço. Ela decorre de uma “prática intramundana que se orienta por preten-sões de validez e que submete o sentido, que abre previamente o mundo, a umteste continuado”.71 Por isso, a relação não é mais apenas entre o sujeito com oseu mundo, embora se mantenha a estrutura dos dois mundos kantiana. Há dese ter, previamente, a intersubjetividade, sempre pressupondo, como salientaHabermas, uma linguagem natural que “[assegure] a qualquer falante a anteci-pação formal de possíveis objetos de referência”.72

Desse modo, o sujeito não consegue escapar, na comunicação social, danecessidade de verificar uma comunidade de comunicação real para a compre-ensão do seu discurso e agir. Ao mesmo tempo, precisa prever uma comunidadede comunicação ideal para a validação de seu discurso, isto é, a sua inserção emuma comunidade passível de tornar justificável o argumento. Esses fundamentosé que dão sustentação ao agir fundado na comunicação.73 Habermas desja, combase na premissa comunicativa, impelir a ação transformadora: “essa suposição

67 Ibidem, p. 39.68 Ao contrário da perspectiva marxista, que se apóia em um processo objetivo centrado nasuperação da propriedade privada, Habermas deseja estabelecer os caminhos da ação porintermédio da reflexão rigorosa.69 Marx afirma que “os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; aquestão, porém, é transformá-lo”, expresso em sua última (11ª) tese sobre Feuerbach. Paratanto, vide MARX, K.; ENGELS, F., A Ideologia Alemã. São Paulo: Martins Fontes, 1998.Uma interessante análise das teses marxistas sobre Feuerbach pode ser encontrada na obra AsTeses sobre Feuerbach de Karl Marx (LABICA, Georges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1ªed, 1990). Além dela, o capítulo Emancipação Objetivada: Marx da obra Comunidade daDiferença (op.cit.) de Miroslav Milovic traz uma importante reflexão acerca da relevância e doslimites do pensamento filosófico de Marx.70 HABERMAS, Jürgen. Agir Comunicativo e Razão Destranscendentalizada. op.cit., p. 38.71 HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-Metafísico. op.cit., p. 53.72 HABERMAS, Jürgen. Agir Comunicativo e Razão Destranscendentalizada. op. cit., p. 39.73 Segundo Habermas:

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Juliano
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deseja,

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formal do mundo, a comunicação sobre algo no mundo converge com a inter-venção prática no mundo”.74

Não se prescinde da constatação de que, em toda ação comunicativa, tem-seum consenso que lhe serve de fundamento. Do mesmo modo, deve-se preverque todo aquele que age orientado ao entendimento deve levantar pretensões devalidade universais supostamente justificadas e compreendidas. Essa pressupo-sição torna-se condição para o próprio desenvolvimento de uma teoria da argu-mentação. Habermas verifica que, na habilidade de comunicação, há sempreum núcleo universal. As pretensões de validade universais estão sempre, mesmoimplicitamente, presentes. Assim, distingue Habermas as pretensões de veraci-dade, relacionadas ao mundo objetivo; as pretensões de correção, referentes aosvalores compartilhados e normas no mundo da vida; as pretensões de sincerida-de, que são manifestações das intenções e sentimentos pessoais.75 Todas essaspretensões são compartilhadas intersubjetivamente, podendo ser criticadas, de-fendidas, reformulas. A inserção do outro está explicitamente presente em seudiscurso.

Ao contrário do solipsismo kantiano, em que se apesenta uma relação sujeito/objeto de modo constitutivo, o que se enfatiza, na teoria discursiva, é um prévioreconhecimento de que há outros participantes da comunicação que irão analisaras reivindicações de validade. “A existência dos outros é um pressuposto neces-sário”.76 Toda argumentação já prevê essa comunidade ideal de comunicação e éela que revela o caráter rigorosamente reflexivo da teoria discursiva, uma vez quenão se consegue ir além das próprias condições da argumentação significativa.Logo, tomada como base a comunicação, a reflexão atinge seu grau pleno: se ospressupostos adquirem esse viés comunicativo, eles sempre são lançados ao diá-

“(...) Os sujeitos capazes de fala e de ação, que ante o pano de fundo de um mundo comum daida, entendem-se mutuamente sobre algo no mundo, podem ter frente ao meio de sua lingua-gem uma atitude tanto dependente como autônoma: eles podem utilizar os sistemas de regrasgramaticais, que tornam possível sua prática, em proveito próprio. Ambos os momentos são co-originários. De um lado, os sujeitos encontram-se sempre num mundo aberto e estruturadolingüisticamente e se nutrem de contextos de sentido gramaticalmente pré-moldados. Nestamedida, a linguagem se faz valer frente aos sujeitos falantes como sendo algo objetivo e proces-sual, como a estrutura que molda as condições possibilitadoras. De outro lado, o mundo davida, aberto e estruturado lingüisticamente, encontra o seu ponto de apoio somente na práticade entendimento de uma comunidade de linguagem. A formação lingüística do consenso, atra-vés da qual as interações se entrelaçam no espaço e no tempo, permanece aí pendente detomadas de posição autônomas dos participantes da comunicação, que dizem sim ou não apretensões de validade criticáveis” (HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-Metafísico. op. cit.,pp.52-53).74 HABERMAS, Jürgen. Agir Comunicativo e Razão Destranscendentalizada. op. cit., p.40.75 Vide HABERMAS, Jürgen. The Theory of Communicative Action. Vol. I. “Reason and theRationalization of Society”. op. cit., pp. 43 e ss. Tradução livre.76 Ibidem, p. 43. Tradução livre.

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logo. Afasta-se, conseqüentemente, o silêncio que se verificava na teoria kantianaem torno das estruturas categoriais da mente, apenas apresentadas como condi-ção do pensamento. Ao solipsismo e aos fatos da mente, contrapõe-se aintersubjetividade e a comunicação, que é, por excelência, auto-reflexiva.

A estrutura mental agora refere-se a uma premissa intersubjetiva, que, por suavez, elucida o caráter social da teoria habermasiana. Essa estrutura intersubjetivaadquire, assim, o cunho de um “princípio normativo fundamentado reflexiva-mente”.77 É a partir da mediação entre as comunidades ideal e real de comunicaçãoque se atinge um novo patamar para a filosofia: cada vez mais, deve-se promovera ação em prol de um consenso racionalmente motivado, pautado por umaargumentação cotidianamente ampliada. A tensão entre comunidades ideal e realimpulsiona o agir a querer alcançar as condições supostamente previstas para acomunidade ideal de comunicação, em que se consolida o amplo debate públicoparticipativo e compreensivo. Por isso, Habermas desenvolve uma constante relaçãoentre o transcendental e o empírico. As premissas comunicativas, afinal, têm dese desenvolver na prática; elas têm de projetar um possível novo mundo.

Para tanto, o a priori habermasiano é, por assim dizer, destituído de qualquerelemento moral-normativo. Não há, em sua teoria, nenhum propósito de estabe-lecer um conteúdo para a investigação da validade normativa, mas, sim, umprocedimento que faz com que a validade seja relacionada com um princípio deuniversalização. Milovic chega a escrever, em referência às metafísicas que tantocontaminaram a validade normativa, que, na perspectiva habermasiana, “o temada emancipação se desliga da felicidade”.78 Ele representa um conjunto de pres-suposições necessárias e universais para a efetivação da comunicação social.

Concebidas pelo termo de princípio U – havendo, em seu cerne, a renúnciaem desenvolvê-las como fundamentação filosófica última –, as pressuposiçõespragmático-transcendentais caracterizam-se como um princípio neutro (isento decarga moral-normativa) necessário de universalização da argumentação reflexivaque é implicitamente assumido por cada argumentador. É, assim, “um específicoprincípio da indução aplicado ao domínio prático”,79 que salienta aintersubjetividade como condição da validação. Como princípio transcendentalfraco, ele apenas elucida a “irrefutabilidade fática de pressupostos de teornormativo”,80 uma vez que o discurso concreto não prescinde dessas pressuposições.

Por decorrência, ele ultrapassa o âmbito de um consenso adquiridofaticamente e derivado de uma tradição lingüisticamente mediada. Ele é, naverdade, uma premissa inevitável de toda comunicação, que também é passível

77 MILOVIC, Miroslav. Filosofia da Comunicação. Para uma Crítica da Modernidade. op. cit.,p. 230.78 Ibidem, p. 273.79 Ibidem, p. 267.80 NIQUET, Marcel. Teoria Realista da Moral. op. cit., p. 99.

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de ser submetida a um teste continuado em que prevalecem as razões e osmotivos e, não, o recurso à força – daí o seu cunho auto-reflexivo. A não-confu-são dessas premissas da comunicação com as convenções institucionalizadas dodiscurso atira o olhar a uma projeção não-coercitiva das estruturas comunicati-vas, como um objetivo a ser potencialmente logrado.81

Participantes em argumentação têm de pressupor em geral que a estrutura de suacomunicação, em virtude das propriedades que podem ser descritas em termospuramente formais, exclui toda força – ou ela deriva do próprio processo dealcance do entendimento ou o influencia de fora – exceto a força do melhorargumento (e, por isso, ela também exclui, de sua parte, todos os motivos, excetoo de uma busca cooperativa pela verdade). Dessa perspectiva, argumentaçãopode ser concebida como uma continuação reflexiva, com diferentes significados,da ação orientada ao alcance do entendimento.82

Desse modo, a teoria habermasiana desenvolve-se segundo duas perspectivas:83

a primeira parte da afirmação do “princípio de universalização U”, que exige,para a validação do pressuposto normativo, a previsão de que as conseqüênciase efeitos colaterais de seu seguimento geral para a satisfação de interesses pessoaispossam ser aceitos, sem coerção, por todos envolvidos. A essa idealizaçãoimplicitamente assumida acresce-se a necessidade de que os pressupostosnormativos, previamente assumidos em sua projeção ideal, sejam implementadosem discursos práticos reais84 e, pois, sujeitos a um teste continuado.

A validade normativa, devido a isso, somente se alcança quando se puderobter ou possivelmente obter – eis o caráter ideal – o consenso de todos possí-veis participantes implicados nas deliberações racionais. Todo conteúdo normativopossui, dessa forma, uma dependência com os discursos práticos. Nesse aspec-to, o princípio U faz com que se supere a “lacuna existente entre o universal e oparticular”;85 ele é um princípio de indução que demonstra que somente asnormas que expressem a vontade de todos podem ser consideradas válidas.86

A tensão entre validade e facticidade, assim, é uma constante em discursosde origem normativa. E, também por essa propriedade, enfraquece-se todo opropósito de estabelecer padrões morais-normativos transcendentalmente fortescomo expressão da fundamentação última da filosofia. Toda normatividade se“destranscendentaliza”. O que prevalece é a inevitabilidade da forma discursiva,pautada por premissas pragmáticas de argumentação de teor normativo. Como

81 Vide análise realizada sobre a metafísica da historicidade no capítulo anterior.82 HABERMAS, Jürgen. The Theory of Communicative Action. Vol. I. Reason and theRationalization of Society. op. cit., p. 25. Tradução livre.83 Vide NIQUET, Marcel. Teoria Realista da Moral. op. cit., pp. 77-78.84 Ibidem, p. 78.85 MILOVIC, Miroslav. Filosofia da Comunicação. Para uma Crítica da Modernidade. op. cit.,p. 267.86 Ibidem, p. 267.

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salienta Niquet, essas premissas gerais da argumentação reflexiva são “interno-normativas ou transcendental-normativas para a forma de ação do discurso, masnão por isso logo também moral-normativas, isto é, na qualidade de condiçõestranscendentais, elas ainda não possuem per se o valor de normas ou normasbásicas morais de alto nível”.87 É essa a base para a defesa de um discursomoralmente neutro desenvolvido na obra habermasiana Direito e Democraciaentre Facticidade e Validade.

Com isso, a fundamentação dos princípios normativos deriva de um processoargumentativo. O que ora prevalece é o teste continuado, a crítica reflexiva. Todanormatividade é lançada a uma procura pelo consenso por intermédio da partici-pação do outro da comunicação. Com essa interação, vislumbra-se a validaçãouniversal do argumento. Milovic explica que, com essa postura, “o ponto crucialda discussão desloca-se do nível pré-comunicativo da investigação das nossasfaculdades espirituais para ao nível comunicativo da investigação sobre a validadedas máximas por nós propostas”.88 A preocupação passa a ser outra: como pro-mover o esclarecimento dos pressupostos normativos? O agir orientado ao enten-dimento, por conseqüência, assume as propriedades de uma postura cognitivista89

em que a força da argumentação torna-se determinante para a normatividade.A força da argumentação elucida, por outro lado, a “ética da responsabilidade”

no projeto habermasiano. Deseja-se, afinal, que se preserve a comunidade de co-municação real e, ao mesmo tempo, se promova o telos regulativo de realização dacomunidade de comunicação ideal. Essa finalidade almejada instiga a realizaçãode mudanças sucessivas, em que, cada vez mais, o princípio da universalização setorna aplicável. A fundamentação baseada em normas universais – e, por isso, a-fastada de particularismos de contexto – precisa ser complementada com os discur-sos de sua aplicação.90 Ela exige que seja atirada às práticas cotidianas de vida.

87 NIQUET. Marcel. Teoria Realista da Moral. op. cit., p. 79.88 MILOVIC, Miroslav. Filosofia da Comunicação. Para uma Crítica da Modernidade. op. cit.,p. 263.89 Segundo Milovic, o cognitivismo “significa que as questões prático-morais são resolvidas ao selistar razões adequadas, o que está suficientemente assegurado pela tese da resolução discursivadas reivindicações valorativas” (MILOVIC, Miroslav. Filosofia da Comunicação. Para uma Crí-tica da Modernidade. op. cit., p. 275).90 Klaus Günther, em sua obra Teoria da Argumentação no Direito e na Moral: Justificação eAplicação (no original: Der Sinn für Angemessenheit: Anwendungsdiskurse in Moral und Recht)desenvolve essa relação dos discursos de fundamentação e aplicação sob o âmbito especifica-mente cognitivo e, pois, a exigir o processo argumentativo. Com base na versão fraca do princípioU, Günther aduz o seguinte sobre essa complementação realizada entre os tipos de discursos:“A versão mais fraca de U parte de uma proposta já selecionada de norma, para colocá-la emuma perspectiva situacional generalizante e relacioná-la com os interesses virtuais de todos. Porisso, esta versão deve ser complementada por um discurso de aplicação que realce a perspectivaespecífica da situação e a relacione com os interesses dos outros como pessoas concretas. Em situa-ções de aplicação, ainda não se trata da capacidade de universalização de interesses afetados,

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É a partir dessa análise empírica das condições do discurso – essa é a ênfaseda proposta habermasiana –, que se consegue antever seu potencial concreto demobilização social. Intenciona-se, assim, apresentar saídas para que todos ossujeitos possam agir e participar do discurso, como também problematizar, afir-mar, expressar seus pontos de vista, sem que esse propósito seja tolhido demodo coercivo (respeito à liberdade do discurso);91 quer-se, na verdade, encon-trar premissas para a concepção de uma universalidade que permita superar osparticularismos institucionais, tal como se verifica na questão dos direitos huma-nos, e fornecer, nesse propósito, uma proposta rigorosamente reflexiva eincentivadora da reciprocidade.

Com a pragmática da linguagem, abre-se uma nova perspectiva na filosofia.Ela renova a discussão acerca da racionalidade, antes fadada a uma contínuaidentificação com a ciência. A razão pode ter outras projeções. Ao invés de umarazão científica que não debate as suas próprias premissas, a razão comunicativatem, como cerne, a reflexão discursiva sobre os pressupostos que guiam a açãohumana. Toda fundamentação filosófica, nesse ponto de vista, adquire a condi-ção de explícita questão reflexiva: não há mais premissa do pensamento que nãopossa ser submetida à crítica.

A metafísica sofre um abalo substancial. Se, como já reiterado, ela se concen-tra em uma não-discussão de suas bases, com a pragmática da linguagem, elaperde sua característica inerente. Afinal, suas bases de sustentação não se man-têm sem haver a discussão pública a seu respeito. À metafísica, pois, opõe-se areflexão rigorosa sobre os pressupostos normativos. Como aduz Milovic, com apragmática da linguagem, conclui-se que “nada mais podemos fazer a não serfalarmos e nos comunicarmos, buscando a aprovação de nossas declarações,estando elas no presente ou em alguma futura comunidade de comunicação”.92

Por outro lado, a pragmática universal da linguagem estabelece um parâmetropossível de fundamentação filosófica baseada em um critério discursivo eprocedimental. E, com isso, questiona fortemente o relativismo e uma diretareferência à facticidade como única saída para a compreensão filosófica. Atranscendência, conseqüentemente, torna-se uma chave fundamental da teoriahabermasiana, por favorecer uma razão que não se condiciona a coerções sociaise institucionais para promover um caminho emancipatório.93 A racionalidade nãopode ficar presa a contextos capazes de obscurecer uma saída que leve, cada vezmais, ao agir orientado ao entendimento. Como afirma Milovic, “percebe-se cla-

mas, inicialmente, apenas do seu descobrimento e da relevância situacional (GÜNTHER, Klaus.Teoria da Argumentação no Direito e na Moral: Justificação e Aplicação. SP: Landy, 2004, p. 72.Grifo não presente no original).91 Vide MILOVIC, Miroslav. Filosofia da Comunicação. Para uma Crítica da Modernidade. op.cit., pp. 273-275.92 Ibidem, p. 241.93 Vide o terceiro capítulo.

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ramente sua relevância social, pois, mesmo hoje em dia, há tentativas bastantefortes de demonstrar que a mente não existe e que todas as investidas de eman-cipação foram malsucedidas”.94

Em contrapartida a tais desenvolvimentos, a teoria habermasiana sustentaque a razão pode orientar o agir para uma emancipação possível. A razão, porisso, não se perde em dispersas contingências de sua realização; ela é antes omotor da superação das contingências que impedem ou dificultam a comunica-ção social, isto é, ela não quer promover um agir que se reduz a estar sempredentro das instituições já consolidadas. O passado, a historicidade, a tradição,desse modo, deixam de ser condições insuperáveis da compreensão e passam aassumir a qualidade de idéia regulativa, em que se antevê a mediação entrecomunidade de comunicação real e a comunidade de comunicação ideal.

Essa mediação mostra que todo pressuposto normativo adquire validade quandose alcança um consenso racional a seu respeito. E, de fato, a grande característi-ca assumida pela pragmática universal é a contínua projeção de um possívelitinerário de ampliação da comunicação. A validade é sempre, assim, um objeti-vo a procurar; toda normatividade se valida a partir do momento em que, cadavez mais, sõa concretizados os patamares ideais de comunicação, em que todosos possíveis intérpretes e quem sofre os efeitos da decisão agem em torno dopropósito de deliberação racional. Tem-se de se realizar continuamente o reco-nhecimento das normas a partir de uma reflexão rigorosa sobre suas bases. Aintersubjetividade constitutiva de novos horizontes comunicativos – insuperável,pois a argumentação é auto-reflexiva e inevitável – torna-se a condiçãotranscendental de validação normativa. Essa característica demonstra que a pró-pria argumentação é condição da existência humana: “tanto o discurso como aargumentação são inextrincavelmente ligados à nossa existência”.95

Em objeção a qualquer tentativa de se estabelecerem padrões normativos quedefinam substancialmente o modo correto de agir, a pragmática da linguagemestá mais preocupada em demonstrar como se pode proceder à reflexão rigorosadesses padrões normativos. A sua normatividade procura fazer cada vez maispresente a comunicação social. Por isso, é explicitamente procedimental. O quese deseja é que continuamente se estendam, em concreto, as possibilidades dedeliberação reflexiva sobre os pressupostos normativos, sempre prevendo, paratanto, a idéia de comunidade. Logo, é a comunidade que fundamenta todanormatividade.

Opõe-se, assim, à metafísica da natureza, que não questiona as bases dopróprio conceito de natureza, que, por sua vez, assume as vertentes de funda-mentação do normativo. Contrasta com a metafísica formal-normativa, que leva

94 MILOVIC, Miroslav. Filosofia da Comunicação. Para uma Crítica da Modernidade. op. cit.,p. 234.95 Ibidem, p.230.

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o problema da validade, sob as bases filosóficas, para fora de seu debate cientí-fico. Suplanta a metafísica da historicidade, que torna a validade um conceitomaleável diante das estruturas coercivas socialmente presentes. A comunidadeagora é o cerne de validação normativa; ela é a condição da reflexão rigorosa. Éa partir da dialética entre as comunidades ideal e real de comunicação que sebusca o reconhecimento dos pressupostos normativos.

Com essa idealização, a validação normativa é alcançada quando “as previsí-veis conseqüências e efeitos colaterais de seu seguimento universal para os inte-resses de cada um possam ser aceitos ‘sem coação’ por todos os afetados”.96 É,portanto, um objetivo a ser atingido, em que todos os participantes se sentem, demodo autônomo, verdadeiros autores racionais das normas por intermédio desua inserção em deliberações voltadas para formação de consenso. E, nesseprocesso deliberativo, não se apresenta nenhuma substancialidade pressupostado discurso. A teoria do discurso habermasiana caracteriza-se por ser formal-procedimental e, além do mais, neutra (pré-moral). É simplesmente um procedi-mento que caminha para a celebração do consenso racional liberto de coaçõessociais decorrentes da normatividade, em que a previsão das possíveis conseqü-ências, no mundo das ações, integra o critério de validade.97 Esse objetivo, porsua vez, exige a conexão com a realidade: o aspecto empírico da teoriahabermasiana encontra-se na necessidade de justificação de toda normatividadesubstancial por intermédio dos discursos práticos. Essa relação da premissaidealista (análise conceitual) com sua “destranscendentalização” é assim expostapor Habermas em sua Teoria do Agir Comunicativo:

O processo discursivo de alcance do entendimento, na forma de uma divisãocooperativa do trabalho entre os proponentes e oponentes, é normativamenteregulada de uma forma que os participantes (1) tematizam uma pretensão devalidade problemática, (2) aliviada da pressão da ação e da experiência, em umaatitude hipotética, e (3) testam com razões, e apenas com razões, se a pretensãodefendida pelos proponentes corretamente se sustenta ou não. 98

A teoria do discurso habermasiana, dessa forma, centra-se em uma deriva-ção empírica da idealização previamente assumida. Nessa perspectivatranscendental fraca, a idealização se faz livre de coerções, como o ambientemais pleno de realização efetiva da comunicação. As razões que são previstaspara essa comunidade ideal de comunicação, todavia, necessitam ser submeti-das a um teste crítico contínuo, no intuito de se verificar a sua possível correção.O desenvolvimento da Teoria do Agir Comunicativo, por isso, é um constanteprocesso de transcendência fraca e “destranscendentalização” das pretensões

96 NIQUET. Marcel. Teoria Realista da Moral. op. cit., p. 12.97 Ibidem, p. 18.98 HABERMAS, Jürgen. The Theory of Communicative Action. Vol. I. Reason and theRationalization of Society. op. cit., p. 25. Tradução livre.

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de validade, no intuito de se desenvolver a reflexão rigorosa sobre os pressupos-tos normativos da ação e, pois, o consenso racional.

Almejar um consenso racional dos pressupostos normativos, em que o indiví-duo se sinta participante e atuante nesse propósito, representa um novo referencialque radicaliza a razão conformista e contemplativa de uma realidade já dada. Atensão entre validade e facticidade favorece a construção de um consenso racio-nal que não se limita a repetir os modelos advindos das convenções e tradiçõesem que se insere. Deve-se reconstruir o passado, de modo a ser criticamenterefletido – somente assim se logra dar à razão o seu lugar de promotora de novoscontextos de deliberação racional. À razão observadora, contemplativa do mun-do, opõe-se uma razão, por excelência, ativa e que prevê o reconhecimento e ainclusão do outro no debate argumentativo. É esse o caminho da emancipaçãosegundo o projeto habermasiano: “investigar a mediação entre a comunidadereal e a ideal revela o projeto da emancipação humana”.99

A partir do momento em que se consiga realizar, em concreto, na comunidadereal, a comunicação efetiva (embora nunca alcalçável), aproximando-a de suaidealização, os argumentos deixam de apenas reverenciar uma dada realidade epassam a assumir a qualidade de mobilizadores do agir orientado ao entendimen-to. Por isso, correta a observação de Milovic de que “é preciso buscar sua baseintersubjetiva dentro dessas condições reais, que possa, possivelmente, nos levardo mundo das estratégias para o mundo do reconhecimento e respeito mútu-os”.100 Com a pragmática da linguagem, um novo projeto de razão se estabelece,radicalizando as modernas teorias racionalistas. E, a partir da dialética entre comuni-dade real e comunidade ideal de comunicação, a sua aplicabilidade se estende àformação de uma teoria social de ampla repercussão baseada no consenso social.

Acreditar na possibilidade transformadora das pretensões comunicativas é,por assim dizer, o cerne para se verificar o papel que a comunicação adquire emum caminhar emancipatório. Habermas deseja afirmar que a filosofia deve seapartar de uma metafísica que a contaminou durante séculos, estabelecendoque a discussão sobre a racionalidade pode trazer novos elementos para esseprocesso. É, nesse intuito, que surge a discussão sobre a racionalidade comuni-cativa. Segundo Anthony Giddens, analisando a obra de Habermas, prever umarazão comunicativa é a condição para um agir comunicativo e “dizer que alguémage racionalmente, ou que um discurso é racional, é dizer que a ação ou odiscurso podem ser criticados ou defendidos pela pessoa ou pessoas envolvidas,para, então, elas estarem hábeis para justificar ou afirmá-los”.101 É necessário,

99 MILOVIC, Miroslav. Filosofia da Comunicação. Para uma Crítica da Modernidade. op. cit.,p. 251.100 Ibidem, p. 250.101 GIDDENS, Anthony. “Reason Without Revolution?” IN: BERNSTEIN, Richard J. (Org).Habermas and Modernity. op. cit., pp. 98-99. Tradução livre.

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assim, “complementar a ‘racionalidade cognitivo-instrumental’” com a concep-ção da “racionalidade comunicativa”.102

É um novo momento na filosofia: é possível uma outra racionalidade que aprópria modernidade pode oferecer os elementos. No lugar de se pensar em umúnico modelo para a razão, é preciso reconhecer que a própria “racionalidadepresume comunicação, porque algo é racional apenas se encontra as condiçõesnecessárias para alcançar um entendimento com, ao menos, uma outra pes-soa”.103 É com base nessas premissas comunicativas que se abre a possibilidadeda crítica da ideologia.

Sincronicamente, a teoria do agir comunicativo desenvolve-se nesses argu-mentos, apresentados, obviamente, de forma excessivamente sintetizada. O queé importante ser compreendido é que as pretensões de validade universais estãopresentes em todo discurso, em toda ação comunicativa, ao menos implicita-mente. Ao mesmo tempo, é imprescindível verificar o papel que é conferido àargumentação e à busca pelo consenso no desenvolvimento de sua teoria.

4.4. A TEORIA DO AGIR COMUNICATIVO SOB O ENFOQUE DIACRÔNICO

O estudo da teoria do agir comunicativo seria deveras insuficiente, caso nãofosse realizado, paralelamente, uma investigação de sua aplicação à análise dodesenvolvimento das sociedades, ao devir histórico. Nesse aspecto, sua teoriatorna-se mais diretamente relacionada com o âmbito jurídico, revelando-se umpasso fundamental para se trabalhar a questão da racionalidade no Direito den-tro das propriedades de uma teoria argumentativa. Ao mesmo tempo, a análise,sob o enfoque diacrônico, da teoria do agir comunicativo fornece subsídios parainterpretar criticamente algumas observações empreendidas por Max Weber emsua investigação da racionalidade moderna.

Para tanto, a pergunta que guia o projeto de uma teoria discursiva aplicada àteoria social é: como consolidar, em concreto, a comunicação a partir da media-ção entre a idéia regulativa, expressa na ênfase transcendental, e o âmbitoempírico? Como anteriormente analisado, o projeto habermasiano parte de umatranscendência fraca, que exige a correspondência com as práticas de delibera-ção cotidiana. Porém, mais do que isso, ele sustenta que a razão precisa sesituar, se “destranscendentalizar” em formas concretas de vida, no intuito deefetivar as condições do agir orientado ao entendimento.

A partir da ênfase na “unidade da razão” – superando-se a tradicionaldicotomia teórico/prático –, percebe-se a incongruência de uma racionalidadedominada por um pressuposto teórico irrefletido e de uma racionalidade prática

102 Ibidem, p. 99. Tradução livre.103 Ibidem, p. 99. Tradução livre.

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que se iludiu quase exclusivamente por um interesse instrumental ligado à ob-tenção de resultados. Por outro lado, a racionalidade perdeu sua relação com osocial, limitando-se ora a uma estrutura monológica, ora a um pensamento fada-do a uma contaminação pelas estruturas coercitivas estrategicamente voltadaspara dificultar o diálogo. Para se contrapor a esse “desencantamento do mun-do” ou ao egoísmo do pensamento, a teoria habermasiana do discurso procuroureconstruir reflexivamente a razão a partir de uma ênfase empírica, procedimentale cognitivista, impelindo-a a uma projeção social, à mobilização para odesvendamento dos interesses socialmente presentes e à promoção do agir ori-entado ao entendimento.

Na sua obra Teoria do Agir Comunicativo, Habermas consolida esse propósi-to de mostrar a intrínseca relação entre processos de racionalização e a teoriasocial. Por outro lado, efetua uma crítica a uma razão que se perde em suaproposta estratégica, instrumental ou, como ele próprio direciona seu pensa-mento no segundo volume de sua obra, funcionalista104 da razão. Com a afirma-ção da intersubjetividade, Habermas, realçando as pressuposições pragmáticasjá anteriormente delineadas, propõe uma racionalidade que se orienta em dire-ção ao entendimento, em contraste com aquela voltada para o sucesso. Esseentendimento, por sua vez, é alcançado por convicções que são lançadas cons-tantemente à crítica intersubjetiva e, não, a uma imposição de fora.105 Em razãodesse fato, sua teoria conflui para a promoção do consenso social: a razão comu-nicativa torna-se a base para a reflexão crítica sobre as instituições e aparececomo condição para um novo olhar sobre o papel da filosofia.

O ato de fala de uma pessoa é bem sucedido se o outro aceita a oferta nela contidaao tomar (embora implicitamente) uma posição de “sim” ou “não” a respeito deuma pretensão de validade que é, em princípio, criticável. Tanto o ego, que levan-ta uma pretensão de validade com sua formulação, como o alter, que a reconheceou rejeita, baseia suas decisões em potenciais motivos ou razões.106

Habermas quer explicitar o processo de racionalização e, assim, impulsionarum caminho que amplie a interação entre racionalidade e ação social. Ela não éuma “metateoria, mas o começo de uma teoria social preocupada em validar seuspróprios padrões críticos”.107 E isto é o que continuamente tem sido desenvolvidoem suas investigações: uma explícita preocupação em não cair em um novo cam-po metafísico, que não consegue refletir a respeito de suas próprias premissas.

104 Vide HABERMAS, Jürgen. The Theory of Communicative Action. Vol. II. Lifeworld andSystem: A Critique of Functionalist Reason. op. cit., 1989.105 Vide HABERMAS, Jürgen. The Theory of Communicative Action. Vol. I. Reason and theRationalization of Society. op. cit., p. 287.106 Ibidem, p. 287. Tradução livre.107 Ibidem, p. xii. Tradução livre.

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A teoria da linguagem, com base em uma transcendência fraca, necessárianas suposições pragmáticas inevitáveis do discurso, forneceu os subsídios para aconsolidação de uma teoria social de amplas repercussões. Com a ênfase naunidade da razão, Habermas abriu espaço para sugerir uma radicalização dasteorias sociais e renovar a íntima ligação entre filosofia e sociedade, entre razão eação promotora de novos contextos comunicativos. Sua preocupação, delineadalogo no prefácio de sua obra mestra, concentra-se em três importantes proposi-ções, todas a mostrar que a filosofia tem de assumir um papel crítico de debate eproporcionar a compreensão e a participação efetiva dos atores sociais nas delibe-rações a respeito dos pressupostos normativos que guiam suas ações.

A primeira preocupação é o encontro de um conceito de racionalidade comu-nicativa “que [seja] suficientemente cético em seu desenvolvimento, porém, re-sistente a processos cognitivo-instrumentais da razão”.108 Isso significa uma radi-cal renovação do discurso moderno, que se limitou a conceber uma estruturamonológica do conhecimento a partir da dicotomia sujeito/objeto, sobretudopela ênfase teórico-científica. Em segundo lugar, Habermas deseja elaborar um“conceito de sociedade em dois níveis que conecte os paradigmas do ‘mundo davida’ e do ‘sistema’ em mais do que uma moda retórica”.109 Nesse enfoque, seuintuito é tentar, mediante o estudo dos interesses socialmente presentes, explicarcomo se podem integrar o mundo da vida, caracterizado como um “pano defundo consensual”,110 e o sistema em que se manifestam os interesses estrategi-camente motivados. Por fim – e é nesse aspecto que se apresenta claramente opropósito de diagnosticar a modernidade e indicar um possível caminhoemancipatório –, sua Teoria do Agir Comunicativo propõe ser uma “teoria damodernidade que explica os tipos de patologias sociais que estão hoje se tornan-do crescentemente visíveis, pelo caminho da assunção de que os domínios devida estruturados comunicativamente estão sendo subordinados por imperativosde autonomia, formalmente organizados em sistemas de ação”.111

Com isso, Habermas desenvolve uma teoria social crítica da modernidade,que, por meio da análise de suas patologias, não se conforma em apenas aceitá-las, mas busca expor possibilidades para um possível “reencantamento do mun-do”, para um projeto de esclarecimento. Em síntese, a Teoria do Agir Comunica-tivo “intenciona tornar possível uma conceituação do contexto da vida social queé ajustada aos paradoxos da modernidade”.112

108 Ibidem, p. xiii. Tradução livre.109 Ibidem, p. xiii. Tradução livre.110 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade. Vol. 1. op. cit., p.40.111 HABERMAS, Jürgen. The Theory of Communicative Action. Vol. I. op. cit., p. xlii. Traduçãolivre.112 Ibidem, p. xii Tradução livre.

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O diagnóstico da modernidade – em que se verificam: a estrutura monológicada filosofia da consciência; a identificação da filosofia com a epistemologia; odescrédito com padrões de racionalidade aptos a incitar alterações na sociedade;a prevalência do conhecimento técnico-científico; a estrutura social dominadapor interesses estrategicamente motivados – fez Habermas concluir que elapriorizou, em um primeiro plano, os mecanismos das ações orientadas ao suces-so. Nesse itinerário, tomou, como fundamento, por um lado, o conhecimentotécnico-cognitivo e, por conseguinte, uma racionalidade voltada para a técnicadesligada da dimensão social (racionalidade instrumental). Por outro lado, amodernidade sustentou o desinteresse pela comunicação nas premissas das teo-rias sociais, dando preferência para as ações estrategicamente motivadas de ma-nutenção das mesmas estruturas e instituições na sociedade.

A “racionalidade instrumental”113 e a “racionalidade estratégica”114 transfor-maram o interesse pela filosofia em algo desnecessário, pois perdeu sentido com-preender os fundamentos do saber. Afinal, a ciência fornece respostas empíricasimediatas sem a necessidade de articular os fundamentos do conhecimento. Porsua vez, a racionalização da sociedade ocorreu conforme um processo de desen-cantamento de suas bases, que, no intuito de se afastarem as metafísicas quetanto contaminaram o pensamento, acabou consagrando uma metafísica decor-rente da irreflexão sobre seu próprio proceder. Como salienta Habermas em seupolêmico livro Conhecimento e Interesse, “a posição da filosofia frente à ciência,que um dia levou o nome de teoria do conhecimento, ficou insustentável peladinâmica do pensamento enquanto tal: o lugar da filosofia foi deslocado pelaprópria filosofia”.115 Houve, assim, como bem ressaltado, a abdicação da críticado conhecimento em favor da teoria da ciência.116 Sob a perspectiva social e comapoio no diagnóstico weberiano, Habermas constata que houve uma expansão da“reificação e a funcionalização de formas de vida e de relacionamento”117 nasociedade por intermédio do avanço de ações orientadas estrategicamente.118

113 Segundo Habermas, “nós denominamos ação orientada ao sucesso instrumental quando aconsideramos sob o aspecto do seguimento de regras técnicas de ação e avaliamos a eficiênciade uma intervenção no complexo de circunstâncias e eventos” (HABERMAS, Jürgen. TheTheory of Communicative Action. Vol. I. op. cit., p. 285. Tradução livre).114 Segundo Habermas, “denominamos ação orientada ao sucesso estratégico quando a conside-ramos sob o aspecto do seguimento de regras de escolha racional e avaliamos sua eficácia deinfluenciar decisões de um oponente racional” (HABERMAS, Jürgen. The Theory ofCommunicative Action. Vol. I. op. cit., p. 285. Tradução livre).115 HABERMAS, Jürgen. Conhecimento e Interesse. op. cit., p. 26.116 Ibidem, p. 26.117 HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-Metafísico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002,p. 43.118 A descrição abaixo a respeito do processo do agir comunicativo auxilia na compreensão desua diferença em relação ao agir estratégico:

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O desencantamento do mundo, não obstante tenha minorado a força dasmetafísicas tradicionais, levou o mundo a uma perda do referencial ético e dereflexão sobre as premissas do próprio pensamento. Paradoxalmente, amodernidade, que tanto primou pelo conhecimento, não pensou sua própria con-dição. “O ganho em controle é pago por uma perda de significado. E o controleque ganhamos é, ele próprio, valorativo-neutro – um potencial instrumental quepode ser explorado por qualquer um em um número ilimitado de perspectivasvalorativas”, esclarece Thomas Mccarthy.119 Perde-se, assim, a unidade do mun-do e uma pluralidade de diferentes concepções – muitas vezes tomadas por umpropósito subjetivo valorativamente irreconciliável – torna os planos da ética edos valores, na esteira do diagnóstico weberiano, destituídos de razão. Aracionalidade, nesse contexto, pelo seu próprio desencantamento, deixou de serverdadeiramente discutida em sua possibilidade comunicativa e, portanto,inviábilizou-se trabalhá-la em uma dimensão social, uma vez que “a crítica doconhecimento só é possível como teoria da sociedade”.120

O projeto habermasiano, dessa maneira, parte de um interesse em elucidar eesclarecer o que há por trás dos processos de integração social. Pelo estudo dasdistintas ações e, por decorrência, da razão que as guia, Habermas concluiu,diferentemente de Weber,121 que a realidade não se cinge a uma direção racio-nal praticamente delimitada em seu itinerário. Há várias racionalidades possí-veis. A primeira por ele investigada, concentrada sobretudo nos estudos

“Uma vez que o agir comunicativo depende do uso da linguagem dirigida ao entendimento, eledeve preencher condições mais rigorosas. Os atores participantes tentam definir cooperativamen-te os seus planos de ação, levando em conta uns aos outros, no horizonte de um mundo da vidacompartilhado e na base de interpretações comuns da situação. Além disso, eles estão dispostosa atingir esses objetivos mediatos da definição da situação e da escolha dos fins assumindo opapel de falantes e ouvintes, que falam e ouvem através de processos de entendimento. O entendi-mento através da linguagem funciona da seguinte maneira: os participantes da interação unem-seatravés da validade pretendida de suas ações de fala ou tomam em consideração os dissensosconstatados. Através das ações de fala são levantadas pretensões de validade criticáveis, as quaisapontam para um reconhecimento intersubjetivo. A oferta contida num ato de fala adquire forçaobrigatória quando o falante garante, através de sua pretensão de validez, que está em condiçõesde resgatar essa pretensão, caso seja exigido, empregando o tipo correto de argumentos. O agircomunicativo distingue-se, pois, do estratégico, uma vez que a coordenação bem sucedida da açãonão está apoiada na racionalidade teleológica dos planos individuais de ação, mas na força raci-onalmente motivadora de atos de entendimento, portanto, numa racionalidade que se manifestanas condições requeridas para um acordo obtido comunicativamente” (HABERMAS, Jürgen. Pen-samento Pós-Metafísico. op. cit., p. 72. Grifo não presente no original).119 Vide McCARTHY, Thomas. “Prefácio”. In: HABERMAS, Jürgen. The Theory ofCommunicative Action. Vol. I. Reason and the Rationalization of Society. op. cit., p. xix. Tradu-ção livre.120 Ibidem, p. xxiii. Tradução livre.121 É interessante notar que Habermas realiza a crítica à teoria da racionalização weberiana apartir das próprias premissas desenvolvidas por este autor:

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weberianos, é a promotora da ação propositiva-racional e representa a “eficiên-cia empírica de instrumentos técnicos e a consistência da escolha entre instru-mentos apropriados”.122 Essa racionalidade, que remonta à racionalidade ins-trumental – Zweckrationalität – tal como Weber123 trabalha como aspecto típicoda modernidade, estaria levando a sociedade a um fim trágico124, a um pleno“desencantamento do mundo” em que a comunicação não se opera. Esse resul-tado decorreria das duas manifestações dessa racionalidade: “a racionalidadedos instrumentos requer um conhecimento empírico tecnicamente utilizável”.125

Por sua vez, a “racionalidade de decisões requer a explicação da inerente con-sistência do sistema de valores e máximas da decisão, como também a corretaderivação dos atos de escolha”.126

A razão instrumental atingiu, sobremaneira, o domínio do prático e, porconseqüência, os desenvolvimentos voltados para a ação no mundo foram domi-nados por uma prevalência de uma busca por resultados sem uma direta refle-xão sobre o porquê da própria ação. O silêncio a respeito dos pressupostos,ademais, foi agravado pela permanência do monólogo ou de uma intervenção nomundo sem uma referência ao outro de modo inclusivo. Por outro lado, a razãoteórica limitou-se a se identificar com o padrão metodológico-científico que, domesmo modo, não procurou se entender enquanto projeto reflexivo. O que valeé o alcance do conhecimento.

A própria filosofia se desencanta e passa a se identificar com o conhecimen-to. A epistemologia transforma-se no foco das preocupações filosóficas – o que

“(...) Uma crítica da fundação da teoria da ação de Weber pode ser desenvolvida a partir deuma linha de argumentação encontrada em seu próprio trabalho. Mas essa crítica conduz a umademanda por mudança de paradigma (de teleológica para ação comunicativa) que Weber nãovisionou” (HABERMAS, Jürgen. The Theory of Communicative Action. Vol. I. op. cit., p. 339.Tradução livre).122 Ibidem, p. 20. Tradução livre.123 Habermas empreende uma minuciosa investigação da teoria da racionalização weberiana nosegundo capítulo de sua obra Teoria do Agir Comunicativo, para, no terceiro capítulo, intitulado“Reflexões Intermediárias: Ação Social, Atividade Propositiva e Comunicação”, desenvolver aspropriedades da racionalidade comunicativa. Para maior compreensão, vide HABERMAS, Jürgen.The Theory of Communicative Action. Vol. I. op. cit., pp. 143-339.124 É importante salientar que Habermas radicaliza essa percepção da racionalidade moderna,deixando claro os perigos de seu avanço quando desamparado pela racionalidade comunicati-va. Para ele, isso, sim, pode levar à sociedade a um fim trágico. Já Weber tem uma perspectivadistinta – até porque se conecta ao unidimensionalismo de sua concepção de racionalidade – arespeito de um fim trágico. Sua terapia não está, por isso, ligada à idéia de comunicação, masmuito mais dirigida ao que poderia, aos olhos de Habermas, ser uma saída estética, por depo-sitar em uma certa irracionalidade com traços nietzschianos os caminhos contra essainstrumentalização do mundo da vida. Para melhor compreensão deste diálogo, vide: SOUZA,Jessé. Terapias da Modernidade: Um Diálogo entre Habermas e Weber. SP, Annablume, 1997.125 BERNSTEIN, Richard. “Introduction”. In: BERNSTEIN, Richard (Org). Habermas andModernity. op. cit., 1988, p. 20. Tradução livre.126 Ibidem, p. 20. Tradução livre.

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vale é o conhecimento do objeto, mesmo que já se afirme para tanto, na esteirado pensamento kantiano, o sujeito constitutivo. O lugar da razão, assim, se esta-belece dentro das estruturas categoriais do sujeito. Essa característica, porém,como sustenta Milovic, fez com que a “a teoria, apesar de ter ganhado emracionalidade, [perdesse] em reflexão, no sentido de compreender sua própriaposição”.127 O mundo desencantado, se derivou de um propósito antimetafísico,foi contaminado por um afastamento de sua própria compreensibilidade. E,devido à falta de reflexão sobre sua própria razão de ser, a racionalidade – tantoteórica, quanto prática – constitui-se como uma nova metafísica.

Por outro lado, no âmbito público, a ação orientada ao sucesso também setornou prevalecente e, por conseqüência, a comunicação social foi arduamenteafetada. A ação estratégica tomou conta de parcela substancial das instituiçõessociais, que adquiriram força por intermédio de coerções imobilizadoras do dis-curso. A irreflexão sobre os pressupostos normativos facilitou a manutenção dasmesmas estruturas de dominação, afastando qualquer proposta racional demobilização pública.

A razão, por isso, também se cegou no âmbito da sociedade; ela se mistificoumediante a aceitação passiva dos pressupostos normativos. O mundo da vida,nesse contexto, perdeu em reflexão: o que prevaleceu não foi um consensoracional tomado a partir de premissas comunicativas, mas uma tradição cujacrítica operava dentro do mesmo plano da tradição. Se crítica houve, ela foi umacrítica dentro do mesmo modelo. E, assim, o mundo da vida se manteve guiadopor padrões normativos não discudios; não houve um alcance cooperativo doentendimento. Por outro enfoque, o indivíduo, se ganhou em racionalidade,perdeu em autonomia. Afinal, a incompreensão dos próprios fundamentos desua ação o torna pacífico diante de seu meio, sem incitar sua participação nasociedade. Sem participação, a integração realiza-se de fora para dentro: o indi-víduo não se sente o próprio motor da transformação histórica.

Porque, em última análise, valores não podem ser racionalmente fundamentados,mas apenas escolhidos, há, no núcleo da vida, compromissos racionalmenteinjustificáveis mediante os quais nós damos ao mundo desencantado significado eunidade. Por conseqüência, a esfera da política tem de ser entendida como umaesfera da decisão e poder e, não, da razão: Legitimidade não é uma questão dejustificação racional, mas de aceitação de facto de uma ordem da autoridade poraqueles sujeitos a ela; e o direito não é uma expressão da vontade racional, masum produto da promulgação pelas devidas autoridades constituídas de acordocom procedimentos estabelecidos.128

127 MILOVIC, Miroslav. Filosofia da Comunicação. Para uma Crítica da Modernidade. op. cit.,p. 230.128 McCARTHY, Thomas. “Prefácio”. In: HABERMAS, Theory of Communicative Action. Vol.I. op.cit., p. xx. Tradução livre.

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O desígnio assumido por Habermas, após esse diagnóstico, é radicalizar amodernidade, encontrar nela os elementos que promovam uma reversão de umdestino de “desencantamento do mundo”. Há de se indagar se a racionalidadenão pode ter outras bases que não a técnica e a escolha estratégico-racional.Para Habermas, a pergunta sobre os fundamentos modernos ainda é bastanteatual e necessária. Ele quer superar a metafísica radicalizando, portanto, o queé o racional; ele quer repensar a questão da racionalidade.

É fundamental, nesse contexto, relembrar que Habermas pertence à Escolade Frankfurt, que, entre seus diversos teóricos, buscou desenvolver uma “teoriacrítica da sociedade”. Habermas, porém, ao contrário de seus antecessores,como Adorno e Horkheimer, ao invés de cair no ceticismo e na descrença emalguma possibilidade de uma racionalidade diversa da Zweckrationalität, elabo-ra uma teoria crítica que, ao lado desta racionalidade, fomenta a existência deuma racionalidade comunicativa. Nesse aspecto, ele introduz uma nova discus-são sobre a razão apta a elucidar diversas premissas normalmente trabalhadaspelas teorias sociais. Em síntese, ao desenvolver uma crítica da ideologia a partirdo projeto comunicativo, Habermas abre espaço para uma aproximação da filo-sofia com os estudos sociológicos e, ao mesmo tempo, fornece à filosofia umpapel antes abdicado, em que ela se encontrava alheia a essa espécie de discus-são. A filosofia habermasiana, logo, tem um nítido interesse social e resgata umvalor necessário antes olvidado no pensamento filosófico. A passagem seguinte,de Abrecht Wellmer, um dos autores que mais densamente compreenderamHabermas, indica o entusiasmo que os argumentos trabalhados na Teoria doAgir Comunicativo trazem para o campo sociológico crítico e que novas respostaspodem ser esclarecidas:

Basicamente, poder-se-ia dizer que Habermas “traduziu” o projeto da teoria críti-ca da sociedade do espectro conceitual de uma filosofia da consciência, relaciona-da a um modelo sujeito-objeto de cognição e ação, em um espectro conceitual deuma teoria da linguagem e da ação comunicativa. Esse movimento básico possibi-litou Habermas distinguir categoricamente entre tipos de racionalidade e de ação– em particular entre racionalidade e ação instrumental e comunicativa – que, porrazões conceituais, nem Marx, nem Weber, nem Adorno e Horkheimer puderamclaramente manter separadas uma da outra. As conseqüências diretas que segui-ram dessa revisão conceitual em relação às teorias de Marx, Weber e Adorno/Horkheirmer são: (1) Contra Marx, Habermas conseguiu mostrar que as formasburguesas de moralidade universal e lei universal não podem ser entendidas comosendo meramente reflexos ideológicos do modo capitalista de produção, porém,de certa forma, elas podem ser relacionadas geneticamente à emergência do capi-talismo, devem ser também vistas como sendo uma expressão de um processo deaprendizagem coletivo irreversível que tem de ser categoricamente distinguido dosprocessos de aprendizado na dimensão da ciência e da tecnologia; (2) ContraWeber, Habermas conseguiu mostrar que a emergência da moralidade universale das concepções legais universalistas, que levaram a uma específica concepção

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moderna de democracia e de direitos humanos, representa o tipo de processo deracionalização que, categoricamente, tem de ser distinguido da racionalização nosentido da racionalização formal e burocrática; (3) Contra Horkheimer e Adorno,Habermas mostra que a idéia de uma organização racional da sociedade, isto é,uma organização da sociedade que seria baseada no livre acordo entre seus mem-bros, é – mesmo de forma distorcida – já compreendida e reconhecida em institui-ções democráticas, nos princípios da legitimidade e da auto-interpretação das soci-edades industriais modernas. Por essa razão sozinha, uma análise crítica dassociedades modernas pode compartilhar uma estrutura normativa comum comseu objeto de análise e pode assumir a forma de uma imanente crítica.129

Portanto, Habermas revigora uma esperança para o fim desencantado relata-do em relação à modernidade por Weber e também explicita a possibilidade dese criar uma teoria crítica da sociedade, ao contrário das conclusões a que chega-ram Adorno e Horkheimer.130 Do mesmo modo, a estruturação de sua teoria doagir comunicativo não leva a uma emancipação da sociedade tal como Marxtrabalhou ao acreditar na superação do capitalismo a partir de sua própria criseinterna e a instalação de uma sociedade comunista. O caminho da superaçãodessa racionalidade decorre dos processos de racionalização que privilegiem aracionalidade comunicativa, que visam a dar primazia ao que ele denomina “mundoda vida”. De fato, como esclarece Wellmer, “um ‘mundo da vida idealizado’ nosentido de Habermas começa a aparecer como um centro normativo de gravitaçãode qualquer forma democrática e igualitária de organização social e política”.131 Éno mundo da vida que se reconhece a intersubjetividade, que, como aduzido porMilovic, é a “referência para a questão da fundamentação”.132

O importante foco que faz da teoria habermasiana uma referência para oestudo das instituições encontra-se nessa ligação direta com o empírico, no intui-to de promover a transformação das estruturas institucionais dominadas pordiferentes interesses impeditivos da comunicação social efetiva. Em Marx,Habermas encontra o fundamento para desenvolver um critério para se estabe-lecer uma síntese empírica do sujeito com seu mundo circundante, em que aação transformadora altera a postura do sujeito contemplativo e pouco preocu-pado com o social.133 Agora, com a síntese mediada empiricamente entre o

129 WELLMER, Albrecht. “Reason, Utopia, and the Dialectic of Elightenment”. In: BERNSTEIN,Richard J. (Org). Habermas and Modernity. op. cit., p. 52. Tradução livre.130 É importante salientar que Adorno chegou a creditar a única forma de saída desse mal damodernidade às artes, à estética, a um retorno à natureza e, pois, manteve a relação sujeito-objeto no cerne de sua teoria, sobretudo a partir da obra Dialética Negativa. Para tanto, vide:ADORNO, Theodor. Negative Dialectics. London: Routledge & K Paul, 1973.131 WELLMER, Albrecht. “Reason, Utopia, and the Dialectic of Elightenment”. In: BERNSTEIN,Richard J. (Org). Habermas and Modernity. op. cit., p. 61. Tradução livre.132 MILOVIC, Míroslav. Comunidade da Diferença. op. cit., p. 65.133 Em Marx, segundo Habermas, contrapondo-se à filosofia da consciência kantiana, a “síntesenão se afigura mais como uma atividade do pensamento, mas como produção material”

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sujeito e o seu objeto, sempre pensando no outro, Habermas procura elucidarum caminho de afirmação da emancipação como reflexão.134 E, ao mesmo tem-po, “articular uma sociedade auto-reflexiva que é capaz de repensar as condi-ções da própria constituição e confrontar-se, assim, com a ideologia”.135 A partirdo pensamento de Marx a respeito de ser a consciência algo diretamente voltadopara a prática e cujas formas são representações dos modos de reproduçãosocial,136 Habermas concentra seu projeto no propósito de indicar uma saídatransformadora da realidade.

Porém, ao contrário do critério objetivo de Marx de superação da proprieda-de privada, Habermas sustenta um projeto de racionalidade transformadora porintermédio da ênfase comunicativa, de uma síntese empírica construída no dis-curso. Assim, enquanto “Marx entende a reflexão seguindo o modelo da produ-ção”,137 Habermas a entende seguindo o modelo da comunicação. Com a disso-lução das forças produtivas laborais e o fracasso do seu movimento revolucionário,ele precisa encontrar outro motor da história e de suas mudanças. A pergunta écomo pensar a emancipação sem o proletariado.138

Habermas encontra seu motor transformador na comunicação social. Comessa compreensão, ele direciona seu projeto para a elucidação dos interesses139

presentes socialmente e tenta desvendá-los segundo uma proposta reflexiva aptaa desenvolver uma crítica dos pressupostos normativos. Ele consegue verificarque há outras formas de interação social pautadas por premissas comunicativasque sustentam a emancipação. Para ele, “Marx reduz o curso da reflexão ao nível

(HABERMAS, Jürgen. Conhecimento e Interesse. op. cit., p. 49). Além disso, em oposição a umaconsciência afastada do contexto, purificada, a perspectiva marxista fez com que a “identidadeda consciência, que Kant compreendeu como unidade da consciência transcendental, seja umaidentidade resultante do trabalho” (idem, p. 57), o que expressa uma direta intervenção nomundo, uma vez que o trabalho constitui o mundo (vide Ibidem, p. 46).134 Vide MIROSLAV, Milovic. Comunidade da Diferença. op. cit., p. 26.135 MIROSLAV. Milovic. Comunidade da Diferença. op. cit., p. 66.136 Vide McCARTHY, Thomas. “Prefácio”. In: HABERMAS, Jürgen. The Theory ofCommunicative Action. Vol. I. op. cit., p. x. Tradução livre.137 HABERMAS, Jürgen. Conhecimento e Interesse. op. cit., p. 61.138 Habermas investiga, com fundamento em Marx, o processo de perda do potencial emancipatóriodas forças produtivas laborais a partir de sua acomodação ocorrida em razão da institucionalizaçãodo salário (ficção da livre venda da força de trabalho) e do mercado, o que acarretou sua conse-qüente neutralização reflexiva e comunicativa (tese marxista da colonização interna), isto é, asubordinação do mundo da vida aos imperativos de integração sistêmica. “A relação de trabalhoassalariado neutraliza as performances dos produtores vis-à-vis os contextos do mundo da vida desuas ações” (HABERMAS. The Theory of Communicative Action. Vol. II. Lifeworld and System:A Critique of Functionalist Reason. op. cit., p. 335, Tradução livre).139 Habermas define interesse da seguinte maneira: são as “orientações básicas que aderem acertas condições fundamentais da reprodução e da autoconstituição possíveis de cada espéciehumana: trabalho e interação”. (HABERMAS, Jürgen. Conhecimento e Interesse. op. cit., p.217).

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do agir instrumental”.140 Isso se torna claro pela não-percepção marxista da exis-tência de interações mediadas pela linguagem e, sim, por uma ênfase no critérioobjetivo de superação da propriedade privada como caminho emancipatório. Se,pois, por um lado, o pensamento marxista instiga a ação transformadora,141 elefica limitado pelo contexto da interação pelo trabalho.

É o desdobramento das forças produtivas que instiga a espécie a romper,renovadamente, com uma forma de vida esclerosada na positividade e convertidaem abstração. Mas, ao mesmo tempo em que Marx reduz a reflexão ao trabalho,ele ilude-se acerca de seu alcance: Marx identifica ‘a supressão-superação comomovimento objetivado que recupera a exteriorização em si’ com uma apropriaçãode forças essenciais, externadas na ação do trabalho sobre um material.142

O relevo dado à ação, à mobilização social em prol do entendimento mútuo,por isso, precisa ser complementado por um estudo a respeito das diferentesformas de integração social. Em torno das ações orientadas ao sucesso, funda-das na racionalidade instrumental ou estratégica, o mundo moderno se viu coor-denado por propósitos direcionados ao cálculo egocêntrico de utilidade desliga-do de qualquer referência social, como também por um caminhar de integraçãosistêmica fundado em normas consensuais adquiridas por uma tradição cujacrítica opera dentro de seu próprio modelo. Em torno do agir comunicativo, poroutro lado, a integração realiza-se pelo alcance do entendimento de modo coo-perativo, em que as pretensões de validade idealizadas se sujeitam a um testecontinuado. E essa integração, que também promove alterações estruturais, nãopode ser compreendida com ênfase nas contingências externas ou fatores alhei-os ao processo de comunicação. A integração realiza-se, sobretudo, medianteum processo de aprendizado mútuo, em que os argumentos são internamentereconstruídos reflexivamente.

Com fundamento nas três espécies de racionalidade, Habermas sustenta umateoria social que visa a desvendar o relacionamento da integração social com aintegração sistêmica. A integração social opera por meio da coordenação de ori-entações de ação dos indivíduos no âmbito social e está relacionada ao mundo davida143 e à racionalidade comunicativa, enquanto que a integração sistêmica se

140 HABERMAS. Conhecimento e Interesse. op. cit., p. 60.141 Vide o capítulo “A Emancipação Objetivada: Marx” da obra Comunidade da Diferença, deMiroslav Milovic. Neste estudo, Milovic empreende uma densa pesquisa a respeito da filosofiamarxista, seu potencial e seus limites. MIROSLAV, Milovic. Comunidade da Diferença. op. cit.,pp. 24-39.142 HABERMAS. Conhecimento e Interesse. op. cit., p. 60.143 Habermas desenvolve o conceito de mundo da vida no segundo volume da Teoria do AgirComunicativo, em que ele o relaciona diretamente aos processos de comunicação social e deação orientada ao entendimento. Na ação comunicativa, o mundo da vida é simbolicamentereproduzido, representando um conjunto de padrões culturalmente transmitidos por intermédioda linguagem que podem ser constantemente problematizados (padrões sociais, culturais e

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dá, como o próprio nome indica, por um “sistema auto-regulado em que as açõessão coordenadas por intermédio de interconexões funcionais das conseqüênciasda ação”.144

Essas duas formas de integração estão claramente diferenciadas nas socieda-des modernas. A racionalização sistêmica – que representa aquilo que Weberdenomina de processo de burocratização e de racionalização instrumental e osprocessos de racionalização estratégica – e a racionalização comunicativa sãopossibilidades complementares de racionalização no mundo moderno. Por ser aação comunicativa insuficiente para coordenar a ação e também para evitar umaidealização que não permitiria compreender as distorções sociais, é necessáriatambém sua complementação pela ação sistêmica para que as pretensões deintegração social se tornem menos complexas. Por outro lado, “a integraçãosistêmica precisa ser institucionalizada e, pois, ancorada no mundo da vida: elapressupõe formas de integração social e uma legitimidade das leis e instituiçõesbásicas”.145 É, nesse aspecto, que está o cerne para a aferição da legitimidadedas instituições e do Direito. Deve-se perquirir como se desenvolve o entrosamentoentre mundo da vida e o sistema em tais contextos. Em última instância, o queHabermas deseja é a configuração de uma esfera pública em que a políticadeliberativa passe a ser algo inerente às atividades cotidianas ou, como afirmaThomas Mccarthy, Habermas apresenta a “’hipótese prática’” de uma organiza-ção democrática de sociedade em que o discurso moral-prático é institucionalmenteassegurado nas esferas públicas, cultural e política”.146

Desse modo, possibilita-se a configuração social que se constrói em umentrosamento “saudável” entre os distintos planos de racionalidade, dando pri-

subjetivos). Como “pano de fundo consensual”, o mundo da vida estabelece um mínimo desegurança para que a comunicação social possa desempenhar seu papel, evitando a ocorrênciade distúrbios sociais (perda de sentido, retração da legitimação, confusão de orientações, anormia,desestabilização de identidades coletivas, alienação, psicopatologias, quebras na tradição, per-da de motivação (Vide McCARTHY. Prefácio. In: HABERMAS, Jürgen. The Theory ofCommunicative Action. Vol. I. op. cit., p. xxvii, Tradução livre). Segundo Habermas:“O mundo da vida é, pode-se falar, o terreno transcendental onde aquele que fala e aquele queouve se encontram, onde eles podem reciprocamente levantar pretensões cujas formulaçõescorrespondem ao mundo (objetivo, social ou subjetivo) e onde podem criticar e confirmar aque-las pretensões de validade, firmar seu desacordo e chegar a acordos” (HABERMAS, Jürgen.The Theory of Communicative Action. Vol. II. Lifeworld and System: a Critique of FunctionalistReason. Boston: Beacon Press, 1989, p. 126. Tradução livre).144 McCARTHY, Thomas. “Prefácio”. In: HABERMAS, Jürgen. The Theory of CommunicativeAction. Vol. I. op. cit., p. xxviii. Tradução livre.145 WELLMER, Albrecht. “Reason, Utopia, and the Dialectic of Elightenment”. In: BERNSTEIN,Richard J. (Org). Habermas and Modernity. op.cit., p. 61. Tradução livre.146 McCARTHY, Thomas. “Reflections on Rationalization in The Theory of CommunicativeAction”. In: BERNSTEIN, Richard J. (Org). Habermas and Modernity. op. cit., p. 180. Tradu-ção livre.

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"'hipótese prática´

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mazia às formas de comunicação social. A sua teoria, como explica Axel Honneth,transmite uma “crítica ampla e fundamentada das formas unidimensionadas desociabilidade (Vergessellschaftung) produzidas pela racionalidade instrumental”.147

Por isso, é necessário afirmar que, tanto a integração sistêmica quanto a socialfazem parte do cotidiano moderno. Honneth enfatiza que a essência da teoriahabermasiana “constitui o casamento (Verschränkung) entre teoria da comunica-ção e teoria dos sistemas”,148 que, por sua vez, deve complementar “toda e qual-quer análise de processos voltados para o entendimento, por meio dos quais associedades hoje se reproduzem no mundo da vida (lebensweltlich)”.149

Todavia, no mundo moderno, o que se verifica é que a balança tem pendidomais para o processo de racionalização voltado para o sucesso, cuja força temsido mais eficiente do que a racionalização comunicativa. “Hoje as estruturas domundo da vida parecem ser ameaçadas por uma lógica da diferenciação e raci-onalização sistêmica – Habermas fala em uma ‘colonização’ do mundo davida”.150 O desiderato é pensar em como se pode construir uma sociedade auto-reflexiva e solidária: esse é o processo apto a fomentar uma reflexão crítica sobreos próprios fundamentos de constituição da sociedade. Nas palavras de Milovic,“pensando uma sociedade auto-reflexiva, poderíamos dizer que se realiza algodo projeto da revolução permanente, enfim se realiza uma crítica permanente dasociedade”.151

Para se alcançar uma sociedade auto-reflexiva, a própria modernidade podeoferecer as respostas. O que se necessita é acreditar que os processos de racio-nalização podem abrir as portas para a emancipação social. Essa emancipaçãodeve partir, então, de uma radicalização da própria modernidade e da razão,com ênfase na intersubjetividade.

Ao argumentar que a modernidade já fornece sugestões para esse desiderato,há de se ter uma concepção mais otimista a seu respeito. A modernidade nãoleva – ao contrário do que ocorreu com Weber, Adorno e Horkheimer – àconclusão de que o mundo está plenamente como se não houvesse motivo paraacreditar no projeto moderno. À postura conformista e contemplativa da teoriacrítica haveria de se contrapor a mobilização social contra o mesmo. Uma novateoria crítica, portanto, teria de nascer. Ao expor a existência de três racionalidadesfundamentais – racionalidade instrumental, racionalidade estratégica eracionalidade comunicativa – Habermas mostra que existem, embora em grau

147 HONNETH, Axel. Jürgen Habermas: “Percurso Acadêmico e Obra”. In: FREITAG, Bárba-ra (Org.). Jürgen Habermas: 70 Anos. RJ: Tempo Brasileiro, 1999, p. 21.148 Ibidem, p. 25.149 Ibidem, p. 25.150 WELLMER, Albrecht. “Reason, Utopia, and the Dialectic of Elightenment”. In: BERNSTEIN,Richard J. (Org). Habermas and Modernity. op. cit., p. 55. Tradução livre.151 HONNETH, Axel. Jürgen Habermas: “Percurso Acadêmico e Obra”. In: FREITAG, Bárba-ra (Org.). Jürgen Habermas: 70 Anos. op. cit., p. 27.

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plenamente desencantado, como se

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ainda acentuadamente limitado, diversos “sinais” no mundo moderno que indi-cam um movimento de busca por uma revalorização do mundo da vida. Isso éverificado, por exemplo, segundo Habermas, nos movimentos sociais, nos direi-tos fundamentais, todos buscando resgatar a integridade do mundo da vida. Há,assim, uma luz no “paradoxo da racionalização”152 que tanto atormentava osanteriores teóricos da Escola de Frankfurt e também Weber. “Habermas reformulaesse paradoxo em termos de sua distinção entre sistema e mundo da vida”.153

Conforme ressaltou Wellmer:Pelo fato de Weber, por razões conceituais, não ter realizado a distinção entreprocessos de racionalização comunicativa e sistêmica, ele não pôde sequer identi-ficar esses elementos da racionalização comunicativa que foram institucionalizadosou preservados em princípios universalistas das Constituições modernas, em for-mas democráticas de organização política, em formas de discurso científico, polí-tico ou estético, ou na auto-interpretação de objetivos dos movimentos sociais quelutam pelos direitos dos indivíduos, pela integridade do mundo da vida ou aorganização democrática de formação da vontade coletiva.154

O projeto habermasiano, logo, não visa, em última análise, a sustentar umarevolução social. Na verdade, o que Habermas prega é uma espécie de reformaque permita articular essa racionalidade comunicativa com as instituições demo-cráticas. Seu projeto quer realizar um resgate de um mundo da vida colonizadopor processos de racionalização instrumental e estratégica. O objetivo de umacrítica teórica, para esse autor, “tem de estar integrada com essa avaliação daforma institucional do capitalismo, como também com as tensões inerentes aele”.155 Os conflitos decorrentes do modo de produção capitalista são “expres-são de uma reificação da ordem comunicativa do mundo da vida” 156 e, dessamaneira, eles somente podem ser solucionados “mediante uma reconquista domundo da vida pela razão comunicativa”.157 E essa reconquista é possível, medi-ante a Teoria do Agir Comunicativo, porque ela afirma, categoricamente, atoresno processo de auto-reflexão e transformação social. A racionalidade centradana ação comunicativa é que dá os fundamentos para o resgate do mundo da vidacolonizado pelas estruturas sistêmicas. Com essa atitude, cada indivíduo se de-senvolve em sua autonomia e individualidade sob os parâmetros de umaintersubjetividade compartilhada comunicativamente.

152 Esse paradoxo encontra-se no processo de racionalização que, embora necessite do mundoda vida para ser iniciada a diferenciação sistêmica, paulatinamente, se torna cada vez maisautônomo e passa a normatizar, limitar o mundo da vida, colonizando-o e ameaçando destruí-lo.153 WELLMER, Albrecht. “Reason, Utopia, and the Dialectic of Elightenment”. In: BERNSTEIN,Richard J. (Org). Habermas and Modernity. op. cit., p. 56. Tradução livre.154 Ibidem, p. 56. Tradução livre.155 GIDDENS, Anthony. “Reason Without Revolution?” In: BERNSTEIN. Richard J. Habermasand Modernity. op. cit, p. 110. Tradução livre.156 Ibidem, p. 111. Tradução livre.157 Ibidem, p. 111. Tradução livre.

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Ao mesmo tempo, o enfoque na comunicação explicita o auto-esclarecimento,a auto-reflexividade. É a racionalidade antimetafísica que dá as bases para aconstituição da sociedade por meio da política deliberativa. Por isso, comoenfatizado por Milovic,158 a emancipação não se dá em razão de processos obje-tivos, como se verificou em Marx ao especificar a desintegração da propriedadeprivada. A emancipação está na reflexão. Para mudar o mundo, deve-se recons-truir radicalmente a racionalidade moderna; deve-se mudar o paradigma moder-no acreditando na racionalidade como condição da emancipação. E essaracionalidade está no próprio mundo, nos jogos intersubjetivos da comunicaçãosocial. Sua razão é, devido a isso, “destranscendentalizada”, como afirmado naobra Agir Comunicativo e Razão Destranscendentalizada. A razão, afinal, não énada antes do social.

Ao contrário, portanto, de Weber, Habermas aposta na existência de umaracionalidade que não apenas coloniza o mundo da vida. Ao trazer a diferenci-ação entre racionalidade comunicativa, racionalidade estratégica e racionalidadeinstrumental, ele abre as portas para novas perspectivas da crítica social. Setomado apenas o projeto weberiano, “esses elementos de racionalização comu-nicativa, uma vez que ele [Weber] não pôde integrá-los em uma concepção deracionalização formal e burocrática, no fim pareceram resíduos de forças davida irracional em um mundo racionalizado ou como contra-reações irracionaisaos limites do racionalismo moderno”.159 Habermas, analisando a obra weberiana,sintetiza essas conclusões deixando claro que Weber “descreve a racionalizaçãodas visões de mundo como um processo de decomposição e diferenciação”.160

Todavia, como se infere na Teoria do Agir Comunicativo, é fundamental creditarracionalidade a essas realidades, pois elas revelam um movimento contrário aocontínuo desenvolvimento de formas de diferenciação e racionalização voltadaspara o sucesso; são uma luz ao trágico avanço da “integração sistêmica” e da“reificação social”.

Encontra-se nesse propósito a construção de uma teoria crítica da sociedadefundada na necessidade de se dar primazia ao processo de racionalização comu-nicativa, que, como mencionado no estudo sincrônico, visa, acima de tudo, aobter um consenso social por intermédio da avaliação critica de argumentos.Além do fato de estender a sua teoria para todo o espectro social, a Teoria doAgir Comunicativo consegue justificar-se por intermédio do estudo do devir his-tórico, por meio de uma reinterpretação do processo de modernização e raciona-

158 MILOVIC, Míroslav. Comunidade da Diferença. op. cit., p. 52.159 WELLMER, Albrecht. “Reason, Utopia, and the Dialectic of Elightenment”. In: BERNSTEIN,Richard J. (Org). Habermas and Modernity. op. cit., p. 56.160 HABERMAS, Jürgen. “Questions and Counterquestions”. In: WELLMER, Albrecht. “Reason,Utopia, and the Dialectic of Elightenment”. In: BERNSTEIN, Richard J. (Org). Habermas andModernity. op. cit., p. 199. Tradução livre.

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lização da sociedade. Como teórico da Escola de Frankfurt, Habermas foi hábilo suficiente para formular uma nova forma de conceber a superação da socieda-de moderna, altamente limitada por mecanismos sistêmicos de integração, apartir da verificação da existência de uma racionalidade paralela, umaracionalidade comunicativa, que deve ser preservada e ampliada.

Habermas reinterpreta a idéia de Marx de uma sociedade emancipada: em umasociedade emancipada, o mundo da vida poderia não mais estar sujeito aos imperati-vos da manutenção sistêmica; um mundo da vida racionalizado, ao contrário, iriasujeitar os mecanismos sistêmicos às necessidades dos indivíduos associados. Apenasassim, para colocar em termos de Marx, iria a dependência da “superestrutura” nabase – isto é, a dependência do mundo da vida no sistema – chegar ao fim.161

A conclusão a que se pode chegar após o estudo desse processo de ra-cionalização é que Habermas deseja valorizar algumas atividades humanas aptasa dar primazia à procura pelo consenso, possibilitar reproduzir, no cotidiano, omundo da vida e, sobretudo, fazer dos atos de interpretação e comunicaçãoindividuais o cerne principal de avanço desse mundo da vida. Com isso, seriapossível, em um plano ideal, libertar-se das amarras, das normas aplicadas pelaracionalidade voltada para o sucesso.

Habermas preocupa-se, dessa forma, em analisar as instituições presentes everificar nelas como essa interação entre mundo da vida e sistema se manifesta.Nessa análise das instituições, a Teoria do Agir Comunicativo permite a investiga-ção de instituições que, com essa teoria, seriam compatíveis. Para tanto, deveri-am “representar a âncora normativa do sistema no mundo da vida e, por outrolado, proteger as estruturas comunicativas do mundo da vida e assegurar umcontrole racional e democrático do sistema pelo mundo da vida”.162

É a radicalização de uma democracia fundada na reflexão. Conforme salien-ta Axel Honneth, é a “interação lingüisticamente mediatizada entre sujeitos quefornece o padrão capaz de medir os danos provocados no interior do mundovivido social”.163 Essa interação, dessa forma, é que dá os subsídios para secompreender a própria legitimidade das instituições democráticas. Assim, supe-ra-se o processo de uma colonização interna do mundo da vida. A democraciacondiciona-se à reflexão voltada para a comunicação social. Altera-se a posturado indivíduo. Ao invés de um cliente das estruturas institucionais, de um consu-midor alienado das estruturas estatais e econômicas, ele se torna efetivo partici-pante nos processos deliberativos.164

161 WELLMER, Albrecht. “Reason, Utopia, and the Dialectic of Elightenment”. In: BERNSTEIN,Richard J. (Org). Habermas and Modernity. op. cit., p. 57. Tradução livre.162 Ibidem, p. 58. Tradução livre.163 HONNETH, Axel. “Jürgen Habermas: Percurso Acadêmico e Obra”. In: FREITAG, Bárba-ra (Org.). Jürgen Habermas: 70 Anos. op. cit., p. 16.164 Vide HABERMAS, Jürgen. The Theory of Communicative Action. Vol. I. op. cit., pp. 332 e ss.

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A democracia passa a ser visualizada a partir da própria constituição da soci-edade moldada pela intersubjetividade. O seu fundamento não é uma racionalidadeque se fecha no procedimento sem ser trabalhado discursivamente o conteúdo. Arazão não se reduz a um aspecto formal voltado apenas para o resultado doprocesso.165 A razão, ao contrário, emancipa, sem ter de resgatar um pressupostometafísico. É uma racionalidade que promove um “questionamento universalista,mantido teimosamente, bem como um processo de reconstrução racional quetoma como ponto de partida o saber intuitivo, pré-teorético, de sujeitos dotadosde competência de falar, agir e julgar”.166 Enfim, a razão comunicativa promovea ação auto-referenciada no mundo da vida.

As instituições sociais, desse modo, devem partir da premissa de que há de sebuscar a inclusão do outro, por intermédio de ações que visam a alcançar oconsenso. Não se pode mais pressupor a identidade. “A cultura do idêntico é oque fez o capitalismo”.167 Deve-se pensar os outros, o diferente em contraposiçãoao idêntico. É, com essa percepção, que se pode entender um consenso a partirdas diferenças. Essa busca pelo entendimento, por sua vez, tem um cunho peda-gógico, ao estipular que os “diferentes aspectos da racionalidade desenvolvem-seseqüencialmente, sendo interpretadas como processos de aprendizagem (coleti-va).168 Isso fornece as condições da construção de um novo mundo, não mais reifi-cado por uma ideologia que não discute os seus próprios fundamentos, mas regu-lado por uma intersubjetividade participativa apta a permitir pensar a justiça social.

A indagação que surge está em saber até que ponto a filosofia de Habermas –ao trabalhar a intersubjetividade, a inclusão do outro, a auto-referência no mundoda vida, a autocompreensão dos pressupostos da razão não mais articulada poruma metafísica de essências ou da subjetividade – possibilita promover os proces-sos emancipatórios. Será que a reflexão e a busca pelo consenso conseguemrealmente estabelecer novos parâmetros para a teoria crítica da sociedade aoponto de conseguir transformá-la? Será que, ao enfatizar a intersubjetividade,Habermas, embora tenha buscado trabalhar um pensamento pós-metafísico, nãoacabou construindo um novo essencialismo? Onde se encontra a possibilidade doparticular em Habermas? Não teria sumido o individual a partir da prevalênciado intersubjetivo? Por que a reforma social e, não, a revolução?

São vários os questionamentos que podem surgir a partir da leitura das obrasdesse importante filósofo contemporâneo. De qualquer forma, a sua relevânciapara a crítica social é inegável. Ele apresenta uma esperança para a filosofia,mesmo que, para alguns autores, Habermas dê uma importância exagerada à

165 Ibidem, p. 44.166 Ibidem, p. 45.167 MILOVIC, Miroslav. Anotações de aula.168 HONNETH, Axel. Jürgen Habermas: “Percurso Acadêmico e Obra”. In: FREITAG, Bárba-ra (Org.). Jürgen Habermas: 70 Anos. op. cit., p. 20.

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comunicação social. A sua filosofia traduz a superação das tradicionais dicotomiassujeito-objeto, teórico-prático, consciência-mundo e, por isso, é radical. A razãoestá articulada no contexto social; a filosofia, por conseguinte, tem de se voltarpara o social. Está nesse aspecto o recado habermasiano: a filosofia deve traba-lhar os fundamentos de constituição da sociedade, não mais podendo ser algodistante, meramente contemplativo do mundo. A filosofia deve estabelecer ascondições da transformação e, por isso, a racionalidade deve ser“destranscendentalizada”, porque participa dos jogos comunicativos do mundoda vida. É a reflexão pós-metafísica centrada no discurso e na transparência(auto-reflexividade) da comunicação; é o vislumbrar de um esclarecimento antesobscurecido.

4.5. O DIREITO E A TEORIA DO AGIR COMUNICATIVO: O DISCURSO MORALMENTENEUTRO E A VALIDADE NORMATIVA CONFORME UMA POSTURA PÓS-METAFÍSICA169

As investigações sincrônica e diacrônica da Teoria do Agir Comunicativo for-neceram os subsídios para uma reestruturação ampla da tradicional concepçãoda validade normativa. Agora, a preocupação consolida-se em seu propósito deincentivo à reflexão comunicativa sobre as bases em que se assenta o agir huma-no. Na obra Direito e Democracia entre Facticidade e Validade (Faktizität undGeltung. Beiträge zur Diskustheorie des Rechts und des demokratischen Rechtsstaats),Habermas empreende uma sólida discussão a respeito do desenvolvimento desua teoria no âmbito das instituições sociais, dando especial relevo ao Direito. Ateoria do discurso, que anteriormente havia sido por ele analisada, sobretudo, apartir da moral,170 se estende ao plano jurídico. E, com ênfase no plano normativodas instituições jurídicas, Habermas sustenta uma reformulação dos própriosconceitos de sua pragmática-formal, fazendo com que sua teoria discursiva seestabeleça mediante uma complementação recíproca entre os planos da moral edo direito.171

169 O estudo ora iniciado cingir-se-á à discussão habermasiana referente à legitimidade dedireitos e aos processos racionais de deliberação normativa, uma vez que eles estão mais direta-mente relacionados ao problema proposto de validação das normas jurídicas. Projeta-se o deba-te da relação entre direito e a política, em especial a respeito do desenvolvimento do Estado deDireito, para outra oportunidade investigativa.170 Vide, para esse fim, sua obra Consciência Moral e Agir Comunicativo.171 Verifica-se, nesse aspecto, a ampla distinção entre a teoria habermasiana e o pensamento deKant. Enquanto, para este autor, o direito representa uma limitação do saber moral e, pois, todoo direito deve seguir princípios morais, Habermas defende a plena diferenciação não-hierárqui-ca entre ambos os planos normativos. O que há é uma recíproca complementaridade. A passa-gem abaixo é ilustrativa:“Na sua Introdução à Metafísica dos Costumes, Kant procede diferentemente. Ele parte doconceito fundamental da lei da liberdade moral e extrai dela as leis jurídicas, seguindo o cami-nho da redução. A teoria moral fornece os conceitos superiores: vontade e arbítrio, ação e mola

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No estudo destinado à teoria pragmática-formal anteriormente analisada, veri-ficou-se que o pensamento habermasiano se quer fazer isento de qualquer deter-minação moral prévia como condição para a consolidação de um agir voltado parao entendimento. Não existem supernormas morais – o discurso é, pois, moral-mente neutro. O que há são pressuposições pragmáticas de transcendência fracaque, não obstante possuam qualidade normativa, não representam nenhuma nor-ma substancial definidora dos caminhos a seguir. Sob a dimensão“procedimentalista-formal”, Habermas quer mostrar que os caminhos de defini-ção dos pressupostos normativos derivam de contextos de deliberação racional,em que se deseja estabelecer o agir orientado ao entendimento. A comunicação,assim, irrompe como condição para uma reconstrução reflexiva de todanormatividade.

Habermas verifica que a moral,172 por si só, precisa ser complementada peloDireito. O seu interesse pelo Direito está na percepção de que os discursos jurídi-

impulsionadora, dever e inclinação, lei e legislação, que servem inicialmente para a determina-ção do agir e do julgar moral. Na doutrina do direito, esses conceitos fundamentais da moral sãoreduzidos a três dimensões. Segundo Kant, o conceito do direito não se refere primariamente àvontade livre, mas ao arbítrio dos destinatários; abrange a reação externa de uma pessoa comoutra; e recebe a autorização para a coerção, que um está autorizado a usar contra o outro, emcaso de abuso. O princípio do direito limita o princípio da moral sob esses três pontos de vista.A partir dessa limitação, a legislação moral reflete-se na jurídica, a moralidade na legalidade, osdeveres éticos nos deveres jurídicos, etc.“Subjaz a essa construção a idéia platônica segundo a qual a ordem jurídica copia e, ao mesmotempo, concretiza no mundo fenomenal a ordem inteligível de um ‘reino de fins’. Mesmo quenão se leve em conta a metafísica kantiana, é evidente que na reduplicação do direito em direitonatural e positivo perdura uma herança platônica, a saber, a intuição segundo a qual a comuni-dade ideal dos sujeitos moralmente imputáveis – a comunidade de comunicação ilimitada deJosiah Royce até Apel – entra no tempo histórico e no espaço social, passando pelo médium dodireito, adquirindo uma figura concreta, localizada no espaço e no tempo, enquanto comunida-de de direito. Esta intuição não é de toda falsa, pois uma ordem jurídica só pode ser legítima,quando não contrariar princípios morais. Através dos componentes de legitimidade da validadejurídica, o direito adquire uma relação com a moral. Entretanto, essa relação não deve levar-nosa subordinar o direito à moral, no sentido de uma hierarquia de normas. A idéia de que existeuma hierarquia de leis faz parte do mundo pré-moderno do direito. A moral autônoma e odireito positivo, que depende de fundamentação, encontram-se numa relação de complementaçãorecíproca” (HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade. Vol. 1.op. cit., p. 141).172 Para Habermas, há distinções muito claras do direito em relação à moral. Segundo o autor,as distinções são:1. distinção de destinação: enquanto as normas morais “regulam relações interpessoais e confli-tos entre pessoas naturais, que se reconhecem reciprocamente como membros de uma comuni-dade concreta e, ao mesmo tempo, como indivíduo insubstituíveis”, cuja proteção do direito serealiza na medida em que assumem o status de portadores de direitos subjetivos (HABERMAS,Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade. Vol. 1. op. cit., p. 147), as normasjurídicas “regulam relações interpressoais e conflitos entre atores que se reconhecem como

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cos estão mais próximos das exigências de uma racionalidade procedimentalcompleta, já que, ao invés de se voltarem para a perspectiva dos participantes,eles dependem de “critérios institucionais independentes, os quais permitem cons-tatar, na perspectiva de um não-participante, se uma decisão surgiu conforme asregras ou não”.173 Assim, enquanto a moral se desenvolve dentro de um plano

membros de uma comunidade abstrata, através das normas do direito” (HABERMAS, Jürgen.Direito e Democracia entre Facticidade e Validade. Vol. 1. op. cit., p. 148). No direito, ossujeitos, portanto, não são compreendidos em sua identidade e historicidade pessoal, mas comomembros socialmente típicos.2. Distinção de matéria: a moral refere-se ao interior das pessoas, a sua própria consciência e seestrutura a partir do princípio de universalização U. Já o direito tem acesso tanto ao âmbitoexterno das pessoas, como também às matérias de ordem moral, pragmática, ética, empírica,etc (pluralidade de argumentos).3. Distinção de indeterminação cognitiva: “a moral da razão configura apenas um procedimentopara a avaliação imparcial de questões controversas. Ela não tem condições de elaborar umcatálogo de deveres, nem ao menos uma série de normas hierarquizadas: ela exige apenas queos sujeitos formem o seu próprio juízo. De mais a mais, sua liberdade comunicativa, desencadeadaem discursos morais, leva a opiniões falíveis no conflito das interpretações” (HABERMAS,Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade. Vol. 1. op. cit., p. 150). O direito,por outro lado, explicita a obrigatoriedade e a imposição da exigibilidade de determinada con-duta por meio de coações em caso de desobediência e, por isso, absorve a indeterminaçãocognitiva da moral.4. Diferença de incerteza motivacional: “a moral da razão não sobrecarrega o indivíduo apenascom o problema da decisão de conflitos de ação, mas também com expectativas em relação à suaforça de vontade” (HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade. Vol.1. op. cit., p. 151). Assim, “à indeterminação cognitiva do juízo orientado por princípios deve-seacrescentar a incerteza motivacional sobre o agir orientado por princípios conhecidos”. O direito,assim, libera o indivíduo dessa incerteza, imputando a normatividade a ser seguida.5. Distinção de complexidade: o direito é mais complexo que a moral por incitar, ao mesmotempo, tanto a limitação como a consolidação de liberdades subjetivas.6. Distinção de conteúdo: enquanto a moral expressa um sistema simbólico-cultural, o direitoconfigura um sistema de ação, voltado à realização prática das normas pressupostas (ele apre-senta obrigatoriedade no nível institucional).7. Distinção de autonomia: enquanto, na moral, cada um segue as normas conforme sua cons-ciência (autodeterminação), o direito divide a autonomia pessoal em autonomia privada e auto-nomia pública, o que a faz mais ampla nesse âmbito. A autonomia, no âmbito do direito,apresenta três distintas modalidades: a autonomia pública, em que cada participante a exerceem comum com seus pares; autonomia privada, em que o autor toma decisões e faz escolhasracionais, e liberdade pessoal, ligada à ética, que se coaduna com a procura pelo bem por cadaum. (Vide HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade. Vol. 1. op.cit., pp. 116-128).8. Distinção referente aos direitos e deveres: na moral, direitos e deveres são apresentados emposição simétrica, ao passo que, no direito, cada participante abre mão de parcela de suaautonomia para que todos da comunidade possam realizar, em condições similares, suas liber-dades subjetivas.173 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade. Vol. 2. op. cit., p.216.

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aberto de ampla discussão, o Direito não prescinde de uma regulação coercitivaque estabelece uma exigibilidade de seguimento de normas de conduta.

A falibilidade dos discursos morais expõe a própria fragilidade de umaracionalidade procedimental, que, se pautada unicamente pela dimensão dosparticipantes do discurso, pode levar, paradoxalmente, ao prolongamento dodissenso. Nas palavras de Habermas, “o agir comunicativo não-circunscrito nãoestá em condições de carregar seriamente o fardo da integração social, nem,tampouco, de livrar-se dela”.174 O Direito, assim, aparece como um estabilizadorde expectativas,175 no intuito de se construir, por meio de critérios positivosprévios, um guia para o alcance do consenso racional. Nas palavras de Niquet,“o Direito desonera a moral de exigências de orientação ubiqüistas e a reconduzà posição de um complexo de saber de justiça de teor cognitivo, com forçafracamente motivadora da ação”.176

A relação de complementaridade recíproca entre a moral e o Direito indicatambém um controle mútuo. Se, por um lado, os discursos morais precisam doDireito para suprir as lacunas estruturalmente presentes de sua falibilidadediscursiva, por outro, o direito, embora mantenha sua autonomia, reveste-se depretensões morais. Segundo Habermas, “uma ordem jurídica só pode ser legítima,quando não contrariar princípios morais”.177 As normas jurídicas, afinal, estãointimamente ligadas aos pressupostos de legitimidade, de justiça e de iguaiscondições argumentativas. Há, por isso, um entrelaçamento entre ambas as esferasdo discurso. Isso, contudo, não significa que a moral apareça como uma préviacondição hierarquicamente superior de afirmação discursiva. Não há supernormasmorais. O que se verifica é que, apesar dos processos de diferenciação entreambas esferas do discurso ao longo da história humana, existe uma preocupaçãocomum de abordagem de temas sociais.178 E, por isso, as duas esferas discursivas

174 Ibidem, p. 59.175 Vide HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade. Vol. 1. op.cit., p. 59.176 NIQUET. Teoria Realista da Moral. op. cit., p. 109.177 Vide HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade. Vol. 1. op.cit., p. 141.178 Segundo Habermas:“É certo que as questões morais e jurídicas referem-se aos mesmos problemas: como é possívelordenar legitimamente relações interpessoais e coordenar entre si ações servindo-se de normasjustificadas? Como é possível solucionar consensualmente conflitos de ação na base de regras eprincípios normativos reconhecidos intersubjetivamente? No entanto, elas referem-se aos mes-mos problemas, a partir de ângulos distintos. Todavia, mesmo tendo pontos em comum, a morale o direito distinguem-se prima facie, porque a moral pós-tradicional representa apenas umaforma de saber cultural, ao passo que o direito adquire obrigatoriedade também no nívelinstitucional. O direito não é apenas um sistema de símbolos, mas também um sistema de ação”(HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade. Vol. 1. op. cit., p.141).

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auxiliam-se reciprocamente: enquanto a moral pós-tradicional179 apresenta umaforma de saber cultural, generalizadamente pressuposta, o Direito representa umsistema de ação que faz exigir determinada conduta (obrigatoriedade). A validadedo Direito, por conseguinte, é tanto direcionada para a obediência dos destinatáriosa suas normas (obediência político-democrática), como também para umaexpectativa de reconhecimento dos pressupostos normativos por intermédio doagir orientado ao entendimento.

A moral configura, para Habermas, um saber que orienta a ação, que, porsua vez, para se desenvolver de modo eficaz, necessita do Direito. Ela, por si só,não representa um saber apto a predispor a ação de modo a ser corretamentedesenvolvida. “O seu telos consiste na avaliação imparcial de conflitos de ação,relevantes do ponto de vista moral, visando, pois, a um saber capaz de orientaro agir, mesmo que não seja capaz de dispor para o agir correto”.180 No Direito,Habermas encontra, assim, o argumento para se formular uma teoria diretamen-te voltada para a prática, para intigar o processo de “destranscendentalização”da razão a fim de se promover, empiricamente, o agir orientado ao entendimen-to. Enquanto a moral mantém apenas uma relação virtual com a ação,181 oDireito fornece os subsídios para torná-la efetiva. Ele promove os processos desocialização para que os atores se sintam motivados a tomar atitude; ele lança osjuízos morais à prática.

O Direito é sistema de saber e, ao mesmo tempo, sistema de ação; ele pode serentendido como um texto repleto de proposições e interpretações normativas oucomo uma instituição, isto é, como um complexo de regulativos da ação. NoDireito, os motivos e orientações axiológicas estão interligados entre si num siste-ma de ação; por isso as proposições jurídicas têm eficácia imediata para a ação, omesmo não acontecendo com os juízos morais enquanto tais. De outro lado, asinstituições jurídicas distinguem-se das ordens institucionais naturais através deseu elevado grau de racionalidade, pois nelas se cristaliza um sistema de sabersólido, configurado dogmaticamente e conectado a uma moral dirigida por princí-pios. E, como o Direito está estabelecido simultaneamente nos níveis da cultura eda sociedade, ele pode compensar as fraquezas de uma moral racional que seatualiza primariamente na forma de um saber.182

Torna-se simples, por conseguinte, compreender o porquê de Habermas que-rer desenvolver uma teoria do discurso moralmente neutra. O agir comunicativodesenvolve-se mediante uma premissa discursiva suficientemente abstrata que se

179 Habermas denomina de moral pós-tradicional aquela derivada do processo de diferencia-ção, em que ela adquire autonomia perante a ordem jurídica e religiosa. Vide HABERMAS,Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade. Vol. 1. op. cit., pp. 141 e ss.180 Vide HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade. Vol. 1. op.cit., p. 149.181 Ibidem.182 Ibidem, p. 150.

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volta para as normas da ação em geral183 e, não apenas, para aquelas fundadasem pressupostos morais. Assim, as normas gerais da ação se subdividem nascategorias da moral e do Direito. No campo do princípio do discurso, reina a“imparcialidade de juízos práticos”.184 Se a moral e o Direito são reciprocamentecomplementares e não apresentam diferenciação hierárquica entre si, como tam-bém voltam ambos para a orientação da ação, limitar o discurso a uma premissamoral não expõe a complexidade das normas gerais que orientam o agir. A moralé apenas uma especificação da normatividade de maior amplitude e sua justifica-ção se dá, unicamente, sob os planos de uma “consideração simétrica dos interes-ses”,185 ou seja, por intermédio do princípio de universalização U, em que todasas deliberações são tomadas conforme a argumentação racional sob critérios desimetria e justiça.

Sob o enfoque das normas de ação em geral, a validade deriva da pressupo-sição da comunidade de comunicação ideal, como anteriormente aludido, quedeve ser visada como um objetivo a alcançar. Essa construção da validação pelaampliação do agir comunicativo empiricamente (“destranscendentalização” darazão) serve de base para o desenvolvimento da validação também nos planosespecíficos das normas morais e jurídicas. Habermas salienta que “são válidasas normas de ação às quais todos os possíveis atingidos186 poderiam dar o seuassentimento, na qualidade de participantes de discursos racionais”.187 Cria-se,assim, um pressuposto imparcial e racional de validação normativa a partir doprincípio do discurso. Com essas palavras, que mostram as linhas gerais de suaTeoria do Agir Comunicativo, a validação decorre do processo de alcance doconsenso racional em que os participantes deliberam de modo autônomo, inse-rindo-se como legisladores da normatividade que os atinge.

A autonomia prática coberta pelo princípio da moral centra-se no âmbitointerno de determinado processo argumentativo. Quando se passa para a

183 Segundo Habermas, normas de ação são “expectativas de comportamento generalizadastemporal, social e objetivamente” (HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidadee Validade. Vol. 1. op. cit., p. 142).184 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade. Vol. 1. op. cit., p.142.185 Ibidem, p. 142.186 Conforme Habermas, atingidos são todos aqueles “cujos interesses serão afetados pelasprováveis conseqüências provocadas pela regulamentação de uma prática geral através de nor-mas” (HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade. Vol. 1. op. cit.,p. 142).187 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade. Vol. 1. op. cit., p.142.De acordo com Habermas, discurso racional “é toda a tentativa de entendimento sobre preten-sões de validade problemáticas, na medida em que ele se realiza sob condições da comunicaçãoque permitem o movimento livre de temas e contribuições, informações e argumentos no interi-or de um espaço público constituído através de obrigações ilucucionárias. Indiretamente a

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institucionalização prática da participação coletiva por intermédio do Direito,aparece o princípio da democracia. É ele que confere “força legitimadora aoprocesso de normatização”,188 como também orienta a produção do própriomédium do Direito, na medida em que estabelece as condições para a auto-organização da comunidade jurídica.189 Com esse princípio, a cada um é assegu-rada a igual participação nos processos de deliberação racional para criação doDireito. Ele é, por isso, uma simbiose do princípio do discurso com o Direito; ele“resulta da interligação que existe entre o princípio do discurso e a forma jurídi-ca”.190 Por meio do agir orientado ao entendimento, pautado pelo discurso mo-ralmente neutro, consegue-se mostrar que o princípio da democracia opera emoutro plano: ele realiza a estabilização de expectativas de comportamento demodo institucionalizado, mediante a realização do discurso racional em que to-dos os participantes buscam formar seu pensamento e sua vontade segundo osfundamentos da comunicação social. Logo, diferentemente da moral, cuja vali-dade se volta apenas para a forma da argumentação consoante o princípio U desimetria argumentativa entre os atores sociais,191 o princípio da democraciadireciona-se às normas do Direito.

A moral, por conseguinte, se restringe aos discursos que podem ser delibera-dos unicamente por meio da argumentação racional, em que se “leva a sério osentido universalista da validade das regras morais, pois se exige que a aceitaçãoideal de papéis (...) seja transportada para uma prática pública, realizada emcomum por todos”.192 Ela deve pressupor uma aceitação generalizada de cadaum como referência de sua própria validade e, por isso, esta se encontra alémdos limites da historicidade e do contexto. Nela, manifesta-se o princípio deuniversalização U como um pressuposto transcendentalmente fraco necessáriopara a argumentação racional. Por conseqüência, a validade de uma normamoral está diretamente relacionada com a possibilidade de consenso racionalsem coerção por todos os possíveis envolvidos, sempre assumindo a compreen-são das conseqüências e efeitos colaterais de seu seguimento. “Nos discursos de

expressão refere-se também a negociações, na medida em que estas são reguladas através deprocedimentos fundamentados discursivamente” (HABERMAS, Jürgen. Direito e Democraciaentre Facticidade e Validade. Vol. 1. op. cit., p. 142).188 Ibidem, p. 158.189 Ibidem, p. 146.190 Ibidem, p. 158.191 Habermas esclarece:“Com relação à versão abstrata de D, é importante frisar que os temas e contribuições, bemcomo o tipo de argumento que ‘contam’, não podem ser reduzidos a fortiori. Pois o princípiomoral resulta de uma especificação do princípio geral do discurso para normas de ação que sópodem ser justificadas sob o ponto de vista da consideração simétrica dos interesses”(HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade. Vol. 1. op. cit., p.143).192 HABERMAS. Direito e Democracia entre Validade e Facticidade. Vol. I. op. cit., p. 145.

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fundamentação moral, o princípio do discurso assume a forma de um princípiode universalização”.193

Por sua vez, no princípio da democracia, que surge de uma especificação dasnormas gerais da ação para o Direito, outros argumentos, além dos critérios desimetria e justiça, podem ser também desenvolvidos nos processos de validaçãoargumentativa. As normas jurídicas, segundo o autor, “podem ser justificadascom o auxílio de argumentos pragmáticos, ético-políticos e morais – e não ape-nas com o auxílio de argumentos morais”.194 Além do mais, o princípio da de-mocracia volta-se diretamente para a ação concreta dos cidadãos. Nesse aspec-to, mostra-se a relação de complementaridade já anteriormente apresentada: amoral precisa do Direito, sobretudo em sociedades complexas, para tornar efe-tiva sua normatividade. Com o Direito, os princípios morais conseguem seinstitucionalizar e passam a assumir a condição de regra exigível de conduta.Desse modo, ao contrário da perspectiva interna da moral de validação a partirsimplesmente da argumentação racional, o Direito promove a institucionalizaçãode condições externas do agir – cuja legitimidade está diretamente ligada aoprincípio democrático – que passam a ser exigíveis sob pena de aplicação desanções. Nesse sistema de direitos fundado sob o discurso, realiza-se uma cone-xão entre autonomia privada e pública.

Enquanto o princípio moral opera no nível da constituição interna de um determi-nado jogo de argumentação, o princípio da democracia refere-se ao nível dainstitucionalização externa e eficaz da participação simétrica numa formaçãodiscursiva da opinião e da vontade, a qual se realiza em formas de comunicaçãogarantida pelo Direito.195

A relação de complementaridade entre Direito e moral, entretanto, não fazcom que a validação do Direito se dê em decorrência da ligação com pressupos-tos morais, pois, como já demonstrado, eles são apenas uma parcela dos argu-mentos possíveis para o Direito. A validação jurídica nasce da aplicação do prin-cípio da democracia, que, conforme Habermas, expressa que “somente podempretender validade legítima as leis jurídicas capazes de encontrar o assentimentode todos os parceiros do Direito, num processo jurídico de normatizaçãodiscursiva”.196 A validade jurídica decorre de uma aplicação dos elementos dateoria do agir comunicativo a uma perspectiva de “autodeterminação de mem-bros do Direito que se reconhecem mutuamente como membros iguais e livres197

193 Ibidem, p. 144.194 Ibidem, p. 143.195 Ibidem, p. 145.196 Ibidem, p. 145.197 A liberdade comunicativa, que é requisito de validade normativa, para Habermas, “só existeentre atores que desejam entender-se entre si sobre algo num enfoque performativo e que constamcom tomadas de posição perante pretensões de validade reciprocamente levantadas” (HABERMAS,Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade. Vol. 1. op. cit., p. 156).

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de uma associação estabelecida livremente”.198 Com base nessa referênciadiscursiva, os atores sociais são considerados aptos a deliberar e decidir a respei-to de qualquer questão prática. É desse processo que se alcançarão os pressupos-tos de legitimação das leis199. Em síntese, o Direito válido – e, também, legítimo– é apenas o Direito afirmado democraticamente.

Toda essa impressionante arquitetônica da diferenciação entre Direito e morala partir da teoria do discurso sustenta uma postura pós-metafísica de validaçãonormativa. Com a teoria do agir comunicativo aplicada aos planos do Direito e damoral, percebe-se que os pressupostos normativos se validam por intermédio deuma plena deliberação racional: enquanto a moral cinge-se à pressuposição doprincípio de universalização U, o Direito, por meio do princípio da democracia,valida-se quando todos os participantes passam a desenvolver a ampla comunica-ção social a respeito das normas jurídicas – que podem derivar de diferentesfundamentos – e se sentem, por conseqüência, verdadeiros autores racionais dasnormas. Nesse projeto de alcance do consenso racional, unifica-se a vontade decada um – que submete seus argumentos a um teste contínuo – com a razãoorientada ao entendimento. E, a partir da participação de cada cidadão,institucionalizam-se as próprias condições para a ampliação da comunicação soci-al e para o “exercício discursivo da autonomia política”.200 Segundo Habermas,“a gênese lógica desses direitos forma um processo circular, no qual o código doDireito e o mecanismo para a produção de Direito legítimo, portanto o princípioda democracia, se constituem de modo co-originário”.201

É por meio desse argumento que se pode antever uma emancipação possíveldentro das estruturas jurídicas. Quando elas deixam de ser meras reproduçõesde um conhecimento tradicional, cuja crítica opera dentro desse mesmo modelo,e incitam a reflexão crítica da validade normativa mediante a teoria do agircomunicativo, um novo olhar se abre para o Direito. Ele se sustenta – e, tam-bém, toda a organização social mediada pelo Direito – pela ênfase na possibili-dade de cada cidadão debater racionalmente os pressupostos normativos emuma discussão que não se restringe a espelhar uma dada cultura, mas a refletircriticamente a respeito dela. E, por outro lado, ele acarreta uma renovação doDireito pela própria ampliação do discurso.

O círculo, dessa maneira, não deriva simplesmente de uma necessidade com-preensiva da historicidade e da finitude humana, como ocorre no processohermenêutico antes analisado, mas, sim, do princípio da democracia, que exige a

198 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade. Vol. 1. op. cit., p.145.199 Vide HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade. Vol. I. op.cit., p. 145.200 Ibidem, p. 158.201 Ibidem, p. 158.

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própria institucionalização das condições da ampliação dos canais de comunica-ção. O que há de prevalecer é a comunicação social, que é encarada como requi-sito da validade do Direito, como também de sua legitimidade. Somente a comu-nicação – e, não, a forma ou um conteúdo moral a priori –, por meio do processode criação normativa, dá pleno sentido ao Direito e lhe confere a devida legitimação.

Desse modo, estabelece-se um modelo de reconstrução reflexiva da legitimaçãoe validade do Direito.202 Trata-se de uma filosofia jurídica reconstrutiva eprocedimental por meio da crença no potencial transformador da razão humanafundada no diálogo. E, a partir da análise da Teoria do Agir Comunicativo,instaura-se a racionalidade comunicativa em detrimento da racionalidade volta-da para o sucesso. A integração social, no âmbito do Direito, é alcançada pelaformação da legislação legítima mediante o discurso, que passa a assumir aprimazia sobre as formas de integração sistêmica.203

A investigação a respeito do Direito forneceu a Habermas o complementonecessário que não encontrava em uma referência limitada aos princípios mo-rais. Ao fazer isso, resgatou uma perspectiva que a filosofia, desde há muito, não

202 No projeto discursivo habermasiano, conectam-se a autonomia privada e a autonomia públi-ca, na medida em que, se o direito garante direitos subjetivos, eles somente obtêm sua legitimi-dade a partir do momento em que o indivíduo passa a atuar como autor racional do Direito.Surge, assim, uma relação entre direitos fundamentais e princípio da soberania.“Na medida em que o sistema de direitos assegura, tanto a autonomia pública como a privada,ele operacionaliza a tensão entre facticidade e validade, que descrevemos como tensão entre apositividade e a legitimidade do direito. Ambos os momentos unem-se, no cruzamento recípro-co entre forma do direito e princípio do discurso, inclusive na dupla face de Janus, que o direitovale, de um lado, para seus destinatários e, de outro lado, para seus autores. De um lado, osistema dos direitos conduz o arbítrio dos interesses de sujeitos singulares que se orientam pelosucesso para os trilhos de leis cogentes, que tornam compatíveis iguais liberdades subjetivas deação; de outro, esse sistema mobiliza e reúne as liberdades comunicativas de civis,presumivelmente orientados pelo bem comum, na prática da legislação (HABERMAS, Jürgen.Direito e Democracia entre Facticidade e Validade. Vol. 1. op. cit., pp. 166-167).203 Para esse propósito, Habermas apresenta cinco categorias jurídicas que consubstanciam osistema de direito capaz de afirmar sua legitimidade. São elas:“(1) Direitos fundamentais que resultam da configuração politicamente autônoma do direito àmaior medida possível de iguais liberdades subjetivas de ação;(2) Direitos fundamentais que resultam da configuração politicamente autônoma do status deum membro numa associação voluntária de parceiros do direito;(3) Direitos fundamentais que resultam imediatamente da possibilidade de postulação judicialde direitos e da configuração politicamente autônoma da proteção jurídica individual;(4) Direitos fundamentais à participação, em igualdade de chances, em processos de formação deopinião e da vontade, nos quais os civis exercitam sua autonomia política e através dos quais elescriam direito legítimo;(5) Direitos fundamentais a condições de vida garantidas social, técnica e ecologicamente, namedida em que isso for necessário para um aproveitamento, em igualdade de chances, dosdireitos elencados de (1) até (4) (HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade eValidade. Vol. 1. op. cit., pp. 159-160).

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desenvolvia. A filosofia do direito, infelizmente, manteve, ao longo dos séculos,uma constante auto-referência aos seus próprios desenvolvimentos e isso restrin-giu acentuadamente o debate necessário sobre as principais questões jurídicas.A construção da ponte com a filosofia contemporânea foi bem sucedida porHabermas: ele abriu os caminhos para novas investigações jusfilosóficas combase em uma reconstrução reflexiva dos fundamentos da modernidade e, comênfase nas projeções de uma razão baseada na comunicação, trouxe argumentospara um Direito que quer, cada vez mais, se fazer democrático. Afinal, sua obraDireito e Democracia entre Facticidade e Validade visa, precisamente, a debateros pressupostos, as condições e as possíveis conseqüências da formação legítimae democrática do Direito em sociedades complexas, pós-tradicionais, em que odireito positivo assume o lugar de antigas metafísicas que condicionaram seudesenvolvimento. E isso foi explicado por intermédio da análise da tensão entrevalidade e facticidade, entre a expectativa de uma ampliação comunicativa soci-almente e as coerções faticamente existentes, característica própria dos debatesreferentes à validade normativa, como no caso do Direito.

A inclusão do debate jurídico na afirmação de uma racionalidade pragmático-formal fundada no discurso acrescentou, ao debate já antes travado sobre a mo-ral,204 uma possível explicação de como as pretensões de validade transcendentespodem ser faticamente aplicadas a sociedades pós-tradicionais. Habermas, logono início de sua obra jusfilosófica, mostra essa preocupação ao fazer a pergunta eao indicar a conseqüente resposta: “como explicar a possibilidade de reproduçãoda sociedade num solo tão frágil como é o das pretensões de validade transcen-dentes? O médium do Direito apresenta-se como um candidato para tal explica-ção, especialmente na figura moderna do direito positivo”.205 O Direito, comoantes investigado, ao se desenvolver consoante uma exigibilidade da realizaçãode determinada conduta, torna possível a reprodução das pretensões de validadetranscendentes em contextos sociais. Assim, as idealizações pragmáticas pressu-postas podem ser incorporadas na facticidade de forma eficaz, acolhendo o intui-to habermasiano de se voltar para o empírico.

A tensão entre validade e facticidade, por conseguinte, irrompe de formaplena como uma condição dos discursos normativos, em que o conteúdo idealtem de ser atirado a um teste contínuo efetuado em realidades concretas portodos os participantes da argumentação racional. Do mesmo modo, assume-se ajá anteriormente analisada relação do agir comunicativo com a ação empiricamentetransformadora de contextos sociais, agora qualificada para o Direito. O agircomunicativo, afinal, que se desenrola conforme pretensões de validade normativasem constante processo reflexivo por intermédio da comunicação social, é funda-

204 Para tanto, vide HABERMAS, Jürgen. Consciência Moral e Agir Comunicativo, op. cit..205 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade. Vol. 1. op. cit., p.25.

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mental para a “manutenção de ordens sociais: pois estas se mantêm no modo doreconhecimento de pretensões de validade normativas”.206

Assim como o mundo da vida é necessário como um “maciço pano de fundoconsensual”,207 estabilizando possíveis dissensos que poderiam fomentar pro-cessos de integração sistêmica pautados pelo agir estratégico, o Direito aparececomo um importante complemento para nivelar a tensão entre validade efacticidade208 em sociedades complexas, desencantadas, descentradas e funcio-nalmente diferenciadas, cujo mundo da vida se mostra insuficiente para tanto.Assim ele o faz de maneira paradoxal: se, por um lado, ele visa a minorar odissenso por intermédio de regras limitadoras do agir estratégico e do uso dasliberdades subjetivas para o alcance de interesses particularizados, por outro,sua força e sobrevivência estão condicionadas à legitimação alcançada mediantea aplicação do princípio democrático, o que pode levar a um novo dissenso.

Com base em um amplo diagnóstico do desencantamento do Direito e daperda de sua posição central na organização social, assumindo, em sociedadescontemporâneas sistemicamente diferenciadas, apenas a função de estabilizaçãoe resolução de conflitos pelo código binário lícito e ilícito,209 Habermas, tal comoo fez em sua Teoria do Agir Comunicativo, quer instigar – poder-se-ia dizer – oseu reencantamento pela ênfase comunicativa. Afinal, o Direito, segundo a in-vestigação atual das ciências sociais,210 autonomiza-se de tal forma que perde

206 Ibidem, p. 35.207 Ibidem, p. 40.208 Vide HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade. Vol. 1. op.cit., p. 41.209 Vide o segundo capítulo de HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade eValidade. Vol. 1. op. cit., pp. 65-82.210 Habermas utiliza alguns argumentos de Niklas Luhmann a respeito da formação de sistemasautopoiéticos funcionalmente diferenciados, especialmente para explicar a formação do sistemade direito contemporâneo e para expor o diagnóstico da modernidade. Conforme Luhmann:“1) O sistema social, na medida em que aumenta sua complexidade, é reestruturado no sentidoda formação de sistemas parciais funcionalmente específicos. Isso leva a uma maior variedade, àsuperprodução de possibilidades de experimentação e de ação, inclusive de projetos normativosnos sistemas parciais, forçando assim uma maior seletividade.2) Ao desempenhar-se seletivamente, esse desenvolvimento é levado à esfera do direito atravésda diferenciação de sistemas (processos) especiais de interação, específicos ao direito, os quaisse tornam sustentáculos sociais, crescentemente autônomos, das decisões jurídicas imperativas.3) O próprio direito é autonomizado ao nível da sociedade através da crescente separação entreexpectativas cognitivas e normativas, e o arcabouço de suas definições de sentido assume repre-sentações mais abstratas (mais ricas em variações) no lugar de noções concretas” (LUHMANN,Niklas. Sociologia do Direito I. RJ: Tempo Brasileiro, 1983, p. 175).A teoria dos sistemas defendida por Luhmann tem um propósito muito simples: reduzir acomplexidade na análise sociológica (iluminismo sociológico). Com base na dicotomia sistema/ambiente, Luhmann cria uma teoria que busca elucidar os processos de diferenciação, defen-dendo as formas de diferenciação funcional como o último estádio da evolução dos sistemassociais. O estudo empreendido por Cristiano Paixão Araújo Pinto, em sua obra Modernidade,

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sua qualidade de orientação da sociedade como um todo, fechando-se em seupróprio sistema. Além do mais, a relação com a moral e a política é enfraquecida,acarretando a falta de conexão com os debates democráticos a ele inerentes. Adimensão das pretensões de validade construídas performaticamente, logo, per-de seu sentido.

Resgatar a dimensão da validade do Direito sob o enfoque performativo podesintetizar o projeto jusfilosófico habermasiano. Segundo Habermas, os destinatá-rios das normas jurídicas adotam dois distintos comportamentos perante o Direi-to: o do observador, que o entende como um conjunto de normas que limitamseu campo de ação, tendo-se a possibilidade de dela fugir por intermédio do agirorientado ao sucesso; ou do agente performativo, que obedece à norma por“respeito à lei” e assume a postura de buscar o constante consenso racional.

Tempo e Direito, explica, sinteticamente, as três principais formas de diferenciação social desen-volvidas por Luhmann:1. Diferenciação segmentaria: manifesta-se, segundo Luhmann, “nas sociedades ditas arcaicas.Esta forma de diferenciação caracteriza-se pela divisão em subsistemas iguais, ou seja, baseia-se na igualdade entre sistemas e ambientes” (ARAÚJO PINTO, Cristiano Paixão. Modernidade,Tempo e Direito. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 189).2. Diferenciação por estratificação: “a sociedade se diferencia em sistemas desiguais. Ela com-bina, assim, duas assimetrias: sistema/ambiente e igualdade/desigualdade (...). A diferenciaçãopor estratificação – fenômeno típico das ‘altas culturas’ ou sociedades antigas – pressupõe adistribuição desigual de poder e riqueza, o que significa, para Luhmann, distribuição desigualde oportunidades de comunicação” (Idem, p. 190). Suas características principais, portanto,são a assimetria e a exclusão.3. Diferenciação funcional: “caracteriza-se, em primeiro lugar, pela diferenciação de papéis(processo que já se pode vislumbrar na diferenciação por estratificação)” (Ibidem, p. 192),porém, neste sistema, a dicotomia igualdade/desigualdade comporta-se de modo distinto (Ibidem,p. 192): “as funções que orientam cada sistema são desiguais, mas o acesso a elas deve ser igual(recorde-se que, na sociedade moderna, não há primazia de um subsistema em relação a qualqueroutro)” (Ibidem, p. 192). Segundo Cristiano Paixão Araújo Pinto, “o resultado desta combinaçãoentre sistema/ambiente e igualdade/desigualdade é o advento de uma sociedade funcionalmentediferenciada, que demonstra, para Luhmann, ao menos duas vantagens evolutivas em relação àdiferenciação por estratificação: (1) subsistemas funcionalmente especializados não dependemde uma definição complementar de seu ambiente, estando capazes de tolerar aberturas e flutuaçõesno ambiente; (2) os subsistemas funcionais podem processar informações vindas do ambiente(sem a necessidade de provocação externa para isso) (...) A sociedade pode, assim, a partir dadiferenciação funcional, ‘multiplicar a especificidade das relações funcionais e, ao mesmo tempo,multiplicar a abertura dos ambientes internos’ (...) Isso faz com que a sociedade aumente ediminua suas interdependências internas. Essas interdependências aumentam na medida emque funções são especificadas e institucionalizadas, e diminuem com a redução do grau decomplementaridade entre os diversos sistemas e ambientes. Ampliando e reduzindo, ao mesmotempo, as interdependências internas da sociedade, a diferenciação funcional propicia um maiornível de compatibilidade entre dependências e interdependências” (Ibidem, pp. 192-193).Há de se ressaltar, contudo, que Habermas utiliza alguns argumentos da teoria sistêmica deLuhmann para, depois, se confrontar com ela ao expor a tensão entre validade e facticidade e aracionalidade humana como propulsora de modificações sociais. A análise desse confronto serádesenvolvida em nota do último tópico deste capítulo.

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“Para o que age estrategicamente, ela [norma jurídica] se encontra no nível dosfatos sociais que limitam externamente o seu espaço de opções; para o que agecomunicativamente, porém, ela se situa no nível de expectativas obrigatórias decomportamento, em relação às quais se supõe um acordo racionalmente motiva-do entre parceiros jurídicos”.211

A validade e, por conseqüência, a legitimidade do Direito nascem desseconjunto de fatores. Elas derivam da distinção entre moral e Direito, de umprocesso performativo, em que se consolida a racionalidade comunicativa naformação e decisão dos direitos e cada participante se reconhece como um autorracional de seu conteúdo. Com o princípio democrático, incentiva-se não apenasos procedimentos de deliberação racional, mas, também, a institucionalizaçãodas decisões por intermédio do direito positivo. Por isso, segundo Habermas, odireito positivo e o agir orientado ao entendimento são os elementos centrais devalidação e legitimação do Direito. Todo processo democrático, ancorado eminstituições jurídicas, legitima-se mediante o princípio do discurso. É aracionalidade centrada no procedimento o requisito para se estabelecer umaproposta pós-metafísica no pensamento jusfilosófico.

A aplicação dos fundamentos da teoria do agir comunicativo ao Direito, por-tanto, impusiona a construção participativa de sua normatividade baseada noprincípio democrático em que cada cidadão, no papel de autor racional, constróio Direito legítimo. É um Direito cuja validade é reflexiva, uma vez que todas aspretensões de validade são examinadas criticamente pelos participantes da co-municação. Não há verdades que o condicionam, nem conteúdos que assumema posição de supernormas orientadoras da condução da ação. O Direito desen-volve-se consoante um procedimento de alcance do consenso racional – é esta amedida de sua legitimidade.

A validade, por sua vez, que está diretamente ligada à aceitabilidade racionaldos fundamentos normativos por todos aqueles que são atingidos pela norma,decorre de uma reconstrução de suas próprias bases: o Direito justifica-se medi-ante a deliberação racional, isentando-o dos fundamentos metafísicos que tantasteorias tentaram nele estabelecer. Em suas premissas, ademais, sempre se pro-move a inclusão do outro, na medida em que as decisões coletivas, além deserem originariamente intersubjetivas, devem ser todas voltadas para a satisfa-ção da comunidade e, não, para a consagração de um interesse egoístico dequem as profere. A razão, desse modo, assume a sua característica comunitária,afastando-se do monólogo que tanto a limitou em seu potencial transformador;ela é sobremaneira a incitação para a participação.

O otimismo habermasiano, que muito se mostra em seu intuito de reencantaro Direito, explicitando como a sociedade pode assumir uma postura ativa e não-conformista, do mesmo modo que se verificou em sua Teoria do Agir Comunica-

211 HABERMAS. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade. Vol. I. op. cit., pp. 51-52.

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tivo, é uma abertura para o potencial de emancipação humana. Quer-se enfatizaruma comunidade jurídica que se constitui por intermédio das práticas racional-mente deliberativas dos participantes, concebidos de modo equânime. A partirdo exame crítico das pretensões de validade normativa, percebe-se que asidealizações contrafáticas tornam-se uma premissa de superação das estruturasestrategicamente voltadas para dificultar ou mesmo impedir a comunicação sociale, por isso, irrompem na facticidade gerando transformações sociais. É, tal comonas palavras de Milovic, a “emancipação como reflexão”,212ora aplicada ao planojurídico no interesse de se construir uma democracia radical.

Sua teoria, por isso, fornece os argumentos para importantes questionamentosque constantemente são desenvolvidos no plano da filosofia do direito, como oconflito entre universalismo e particularismo de direitos, verificável, por exemplo,no plano dos direitos humanos; a discussão a respeito da possibilidade de funda-mentação jurídica em contraposição a propostas denominadas pós-modernas derelativização dos direitos em distintas possibilidades fundamentadoras ou mesmoa negação dessa possibilidade; a inclusão do outro e o respeito à diferença nodebate jurídico; os processos de formação legítima de direitos; a reflexão rigorosasobre os pressupostos normativos a partir de uma proposta pós-metafísica. Todosesses debates enriquecem-se acentuadamente com os argumentos trabalhadosem sua obra Direito e Democracia entre Facticidade e Validade, que, emboraespelhe importantes pesquisas travadas anteriormente, assume a particularidadede projetar sua teoria do agir comunicativo sobre o estudo das instituições e,baseada em uma investigação densa e pormenorizada, revelar os caminhos deuma possível reconstrução dos fundamentos que as sustentam. Não somente,portanto, sua obra reencanta e reconstrói o Direito; ela reencanta a própria filoso-fia do direito, que retoma o seu originário lugar de reflexão, mas também, de açãopor meio de um projeto de sociedade possível.

Seu êxito, contudo, merece uma reflexão mais detida. E ela se inicia com aseguinte pergunta: será a comunicação suficiente? Talvez, haja uma ilusão nopotencial transformador da comunicação em Habermas; pode ser que se tenha,por outro lado, perdido a dimensão da complexidade social pela referênciaemancipatória possível da teoria do discurso. Essas primeiras dúvidas lançam oolhar para a capacidade de sua teoria do agir comunicativo, efetivamente, promo-ver novos contextos sociais. Porém, ao lado delas, pode-se entrar em seu próprionúcleo formador: será que é possível afirmar uma teoria do discurso moralmenteneutra, fundada exclusivamente no procedimento? Por sua vez, no âmbito jurídi-co, sua teoria é suficiente para a compreensão do direito positivo em sua amplitu-de? Será ela a resposta final para o problema da validade normativa? Em tornodesses questionamentos, o próximo tópico se inicia. Nele, espera-se que a crítica– que tanto é reverenciada por Habermas – suscite novas reflexões.

212 MILOVIC, Miroslav. Comunidade da Diferença. op. cit., p. 24.

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4.6. A EMANCIPAÇÃO PELA COMUNICAÇÃO? TÓPICOS PARA REFLEXÃO CRÍTICASOBRE O PROJETO HABERMASIANO

Esta investigação nasce de uma indagação desafiadora realizada pelo psicana-lista e filósofo esloveno Slavoj Zizek a respeito do projeto habermasiano. Combase em um acontecimento real, Zizek questiona a capacidade de a comunicaçãoser o referencial da transformação social: “os acontecimentos de 11 de setembroindicam a absoluta impotência da ética habermasiana – quem ousaria afirmar queexiste uma distorção de comunicação entre os maometanos e os liberais ociden-tais?”.213 Parece que, a partir dessa referência concreta, mostra-se um primeiroargumento a ser debatido referente ao potencial emancipatório realizado pelacomunicação social. Por outro lado, Milovic, em sua obra Comunidade da Diferen-ça, sustenta que o projeto habermasiano parece não ser tão radical em relação àmodernidade quanto aparenta. O que ocorre, na verdade, é que “o monólogo dosujeito moderno é apenas transformado no contexto de um diálogo abstrato”.214

Sob distintas abordagens, essas críticas expressam, possivelmente, o campomais factível e de maiores repercussões a respeito da teoria do agir comunicati-vo. De fato, quando se analisam as obras de Habermas, percebe-se uma ampladefesa da comunicação como o novo paradigma de reconstrução social, realiza-da por meio de uma investigação, densa e acurada, dos pressupostos modernos.Ele renova o debate sobre a razão, mostra suas distintas ramificações e lheimputa uma capacidade de transformação de amplas repercussões. A constru-ção de uma democracia radical, ancorada nas distintas instituições sociais e,sobretudo, nos participantes, que passam a desenvolver o agir orientado ao en-tendimento, espelha, para Habermas, um projeto de emancipação possível den-tro das condições do capitalismo tardio e de suas contradições internas. E seuprojeto é muito bem-sucedido na exposição crítica de que, ao desencantamentodo mundo, não se deve contrapor o conformismo com o mesmo ou uma inérciadiante das estruturas estrategicamente voltadas para a manutenção da irreflexãode seus pressupostos. Ele arquiteta uma teoria de renovação, reconstrução críti-ca das estruturas sociais a partir de uma explícita crença na racionalidade, quepossui diferentes dimensões, tanto voltadas para a ação egoística como para aação fundada na intersubjetividade. Com isso, ele aduz que o pensar, primeira-mente, é um pensar em seus próprios pressupostos e que, para tanto, carece dainclusão do outro. O pensamento, por isso, questiona, constantemente, suas ba-ses e, a partir dessa reflexão, projeta-se a emancipação possível.

É um projeto de racionalidade, sem dúvida. Mas de uma racionalidade quequer se fazer ativa, transformadora, enfim, questionadora das estruturas sociais.O recurso às premissas transcendentais fracas, que ele emprega apenas como

213 ZIZEK, Slavoj. Bem-Vindo ao Deserto do Real!: Cinco Ensaios sobre o 11 de Setembro e DatasRelacionadas. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003.214 MILOVIC, Miroslav. Comunidade da Diferença. op. cit., p. 79.

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idéia regulativa, somente adquire significação para seu intuito na medida em quepossibilitam a postura rigorosamente reflexiva de seu mundo circundante. Nãohá, por isso, transcendência sem a direta conexão com o empírico. Poder-se-iadenominar sua teoria como uma proposta pretensamente pós-metafísica – pois éintersubjetivamente reflexiva sobre suas bases – de radicalização dos pressupostosmodernos de modo a incitar a emancipação social pela racionalidade comunicativa.A linguagem, compreendida em sua qualidade pragmática, é o grande marcodesse propósito.

O otimismo de Habermas em relação à modernidade, expresso em sua pro-posta de renovar a noção de racionalidade a partir da explícita referência social,muito se deve ao encontro da reflexividade possível por intermédio do discurso.Todos que se comunicam necessitam do outro e, dessa relação intersubjetiva,afirma-se a transparência com base na discussão pública das premissas que gui-am a ação humana. A intersubjetividade aparece como uma idéia regulativa, quedeve ser constantemente visada.

Supera-se, assim, o dado – que é a consagração da ideologia – pela projeçãode um outro mundo possível, em que a intersubjetividade é alcançada em seugrau de ampla reflexão dos pressupostos modernos. Por um lado, poder-se-iaargumentar que se trata de uma utopia faticamente inalcançável; por outro, po-der-se-ia dizer ser uma esperança. É possível pensar os fundamentos sem ametafísica – este é recado habermasiano que indica a auto-reflexividade comouma saída para uma sociedade transparente. E, da crítica aos fundamentos, quer-se construir um caminho de liberação do mundo vital da colonização sistêmica.

Não se faz necessário, evidentemente, repetir as idéias centrais pesquisadaspor esse autor em suas distintas e preciosas obras. Precisa-se, na verdade, enfatizar,em primeira análise, as possibilidades de realização concreta desse potencialemancipatório tão apregoado por Habermas a partir da comunicação social. Háde se indagar a respeito da mediação entre sua teoria e o empírico. Será que acomunicação verdadeiramente emancipa? É muito interessante trazer a essadiscussão a experiência que Milovic relata de seu país – a antiga Iugoslávia –,catastroficamente devastado pela guerra. Em suas aulas, havia sempre a exposi-ção de um certo descontentamento com esse potencial emancipatório realizadopela comunicação, embora tenha ele diretamente estudado em Frankfurt comApel e Habermas. Apesar de reconhecer a relevância da comunicação socialcomo um elemento de transformação e de renovação filosófica e, sobretudo,verificar nela a grande temática contemporânea a respeito da inclusão do outro,ele perguntava se ela bastava como novo paradigma. E essa dúvida foi expressaem sua mais recente obra Comunidade da Diferença, ao mostrar que “no planoda realidade, pode aparecer a força inevitável das coisas, e isto é o que aconte-ceu na Iugoslávia e na Bósnia, cuja situação não chegou a ser articulada nasestruturas da interpretação argumentativa”.215 É a mesma dúvida que Zizekexplicitou, como anteriormente apresentada, a respeito da situação contemporâ-

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Juliano
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dos

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nea pós-11 de setembro. A mesma pergunta mantém-se no ar: será que não háoutros elementos – a força inevitável das coisas – que extrapolam a capacidadede emancipação pela reflexão comunicativa?

A contra-argumentação habermasiana poderia partir de sua própria teoria.Ele poderia sustentar que a situação contemporânea muito se deve à ausência dediálogo e, sobretudo, à incompreensão alheia e à exclusão do outro. O que, afinal,tem realizado o próprio capitalismo senão a ampliação do agir estratégico, em queas ações se voltam para interesses egoísticos (voltadas para o sucesso) e para aconstante perda de referencial intersubjetivo? A solução poderia estar, portanto,em uma ampliação do agir orientado ao entendimento, em que a busca peloconsenso racional passa a ser um objetivo cada vez mais perquirido. Porém, poroutro lado, será que não está havendo uma redução do mundo da vida a umaestrutura comunicativa?216 Será que o particular não está sendo acobertado pelaperspectiva da generalidade expressa na coletividade?

Pode ser que o mundo não seja tão pautado pela comunicação social, naoobstante essa seja a primeira importante manifestação da racionalidade humana;pode ser que o universalismo do discurso não se apresente como um caminho desuperação de contextos. O descontentamento de Milovic – “no aspecto político, aguerra da Bósnia oferece muitos exemplos da hipocrisia e insensibilidade mundi-ais e, no sentido filosófico, exemplos da redução da realidade aos discursos”217 –mostra que há, no mundo, muito mais fatores do que a comunicação. E essesfatores podem exigir algo além do discurso para a sua própria reflexão. Pode serque o particular não se resolva pela dimensãodo consenso coletivo.

Se, por um lado, a comunicação possibilita a auto-reflexividade, por outro,poder-se-ia, desse modo, questionar a dimensão desse potencial auto-reflexivo.Será que ele fornece os caminhos para as transformações? De forma mais radi-cal, será que a comunicação é verdadeiramente a resposta? Muitas das críticasque Habermas sofreu e tem sofrido têm como parâmetro precisamente o projetode renovação da discussão sobre os pressupostos modernos. Castanheira Neves,sintetizando muito desse posicionamento, afirma que “o atual pensamento deantimodernidade não só não vê qualquer evidência nessas condições-fundamen-tos, na liberdade e na autonomia tal como a modernidade as postulou, como asrealmente tem por utópicas e histórico-comunitariamente muito problemáticas”.218

De fato, a comunicação, fundada em premissas de autonomia e liberdade, podeser muito complicada. Na verdade, na constante busca pelo consenso, podemocorrer catástrofes. O mundo pode precisar de soluções, às vezes, mais imedia-

215 Ibidem, p. 79.216 Ibidem, p. 79.217 Ibidem, p. 80.218 NEVES, Castanheira A. A Crise Actual da Filosofia do Direito no Contexto da Crise Global daFilosofia: Tópicos para a Possibilidade de uma Reflexiva Reabilitação. op. cit., p. 133.

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tas do que a procura pela aceitabilidade é capaz de promover.219 Sobretudonesses casos, o questionamento levantado por Neves se faz bastante atual: “nãoserá por isso lícito concluir que a legitimidade pelo procedimento (semprediscursivo-comunicativo) para produzir validade/legitimidade é ela própria umalegitimidade hipotética a exigir legitimação”?220 Em termos mais explícitos, élegítimo aguardar o consenso enquanto o mundo se destrói?

São dúvidas que inquietam qualquer projeto de defesa da comunicação. Nemsempre sequer a possibilidade de consenso se torna possível e, mesmo quandoalcançável, ele pode se revelar precário. Por isso, pressupor sempre essa pre-missa como caminho de superação das estruturas sistêmicas colonizadoras domundo da vida pode, paradoxalmente, incitar a própria ampliação das estrutu-ras de dominação. A crítica da ideologia pode, a contragosto, pela ênfase comu-nicativa, ver a ideologia se estabelecer, enquanto aguarda o consenso.

Sobretudo em sociedades de ampla complexidade e plurais, infelizmente, opróprio propósito de inclusão alheia, por certos grupos sociais – fundamentalismosideológicos, religiosos e interesses político-estratégicos, por exemplo – é difícilde ser alcançado. Falta, nessas realidades, a mínima propensão a se colocar nolugar do outro, que é condição para sua própria compreensão e auto-reflexividade.E, ainda mais quando se verifica que a perspectiva de auto-inclusão na dimen-são do outro é o grande passo que a humanidade precisa dar, um certo pessimis-mo contrapõe-se ao otimismo habermasiano da razão comunicativa. Lamenta-velmente, parece que parcela do mundo não caminha para esse relacionamentocom o outro, mas para o constante isolamento, afinado pelas suas próprias estru-turas de dominação, que ofuscam qualquer potencial comunicativo. A projeçãode um relacionamento com o outro gerar um relacionamento consigo mesmoparece não estar acontecendo na realidade social, ao menos não da maneira quese faz necessária. E, sem reflexão sobre si próprio, sobre a sua participação nasações empreendidas, a realidade se degrada e o mundo perde seu sentido.

Sob outro enfoque, para entender as próprias limitações que poderiam advirda esperança comunicativa, pode-se ir ao âmago da estrutura do pensamentohabermasiano e mostrar que a pressuposição de uma igualdade comunicativa departicipantes autônomos e dignos pode ser a matriz dessas dúvidas. E, ao mesmotempo, indagar se esse pensamento, em si, não revela o recurso a um conteúdoaxiológico a priori que condiciona a própria comunicação. Surgiria, por conseqü-ência, a dúvida se, realmente, é possível afirmar um discurso moralmente neutro.Essa pressuposição, que é apresentada no âmbito da comunidade de comunica-

219 É nesse patamar que surge o interesse de Habermas pelo Direito, ao encontrar nele umcritério normativo que estabiliza expectativas de respostas que, em muitos casos, a procura peloconsenso não consegue, de imediato, responder.220 NEVES, Castanheira A. A Crise Actual da Filosofia do Direito no Contexto da Crise Global daFilosofia: Tópicos para a Possibilidade de uma Reflexiva Reabilitação. op. cit., p. 133.

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ção ideal, como um projeto a buscar, pode ser o cerne para expor os limites desua teoria. Em síntese, a partir de uma revisão do estudo sincrônico de Habermas,é possível antever as dificuldades que aparecem em sua dimensão diacrônica.

Para Habermas, a ênfase na racionalidade pautada pelo procedimentodiscursivo221 apresenta uma interior intencionalidade ao alcance da validação do

221 O projeto de racionalidade pela afirmação do procedimento discursivo difere acentuadamentede qualquer teoria que restrinja a aceitabilidade ao plano estrito do fático, uma vez que lhe éprópria a idéia de validade que expõe uma intencionalidade normativa determinante a ser visada.Não se quer estabelecer a limitação a uma concepção funcional de separação entre sistema eambiente, como se infere de Luhmann, para explicar a sociedade. Mesmo que Luhmann afirmeque “o conceito de sistema fechado auto-referenciado não contradiz a abertura do sistema para oambiente” e que “no modo auto-referencial de operação, fechamento é uma forma de alarga-mento possível de contatos ambientais”, na medida em que “aumenta, ao constituir elementosmais capazes de serem determinados, a complexidade do ambiente que é possível para o siste-ma” (LUHMANN, Niklas. Social Systems. Califórnia: Stanford University Press, 1995, p. 37.Tradução livre), ele não transcende o âmbito do fático, pois, em seus sistemas, não há ligaçãonecessária com qualquer intencionalidade expressa em uma dada normatividade. O objetivo éfazer com que os sistemas funcionem, independentemente de qualquer finalidade construída sobpremissas racionais. Em Habermas, ao contrário, pela imanente intenção de validade expressana comunidade ideal de comunicação, há um nítido propósito de superação das estruturas dedominação, que podem estar espelhadas nesses sistemas. Em síntese, enquanto Habermas pro-jeta uma tensão entre validade e facticidade, que mostra a dinâmica social e o caminho para aracionalidade comunicativa, Luhmann centra-se no plano da facticidade. Ir além desse plano,para este autor, atentaria contra o objetivo de simplificação da análise sociológica.A passagem abaixo, de Miroslav Milovic, realiza uma análise densamente crítica da teorialuhmanniana:“(...) A questão é tão-somente articular os fatos relativos ao funcionamento do sistema. Por issona teoria não precisamos nem da razão, nem da metafísica. E, ainda mais, não precisamos nemdo ser humano particular. O desenvolvimento do sistema moderno coloca o ser humano fora.Desse modo, o indivíduo pode ser melhor definido, conforme Luhmann, não pela inclusão, maspela exclusão do sistema. Em outro lugar, ele afirma que os procedimentos do sistema nãopodem acontecer sem os indivíduos, sem o público, como ele diz, mas finalmente, para ofuncionamento do sistema, não é necessário uma grande parte da sociedade. É sintomático ouso da palavra público, pois os indivíduos são apenas parte do público, assistindo, como diriaGuy Debord, ao espetáculo da sociedade que os marginaliza. O ser humano ficou assim supér-fluo no próprio mundo. A reprodução, em última instância, não é senão a do próprio sistemadominante, e mesmo a ‘reprodução humana’, como se vê no caso da clonagem, é desligada dosindivíduos. Isso pode ser um fato triste, mas é assim! A teoria apenas pode descrever os fatos,sem a crítica, porque falta a racionalidade que poderia colocar-se fora do sistema para observá-lo e criticá-lo. A racionalidade, diz Luhmann no final do livro Sistemas Sociais, não pode serarticulada com referência a um sistema externo, superior no sentido hierárquico. A racionalidadeé tão-somente a racionalidade do sistema ou, melhor dizendo, dos sistemas, porque a modernidadese articula com a aparição horizontal dos vários sistemas e das condições do seu funcionamento.Mas se a teoria, a reflexão não são a condição da reprodução do sistema, por que Luhmannescreve tudo o que escreve? A teoria não passa de uma mera descrição do mundo?“A comunicação em Luhmann também é pensada através dessa articulação ou a partir da pers-pectiva da reprodução do sistema. Quem está se comunicando é o próprio sistema, não os sereshumanos. Assim, com a teoria da comunicação, Luhmann não tenta, como Habermas, articular

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discurso por intermédio da projeção da comunidade de comunicação ideal. Mas,para tanto, Habermas necessita supor que os participantes do discurso possam,mediante práticas argumentativas, alcançar soluções válidas para seusquestionamentos e que, nessa condição, se encontrem em igualdade de direitosde comunicação. Apel criticaria a possibilidade da afirmação de um discursomoralmente neutro ao defender que os princípios da moral e do Direito partemde uma pressuposição de teor moral baseada na igualdade em direitos dos par-ceiros do diálogo. Segundo Apel, “a possibilidade ou, até, a necessidade dacompleta eliminação da moralidade das áreas do Direito e/ou da política nãopode, sob hipótese alguma, ser admitida, pois isso infringiria evidentemente oimperativo ético da co-responsabilidade discursiva pelas conseqüências de todos,inclusive justamente das atividades coletivas”.222 De fato, ao se analisar a obra deHabermas, verifica-se que há sempre a previsão de uma comunidade de partici-pantes da argumentação hábeis a compreender a sua situação de modo a selograr o consenso racional. Todos são reciprocamente reconhecidos como parcei-ros legítimos da comunicação, que assim deliberam de modo autônomo e digno.

Parece que surge, nesse aspecto, um primeiro importante problema a respei-to das condições pós-metafísicas de uma teoria do discurso moralmente neutra.Será mesmo possível acreditar que, ao se enfatizar essa pressuposição de parti-cipantes livres e iguais da argumentação racional, não se está afirmando,concomitantemente, um fundamento moral-normativo substancial aplicável à teoriado discurso? Ou será que se poderia contra-argumentar que essa pressuposiçãoé inerente à característica procedimental da própria comunicação, não configu-rando um critério substancial de cunho moral?223

Habermas estabelece um princípio de universalização U obtido por intermé-dio de diferentes regras da argumentação, como a de que todo sujeito capaz defala é apto a participar de discursos, todos podem gerar problematizações e reali-zar críticas, entre outras, cujos conteúdos – que podem ser levados ao discurso –

a crítica, inclusive uma crítica da ideologia. ‘A teoria dos sistemas pode permitir apenas aconteci-mentos e situações empíricas dentro do seu objetivo de domínio e precisa transformar questõesde validade em questões de comportamento’. O sistema ficou sem crítica, sem a possibilidade depensar a simetria social dentro dele e sem o projeto de emancipação. Para os carteiros nãoimporta, irá dizer Luhmann, serem emancipados, mas somente entregar cartas. Sistemas quefuncionam sem crítica – eis o novo conservadorismo em Luhmann, que Habermas chamará deideologia (...)” (MIROSLAV, Milovic. Comunidade da Diferença. op. cit., pp. 63-64).222 APEL, Karl-Otto. “A ética do discurso diante da problemática jurídica e política (...)” In:MOREIRA, Luiz (Org). Com Habermas, contra Habermas: Direito, Discurso e Democracia. SãoPaulo: Landy Editora, 2004., p. 109.223 Esse debate é densamente analisado por Niquet em sua obra Teoria Realista da Moral (op.cit.),pp. 187-198, em que indica as possíveis objeções a um discurso moralmente neutro e as contra-argumentações às objeções. A crítica ao discurso moralmente neutro de Habermas pode serencontrada em APEL, Karl-Otto. A ética do discurso diante da problemática jurídica e política(...). MOREIRA, Luiz (Org). Com Habermas, contra Habermas: Direito, Discurso e Democracia.op. cit. 105-143.

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não se confundem com o próprio princípio U, que é, para Habermas, uma pres-suposição inerente ao diálogo. Conteúdo, por isso, é algo distinto dos pressupos-tos da comunicação, que, por sua vez, não se identificam com nenhuma substân-cia de ordem moral. Ele decorre dos contextos dos discursos práticos, isto é, daparte empírica da teoria habermasiana. Assim, não se podem entender as normasmorais, por mais amplas que sejam, como uma fundamentação transcendental,uma vez que derivam diretamente dos discursos desenvolvidos na prática. E, domesmo modo, é com essa premissa que se pode entender o que Habermas deno-mina de discurso D de validação do discurso por intermédio do consenso racionalalcançado por todos os possíveis atingidos.224 Não obstante apresente qualidadenormativa, ele é moralmente neutro: ele não impõe qualquer regra de como sedeve proceder em concreto; é apenas uma propriedade inerente ao discurso.

Para Habermas, as pressuposições não indicam normas no sentido moral – arazão comunicativa, afinal, parte de uma transcendência fraca que congrega um“leque de idealizações inevitáveis [que formam] a base contrafactual de umaprática de entendimento factual, a qual pode voltar-se criticamente contra seuspróprios resultados, ou transcender-se a si própria”.225 Por conseqüência, elanão “pode ser vista como uma capacidade subjetiva, capaz de dizer aos atores oque devem fazer”.226 Não se confunde com a tradicional razão prática, que estácontinuamente estabelecendo os parâmetros da boa conduta, sempre desejandoperguntar “como devo proceder”? “Qual é a atitude correta”? As pressuposi-ções habermasianas são apenas parte inerente da argumentação. Elas não coa-gem a ter de se portar de determinada maneira, tal como se verifica nos pressu-postos morais. Elas se apresentam apenas como uma estrutura transcendentalinevitável, que, embora possam, em alguns casos, ter semelhança de conteúdoproposicional com os princípios morais,227 não são com eles confundíveis. E,também por isso, a questão sobre a fundamentação final é absolutamente desne-cessária para Habermas.

A pergunta, todavia, permanece: será que, a partir dessa distinção em relaçãoà forma como se configura a transcendência, realmente se resolvem as dúvidas arespeito da pressuposição habermasiana de que, no discurso, o reconhecimentorecíproco da autonomia, da racionalidade e da capacidade de ação é inerente àlógica argumentativa? Ou será mesmo que se poderia verificar, em tais funda-mentos idealizados, uma substância moral necessária à comunicação? Por que aafirmação de uma transcendência fraca deixa de se portar como um argumentomoral e passa a ser encarado como condição inerente à argumentação?

224 Vide NIQUET. Teoria Realista da Moral. op. cit., p. 191.225 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade. Vol. 1. op. cit., p. 21.226 Ibidem, p. 20.227 Niquet indica um usual exemplo de similitude de conteúdo entre os pressupostos da comunicaçãoe os princípios morais na “condição pragmático-estrutural da imparcialidade” e a “norma moralde alto nível de justiça”. Para tanto, vide NIQUET. Teoria Realista da Moral. op. cit., p. 191.

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Esse debate, árduo e amplamente analisado consoante distintas perspecti-vas,228 todavia, desbordaria sobremaneira da investigação ora empreendida. Oque merece, nesse contexto, ser enfatizado, além das dúvidas que aparecem, ése, em tal pressuposição, não está o cerne de uma possível consagração de umdiscurso abstrato que pode ser incapaz de realizar o projeto de emancipaçãopossível. Em termos mais claros, será que, na pressuposição de uma comunida-de ideal de comunicação, não está implícito um referencial universalista, que,em última análise, acaba fazendo com que a “filosofia [perca] a sensibilidadepara a realidade”?229

A pragmática universal da linguagem sempre teve como premissa que acomunidade de comunicação ideal é, como o próprio termo indica, uma idealizaçãoque não tem como ser realizada na prática em sua plenitude. Ela deve ser, naverdade, encarada como um projeto de superação possível das estruturas orientadasao sucesso. Para tanto, aparece como um indicador do trajeto a percorrer combase na expansão das ações voltadas ao entendimento. Habermas não seria ingênuoao ponto de afirmar que é possível antever uma sociedade cujas estruturas coercitivasque impedem a comunicação tornam-se irrelevantes. O seu projeto, por isso, nãopode ser considerado uma idealização utópica de um mundo impossível. Aidealização, assumida a partir de uma transcendência fraca, é apenas um requisitoque se posiciona acima do empírico (sem dele, todavia, se afastar) no intuito demostrar um caminho possível que não parte do mesmo modelo do qual se origina.

Em síntese, ele quer estabelecer que a crítica não opera dentro das mesmasestruturas do que está sendo criticado, porque, nessas condições, o que se observaé a possível contaminação da reflexão mediante uma comunicação distorcida.Refletir, por isso, não é estar dentro de um modelo; é, sobretudo, antever o quepode alterar esse modelo. É essa a razão da transcendência, que, se, por um lado,pode expor uma premissa de discurso abstrato, por outro, reforça o argumento deque, para radicalizar o empírico, não se pode ficar apenas em seu plano. Afilosofia, desse modo, situa-se em um contínuo paradoxo: para se imaginar aemancipação social, ela tem de se desamarrar de uma limitação ao contexto,podendo perder a sensibilidade com o real; porém, por outro lado, se ficar apenasdentro do contexto, a emancipação se enfraquece, uma vez que é sempre umapretensa emancipação cujo desenvolvimento crítico se realiza dentro das estruturasde dominação, que, por sua vez, inviabilizam ou dificultam a própria crítica.

Quando se sustenta que a filosofia habermasiana pode perder a sensibilidadecom a realidade com base em uma proposta teórica de um discurso abstrato, háde se atentar para essa dificuldade. O jogo, nesse contexto, está na possibilidade

228 Para maior compreensão da problemática, vide NIQUET, Marcel.Teoria Realista da Moral(op. cit), GÜNTHER, Klaus.Teoria da Argumentação no Direito e na Moral: Justificação e Apli-cação (op. cit) e APEL, Karl-OTTO. “A ética do discurso diante da problemática jurídica epolítica (...)”. In: MOREIRA, Luiz (Org). op. cit., pp. 105-143.229 MILOVIC. Comunidade da Diferença. op. cit., p. 29.

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de se equilibrar os dois lados da balança: realidade fundada em estruturas coer-citivas e emancipação por intermédio de uma premissa transcendental fraca. Atensão, que continuamente é por Habermas expressa em suas obras, entre vali-dade e facticidade revela o quão complicado é o alcance desse equilíbrio.

É, nesse aspecto, que apareceu a sua preocupação por abordar o Direito,que também tem a função de promover o equilíbrio entre esses dois planos,dificultando o aparecimento de dissensos aptos a desestruturar todo o agir orien-tado ao entendimento. Ele possibilita, nesse propósito, encontrar respostas maisimediatas aos problemas que a simples procura pelo consenso faria. O Direito,que opera segundo um princípio do discurso moralmente neutro, aparece com afunção de complementar a moral de modo a incitar a ação concreta. E, por essavia, Habermas demonstrou, mais uma vez, que a estrutura de sua teoria dodiscurso tem um explícito propósito empírico de se voltar para a açãotransformadora. O argumento sobre a insensibilidade com a realidade em suateoria, embora estruturada em uma transcendência fraca e na realização dodiscurso, tem de ser balanceado com essa nítida relação com o empírico que eleconstantemente apregoa em suas análises sociais.

Novamente, nesse debate, aparecem as discussões que têm de ser empreen-didas em relação à mediação entre sua teoria do agir comunicativo e o empírico.Já foram anteriormente apresentadas as dificuldades que podem aparecer apartir da ênfase comunicativa e da busca do consenso racional. Agora, o debatedeve se centrar nesse relacionamento do Direito com a sua realidade por inter-médio do princípio da democracia, que é a especialização do princípio do dis-curso para o plano institucional-jurídico.

O Direito, para Habermas, tem, além de se apresentar como sistema deação, a função de desonerar os indivíduos de buscar uma orientação para a açãoem premissas morais. Ele indica, afinal, um conjunto de regras que devem serseguidas, mediante uma estrutura institucionalizada apta, em determinados ca-sos, a aplicar sanções. Mas é, precisamente, em decorrência dessa desoneraçãoque aparece uma importante conseqüência: a possível “remoralização”, já que,uma vez liberada a moral de certas funções, ela passa a dedicar-se ainda mais asua qualidade de crítica às próprias relações jurídicas. Há, por isso, um recípro-co entrelaçamento entre essas duas esferas. Sem confundir “desoneração” com“desmoralização” – pois Habermas entende que, nas próprias instituições jurídi-cas, podem estar presentes elementos morais –, os processos de remoralizaçãoexpõem deveres morais não confundíveis com deveres jurídicos. Essa caracterís-tica reflete as condições de uma modernidade reflexiva, cuja maior expressãopode ser encontrada nos direitos humanos. Embora, para Habermas, o planodos direitos humanos pertença ao jurídico, não se pode negar que existe umamoral que assume as funções de própria crítica ao direito positivo.230

230 Segundo Niquet:

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A principal investigação, de qualquer forma, deve retomar a análise já ante-riormente delineada sobre a abstração do discurso habermasiano, agora comenfoque no plano do Direito. Nessa abordagem, o questionamento deve partirda dúvida se, realmente, se deve creditar potencial a uma filosofia do direito querelaciona a validade jurídica com o consenso racional obtido, em geral, portodos os possíveis atingidos pela norma. Será que se pode contar com a possibi-lidade de discursos práticos assumidos em sua postura generalizadora? Será quenão se está partindo de uma mera abstração ao se afirmar o princípio do discur-so D, que exige o consenso racional de todos os possíveis atingidos pelanormatividade? Afinal, segundo Niquet, “discursos práticos em geral não exis-tem – nem no nível da fundamentação de normas em geral”.231

É, por isso, que há de se revisar o conceito habermasiano de validade normativaaplicada ao Direito. Ele parte de uma premissa abstrata que pode, continuamen-te, não ter êxito nas contingências empíricas. Se a validade do Direito é expressana possibilidade de obtenção do consentimento de todos os atingidos pela normajurídica a respeito de suas conseqüências e houver, portanto, sob pena de san-ção, o cumprimento de suas determinações, é possível que a validade jamaisseja alcançada. Para Habermas, não há que se pensar a validade fora da argu-mentação racional. E, assim, a validade pode ser entendida como um projeto,não uma qualidade factualmente possível. Os indivíduos talvez não sigam asnormas jurídicas, mesmo quando tenham participado das deliberações racionaise mesmo quando haja sanções ao seu descumprimento. Por isso, é possívelargumentar que o princípio do discurso abstrato, generalizado revela-se um prin-cípio vazio, de plena impossibilidade prática.

Não há, porém, de submeter a validade normativa defendida por Habermasa tamanho descrédito. Mesmo que se revele um princípio a ser continuamentebuscado, um vir-a-ser que indica os caminhos da emancipação, isso não o inva-lida como relevante critério de renovação do pensamento jurídico. O pressupos-to comunicativo, conquanto apresente dificuldades concretas na prática, é umapremissa que deve ser seriamente levada em consideração. E isso, sobretudo,em um contexto em que a comunicação jurídica não tem sido tomada com adevida importância. O diagnóstico das instituições jurídicas torna visível que o

“Na modernidade reflexiva, direito e moral estão interseccionados e entrelaçados por meio deprocessos de uma nova moralização e de uma remoralização. Isto pode ser observadoparadigmaticamente no fenômeno do tratamento e avaliação normativa dos direitos humanos(primários). Seu status híbrido de moral, sancionada coercitivamente, juridicamente reclamável,ou seja, de direito fundamental crítico ao direito, extrapositivo e a circunstância de que questõesde direito cada vez mais entram e são postas em contato com questões dos direitos humanosindica que o argumento sociológico de Habermas sobre a relação entre o direito e a moralapenas descreve corretamente a modernidade reflexiva, na medida em que esta ainda contémem si a modernidade clássica, ao mesmo tempo em que a torna obsoleta” (NIQUET. TeoriaRealista da Moral. op. cit., p. 169).231 NIQUET. Teoria Realista da Moral. op. cit., p. 170.

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diálogo não tem sido uma premissa exercitada na prática cotidiana. O que apa-renta predominar é um interesse em dificultar a comunicação, afastando qual-quer cidadão da plena compreensão de seus direitos. O acesso à justiça, semuma explícita referência ao diálogo, é uma falácia: ao invés de uma reflexãointerna sobre os pressupostos normativos que guiam a conduta, os indivíduossão lançados a um isolamento estratégico, acarretando a dissolução da crítica aopróprio Direito. E, quando se passa a tomar como base um projeto de modernidadereflexiva, percebe-se que a sociedade, cuja moral é desonerada pelo Direito, nãosofre adequadamente os processos de remoralização. Assim, atinge-se um impassede perigosas conseqüências: se, por um lado, o Direito, estrategicamentedirecionado a dificultar ou mesmo inviabilizar o exercício da razão comunicati-va, visa a englobar várias normas morais por intermédio do estabelecimento dodever jurídico sobre elas (desoneração da moral), por outro, em razão do déficitcomunicativo resultante desse processo, a moral, naquele espaço em que pode-ria libertar-se devido à desoneração causada pelo Direito, mantém-seenclausurada. Perde-se, por conseqüência, a própria capacidade crítica que osprocessos de remoralização permitem realizar em torno das instituições jurídi-cas. Ao mesmo tempo, o Direito, em seu máximo grau, alcança o caminho daburocratização e da perda de referência social.

O Direito, ao deixar de enfatizar a sua dimensão comunicativa, isola-se dosocial. É o paradoxo do Direito sem sociedade. A referência social é usadaexclusivamente para reforçar ainda mais as ações egoísticas. Em termos maisclaros, a sociedade é apenas apresentada (não refletida) para, na verdade, “ca-muflar” uma racionalidade que quer se fazer cada vez mais um monólogo sobresuas próprias bases. Fala-se e escreve-se muito a respeito do Direito ser voltadopara a sociedade, mas, em seu âmago, ela sequer é pensada como um pressu-posto a ser continuamente refletido. O Direito vive sem a perspectiva do outro. Asociedade, assim, é privada de sua própria compreensão por intermédio doDireito. Usa-se o termo sociedade sem se pensar a integração social. Cada indi-víduo, por conseqüência, se antes desejoso de se ver integrado socialmente,acaba contentando-se com as possibilidades do sucesso pessoal. Afirma-se, as-sim, um círculo vicioso: o agir estrategicamente direcionado reforça as condi-ções de novas ações voltadas para o sucesso.

Mas, felizmente, o diagnóstico não é tão cruel como nas linhas anteriores. Atéporque se o fosse, as conseqüências seriam inimagináveis. Habermas, ao anali-sar a sociedade contemporânea, verificou que há sinais muito claros de manifes-tação comunicativa, como nas democracias participativas, no debate sobre osdireitos humanos, etc. Embora não haja como identificar uma realidade históri-ca com a comunidade ideal de comunicação, existem, sim, exemplos de integraçãosocial fundados na modalidade racional do entendimento. A comunicação, porisso, assume um papel imprescindível nos processos de integração social, nessadiscussão inserida a integração social por intermédio do Direito. Ao invés de se

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fechar em seu círculo de manutenção das mesmas estruturas, o Direito pode serevelar um promotor do agir orientado ao entendimento. Ele apresenta um siste-ma de ação que, ao lado da moral, reforça as possibilidades de ampliação dosespaços de formação deliberativa do consenso racional. Por meio da comunica-ção, consegue-se antever um Direito inserido em sua configuração social e, so-bretudo, em seu propósito de se fazer legitimado e validado. Não obstante sejaum vir-a-ser, é uma esperança de que algo tem de ser feito, indicando os possí-veis caminhos. É o inconformismo com a inércia social, com a aceitação semaceitabilidade dos pressupostos que guiam a ação. A simples capacidade demostrar o caminho da crítica reflexiva das estruturas sociais já mostra que afilosofia habermasiana, também quando aplicada ao Direito, se revela uma im-portante fonte de novos caminhos para a ação concreta.

É uma ação que, por sua vez, é, por excelência, promotora de contextosinclusivos do outro. E isso demonstra que a teoria habermasiana, se, por um lado,procura o consenso coletivo, por outro, não deixa de pensar o particular. Talvezesse seja o tema que mais mereça enfoque nos debates filosóficos contemporâne-os. Apesar de haver outras possibilidades de se debater a alteridade,232 a filosofiahabermasiana, com esse explícito interesse, expõe o seu claro propósito humani-tário. Refletir acerca da humanidade com base na alteridade sob premissas dodiálogo – esta pode ser a repercussão de sua teoria. E esse reflexo, não obstanteas críticas que possam ser inseridas em seu âmago, como anteriormente analisa-do, é um recado que precisa ser assumido. É o sujeito que reconhece o outroenquanto se reconhece. Essa ética do discurso, por isso, esclarece na medida emque permite refletir acerca da situação concreta sempre com base na alteridade.

A superação do monólogo moderno evidencia que é possível redesenhar aracionalidade. É ela que assegura, também institucionalmente, as condições dedeliberação racional sobre os caminhos da própria comunidade; é ela que sus-tenta a solidariedade. E quando se passa a compreender que “até mesmo amelhor das filosofias é inócua sem as condições específicas da institucionalizaçãodo discurso”,233 compreende-se a dimensão da relevância de um Direito de baseracional-comunicativa. Desse modo, reconhece-se a força da razão, do esclareci-mento mediante o diálogo; assim se consolida um projeto de sociedade transpa-rente e de um Direito que inclua o outro.

Pensar a alteridade – este é o caminho da emancipação.

232 Citam-se como exemplos os projetos de Emmanuel Lévinas e Jacques Derrida, que partemde premissas distintas sobre alteridade em comparação com aquelas desenvolvida por Habermas.Para tanto, vide DERRIDA, Jacques. A Escritura e a Diferença. São Paulo: Perspectiva, 3ª ed,2002. DERRIDA, Jacques. Politiques de l´Amitié. Paris: Editions Galilée, 1994. DERRIDA,Jacques. DERRIDA, Jacques. Força de Lei: O Fundamento Místico da Autoridade. Porto:Campo das Letras, 2003; LÉVINAS, Emmanuel. Entre Nós - Ensaios sobre a Alteridade. Petrópolis-RJ: Vozes, 1ª ed., 1997.233 MILOVIC. Filosofia da Comunicação. op. cit., p. 298.

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CONCLUSÃO

Em sua obra O Discurso Filosófico da Modernidade, Habermas sustenta, empoucas palavras, muito de seu combate a uma razão centrada exclusivamente nosujeito ao expor que “a razão é originalmente uma razão encarnada tanto noscontextos de ações comunicativas como nas estruturas do mundo da vida”.1 Nãohá, por isso, de se pensar que a discussão referente à validade e facticidade,para este autor, refletiria uma renovação de um “purismo da razão”.2 Na verda-de, segundo ele, “não há uma razão pura que só posteriormente vestiria roupa-gens lingüísticas”.3 Àquela busca por uma transcendência pura do ato de conhe-cer no pensamento kantiano é contraposta a necessidade de que “a práxiscomunicativa cotidiana [se encontre], por assim dizer, refletida em si mesma”.4Esse caminho se daria não pela perspectiva do sujeito monológico, mas por umadifusão do discurso e das ações comunicativas. Em síntese, a reflexão tem derefletir sobre si própria dentro de um contexto dialógico.

Muitas dessas sugestões parecem reviver as palavras que indicaram o cami-nho inicial desta investigação. Basta lembrar que um dos motivos fortes da pes-quisa nasceu das palavras concludentes da obra Filosofia da Comunicação: Parauma Crítica da Modernidade, de Miroslav Milovic: “no início era o Verbo... estamensagem adquire agora um certo tom de esclarecimento”.5 Ao mesmo tempo,as recomendações constantes de que se fazia necessário refletir sobre os pressu-postos da normatividade deram alento ao desejo de ir ao encontro desse debateno plano jurídico. A reflexão sobre os pressupostos normativos no plano doDireito foi o tom que se quis dar à investigação realizada por intermédio daexposição sintomatológica de três importantes metafísicas constantemente pre-sentes em sua estrutura: a metafísica da natureza, a metafísica formal-normativae a metafísica da historicidade. A pergunta que norteou o trabalho, portanto, foi:em que medida se pode encontrar a lacuna reflexiva dos pressupostos normativosnas diferentes correntes do pensamento jurídico investigadas?

A natureza mostrou o seu potencial ofuscante das possibilidades da reflexãorigorosa sobre a validade normativa. Com base em suas premissas, verificou-seque o Direito decorria de uma explícita referência metafísica. O pensamentoclássico – aqui analisadas as filosofias de Platão e Aristóteles –, no intuito dedesvendar o que havia por trás do mundo dado, quis descobrir as essências da

1 HABERMAS, Jürgen. O Discurso Filosófico da Modernidade. São Paulo: Martins Fon-tes, 2002, p. 447. Grifo não presente no original.2 Idem, p. 4473 Ibidem, p. 447.4 Ibidem, p. 448.5 MILOVIC, Miroslav. Filosofia da Comunicação. Para uma Crítica da Modernidade.op. cit., p. 301.

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normatividade, sem, contudo, levá-las ao crivo da crítica. Por outro lado, mesmoquando se partia para a referência à phronesis, mantiveram-se os propósitos desimples contemplação do mundo e, não, de um caminhar para a formação denovos contextos sociais. Desejava-se alegrar a observação filosófica, incapaz derenovar o discurso sobre as possibilidades de uma nova constituição da socieda-de. Sustentava-se apenas o essencialismo, a íntima conexão com o mundo: ogeral conformava o particular. E a normatividade, que representava essa essên-cia reguladora, não era discutida em suas próprias premissas.

Ao se reestruturar a tensão entre validade e facticidade pela afirmação dasubjetividade constitutiva, o que se observou foi uma transição da metafísica daobjetividade para a metafísica da subjetividade. Entretanto, essa alteração depostura em relação ao mundo não ensejou as condições da crítica reflexiva sobreos pressupostos da normatividade. Mesmo que Kant tenha confrontado a nature-za no intuito de mostrar a liberdade e a ênfase no prático, o pensamento metafísicoperdurou pela não discussão das próprias categorias do pensamento. O silênciosobre a subjetividade transcendental não conseguiu afastar-se das críticas poste-riores aos próprios limites de sua filosofia. Um certo contentamento com os fatosda mente mostrou que ainda haveria de se ultrapassar as fronteiras da transcen-dência kantiana.

Transposta essas premissas para o plano jurídico, verificou-se que a lacunareflexiva, no jusnaturalismo moderno, manteve a estrutura do silêncio kantianosobre as categorias da mente. Não obstante se tenha renovado o conceito denatureza pela ênfase na subjetividade constitutiva – e, por isso, mostrado suaradical distinção em relação ao jusnaturalismo clássico -, novamente a validadenão foi objeto de reflexão rigorosa. Stammler e del Vecchio foram analisadospara espelhar essa realidade de manutenção de estruturas irrefletidas do pensa-mento kantiano, sendo explicitado que o que se alterou foi o eixo de sustentaçãoda metafísica, que passou a ser o do sujeito. Porém, essa modificação de posturafoi incapaz de promover a crítica dos pressupostos do direito. A metafísica,mesmo na radical transformação promovida pelo pensamento kantiano no direi-to natural, fez-se fortemente presente.

Um aspecto interessante é que a conseqüente reviravolta que o Direito sofreupelo avanço de um formalismo metódico de intuito purificador não chegou aabalar as estruturas de irreflexão sobre a validação jurídica. Ao contrário do quese poderia imaginar, a mudança de enfoque para uma perspectiva formal-normativa, fundada na centralização do objeto jurídico-científico na norma e naprocura da pureza no ato de conhecê-la, não fez desaparecer a metafísica, mas,somente, deu-lhe contornos distintos: a própria tentativa de recusa, no plano daTeoria Pura do Direito kelseniana, de ultrapassar os limites do objeto do conhe-cimento – a norma – transformou a concepção da ciência jurídica em um pensa-mento metafísico. É a ciência como a configuração da metafísica moderna, tam-bém aplicável à realidade do Direito.

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6 HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-Metafísico. op. cit., p. 41.7 Idem. Dialética e Hermenêutica. Para uma Crítica da Hermenêutica de Gadamer. op. cit., p. 20.

A proposta kelseniana revelou todo o intuito de purificação da Ciência doDireito em torno do ato de conhecer o objeto normativo e, nesse propósito, nãochegou a alcançar as possibilidades da crítica a esse próprio ato de conhecer. Oconhecimento científico do Direito, que tanto é o foco da Teoria Pura, acaboufechando-se em sua estrutura formal-normativa, sem, contudo, ir além dessametodologia assumida. Mesmo que essa atitude tenha sido claramente reveladapor Kelsen, não se pode silenciar a crítica pelo fato de que os limites de suateoria tenham sido por ele mesmo antecipados. De modo semelhante a Kant,verificou-se que Kelsen não foi ao encontro de uma proposta verdadeiramentereflexiva sobre suas bases.

Em contraposição ao “conceito forte de teoria”6 que adveio da propostakelseniana, a ênfase no prático poderia levar a outras possibilidades de compre-ensão do normativo. E, de fato, uma radical transformação foi efetuada pelaênfase na historicidade humana como a grande condição do compreender, quepassou a ser concebido como uma decorrência da fusão de uma tradiçãolingüisticamente mediada com a própria autoconsciência. Não há compreensãosem autocompreensão, do mesmo modo que não há autocompreensão sem com-preensão de seu tempo. Essa referência, que retomou muito do debate travadopela hermenêutica da tradição gadameriana, fez sustentar, todavia, um nivelamentodos planos da validade com o da facticidade. Os preconceitos, uma vez validadosno mesmo plano da facticidade, não viabilizam a crítica, pois ela acaba operandodentro do mesmo patamar do que está sendo criticado. A tradição, ao não serentendida como idéia regulativa, mas como condição validante do compreender,não é capaz de radicalizar a reflexão. É sempre uma reflexão dentro de ummesmo modelo. E, como a comunicação pode ser ideológica,7 a hermenêutica datradição simplificou a tensão entre validade e facticidade por intermédio de umavalidação tradicional dos preconceitos que dificulta consolidar um projeto deemancipação social.

Ao mostrar que a intersubjetividade pode ser contaminada por diferentesinteresses, muitos dos quais promotores de uma compreensão significativamentedistorcida, conclui-se que a reflexão sobre a validade normativa necessita dapercepção da tensão – e, não, nivelamento – dos planos da validade e da facticidade.Essa percepção é uma premissa para se possibilitar a reflexão rigorosa sobre ospressupostos normativos, que também deve se aplicar à compreensão do fenôme-no jurídico. Ele não pode se restringir, mesmo no plano da aplicação do Direito(Jurisprudência), a um desenvolvimento do círculo hermenêutico em concreto.No âmbito de uma Jurisprudência – aqui analisada a Jurisprudência de matrizvalorativa de Karl Larenz –, há também de se estabelecer a crítica da validadenormativa.

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8 Idem. Discurso Filosófico da Modernidade. op. cit., p. 437.9 Idem, p. 437.10 Ibidem, p. 437.11 Ibidem, p. 415.

O grande dilema que surge é encontrar uma saída que possa afirmar aintersubjetividade que permita estabelecer as condições da crítica, ao mesmotempo em que impulsiona a ação concreta de proposta emancipatória. A reflexãocomo caminho para emancipação derivada do pensamento habermasiano nascecomo uma importante fonte argumentativa, ao mostrar que a comunicação podeser a grande matriz para bem visualizar a tensão entre validade e facticidade. E,ao mesmo tempo, ela revela a importância de se acreditar na razão e em seupotencial transformador de estruturas coletivas. Ao elucidar que a racionalidadenão se resume ao diagnóstico weberiano, mas que pode fundar-se em pressupos-tos comunicativos, Habermas desenha uma esperança crítica à humanidade, quedeve, cada vez mais, refletir sobre as próprias bases de sustentação e mobilidade.Como o próprio Habermas aduz, racionalidade deve ser entendida como a “dis-posição dos sujeitos capazes de falar e de agir para adquirir e aplicar um saberfalível”.8 Sua filosofia, portanto, além de ir ao encontro das estruturas da reflexão,quer transpô-las para contextos de práticas vitais. É sempre, dessa forma, umamediação entre a transcendência e o empírico.

É uma radical reformulação de um pensamento que, enquanto centrado nosujeito e em sua condição monológica, se orientava por uma busca pelo conheci-mento, fundado em “critérios de validade e êxito, que regulam as relações dosujeito que conhece e age segundo fins com o mundo de objetos ou estado decoisas possíveis”.9 Com sua filosofia, ao contrário, o saber decorre de uma cons-tante mediação promovida pela comunicação, em que a racionalidade “encontrasua medida na capacidade de os participantes responsáveis da interação orienta-rem-se pelas pretensões de validade que estão assentadas no reconhecimentointersubjetivo”.10 Origina-se de uma direta responsabilidade participante de cadaindivíduo que, agora, deve sempre pressupor, em seu agir, uma referência aooutro do discurso.

Muda-se, assim, a percepção do sujeito consigo mesmo e com o mundocircundante: ele deixa de apenas adotar uma atitude de observardor e passa aser participante. Conforme Habermas, “o ego encontra-se em uma relaçãointerpessoal que lhe permite, da perspectiva do álter, refletir-se a si mesmo comoparticipante de uma interação”.11 Sua teoria, por isso, traz um importante argu-mento para se desenvolver a perspectiva do outro nos processos de inclusãosocial. Essa qualidade de sua filosofia abre o leque para um projeto de Direitoque estabeleça, na constante projeção do outro, o seu referencial reflexivo.

A razão deve ser situada no tempo e no espaço, sem, contudo, ter de senivelar com uma facticidade expressa na tradição lingüisticamente mediada. Ela

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tem de estabelecer, por intermédio de práticas comunicativas, a orientação para,cada vez mais, promover a participação coletiva sempre com base no outro,respeitando suas diferenças. O diálogo consolida-se, assim, como o grande crité-rio para a construção de uma proposta compreensiva e reconstrutiva dos funda-mentos da filosofia moderna.

Quando se transporta essa discussão para o plano jurídico, percebe-se que areflexão sobre os pressupostos normativos, a compreensão da tensão entre vali-dade e facticidade, a promoção de novos contextos inclusivos da diferença porintermédio do discurso, enfim, a síntese comunicativa construída por meio deuma razão historicamente situada engendra todo um novo horizonte para suaprópria compreensibilidade. O primeiro passo da radicalização no pensamentojurídico encontra-se na percepção de que a reflexão sobre suas bases de valida-de deve ser tomada como um critério essencial para a construção de uma práxisque potencialize a capacidade de cada indivíduo transformar, de modo crítico, arealidade em que se insere. O segundo passo está no entendimento de que areflexão não pode ser nivelada com a tradição lingüisticamente mediada, masdeve suplantar os contextos de facticidade pela compreensão de ser a tradiçãouma idéia regulativa constantemente sujeita ao crivo da crítica. O terceiro passoé a efetivação da inclusão alheia e do respeito à diferença como o grande objeti-vo do Direito, especialmente na abrangência dos direitos humanos.

Este livro procurou ensejar o debate sobre as distintas metafísicas no pensa-mento jurídico a partir do confronto com a crítica da ideologia de matriz discursivaadvinda dos ensinamentos de Habermas. Desenvolveram-se os argumentos queexplicitam a necessidade e a relevância da reflexão sobre os pressupostosnormativos no desenvolvimento jurídico. Essa primeira perspectiva, felizmente,pode ser estendida para uma segunda investigação, que acompanha os desdo-bramentos de uma projeção do outro, sob premissas rigorosamente reflexivas,como o referencial para se pensar os direitos humanos. Parece que um novomotivo, após o estudo empreendido neste trabalho, já surge como projeto parauma futura pesquisa. O interesse em entrar nesse novo mundo – o da diferença– mostra, de antemão, que novos olhares têm de ser abertos para futuras desco-bertas.

A pesquisa empreendida quis revelar a relevância de se conceber uma soci-edade auto-reflexiva no âmbito jurídico e um argumento transformador de pers-pectiva emancipatória com base na crítica da ideologia habermasiana. Mas pare-ce que se faz necessário, sobretudo no âmbito dos direitos humanos, compreendera diferença como o caminho da crítica reflexiva. Esse pode ser o trajeto para, defato, se superar a metafísica e as estruturas de dominação. Pensar a diferençanos direitos humanos sob bases auto-reflexivas pode ser o âmbito da renovaçãojusfilosófica. Da reflexão sobre os pressupostos normativos no Direito – que foiobjeto deste livro – o próximo objetivo é buscar elucidar a crítica reflexiva dentrode premissas respeitadoras da diferença.

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Este trabalho forneceu os argumentos iniciais para se estabelecer a reflexãosobre a validade normativa como condição para se emancipar do deserto reflexi-vo causado pelas metafísicas presentes no pensamento jurídico. Ao mesmo tem-po, ele estabeleceu a incitação para uma futura investigação. Cumpre-se, assim,o propósito de se abrir o espaço para construir novos horizontes de pesquisa. Acrítica reflexiva é, afinal, prospectiva. Concluir este livro apenas reprisando opassado contrariaria suas premissas. Por isso, o livro termina pensando o novo.

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