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JUDAS E O EVANGELHO DE JESUS

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.

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Tom Wright

JUDAS 1 Entender um texto antigo recém-descoberto ti

e sua importância contemporânea

Tradução: Thiago Gambi

E O EVANGELHO DE JESUS

Edições Loyola

Page 5: Judas e o Evangelho de Jesus - Tom Wright

Título original: Judas and the Gospel of Jesus

© Nicholas Thomas Wright, 2006 ISBN: 978-0-281-05868-6

PREPARAÇÃO: Cristina Peres

PROJETO GRÁFICO: Flávia da Silva Dutra

REVISÃO: Renato da Rocha

Edições Loyola Rua 1822 ne 347 — Ipiranga 04216-000 São Paulo, SP Caixa Postal 42.335 — 04218-970 — São Paulo, SP

(g) (11) 6914-1922

V;) (11) 6163-4275

Home page e vendas: www.loyola.com.br Editorial: [email protected] Vendas: [email protected]

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma dou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora.

ISBN: 978-85-15-03559-5

EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 2008

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Sumário

Prefácio 11

Mais um novo evangelho? 15

O gnosticismo do século II 23

O Judas da fé e o Iscariotes da história 33

Quando um evangelho não é um evangelho? 47

Senhor do mundo ou fugitivo do mundo? 63

A versão de Judas: novo mito das origens cristãs 79

O desafio de "Judas" hoje 99

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Para Nick Perrin

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i

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Nas notas, utilizei as seguintes abreviações:

PAN Padres Ante-Nicenos

EJud "O Evangelho de Judas"

KMW O Evangelho de Judas, organizado por Rodolphe Kasser,

Marvin Meyer e Gregor Wurst, com comentários adi-

cionais de Bart D. Ehrman (Washington, DC, National

Geographic, 2006) Krosney Herbert Krosney, The Lost Gospel: The Quest for the Gos-

pel of Judas Iscariot (Washington, DC, National Geogra-

phic, 2006)

NHL The Nag Hammadi Library, organizado por James M.

Robinson (Leiden, E. J. Brill, 1977) NH 1 etc. os próprios códices Nag Hammadi

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Prefácio

Na sexta-feira, 7 de abril de 2006, partia para uma viagem de 40 ho-ras entre Cairns, no nordeste da Austrália, e a cidade onde moro,

no norte da Inglaterra. Passara três semanas lecionando e três dias de

férias. Voltava agora para assumir minhas obrigações na diocese de

Durham, começando com o Domingo de Ramos, a Semana Santa, a Sexta-feira da Paixão e a Páscoa.

O primeiro jornal que vi quando cheguei à Inglaterra mencionava dois livros publicados naquela mesma sexta-feira. Eles falavam de um

documento antigo chamado "O Evangelho de Judas", que aparente-

mente tinha acabado de ser descoberto e tornava-se, naquele momen-to, de domínio público. Confesso que minha primeira reação — sem

dúvida por causa do jet lag e de milhões de outras coisas urgentes para

fazer — foi "Não é mais um novo evangelho!". Eu podia ver todo um

cenário se descortinando diante de mim: jornais e rádios alardeando ("Nova descoberta desafia o cristianismo tradicional"); vibrantes es-

tudiosos americanos declarando que essa nova descoberta nos levaria,

num sentido muito real, a tratar audaciosamente de questões que a

Igreja tentou ocultar; confusão no público em geral ("Mas os Manus-critos do Mar Morto não refutaram tudo?"); e, sobretudo, um desvio da atenção das verdadeiras tarefas da Igreja no início do século XXI.

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Page 13: Judas e o Evangelho de Jesus - Tom Wright

Confesso que esperava que aquele documento viesse a ser ou uma falsi-

ficação ou algo tão insignificante e desinteressante que não teria de me preocupar muito com ele.

Eu estava duplamente errado. De volta à minha mesa, os telefo-

nemas começaram. Um momento engraçado: tentei encomendar o

recém-publicado Evangelho de Judas, mas a livraria me mandou um romance com o mesmo título (The Gospel of Judas, de Simon Mawer,

Londres, Abacus, 2000 [ed. bras.: O Evangelho de Judas, Rio de Janeiro,

Ediouro] ), que, como muitos outros, explora o desejo, quase paranói-

co, de que alguém um dia pudesse apresentar um documento que pu-xaria o tapete do cristianismo-tal-como-o-conhecemos (no romance, o

documento é o testemunho de Judas da crucificação e da corrupção do

corpo de Jesus... Em outras palavras, sem ressurreição, sem fé cristã).

Tentei novamente on-line e, dessa vez, ele chegou: The Gospel of Judas [O Evangelho de Judas], editado por Rodolphe Kasser, Marvin Meyer e

Gregor Wurst, com comentários adicionais de Bart Ehrman. Também tive acesso a um relato jornalístico e maravilhosamente rico de como o

manuscrito original, descoberto na década de 1970, viajou de um lado

para outro em busca de um comprador, danificando-se no processo,

antes de finalmente chegar, quase 30 anos depois, à mesa de alguém que pudesse juntá-lo e traduzi-lo (Herbert Krosney, The Lost Gospel:

The Quest for the Gospel of Judas Iscariot [O Evangelho perdido. Como

o mundo veio a conhecer a versão de Judas Iscariotes para a morte de Cristo] ). Ambos os livros foram publicados pela National Geographic

em Washington DC, que fez um documentário para a televisão com os

mesmos participantes, dando a clara impressão de que o gnosticismo antigo não só é um assunto fascinante para os historiadores, mas tam-bém uma opção excitante que precisa ser revisitada atualmente.

De qualquer modo, o documento em questão, o manuscrito no cen-

tro do entusiasmo, parece ser genuíno. Autoridades de vários campos, inclusive em datação por carbono, declararam que esse é um autêntico

manuscrito egípcio do século III ou IV. E não é nem insignificante nem

desinteressante. Além disso, os comentários de seus primeiros editores, particularmente Meyer e Ehrman, são de grande interesse, pois revelam

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JUDAS E O EVANGELHO DE JESUS

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O gnosticismo do século II

(1?uando mais pessoas começavam a entender o que na verdade de-veria ser o "gnosticismo"... vêm agora alguns estudiosos nos dizer

para abandonar totalmente a categoria. Ela tenta incluir coisas demais, dizem eles. Ela abarca movimentos, idéias e textos tão diferentes que deixa de ser útil e pode criar mais confusão do que solução. De qual-

quer modo, sugerem, ela não corresponde a como as pessoas falavam

de seu próprio pensamento'. Bem, sem dúvida isso precisa ser dito de tempos em tempos. Impor

categorias amplas e gerais a grupos, crenças e textos diferentes pode de fato ser negligente e inútil. Generalizações podem — e geralmente o

fazem — levar historiadores a distorcer a realidade histórica de povos

e movimentos, por um lado, e de documentos, por outro. Precisamos constantemente ser vigilantes contra esse risco. Há uma ou duas dé-

cadas, era moda dizer que não poderíamos mais falar de "judaísmo

1. Michael A. WILLIAMS critica fortemente o "gnosticismo" em Rethinking `Gnosticism': An Argument for Dismantling a Dubious Category, Princeton, N.J., Princeton Univer-sity Press, 1996. Cf. também Karen L. KING, What is Gnosticism?, Cambridge, Mass., Belknap Press/Harvard University Press, 2003, e a afirmação um tanto estridente sobre a questão feita por Paul MIRECKI em "Gnosis, Gnosticism", Eerdmans Dictionary of the Bible, organizado por D. N. FREEDMAN, Grand Rapids, Mich., Eerdmans, 2000, 508s.

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do século I", somente de "judaísmos do século I", com o plural nos lembrando, de certo modo desdenhosamente, que havia, é claro, dife-

rentes variedades de judaísmo, algumas totalmente opostas a outras, e que ao juntá-las haveria o risco de um simplismo grosseiro. Alguns

defenderam a mesma coisa para certos tipos de cristianismo primi-tivo: talvez, eles dizem, devêssemos falar de cristianismos, no plural.

Concordo — até certo ponto. A existência de muitas variações não quer dizer que não haja algo

que eles tenham em comum. A menos que os diferentes tipos de judaís-

mo fossem apenas isso, tipos de judaísmo, eles não poderiam constituir aquela categoria plural, judaísmos. E o mesmo vale para o gnosticismo.

Como descobrimos no novo livro que contém o "Evangelho de Judas", especialistas de ponta do movimento, como Marvin Meyer e Bart Ehr-

man, estão de acordo com o uso do rótulo. Desde que nos lembremos de tempos em tempos de que, como o pós-modernismo ou a chamada

"nova perspectiva de Paulo", há tantas variedades quanto pessoas es-

crevendo sobre elas e desde que permitamos a cada texto falar com sua própria voz e basear-se em seus próprios méritos, não há razão para

evitarmos o termo geral. Ireneu diz que de fato havia alguns grupos

religiosos que se referiam a si mesmos como gnostikoi, "pessoas de co-nhecimento", e uma vez que ele os combatia deve-se ter cuidado ao

levar em consideração suas palavras no momento de julgá-los. Mesmo

que o termo "gnóstico", como a palavra "metodista", tenha sido origi-nalmente um rótulo dado por um grupo a outro, que eles mesmos não

o tenham escolhido, é bem possível, e de fato provável, que o termo te-

nha se tornado rapidamente um útil indicador de uma tendência geral

de pensamento e de vida, com muito espaço, no entanto, para varia-ções e improvisações que existiam dentro do movimento mais amplo.

O "Evangelho de Judas" é de fato uma expressão extraordinaria-

mente clara do que por muitos anos tem sido visto como os princípios básicos do "gnosticismo". Essa obra em particular enfatiza os princípios ao redor de uma narrativa surpreendente: um diálogo entre Jesus e Ju-

das que culmina com a ordem dada por Jesus a Judas de enviá-lo para a

morte e Judas obedecendo a essa ordem. Marvin Meyer e Bart Ehrman

24 JUDAS E O EVANGELHO DE JESUS

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fazem relatos admiravelmente claros, sucintos e acurados da visão de

mundo e das crenças em questão. O sumário em quatro partes que

apresentarei a seguir não tem a intenção de rivalizar com eles2.

1. O aspecto mais surpreendente do gnosticismo, que o destaca do

ramo principal do pensamento judeu e cristão primitivo, é um

dualismo profundo e obscuro. O mundo atual de espaço, tempo e

matéria é um lugar inexoravelmente ruim, não só um lugar onde a

perversidade floresce descontrolada, mas um lugar que, não fosse

criado e liderado por um deus mau, nem mesmo existiria. Em

outras palavras, o mundo tal como o conhecemos é completa-

mente mau. Mais ainda, os seres humanos, constituídos como são

de matéria física e vivendo nesse espaço e tempo perversos, são es-

sencialmente maus — a menos que, como veremos, dentro dessa

concha de maldade esteja oculto algo muito diferente.

2. Isso já aponta para o próximo aspecto importante. O mundo tal como

o conhecemos foi criado por um deus mau, estúpido e talvez capri-

choso. Há outro ser divino, uma divindade pura, sábia e verdadeira

que é bem diferente desse deus criador. Às vezes, esse deus mais eleva-

do é chamado de "Pai", o que é confuso para os cristãos que associam esse título ao deus que criou o mundo. Para o gnosticismo, o deus que

criou o mundo, juntamente com vários outros seres intermediários

que ajudaram em alguma etapa do projeto, é, na melhor das hipóte-

ses, mal orientado ou tolo, e, na pior, inequivocamente malévolo.

3. Portanto, o objetivo principal de qualquer ser humano racional será

fugir do mundo perverso e da existência humana aparente. "Sal-

vação" significa exatamente isto: alcançar a libertação do cosmos

material e de tudo o que ele significa. Só assim se pode construir o

caminho para a existência pura e espiritualmente elevada, livre das

travas do espaço, do tempo e da matéria. Só assim se será capaz de

viver uma felicidade que não está disponível aos que se prendem ao

mundo físico presente e que equivocadamente louvam seu criador.

2. Cf. EHRMAN apud KMW, 82-89; MEYER apud KMW, 137-169.

2 O gnosticismo do século II 25

Page 17: Judas e o Evangelho de Jesus - Tom Wright

4. O último aspecto não é tão óbvio, mas tem uma função central no

pensamento gnóstico. De fato, é por causa desse aspecto que a palavra

"gnóstico" e seus derivativos são designações apropriadas. O caminho

para essa "salvação" passa justamente pelo conhecimento, "gnosis".

Não por qualquer velho conhecimento. Certamente não pelo conhe-

cimento que se aprenderia na escola ou, no caso, numa igreja comum.

Em vez disso, essa gnosis especial surge ao se alcançar o conhecimento

do verdadeiro deus, da verdadeira origem do mundo perverso e, não

menos importante, de sua verdadeira identidade. E esse "conheci-

mento" só surge se alguém o "revela". Em outras palavras, é preciso

um "revelador" que virá dos domínios do além, do mundo espiritual

puro e elevado, para revelar aos poucos escolhidos que eles têm den-

tro de si a faísca de luz, a identidade divina profundamente escondida

dentro de sua forma material aparentemente miserável e grosseira.

Um mundo perverso; um deus perverso que o criou; a salvação como

resgate desse mundo; e o resgate vindo por meio da transmissão do co-

nhecimento secreto, especialmente do conhecimento de que se tem a

faísca divina dentro de si. Essas são as quatro características distintivas

do gnosticismo que encontramos não só na polêmica de Ireneu e outros

mestres cristãos primitivos, mas também nos próprios textos: nos códices

de Nag Hammadi e de outros lugares e agora no "Evangelho de Judas".

Mas há mais. Embora seja difícil rastrear, em boa medida porque

os textos que temos usam vários tipos de linguagem codificada, parece

haver diferentes grupos de "gnósticos", dentre os quais são de particu-

lar interesse os "setianos". Segundo o livro do Gênesis, Set foi o filho

de Adão e Eva nascido depois que Caim matou Abe13. Para esse grupo

particular de gnósticos, Set foi o fundador de uma "geração" especial,

os escolhidos, as faíscas de luz.

E, pelo menos para alguns gnósticos, o próprio Jesus era visto como

o "revelador". Daí a proliferação de textos, muitos dos quais vieram à luz em Nag Hammadi, que reúnem e organizam relatos dos ditos de

3. Referências a Set podem ser encontradas em Gn 4,25; 5,3.

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Page 18: Judas e o Evangelho de Jesus - Tom Wright

Jesus em vez de histórias sobre ele. Esses livros são chamados por seus autores e editores de "evangelhos", embora pertençam, como veremos, a um gênero muito diferente daquele dos evangelhos canônicos de Ma-teus, Marcos, Lucas e João. Às vezes esses conjuntos de ditos parecem ser informação secreta transmitida por Jesus a poucos favorecidos en-tre os discípulos. Às vezes são ditos especiais supostamente proferidos depois da ressurreição de Jesus (embora o gnosticismo, caracteristica-mente e como era de esperar, não queira ter nada a ver com a ressur-reição corporal). Todos eles, dependendo do caso, são elencados como ensinamentos que possibilitarão aos recebedores alcançar a salvação gnóstica, ou seja, fugir do mundo perverso por meio do conhecimento de si mesmos como faíscas de luz, da origem do mundo e do verdadeiro deus que Jesus está revelando e a quem, na verdade, já pertencem.

Um aspecto-chave de todos esses textos é sua implacável hostilida-de às principais linhas do judaísmo antigo — o que é surpreendente,

considerando-se não só que muitos textos gnósticos utilizam e rein-terpretam o Antigo Testamento, mas também que muitos especialistas

acreditam (em boa medida por essa razão) que o gnosticismo do século II tal como o conhecemos originou-se em círculos judaicos. Seja como for, esses textos freqüentemente despejam desdém e mesmo raiva so-

bre o deus judeu, que se supõe (corretamente, com base nas escrituras judaicas) ser o criador do mundo em que vivemos. Ele é o mal, a deida-

de malévola, completamente diferente do verdadeiro deus último, e os

que o adoram são iludidos, tolos e ignorantes. Como disse Bart Ehr-man, comentando o "Evangelho de Judas" 39-40,

os discípulos que continuam a praticar sua religião como se seu objeto último de adoração fosse o deus criador dos judeus, invocando o nome de Jesus em apoio à sua adoração, entenderam tudo errado. Em vez de servirem ao verdadeiro Deus, eles o blasfemam. E, assim, desencami-nham seus seguidores".

Assim, enquanto os judeus nos dois séculos que abrangem o tempo

de Jesus enfatizavam que o reino de Deus estava tanto na terra como no

4. Cf. KMW, 114.

2 O gnosticismo do século II 27

Page 19: Judas e o Evangelho de Jesus - Tom Wright

céu e que a justiça de Deus irrompia na história tornando tudo certo,

resgatando a ordem criada a partir de sua situação de corrupção e queda, e dando a seu povo corpos renovados (ressurreição) para viver glorio-samente nesse novo mundo, justificado pelo sofrimento em seu nome,

os gnósticos ensinavam justamente o contrário. Eles acreditavam que o verdadeiro deus que adoravam estava "completamente afastado desse mundo transitório de dor e sofrimento criado por um tolo e rebelde"'.

É provável, diante do fracasso dos vários movimentos-em-direção-

ao-"reino" judeu nos dois séculos que abrangem o tempo de Jesus, que

alguns judeus, profundamente desesperados, tenham começado a reler suas próprias tradições de cabeça para baixo. Idéias similares surgiram novamente muito depois, dentro do movimento judeu de muitos ramos conhecido como Kabbalah. Se tivéssemos de procurar um momento particular que possivelmente tenha precipitado uma nova e estranha maneira de reler as tradições judaicas e que poderia explicar a ascensão,

por volta de meados do século II, dos movimentos gnósticos que co-nhecemos a partir dos escritos descobertos em Nag Hammadi e outros

lugares e dos escritos atacados por Ireneu e outros, obviamente propo-ríamos a derrota da grande revolta de Simeon Ben Kosiba, também co-nhecida como "Bar Kochba", "Filho da Estrela". Os romanos esmagaram a revolta em 135, mudando para sempre a face do judaísmo6.

Isso também poderia ajudar a explicar a maneira quase cínica com que os gnósticos liam o Antigo Testamento, como se fosse de cabeça para baixo. Se os eventos surgiram para demonstrar que YHWH, Deus de Israel, abandonara seu povo perdido pelo caminho e permitira que uma grande figura messiânica (o próprio Bar Kochba) e um maravilho-so rabino (Rabino Akiba, que apoiara Bar Kochba e o anunciara como

Messias) tornassem as coisas terrivelmente erradas, talvez todas as per-cepções tradicionais de quem eram os mocinhos e de quem eram os

bandidos tivessem de permanecer em suas cabeças. Talvez esse seja o

5. Cf. EHRMAN apud KMW, 106.

6. Sobre a revolta de Bar Kochba, cf. N. T. WRIGHT, The New Testament and the People of God (=NTPG), London/Minneapolis, Minn., SPCK/Fortress Press, 1992, 164-166.

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motivo, em muitos textos gnósticos, pelo qual os heróis se tornam vilões

e vice-versa: se o Deus do Antigo Testamento é, afinal de contas, um deus mau, que desaponta seu povo, talvez as pessoas que ele reprova (como

Caim) estivessem do lado certo e as pessoas que ele aprova (como Abel) estivessem do lado errado. Desse modo, o estranho mundo de pernas

para o ar da especulação gnóstica toma forma. E, à medida que os judeus

aceitavam o gnosticismo como tal, afastavam-se de tudo o que era mais

caracteristicamente judeu, tanto no Antigo Testamento como nos cha-

mados escritos intertestamentais, e tudo isso continuava a ser dito no principal ramo do pensamento rabínico. (Os rabinos, se é que se pode

arriscar uma generalização num campo tão vasto e complexo, continua-

vam a afirmar e invocar um único Deus criador, embora não achassem

que seu reino viesse da maneira como esperavam Akiba e outros'.)

Mas os gnósticos eram, em certo sentido, cristãos? Bem, depende

do que se quer dizer. Houve intenso debate ao longo do último século

sobre o relacionamento entre cristianismo e gnosticismo primitivos. Se é verdade, como parece provável, que muitos dos que conhecemos

agora como gnósticos pensavam e falavam de si mesmos como cris-

tãos, como seguidores de Jesus, o historiador deveria estar preparado

para admitir que pelo menos a palavra "cristão" pode ter sido usada

de maneiras diferentes por pessoas e grupos diferentes. Isso é, de

fato, bastante provável.

No entanto, uma proposta acadêmica em particular foi considera-

velmente mais longe que isso, mas agora está praticamente abandona-

da. Na primeira metade do século XX, muitos especialistas tentaram ansiosamente demonstrar que os cristãos primitivos, sobretudo Paulo

e João, na verdade derivaram sua teologia madura, sua interpretação de

Jesus de Nazaré, das idéias e dos movimentos gnósticos. A tentativa de criar caso em cima disso fracassou por causa de sólidas contra-evidências que mostravam que João e Paulo estavam profundamente baseados no

Antigo Testamento e que afirmavam fortemente o tradicional monoteís-

mo criacionista judeu, justamente o que os gnósticos rejeitavam.

7. Sobre a continuidade da afirmação rabínica do Deus criador, cf. NTPG, 199s.

2 O gnosticismo do século II 29

Page 21: Judas e o Evangelho de Jesus - Tom Wright

Uma vez que João, Paulo e outros escritores do Novo Testamento (e

os que foram citados em alguns hinos e poemas cristãos encontrados em

seus escritos) realmente falam de Jesus como sendo um com o eterno e único Deus, e de sua vinda ao mundo para revelar a verdade, não é dificil

perceber que essa história poderia ser extremamente útil a qualquer um

que quisesse propagar uma visão de mundo muito diferente da de João, Paulo e de outros escritores cristãos do século I. Manter Jesus como a fi-

gura-chave, um grande e poderoso mestre, aquele que veio do outro lado para nos ensinar e nos salvar de nossa situação... e simplesmente retificar a natureza da situação (não mais pecado, mas materialidade), a imagem de Deus (não mais o criador do mundo material, o Deus de Abraão, Isaac

e Jacó, mas um ser distante e puro, imaculado do contato com a criação),

a natureza da salvação (não mais o reino e a justiça de Deus surgindo no

universo do espaço-tempo, mas o resgate de alguns humanos do mundo

material)... e, vejam só, continuamos seguidores de alguém a quem cha-

mamos de "Jesus", mas temos agora uma visão de mundo e uma religião sem aqueles desagradáveis traços judeus. E, como veremos, sem correr o risco de que as autoridades romanas nos critiquem.

Portanto, é perfeitamente justo supor que pelo menos alguns dos

gnósticos podem de fato ter se considerado "cristãos". Provavelmente

Ireneu e outros escritores antignósticos não teriam problema ao opor-

se a eles a tal ponto se não tivessem feito nada. Eles representavam uma ameaça; eles corriam risco ao perturbar a fé de alguns, levando as pes-

soas a uma fé diferente, a adorar um deus diferente, resultando num

estilo de vida diferente.

Além disso, é provável que os primeiros sinais dessa luta sejam visí-

veis no próprio Novo Testamento. Paulo se refere desdenhosamente a um tipo de gnosis que envaidece a pessoa, em contraste com o amor, que a constrói8. E quem quer que tenha escrito a Primeira Carta a Ti-

móteo (muitos acham que seu autor não foi Paulo, mas certamente foi escrita por volta do ano 100 d.C.) adverte o leitor a evitar "os clamo-

8. O desdém de Paulo pela gnosis pode ser encontrado em 1Cor 8,1. Há várias alu-sões semelhantes em toda a Primeira Carta aos Coríntios.

30 JUDAS E O EVANGELHO DE JESUS

Page 22: Judas e o Evangelho de Jesus - Tom Wright

res vãos e as contradições do que é erroneamente chamado de gnosis9. Alguns, diz ele, abandonaram aquele caminho e erraram o alvo em

termos da (verdadeira) fé. O gnosticismo clássico, do tipo que encontramos em Nag Hamma-

di e no "Evangelho de Judas", é de fato híbrido. Embora sua visão de

mundo básica não seja judaica, muitos textos gnósticos utilizam e reinterpretam antigos textos judeus. Na verdade, como já vimos, ela é

profundamente antijudaica. Do mesmo modo, argumentarei no devi-

do tempo que ela tem muito pouco a ver com a verdadeira mensagem

e missão do próprio Jesus de Nazaré. Mas num mundo de muitos

deuses, muitos movimentos religiosos, muitas filosofias (muitas delas

variações do platonismo, com seu inerente dualismo entre espírito e

matéria) e muitos mestres juntando idéias de maneira sempre nova,

não surpreende que encontremos grupos e escritores buscando usar o

nome de Jesus para propagar e legitimar ensinamentos muito diferen-

tes daquilo que ele pregava. Não é a última vez na história que esse

tipo de coisa aconteceu.

Tudo isso nos remete novamente ao texto que causou todo esse es-

tardalhaço. O que sabemos sobre Judas Iscariotes e o que o "Evangelho

de Judas" faz com esse conhecimento?

9. Cf. 1Tm 6,20.

2 O gnosticismo do século II 31

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Page 24: Judas e o Evangelho de Jesus - Tom Wright

O Judas da fé e o Iscariotes da história

C "Evangelho de Judas" parece conter tudo sobre um discípulo de Jesus

em particular: Judas Iscariotes. E o que todo mundo sabe sobre Judas

Iscariotes é que ele traiu Jesus. Mas traiu mesmo? E, se traiu, por que o fez?

Precisamos dar um longo passo atrás, para a razoavelmente sólida

história do século I. Os quatro evangelhos canônicos concordam em

que Jesus de Nazaré escolheu doze seguidores especiais, provavelmen-

te querendo sinalizar com isso sua reconstituição do antigo povo de

Deus, a família de Israel, as doze tribos baseadas (pelo menos especula-

tivamente) nos doze filhos de Jacó.

Os evangelhos canônicos nos contam que entre esses seguidores

havia dois que carregavam um dos mais famosos e gloriosos nomes da

história judaica: Judá, nome do quarto filho de Jacó. A forma "Judas"

nada mais é que a versão grega desse nome. O nome "Judá" significa

"louvor"; a mãe de Judá, esposa de Jacó, Lia, disse quando ele nasceu

que a partir de então "louvaria" YHWH, o Deus de Israel'. Além disso,

a tribo de Judá era vista como a família real. O rei Davi veio de Judá.

1. Gn 29,35 refere-se ao nascimento de Judá. A derivação etimológica do nome era bem conhecida por Paulo, que faz um jogo de palavras com ela mesmo quando escreve em grego (Rm 2,29).

33

Page 25: Judas e o Evangelho de Jesus - Tom Wright

De acordo com a profecia antiga, essa era a família da qual surgiriam

os verdadeiros reis de Israel'. Um dos mais famosos lideres judeus nos

séculos anteriores a Jesus era Judas Macabeu; embora não fosse real-

mente da tribo de Judá, ele liderou uma revolta espantosamente bem-

sucedida contra os sírios pagãos e limpou o Templo. Isso foi o suficien-

te para que ele estabelecesse uma dinastia que durou pelo menos cem

anos. Provavelmente o nome também ajudou.

Assim, não deveríamos ficar surpresos com o fato de que muitas fa-

mílias dessem o nome "Judá" a um filho. De qualquer modo, os judeus

palestinos do século I parecem ter sofrido uma escassez de nomes para meninos, principalmente em relação aos padrões modernos. Sabemos

bastante sobre isso graças às sólidas pesquisas do especialista israelen-

se Tal Ilan, que garimpou montanhas de evidências a partir de anti-

gas inscrições judaicas, sobretudo em lápides e urnas funerárias. Essas

pesquisas foram continuadas, por sua vez, por Richard Bauckham e

outros, que elucidaram sua importância dentro do cristianismo primi-tivo'. Curiosamente, as famílias judaicas tendiam a não usar os nomes

dos doze patriarcas originais, ao contrário dos nomes dos macabeus

(Matatias, João, Simão, Judas, Eleazar e Jônatas)4. No índice das obras

do historiador judeu Josefo, há não menos do que 21 pessoas chamadas

"Jesus", 29 chamadas "Simão", 15 chamadas "Judas" e mais 4 chama-

das "Judes", outra variação. Um dos próprios irmãos de Jesus tinha

esse mesmo nome; alguns acham que ele foi o autor da "carta de Jude"

do Novo Testamento ("Jude" é obviamente uma versão anglicizada do

mesmo nome, talvez adotada para evitar dizer "a carta de Judas")5.

2. A profecia relacionada à descendência dos reis de Israel pode ser encontrada em Mq 5,2. 3. Para mais informações sobre os nomes judeu-palestinos do século I, cf. Tal ILAN, Lexicon of Jewish Names in Late Antiquity: Palestine 330 BCE — 200 CE (Texts and Studies in Ancient Judaism, 91), Tübingen, Mohr Siebeck, 2002; Richard BAucxxAm, Jesus and the Eyewitnesses: the Gospels as Eyewitness Testimony, Grand Rapids, Mich., Eerdmans, 2006.

4. Cf. 1Mc 2,1-5.

5. Cf. Mt 13,55; Mc 6,3; Jd 1.

34 JUDAS E O EVANGELHO DE JESUS

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Isso explica por que o Judas que traiu Jesus vinha sempre acompa-nhado de um nome posterior, "Iscariotes", embora não haja consenso sobre o que essa palavra significa (um membro dos "sicários", os "ho-mens com punhal", terroristas urbanos? Um homem de Cariot? Talvez uma palavra retrospectiva que signifique "o traidor"?). Muitos na Pa-lestina deviam conhecer várias pessoas chamadas "Judas" e, embora os pais que escolhiam o nome devessem estar conscientes de suas implica-ções históricas e patrióticas, seria improvável que, na vida cotidiana, as pessoas pensassem em Judas Macabeu, assim como as pessoas que hoje em dia ouvissem sobre alguém que se chame George pensassem ao mes-mo tempo nos reis ingleses com esse nome ou em George Washington.

Devemos nos lembrar disso, pois séculos de desprezo cristão pelo traidor Judas Iscariotes deixaram sua marca, e o nome "Judas" (pense como soaria diferente se o chamássemos "Judá") tornou-se, tragica-mente, uma alcunha para traição. Os que já temos certa idade nos lem-bramos do momento em que alguém gritou "Judas" para Bob Dylan pela ousadia de usar uma guitarra elétrica no palco, traindo sua heran-ça musical folk. E, quando os cristãos primitivos contavam a história de Jesus e seus seguidores, já punham em ordem as listas de discípulos de modo que, em quaisquer variações que pudessem ter, Judas Iscariotes viesse por último, com um comentário de que foi um traidor6.

Mas é claro que durante a vida de Jesus, até aquele terrível mo-mento no Jardim do Getsêmani, não se pensava que Judas pudesse ser um traidor. Quando na Última Ceia Jesus alertou os discípulos de que um deles o entregaria às autoridades (revelando o local secreto onde costumavam ficar, nas fendas do Monte das Oliveiras, um lugar onde a polícia poderia prendê-los causando o mínimo distúrbio), não vemos os outros discípulos dizerem: "Bem, todos nós já sabemos quem será", e apontarem para Judas. Em vez disso, vemos os discípulos verdadeira-

mente alarmados e perturbados: "Não sou eu, não é?"7.

6. Mc 3,13-19; Mt 10,2-4; Lc 6,12-14; At 1,13. Os últimos dois colocam "Judas filho de Tiago" em penúltimo; ele pode ser a mesma pessoa que "Tadeu" em Marcos e Mateus. Cf. meu Jesus and the Victory of God, London/Minneapolis, Minn., SPCK/ Fortress, 1996, 300, n. 214.

7. Mt 26,21-25; Mc 14,18-21; Lc 22,21-23; Jo 13,21-30.

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Do mesmo modo, quando a igreja primitiva fazia as listas dos Doze e colocava Judas no final, com a advertência de que ele era o traidor,

não havia pensamento, insinuação ou a menor sugestão de que essa implicação fosse de alguma maneira transmitida por seu próprio nome

ou por esse nome e de que a traição tivesse algo a ver com o fato de ser

"um judeu". Este pensamento é ridículo. É claro que ele era um judeu.

Assim como todos os outros.

Por que Judas fez o que fez ainda não está claro. É tentador colocá-lo

no mapa grosseiro das aspirações judaicas do século I. Os fariseus dese-

javam o reino de Deus e esperavam acelerar sua chegada mantendo a lei energicamente. Os saduceus queriam manter o status quo. Os essênios se retiraram para o deserto a fim de seguir os ensinamentos especiais de

seu fundador e esperar pelo momento de Deus. A "quarta filosofia", às vezes imprecisamente conhecida como "zelotes", era o que poderíamos chamar de direita conservadora do movimento farisaico, querendo tra-

zer o reino por meio da violência sagrada contra os odiados pagãos e

os comprometidos com eles, à maneira de Elias, Finéias e dos heróis macabeus. Se Judas fosse um "homem com punhal", um "sicário", isso

indicaria que ele estava mais próximo da última dessas posições, mas disso não podemos ter certeza.

É sabido que os chefes religiosos pagaram 30 peças de prata por sua

informação e guia, mas, embora haja outras sugestões do seu gosto pelo

dinheiro (Jesus o encarregou de cuidar da bolsa comum), não está claro se esse foi seu único, ou principal, motivos. Nesse ponto, todo tipo de es-

peculação tentou preencher a lacuna: talvez Judas o tenha feito por real-

mente pensar que Jesus estivesse preparando uma revolução militar con-

tra os omanos e ele não conseguia entender por que, depois da exibição no Templo, Jesus parecia continuar ensinando em vez de demonstrar

sua superioridade. Talvez estivesse intimamente com ciúme de Jesus; tal-vez esperasse que, se Jesus estivesse fora do caminho, outro movimento-

em-direção-ao-reino surgiria e necessitaria de outro lider, quiçá alguém com um nome da realeza histórica... e assim por diante. Não sabemos e

8. Sobre o gosto de Judas pelo dinheiro, cf. Jo 12,6.

36 JUDAS E O EVANGELHO DE JESUS

Page 28: Judas e o Evangelho de Jesus - Tom Wright

provavelmente nunca saberemos. O mesmo vale para a morte de Judas:

Mateus diz que ele se enforcou, Lucas diz que seu estômago se partiu,

e tentativas de harmonizar os dois pareceram ter maior apelo entre a maioria dos leitores, a começar por Orígenes no século 1119.

Os evangelhos canônicos acrescentam uma versão posterior: Sata-nás, dizem eles, entrou em Judas e o levou a fazer o que fezu. Isso não

significa simplesmente que "ele estava possuído pelo demônio", em-bora seu comportamento tenha se tornado mau de modo meramente

aleatório. Mais exatamente, "Satã" em hebraico é a palavra que designa

"o acusador"; no livro de Jó, "Satã" é o promotor na corte celeste. Judas

tem um papel especificamente "acusatório": é ele quem diz "Eis o ho-mem", precipitando a cadeia de eventos que termina com Jesus sendo arrastado diante de um tribunal ilegal e irregular e condenado à morte

sob acusações inventadas. Outras menções no Novo Testamento não se esforçam para lidar com o aparente problema teológico de que, se

era vontade de Deus que Jesus morresse pelos pecados do mundo e se

a traição de Judas precipitou esse evento, por que Judas continuou a

ser culpado? Esse é um problema que encontramos também em várias

outras esferas: podemos pensar no extraordinário romance de George Steiner em que Adolf Hitler, capturado na selva amazônica por caça-

dores de nazistas muitos anos depois da guerra e levado a julgamento,

declara que o novo Estado de Israel só surgiu por causa de seus atos e que talvez ele fosse afinal o Messias..." A questão de como a intenção

de Deus de que Jesus morresse para curar os pecados do mundo está ligada à perversidade dos que o levaram para a morte é uma preocupa-ção nossa; claramente não era da igreja primitivau.

O que é bastante claro nos evangelhos é que a ação traidora de Judas não tem absolutamente nada a ver com o fato de ele ser judeu. A suges-

tão é despropositada: Jesus era judeu, todos os discípulos eram judeus,

9. Para as diferentes histórias da morte de Judas, cf. Mt 27,3-10; At 1,18ss.

10. Para o papel de Satanás na traição de Judas, cf. Lc 22,3; Jo 13,2.27. 11. George STEINER, The Portage to San Cristobal of A.H., London, Faber, 1981.

12. Cf., p. ex., At 2,23.

3 O Judas da fé e olscariotes da história 37

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eles viviam num mundo judeu e estavam à frente de um movimento-em-direção-ao-reino de estilo especificamente judeu. Eles diziam —

raison d'être de todo o movimento — que o Deus judeu estava apresen-tando seu reino, como previam as antigas profecias judaicas, por meio de sua missão. Portanto, a tentativa de Judas de acabar com Jesus tam-bém poderia ser construída como uma ação antijudaica, uma tentativa desesperada de frear esse movimento-em-direção-ao-reino de estilo ju-deu. Isso seria ir longe demais, é claro. A questão do preconceito étnico

(sem falar no racial) é simplesmente anacrônica nesse contexto. Além disso, basta pensar um pouco para notar como é ridículo su-

gerir, como fez um apologista judeu da geração passada, que o próprio

Judas Iscariotes era, na verdade, um personagem fictício, inventado pe-los cristãos primitivos como uma maneira de colocar a culpa de tudo "nos judeus". Da mesma maneira, não é plausível argumentar, como outro especialista fez extensamente, que Jesus escolheu Judas como in-termediário para marcar um encontro secreto com as autoridades e que as coisas saíram terrivelmente erradas13.

De fato, não há a menor chance de que Judas e sua traição sejam uma invenção da imaginação dos cristãos primitivos. Sua forte pre-sença em fontes materiais antigas indica que essa alternativa não pode constituir nenhuma possibilidade remota. E (uma vez que não havia dúvida até alguns séculos atrás em excluí-lo como um odiado perso-

nagem "judeu") não havia razão para que os cristãos primitivos cau-sassem a si mesmos tal constrangimento, admitindo que o homem que traiu Jesus era alguém de seu círculo íntimo. Não! Judas Iscariotes é um personagem da história, e, embora (como muitos personagens histó-ricos, inclusive alguns bem recentes) não possamos assegurar que en-tendemos os motivos pelos quais ele agiu como agiu, não há uma boa razão para duvidar de que era um dos Doze ou de que realmente levou

as autoridades, sob o manto da escuridão, até o lugar onde sabia que Jesus poderia ser encontrado e preso sem causar distúrbio.

13. Para explicações modernas do comportamento de Judas, cf. H. MACCOBY, Judas Iscariot and the Myth of Jewish Evil, New York, Free Press, 1992; W. KLASSEN, Judas: Betrayer or Friend of Jesus?, Minneapolis, Minn., Fortress, 1996.

38

JUDAS E O EVANGELHO DE JESUS

Page 30: Judas e o Evangelho de Jesus - Tom Wright

Em relação ao recém-descoberto "Evangelho de Judas", é interessante

notar que há várias menções de Judas em escritos primitivos que não

estão no Novo Testamento e que seguem a mesma direção gnóstica. No

entanto, em todos eles o perfil de Judas é uniformemente negativo. Os

Atos de Tomé, do século III, mostram o diabo incitando Judas a trair Cris-

to e advertem o leitor contra a ganância, que poderia levá-lo a um desti-

no semelhante. Outras lendas mais ou menos do mesmo período falam

de Jesus encontrando Judas no inferno e censurando-o, uma vez que ele

tinha se entregado ao culto do diabo adorando-o sob a forma de uma co-

bra'". Tudo isso torna mais evidente que o "Evangelho de Judas" inverteu

as coisas e fez de Judas o herói. Que sentido isso pode ter para nós?

O aspecto-chave a perceber conforme nos aproximamos do docu-

mento recém-publicado é que Judas é de fato o herói — mas que a

história é completamente diferente. Essa não é a história do Deus de

Israel criando seu reino tanto na terra como no céu, libertando Israel

e inaugurando uma nova era de justiça e paz para toda a criação. Essa

não é a história de Jesus carregando nos ombros o peso da maldade

do mundo, morrendo para extingui-la e ressuscitando para lançar um

novo mundo de Deus. O "Evangelho de Judas" não tem o sentido de

uma salvação que é para este mundo, mas de uma que é a partir deste

mundo. Nesse "Evangelho", o próprio Jesus é a primeira pessoa a ex-

perimentar essa "salvação", essa libertação do cativeiro de ser humano,

de estar preso num corpo material. E Judas é o herói porque Jesus lhe

ordena que o ajude a experimentar justamente isso.

Essa é a versão particular — e totalmente fascinante — que o novo

documento acrescenta à história de Judas Iscariotes. Diferentemente de

muitos dos "evangelhos" gnósticos, esse livro é mais do que um mero

conjunto de ditos de Jesus. Ele tem um enredo definido e um propósito

específico. Contudo, o enredo é conduzido não pelas promessas pro-

14. Detalhes das primeiras lendas sobre Judas podem ser encontrados em W. KLAS-SEN, Judas Iscariot, in D. N. FREEDMAN (org.), Anchor Bible Dictionary, New York, Doubleday, 1992, 3.1095. Mais exemplos em ROBINSON, The Secrets of Judas, cap. 3.

3 O Judas da fé e o Iscariotes da história 39

Page 31: Judas e o Evangelho de Jesus - Tom Wright

féticas da vinda do reino de Deus (como em Mateus, Marcos, Lucas e

João), mas pela ideologia gnóstica que estudamos anteriormente. Des-

de o início do livro é traçada uma clara distinção entre dois grupos de pessoas e o "deus" que adoram. Rapidamente se torna claro que um

grupo é o corpo principal de discípulos, que adora o deus criador, o deus de Israel, e que o outro grupo é formado, principalmente pelo menos, por Jesus e Judas. Eles sabem que o deus criador, o deus de Is-rael, é um ser inferior que pode ser designado por nomes desdenhosos

como "Saldas" (tolo)". Eles pertencem à "grande geração", a "geração de Set", isto é, das pessoas que descobriram ter a verdadeira faísca di-vina dentro de si mesmas e que, iluminadas por esse conhecimento, podem se desprender dos assuntos do mundo atual e esperar uma vida

feliz e desencarnada no futuro, mesmo que isso signifique, no presente, a rejeição dos que estupidamente ainda adoram o deus criador.

É por isso que Jesus ri dos que ainda estão na ignorância. Esse aspec-to do "Evangelho de Judas" foi bastante trabalhado, e alguns tentaram

sugerir que nesse documento, ao contrário dos aparentemente som-brios evangelhos canônicos, Jesus tem senso de humor". Responder, como alguns fizeram na mídia, que os evangelhos canônicos são de fato

repletos de humor irônico (camelos passando pela ponta de agulha, Je-sus dando apelidos divertidos aos discípulos e assim por diante) é errar

o alvo. Jesus não ri no "Evangelho de Judas", como Meyer sugere, por

causa "das fraquezas dos discípulos e dos absurdos da vida humana", mas porque está explícita e desdenhosamente zombando dos discípulos que ainda estão adorando o deus criador e fazendo isso no sacramen-to da eucaristia". Ele continua rindo deles por imaginarem "a grande geração", quando de fato eles nunca a alcançarão". E ele ri também do erro de seguir as estrelas, destinadas a serem destruídas, que presu-

15. Para referências ao deus de Israel como "Saldas": EJud 51-53; cf. KMW, 37-39.

16. Para a afirmação de que o Jesus do EJud tem senso de humor, cf. M. MEYER apud KMW, 4; R. KAssER apud KMW, 75s.

17. Para o fato de Jesus zombar dos discípulos, cf. MEYER apud KMW, 4; EJud 34 (KMW, 21); EJud 36s. (KMW, 24).

18. EJud 36s. (KMW, 24s.).

40 JUDAS E O EVANGELHO DE JESUS

Page 32: Judas e o Evangelho de Jesus - Tom Wright

mivelmente guiam, ou influenciam, os humanos que perambulam em

seu erro mundano19. Para mim, essa tentativa de reinterpretação em

termos de um Jesus amigável, benigno e alegre, irradiando sabedoria divina em oposição ao personagem melancólico e sofrido dos evan-gelhos canônicos, é, na melhor das hipóteses, um exercício por uma

causa especial, e, na pior, uma ignorância intencional a respeito do que

o texto está de fato dizendo". Também ignora o sentido zombeteiro do riso na comparação óbvia

com o texto do Nag Hammadi conhecido como o "Apocalipse de Pe-dro". Nesse texto, o "Jesus verdadeiro" ri durante a crucificação porque é outro, o "Jesus" puramente carnal, que está sendo crucificado em seu lugar. O texto é bastante explícito nesse ponto: esse "Jesus verdadeiro"

zomba e desdenha da falta de percepção dos que "nascem cegos", isto é, das pessoas comuns que não podem enxergar a verdade "espiritual". O

riso é sarcástico; é a reação dos iluminados diante dos que não compar-

tilham seu insight21. Há uma passagem muito similar no livro chamado

O segundo tratado do grande Set, outro texto de Nag Hammadi". O

estudioso judeu Guy Stroumsa resume essa passagem:

Jesus ri diante da estupidez dos "governantes" — dos anjos do mal. Estes agem sob o comando do deus Saldas, que é o Deus de Israel, o criador do nosso mundo material e mau. Saldas e seus seguidores que-riam crucificar Jesus, mas conseguiram apenas matar o corpo material, uma casca vazia da qual o redentor espiritual conseguiu sair antes da calamidade. Por isso Jesus ri".

O estranho é que Meyer, como Elaine Pagels, sabe disso perfeita-

mente bem". Por que, então, ele e outros tentam usar o riso para fazer

19. EJud 55 (KMW, 42).

20. P. ex., KROSNEY, 278.

21. Para o paralelo nos textos de Nag Hammadi, cf. Apoc. Ped. 81-83 (NHL, 344).

22. NH 56,6-19.

23. Cf. Guy G. STROUMSA, in Ha'aretz, 10 de abril de 2006.

24. Cf. a discussão em E. PAGELS, The Gnostic Gospels, New York, Random House, 1976, 91s. (as referências são da edição brochura: London, Phoenix Press, 2006). [Ed. bras.: Os evangelhos gnósticos, Rio de Janeiro, Objetiva, 2006.]

3 O Judas da fé e o Iscariotes da história 41

Page 33: Judas e o Evangelho de Jesus - Tom Wright

esse "Jesus" parecer amigável e atraente? Essa é uma questão importan-

te e adiarei a tentativa de respondê-la até um capítulo posterior.

Tudo isso serve para preparar para o clímax da pequena obra, que se dá quando Jesus conta a Judas que sua tarefa será entregá-lo às au-toridades, justamente porque morrendo ele pode escapar desse mundo

terrível de materialidade, de humanidade, e tornar-se o ser espiritual que realmente é:

Jesus disse, "Em verdade eu lhe digo, Judas, [aqueles que] oferecem sacrifícios a Saklas... Deus... [aqui faltam três linhas]... tudo o que é mau. Mas você superará todos eles. Pois você sacrificará o homem que

me reveste25.

"O homem que me reveste" (ou, como os editores dizem numa nota

de rodapé, "o homem que me carrega"): essa é a pista de tudo, da na-tureza da história em que Judas se vê como herói e não como vilão. O

comentário dos editores é curto e grosso:

Judas é instruído por Jesus a ajudá-lo a sacrificar o corpo carnal ("o homem") que reveste ou carrega o verdadeiro self espiritual de Jesus. A morte de Jesus, com o auxílio de Judas, é tomada como a libertação da pessoa espiritual... Ao tornar possível a morte de Jesus, Judas permite que a faísca divina dentro de Jesus escape das amarras materiais de seu corpo e volte para sua morada celeste. Judas é o herói, não o vilão26.

Em outras palavras, quem quer que tenha escrito esse texto estava fazendo com Judas, o aparente "vilão" da história do evangelho, o que outros escritores gnósticos fizeram com Caim, o aparente "vilão" dos

primeiros capítulos do Gênesis. A visão de mundo assim expressa di-

ficilmente poderia ser mais clara. Além disso, dificilmente poderia ser mais diferente da visão de mundo que permeia os evangelhos canônicos e todo o primeiro século do cristianismo a que temos acesso direto.

25. Cf. EJud 56 (KMW, 45).

26. Cf. KMW, 43, n.137; 96. O Dr. John Dickson, de Sidney, Austrália, me mostrou que no texto (apesar da afirmação dos editores e comentadores) Jesus não ordena a Judas que o entregue. Poderia ser meramente uma predição. Mas uma predição de caráter valorativo: entregando-o, Judas "superará a todos".

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JUDAS E O EVANGELHO DE JESUS

Page 34: Judas e o Evangelho de Jesus - Tom Wright

Mas há mais. Judas deve seguir Jesus no devido tempo. Será, é claro, desconfortável para ele; os outros discípulos o rejeitarão, tanto que ele

será visto como "o décimo terceiro", com outro ocupando seu lugar en-tre os Doze". Mas o caminho pelo qual Judas deverá seguir será dado

do início ao fim por sua estrela, a estrela que ilumina o caminho para o domínio celeste:

E então a imagem da grande geração de Adão será exaltada, pois antes do céu, da terra e dos anjos, aquela geração, que vem dos domínios eternos, existe. Veja, você disse tudo. Levante seus olhos e olhe para a nuvem e para a luz em seu interior e para as estrelas que estão ao seu redor. A estrela que ilumina o caminho é a sua estrela.

Judas levantou os olhos, viu a nuvem iluminada e penetrou-a. Os que estavam no chão ouviram uma voz que vinha da nuvem dizendo... grande geração... imagem...28•

Isso já provocou um razoável debate sobre as origens antigas da idéia

de que cada pessoa (ou pelo menos cada pessoa "iluminada") tem uma

estrela separada e sobre sua relevância contemporânea. E, de fato, sobre

o lugar dessa cena dentro da narrativa, Krosney diz que esse momento é "equivalente em poder dramático a boa parte do que está nos Evange-lhos canônicos"29. Meyer observa que a idéia de que cada indivíduo tem sua "estrela nativa" pertence ao tipo de cosmologia que encontramos

no diálogo de Platão, Timeu. Há algumas afinidades com a idéia de

"imortalidade astral", uma noção tão popular no mundo antigo quanto no moderno (quando a princesa Diana morreu, vários dos tributos que

lhe foram prestados expressavam a crença de que ela se foi para se jun-

tar à sua própria estrela ou mesmo para se tornar uma estrela)30. Mas o

27. Para mais detalhes sobre Judas como o "décimo terceiro", cf. EJud 44, 46 (KMW, 31-33).

28. Cf. EJud 57s. (KMW, 43s.) As elipses no fim da citação indicam lacunas consi-deráveis no texto.

29. Cf. KROSNEY, 293. 30. PLATÃO, Timeu, 41d-42b. Sobre "imortalidade astral", cf. meu livro The Resur-rection of the Son of God, London/Minneapolis, Minn., SPCK/Fortress, 2003, 57-60, 110-112, 344-346.

3 O Judas da fé e o Iscariotes da história 43

Page 35: Judas e o Evangelho de Jesus - Tom Wright

comentário mais revelador é o de Herbert Krosney, quando fecha sua

apressada narrativa da descoberta e edição do "Evangelho de Judas". A

mensagem do livro, diz ele,

revira a crença amplamente aceita de que Judas traiu seu mestre e, com isso, convida todos nós a reexaminar o que Jesus tentou ensinar. Seguir nossa estrela é uma idéia tão relevante hoje como era então31.

Temos, assim, salvação pela introspecção ou talvez salvação à Sinatra

("Eu fiz do meu jeito")". Valeu realmente a pena, podemos perguntar,

todo esse transtorno e esforço apenas para ouvir um escritor do século

II dizer o que muitos na América do Norte e em outros lugares já acre-

ditavam? Lembro-me do clímax do musical Starlight Express, quando

no final é revelado que "o brilho das estrelas está dentro de você"!

Isso seria, é claro, injusto com o texto, que é muito mais sutil. Mas

ele já indica algo da atmosfera cultural e religiosa em que o "Evangelho

de Judas" foi publicado, e algo do questionamento que devemos fazer

tanto a seus intérpretes como ao próprio texto. Porém, antes de fazer-

mos isso, devemos ver um pouco mais do "Evangelho", particularmente

suas especulações cosmológicas.

Mesmo quando Bart Ehrman, comentando o "Evangelho de Judas", quer

nos estimular a ver o documento como um esplêndido texto digno de

muita atenção por seus novos insights, ele é forçado a admitir que algumas

de suas partes são "altamente confusas e bizarras" e "extraordinárias"".

Poucas linhas lhe darão o gostinho (lembre-se de que elipses e colchetes

indicam lugares em que falta o texto no todo ou em parte):

Adamas estava na primeira nuvem luminosa que nenhum anjo jamais viu entre todos aqueles chamados "Deus': Ele... que... a imagem... e depois o aspecto [desse] anjo. Ele fez a [geração] incorruptível de Set

31. Cf. KROSNEY, 299s.

32. Referência ao verso "I did it my way", da canção My Way, interpretada por Frank Sinatra (N. do T.). 33. Cf. EHRMAN apud KMW, 86, 105.

44 JUDAS E O EVANGELHO DE JESUS

Page 36: Judas e o Evangelho de Jesus - Tom Wright

aparecer... os doze... os vinte e quatro... Ele fez setenta e dois astros apa-recerem na geração incorruptível, segundo a vontade do Espírito. Os setenta e dois astros fizeram trezentos e sessenta astros aparecerem na geração incorruptível, segundo a vontade do Espírito, de que seu nú-mero deveria ser cinco para cada.

Os doze éons dos doze astros constituem seu pai, com seis céus para cada éon, desse modo há setenta e dois céus para os setenta e dois astros e para cada um [dos cinco] firmamentos, [de um total de] trezentos e sessenta [firmamentos...]. A eles foram dadas autoridade e uma [gran-de] hoste de anjos [sem número], para glória e adoração, [e depois dis-so também] espíritos virgens, para glória e [adoração] de todos os éons e os céus e os firmamentos".

Quando li isso pela primeira vez, e outras passagens como essa, senti

uma pontada de identificação. Confesso, de certo modo, um interesse

pessoal: como bispo, recebo regularmente cartas que soam exatamente

como essa. Algumas são manuscritas, a maioria escrita com tinta verde.

Algumas são datilografadas, páginas e páginas de intermináveis espe-

culações cosmológicas, com montes de letras maiúsculas e coisas subli-

nhadas. Longe de mim concluir que o autor do "Evangelho de Judas"

deva ser comparado com as divagações de mentes confusas de nosso

próprio tempo. Só ocasionalmente ele cai nesse tipo de coisa, e isso pode

ser redimido em parte pelo fato de que o conhecimento aparentemen-

te obscuro para nós (embora não pareça sê-lo para alguns dos meus

correspondentes) pode ser um terreno familiar para seus leitores. (Não

sou muito animado, no entanto, com a explicação — ou deveria dizer

apologia? — de Meyer para esse tipo de passagem. Ele cita "Três versões

de Judas", de Jorge Luis Borges, no sentido de que tudo era uma questão

política: se, em vez de Roma, Alexandria tivesse vencido, isso seria o que

todos nós deveríamos trazer à baila".) Mas é pouco para fazer avan-

çar o caso implícito, que Meyer, Ehrman e outros tentaram seriamente

contrariar apesar de toda dificuldade nesse ponto: que o "Evangelho de

34. Cf. EJud 49s. (KMW, 35s.)

35. A explicação de Meyer pode ser encontrada em KMW, 7s.

3 O Judas da fé e o Iscariotes da história 45

Page 37: Judas e o Evangelho de Jesus - Tom Wright

Judas" é apenas aquilo de que precisamos hoje para nos ajudar a colocar

de lado a ortodoxia tradicional e adotar algo mais interessante.

Há muitas outras coisas que poderiam ser ditas sobre o próprio do-

cumento. Mas deixarei que surjam aos poucos conforme tratemos das

duas questões principais que estão agora diante de nós. Primeiro, quem somos nós para falar sobre o relacionamento entre esse novo "Evangelho" e os evangelhos canônicos — e sobre o resto do cristianismo primitivo? E, segundo, quem somos nós para falar sobre a apresentação claramente entusiasmada dessa nova descoberta de Meyer, Ehrman e seus colegas?

46 JUDAS E O EVANGELHO DE JESUS

Page 38: Judas e o Evangelho de Jesus - Tom Wright

Quando um evangelho não é um evangelho?

uando o "Evangelho de Judas" foi publicado, o Dr. Simon Gatherco-le, da Universidade de Aberdeen, foi citado na imprensa comentan-

do que era como se alguém tivesse produzido um documento que pare-cesse um diário da Rainha Vitória em que ela discutia O senhor dos anéis e sua coleção de CDs. Minha própria explicação, num sermão feito seis dias

depois da publicação do livro, foi semelhante: é como encontrar um docu-mento que parece ser um relato de Napoleão discutindo táticas com seus oficiais, mas em que falam de submarinos nucleares e bombardeiros B-52. Em outras palavras, qualquer um que conheça a história relevante deve perceber que não há como o "Evangelho de Judas" nos dar acesso à verda-deira figura histórica de Jesus de Nazaré. Ou, neste caso, à verdadeira figu-ra histórica de Judas Iscariotes. O que vemos é um personagem de ficção chamado "Jesus" falando com um personagem de ficção chamado "Judas" sobre coisas que o verdadeiro Jesus e o verdadeiro Judas não entenderiam — ou, se entendessem, teriam-nas considerado irrelevantes para o "reino de Deus", que era o motivo e o propósito de sua vida e missão comuns.

Esse ponto é notavelmente confirmado nas observações feitas por James M. Robinson sobre o "Evangelho de Judas" na Newsweek, de 17

de abril de 2006. Essa nova obra, afirma ele,

47

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não nos diz nada sobre o Jesus histórico e sobre o Judas histórico. Ela conta apenas o que, cem anos depois, os gnósticos estavam fazendo com a história que encontraram nos Evangelhos canônicos.

Deve haver, certamente, algum ressentimento acadêmico por trás

desse comentário — como na frase seguinte de Robinson: "Acho que os compradores não irão gostar do livro". Robinson, como vimos an-teriormente, e como fica claro a partir do relato de Krosney e de seu próprio livro, desejava ardentemente editar e publicar a obra, e ficou

muito desapontado com o fato de o especialista suíço Rodolphe Kasser tê-la publicado'. Mas o fato de Robinson ter tido razões pessoais para dizer o que disse não significa que aquilo não seja verdade. A questão é importante e também se reflete na maioria dos textos que Robinson

reuniu e editou, ou seja, os próprios códices de Nag Hammadi.

Tenho escrito extensamente em todos os lugares sobre Jesus de

Nazaré em seu contexto histórico e não há necessidade de citar esse

material aqui2. Mesmo que detalhes de meu próprio bosquejo sejam

controvertidos — e, evidentemente, sempre haverá espaço para mui-tas discordâncias –, acredito que o ramo principal do estudo acadê-mico de Jesus atualmente deixou de lado a fantasia do "Seminário de Jesus" e sua tentativa de produzir um perfil "objetivo" de Jesus ava-

liando os dados numa estrutura reconhecidamente reducionista. Do mesmo modo, não está provado se seria fácil para algum pensamento construir um "Jesus" historicamente verossímil a partir dos fragmen-tos dos evangelhos gnósticos, como o de "Tomé", mesmo supondo

que sejam primitivos, o que muitos duvidam apesar de convincen-tes, e às vezes incômodos, como se defende em alguns lugares. Jesus continua a ser teimosa e firmemente um personagem do judaísmo

palestino do primeiro terço do primeiro século do Tempo Comum,

1. Cf. KROSNEY, 135s., 155, 242, 245; e ROBINSON, The Secrets of Judas, especialmente 111, 130, 160s. 2. Para mais detalhes sobre Jesus em seu contexto histórico, cf., p. ex., meus Jesus and the Victory of God (Christian Origins and the Question of God, vol. 2), London/ Minneapolis, Minn., SPCK/Fortress, 1996; e The Challenge of Jesus (London/Dow-ners Grove, Ill., SPCK/IVP, 2000).

48 JUDAS E O EVANGELHO DE JESUS

Page 40: Judas e o Evangelho de Jesus - Tom Wright

não um mestre com uma sabedoria estranha e oculta, como um guru

budista ou um "revelador" gnóstico.

Particularmente, Jesus e o movimento que ele gerou continuaram ardentemente preocupados com "o reino de Deus" no sentido de que, embora reconhecidamente modificado em torno de sua própria visão e

vocação particulares, permanece reconhecível no contexto do mundo

da expectativa escatológica e apocalíptica judaica do século I. Isto é,

Jesus acreditava não que o mundo do espaço, tempo e matéria era um

erro gigantesco de uma deidade secundária, incompetente e hostil, mas que era um mundo criado pelo Deus de Abraão, Isaac e Jacó, que era o único e verdadeiro Deus, e que esse Deus estava levando a história — a

história do mundo, a história de Israel — a um grande clímax por meio do qual ele estabeleceria sua soberania e poder salvador no e para o

mundo. A vinda do reino de Deus nunca significou pessoas sendo des-

pachadas do mundo perverso para outra salvação mundana. A oração

que Jesus ensinou a seus seguidores incluía, fundamentalmente, um

pedido de que o reino de Deus viesse e que fosse feita sua vontade, "as-sim na terra como no céu" — o que teria horrorizado qualquer gnósti-

co respeitável e certamente o autor do "Evangelho de Judas". Devemos

ter isso em mente ao ler tudo o que se segue.

O que pode ser dito, então, sobre a comparação que somos convi-dados a fazer pelo uso da própria palavra "Evangelho" — isto é, a com-paração entre "Judas" e Mateus, Marcos, Lucas e João — e, no caso, "Tomé", "Filipe", "Pedro", "Maria" e os outros? Essa é uma questão

complexa e não temos espaço para uma exploração detalhada. Mas al-

guns pontos básicos devem ser tratados. Para começar, a diferença principal entre os evangelhos canônicos e

os evangelhos gnósticos é que os primeiros são principalmente narrati-vos, com o ensinamento disperso por toda a história que atinge um clímax definido, enquanto os últimos (como "Tomé") consistem sim-

plesmente num conjunto de ditos, dispostos tanto para fins de medita-ção ou memorização como para qualquer seqüência ou continuidade temática. Até este ponto, como já disse várias vezes no passado, a prin-

cipal diferença é que, enquanto os evangelhos canônicos são notícias,

4 Quando um evangelho não é um evangelho? 49

Page 41: Judas e o Evangelho de Jesus - Tom Wright

"Tomé" e os outros são conselhos. Os evangelhos canônicos contam a

história de coisas que aconteceram, embora o mundo tenha se tornado

um lugar diferente; "Tomé" e os outros oferecem uma lista de reflexões e ensinamentos sobre como se engajar numa prática espiritual diferen-

te e por meio dela alcançar a glória da desencarnação. Até este ponto,

embora os documentos gnósticos às vezes se autodenominem "evange-

lhos", eles pertencem claramente a um gênero diferente. Essa questão é abordada muito ingenuamente por James M. Robin-

son, que tem feito mais do que foi feito no último meio século para

editar, publicar e interpretar esses textos. Ele escreve:

... está claro que o Evangelho de Tomé dificilmente fora designado por seu autor original ou compilador como um Evangelho. Ele ou ela deve tê-lo chamado de um conjunto de ditos. Mas então, no esforço de serem aprovados pela Igreja como equivalentes dos Evangelhos canonizados no Novo Testamento emergente, esse conjunto de ditos foi secundaria-mente chamado de Evangelho'.

Essa diferença não é teológica ou religiosamente acidental. De manei-ra geral, os evangelhos gnósticos não acreditam que algo que aconteceu

tenha mudado o mundo. Na verdade, eles não estão interessados, como

os evangelhos canônicos, nos acontecimentos como acontecimentos, na

biografia de "Jesus" como biografia. (Um dos principais avanços do es-tudo acadêmico do Novo Testamento na última geração foi restabelecer

que os evangelhos canônicos eram construídos, e certamente eram para ser lidos, dentro da estrutura do texto biográfico antigo. Eles são mais do que isso, mas, com certeza, não menos do que isso.)4 Independen-

temente do que o "Jesus" desses "evangelhos" gnósticos tenha feito, seu

aspecto mais importante é que ele não veio para salvar o mundo, curá-lo ou mudá-lo, mas para ensinar secretamente como escapar dele.

3. Cf. ROBINSON, The Secrets °Iludas, 75s.; grifo no original. Robinson trata da mes-ma questão no "Evangelho de Filipe", no "Evangelho dos egípcios" e no "Evangelho da Verdade".

4. Para a relação entre os evangelhos e a biografia antiga, cf. Richard J. BURRIDGE, What are the Gospels? A Comparison with Graeco-Roman Biography, Cambridge, Cambridge University Press, 1992.

50 JUDAS E O EVANGELHO DE JESUS

Page 42: Judas e o Evangelho de Jesus - Tom Wright

Particularmente, nenhum dos dois sentidos óbvios de "evangelho"

no século I é relevante para os gnósticos. A referência de Isaías ao men-

sageiro de boas-novas, vindo para contar a Jerusalém que seu longo

sofrimento estava no fim e que Deus estava voltando para finalmente ser rei, é justamente o que os gnósticos não queriam ouvir'. E o uso cor-

rente de "evangelho", como uma proclamação de César e seu império,

era também irrelevante. Na verdade, como sugiro agora, isso deve ter sido parte da questão.

Tudo isso é verdade, e uma olhada em qualquer conjunto dos "evange-

lhos" gnósticos confirmará a questão: geralmente, eles são conjuntos de

ensinamentos em vez de narrativas sustentadas. Contudo, há exceções à regra, e o "Evangelho de Judas" é, pelo menos até certo ponto, uma delas. (Deveríamos mencionar também a existência de outros "evange-

lhos" que são mais parecidos com os canônicos. O "Evangelho dos Na-zarenos", por exemplo, parece ser bastante ortodoxo em sua teologia;

pelo menos Jerônimo, que o menciona, pensava assim.)

Outra exceção à regra dos "evangelhos" não-canônicos como con-

juntos de ensinamentos é o chamado "Evangelho de Pedro", que não se encaixa nem na categoria de Tomé nem na dos evangelhos canônicos. Ele oferece uma variação estranha e de certo modo surreal das narrati-

vas da paixão e ressurreição dos evangelhos canônicos (tentativas de

defender sua independência são agora geralmente consideradas fracas-

sadas). Ele contém elementos que alguns vêem como gnósticos (Jesus

não sentiu dor na cruz) e tem uma tendência antijudaica forte, consis-

tente e abrangente que, como vimos, pode do mesmo modo pertencer ao gnosticismo por sua desvalorização do mundo material6. Particular-mente, e em forte contraste com os evangelhos canônicos, "Pedro" —

justamente por não colocar qualquer valor positivo na história judaica

5. Cf. Is 40,9; 52,7.

6. O "Evangelho de Pedro" pode ser encontrado em J. K. ELLIOTT (org.), The Apo-cryphal New Testament, Oxford, Clarendon, 1993, 150-158. Vale lembrar que alguns dos escritores ortodoxos do século II — e do século III — declaram que mártires não sentem dor.

4 Quando um evangelho não é um evangelho? 51

Page 43: Judas e o Evangelho de Jesus - Tom Wright

ou nas profecias bíblicas — não explica por que os eventos da morte e ressurreição de Jesus na verdade cumprem algo, a menos que seja para

demonstrar que o povo judeu é culpado e merece punição. A única

conclusão, segundo "Pedro", é de que Jesus "prega para os que estão adormecidos"7. Mas não fica claro o que isso significa exatamente, de

onde veio a idéia e como, de qualquer modo, a crucificação de Jesus cumpriu essa "pregação". Assim, "Pedro" é notícia no sentido de que é um relato de coisas que aconteceram, incluindo uma cena extraordiná-ria da ressurreição em que Jesus sai da tumba carregado por outros dois homens e seguido pela cruz. Mas não há explicação no texto tal como

o temos (admitindo, é claro, que como está é fragmentário) de por que isso poderia ser boa-nova, euangelion, "evangelho".

Aqui, o "Evangelho de Judas" talvez pudesse dar uma contribuição nova. E de certo modo dá. Se é verdade que o mundo material é um lu-gar de perversidade, dor e desastre, e que a única coisa que os humanos precisam fazer é escapar tanto dele como do deus que tão estupidamen-te o criou, então poderia ser considerado "boa-nova" o fato de Jesus ter ordenado a um de seus amigos que o entregasse à morte — não porque ele poderia morrer pelos pecados do mundo, mas porque poderia levar à saída do mundo material para os céus desencarnados.

É justamente isso o que dizem aqueles que editaram e comentaram o "Evangelho de Judas". A traição de Judas, em vez de ser o prelúdio

para o clímax como nos evangelhos canônicos, é o próprio

clímax desse relato: não a morte e ressurreição de Jesus, mas o ato fiel de seu companheiro mais íntimo e fiel seguidor, que o entregou à mor-te para que ele pudesse voltar a sua morada celeste8.

Judas, tendo sido ordenado a sacrificar "o homem que me reveste", "não poderia fazer menos por seu amigo e confidente, e o traiu. Essa é a boa-nova do Evangelho de Judas". Mas a narrativa mais ampla e implíci-

7. Cf. "Evangelho de Pedro" 10,41s., in ELLIOT, op. cit., 157. A questão parece rela-cionada a 1Pd 3,19s., cuja interpretação é notoriamente dificil.

8. Cf. EHRMAN apud KMW, 102.

9. MEYER apud KMW, 167.

52 JUDAS E O EVANGELHO DE JESUS

Page 44: Judas e o Evangelho de Jesus - Tom Wright

ta em que esse era o clímax, certa e evidentemente, não era a história que

os judeus do século I em busca do reino contavam, a história do Deus

de Abraão fazendo promessas por meio de seus profetas, promessas de libertar Israel e criar seu reino tanto na terra como no céu, mas a história que os gnósticos do século II contavam, a história de um deus superior

que triunfa sobre o deus de Israel, perverso e criador do mundo, e possi-bilita a alguns humanos, guiados por uma misteriosa figura reveladora,

descobrir a verdadeira luz divina dentro de si mesmos e então se libertar

da ordem criada, do corpo fisico criado e de todas as preocupações que o mundo material implica. Até aqui, e do ponto de vista dos evangelhos

canônicos, o "Evangelho de Judas" é um antievangelho: a história da che-gada de notícias que são boas apenas para quem virou o mundo de cabe-ça para baixo. É como se um mensageiro chegasse sorrindo ao campo de

prisioneiros para dizer que a guerra fora vencida — apenas para revelar

que o outro lado vencera e que todos os prisioneiros seriam mortos.

Então, colocar "Judas" ao lado de Mateus, Marcos, Lucas e João é descobrir rapidamente o que eles têm e o que os evangelhos gnósticos

não têm: um tema tripartido que os perpassa a todos de maneiras dife-rentes, mas teologicamente coerentes.

Primeiro, eles relatam como a longa história de Deus e de Israel che-

gou ao seu clímax ordenado por Deus — referindo-se, evidentemente,

ao Deus criador, ao Deus de Abraão, Isaac e Jacó. Os evangelhos canô-

nicos fazem isso de várias maneiras, tanto na forma como no conteúdo, mas esse é o tema principal de cada um deles. E essa é justamente uma

das coisas que os evangelhos alternativos, inclusive "Pedro" e "Judas", estavam preocupados em eliminar totalmente. "Tomé" e outros con-

juntos de ditos a eliminam estruturalmente, uma vez que simplesmente

não há uma sinopse mais ampla, nenhum gancho com a história de Is-

rael, nenhum sentido de promessas tão esperadas sendo finalmente rea-lizadas. Além disso, "Tomé" e os outros às vezes indicam seu desejo de

eliminá-la no próprio conteúdo: "Eu destruirei este Templo' , diz o "Je-sus" de "Tomé", "e ninguém será capaz de reconstruí-lo"10. O judaísmo

10. Esta versão do dito do "Templo" é do "Evangelho de Tomé", dito 71.

4 Quando um evangelho não é um evangelho? 53

Page 45: Judas e o Evangelho de Jesus - Tom Wright

e suas instituições são irremíveis. Nisso simplesmente não há concor-dância entre os evangelhos gnósticos e seus predecessores canônicos.

Segundo, os evangelhos canônicos nos contam a história de Jesus de

modo que se prepare o terreno para a vida em andamento dos seguido-

res de Jesus, os que estão "no Caminho" (como se dizia então), aqueles

que ficaram conhecidos como "cristãos", isto é, "o povo do Messias".

Essa é a verdade subjacente ao muito enfatizado e velho aspecto da crí-

tica-padrão: que o material dos evangelhos, tanto das pequenas unida-

des como dos grandes planos editoriais, foram definidos, pelo menos

em parte, pelas necessidades da Igreja emergente.

Isso não quer dizer que o material foi criado com esse propósito, sem nenhum contato com a realidade. Eu e outros defendemos essa questão em toda parte. Há muita coerência histórica e uma ausência

significativa de outros temas que deveriam estar incluídos e ser força

diretora para essa teoria se sustentar. Um exemplo óbvio é o caso da

circuncisão: sabemos que essa foi uma das mais ferrenhas e difíceis

controvérsias da igreja primitiva, mas ninguém nunca pensou em in-

ventar um "dito de Jesus" que a abordasse'. Contudo, continua bas-

tante evidente o caso em que histórias de Jesus foram contadas simul-taneamente para dizer não somente, como no primeiro caso acima,

"é assim que a história de Israel alcançou seu clímax", mas também

"esses são os acontecimentos que geraram, e continuam a sustentar e

definir, a vida do movimento cristão". Mais uma vez, os evangelhos gnósticos não têm a menor vontade

de contar tal história. Obviamente, há uma comparação sombria: eles estão contando, supostamente, a história de como Jesus realmente deu

todos os tipos de ensinamentos secretos a discípulos escolhidos, en-

sinamentos que foram transmitidos boca a boca pelos que "sabiam".

Mas os escritos gnósticos são elaborados para dizer, entre outras coisas, que "Jesus" e Seu ensinamento não validavam ou definiam a vida da

11. Isto é, ninguém até o "Evangelho de Tomé", dito 53. Sobre esta questão, cf. N. T. WRIGHT, The New Testament and the People of God (=NTPG), London/Minneapo-lis, Minn., SPCK/Fortress Press, 1992, 421s.

54 JUDAS E O EVANGELHO DE JESUS

Page 46: Judas e o Evangelho de Jesus - Tom Wright

igreja principal que então se desenvolvia por meio dos mestres e líde-

res da era pós-apostólica, como Inácio, Clemente, Policarpo, Justino e outros. "Judas" rejeita explícita e desdenhosamente a igreja emergente e suas práticas, comparando-as aos que se engajam na imoralidade e

na violência12. Em outras palavras, os evangelhos gnósticos tomavam

muito cuidado para não contar a história de Jesus de modo que forne-

cessem fundamento para a igreja proto-ortodoxa.

Terceiro, obviamente mais importante, os evangelhos canônicos

contam a história do próprio Jesus e o fazem de modo que afirmam, pá-gina após página, que foi por meio de sua vida pública, morte e ressur-

reição que o reino de Deus foi de fato anunciado tanto na terra como no

céu. Essa afirmação, é claro, foi contestada de várias maneiras. Muitos

judeus, daquela época até hoje, disseram que obviamente o reino não

veio, porque o mundo continua cheio de perversidade — ao que os cris-tãos responderam regularmente, como o próprio Jesus parece ter feito,

que o reino vem como uma semente que frutificará e não como um

único relâmpago. Mas os relâmpagos também estão lá e são importan-

tes; é impensável que os evangelistas canônicos não estivessem profun-

damente preocupados com a questão. Sua resposta, consistente (como

já argumentei) com a mentalidade do próprio Jesus, é que para que o

reino de Deus viesse o Messias teria de lutar o grande combate contra o

mal e, assim, surgir triunfante, proclamando o novo mundo de Deus, o mundo em que a própria morte fora derrotada. É porque os evangelis-

tas acreditavam nisso que contavam a história como contavam.

É o que, mais uma vez, os evangelhos gnósticos, por razões óbvias,

tentam evitar a qualquer custo. Eles não vêem Jesus inaugurando o rei-no de Deus em um sentido que um judeu do século I pudesse reconhe-

cer, nem mesmo no sentido cuidadosamente equilibrado que o próprio Jesus articulou. Eles certamente não vêem sua morte como a realização

de uma vitória, exceto como o tipo de vitória imaginada em "Judas", em

12. Para a rejeição da igreja emergente pelo "Evangelho de Judas", cf. EJud 38-43 (KMW, 25-29). Surpreendentemente, nenhum dos primeiros comentadores desse do-cumento discute seu horror à licenciosidade sexual, inclusive à prática homossexual.

4 Quando um evangelho não é um evangelho? 55

Page 47: Judas e o Evangelho de Jesus - Tom Wright

que se permite felizmente que o corpo morra para que o espírito possa

voar livremente. E eles definitivamente não acreditam na ressurreição de Jesus. Ela foi totalmente reinterpretada. Durante o primeiro século após a morte de Jesus, todas as referências à ressurreição significavam

o que essa palavra significava no contexto mais amplo do mundo clás-sico (onde o conceito era conhecido, mas firmemente negado) e judeu

(onde a maioria, seguindo os fariseus, acreditava nela), ou seja, uma

nova vida corporal após um período corporalmente morto13. (Esse é o motivo pelo qual, incidentemente, era tão ridículo que os jornais fizes-

sem estardalhaço sobre um evangelho gnóstico recém-publicado que negava, ou mais precisamente ignorava, a ressurreição. Você poderia muito bem esperar que o presidente Bush incluísse o Texas em sua lista

de estados que constituem o "eixo do mal". É claro que ele não incluiria o Texas; é claro que os gnósticos não queriam uma ressurreição.)

Um último contraste entre os evangelhos canônicos e os gnósticos. É indiscutível que os evangelhos canônicos são anteriores e os gnósticos posteriores. (Por anteriores quero dizer mais ou menos uma geração após a morte de Jesus; por posterior quero dizer não antes que cerca da

metade do século II.) Gritos de protesto se levantam quando se diz esse tipo de coisa, mas tudo indica que essa é a análise correta.

Reconheço que não sabemos exatamente quando os quatro evange-lhos canônicos foram escritos. Algumas almas corajosas ainda tentaram sugerir que nós (ou pelo menos eles) na verdade sabemos, mas é notá-

vel como são imprecisos os argumentos atuais e a que os documentos darão margem. É muito provável que pelo menos Marcos tenha escrito

bem antes de 70 d.C. e é muito improvável que Mateus, Lucas e João tenham escrito depois de 80 ou, no máximo, 90. Na verdade, não há nenhuma boa razão para que todos eles não sejam consideravelmente

13. Defendi detalhadamente esse ponto em The Resurrection of the Son of God, Lon-don/Minneapolis, Minn , SPCK/Fortress, 2003. Discuto a reinterpretação gnóstica da "ressurreição" no capítulo 10. Quando Elaine Pagels cita a crença ortodoxa na ressurreição de Jesus como um tipo de posição extrema (The Gnostic Gospels, 113), ela mostra que simplesmente não entendeu como os primeiros cristãos pensavam.

56 JUDAS E O EVANGELHO DE JESUS

Page 48: Judas e o Evangelho de Jesus - Tom Wright

anteriores. O velho "consenso" acadêmico sobre uma data relativamen-te tardia foi se reduzindo gradualmente a partir da maioria dos pontos

de vista durante a última geração, embora a velha ortodoxia crítica con-tinue a ser ensinada, como o sorriso do gato de Alice quando o resto do

gato desaparecera. Contudo, de novo, nós simplesmente não sabemos.

O que sabemos é que na época em que Inácio de Antioquia estava escrevendo suas cartas, por volta da primeira década do século II, ele citava ditos de Jesus que encontramos agora nos evangelhos canônicos,

especialmente em Mateus e João. Não está claro se suas fontes eram

orais ou escritas; mas certamente ele conhecia numerosos ditos de Jesus

que encontramos agora em nossos evangelhos canônicos escritos, e é claro que ele os via, e presumia que seus leitores os vissem, como au-

torizados. A noção popular de que não havia nada como um conjunto reconhecido de textos bíblicos até o século III ou mesmo até o século IV e que todo tipo de documento circulava numa massa indiferenciada até

que o expediente político sugerisse a seleção dos livros que tratassem de

um assunto particular é pura bobagem, como James Robinson admite

tacitamente na passagem já citada sobre "Tomé". Os evangelhos canô-nicos eram lidos e citados como carregados de autoridade no início e

em meados do século II, enquanto nem mesmo ouvimos algo sobre os não-canônicos até meados ou final desse século. Tentativas de pos-

tular versões anteriores (em alguns casos muito anteriores) de alguns

dos evangelhos alternativos, como "Tomé" ou "Pedro", geralmente não eram bem-aceitas fora do círculo de uma barulhenta minoria norte-

americana. De fato, fortes argumentos foram desenvolvidos recente-mente para mostrar que, apesar das tentativas desesperadas de empur-rar "Tomé" para os primeiros anos do século II, ou mesmo do século I, a probabilidade maior é de que, como os outros documentos de Nag

Hammadi e o próprio "Evangelho de Judas", ele tenha sido composto

ou compilado na metade ou no final do século II14.

14. Para a datação de "Tomé", cf. especialmente N. PERRIN, Thomas and Tatian: The Relationship Between the Gospel of Thomas and Tatian's Diatessaron, Academia Biblica, Leiden/Atlanta, Ga., Brill/Scholars Press, 2002.

4 Quando um evangelho não é um evangelho? 57

Page 49: Judas e o Evangelho de Jesus - Tom Wright

Não tenho problema em dizer que alguns dos evangelhos não-ca-nônicos podem preservar, aqui e ali, memórias genuínas de Jesus que

não sobreviveram em outros lugares. Mesmo tendo tido uma vida pú-

blica curta, é provável que Jesus dissera muitas coisas que não estão

reunidas nos evangelhos canônicos; João, de fato, diz o mesmo, e Atos lembra um dito de Jesus que não aparece em Lucas nem em qualquer outro lugar15. Mas os assim chamados evangelhos gnósticos não são um testemunho verdadeiramente independente. Eles são, muitas ve-zes, claramente derivados da tradição canônica. Essa questão já foi su-

ficientemente abordada, embora ainda resista em muitos lugares. (Um

argumento típico é que onde "Tomé" contém parábolas como as que

estão nos evangelhos sinópticos ele perde a interpretação "alegórica"; portanto, ele representa uma etapa anterior da tradição, antes que a

igreja "alegorizasse" os ditos simples mas profundos de Jesus. Resposta: pode-se demonstrar, de fato, que as parábolas em questão pertencem à tradição apocalíptica judaica, em que uma narrativa e uma interpre-tação quase-alegóricas formariam um todo indivisível; por essa razão

alguém do século II trocou, ao remover a interpretação de sua forma original, uma visão apocalíptica judaica do século I pelo ensinamento

da sabedoria gnômica'6.) Seria necessário um estudo muito longo para

defender isso em detalhes, mas o aspecto-chave tem a ver com o caráter dos diferentes escritos.

Eis as possibilidades históricas alternativas:

1. Um movimento iniciado como um movimento-em-direção-ao-reino-de-Deus judeu-palestino do século I, expresso em linguagem

apocalíptica e elaborado imaginariamente para se referir à chegada de grandes eventos e investi-los de importância teológica, rapidamente

fez surgir uma literatura que mantinha essa perspectiva. Essa litera-tura gestou gradualmente, por meio de um transplante para um dife-rente campo cultural e filosófico, uma visão de mundo e uma litera-

15. Cf. Jo 21,25; At 20,35.

16. Para mais detalhes sobre a dependência dos evangelhos gnósticos dos evange-lhos canônicos, cf. Jesus and the Victory of God, 230-239.

58 JUDAS E O EVANGELHO DE JESUS

Page 50: Judas e o Evangelho de Jesus - Tom Wright

tura diferente em que eram usadas quase as mesmas linguagens, mas

na qual a visão de mundo em questão era a do dualismo helenístico.

2. Jesus de Nazaré realmente ensinou um tipo de gnosticismo, ou mes-

mo (como às vezes se sugere) um tipo de budismo, uma espiritua-

lidade de autodescoberta por um lado e fuga por outro, e isso foi

então traduzido pelos evangelistas canônicos e/ou suas fontes num

fictício movimento-em-direção-ao-reino-de-Deus judeu-palestino

do século I, complementado com as notavelmente bem adequadas e

ajustadas tradições que tinham o extraordinário ser humano em seu

centro, enquanto a verdadeira mensagem de e sobre Jesus foi preser-

vada nas tradições que em outros aspectos beiram todas as caracte-

rísticas de um movimento helenizado, platonizado, do século II.

Como historiador, acredito que a primeira dessas seqüências é veros-

símil e natural, a segunda inverossímil e forçada. Quando deparo com

esse tipo de escolha em meu trabalho — ou mesmo na vida cotidiana —, sei que direção devo seguir. Quando deparo, como nesse caso, com um

documento que claramente está reagindo contra uma visão já estabele-

cida — insistindo que Jesus não é o filho de Deus, que a eucaristia e os

doze apóstolos são irrelevantes e assim por diante —, não há dúvida. A

reação vem depois do ponto de vista contra o qual está reagindo.

Tudo isso simplesmente reforça os pontos tratados acima sobre as

diferenças radicais de caráter e gênero, assim como de teologia, entre os

evangelhos canônicos e suas distantes relações gnósticas. A total incom-patibilidade entre os dois perfis de Jesus, o canônico e o gnóstico, des-

mente a sugestão, já apontada na literatura sobre "Judas", de que os dois

tipos são basicamente complementares. Elaine Pagels, uma das princi-pais especialistas em gnosticismo primitivo e uma das maiores defenso-

ras de um Jesus de estilo "gnóstico", sugere que os evangelhos gnósticos e canônicos deveriam ser lidos simultaneamente, utilizando o texto ca-

nônico para o ensino público e básico, e o gnóstico para o ensino priva-do e avançado. Os textos gnósticos, sugere ela, eram muito apreciados

porque eram feitos para pessoas que buscavam níveis mais profundos de

disciplina e entendimento espiritual. É nessa base que Herbert Krosney

4 Quando um evangelho não é um evangelho? 59

Page 51: Judas e o Evangelho de Jesus - Tom Wright

sugere, citando Pagels, que "o 'Evangelho de Judas' oferece uma narra-

tiva alternativa, mas não desafia as bases da fé cristã. Em vez disso, ele

pode aumentar essa fé ao fornecer uma visão adicional da personalidade de Jesus"17. Com isso, Pagels, na verdade, está simplesmente ecoando a

posição que ela mesma mostrou ser a do ramo oriental do gnosticismo

valentino, representado por mestres como Ptolomeu e Heracleon, e por documentos como a "Interpretação do conhecimento"".

Talvez se possam fazer algumas concessões a Krosney, um premiado

documentarista e não um historiador antigo, quando falha na conside-ração da diferença entre os evangelhos canônicos e gnósticos. Mas a afirmação de Elaine Pagels é bastante surpreendente. Ela só poderia ser mantida por uma releitura sistemática e sustentada, e na verdade uma leitura radicalmente equivocada, dos próprios evangelhos canônicos.

Quando tudo desmoronava, Mateus, Marcos, Lucas e João acreditaram

que Jesus era realmente o Messias de Israel e que ele de fato veio para trazer o reino de um único Deus criador assim na terra como no céu.

"Judas", assim como "Tomé" e outros textos gnósticos, acreditava que teria havido um engano desastroso e que Jesus veio para mostrar a saída do judaísmo, da perversa ordem criadora, para um domínio completamente diferente. Na verdade, Pagels está bastante consciente

disso, como indica sua própria síntese:

Cristãos não-iniciados adoravam equivocadamente o criador como se fosse Deus; eles acreditavam em Cristo como aquele que os salvaria do pecado e que ressuscitara corporalmente dos mortos: eles o aceitavam pela fé, mas sem entender o mistério de sua natureza — ou de suas próprias. Os que recebiam a gnosis reconheciam Cristo como o envia-do pelo Pai de Verdade, que lhes revelava que suas próprias naturezas eram idênticas à dele — e de Deus19.

Esses dois conjuntos de crenças são como óleo e água. Se não conse-guimos enxergar isso, simplesmente não estamos prestando atenção

17. PAGELS, apud KROSNEY, 278s.

18. PAGELS, The Gnostic Gospeis, 126s.

19. Cf. ibid.

60

JUDAS E O EVANGELHO DE JESUS

Page 52: Judas e o Evangelho de Jesus - Tom Wright

nos textos. Pensar que poderia haver uma progressão do primeiro para

o segundo, como ensino básico e avançado do mesmo assunto, é sim-

plesmente confundir os próprios desejos com a realidade, tanto no sé-culo II como atualmente.

Em suma, "Tomé", "Judas" e os outros podem de fato ter se denomi-

nado "evangelhos" (embora, como vimos, alguns especialistas, como

Robinson, duvidem de que esse seja o modo como seus autores origi-nais os viam). Porém, uma vez que os vêem assim ou que alguém os

rotula assim, a palavra em si muda de sentido. Para os cristãos primi-tivos, a palavra "evangelho" estava, por um lado, enraizada no Antigo Testamento, e estava, por outro lado, confrontando um "evangelho"

muito diferente que circulava pelas ruas. Esse "evangelho" muito dife-

rente era o "evangelho" de César. Esse é o ponto em que descobrimos

o que talvez seja a diferença mais significativa entre gnósticos (embora muitos pudessem pensar que estavam reverenciando Jesus) e cristãos,

representados por pessoas como Inácio, Justino e Ireneu. Para explorar

isso, precisaremos de outro capítulo.

4 Quando um evangelho não é um evangelho? 61

Page 53: Judas e o Evangelho de Jesus - Tom Wright
Page 54: Judas e o Evangelho de Jesus - Tom Wright

Senhor do mundo ou fugitivo do mundo?

1_4t u disse que os evangelhos canônicos continham três histórias: a his-

etória de Israel atingindo seu clímax; a história da igreja emergente

sendo lançada por meio da obra de Jesus; e a história do próprio Jesus

inaugurando o reino de Deus — do Deus de Israel! — por meio de sua

vida pública, morte e ressurreição. Mas outra história paira em segun-

do plano: a história de uma confrontação antiga que atinge seu clímax

após séculos de desvios e escaramuças.

Essa é a história do Deus criador, do único Deus, o Deus de Israel,

por um lado, confrontando por outro lado os deuses que dizem con-

trolar o mundo atual — mais particularmente, os deuses que dizem

ser os mestres do mundo por meio de seus agentes, ou mesmo de suas

individualidades personificadas, nas pessoas de imperadores e tiranos.

É a história de YHWH e Babilônia, como contada por Isaías 40-55; de

Daniel na cova dos leões e dos monstros e o "filho do homem" em Da-

niel 7; da vitória providencial de Judas Macabeu sobre o sírio megalo-

maníaco; do Rabino Akiba e seu nobre mas fútil apoio a "Bar Kochba", o "filho da estrela", como a última esperança de Israel contra o poder

da Roma pagã. Essa é uma das histórias judaicas mais importantes; é

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Page 55: Judas e o Evangelho de Jesus - Tom Wright

do que basicamente trata a linguagem do "reino-de-Deus"; é parte do

contexto de todos os quatro evangelhos canônicos. No meio dessa história, totalmente óbvia para quase todos do sé-

culo I e surpreendentemente opaca (assim parece) para quase todos

no século XXI, está a história de Jesus e César. Se Jesus estava anun-ciando o reino de Deus, ele sabia, os discípulos sabiam, os chefes da igreja sabiam, Herodes sabia e, finalmente, Pilatos sabia (embora todos

ficassem confusos e perplexos em menor ou maior grau) que isso tinha

a ver pelo menos com uma transferência de poder e autoridade. César,

como muitos tiranos antigos, reivindicava divindade ou pelo menos

quase-divindade ("filho de deus", uma vez que imperadores eram habi-

tualmente divinizados por seus herdeiros e sucessores logo após sua morte). A ascensão de César e seu aniversário eram ocasiões de "boa-

nova": euangelion em grego, a mesma palavra do Novo Testamento. A própria Roma era deificada e, como qualquer deusa que se respeite, ela

dizia conferir bênçãos a seus devotos — justiça, liberdade, paz, salva-

ção, as ostentações imperiais de costume. Se Jesus estivesse falando de um reino de Deus tanto na terra como no céu, então, o que quer que

ele quisesse dizer com isso (e ele gastou um bom tempo "explicando"

em parábolas que eram elas mesmas, aparentemente, elaboradas para serem crípticas, para manter as pessoas curiosas e também para manter

afastado o perigo no momento), a única coisa que não quis dizer foi:

"Eis uma nova forma de espiritualidade que o capacitará a descobrir

uma divindade profunda dentro de si mesmo e assim livrar-se dos pro-blemas e dos jogos de poder dentro do perverso mundo atual".

Nem a igreja primitiva recuou da conclusão de que a mensagem e a realização de Jesus eram para ser vistas em termos da antiga confronta-ção judaica entre o reino de Deus e os reinos do mundo. O Jesus ressus-citado de Mateus afirma que toda a autoridade no céu e na terra lhe foi

dada; essa é a base sobre a qual envia seus seguidores para fazerem dis-

cípulos, batizar e ensinar. O Jesus de Marcos afirma que o "evangelho"

deve ser proclamado a todas as nações — num mundo em que já havia um "evangelho" rondando o mundo mediterrâneo, ou seja, a "boa-no-va" de César. O Jesus de Lucas ordena a seus seguidores que anunciem

64

J UDAS E O EVANGELHO DE JESUS

Page 56: Judas e o Evangelho de Jesus - Tom Wright

um novo modo de vida a todas as nações, a começar por Jerusalém, e

ele continua a história até que o emissário desse "evangelho" chegue a

Roma e pregue lá, sob o nariz de César, "aberta e desimpedidamente". O Jesus de João fica diante de Pilatos, representante de César, e afirma que ele é realmente um rei, mas não do mesmo tipo de César. Sua rea-leza não é deste mundo; isto é, sua origem vem de outro lugar; mas

com certeza é para este mundo'. E o evangelho de João termina, como

todos os outros, não com uma espiritualidade escapista personificada por Jesus e que deve ser imitada por seus seguidores, mas com a nota da criação renovada e de Jesus como seu Deus e Senhor2.

O mesmo assunto é tratado repetidamente por Paulo, como mostrei detalhadamente em outra obra'. Para Paulo, Jesus é o Senhor e, portan-

to, César não o é. A atitude de Paulo diante das autoridades imperiais

tem sido freqüentemente mal-entendida, porque Romanos 13,1-7 é

lido fora do contexto e sem considerar os múltiplos sinais que estão espalhados naquela carta, sem falar em Filipenses e 1 Tessalonicenses

em que o assunto é claro e pronunciado. É Paulo quem toma a palavra parousia, "aparição real", que, diferentemente de seus termos-chave,

não é extraída do Antigo Testamento grego, e usa-a para manter juntos (a) a crença judaica no "dia do Senhor", agora repensada em torno de

Jesus, e (b) sua crença de que Jesus estava roubando a cena de César. "Nossa cidadania está no céu", ele escreveu em Filipenses. Mas não

quis dizer: "então devemos procurar a melhor e mais rápida maneira de ir para lá e deixar para trás este mundo perverso e nossos corpos des-

prezíveis". A lógica da cidadania não funciona assim. Roma instalou colônias, geralmente de velhos soldados, não para que pudessem retor-

nar à sua cidade-mãe quando se aposentassem, mas justamente para que não voltassem; sua missão era levar a influência romana aos países

1. Jo 18,36. A frase-chave não deve ser traduzida "meu reino não é deste mundo", embora Jesus queira dizer que sua realeza nada tem a ver com este mundo. Em grego, ek tou kosmou toutou.

2. Mt 28.18-20; Mc 13,10; 14,9; Lc 24,47; At 28,30s.; Jo 18,29-19,16; 20 e 21 passim. 3. Paul: Fresh Perspectives, London/Minneapolis, Minn., SPCK/Fortress Press, 2005, cap. 4. Nos EUA, o título dessa obra é Paul in Fresh Perspective.

5 Senhor do mundo ou fugitivo do mundo? 65

Page 57: Judas e o Evangelho de Jesus - Tom Wright

e sociedades onde estivessem. E, se eles encontrassem dificuldades no

processo, César iria de Roma até lá, não para resgatá-los e levá-los de

volta para casa em segurança, mas para transformar sua situação, sub-

jugando todos os possíveis inimigos com seu poder irrefreável. Sim,

afirma Paulo: "nossa cidadania está registrada nos céus, de onde espera-mos ardentemente o Senhor Jesus Cristo, como Salvador. Ele transfor-

mará nosso corpo tão miserável, tornando-o conforme ao seu corpo

glorioso, pelo poder que também o torna capaz de submeter a si todas

as coisas''. Isso é exatamente o oposto do gnosticismo e com o efeito exatamente oposto. O gnóstico pode fugir do enfrentamento político

no mundo da espiritualidade privada. O cristão paulino deve confiar

no verdadeiro Senhor do mundo e esperar para ver as coisas acontece-rem, mesmo, se necessário, ao preço do martírio.

O martírio, naturalmente, veio cedo demais para os que abraçaram

essa visão do século I, judaica, primitiva, baseada em Jesus, do reino de

Deus tanto na terra como no céu.

O exemplo clássico no Novo Testamento é o livro do Apocalipse. Repetidamente o autor, abordando uma situação em que muitos cris-

tãos já haviam sido mortos e muitos outros provavelmente enfrenta-

riam a morte, utiliza a linguagem e o imaginário do Antigo Testamento

e do Apocalipse judeu para afirmar que o reino de César era uma fraude

e que o Deus que fez o mundo, o único Deus que toda a criação adora,

estava levando adiante seu antigo plano para recuperar sua maravilho-

sa criação dos poderes usurpadores do mal, nada menos que os poderes

do império pagão. O livro é, evidentemente, longo e complexo, mas

uma coisa é cristalina: a visão final, da Nova Jerusalém descendo do céu à terra, é a rejeição total de qualquer tipo de soteriologia gnóstica por um lado e a afirmação definitiva da intenção política de outro. Jesus é

o "Rei dos reis e o Senhor dos senhores", e, na frase de Paulo, diante de

seu nome todo joelho deverá dobrar-se'.

4. F1 3,20s.

5. Ap 21,2; 17,14; 19,16; F12,10.

66

JUDAS E O EVANGELHO DE JESUS

Page 58: Judas e o Evangelho de Jesus - Tom Wright

É claro que os mesmos livros que falam tão claramente do reino de Deus tanto na terra como no céu ( desde que aprendamos a lê-los como um leitor do século I os leria, em vez de desfigurá-los com a divisão artificial entre "religião" e "vida real" que foi moda nos últimos 200 anos) também falam claramente do tipo de reino totalmente diferente, do tipo de poder completamente diferente que isso envolve. Não é o caso de Jesus ter o mesmo tipo de poder que os governantes do mun-do, ou um pouco mais do que isso. Antes, ele personifica e representa um tipo de poder diferente, um tipo de reino inteiramente diferente. Esse é o momento em que muitos — não só os defensores do gnosti-cismo, mas também os que simplesmente preferem uma vida tranqüila — aproveitaram para dizer: "Ah, sim; é porque Jesus veio para trazer um reino espiritual e não político".

Mas as passagens que já citei descartam essa conclusão — como se ela já não tivesse sido descartada pela história da igreja nos primeiros dois séculos, que poderia facilmente ter dado uma desculpa qualquer e, assim, evitado uma boa dose de problemas, lágrimas e sangue. O reino "espiritual" que Jesus de fato veio trazer era o governo que irrompe for-talecido pelo espírito do único Deus verdadeiro no mundo criado que, embora corrompido por rebeldes, ainda permanece seu e ainda perma-nece amado. O grande tema da carta de Paulo é precisamente a justiça de Deus, o desejo de Deus de endireitar o mundo definitivamente, trazendo com isso uma promessa de salvação não do mundo, mas para o mundo6. Contudo, essa promessa não gera e sustenta o tipo normal de revolução política ou militar, mas uma animada celebração da vitória de Jesus, o Messias, sobre a própria morte, a ultima arma do tirano, de forma que a cruz, que foi o símbolo do odiado governo de César, torna-se agora o símbolo das profundezas inalcançáveis do amor no coração do Deus criador, o Deus de Israel. E a vitória sobre a morte não significa ser coni-vente com ela, encarando a própria morte como uma amiga, como faz o "Evangelho de Judas". A vitória sobre a morte significa encará-la como o inimigo último, derrotado por Jesus e agora incapaz de atemorizar'.

6. Cf. especialmente Rm 8,18-27. 7. Cf. 1Cor 15,20-28.

5 Senhor do mundo ou fugitivo do mundo? 67

Page 59: Judas e o Evangelho de Jesus - Tom Wright

Essa é a teologia que sustentou a igreja durante os primeiros anos da perseguição. Uma olhada rápida em Inácio de Antioquia (que morreu

por volta de 110 d.C.) nos leva ao ponto; as pessoas às vezes falam como se Inácio estivesse interessado apenas em seu próprio poder episcopal

e prestígio, mas na verdade ele estava seguindo seu Senhor crucificado

com pleno conhecimento de onde aquilo tudo rapidamente o levaria.

Policarpo, bispo de Esmirna na primeira metade do século II, é bastan-

te claro sobre o enfrentamento de dois mestres rivais: "Eu o servi por oitenta e seis anos", ele diz ao oficial que está tentando fazê-lo denun-

ciar Jesus, "e ele nunca me fez nada errado; como posso blasfemar meu rei que me salvou?". Policarpo sabia perfeitamente que "rei" e "salva-

dor" eram títulos de César e que sua afirmação de lealdade a Jesus o

levaria direto à morte'. Assim também com o Justino Mártir: claro em

suas simpatias, pronto a ouvir e dialogar, mas quando exigiram jurar lealdade a César em vez de a Jesus ele se recusou sem titubear9.

Particularmente — e isto é mais que uma passagem interessante

para nossa história — há os mártires de Viena e Lião. Um relato quase

contemporâneo dos horríveis sofrimentos da comunidade cristã nessas

duas importantes cidades da Gália é preservado na posterior História

Eclesiástica, de Eusébio1°. A perseguição, apoiada pelo imperador em Roma, varreu as cidades buscando cristãos por todos os lados, acusan-do-os (como faz o "Evangelho de Judas") de todo tipo de perversidade

imoral — práticas sexuais não-naturais, canibalismo e coisas do tipo.

Os perseguidores, aparentemente, faziam questão de queimar os cor-

pos e espalhar as cinzas no rio Ródano, para que deles nada restasse.

Então, chega o ponto significativo:

E eles faziam isto como se pudessem vencer Deus e roubar-lhe seu renas-cimento, a fim de que, como diziam, "não pudessem ter qualquer espe-rança de ressurreição, acreditando que traziam uma adoração estranha e nova, e menosprezavam os medos, caminhando pronta e alegremente

8. Martyrdom of Polycarp 9,3. 9. Martyrdom of Holy Martyrs, 4 (ANF 1.306). 10. EUSÉBIO, History of the Church (HE) 5.1.1-5.2.8.

68 JUDAS E O EVANGELHO DE JESUS

Page 60: Judas e o Evangelho de Jesus - Tom Wright

para a morte. Agora, vejamos se eles se levantarão novamente e se o seu Deus é capaz de ajudá-los e livrá-los de nossas mãos"".

Esses martírios ocorreram em Viena e Lião em 177 d.C. Entre os que morreram estava o nonagenário Potino, bispo de Lião, que foi tor-turado até a morte na prisão. Logo depois disso, Ireneu saiu de Roma

para se tornar bispo de Lião no lugar de Potino. Ireneu já havia sido presbítero na diocese de Lião e, sendo muito elogiado, foi enviado de

volta para conduzir o ministério da igreja no alvorecer da perseguição.

Foi exatamente então que escreveu seu Contra as heresias, a obra que

menciona o "Evangelho de Judas". Esse, eu sugiro, é o calcanhar de Aquiles dos que proporiam, por

qualquer motivo, que deveríamos de alguma forma preferir os escritos

gnósticos e similares às escrituras canônicas. Lendo Ehrman, Meyer e outros, é fácil esquecer o que estava realmente acontecendo naquela épo-ca e imaginar que Inácio, Ireneu e outros como eles eram simplesmente

caçadores de hereges desagradáveis e arrogantes, que queriam apenas manter seus próprios sistemas de poder e eclesiásticos. De fato, esse é o argumento fundamental de um dos mais conhecidos livros dentro de

toda reabilitação moderna do gnosticismo: Os evangelhos gnósticos, de Elaine Pagels. Várias vezes ela examina o conflito entre a ortodoxia emer-

gente e o gnosticismo emergente e fornece o que ela chama de explicação

"política": Inácio, Ireneu e os outros fizeram o que fizeram — inclusive abraçando o martírio, aparentemente — pela paixão que tinham pelo

controle político, pela criação de uma estrutura eclesial monolítica. Nada poderia estar mais distante da verdade. As pessoas que esta-

vam sendo queimadas na fogueira, assadas em ferros quentes, atiradas às feras, rasgadas na roda, e outros prazeres narrados na carta de Viena e Lião não se imaginavam a caminho de uma grande vitória política da "ortodoxia" sobre a "heresia". Elas não estavam, como freqüentemente

se sugere, acomodando-se e fazendo acordos confortáveis com o sta-

tus quo, antecipando em quase cem anos o tempo em que, muito pelo assombro dos cristãos depois da terrível perseguição de Diocleciano,

11. Cf. IRENEU, Contra as heresias (Adv. Haer.) 5.1.63.

5 Senhor do mundo ou fugitivo do mundo? 69

Page 61: Judas e o Evangelho de Jesus - Tom Wright

a fé cristã tornou-se primeiro permitida e depois oficial. Eles estavam

seguindo seu Senhor crucificado. Se o que você pretende é realizar um

programa de controle e estrutura eclesial, enfatizando sua própria po-

sição oficial dentro desse programa, não parece fazer muito sentido adotar e ensinar uma mensagem que provavelmente levará você e ou-

tros líderes a serem torturados e mortos. Em vez disso, o que vemos em Inácio e Ireneu é a insistência natural em que, se as autoridades estão determinadas a perseguir a igreja, é vital que sua pequena comunidade

importunada permaneça unida e que resista firmemente, não por uma

estrutura hierárquica triunfalista ou grandiosa, mas pela liderança que,

justamente por sua unidade dentro das linhas divisórias tradicionais da raça humana, constitui um sinal para os poderes do mundo de que

Jesus é o Senhor e de que eles não o são12. Sejamos claros, então. Os cristãos que morreram na Gália em 177

d.C. e os milhares que morreram ao redor de todo o Império Romano

naquele século não estavam lendo "Tomé", "Pedro" ou o "Evangelho

de Judas". Estavam lendo, citando, rezando e cantando Mateus, Marcos, Lucas e João — os textos que nutriam sua fé viva em Jesus, não como um

revelador de verdades secretas para ajudá-los a escapar do mundo per-

verso, mas como o Senhor que conheciam e amavam (Ireneu escreveu de modo vivo e comovente sobre isso), aquele cuja morte e ressurreição

liberou um novo poder no mundo, na vida das pessoas, dando-lhes espe-

rança não de uma felicidade espiritual desencarnada num mundo não es-pacial e temporal, mas da ressurreição do corpo na renovação da ordem

criada, uma renovação que já havia começado e já estava avançando no mundo real. Acreditavam no Jesus que anunciou o governo de Deus na terra como no céu, que disse que toda autoridade, não só no céu (isso se-ria seguro), mas também na terra, foi-lhe dada. Os mártires viveram por

essa visão e — não surpreendentemente, uma vez que estavam e estão

ameaçando muitos tipos de autoridade política — morreram por ela.

Ao contrário, por que o crente gnóstico se preocuparia em se le-vantar e declarar que aquele homem ou aquela mulher pertenciam à

12. Cf. Ef 3,10; F12,1-18.

70 JUDAS E O EVANGELHO DE JESUS

Page 62: Judas e o Evangelho de Jesus - Tom Wright

desprezada companhia dos cristãos? Os gnósticos, como vimos, zom-

bavam da igreja por sua postura; o "Jesus" do "Evangelho de Judas" ria disso. Por que alguém se associaria a pessoas que o levariam a ter problemas? E, se o verdadeiro ensinamento de Jesus era descobrir a

verdade divina dentro de si mesmo e então escapar do mundo per-verso, por que César perseguiria um grupo com esse tipo de crença?

Por que essas pessoas se sentiriam na obrigação de dar aos pagãos a

lealdade mínima que exigiam? Isso aparece claramente em alguns dos textos gnósticos. Embora al-

guns fossem assumidamente de um movimento diverso e valorizassem

o martírio, muitos outros o desprezavam. Obras como o "Testemunho da Verdade" e o "Apocalipse de Pedro" são enfáticas nesse ponto: a in-

sistência ortodoxa de que o martírio é um caminho seguro para a salva-

ção é mero auto-engano13. Se, como sugeri anteriormente, pelo menos uma das raízes do gnosticismo do século II era a reação dos judeus ao desastre de 135 d.C., podemos ver por que pensavam assim. Os judeus,

afinal, aferraram-se às histórias dos mártires macabeus do ano 160 a.C. e contaram essas histórias para sustentar sua fé nas promessas de Deus de

que haveria grande revolta contra os senhores pagãos e de que com essa

vitória os mortos seriam ressuscitados. Pode-se entender por que, com a derrota cruel e chocante dessa esperança em 66-70 d.C. e novamente

em 132-135 d.C., alguns que viveram esta última poderiam dar as costas

a tudo: promessas, revoluções, ressurreição, martírio e tudo mais. Em outras palavras, não deveríamos simplesmente inverter a retórica dos escritos gnósticos e desprezar seus autores como meros covardes. Nem

deveríamos ser enganados pela suposição de que os cristãos proto-orto-

doxos estavam interessados apenas em posição social e em seus próprios sistemas de poder, enquanto os gnósticos representavam a alternativa

verdadeiramente radical e excitante. Isso não guarda relação alguma com a evidência, que é bastante clara: normalmente os gnósticos evita-vam a perseguição, enquanto os proto-ortodoxos, ainda acreditando na

13. Para o martírio como auto-engano, cf. a discussão em PAGELS, The Gnostic Gos-pels, 106s.

5 Senhor do mundo ou fugitivo do mundo? 71

Page 63: Judas e o Evangelho de Jesus - Tom Wright

visão judaica do reino de Deus enfrentando o de César, abraçavam-na

como uma provável conseqüência do seguimento do Jesus crucificado. Ao longo do século vemos teólogos traçando esse quadro. Inácio

de Antioquia vê que os que dizem que Jesus não sofreu realmente pro-vavelmente também dizem que o martírio é desnecessário". Justino, a caminho de receber o nome de "Mártir", comenta que os seguidores de mestres gnósticos como Simão, Marcião e Valentino não são perse-

guidos ou condenados à morte'5. Eusébio conta que Basílides, um dos

maiores mestres gnósticos, "ensinava que não havia mal em comer coi-sas oferecidas aos ídolos ou em negar serenamente a fé em tempos de perseguição"16. E Ireneu descreve os astutos processos de pensamento pelos quais os gnósticos evitavam a perseguição:

Como o filho era desconhecido de todos, então também eles não de-vem ser conhecidos por ninguém; mas enquanto eles conhecem todos, e passam por todos, eles próprios permanecem invisíveis e desconheci-dos para todos; pois "você deve conhecer todos", eles dizem, "mas não deve deixar que ninguém conheça você". Por essa razão, pessoas de de-terminada crença também estão prontas para abjurar; de fato, não é possível que eles devessem sofrer por causa de um mero nome, uma vez que são exatamente iguais a todos os outros... Eles afirmam que não são mais judeus e que também não são cristãos; e que não é de modo algum adequado falar abertamente de seus mistérios, mas é certo mantê-los em segredo, preservando o silêncio".

De fato, diz Ireneu, algumas dessas pessoas chegaram a desprezar

os mártires, dizendo ser estúpido e ridículo seguir esse caminho. Ele concede que alguns dos gnósticos foram de fato preparados para cen-

surar o nome de Cristo, mas diz que a grande maioria "mantém que tal

14. Para a ligação entre a negação do sofrimento de Cristo e a rejeição do martírio, cf. INÁCIO, Epístola aos Tralianos, 10.1; Epístola aos Esmirneanos, 5.1s. A questão é claramente afirmada por PAGELS, The Gnostic Gospels, 99.

15. Para os comentários de Justino sobre seus contemporâneos gnósticos, cf. sua obra Segunda apologia 15.

16. A narração de Eusébio sobre Basilides pode ser encontrada em HE 4.7.7.

17. Cf. IRENEU, Adv. Haer. 1.24.6; cf. também 3.16.19-3.18.5.

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JUDAS E O EVANGELHO DE JESUS

Page 64: Judas e o Evangelho de Jesus - Tom Wright

testemunho não é definitivamente necessário, uma vez que seu sistema

de doutrinas é a verdadeira testemunha"18.

Tertuliano, como sempre, apresenta isso mais dramaticamente:

Quando, portanto, a fé está muito agitada e a Igreja queimando..., os gnósticos fogem; os valentinianos rastejam; todos os oponentes do martírio estouram... Nós mesmos, tendo sido apontados para a perse-guição, somos como lebres sendo cercadas à distância, enquanto os he-reges circulam normalmente... Eles também se opõem aos martírios, representando a salvação como destruição, transformando o doce em amargo, assim como a luz em escuridão '9.

Vários escritores comentaram o modo pelo qual os gnósticos re-sistiram ao martírio ou o evitaram totalmente. Não há controvérsia

quanto a essa questão. Mas freqüentemente isso passa despercebido nas

discussões contemporâneas dos diferentes tipos de evangelho e assim

por diante. Os fatos da perseguição e do martírio do século II são sig-

nificativos e desmentem, em particular, a acusação muito comum de

que os "ortodoxos" estavam preocupados simplesmente com o poder e o controle políticos, enquanto os "hereges" eram os que corriam risco. Certamente não foi o que pareceu para os cristãos, ou na verdade para

os pagãos, de Viena ou Lião. Se pela primeira vez na era moderna esta-

mos lendo um texto que até hoje só conhecíamos quase exclusivamente

por meio de uma obra escrita pelo Bispo de Lião por volta do ano 180, deveríamos prestar muita atenção ao contexto em que o Bispo estava

escrevendo, sobretudo ao fato de que ele acabara de suceder o bispo anterior, que morrera pela mesma fé. Faríamos bem em considerar as

diferentes posturas que acabamos de esboçar e os resultados de seus

sistemas de crença muito diferentes. Escrevi a primeira versão desses últimos parágrafos no Sábado San-

to de 2006. No dia seguinte, um dos maiores especialistas contempo-râneos em patrística, o Arcebispo da Cantuária, Dr. Rowan Williams, disse isto em seu sermão de Páscoa na Catedral da Cantuária:

18. 1RENEU, Adv. Haer. 3.18.5; 4.33.9.

19. Cf. TERTULIANO, Scorpiace 1.

5 Senhor do mundo ou fugitivo do mundo? 73

Page 65: Judas e o Evangelho de Jesus - Tom Wright

[O Novo Testamento] foi escrito por pessoas que, por escrever o que escreveram e acreditar no que acreditaram, estavam fazendo de si mes-mas, nos termos do mundo, menos poderosas, nada mais. Elas esta-vam caminhando por um terreno desconhecido, distante dos lugares seguros da influência política e religiosa, distante da religião judaica tradicional e da lei e da sociedade romanas... Conforme os evangelhos e as cartas de Paulo... todos concordam, eles estavam se colocando num lugar em que compartilharam a humilhação vivida pelos criminosos condenados indo nus em procissão pública para sua execução20.

E o que era verdade para os primeiros cristãos e para os escrito-

res do Novo Testamento era nítida e demonstravelmente verdade para

pessoas como Inácio, Policarpo, Justino e Ireneu no século II. Foram

eles que saíram rumo ao desconhecido, distantes da segurança. Eis a ironia: os evangelhos gnósticos são trombeteados como as alternati-vas radicais aos evangelhos canônicos opressivos e conservadores, mas

a realidade histórica é justamente o contrário. Os gnósticos estavam

bastante contentes em se entregar ao seu ambiente cultural, em que

religiões-mistério, autodescoberta, espiritualidade platônica de vários

tipos e revelações codificadas de verdades ocultas eram o necessário

para o oficio. Em outras palavras, os gnósticos eram os culturalmente

conservadores, defendendo o tipo de religião já conhecida por todos. Assim, quando lemos seus escritos sem as lentes cor-de-rosa de Meyer,

Ehrman e outros, eles nos deixam quase estarrecidos (para usar nossa

linguagem moderna e anacrônica), pois são completamente sexistas,

anti-semitas e sem coragem para se posicionar contra as ideologias e autoridades de seu tempo. Eram os cristãos ortodoxos que estavam abrindo um novo caminho e arriscando seus pescoços.

Os que estavam preparados para morrer por sua lealdade a Jesus e

por sua crença em sua morte e ressurreição estavam, portanto, abra-

çando uma "salvação" que significava algo bastante diferente daquela

20. A citação de Rowan Williams pode ser encontrada em inglês em <www.arch-bishopofcanterbury.org/sermons_speeches/060416a.htm>. A questão pode ser vis-ta graficamente em vários textos do Novo Testamento, p. ex. Hb 13,12-14.

74

JUDAS E O EVANGELHO DE JESUS

Page 66: Judas e o Evangelho de Jesus - Tom Wright

"salvação" significada em linguagem similar no "Evangelho de Ju-

das" e em textos cognatos. Isso é verdade tanto para o objetivo como

para os meios de salvação.

O objetivo da salvação, no Novo Testamento e nos primeiros Pa-

dres, é a reprodução do universo bom, criado e dado por Deus, e a

ressurreição do corpo daqueles que morreram, de modo que possam

compartilhar um mundo que foi posto em ordem. "Salvação" significa

o resgate do que deforma e corrompe a boa criação de Deus, isto é, a

morte e tudo o que leva a ela. Como mostrei detalhadamente em outra

obra, para os cristãos primitivos, assim como para os primeiros rabi-

nos, três coisas estão unidas: uma crença na bondade essencial da cria-

ção, uma crença na justiça última de Deus (isto é, a crença de que Deus,

o criador, um dia colocará todas as coisas em ordem) e uma crença,

estritamente relacionada com as outras duas, na futura ressurreição

do corpo como parte da futura restauração de todas as coisas21. O que

o gnosticismo oferece não é uma variação disso, não é outra maneira

de olhar ou de expressar substancialmente o mesmo ponto, mas uma

visão da salvação que contradiz categoricamente em todos os pontos

essa visão cristã primitiva (e também judaica primitiva). Para o gnos-

ticismo, a ordem criada é essencialmente má. Não faz sentido esperar

que as coisas sejam colocadas em ordem hoje ou no futuro. A salvação,

portanto, consiste justamente não na ressurreição — por que alguém

quereria ter um corpo novamente? –, mas em escapar totalmente dela.

Como Bart Ehrman mostra nitidamente:

Segundo a maioria dos gnósticos, este mundo material não é nossa casa. Estamos presos aqui, nestes corpos de carne, e precisamos apren-der como escapar... Uma vez que o ponto é permitir que a alma deixe este mundo para trás e entre na "grande e sagrada geração" — ou seja, o domínio divino que transcende este mundo —, uma ressurreição do corpo é a última coisa que Jesus, ou qualquer um de seus verdadeiros seguidores, quereria".

21. O caso é totalmente demonstrado em meu The Resurrection of the Son of God.

22. Cf. EHRMAN apud KMW, 84, 110 (grifo no original).

5 Senhor do mundo ou fugitivo do mundo? 75

Page 67: Judas e o Evangelho de Jesus - Tom Wright

E, se os objetivos últimos do Novo Testamento e da literatura gnós-

tica são totalmente diferentes, a maneira de atingi-los, como era de es-

perar, também é diferente. Para os primeiros cristãos e para os grandes mestres do século II, como Policarpo, Justino e Ireneu, o caminho para a vida última, para a própria ressurreição, era o próprio Jesus: não o Jesus da imaginação ou reconstrução gnóstica, mas o Jesus que anun-ciou e personificou o reino de Deus, chegando no céu e na terra; o Je-sus que foi para a morte não para escapar deste mundo material, mas para resgatá-lo; o Jesus que ressuscitou para lançar o projeto de Deus de uma nova criação e governar toda a criação de Deus como seu legítimo Senhor. E, segundo os primeiros cristãos, Jesus resgata as pessoas e as refaz no tempo presente para que já compartilhem desse mundo novo, e para que aguardem ansiosamente seu complemento no futuro, por meio da palavra do evangelho, que opera nos corações e mentes das pessoas pelo Espírito; por meio da fé que acredita naquela palavra, re-conhece a presença viva de Jesus e se submete ao seu domínio; por meio do batismo, que incorpora as pessoas à morte e ressurreição de Jesus e as coloca em companhia dos que lhe pertencem; por meio da santidade da vida, que elabora o sentido da nova criação na dura realidade física; e, se alguém é chamado, por meio do martírio, a abraçar o mesmo fim de Jesus, a fim de que, como o ladrão na cruz, o mártir possa estar com Jesus no Paraíso e, finalmente, compartilhar a própria ressurreição.

Novamente, para os gnósticos, nada disso é importante. O caminho para a salvação — a "salvação" alternativa de escapar deste mundo —se dá por meio do conhecimento, conhecimento dos segredos do mun-do e do verdadeiro self. Ehrman novamente:

Para os gnósticos, a pessoa não é salva por acreditar em Cristo ou por realizar boas obras [aqui Ehrman está confundindo o ensinamento de Paulo sobre a "salvação" com sua visão de "justificação", mas isso não precisa nos distrair aqui]. Em vez disso, a pessoa é salva pelo conhe-cimento da verdade — a verdade sobre o mundo em que vive, sobre quem é o verdadeiro Deus e, especialmente, sobre quem somos. Em outras palavras, isso é basicamente autoconhecimento: conhecimento de onde viemos, como chegamos até aqui e como podemos retornar à nossa morada celeste... Para os gnósticos que também eram cristãos

76 JUDAS E O EVANGELHO DE JESUS

Page 68: Judas e o Evangelho de Jesus - Tom Wright

(muitos gnósticos não eram), é o próprio Cristo quem traz esse conhe-cimento secreto de cima. Ele revela a verdade a seus seguidores íntimos e é essa verdade que pode libertá-los".

Em outras palavras, não foi apenas a natureza da salvação e a maneira de

alcançá-la que se transformou dentro do gnosticismo. Foi também a figu-

ra de "Jesus" ou "Cristo". Embora Ehrman utilize aqui a linguagem joanina

("conhecereis a verdade e a verdade vos libertará")24, a "verdade" que o gnós-

tico supõe ter sido revelada por esse "Jesus" é muito diferente da que encon-

tramos nos evangelhos canônicos e em outros textos cristãos primitivos. No centro de todo o quadro está a questão: a "salvação" é um ato gra-

tuito de amor e graça divina que chega aos que nada têm para recomendá-

los, como mostraram tão dramaticamente Paulo e João? Ou é um ato de

revelação e de descoberta do que já está lá, com o "revelador" revelando o que já é verdadeiro sobre a pessoa e a pessoa em questão descobrindo quem realmente é? A "salvação" é, afinal, apenas uma questão de descobrir

sua própria "estrela" e segui-la? Essa é a diferença fundamental, em termos

de "salvação", entre a fé cristã primitiva e historicamente enraizada e a pro-

posta gnóstica. E isso ilumina a seguinte questão: por que nos dias de hoje

especialistas e divulgadores tomam textos como o "Evangelho de Judas",

disponíveis recentemente (e por isso todos nós, interessados no mundo an-tigo, somos profundamente gratos), e os lançam sobre nós, recomendando-os como uma nova e excitante perspectiva sobre Jesus e o cristianismo?

Certamente, parte da resposta está no desejo dos editores de fazer

dinheiro. O que você preferiria: publicar o texto numa monografia aca-dêmica que venderia alguns poucos milhares de cópias para bibliotecas

e escolas ou soltá-lo com uma apresentação vigorosa, do tipo "agora-finalmente-sabemos-a-verdade", que entrará para a lista dos mais ven-didos? Mas os especialistas envolvidos no projeto não são apenas Dan Browns com títulos de doutor. Eles seguramente sabem o que estão

fazendo e o que estão recomendando. O que eles estão realmente ten-

tando nos dizer e como deveríamos responder?

23. Cf. EHRMAN apud KMW, 84.

24. Jo 8,32.

5 Senhor do mundo ou fugitivo do mundo? 77

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Page 70: Judas e o Evangelho de Jesus - Tom Wright

A versão de Judas: novo mito das origens cristãs

lima das primeiras coisas que os editores do "Evangelho de Judas"

tentaram transmitir — e uma das coisas que inevitavelmente

atraiu manchetes — é que esse novo documento reabilita Judas Iscario-tes depois de toda má impressão que carregava por entregar Jesus às

autoridades. Marvin Meyer é eloqüente sobre o assunto:

Em contraste com os evangelhos do Novo Testamento, Judas Iscario-tes é apresentado como uma figura totalmente positiva no Evangelho de Judas, um modelo completo para todos os que desejam ser dis-cípulos de Jesus... O ponto do evangelho é o insight e a lealdade de Judas como o paradigma do discipulado. No fim das contas, ele faz exatamente o que Jesus quer'.

Bem, sim, ele faz; mas o que esse "Jesus" quer e a razão por que quer são, como Meyer explica cuidadosamente em outro lugar, completamente

diferentes de qualquer coisa que possamos imaginar do Jesus de Mateus, Marcos, Lucas e João. Meyer continua, construindo um cenário obscuro contra o qual a jóia dessa nova descoberta brilhará ainda mais forte:

1. Cf. MEYER apud KMW, 9.

79

Page 71: Judas e o Evangelho de Jesus - Tom Wright

Na tradição bíblica, no entanto, Judas — cujo nome estava associado a "judeu" e "judaísmo" — era freqüentemente retratado como o judeu mau que levou Jesus à prisão e à morte e, assim, a figura bíblica de Judas, o traidor, alimentou as chamas do anti-semitismo. Judas, neste evangelho, pode reagir a essa tendência anti-semita. Ele não faz nada que o próprio Jesus não lhe peça que faça, ele ouve Jesus e permanece fiel a ele. No Evangelho de Judas, Judas Iscariotes torna-se discípulo amado e amigo querido de Jesus'.

Observe como Meyer introduz uma visão medieval dos evangelhos canônicos para fazer parecer que o "Evangelho de Judas" lhes apresenta uma resposta boa e politicamente correta. Na verdade, em Mateus, Marcos, Lucas e João não há a menor sugestão de que a traição de Judas, e sua culpa, tenha algo a ver com o fato de ele ser um judeu. Quando Meyer diz "a tradição bíblica", ele quer dizer na verdade "a tradição que, mil anos após a Bíblia ter sido escrita, usou-a de maneira particular". Como já dissemos, Jesus era um judeu; todos os discípulos eram judeus;

duas outras pessoas que estavam no seguimento imediato de Jesus (um dos Doze e um dos irmãos de Jesus) chamavam-se "Judá".

Mas o que Meyer não nos conta sobre essa questão, porque, embora a conheça bastante bem, sabe que isso faria água de toda a idéia da reabilitação de Judas, é que a visão de mundo do gnosticismo, para a qual o Evangelho de Judas dá uma contribuição interessante e nova, é inerentemente oposta à visão de mundo fundamental do próprio ju-daísmo dominante. O judaísmo, do Gênesis aos rabinos e depois deles, acredita na bondade do mundo criado e no chamado especial de Israel para ser a luz desse mundo. O gnosticismo acredita na maldade funda-mental do mundo criado, na loucura dos que tomam o Antigo Testa-mento como guia e no status especial dos gnósticos como faíscas de luz que devem ser resgatadas desse mundo. Particularmente, o judaísmo acredita que o Deus de Israel é o criador bom, sábio e soberano de tudo o que existe, enquanto o gnosticismo acredita que o Deus de Israel é o demiurgo incompetente e malicioso que criou este mundo perverso. Se

o gnosticismo está certo, o judaísmo não está, e vice-versa.

2. Cf. MEYER, 9-10.

80

JUDAS E O EVANGELHO DE JESUS

Page 72: Judas e o Evangelho de Jesus - Tom Wright

Talvez já prevendo essa objeção, Meyer tenta dizer que o "Evangelho de Judas" está de fato usando algumas idéias "judaicas", mas é evidente

que são as idéias "gnósticas judaicas":

Além disso, os mistérios que ele aprende com Jesus estão imersos no saber gnóstico judaico, e o professor desses mistérios, Jesus, é o mestre, o rabino. O Evangelho de Judas cristão é coerente com a visão judaica — uma visão judaica alternativa, certamente — do pensamento gnóstico, e o pensa-mento gnóstico judaico foi batizado como pensamento gnóstico cristão3.

O máximo que se pode dizer sobre isso é que o autor confunde os próprios desejos com a realidade. Pode ser, como alguns especialistas supõem, e como já abordei no capítulo 2, que o gnosticismo do século II que encontramos em Nag Hammadi, no "Evangelho de Judas" e em ou-tros lugares tenha de fato algumas raízes especificamente judaicas: por

que um movimento claramente helenístico, embebido no platonismo, faria referência contínua às escrituras judaicas e faria tanto para reinter-pretá-las e adequá-las à sua visão de mundo preferida? As circunstâncias sociais criaram um contexto plausível, como sugeri (o fracasso da espe-rança após a revolta de Bar Kochba); o clima filosófico era favorável (Fí-lon, um século antes, produziu uma síntese brilhante da crença judaica tradicional e da filosofia platônica, embora nunca tenha articulado nada

parecido com o gnosticismo). O que provavelmente aconteceu é que alguns pensadores e místicos judeus dos primeiros dois séculos, de certo modo paralelamente a Fílon, mas afastando-se dele, expressando sua raiva e desapontamento com o fracasso de sua própria fé e esperança tradicionais, começaram a oferecer uma forma de religião que manti-

nha alguns dos símbolos e das histórias superficiais do judaísmo antigo, mas que substituía seu núcleo interior, particularmente sua crença no

único Deus como o criador bom e sábio, por seu oposto'. A única coisa

3. Cf. MEYER, 10. Ele aprofunda a questão nas pp. 166-168, referindo-se a outros textos "gnósticos judaicos" supostamente cristianizados, como o "Livro secreto de João" e "Eugnosto, o bem-aventurado".

4. Uma avaliação reconhecida do caso do "gnosticismo judaico" pode ser encontra-da, p. ex., em B. PEARSON, Gnosticism, Judaism and Egyptian Christianity, Minnea-polis, Minn., Fortress, 1990.

6 A versão de Judas: novo mito das origens cristãs 81

Page 73: Judas e o Evangelho de Jesus - Tom Wright

realmente "judaica" do "Evangelho de Judas" é que, ao se referir a Adão,

Set e outros, ele usa o livro do Gênesis. Mas faz isso para subverter o

judaísmo, para destruí-lo completamente a partir de dentro, ao ler de-liberadamente o texto a contrapelo. Se "Judas" foi escrito pelos "caini-

tas", eles estavam deliberadamente transformando o vilão do Gênesis (Caim) em herói, assim como estavam fazendo com o aparente vilão

(Judas) dos evangelhos. Tal leitura "usa" o Gênesis, em boa medida, do

mesmo modo que uma criança "usaria" uma peça de Shakespeare para

fazer uma bolinha de papel arrancando uma de suas páginas.

Bart Ehrman também tenta "reabilitar" Judas. Tendo já declarado

que Judas, no novo "Evangelho", é "o íntimo perfeito, aquele a quem Jesus faz sua revelação secreta", ele sugere que isso deveria alterar a visão cristã do judaísmo:

Se Judas não traiu Jesus, então isso mudaria o modo como os cristãos entendiam seu relacionamento, não só com o traidor, mas também com as pessoas que se imagina que o traidor deveria representar, sobretudo ["ou seja"?' os judeus. Assim, ao longo da história cristã, os cristãos culparam os judeus pela morte de Jesus e Judas é o símbolo do judeu que traiu Jesus. Se, de fato, Jesus e Judas tinham um acordo quanto à missão de Judas, isso mudaria a compreensão do relacionamento entre judeus e cristãos'.

Ao que, é claro, devemos responder que, se esse suposto "acordo" quanto à missão de Judas era um acordo numa visão de mundo e teo-logia que vão numa direção diametralmente oposta à da maioria dos judeus do século I (salvo, no máximo, alguns poucos grupos hipotéti-

cos que já tinham abandonado qualquer crença na bondade da criação

e que não deixaram nenhuma evidência para contar história), então ele realmente deveria mudar a compreensão do relacionamento entre

judeus e cristãos — ao mostrar que o genuíno judaísmo e o genuíno cristianismo têm mais coisas em comum entre si do que com a visão de mundo representada pelo "Evangelho de Judas"! Mas Ehrman se enterra ainda mais-

5. Cf. EHRMAN apud KROSNEY, xxii, 51.

82 JUDAS E O EVANGELHO DE JESUS

Page 74: Judas e o Evangelho de Jesus - Tom Wright

Se ficasse confirmado que Judas não traiu Jesus, mas simplesmente fez o que Jesus queria que fizesse, então isso mostraria que Jesus era uma continuação do judaísmo e não alguém que representava um rompi-mento com o judaísmo. E, se historicamente Jesus não representa um rompimento com o judaísmo, então isso teria um impacto significante no relacionamento entre judeus e cristãos atualmente, porque eles não representariam historicamente duas religiões diferentes, eles represen-tariam a mesma religião'.

Isso, novamente, deve ser misturar os próprios desejos com a rea-

lidade, mas também representa uma terrível confusão. Ninguém no

século I — certamente não os evangelistas canônicos e suas fontes —

viu na traição de Judas um sinal de "ruptura" entre Jesus e o judaís-

mo. Assim como Meyer, Ehrman está simplesmente introduzindo

idéias medievais em textos que estão completamente livres delas. A

questão do relacionamento entre o movimento de Jesus e o judaísmo

do século I é, de fato, complicada e tem todo tipo de ramificação em

nossos dias. Mas qualquer sugestão de que um relato revisionista de

Judas e de sua traição mudará uma visão "Jesus-contra-o-judaísmo"

por uma visão "Jesus-dentro-do-judaísmo" é o mesmo que jogar pa-

lavras ao vento. Mais uma vez, tudo o que sabemos sobre Jesus e os

primeiros cristãos, e sobre os principais ramos do judaísmo do século

I — os fariseus, os essênios, o autor da Sabedoria de Salomão, Josefo,

e mesmo o platônico Fílon –, sugere que eles têm muito mais em co-

mum entre si do que com o gnosticismo, particularmente o gnosticis-

mo que encontramos no "Evangelho de Judas".

Não devemos esquecer (embora Meyer e Ehrman convenientemen- te pareçam esquecer ao propor essa "reabilitação" de Judas como apli-

cação de um duro golpe nos relacionamentos judeu-cristãos) que o

"Evangelho de Judas" fala do Deus criador, o Deus do judaísmo, como

uma deidade inferior e, na verdade, malévola. Como diz Ehrman em al-

gum lugar (e como podemos deduzir facilmente de outros documentos,

como o "Evangelho de Tomé"), para os gnósticos, esse deus judeu não

6. Cf. EHRMAN, apud KROSNEY, 51.

6 A versão de Judas: novo mito das origens cristãs 83

Page 75: Judas e o Evangelho de Jesus - Tom Wright

deve ser adorado, mas evitado'. Para o judeu leal, daquele dia até hoje, a profissão de fé fundamental é: "Ouça, ó Israel: YHWH, nosso Deus,

YHWH é único". Qualquer um que fizesse essa oração três vezes ao dia saberia perfeitamente bem que abraçar a visão de mundo oferecida

pelo "Evangelho de Judas" não significaria apenas um rompimento,

uma descontinuidade, mas uma profunda e radical deslealdade, uma subversão da convicção judaica mais básica. Deveríamos observar o co-mentário de um estudioso contemporâneo judeu, Guy Stroumsa:

A atitude dos gnósticos em relação ao Deus de Israel como uma divin-dade inferior e aos profetas de Israel como seus subordinados é um cla-ro exemplo do que pode ser chamado de anti-semitismo metafísico9.

Na mesma linha, um estudioso judeu das origens cristãs, professor

Amy-Jill Levine, da Vanderbilt Divinity School, escreve:

[...] essa versão revista de Judas não terá impacto sobre as relações judeu-cristãs, uma vez que o Evangelho de Judas proclama uma teo-logia que não é boa nem para judeus nem para cristãos... Eu prefe-riria manter o Deus de Israel em vez de ter Judas como herói; eu preferiria manter a Lei e os Profetas em vez de aprender sobre éons iluminados, e eu preferiria honrar o corpo em vez de rejeitá-lom.

Tudo isso, de certa maneira, solapa a tocante crença de Frieda Tcha-cos Nussberger (que negociou a eventual compra e edição do texto) de

que ela fora "predestinada por Judas a reabilitá-lo"". E, quando Kros-

ney repete a sugestão de Meyer e Ehrman de que esse novo "Evangelho"

7. Para detalhes sobre a rejeição gnóstica ao Deus judeu, cf. EHRMAN apud KMW, 86. Sobre "Tomé", cf., p. ex., o dito 100: "Dai a César o que é de César, dai a Deus o que é de Deus — e dai a mim o que é meu" (em outras palavras, Jesus representa um ser superior ao "Deus" dos judeus).

8. Cf. Dt 6,4.

9. Cf. Guy G. STROUMSA, in Ha'aretz, 1. de abril de 2006.

10. Cf. Amy-Jill LEVINE, The Judas Gospel: Is it Good for the Jews?, in The Jerusalem Report, Vol. 17.3 (maio 2006), 46. 11. Para a visão de Nussberger de seu papel, cf. National Geographic, maio 2006, 95; KROSNEY, 169. Ela é citada posteriormente dizendo ser "guiada pela Providência" (KROSNEY, 175).

84 JUDAS E O EVANGELHO DE JESUS

Page 76: Judas e o Evangelho de Jesus - Tom Wright

eliminará a noção medieval de culpa coletiva ("o Evangelho de Judas

não faz nenhuma acusação sangrenta que passará pela história causan-

do o vilipêndio de judeus, pogrom e mesmo o Holocausto"), fica claro o que está acontecendo". Como acontece freqüentemente na devastação

ética da pós-modernidade, a sombra do Holocausto é invocada como

uma maneira agora esgotada de reivindicar uma causa moral elevada. Mas só porque o "Judas" desse documento "realiza as vontades de seu

amado mestre", como diz Krosney, não há razão para supor que anti-

semitas residuais caiam em si. Afinal de contas, o documento não diz

nada sobre Judas ser judeu; e tudo o que diz sobre o povo judeu, por

forte implicação, é que eles estão adorando a divindade errada. Eles deviam ser motivo de riso, e sua visão de mundo devia ser rejeitada.

Mas não é só a reabilitação de Judas reivindicada pelos editores que

é oferecida nesse texto. É também uma visão nova e inspiradora do

próprio Jesus. Isso parece claramente ser o que Meyer tem em mente ao

descrever a mensagem do texto como "boa-nova": A mensagem do Evangelho de Judas é que, se Jesus é um ser espiri-

tual que veio do céu e retornará à glória, então os verdadeiros seguido-

res de Jesus também são pessoas de alma, cuja existência e destino estão nas mãos do divino... no fim de suas vidas mortais, as pessoas que per-

tencem à grande geração de Set abandonarão tudo desse mundo ma-

terial, a fim de livrar a pessoa interior e liberar a alma... Jesus proclama uma mensagem mística de esperança e liberdade".

Esperança e liberdade talvez, mas não no sentido em que os primei-

ros cristãos teriam entendido.

12. KROSNEY, 295. Cf. também sua conclusão (308), manifestando a esperança de que tudo isto "ajudará a promover a compreensão daqueles tempos antigos em que o cristianismo divergia de suas origens judaicas e trará de algum modo não um sentido de traição, não uma quebra de fé, mas um sentimento aumentado de frater-nidade neste planeta cada vez mais populoso". Esse texto pode de fato possibilitar uma nova compreensão dos primeiros dois séculos, mas definitivamente não no sentido que Krosney imagina.

13. Cf. MEYER apud KMW, 166, 169. Sobre esse "evangelho" como "boa-nova", cf. 45 n. 151.

6 A versão de Judas: novo mito das origens cristãs 85

Page 77: Judas e o Evangelho de Jesus - Tom Wright

O texto, então, como Ehrman afirma, "abre novas perspectivas à com-

preensão de Jesus e do movimento religioso que ele fundou"14? Não no

sentido que ele tenciona. Sim, ele lançou alguma luz nova — não muito, mas um pouco — sobre os ensinamentos gnósticos do século II a respei-

to dos quais já sabíamos bastante e que com isso dão algumas novas e fascinantes guinadas. Não, ele não nos conta nada sobre Jesus de Nazaré; apenas sobre algumas maneiras pelas quais seu nome foi subseqüente-

mente usado para legitimar ensinamentos completamente estranhos ao seu anúncio do reino de Deus tanto na terra como no céu. O "Evangelho

de Judas" é, de fato, "novo e autêntico", uma vez que é um manuscrito recém-descoberto e editado que nos dá acesso a um documento genui-namente primitivo do século II. Mas não há nada de "novo" ou "autênti-co" a dizer sobre o próprio Jesus e seus primeiros seguidores".

Pelo contrário. Apesar dos protestos de Meyer, Ehrman, Pagels e outros citados por Krosney, o "Evangelho de Judas" é, linha por li-

nha, uma negação completa do que dizem os evangelhos canônicos".

O próprio Krosney, resumindo o ensinamento do livro, entrega o jogo

de modo conclusivo:

[0 documento] era objeto de crença de certas pessoas que genuina-mente viam Jesus como o verdadeiro messias por causa de seu brilhan-te exemplo e porque ele poderia levar cada pessoa ao deus que estava no interior dele mesmo ou dela mesma... Jesus não é uma figura ator-mentada que morrerá em agonia na cruz. Em vez disso, ele é o mestre afetuoso e benevolente com senso de humor".

Ninguém que entendesse os evangelhos canônicos poderia imagi-nar que isso não fosse outra coisa senão o cancelamento de toda sua

teologia e sua substituição por outra completamente diferente. E nin-guém que entendesse o verdadeiro sentido do riso de Jesus em seu novo

14. Cf. EHRMAN apud KMW, 80.

15. Contra KROSNEY, 299.

16. Cf. KROSNEY, 280.

17. Cf. KROSNEY, 280, 286.

86

JUDAS E O EVANGELHO DE JESUS

Page 78: Judas e o Evangelho de Jesus - Tom Wright

texto suporia que isso o caracterizaria como "afetuoso e benevolente"".

Se é benevolência que estamos procurando, nós a encontraremos, não

no "Evangelho de Judas", mas no Novo Testamento. A figura na cruz

deve ser "atormentada", mas a razão é clara: "o Filho de Deus me amou

e se entregou por mim"19. Assim, por que Meyer, Ehrman e outros estavam tão ansiosos para

transmitir que o "Evangelho de Judas" é excitante e importante não só

para nossa compreensão do cristianismo primitivo mas para hoje? Por

que eles sugerem que ele contém novos insights fundamentais? A respos-

ta é que a propagação energética da obra faz parte de uma história mais

ampla, uma história que muitos hoje em dia, particularmente na Amé-

rica do Norte, estão ansiosos para aprender e acreditar, mesmo à custa

de escrever o que a maioria dos historiadores verá como claramente sem

sentido. Isso é o que chamo de novo mito das origens cristãs".

As linhas principais do novo mito são claras — e Bart Ehrman é atual-

mente um de seus mais conhecidos proponentes21. Não há espaço aqui

para uma exposição completa e comentários, mas é fundamental que

entendamos a forma e a motivação desse movimento, e vejamos por

que uma ânsia em propagá-lo levou Ehrman e outros a se entusiasma-

rem com o "Evangelho de Judas".

Primeiro, de acordo com o novo mito, Jesus não era como os evan-

gelhos canônicos o retratam. Ele não se via de modo algum como divi-

no. Ele não tencionava morrer pelos pecados do mundo. Ele certamen-

18. Sobre o riso de Jesus no "Evangelho de Judas", cf. acima, pp. 40-42.

19. Cf. G12,20.

20. Para mais sobre o novo mito das origens cristãs, cf. meu Decoding Da Vinci, Cambridge, Grove, 2006.

21. Em defesa do novo mito, cf., p. ex., B. EHRMAN, Misquoting Jesus: The Story behind Who Changed the Bible and Why, San Francisco, Calif., HarperSanFrancisco, 2005; Lost Christianities: The Battles for Scripture and the Faiths We Never Knew, New York, Oxford University Press, 2003; e vários outros textos acadêmicos e popu-lares. Como muitos mitos antigos, esse moderno assume várias formas e nenhum autor deve ser tomado como personificação pura de todo o movimento.

6 A versão de Judas: novo mito das origens cristãs 87

Page 79: Judas e o Evangelho de Jesus - Tom Wright

te não ressuscitou dos mortos. Em vez disso, Jesus era o mestre de uma sabedoria estranha e subversiva, que gerou uma tradição pluriforme da qual surgiram muitos movimentos, escrevendo e editando muitas versões de sua vida, de seus ditos e de seu destino.

Segundo, havia muitas variedades de cristianismo primitivo, e elas

produziram um grande número de "evangelhos" diferentes. Todos eles

circulavam nos círculos cristãos primitivos mais ou menos sem verifi-cação. Foi somente após a determinação de Constantino, no início do século IV, que a igreja decidiu destacar Mateus, Marcos, Lucas e João e rejeitar os outros. A razão para essa escolha, sugerida repetidamente

pelos defensores do novo mito, é que a igreja estava interessada desde

o início no poder político e no controle, e por isso estava ansiosa para

priorizar livros que forneceriam isso — sobretudo por falar de um Jesus divino em vez daquele humano encontrado nos outros evangelhos22.

Terceiro, o ensinamento assim rejeitado não era de modo algum sobre a visão de judeus e cristãos primitivos do reino do Deus criador

chegando tanto na terra como no céu. Era sobre procurar o verdadei-ro sentido dentro de si mesmo — e, mais que o verdadeiro sentido, a

verdadeira bondade e mesmo a verdadeira divindade. Não tinha nada

a ver com a necessidade de uma redenção; humanos, pelo menos os especiais, não eram pecadores que necessitavam de perdão, mas faíscas de luz que precisavam descobrir quem eram. Não tinha nada a ver com

o sonho, sem falar na realidade, da ressurreição. Ele oferecia um tipo de religião diferente, mais como uma versão leve do budismo...

... e maior sintonia com as esperanças dos acadêmicos liberais ame-

ricanos a partir da década de 1960, especialmente os que cresceram em versões um tanto estritas da fé cristã, seja tradicional católica, seja tra-dicional (e talvez fundamentalista) protestante. Krosney, talvez inge-

22. Para a teoria de que a igreja buscava poder ao falar de um Jesus divino, cf., p. ex., MEYER apud KMW, 7s., 27, 29, 118 ("em suma, um dos grupos competidores no cristianismo conseguiu sobrepujar todos os outros"); PAGELS, apud KROSNEY, 191. A idéia de que os evangelhos canônicos oferecem um Jesus "divino", enquanto os textos gnósticos oferecem um "humano", é uma das mais bizarras, de fato demons-travelmente tolas, propostas de O código Da Vinci, de Dan Brown.

88 JUDAS E O EVANGELHO DE JESUS

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nuamente, cita uma passagem significativa do classicista Roger Bagnall, que os que conhecem o terreno reconhecerão ser pouco acurada:

Se se pensar no estado dos estudos religiosos como disciplina acadêmica nas décadas de 1960 e 1970 [ele está se referindo à América do Norte], reconhecer-se-á que estava pesadamente povoado por pessoas que vi-nham de experiências teológicas, geralmente profundas experiências de igreja, e que tinham uma atitude altamente conflituosa em relação a essa parte de sua experiência. [Essa é a forma acadêmica de dizer "e rejeita-ram firmemente o que aprenderam na Escola Dominical".] O material de Nag Hammadi era evidentemente herético em sentido técnico, coisas condenadas pelos padres ortodoxos da igreja. É improvável que um espe-cialista que não tivesse envolvimento pessoal com o cristianismo sentisse necessidade de aceitar esse fato, mas dificilmente era esse o caso. Se se ler Elaine Pagels, ver-se-á o resultado: os gnósticos são confirmados como uma direção que o cristianismo poderia ter seguido e que o teria tornado mais acolhedor e agradável, mais belo do que essa ortodoxia fria23.

É animador ouvir a verdade dita desse modo — embora seja de-

primente pensar na visão da "ortodoxia" que a teria feito parecer fria e opressiva diante do dualismo radical, da aversão ao mundo dos gnós-ticos. A referência a Elaine Pagels, cuja obra já foi mencionada em vá-rios contextos, é significativa: em seu famoso livro Os evangelhos gnós-

ticos, ela traça continuamente paralelos entre a crença gnóstica antiga e aspectos reveladores da nossa cultura de auto-ajuda contemporânea,

como (algumas formas de) budismo, existencialismo e o movimento da psicoterapia24. A certa altura, ela compara o gnosticismo à filosofia de Feuerbach, um alemão do século XIX, cuja proposta de que quando falamos sobre Deus estamos na verdade falando da humanidade foi im-portante para a teologia existencialista da década de 1930 e para as teo-

rias revisionistas que surgiram a partir daí, preparando o terreno para que o novo mito crescesse e florescesse". Aparentemente, qualquer coi-

sa serviria, desde que não fosse o judaísmo ou o cristianismo clássicos.

23. Cf. BAGNALL apud KROSNEY, 196.

24. Para paralelos entre o gnosticismo e a cultura contemporânea, cf. PAGELS, The Gnostic Gospels, p. ex. 19, 27, 133, 140.

25. Sobre gnosticismo e Feuerbach, cf. PAGELS, 132.

6 A versão de Judas: novo mito das origens cristãs 89

Page 81: Judas e o Evangelho de Jesus - Tom Wright

Esse movimento contemporâneo norte-americano é de certo modo seletivo em favor do gnosticismo, mas deverei voltar a isso num instante.

O ponto é que a moda de defender os textos gnósticos, mesmo alguns as-sumidamente muito bizarros, contra as escrituras canônicas tem muito

mais a ver com modas sociais e religiosas (ou, na verdade, anti-religiosas) da América do Norte do que com a verdadeira pesquisa histórica. É claro que há questões históricas maiores e sérias a serem enfrentadas. Mas o poder do mito é tal — como se revelou na tempestade que a mídia fazia

toda vez que aparecia outra "evidência" que podia ser "distorcida" a fa-

vor tanto do mito como do cristianismo dominante — que essas questões são deixadas de lado na ânsia de acreditar no que os mitos demandam.

Particularmente, o novo mito quer que acreditemos que, se quisermos

uma religião verdadeira e libertadora, deveremos encontrá-la na visão gnóstica e não na visão cristã dominante. Novamente, Marvin Meyer:

No Evangelho da Verdade [um tratado gnóstico bem conhecido encon-trado em Nag Hammadi] o fruto do conhecimento é uma descoberta trazendo alegria. Significa que a pessoa encontrou Deus em si mesma, que a neblina do erro e do terror se foi e que o pesadelo da escuridão é trocado por um eterno dia celestial".

Dificilmente essa é uma afirmação desapaixonada de um ponto de vista a partir do qual a pessoa deseja se distanciar de si mesma. E o

ponto de vista em questão, também favorável ao novo mito das origens

cristãs, pertence a uma matriz cultural mais ampla e ainda mais pode-

rosa: a das igrejas protestantes, especialmente das igrejas protestantes da América do Norte nos últimos 200 anos. Essa talvez seja a coisa mais perturbadora que surge ao estudarmos o "Evangelho de Judas" e refle-tirmos sobre por que ele foi "distorcido" da maneira como foi.

No outono de 1982, eu estava lecionando na Universidade McGill, em

Montreal, Canadá. Um dia, no almoço, encontrei um professor visitan-te que me falou sobre seu projeto de pesquisa. Nunca mais nos encon-tramos, mas ao longo dos anos seguintes, embora minha pesquisa me

26. Cf. MEYER apud KROSNEY, 140.

90 JUDAS E O EVANGELHO DE JESUS

Page 82: Judas e o Evangelho de Jesus - Tom Wright

levasse para direções diferentes das dele, eu freqüentemente imaginava

como ele havia progredido. Finalmente, muito recentemente, comprei

e li seu livro. Queria ter feito isso antes. O especialista em questão é Philip J. Lee, um ministro presbiteriano

de New Brunswick, Canadá. Sua tese, que recebeu resenhas entusias-

madas de teólogos e críticos culturais, afirma que um tipo de gnos-ticismo está profundamente entranhado no cristianismo protestante

norte-americano e que isso gerou todo tipo de problema não só na

igreja, mas na sociedade como um todo. Seu livro, Against the Protes-

tant Gnostics [Contra os gnósticos grotestantes], é uma polêmica, creio

eu, que já estava mais do que na hora de aparecer.

Lee categoriza a religião americana típica como elitista: ela favorece

o autoconhecimento individual em detrimento da comunidade crente. Ela regularmente optou por aquilo que chama de "sincretismo seletivo"

em detrimento da particularidade das verdadeiras tradições religiosas.

Ela é tanto escapista, afastando-se do mundo da política e da sociedade,

como narcisista, buscando sua própria identidade e plenitude. Ao rejei-tar a bondade da criação, ela convidou os americanos a pensar o mundo

natural simplesmente como um lugar a explorar, abrindo a imaginação

para abraçar a falta de cuidado ecológico e a violência desenfreada —que, como Lee aponta no prefácio da edição brochura, tem sido um

aspecto cada vez mais perturbador da vida pública americana27.

Este não é o lugar para tratar detalhadamente a análise de Lee ou

para entrar na discussão cultural mais ampla que seu livro incita. Ele

me parece exagerar consideravelmente sua questão, como os grandes

polemistas costumam fazer. Sua tentativa de esboçar uma longa genea-logia do gnosticismo moderno, desde as origens até elementos no cal-vinismo dos Pais Fundadores, às vezes me surpreende como absurda.

27. Philip J. LEE, Against the Protestant Gnostics, New York, Oxford University Press, 1987. Na edição brochura de 1993 há um novo prefácio apontando a semelhança da crítica de Lee com a do crítico cultural Harold Bloom, que fez comentários fa-voráveis sobre a obra; o livro do próprio BLOOM, The American Religion: The Emer-gence of the Post-Christian Nation, New York, Touchstone, 1992, é uma afirmação aguda de uma tese semelhante.

6 A versão de Judas: novo mito das origens cristãs 91

Page 83: Judas e o Evangelho de Jesus - Tom Wright

Sua obra precisa ser balanceada e modificada por outras, pelo menos

por obras mais sutis como a de Cyril O'Regan28. Mas essa breve menção serve para introduzir em seu contexto mais amplo tanto o novo "mito" de que falei como o entusiasmo pelo gnosticismo antigo (ou pelo me-nos por alguns de seus aspectos) que ele cria e sustenta.

Particularmente, o protestantismo ocidental, desde o Iluminismo,

e talvez antes, fomentou a possibilidade de teorias conspiratórias. A igreja, o establishment, ou quem quer que seja, estava interessada em seu próprio poder e prestígio e, assim, suprimiu a "verdadeira verda-de" sobre suas próprias origens históricas — e, com isso, a "verda-

deira religião" que Jesus supostamente ensinou e mostrou. Para im-

portantes pensadores dos séculos XVIII e XIX, essa questão tinha um lado totalmente positivo, tirando a igreja da complacência e forçan-

do-a a desempenhar um importante papel histórico. Mas, na forma corrompida que tais teorias conspiratórias assumiram recentemente, o instinto protestante de questionar "certezas" prévias foi rebaixado

ao instinto pós-moderno de não acreditar em nada. Como Rowan Williams diz no sermão já citado:

Estamos momentaneamente fascinados pela sugestão de conspirações e ocultações que se tornaram tão presentes em nossa imaginação que é natural, ao que parece, esperá-las quando nos voltamos aos textos antigos, especialmente os textos bíblicos. Nós os tratamos como se fossem notas de imprensa não-convincentes de alguma fonte oficial, cuja intenção é ocultar a história verdadeira; e essa história verdadeira aguarda o investigador intrépido que irá descobri-la e compartilhá-la com o mundo à espera. Qualquer coisa que se pareça com a versão oficial é automaticamente suspeita. Alguém está tentando impedir a descoberta do que realmente aconteceu, porque o que realmente acon-teceu poderia chatear ou desafiar o poder da oficialidade. Tudo isso faz uma história boa e tipicamente "moderna" — sobre como resistir à autoridade, desvendar segredos, expor a corrupção e a fraude; lembra Watergate e Todos os homens do presidente29.

28. C. O'REAGAN, Gnostic Return in Modernity, Albany, N.Y., State University of New York Press, 2001.

29. Cf. acima, p. 73-74.

92

JUDAS E O EVANGELHO DE JESUS

Page 84: Judas e o Evangelho de Jesus - Tom Wright

Apenas isso. Mas essa implacável hermenêutica da suspeita não re-

sulta num tipo de equilíbrio, deixando-nos sem teorias predominantes

ou propostas e impulsos religiosos dominantes. Antes — o ponto de

Lee é que isso representa toda a tendência subjacente do protestantis-

mo americano –, ela favorece fortemente formas de gnosticismo, espe-cialmente a idéia de que "descobrir quem realmente sou" é o imperativo

religioso primordial, uma vez que "quem realmente sou" é, na verdade,

algum tipo de ser divino. Lee cita Tom Wolfe para potencializar o efeito,

observando que, entre outras coisas, a revolução sexual foi justificada em termos quase religiosos: a faísca divina no ápice de minha alma

(que é, afinal, como o impulso sexual geralmente se apresenta) deve vir para sua fruição, a qualquer preço em termos de ruptura das ligações com o passado e o futuro, com a família e os amigos".

Essa é a razão, dentro da vida e da teologia da igreja que abraçou esse

novo e quase-gnóstico relato das origens cristãs e da fé cristã, pela qual

a fonte primária da "autoridade" é a própria experiência. Se o ponto da busca religiosa é descobrir a faísca divina dentro de si mesmo, prestar

atenção nessa experiência interior irá — deverá! — ultrapassar qual-quer apelo a qualquer outra suposta fonte de autoridade. De fato, como

vimos, parte do objetivo do movimento gnóstico era se desprender da autoridade externa e seguir sua própria estrela. Mesmo que isso levasse

à solidão — alguém poderia dizer ao solipsismo —, era vital concordar com a "primazia da experiência imediata"". É isso que está na raiz de

alguns debates críticos na igreja atualmente: quando as pessoas falam de um "apelo à experiência" ou da necessidade de "ouvir a experiência",

alguns pelo menos esperam que essas frases sejam ouvidas dentro de uma visão de mundo em que a "experiência" é, por definição, a autori-

dade última, uma vez que a própria "experiência" interior é a pista para

a natureza divina, interior e secreta da pessoa, agora finalmente revela-

30. Cf. LEE, Against the Protestant Gnostics, 197-205, especialmente a citação de Tom WOLFE, The Me Decade and the Third Great Awakening, Mauve Gloves and Madmen, Clutter and Vine, New York, Bantam Books, 1977, 111-147. Cf. também LEE, 277, sobre a "espiritualização da sexualidade" contemporânea.

31. Cf. PAGELS, The Gnostic Gospels, 149.

6 A versão de Judas novo mito das origens cristãs 93

Page 85: Judas e o Evangelho de Jesus - Tom Wright

da. No dia em que eu estava editando este livro para publicação, calhou de estar em Toronto, e vi, do lado de fora de uma igreja de bairro po-

pular, uma frase de Carl Jung: "Quem olha para fora sonha; quem olha para dentro desperta". Gnosticismo moderno em poucas palavras.

Mas é claro que o apelo contemporâneo ao gnosticismo é seletivo. Alguns dos primeiros gnósticos assumiram seu dualismo para indicar um compromisso com um importante ascetismo. Eles realmente corta-ram seus laços com o mundo de espaço, tempo e matéria. Eles realmente

renunciaram a todos os prazeres sensuais e perspectivas terrenas. Não há

— como dizer isso sem parecer cínico? — muita evidência de que o gnos-ticismo contemporâneo americano esteja seguindo esse caminho Antes, ele tenta manter o melhor dos dois mundos. Primeiro, uma "busca pelo divino" que se torna busca pela autodescoberta, levando a um existen-cialismo propagado religiosamente em que "descobrir quem sou", como principal dever, leva ao dever secundário de "ser verdadeiro com quem

sou" — mesmo que isso signifique ser falso para todo tipo de outras coi-sas. Segundo, uma implacável e culturalmente ordenada "perseguição da

felicidade" em termos de um bem-estar material e emocional que teria horrorizado a linha dura gnóstica antiga. Que bela combinação!

A maioria das pessoas, claro, não pensa assim. Para alguns, a re-tórica implícita da primeira agenda, mais "espiritual", deve, na verda-

de, tornar-se implicitamente unida à segunda agenda, mais "material". Para outros, o imperativo gnóstico pode facilmente se juntar à insis-tência iluminista na separação absoluta entre igreja e estado, religião e política. Vivemos no "andar de cima" em nossas vidas religiosas e, então, temos de lidar com nossa vida no "andar de baixo", que precisa fazer dinheiro, perseguir a felicidade e assim por diante, sem nenhum

senso de incongruência. De fato, o gnosticismo insistiu, como vimos, justamente na divisão entre religião e realidade terrena abraçada pelo

Iluminismo, certamente por razões bem diferentes, mas com uma con-vergência fascinante e poderosa de impulsos culturais.

Outro sinal significativo surge neste ponto. O dualismo radical per-sonificado no "Evangelho de Judas" tem muito em comum com o dua-lismo igualmente radical personificado no fundamentalismo dispensa-

94

JUDAS E O EVANGELHO DE JESUS

Page 86: Judas e o Evangelho de Jesus - Tom Wright

cionalista tão popular em muitas regiões da América do Norte e agora famoso pelos romances da série Left Behind [Deixados para trás]". O

principal objetivo em ambos, afinal, é escapar deste mundo perverso e partir para um mundo melhor, isto é, para o "céu", em vez de (como o

Novo Testamento) buscar o reino de Deus tanto na terra como no céu.

Duvido que Ehrman e Meyer aceitariam tranqüilamente a sugestão de que são primos em segundo grau do fundamentalismo dualístico re-

presentado pelo movimento, mas a evidência é clara. "Este mundo não é minha casa; só estou de passagem." Assim cantam os fundamentalis-tas; e os gnósticos concordariam.

Quando aplicado em termos da direita, esse neognosticismo seleti-

vo pode justificar tudo, desde o chamado "evangelho da prosperidade"

(se sou um cristão fiel, Deus me fará rico; eu pertenço, afinal, à sua elite) até a idéia de que o povo americano possui um "destino manifes-to" para trazer ordem ao resto do mundo. A questão é que se somos os "iluminados", deixando para trás os obstáculos da superstição e igno-

rância anteriores, então temos não apenas a possibilidade, mas o dever

de nos comportarmos como a elite do mundo, inclusive, caso necessá-rio, infligindo a outros a punição apropriada por sua persistência na

cegueira, por seu fracasso de não enxergar o que enxergamos". Quem pode negar que há pelo menos um desses elementos em algumas das

atitudes de alguns líderes europeus nos últimos 200 anos, e de alguns

americanos mais recentemente?

Quando aplicado em termos da esquerda, o neognosticismo seletivo pode justificar tudo, desde o sincretismo barulhento na frente religiosa

até o completo desdém pelas normas clássicas da moral sexual. Afinal

(em relação à primeira), se Jesus é simplesmente aquele que nos revela que a divindade está dentro de nós, então deve haver outros revelado-

res também; e se a questão do cristianismo não é a operação de resgate

32. Os romances Left Behind são de Tim F. LAHAYE e Jerry B. JENKINS. A série de 12 volumes, publicada pela Tyndale House Publishers, iniciou-se em 1996 com Left Behind: A Novel of the Earth's Last Days. [Ed. bras.: Deixados para trás, Campinas, United Press, s/d.]

33. Sobre o neognosticismo de direita, cf. especialmente LEE, 168-172, 244s., 268.

6 A versão de Judas: novo mito das origens cristãs 95

Page 87: Judas e o Evangelho de Jesus - Tom Wright

em que o criador do mundo envia seu filho para morrer e ressuscitar a

fim de redimir o mundo, mas a revelação de uma divindade já presente

em nós (bem, pelo menos de alguns de nós), então nos distanciamos do que a maioria dos cristãos desde o século I acreditava e nos aproxi-

mamos em boa medida do que todos os outros tipos de movimentos religiosos acreditavam.

E, em relação à segunda, se minha "experiência" mais íntima é o tes-te último da validade religiosa ou espiritual e minha "identidade" mais íntima é o objetivo último de minha busca religiosa ou espiritual, então descobrir minha própria identidade sexual e expressá-la plenamente tem precedência sobre os códigos morais restritivos e aplicados externamente

extraídos dos textos antigos que, afinal, devem ter menos validade do que

imaginamos'''. Quem pode negar que há elementos desses impulsos em boa parte do discurso contemporâneo, tanto nas igrejas como fora delas?

Seja de direita ou de esquerda, trata-se da mesma crença religiosa, em sintonia muito maior com o gnosticismo antigo do que com o cris-

tianismo clássico: o que importa não é o mundo exterior, a comunida-de mais ampla ou mesmo o ser humano físico exterior, mas a suposta

faísca da verdadeira "identidade" que está no interior do indivíduo. No nível corporal, pode-se apenas observar o modo pelo qual a linha da história reflete a narrativa clássica da libertação americana (e estou ple-namente consciente da ironia que é um bispo inglês como eu tratar desse assunto): no final do século XVIII, justamente quando o "Ilumi-

nismo" estava no auge, os Estados Unidos nascentes declaravam que

estavam descobrindo sua própria identidade, que não dançariam con-forme a música do Rei George III — os bispos que ele estava enviando

para as colônias! — e que era melhor ter boa política e estadistas. Não defendo as coisas bizarras que meus ancestrais fizeram. Mas dificilmen-te essa seria uma base narrativa segura sobre a qual construir uma visão

de mundo religiosa ou espiritual. E, no nível individual, não nos surpreendemos quando Herbert

Krosney resume o ensinamento do "Evangelho de Judas", e sua impor-

34. Cf. novamente LEE, 277, falando de uma "espiritualização da sexualidade".

96

JUDAS E O EVANGELHO DE JESUS

Page 88: Judas e o Evangelho de Jesus - Tom Wright

tância para os dias atuais, nos termos em que já citei, mas que vale a

pena repetir pois se encaixam como uma luva na tese de Lee:

Seguir nossa própria estrela é uma idéia tão importante hoje como era então. Em vez de expulsar o traidor, talvez devêssemos olhar mais pro-fundamente para a bondade que está dentro de nós'.

No entanto, a questão que permanece é: quão crível é tudo isso? Será que o "Evangelho de Judas" traiu o segredo do gnosticismo mo-

derno? Será que a publicação dessa afirmação explícita do gnosticismo

do século II é o ponto em que o movimento representado por Meyer, Ehrman, Pagels e outros falhou por tentar fazer mais que o possível,

por errar a mão?

35. Cf. KROSNEY, 300.

6 A versão de Judas: novo mito das origens cristãs 97

Page 89: Judas e o Evangelho de Jesus - Tom Wright
Page 90: Judas e o Evangelho de Jesus - Tom Wright

O desafio de "Judas" hoje

Neste capítulo final, quero sugerir, como acabei de indicar, que o

"Evangelho de Judas" poderia, de fato, representar o ponto em que o leitor comum, acostumado a consumir teorias conspiratórias, "evan-

gelhos secretos", "fontes perdidas" e várias coisas do tipo, finalmente

despertaria, esfregaria seus olhos e diria que se isso é tudo — querendo

dizer com isso o tipo de coisa que encontramos em "Judas" —, então isso é obviamente um engano total e talvez haja algo no cristianismo clássico afinal. Não importa o que pensemos sobre o Judas Iscariotes

histórico e sua "traição" a Jesus, talvez esse "Evangelho de Judas" tenha traído pelo menos o segredo que os entusiastas gnósticos mantinham

oculto em seus esforços de nos convencer de que os textos de Nag Ham-

madi e outros documentos similares eram, afinal, superiores em quali-

dade religiosa, assim como em data, aos evangelhos canônicos. Quando olhamos para "Judas", vemos o que realmente estamos enfrentando.

Embora Meyer, Ehrman e outros tenham dado seu melhor para nos convencer de que a visão de mundo representada por "Judas" é bastante

recomendável, sinto que em alguns pontos eles sabem que estão lutando. Não é só que tenham de se desculpar, como vimos antes, pela cosmologia maravilhosamente tortuosa e obscura. Não! É que a visão de mundo de "Judas" é tão turva, tão intransigente, tão completamente dualista, que

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Page 91: Judas e o Evangelho de Jesus - Tom Wright

eles devem saber que é improvável que, sobretudo na agradável e opu-

lenta América do Norte, o leitor comum a leve a sério. Aparentemente, a única coisa a esperar é a morte corporal: é essa a mensagem realmente

apropriada para atrair mesmo os inclinados ao gnosticismo no mundo de hoje? Ou, se for (podemos apenas lembrar os suicídios de Heaven's

Gate e outros fenômenos similares), é esse o tipo de coisa que os defen-

sores entusiasmados do "Evangelho de Judas" querem encorajar? Particularmente, não podemos ajudar advertindo que, como "Judas"

pensa que esse mundo de espaço, tempo e matéria é um lugar sombrio e perverso, não há esperança de que será diferente. Juntamente com a criação, Israel, reconciliação e ressurreição, outra doutrina judaica e

cristã que "Judas" deixa de lado, porque não faria sentido naquela visão

de mundo, é o julgamento. Por via das dúvidas, qualquer um reage à palavra "julgamento" dizendo: "Eis o que denuncio — todo o fogo do inferno e danação; e é isso que com gratidão abandonei". Deveríamos nos lembrar de que, na tradição bíblica, o julgamento é enfaticamente uma boa-nova, não má. Isso significa que o Deus criador prometeu

fazer o mundo bom afinal, para ordená-lo, escolhê-lo, fortalecê-lo e

curar suas antigas feridas e erros. É boa-nova particularmente para os

pobres e oprimidos. O reino de Deus virá, e sua vontade será feita, tanto

na terra como céu; na verdade, céu e terra finalmente se unirão Essa é a promessa do Novo Testamento, construída firmemente sobre raízes judaicas antigas e que se vê chegar com um novo foco por meio de Jesus e de sua morte e ressurreição'.

E "Judas" nada terá disso. O "Jesus" desse novo "Evangelho" ri das pes-soas que pensam dessa maneira e adoram esse tipo de deus. Ele oferece

uma mensagem diferente: o mundo atual é uma cilada e uma ilusão, e você não deveria se chatear com isso. Os que vivem de acordo com "Judas" e obras similares podem evitar os confrontos com os principados e pode-res deste mundo, em que os cristãos dos séculos II e III — época em que

o gnosticismo estava em seu auge na penumbra da antiga comunidade cristã — estavam sendo perseguidos com rara ferocidade. Deve haver ra-

1. Cf., p. ex., Ef 1,10; Ap 21-22.

100 JUDAS E O EVANGELHO DE JESUS

Page 92: Judas e o Evangelho de Jesus - Tom Wright

zões culturais em nosso mundo atual para explicar como tantas pessoas se

sentem alienadas em nossa sociedade contemporânea e, assim, são na-

turalmente levadas ao gnosticismo, em paralelo com os que primeiro o propagaram. Mas o fato de algumas pessoas acharem o mundo um lugar tão ameaçador e sombrio que naturalmente se inclinam ao dualismo ra-dical, embora deva ajudar a explicar o aumento da taxa de suicídios em

várias partes do mundo ocidental, dificilmente é um argumento para

dizer que elas deveriam ser encorajadas a permanecer naquela condição,

menos ainda imaginar que isso é o que Jesus veio ensinar.

Então, o que está realmente acontecendo com o "novo mito das origens cristãs" e com a enorme tendência "gnosticizante" dentro do protestantismo americano e, mais especificamente, com a tentativa de

propor a adoção do gnosticismo como a alternativa apropriada ao cris-

tianismo clássico? Muitas coisas, sem dúvida, mas uma delas é a seguin-te. Uma vez retirada a "religião" do mundo real, não há imperativo para

fazer nada em relação ao mundo. Sem a noção do mundo como a boa

criação do bom Deus e a crença de que esse Deus tenciona afinal endi-reitar o mundo, corta-se o nervo do imperativo de antecipar a justiça

final trabalhando por ela, antecipadamente, no momento atual. Tudo

o que se está deixando de lado (juntamente com a necessidade de esca-

par para "descobrir quem você realmente é") é o desejo, de tempos em

tempos, de impor sua vontade sobre o mundo, chamando tal imposição

de "justiça", sem dúvida, como fazem todos os impérios (e movimentos de protesto), mas drenando essa palavra de qualquer objetivo correlato.

É claro que os que propagam atualmente o neognosticismo de

esquerda dirão que são implacavelmente contra, entre outras coisas,

o tipo de "cristianismo clássico" representado pela direita americana atual, incluindo os responsáveis pela atual política externa dos Esta-

dos Unidos. Mas aqui está a dificuldade. A direita religiosa americana, embora tenha de fato se apropriado de alguns elementos do cristia-nismo clássico, está ela mesma bem comprometida com linhas muito

similares ao que chamaríamos de esquerda religiosa americana. O tipo de cristianismo que se tornou popular nos últimos dois séculos nos dois lados do Atlântico, de fato, prontamente erodiu seu apego ao Novo

7 O desafio de"Judas" hoje 101

Page 93: Judas e o Evangelho de Jesus - Tom Wright

Testamento e aos primeiros temas cristãos, como a ressurreição, e abra-

çou não só um individualismo em que o mais importante é "minha"

alma, seu estado e sua salvação, mas também uma esperança futura que

é preocupantemente similar à do gnosticismo. "Ir para o céu quando

morrer" — ou, na verdade, escapar da morte e ir para o céu por meio de um "arrebatamento" — é o nome do jogo para milhões desses cris-tãos. E quando se conta para as pessoas, como freqüentemente faço,

que o Novo Testamento não está muito interessado em "ir para o céu", e menos ainda com uma nova vida corporal em algum estágio futuro

e com a antecipação dessa vida corporal futura em santidade e justi-ça no presente, elas olham com estranhamento, como se estivesse ten-tando inculcar nelas uma nova heresia. O cristianismo ocidental pós-

Iluminismo "conservador" e o cristianismo ocidental pós-Iluminismo "liberal" começam a se ver como se fossem simplesmente a direita e a

esquerda do mesmo movimento essencialmente obstinado'. Isso é assunto para outro momento. Só o levantei aqui para indicar

o grande mapa em que debates sobre documentos como o "Evangelho de Judas" deveriam ser localizados. Mas devemos notar, como é de par-

ticular interesse, a resposta que deveria ser e talvez fosse dada à acusa-ção que o "novo mito" freqüentemente levanta contra o cristianismo ortodoxo. O "novo mito" regularmente acusa o cristianismo ortodoxo

de ter negociado um compromisso com a cultura à sua volta, de ter de-

senvolvido uma teologia que legitima a opressão, que não escandaliza as pessoas e que é, na verdade, um poder que age sob disfarce. Mas isso começa a parecer de modo suspeitoso com um caso que os psicanalistas

chamam de "projeção". Se alguém negociou um compromisso conve-

niente com o status quo político dos últimos 200 anos, foi justamente o protestantismo ocidental pós-Iluminismo, sobretudo por concordar

que a religião devia ser considerada uma questão apenas de interesse privado, deixando o resto da vida — a área pública que tudo isso en-

volve — por sua própria conta. Como vimos, os cristãos clássicos dos séculos II e III foram de fato perseguidos, enquanto seus contemporâ-

2. Sobre as raízes disso, cf. LEE, cap. 6.

102 JUDAS E O EVANGELHO DE JESUS

Page 94: Judas e o Evangelho de Jesus - Tom Wright

neos gnósticos, de maneira geral, não foram. Mas protestantes ociden-

tais modernos não são perseguidos. Por que haveriam de ser? Eles não

representam perigo para ninguém que tenha poder. Seu Jesus era um escapista, não o Senhor do mundo. Eles não colocam maiores desafios

aos impérios do mundo atual do que os gnósticos colocavam a César. E

o ponto que quero enfatizar é que tudo isso é tão claro a partir da leitu-

ra de "Judas" que deve nos fazer sentar e pensar. É disso que realmente se trata a verdadeira fé cristã?

De fato, o "Evangelho de Judas" e os textos dos que o recomenda-ram com tanto entusiasmo devem nos fazer enfrentar algumas ques-

tões difíceis e importantes. "Judas" expôs a falta de sentido dentro do

contexto? Não está claro que se seguirmos o "novo mito" e sua versão

do neognosticismo estaremos em última instância dizendo algo sobre o sentido da palavra "deus" que deveria nos fazer parar para pensar? O "Evangelho de Judas" traiu o obscuro segredo do gnosticismo antigo e moderno, que acredita que o deus que criou este mundo é uma sub-

divindade estúpida e perversa inclinada a brincadeiras de mau gosto?

E quantas pessoas, ao depararem com deus, de um lado, e com o Pai

de Jesus Cristo, de outro — o último sendo, por definição, o Deus que criou o mundo com amor puro e gratuito e o redimiu pelo mesmo amor puro e gratuito, o Deus que revela sua glória ao carregar o peso

da maldade do mundo em seus próprios ombros na pessoa de seu filho

sofredor, o Deus que revela seus planos futuros para a ordem criada ao

ressuscitar esse filho dos mortos como o início de sua nova criação —, dirão seriamente que não gostam muito do Deus cristão e preferem o

deus gnóstico? Se as pessoas realmente lessem e estudassem o "Evange-lho de Judas", não poderíamos prever que boa parte delas concluiria que o gnosticismo, afinal, não é para elas?

É claro que o gnosticismo antigo e moderno lança uma isca. Ao aceitar sua proposta, pode-se descobrir a "divindade" dentro de si mes-

mo. Seus sentimentos e desejos mais profundos podem ser legitimados

porque, afinal, se se olhou profundamente para seu próprio ser interior, o que se deve vislumbrar é a faísca autolegitimadora do divino. Afinal,

não é necessário ser resgatado — exceto deste mundo perverso à sua

7 O desafio de "Judas" hoje 103

Page 95: Judas e o Evangelho de Jesus - Tom Wright

volta, pelo menos do mundo perverso que tentou moldá-lo à sua pró-pria forma, para apenas transformá-lo num novo patinho e zombar

de sua feiúra, quando se descobre que se é, na verdade, um cisne. Dife-rentemente do desafio de Jesus, essa mensagem não diz para negar a si

mesmo e carregar sua cruz, mas para descobrir a si mesmo e seguir sua

estrela. Essa é sua grande atração. Diferentemente da promessa de Jesus,

no entanto, essa mensagem não oferece um mundo renovado e repleto de justiça e alegria do Deus que o criou, mas um mundo rejeitado e desdenhado pelos que encontraram uma maneira de escapar dele.

O cristianismo clássico, em suma, tem muito mais vida e promessa do que jamais imaginaram os que propõem o novo mito ou os que

oferecem os textos gnósticos recém-descobertos como a panacéia para

nossos males. É uma vergonha que as igrejas estejam tão caladas, tão ce-

gas para todas as dimensões do evangelho que professam, o evangelho do próprio Jesus. Nesse evangelho, ao contrário do de "Judas", desco-brimos uma mensagem judaica destinada a todo o mundo: uma men-sagem sobre o Deus criador que amou tanto o mundo que chamou o

povo judeu para ser o condutor de sua salvação e no final dos tempos enviou o Messias judeu para levar a cabo o propósito salvador; uma

mensagem sobre esse Messias que inaugura o reinado soberano, sábio e salutar deste Deus criador, em suas ações e ensinamentos, e suprema e decisivamente em sua morte e ressurreição; uma mensagem sobre a futura realização da nova criação que se iniciou nos eventos relativos a

Jesus, uma realização garantida por esses eventos e colocada em opera-

ção pelo poder do Espírito doador de vida desse mesmo Deus criador; uma mensagem que chama seres humanos de todos os tipos não para

descobrir a faísca de divindade dentro deles, mas para atender em fé agradecida e obediente ao poder da palavra que anuncia Jesus como o verdadeiro Senhor do mundo e para descobrir em seu seguimento e pertença à sua família constituída sacramentalmente uma nova dimen-

são da vida no mundo em vez de um convite para escapar do mundo;

uma mensagem que compele os seguidores de Jesus, energizados pelo

poder de seu Espírito, a sair pelo mundo e fazer a nova criação aconte-cer, confiantes de que esse trabalho já começou na ressurreição de Jesus

104 JUDAS E O EVANGELHO DE JESUS

Page 96: Judas e o Evangelho de Jesus - Tom Wright

e será terminado quando céu e terra finalmente se unirem; assim, os sinais dessa realização podem nascer verdadeiramente em vidas e so-

ciedades transformadas no momento atual. Esse é o evangelho verdadeiro, que está relacionado ao verdadeiro

Jesus, ao verdadeiro mundo e, acima de tudo, ao verdadeiro Deus.

Como dizem as propagandas, não aceite imitações.

7 O desafio de "Judas" hoje 105

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Livraria Av. Dr. Cristiano Guimarães, 2127 - loja 2129 Planalto Tel 31 3443-3990 1 Fax 31 3443-3990 31720-300 Belo Horizonte, MG [email protected]

MÃE DA IGREJA LTDA. Rua São Paulo, 1054/1233 - Centro Tel 31 3213-4740 / 3213-0031 30170-131 - Belo Horizonte, MG [email protected]

RIO DE JANEIRO

ZÉLIO BICALHO PORTUGAL CIA. LTDA. Vendas no Atacado e no Varejo Av. Presidente Vargas, 502 - sala 1701 Telefax 21 2233-4295 / 2263-4280 20071-000 - Rio de Janeiro, RJ [email protected]

EDITORA VOZES LIDA. - SEDE Rua Frei Luis, 100 - Centro Tel 24 2233-9000 i Fax 24 2231-4676 25689-900 - Petrópolis, RJ [email protected]

RIO GRANDE DO SUL

LIVRARIA E EDITORA PADRE REUS Rua Duque de Caxias, 805 Tel 51 3224-0250 1 Fax 51 3228-1880 90010-282 - Porto Alegre, RS [email protected] [email protected]

SÃO PAULO DISTRIBUIDORA LOYOLA DE LIVROS LTDA. Vendas no Atacado Rua São Caetano, 959 - Luz Tel 11 3322-0100 1 Fax 11 3322-0101 01104-001 - São Paulo, SP [email protected]

LIVRARIAS PAULINAS Via Raposo Tavares, km 19,145 Tel 11 3789-1425 / 3789-1423 1 Fax 11 3789-3401 05577-300 - São Paulo, SP [email protected]

PIAUÍ

LIVRARIA NOVA ALIANÇA Rua Olavo Bilac, 1259 - Centro Telefax 86 3221-6793 64001-280 - Teresina, PI [email protected]

REVENDEDORES AMAZONAS

EDITORA VOZES LTDA. Rua Costa Azevedo, 105 - Centro Tel 92 3232-5777 1 Fax 92 3233-0154 69010-230 - Manaus, AM [email protected]

LIVRARIAS PAULINAS Av. 7 de Setembro, 665 Tel 92 3633-4251 / 3233-5130 1 Fax 92 3633-4017 69005-141 - Manaus, AM [email protected]

BAHIA

EDITORA VOZES LTDA. Rua Carlos Gomes, 698A -Conjunto Bela Center - loja 2 Tel 71 3329-5466 1 Fax 71 3329-4749

g 40060-410 - Salvador, BA [email protected]

LIVRARIAS PAULINAS Av. 7 de Setembro, 680 - São Pedro Tel 71 3329-2477 / 3329-3668 Fax 71 3329-2546 40060-001 - Salvador, BA [email protected]

BRASÍLIA

EDITORA VOZES LTDA. SCLR/Norte - Q. 704 - Bloco A n. 15 Tel 61 3326-2436 1 Fax 61 3326-2282 70730-516 - Brasília, DF [email protected]

LIVRARIAS PAULINAS SCS - Q. 05 / BI. C / Lojas 19/22 - Centro Tel 61 3225-9595 Fax 61 3225-9219 70300-500 - Brasília, DF [email protected]

Page 101: Judas e o Evangelho de Jesus - Tom Wright

CEARÁ EDITORA VOZES LTDA. Rua Major Facundo, 730 Tel 85 3231-9321 1 Fax 85 3231-4238 60025-100 Fortaleza, CE [email protected]

LIVRARIAS PAULINAS Rua Major Facundo, 332 Tel 85 3226-7544 / 3226-7398 1 Fax 85 3226-9930 60025-100 — Fortaleza, CE [email protected]

ESPÍRITO SANTO LIVRARIAS PAULINAS Rua Barão de Itapemirim, 216 — Centro Tel 27 3223-1318 / 0800-15-712 1 Fax 27 3222-3532 29010-060 — Vitória, ES [email protected]

GOIÁS EDITORA VOZES LTDA. Rua 3, n. 291 Tel 62 3225-3077 1 Fax 62 3225-3994 74023-010 — Goiânia, GO [email protected]

LIVRARIA ALTERNATIVA Rua 70, n. 124 — Setor Central Tel 62 3945-0260 / 3945-0261

62 3945-0262 / 3945-0265 Fax 62 3212-1035 74055-120 — Goiânia, GO [email protected]

LIVRARIAS PAULINAS Av. Goiás, 636 Tel 62 3224-2585 / 3224-2329 1 Fax 62 3224-2247 74010-010 — Goiânia, GO [email protected]

MARANHÃO

EDITORA VOZES LTDA. Rua da Palma, 502 — Centro Tel 98 3221-0715 1 Fax 98 3222-9013 65010-440 — São Luís, MA [email protected]

LIVRARIAS PAULINAS Rua de Santana, 499 — Centro Tel 98 3232-3068 / 3232-3072 1 Fax 98 3232-2692 65015-440 — São Luís, MA [email protected]

MATO GROSSO EDITORA VOZES LTDA. Rua Antônio Maria Coelho, 197A Tel 65 3623-5307 1 Fax 65 3623-5186 78005-970 — Cuiabá, MT [email protected]

MINAS GERAIS EDITORA VOZES LTDA. Rua Sergipe, 120 — loja 1 Tel 31 3048-2100 1 Fax 31 3048-2121 30130-170 — Belo Horizonte, MG [email protected]

Rua Tupis, 114 Tel 31 3273-2538 1 Fax 31 3222-4482 30190-060 — Belo Horizonte, MG [email protected]

Rua Espírito Santo, 963 Tel 32 3215-9050 1 Fax 32 3215-8061 36010-041 — Juiz de Fora, MG [email protected]

LIVRARIAS PAULINAS Av. Afonso Pena, 2142 Tel 31 3269-3700 Fax 31 3269-3730 30130-007 — Belo Horizonte, MG [email protected]

Rua Curitiba, 870 — Centro Tel 31 3224-2832 1 Fax 31 3224-2208 30170-120 — Belo Horizonte, MG [email protected]

PARÁ

LIVRARIAS PAULINAS Rua Santo Antônio, 278 — Bairro do Comércio Tel 91 3241-3607 / 3241-4845 1 Fax 91 3224-3482 66010-090 — Belém, PA [email protected]

PARANÁ

EDITORA VOZES LTDA. Rua Pamphilo de Assumpção, 554 — Centro Tel 41 3333-9812 1 Fax 41 3332-5115 80220-040 — Curitiba, PR [email protected]

Rua Emiliano Perneta, 332 — loja A Telefax 41 3233-1392 80010-050 — Curitiba, PR [email protected]

LIVRARIAS PAULINAS Rua Voluntários da Pátria, 225 Tel 41 3224-8550 1 Fax 41 3223-1450 80020-000 — Curitiba, PR [email protected]

Av. Getúlio Vargas, 276 — Centro Tel 44 3226-3536 1 Fax 44 3226-4250 87013-130 — Maringá, PR [email protected]

PERNAMBUCO, PARAÍBA, ALAGOAS, RIO GRANDE DO NORTE E SERGIPE

EDITORA VOZES LTDA. Rua do Príncipe, 482 Tel 81 3423-4100 1 Fax 81 3423-7575 50050-410 — Recife, PE [email protected]

LIVRARIAS PAULINAS Rua Duque de Caxias, 597 — Centro Tel 83 241-5591 / 241-5636 1 Fax 83 241-6979 58010-821 João Pessoa, PB [email protected]

Rua Joaquim Távora, 71 Tel 82 326-2575 1 Fax 82 326-6561 57020-320 — Maceió, AL [email protected]

Rua João Pessoa, 224 — Centro Tel 84 212-2184 1 Fax 84 212-1846 59025-200 — Natal, RN [email protected]

Rua Frei Caneca, 59 — Loja 1 Tel 81 3224-5812 / 3224-6609 Fax 81 3224-9028 / 3224-6321 50010-120 — Recife, PE [email protected]

Page 102: Judas e o Evangelho de Jesus - Tom Wright

RIO DE JANEIRO EDITORA VOZES LTDA. Rua 7 de Setembro, 132 — Centro Tel 21 2215-0110 / Fax 21 2508-7644 20050-002 — Rio de Janeiro, RJ [email protected]

LIVRARIAS PAULINAS Rua 7 de Setembro, 81-A Tel 21 2232-5486 1 Fax 21 2224-1889 20050-005 — Rio de Janeiro, RJ [email protected]

Rua Dagmar da Fonseca, 45 Loja NB — Madureira Tel 21 3355-5189 / 3355-5931 1 Fax 21 3355-5929 21351-040 — Rio de Janeiro, RJ [email protected]

Rua Doutor Borman, 33 — Rink Tel 21 2622-1219 1 Fax 21 2622-9940 24020-320 — Niterói, RJ [email protected]

ZÉLIO BICALHO PORTUGAL CIA. LTDA. Rua Marquês de S. Vicente, 225 — PUC Prédio Cardeal Leme — Pilotis Telefax 21 2511-3900 / 2259-0195 22451-041 — Rio de Janeiro, RJ

Centro Tecnologia — Bloco A — UFRJ Ilha do Fundão — Cidade Universitária Telefax 21 2290-3768 / 3867-6159 21941-590 — Rio de Janeiro, RJ [email protected]

RIO GRANDE DO SUL EDITORA VOZES LTDA. Rua Riachuelo, 1280 Tel 51 3226-3911 1 Fax 51 3226-3710 90010-273 — Porto Alegre, RS [email protected]

LIVRARIAS PAULINAS Rua dos Andradas, 1212 — Centro Tel 51 3221-0422 1 Fax 51 3224-4354 90020-008 — Porto Alegre, RS [email protected]

RONDÔNIA LIVRARIAS PAULINAS Rua Dom Pedro II, 864 — Centro Tel 69 3224-4522 1 Fax 69 3224-1361 78900-010 — Porto Velho, RO [email protected]

SANTA CATARINA EDITORA VOZES Rua Jerônimo Coelho, 308 Telefax 48 3222-4112 88010-030 — Florianópolis, SC [email protected]

SÃO PAULO DISTRIBUIDORA LOYOLA DE LIVROS LTDA. Vendas no Varejo Rua Senador Feijó, 120 Telefax 11 3242-0449 01006-000 — São Paulo, SP [email protected]

Rua Barão de Itapetininga, 246 Tel 11 3255-0662 1 Fax 11 3231-2340 01042-001 — São Paulo, SP [email protected]

Rua Quintino Bocaiúva, 234 — Centro Tel 11 3105-7198 1 Fax 11 3242-4326 01004-010 — São Paulo, SP [email protected]

EDITORA VOZES LTDA. Rua Senador Feijó, 168 Tel 11 3105-7144 1 Fax 11 3105-7948 01006-000 — São Paulo, SP [email protected]

Rua Haddock Lobo, 360 Tel 11 3256-0611 1 Fax 11 3258-2841 01414-000 — São Paulo, SP [email protected]

Rua dos Trilhos, 627 — Mooca Tel 11 2693-7944 1 Fax 11 2693-7355 03168-010 — São Paulo, SP [email protected]

Rua Barão de Jaguara, 1097 Tel 19 3231-1323 1 Fax 19 3234-9316 13015-002 — Campinas, SP [email protected]

LIVRARIAS PAULINAS Rua Domingos de Morais, 660 — Vila Mariana Tel 11 5081-9330 1 Fax 11 5081-9366 04010-100 — São Paulo, SP [email protected]

Rua XV de Novembro, 71 Tel 11 3106-4418 / 3106-0602 1 Fax 11 3106-3535 01013-001 — São Paulo, SP [email protected]

Av. Marechal Tito, 981 — São Miguel Paulista Tel 11 6297-5756 1 Fax 11 6956-0162 08010-090 — São Paulo, SP [email protected]

PORTUGAL MULTINOVA UNIÃO LIV. CULT. Av. Santa Joana Princesa, 12 E Tel 00xx351 21 842-1820 / 848-3436 1700-357 — Lisboa, Portugal

DISTRIBUIDORA DE LIVROS VAMOS LER LTDA. Rua 4 de infantaria, 18-18A Tel 00xx351 21 388-8371 / 60-6996 1350-006 — Lisboa, Portugal

EDITORA VOZES Av. 5 de outubro, 23 Tel 00xx351 21 355-1127 Fax 00xx351 21 355-1128 1050-047 — Lisboa, Portugal [email protected]

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