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Sonâmbulos Livro 2 J.R. Johansson

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SonâmbulosLivro 2

J.R.Johansson

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Edição: Flavia LagoEditora-assistente: Thaíse Costa MacêdoTradução: Alexandre BoidePreparação: Flávia YacubianRevisão: Fabiane Zorn e Maurício KatayamaDiagramação: Pamella Destefi

Capa original: Lisa NovakAdaptação: Pamella DestefiImagem da capa: © Shutterstock/84980068/Suzanne Tucker

Título original: Paranoia

© 2014 J.R. Johansson. Publicado originalmente em 2014 pela editora Flux. Direitos de tradução geridos por Taryn Fagerness Agency e Sandra Bruna Agencia Literaria, SL. © 2015 Vergara & Riba Editoras S/Avreditoras.com.br

Todos os direitos reservados. Proibidos, dentro dos limites estabelecidos pela lei, a reprodução total ou parcial desta obra, o armazenamento ou a transmissão por meios eletrônicos ou mecânicos, fotocópias ou qualquer outra forma de cessão da mesma, sem prévia autorização escrita das editoras.

Rua Cel. Lisboa, 989 | Vila MarianaCEP 04020-041 | São Paulo | SPTel./ Fax: (+55 11) [email protected]

ISBN 978-85-7683-832-6

1a– edição, 2015

Impressão e acabamento: IntergrafImpresso no Brasil • Printed in Brazil

Johansson, J. R.Paranoia / J. R. Johansson; [tradução Alexandre Boide]. – 1. ed.

– São Paulo: Vergara & Riba Editoras, 2015. – (Série Sonâmbulos)

Título original: Paranoia.ISBN 978-85-7683-832-6

1. Ficção – Literatura juvenil I. Título. II. Série.

15-02774 CDD-028.5

Índices para catálogo sistemático:1. Ficção: Literatura juvenil 028.5

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

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Um

Coisas estranhas estavam acontecendo em Oakville, e dessa vez eu tinha certeza – ou quase – de que não estava envolvido na história. No domingo de manhã, a manchete do noticiário na TV sem som, instalada sobre o balcão da cozinha, era:

Mais um saque misterioso

Finn estava sentado do meu lado, ainda com a roupa que usou para dormir depois da nossa maratona de filmes de kung fu da noite anterior. Ele arremessou um cereal, que ricocheteou no armário e na tela da TV, antes de cair na pia.

– Ponto! – disse o Finn, sorridente.Arremessei um também, mas o meu saiu quicando sem

direção e caiu atrás da torradeira. Pontaria nunca foi meu forte... Vai ver eu teria mais sorte lançando com o pé. Bem, a expressão exageradamente séria do apresentador do telejornal ficou ainda mais ridícula ao ser acertada por um cereal matinal.

Minha mãe pigarreou atrás de nós.– Espero que você esteja vendo onde esses cereais estão

caindo, Parker.Finn tossiu e corrigiu a postura, abrindo um sorriso ao

olhar para trás e tentando parecer o mais inocente possível –

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o que seria muito mais convincente se ele não estivesse usando uma camiseta com a frase: “Se formos perseguidos por zumbis, te passo uma rasteira”.

Eu fiz que sim com a cabeça sem olhar pra ela.– Fácil. A maioria dos meus caíram atrás da torradeira. Os

do Finn caíram todos na pia. E, sim, pode deixar que eu limpo.Ela me deu um beijo na cabeça quando passou por mim e

pegou o controle remoto.– Era exatamente o que eu queria ouvir.Seu dedo com a unha pintada de vermelho apertou o botão

do volume, e a voz de Bradley Kent foi subindo até ecoar pela co-zinha, antes silenciosa. Ela pegou uma maçã e começou a cortá-la.

– ... ainda mais intrigante é que, apesar de ter sido flagrado pelas câmeras de segurança, o sr. Jameson afirma não se lembrar de ter esvaziado sua poupança, tampouco de onde colocou esse dinheiro. A polícia investiga se existe a possibilidade de roubo de identidade ou do uso de um sósia.

Começaram os comerciais e a minha mãe tirou o som da TV de novo. Não era a primeira vez que ouvíamos histórias bizar-ras no noticiário nos últimos tempos. Algumas pessoas tinham acordado em diferentes partes da cidade com os bolsos cheios de dinheiro, outras cometeram agressões enquanto dormiam. Na semana anterior, uma família inteira havia desaparecido da noi-te para o dia. Ainda que as autoridades considerassem a hipótese de eles terem ido embora por causa de uma emergência familiar ou coisa do tipo, essa história me pareceu muito estranha. Eles deixaram absolutamente tudo para trás, inclusive carros, ani-mais de estimação e até os calçados, e foram vistos andando pela rua no meio da madrugada, ainda de pijama.

Esses não pareciam simples casos de sonambulismo e es-tavam começando a me assustar.

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Minha mãe sacudiu a cabeça, mas depois sorriu para nós.– Não é hoje que você viaja, Finn?Ele engoliu uma colherada de cereal antes de responder:– É.– Você já foi pra Disney alguma vez?– Não.– Por que a sua família não esperou as férias chegarem?

Falta tão pouco.Ela pegou uma pilha de cartas e começou a examinar os

envelopes.– Eles conseguiram uma promoção por ser baixa temporada.

A viagem teria custado o dobro nas férias. Pelo menos foi o que o meu pai disse.

Finn colocou a colher de volta na tigela. Ele olhou para mim antes de fixar os olhos no armário verde-escuro diante de si e levar a mão à orelha direita, como sempre acontecia quando seu cérebro ameaçava pifar de tanto pensar. Eu sabia no que es-tava pensando. Era a mesma coisa com que ele, a sua irmã Addie e a nossa amiga Mia Green se preocupavam há quase um mês: como eu iria me virar por sete dias sem eles?

Mais especificamente: como eu conseguiria passar sete dias seguidos sem dormir nos sonhos da Mia?

Não sei como sobrevivi durante anos observando os so-nhos de outras pessoas – e, consequentemente, ficando sem dormir –, antes de conhecer a Mia. Ser um “observador”, como eu me defino, é um verdadeiro terror às vezes. A auto-hipnose que a Mia usava para dormir tornava seus sonhos especialmen-te tranquilos e pacíficos, mantendo seus pesadelos sob controle. Passar uma semana sem aqueles sonhos incríveis não seria nada divertido, mas poderia não ser tão ruim.

E se eu focasse nessa ideia talvez ela se tornasse realidade.

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– Vou pedir a ajuda do seu pai quando a gente tirar férias.Minha mãe ficou me olhando até que eu me virasse para

ela, depois apontou com o queixo para o Finn, cujo olhar ainda estava perdido. Ela ergueu as sobrancelhas. Eu encolhi os om-bros. Então, ela pôs um pedaço de maçã na boca, guardou o resto na sacola onde estava seu sanduíche e pegou a bolsa no balcão.

– Bom, estou indo trabalhar – a caminho da garagem, mi-nha mãe deu um tapinha no ombro do Finn e um apertão no meu. – Você vai se divertir bastante, Finn, não se preocupe. E o Parker vai conseguir sobreviver a uma semana sem você. Pode confiar em mim.

A porta que dava para a garagem se fechou atrás dela. Finn empurrou a tigela vazia de cereal para o lado e esfregou o rosto com as mãos. Suas palavras saíram em um resmungo baixo:

– Tem certeza de que não contou para ela que quase mor-reu por falta de sono alguns meses atrás? Porque esse, com cer-teza, não seria o melhor jeito de falar sobre o assunto.

– Eu não contei nada e você precisa ficar tranquilo.Eu não queria ter aquela conversa outra vez. Eles precisa-

vam ir. Não era uma questão de escolha. Tentei manter um tom de voz leve e animado:

– Vocês vão viajar pra Flórida... a terra do sol e dos biquí-nis. Você não devia estar mais empolgado?

– Opa, claro – Finn deixou as mãos caírem sobre o corpo e abriu um sorriso. – Dane-se você, então. Se bobear, a gente nem volta mais.

Eu dei risada.– Aí, sim, senti firmeza.Finn tentou rir, mas pareceu mais um resmungo.Caçando com a colher alguns cereais espalhados na tigela,

respondi rápido, tentando não mostrar minha preocupação:

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– É sério... você não acha que a Addie e a Mia já estão apreensivas demais?

– Dane-se. Se a Mia não estivesse... Se eu não tivesse feito besteira...

Finn não soube o que dizer e nós dois ficamos em silên-cio. Fazia duas semanas que havíamos perdido o campeonato de futebol, mas ele ainda não tinha aberto a boca a respeito. E, ao contrário dos pais dele e da Addie, eu também não puxei o assun-to. Não dá para culpar alguém por não querer relembrar um jogo fundamental em que não conseguiu impedir nem um mísero gol – simplesmente nenhum. Nós fomos massacrados.

Não que alguém estivesse ligando muito pra isso. Mesmo lá na escola, ninguém estava nem aí. Nossa temporada de futebol estava fadada ao fracasso. Ela começou apenas alguns meses de-pois de o campeonato de futebol americano ter acabado de uma forma que se tornou motivo de piada. Não uma piada engraçada, e sim o tipo de humor negro e cruel, sussurrado pelos corredores das escolas de todo o estado. Vários jogadores da nossa linha de ataque nem compareceram ao último jogo. Não havia quase nin-guém na arquibancada. As líderes de torcida passaram mais tem-po chorando que torcendo. Acho que é isso que acontece quando se tenta jogar apenas uma semana depois de o nosso quarter-back/representante dos formandos/astro do futebol/psicopata Jeff Sparks tentar pôr fogo em alguns colegas e na própria escola.

Finn, Mia e eu conseguimos sobreviver, mas o mesmo não podia ser dito do Jeff. Eu finalmente provei pra Mia, e pra mim mesmo, que o Jeff era o maluco que vinha mandando men-sagens assustadoras para ela – não eu. Nós havíamos superado isso, pelo menos a princípio.

Então já dava pra imaginar que a temporada de futebol não tinha como ser pior, certo? Certo, mas mesmo assim foi bem

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chato. Perto do final, nós até tentamos reagir, conseguimos as vitórias necessárias para chegar ao mata-mata, mas nosso time nunca mais foi o mesmo.

Eu nunca mais voltaria a ser o mesmo. E, pelo jeito, o Finn também não.

Ele se levantou, foi até a pia, lavou a tigela e a pôs no lava--louças antes de se virar para mim:

– Acho que a gente nem iria pra Flórida se a minha mãe não achasse que brincar com o Mickey Mouse fosse resolver tudo.

– Talvez até resolva – fiquei remexendo os cereais na tige-la sem olhar para ele.

– Pra crianças de 5 anos, pode ser.– Acho que vale a pena tentar.A campainha tocou. Finn corrigiu a postura e passou as

mãos pelos cabelos, tentando ajeitá-los um pouco. Isso signifi-cava que era a Mia quem vinha buscá-lo. Ele nunca tinha dito abertamente que gostava dela, mas estava na cara.

Aquilo tudo me parecia bem estranho. Os pais da Mia ti-nham morrido em um incêndio e, desde então, ela morava em lares adotivos. Quando o Jeff, que era irmão adotivo da Mia, nos atacou na escola, foi preciso encontrar uma nova casa para ela. A Addie e os pais do Finn aproveitaram a oportunidade. Parecia a escolha ideal. Os Patrick eram perfeitos, e a Mia ficou muito feliz em viver com eles. Cerca de um mês depois, o Finn começou a ficar esquisito perto dela.

Ter a garota de quem você gosta morando na sua casa pode ser muito bom ou muito constrangedor. Considerando o tempo que o Finn passou comigo nos últimos dois meses, deu pra sacar que no caso dele o constrangimento falou mais alto.

Quando eu abri a porta, a Addie e a Mia pararam de cochi-char imediatamente.

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– Eu posso fechar de novo, se vocês quiserem – me apoiei no batente da porta e sorri. – Só pra vocês saberem, é melhor nem tocar a campainha se não querem que alguém apareça.

– Bom dia pra você também.Mia me deu um abraço rápido, roçando o rabo de cavalo

castanho no meu rosto antes de tomar o rumo da cozinha e me deixar sozinho com a Addie no hall. Fiquei observando a Mia en-trar. Ainda era estranho que ela não ficasse assustada na minha presença. E, apesar de ela não ter dito nada, eu tinha visto em seus sonhos que não havia sido fácil para a Mia se acostumar com a ideia de que eu não era o inimigo.

Os cabelos ruivos da Addie flutuavam sobre seus ombros com a brisa, livres e despreocupados... como ela. Seus olhos cas-tanhos estavam voltados para o chão. Fiquei ansioso para ver os tons dourados e amarronzados deles, mesmo sabendo que só enxergaria o que ela quisesse que eu visse. Pra mim, sempre foi difícil decifrar os sentimentos dessa menina.

A única vez que ela pareceu realmente feliz nos últimos meses foi quando o Finn tentou aprender a tocar ukulele para cantar os parabéns em seu aniversário. Foi muito engraçado, ela não conseguia parar de rir. Apesar de a Addie ter feito 16 anos uma semana antes do Dia dos Namorados, nós não comemora-mos nenhuma das duas datas como a gente queria: juntos.

Estendi a mão para acariciar a dela, à espera de um sorriso, mas quando ela ergueu a cabeça só vi preocupação no seu olhar.

– Não fica assim – eu disse baixinho. – Vai dar tudo certo.– Não quero que nada daquilo aconteça de novo, Parker.

Você precisa se controlar.Ela entrelaçou os dedos com os meus e fingiu não perceber

quando virei a cabeça na direção da cozinha para me certificar de que o Finn não estava olhando. Eu ainda não tinha conseguido

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contar pra ele o que estava rolando e, depois do recente fiasco futebolístico, não sabia nem quando poderia. Addie continuou com sua lista de coisas que não queria que acontecessem de novo, sem tirar os olhos da minha mão enquanto falava:

– Nada de alucinações. Nada de acidentes de carro. Não quero voltar de férias e encontrar você no hospital.

– Eu sei, eu se...– E principalmente – ela me interrompeu, apertando mi-

nha mão e me encarando. Dessa vez permitiu que eu visse tudo: a dor que ainda sentia toda vez que a gente conversava sobre o dia em que o Jeff nos atacou – nada de desaparecer. Nada de fugir e me deixar sozinha com um bilhete idiota.

As palavras caíam como âncoras nos meus ombros, me ligando a ela de um jeito que nenhuma corda seria capaz. Mas nós dois sabíamos – tanto daquela vez como das outras em que ela pediu – que eu não podia nem iria prometer isso. Se fosse para ajudar meus amigos, eu fugiria outra vez. O que eu poderia dizer? Fosse qual fosse a resposta, seria uma mentira ou o con-trário do que ela queria ouvir.

Então eu não disse nada. Dei alguns passos à frente e a puxei para a varanda, longe da vista do Finn, e a abracei. Ficamos ali juntos, sentindo o ar agradável do fim da primavera. Absorvi o aroma cítrico dos cabelos dela. Inspirei uma, duas, três vezes antes que ela enfim relaxasse e pusesse suas mãos quentes nas minhas costas.

– Por que precisa ser tão difícil assim? – sua voz saiu abafada.Senti o hálito dela no meu pescoço.– Eu vou dar um jeito. Só preciso de um tempo.Aquelas palavras soaram vazias até pra mim. Fazia meses

que eu vinha prometendo a mesma coisa, mesmo sem ter conse-guido nada. Eu também não queria ter que ficar me escondendo

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o tempo todo, mas várias vezes o Finn deixou bem claro que não gostava da ideia de ver sua irmã namorando – ainda mais com um dos seus amigos. E, com tanta coisa acontecendo, a solução pra isso ainda ia levar um bom tempo.

– Vamos lá – ela suspirou e se afastou, enfiando as mãos nos bolsos da calça. O espaço entre nós fez meu corpo todo gelar, apesar de estar bem quente sob o sol. – Precisamos conversar com eles.

Sem dizer uma palavra, a segui até a cozinha. Não havia nada que eu pudesse falar. Nosso namoro, se é que podia ser chamado assim, era mais do que complicado. Imagine um rela-cionamento complicado e acrescente uma tonelada de confusão e acontecimentos bizarros. Manter segredo gerava problemas, e o fato de a minha vida depender de passar a maioria das noites na cabeça de outra menina também não ajudava muito. Mas, ao lado da Addie, eu me sentia mais forte do que nunca. E não tinha a menor ideia de como fazer tudo aquilo dar certo.

Assim que chegamos à cozinha, ela se virou e me encarou.– E então, qual é o plano?Eu cocei o cotovelo quando o Finn desligou a TV e virou o

banquinho do balcão. Estavam todos olhando pra mim, à espera. Se queriam uma resposta, precisavam ser mais específicos.

– Como assim, “plano”?A Mia se encostou no balcão e cruzou os braços.– Bom, a gente pode se olhar agora... e aí é só você não

fazer contato visual com mais ninguém até eu voltar.Eu suspirei e sacudi a cabeça.– Não. Essa seria a opção mais simples, mas não ia funcio-

nar nem na primeira noite. Desde que eu fui parar no hospital, a minha mãe tem ficado muito... atenta. Ela me olha nos olhos todas as noites quando conversamos, e se eu evitar o contato

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visual ela vai perceber que tem alguma coisa errada e me encher de perguntas. Eu ia ter que fugir dela a semana toda, e isso não é uma boa ideia, porque ela começou a relaxar um pouco. Final-mente. Vou ter que me virar enquanto você não volta. Não é a primeira vez que eu passo por isso, vocês sabem.

Mia franziu a testa, mas não disse nada. Como parecia que o Finn e a Addie estavam querendo fazer alguma objeção, mantive minha atenção voltada para a Mia, que perguntou:

– Qual vai ser o seu plano B quando a gente não estiver por perto? Quem você vai usar para me substituir? Já pensou nisso?

– Ontem à noite imaginei que a gente podia se falar por chamada de vídeo antes de ir para a cama – falei, encolhendo os ombros. Deu para ver que o Finn e a Addie gostaram da ideia. – Quer dizer, se você estiver a fim...

– Claro.A resposta da Mia foi imediata. Ela não precisou nem

pensar a respeito.– Obrigado.Aquele agradecimento não era suficiente, mas ela sabia o

quanto aquela ajuda era importante. Era uma questão de vida ou morte, literalmente. Ela salvava minha vida todos os dias. Como expressar esse tipo de gratidão com palavras?

Addie parecia pensativa.– Você acha que vai funcionar? Acho que a gente devia ter

feito um teste antes...– Não faço ideia, mas vale a pena tentar – encolhi os om-

bros. – Pensei em testar ontem à noite, porém, se não funcionas-se, seria mais uma noite sem dormir. Além disso, vocês precisam ir, não é uma escolha. Se não der certo, não deu. Eu me viro. Mi-nha mãe não pode me ajudar com o problema da insônia como

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a Mia, mas pelo menos os sonhos dela são seguros e tediosos. É um bom plano B.

Finn balançou a cabeça afirmativamente.– Acho que essa é a melhor escolha, já que as outras três

opções estão fora de cogitação.Mia revirou os olhos, mas sorriu discretamente.– Falando assim, parece até que a gente está participando

de alguma disputa.Finn abriu um sorriso largo e disse:– Legal! E o prêmio pro vencedor, qual seria?Decidi interromper antes da resposta da Mia, evitando

que o assunto mudasse mais ainda:– Enfim, é isso aí. Vou ficar bem.Tentei não pensar no fato de que, no último mês, a minha

mãe havia saído três vezes com o sr. Nelson, meu professor de Física. E, a julgar pelas risadinhas que ela deu ao telefone no dia anterior, quando ele ligou, fiquei com a impressão de que estava se divertindo. Isso era ótimo. Eu estava contente por ela. Só não queria que ele aparecesse nos sonhos dela naquela noite – e nem nas cinco noites seguintes.

Se tem uma coisa que aprendi desde cedo é que existem imagens que ficam marcadas na cabeça da pessoa, por mais que ela tente esquecê-las.

Mia pigarreou e seus olhos arregalados não se desgruda-ram de mim durante o momento de silêncio que se seguiu. Eu sabia que eles ficariam preocupados de qualquer maneira, mas ela, em especial, tinha noção do quanto as coisas poderiam ser ruins, caso eu acabasse preso nos sonhos errados. Os pesadelos dela foram um verdadeiro inferno para nós dois.

Mesmo nos últimos tempos, em que os pesadelos apare-ciam com menos frequência, eram noites difíceis. Eu ficava sem

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dormir e ela, revivendo a morte dos pais. Além disso, ela come-çou a ter um pesadelo recorrente com a noite em que o Jeff nos atacou. Acho que a Mia não contou nada sobre isso para a Addie e o Finn, e eu não diria nada se ela não quisesse.

Mia e eu nos conhecíamos fazia sete meses e havíamos passado por vários pesadelos nesse período, tanto na vida real quanto na cabeça dela. Em certo sentido, nossa amizade ainda era recente e frágil. Por outro lado, a gente já tinha sobrevivido a mais situações de perigo em poucos meses do que a maioria das pessoas em uma vida inteira. Além disso, ela sabia que eu só estava vivo por sua causa, então nossa amizade era de fato especial.

– Bem, hã... Vamos ver TV? – Mia perguntou, mudando de assunto e lançando um olhar de compaixão para mim.

Eu conferi o relógio do micro-ondas.– Que horas vocês precisam ir pra casa, pra arrumar as

malas antes de viajar para o planeta mágico ou coisa parecida?!Dessa vez, todos olharam feio para mim. A Mia, por saber

que eu tinha falado o nome errado de propósito; o Finn, por sa-ber que eu tinha a exata noção de como ele se sentia a respeito da viagem; a Addie... Bem, no caso dela eu não tinha certeza. Dava para fazer uma lista de motivos para ela olhar feio pra mim e mesmo assim eu poderia não acertar nunca.

Fiquei aliviado quando o telefone do Finn tocou e ele atendeu com um resmungo.

– Que é? – ele fechou os olhos e fez uma careta. – Descul-pa, mãe. É só um jeito diferente de dizer “alô”.

Depois de um momento de silêncio, ele falou: – Certo, estamos indo. A gente se vê daqui a pouco.– Acho que isso responde à minha pergunta – comentei

quando o Finn se levantou.

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Addie deixou que a Mia e o Finn fossem na frente e segu-rou a minha mão. Não era muita coisa, mas esses pequenos ges-tos eram o que a gente podia fazer por enquanto e, por menores que fossem, ajudavam bastante. Fiz um carinho na mão dela com o polegar e a soltei assim que o Finn abriu a porta da frente.

Na varanda, todos se viraram para mim.– Divirtam-se – falei, abrindo um sorriso amarelo e fazen-

do de tudo para ignorar a expressão de preocupação nos rostos deles. – E vocês bem que podiam me trazer uma daquelas orelhi-nhas de rato... Já estou pensando na minha fantasia do Dia das Bruxas.

Mia balançou a cabeça e sorriu, fazendo questão de me olhar nos olhos antes de ir para o carro.

– Se cuida. E me manda uma mensagem falando a hora em que quer conversar por vídeo.

– Pode deixar.Ela pôs a mão direita nas costas da Addie e a esquerda

nas do Finn, então os três desceram os degraus da varanda. Finn foi murmurando alguma coisa até chegar ao carro; em seguida bateu no peito e me fez uma das suas saudações bizarras antes de a Mia ligar a picape roxa e levá-los embora. Ela parecia ser a única realmente ansiosa para a viagem. Addie ficou olhando para a frente quando o carro arrancou.

Tudo o que vi nos olhos e no rosto dela me entristeceu. Eu esperava que, quando ela voltasse, estivesse mais parecida com a Addie de sempre. Seu brilho estava apagado e eu não conseguia deixar de pensar que eu era o responsável.

A Flórida poderia não ser “mágica” como a sra. Patrick esperava, mas, depois de tudo por que passamos naquele ano, meus melhores amigos com certeza mereciam umas boas férias de mim.

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