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Jaclyn Moriarty AS FENDAS DO REINO As cores de Madeleine Livro Dois TRADUÇÃO Frank de Oliveira e Júlio Monteiro de Oliveira

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Jaclyn Moriarty

As fendAs do Reino

As cores de MadeleineLivro Dois

TRADUÇÃOFrank de Oliveira e

Júlio Monteiro de Oliveira

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Edição: Flavia Lago e Natália Chagas MáximoPreparação: Alessandra Miranda de Sá Revisão: Bia Nunes de Souza e Luciana AraujoCapa e design: Ana Solt

Título original: The cracks in the kingdom

© 2014 Jaclyn MoriartyFirst Published in Australia by Pan Macmillan Australia Translation rights arranged by Jill Grinberg Literary Management LLC and Sandra Bruna Agencia Literária, SLAll rights reserved

Direitos de publicação no Brasil: © 2014 Vergara & Riba Editoras S/Avreditoras.com.br

Todos os direitos reservados. Proibidos, dentro dos limites estabelecidos pela lei, a reprodução total ou parcial desta obra, o armazenamento ou a transmissão por meios eletrônicos ou mecânicos, fotocópias ou qualquer outra forma de cessão da mesma, sem prévia autorização escrita das editoras.

Rua Cel. Lisboa, 989 | Vila MarianaCEP 04020-041 | São Paulo | SPTel.| Fax: (+55 11) [email protected]

ISBN 978-85-7683-748-0

Impressão e acabamento: GeográficaImpresso no Brasil • Printed in Brazil

Moriarty, JaclynAs fendas do reino / Jaclyn Moriarty ; tradução Frank de

Oliveira e Júlio Monteiro de Oliveira. -- São Paulo : Vergara & Riba Editoras, 2014. -- (As cores de Madeleine)

Título original: The cracks in the kingdomISBN 978-85-7683-748-0

1. Literatura juvenil I. Título. II. Série.

14-08384 CDD-028.5

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Índices para catálogo sistemático:1. Literatura juvenil 028.5

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PARA CORRIE STEPAN E RAChEL COhN, COM AMIzADE ACIMA E ALéM

DO NORMAL

De Memoir of Sir Isaac Newton’s Life, de William Stukeley, 1752

No dia em que Oliver Cromwell morreu, irrompeu uma forte ventania,

ou tempestade, em todo o reino. Nesse dia, por pura diversão, um grupo

de garotos resolveu praticar saltos. Sir Isaac, embora tivesse pouca prática

naqueles exercícios e em outras ocasiões tenha sido superado por muitos,

ainda assim se mostrou surpreendentemente superior a todos eles, que, es-

pantados, não puderam descobrir como. O feito foi este: Sir Isaac observou

a direção do vento e tirou vantagem dele para ir mais longe que os demais...

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As fendas do reino c 5

O povo de Cello1

Há muitas pessoas em Cello, o que é uma excelente notícia.

A maioria das pessoas dorme à noite, ama a família real e se locomove

para lá e para cá em caminhadas. Entretanto, numa visita a Cello, você pode

muito bem encontrar um Notívago. Ou se deparar com um hostil Errante.

Ou dar de cara com um Piloto Ocasional – na verdade, é bem provável que

não se encontre um Ocasional. Com bastante honestidade, isso seria tão

improvável quanto encontrar um sapo sob a sua unha. (Embora fosse con-

sideravelmente mais agradável – Pilotos Ocasionais são a maior curtição,

enquanto um sapo sob a unha com certeza iria irritar.)

De qualquer forma, este trecho foi elaborado com a preparação para tal

encontro e ajuda para evitar quaisquer embaraços caso ele aconteça.

1. The Kingdom of Cello: An Illustrated Travel Guide, por T. I. Candle, 7ª ed., 2012, reimpresso com a permissão da Universidade de Brellidge.

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PARTe 1

1

Maximillian Reisman pode ficar de cabeça para baixo por trinta minutos

se quiser.

hoje ele não quer.

Para começo de conversa, sua cabeça está ocupada demais.

Ele tenta se recordar de um conselho que lhe deram certa vez, sobre

como recuperar folhas de repolho murchas. Ao mesmo tempo, está bolando

uma campanha publicitária para um mingau de aveia orgânico. Enquanto

isso, escreve um discurso bem-humorado para apresentar na festinha de

despedida de um colega; e segura um telefone celular sob o queixo, no qual

começa a crescer, imperceptivelmente, uma barba.

Maximillian fecha com um chute a geladeira onde estão as folhas de

repolho murchas. E desliga o telefone, sem deixar nenhuma mensagem.

– Tabernáculo – resmunga.

Trata-se de uma praga. Rogou-a porque percebeu, de repente, que ele (e

sua cabeça) está se esforçando demais.

Maximillian tem 52 anos. Ele acende um cigarro. Vai até a janela. Abre

as persianas e se debruça no parapeito, aspirando a brisa morna da noite.

Sopra a fumaça na direção da Place d’Youville, observando-a sumir em

meio às sombras do Musée d’Archéologie.

São seis horas da tarde de um sábado, 22 de agosto, em Montreal, Quebec,

no Canadá. Maximillian reflete.

Um sorriso se abre em torno do cigarro.

é a barba! A barba está começando a crescer! Era isso que tinha feito ele

se esforçar demais, deixando sua cabeça pesada.

Corre ao banheiro para se barbear.

O calor desperta Sasha Wilczek, como faz todas as manhãs, com seu peso e

linhas de suor escorrendo sobre ela.

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As fendas do reino c 7

São seis da manhã de um domingo, 23 de agosto, em Taipei, Taiwan.

O quarto de Sasha não é muito maior do que a banheira de Maximillian.

Murmúrios velados adentram sorrateiramente a porta entreaberta. O ruído

de uma unha tamborilando sobre um leque de cartas.

São os colegas que dividem o apartamento com Sasha. Um garoto e uma

garota, ambos estudantes norte-americanos. Eles jogam baralho a noite toda.

– Você tem um senso de humor sarcástico.

é a voz da garota, bem clara.

Sasha espera pela resposta do garoto.

– Que quer dizer com isso? – diz ele por fim.

– Que seu tom não muda quando você conta uma piada – responde a garota.

Sasha Wilczek tem 49 anos. Está deitada numa cama estreita. Ela analisa

a definição de humor sarcástico dada pela garota, revolvendo-a na cabeça.

Olha para a janela do quarto coberta de poeira, para os padrões entrecruza-

dos de fita adesiva – uma defesa contra os tufões. Através da poeira, repassa

em sua mente a agenda do dia.

Vai dar aula de zumba às onze da manhã na academia perto de casa.

Tem também hip-hop às duas da tarde e dança livre às 15h30.

Lá fora, o colega de apartamento boceja e se pergunta em voz alta por

que está tão cansado.

Esse garoto não tem senso de humor sarcástico, Sasha pensa de repente.

Ele não tem nenhum senso de humor. É por isso que o tom nunca muda.

Talvez pudesse recomendar a ele uma aula de senso de humor às cinco

da tarde.

Monty Rickard ri tanto que acaba rolando no carpete.

São quatro da tarde de um sábado, 22 de agosto, em Boise, Idaho, nos

Estados Unidos.

há cinco pessoas na sala. Duas delas riem enquanto desplugam o com-

putador e agitam no ar os respectivos fios e o teclado. Os outros, como

Monty, estão se contorcendo de tanto rir.

Tudo pode ter se perdido! Tudo!

Não tem nada de engraçado.

Pelos últimos seis meses, aproveitando o tempo livre, Monty e alguns

amigos vêm criando um jogo de computador. Gianni (um dos que rolam

pelo chão) insistia sempre na necessidade de fazerem um backup.

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Pois agora Gianni acaba de derramar uma lata de energético sobre o

computador todo.

Não há nenhum backup.

Riem com tanta força que a garganta começa a arder.

Monty Rickard tem dezoito anos. Acaba de montar um negócio: levar

cães para passear. Morde as juntas dos dedos. Não é lá muito bom em

programação de computadores, mas seus amigos são, em especial Gianni.

Monty toca sete instrumentos musicais diferentes, entre eles saxofone,

bateria e bandolim.

Um cão salta para o colo de Monty, única maneira que descobriu de par-

ticipar da crise de riso geral. Uma guitarra encostada à parede desliza para

o chão com um tóim que faz o tom das risadas subir uma oitava.

Em Berlim, Alemanha, é meia-noite. Badaladas de sinos dividem o sábado,

22 de agosto, do domingo, 23.

Ariel Peters admira sua nova tatuagem, no braço. é um dragão. O quarto

vibra com as batidas na pista de dança do andar de baixo. Ouvem-se passos

apressados e firmes do lado de fora da porta, que logo somem.

Ariel tem catorze anos. Ela mentiu sobre sua idade para conseguir tra-

balho no bar do andar de baixo. E também para conseguir aquele quarto.

E também para fazer a tatuagem.

é necessário mais. O dragão precisa soltar fogo. Precisa carregar uma

cesta de ovos nas garras. Uma sela para que ela possa cavalgá-lo. Talvez

uma capa para dias de chuva. Uma máquina de café expresso.

Ariel vai economizar dinheiro do pagamento e voltará ao estúdio de

tatuagem logo, logo.

Finn Mackenzie, oito anos de idade, observa um caracol escalar a janela.

Oito da manhã, domingo, 23 de agosto.

Para além do caracol, há a praia de Avoca, localizada a uma hora de

distância ao norte de Sydney, Austrália.

Finn vê um casal andando pela praia. Os dois carregam os sapatos nas

mãos, desviando das algas marinhas. A mulher usa um longo xale de lã. Ela se

agacha para arregaçar a barra do jeans, e o xale se arrasta na areia, a seu lado.

Finn exibe um olhar grave, mas a cuca fresca. Limpa o nariz na manga

da camisa.

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As fendas do reino c 9

– Você está indo na direção errada – diz ele. – Caracóis não pertencem

ao céu.

Acha que talvez possa assistir a Toy Story 3 de novo hoje. E que a cor do

xale da mulher é exatamente a de um sorvete de framboesa.

Você deve estar se perguntando por que esses pequenos eventos ao redor

do mundo reúnem-se aqui.

E acertará se concluir: são eventos irrelevantes.

Exceto por duas coisas.

Primeira:

O tempo desliza pelo mundo de maneira tão estranha que tudo isso está

acontecendo ao mesmo tempo. Pôr do sol em Montreal é meia-noite em

Berlim e hora do café da manhã numa praia ao norte de Sydney, no inver-

no. Maximillian faz a barba enquanto Sasha revira a mente e Monty coça as

orelhas de seu cachorro. Ariel imagina uma nova tatuagem no instante em

que o pequeno Finn levanta a janela e expulsa o caracol do vidro com um

peteleco, vendo-o cair no jardim.

Segunda:

Maximillian Reisman, Sasha Wilczek, Monty Rickard, Ariel Peters e Finn

Mackenzie não são originários desse mundo.

Esses não são sequer os nomes reais deles.

Todos vieram de um reino chamado Cello.

Foram trazidos para nosso mundo contra a própria vontade, através de

fendas imediatamente lacradas assim que as transpuseram. Agora riem, fri-

tam ovos, tomam banho e mandam mensagens de texto – e algumas vezes

ficam até de ponta-cabeça – num mundo que, para eles, é tão estranho

quanto o próprio tempo.

2– Então, há um reino chamado Cello, que perdeu toda a sua família real.

– Certo.

– Que descuido!

– Não é? Eu disse a mesma coisa. Mas eles foram abduzidos e trazidos

para o nosso mundo. é o que eles acham, pelo menos.

– Quem acha?

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– Sei lá. A polícia, a Força de Segurança ou alguém lá em Cello.

– Essa família real tem rei e rainha, por exemplo?

– Sim. E quatro filhos. Três deles estão desaparecidos: um príncipe de

dezoito anos, uma princesa de catorze e um principezinho de oito.

– E você sabe sobre o Reino de Cello porque...

– Porque descobri uma espécie de passagem entre nosso mundo e Cello.

No parquímetro. Envio cartas através dela para um garoto chamado Elliot

Baranski.

Fez-se uma longa pausa.

Belle, que fazia as perguntas, virou-se e olhou para Madeleine, que deu

de ombros.

– Acho que soa meio...

– Inesperado – a voz de Jack veio do banheiro, onde ele limpava o vaso

sanitário.

– Como um monte de besteiras – Belle mergulhou o esfregão no balde ao

seu lado. – Como um monte de besteiras complicadas – corrigiu, pensativa.

– E quem precisa de complicações desse tipo?

Madeleine, Jack e Belle estavam num apartamento em Cambridge,

Inglaterra. O dono do apartamento, Denny Michalski, era um dos professo-

res particulares deles, mas tinha ido ao médico por causa da asma.

havia deixado uma tarefa de Geografia para fazerem.

O trabalho verdadeiro de Denny era o conserto de computadores, e o

local estava inundado por caixas de ferramentas e placas-mãe: não se podia

dar um passo sem bater o dedão numa carcaça de PC aberta.

– Isso aqui é uma zona de perigo para a saúde e a segurança – Jack disse.

– Poeira e pelo de cachorro por todo canto – Belle acrescentou. – Não é

de espantar que ele tenha asma.

– Não sinto que estou realmente em movimento sobre placas tectônicas

– confessou Madeleine, após examinar a lição de Geografia.

Decidiram então limpar o apartamento em vez de fazer a lição.

Enquanto faziam a arrumação, Madeleine havia contado aos amigos so-

bre o Reino de Cello. Nunca tinha mencionado o assunto para eles antes.

Por que agora?

Os produtos de limpeza deviam ter danificado seu cérebro. Madeleine

abriu a torneira da cozinha para tirar das mãos a espuma do sabão. Pode-se

colocar a água de volta na torneira, depois que ela desceu pelo ralo?

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As fendas do reino c 11

Não, pensou de maneira filosófica. Não se pode.

Mas se podia tentar.

– Esqueçam – falou com firmeza. – Inventei essa história toda.

– Só para entender – interveio Belle –, você tem mandado cartas para um

garoto chamado Elliot Baranski que vive num reino chamado Cello?

– Sei que parece loucura – prosseguiu Madeleine. Encontrou a vassou-

ra encostada na geladeira e começou a varrer. – No início, achei que era

uma brincadeira e que Elliot Baranski fosse apenas uma invenção de alguém.

Mas uma vez eu entrei no reino. Por uma fração de segundo. Um centésimo

de segundo.

– Como era o lugar?

– Ensolarado.

Belle concordou com a cabeça, aprovando o clima celliano, e Madeleine

continuou:

– De qualquer forma, o pai de Elliot desapareceu há tempos e desco-

briram que ele foi capturado por uma organização terrorista. Elliot quer

encontrar o pai, mas o reino quer que ele ajude a encontrar a família real.

– Conflito de interesses – ponderou Jack, simpático ao assunto. – Por que

querem a ajuda dele?

– Descobriram que Elliot tem um contato aqui no Mundo.

– Legal. E quem é esse contato?

– Bem... eu.

Ela varreu um pequeno objeto no chão três ou quatro vezes, mas ele

não saiu do lugar; então, lançou um olhar desapontado para a vassoura e

se agachou para removê-lo com as mãos. Era apenas um pequeno parafuso,

preso entre as tábuas do assoalho. Ou seria o que chamam de porca? Quem

iria saber?

Madeleine levantou os olhos. Belle a observava com atenção. Jack, no

banheiro, permanecia em silêncio; dali só vinha o ruído de um pano sendo

passado nos azulejos.

– Quero dizer, sei que devia estar pirada quando entrei no reino. Sei que

ele não existe de verdade...

– Dá para você parar de saber coisas? – interrompeu Belle. – é intuição

demais. E o que quer dizer com “ele não existe”?

– Bem, é óbvio... e você disse que...

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– Eu disse que parecia um monte de bobagens – defendeu-se Belle num

tom irritado. – Não que era. Por que não poderia haver um reino chamado

Cello?

– Sempre achei que poderia haver – Jack se sentou com as pernas cruza-

das na entrada do banheiro. – Quero dizer, sempre achei que devia existir

outro mundo. Não que se chamasse Cello. Como eu ia saber o nome?

Jack encostou a cabeça no batente.

– Em minha opinião – continuou –, poderia se chamar Violino ou Con-

trabaixo. Não necessariamente um instrumento de corda. Talvez Reino do

Trompete.

– Quem disse que tem que ser um instrumento? – perguntou Belle. – Seu

bobo.

Jack a ignorou.

– é provável que haja mais de um reino no seu parquímetro – olhou para

Madeleine com um ar de admiração. – Uma banda inteira de instrumentos

de sopro.

Madeleine girou a vassoura entre as mãos e se virou para Belle.

– Você acredita que haja um reino no parquímetro?

– Não no parquímetro. Não ia caber, ia? Jack não sabe o que diz. E, pelo

que você contou, o parquímetro é uma espécie de túnel, uma caixa de

correio, ou algo assim – irritada, Belle esguichou um jato de água pela sala,

que respingou na colcha da cama. – Opa! – exclamou em um tom solene.

Nesse instante, ouviram o som de uma porta batendo no andar de baixo.

Os três ficaram imóveis, olhando ao redor, para esfregões, panos, baldes

com água suja e pilhas de migalhas e fragmentos de sujeira amontoados de

qualquer jeito.

Sons de passos lentos na escada, patas soando contra o piso.

– Se a família real veio para o nosso mundo – disse Belle de repente –,

quem está governando o Reino de Cello?

A porta se abriu. Denny entrou com a cachorra, Sulky-Anne, que vinha

atrás como se tivesse se lembrado de algo urgente. Ela correu direto para

o quarto, pulou na cama, ajeitou-se e cravou os olhos nos demais com um

olhar penetrante.

Os olhos do próprio Denny tinham um brilho selvagem, que sempre

exibiam quando voltava do tratamento para a asma. Mas sua expressão logo

mudou.

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– Vocês, crianças! – exclamou, emocionado. – Vocês fizeram faxina!

– Mas não a lição – eles confessaram apressadamente, para se aproveitar

do entusiasmo de Denny.

– Lavaram até o banheiro! – prosseguiu ele, enfiando a cabeça pela porta

do recinto. Depois, virou-se para os três. – E tiraram aquela mancha de

mofo em forma de jumento da parede!

– E também jogamos fora o lixo que estava encostado naquela outra

parede – avisou Madeleine, apontando o local. – Aquela bicicleta sem roda,

o pedaço de alvo para dardos e todo o resto foram para a lixeira.

– Talvez pudessem ser úteis em algum momento – a voz de Denny assu-

miu um tom pesaroso de repente.

– Muito improvável – sentenciou Belle em um tom cáustico; e, virando-se

para Madeleine: – Falando sério, quem está no governo de Cello? Ou é uma

espécie de monarquia estúpida em que a realeza só existe para se vestir

bem e ter filhos?

Madeleine refletiu.

– Não... acho que eles têm uma realeza de verdade. Além disso, sobrou

uma das Princesas Irmãs. Ela só tem uns quinze anos, mas está governando

o reino.

– Legal – falou Belle, impressionada, e Madeleine sentiu-se invadir por

uma onda de orgulho, como se fosse ela a princesa reinante.

Belle raramente se impressionava com alguma coisa.

– Vejo que vocês reorganizaram minhas caixas de parafusos, além de

outras coisas – a voz de Denny começava a revelar um tom de dúvida.

– Só reclassifiquei tudo – explicou Jack. – Não tem problema, tem?

Denny optou por se mostrar despreocupado.

– Como poderia ter? E querem saber de uma coisa? Quem se importa

com Geografia?! Vamos sair e comemorar o fato de eu agora poder respirar!

E ter... – fez uma pausa, olhando ao redor – ...metade de um apartamento

limpo!

Todo mundo concordou, incluindo a cachorra.

3A Princesa Ko, monarca reinante de Cello (por falta de opção), rolava uma

pastilha de hortelã pela mesa.

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Estava na sala de reuniões do pavilhão superior do Palácio Branco, ou-

vindo o comissário de Finanças.

A pastilha girou sem fazer barulho. Acertou a palma da mão direita de

Ko, que a devolveu para a mão esquerda.

– Informei a rainha sobre tudo isso – dizia o comissário. – Quero dizer,

claro que enviei as propostas para Climas do Sul quinze dias atrás. A pro-

pósito, como sua mãe está se saindo por lá?

A princesa imobilizou a pastilha com um movimento brusco de mão.

– Tão enrolada quanto uma espiral estelar! – ela exclamou. – Ao menos,

quando falei com ela ontem à noite, era assim que parecia. O chocolate do

Sul acaba com minha mãe! Claro que ela pode ter ficado sem chocolate

agora e entrado em parafuso. Não fique com essa cara! Foi uma piada! Tenho

certeza de que ela ainda tem muito chocolate!

Após uma pausa, prosseguiu:

– Ooohh! Você está querendo saber como o trabalho dela está indo, não

é? Bem, o trabalho dela é da maior importância... Nem posso dizer como

estou feliz. Por ela estar fazendo seu trabalho, quero dizer.

O comissário piscou algumas vezes.

– Maravilhoso – disse ele, coçando a nuca. – E por acaso ela mencionou

se... recebeu minhas propostas?

– E como! Chegou a dar cambalhotas de alegria por causa delas! Como

comissário de Finanças, o senhor trata este reino com tanto carinho que

quase o embala nos braços, como uma criança! Foram as palavras dela!

Mas eu penso a mesma coisa.

– Nesse caso, talvez eu possa incomodá-la um pouco, na ausência de

sua mãe...

A Princesa Ko manteve a mão esquerda pressionando a pastilha, en-

quanto estendia a direita para pegar o Selo Real. Entalhado em madeira de

sândalo, alto como uma garrafa de vinho, ele ficava ao lado de uma pilha

de pastas.

Ca-clamp.

Ela assoprou a tinta.

O comissário balançou a cabeça em sinal de agradecimento e puxou a

cadeira para trás, olhando através da janela mais próxima.

– Esta vista... – balançou a cabeça em uma negativa. – Você sem dúvida

nunca se cansa dela.

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As fendas do reino c 15

De maneira educada, a princesa se virou e seguiu o olhar dele.

Campos de neve atraíam os olhos para uma deslumbrante mistura de

branco-azulado, branco-prateado e branco-branqueado. As únicas interrup-

ções eram salpicos de azul-celeste (lagos) ou manchas galopantes (ursos

ou lobos – possivelmente lobisomens; era difícil saber a diferença naqueles

dias) – e, bem longe, os penhascos de uma cordilheira flutuante.

– Por acaso um espantalho se cansa de dar piruetas? – perguntou a

Princesa Ko.

O comissário fez uma reverência para disfarçar seu espanto e saiu com

pressa da sala.

Quando a porta se fechou, a princesa pôs a pastilha na boca e girou a

cadeira em 180 graus.

Um homem e uma mulher estavam encostados, ombro a ombro, na pa-

rede atrás dela. Eram seus guardas de segurança.

– Um já foi, faltam dezessete... – suspirou a princesa.

A mulher concordou com um aceno rápido de cabeça.

– Aham.

O homem encarou com atenção a Princesa Ko, como se estivesse ten-

tando decifrá-la.

– Vocês dois parecem estar sempre enfileirados diante de um pelotão de

fuzilamento – observou a Princesa Ko. – E mesmo assim meus esforços para

persuadi-los a se sentar nunca valem mais que um respingo de estrume de

cavalo.

O homem se permitiu um sorriso.

– Exagerei? – perguntou ela.

– A imagem da rainha dando cambalhotas de alegria talvez tenha sido

um pouco demais – respondeu ele.

A Princesa Ko esboçou um leve sorriso.

– O comissário de Finanças – pensou em voz alta – é questionável em

sua política de taxa de juros, mas em questões de impostos é um homem

confiável. Na área fiscal parece astuto, embora, em outras, seja quase tão

tapado quanto eu.

Ambos os guardas riram.

Antes que a conversa pudesse continuar, no entanto, a porta se abriu e

alguém anunciou:

– O comissário de Transporte Público, Alteza.

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A Princesa Ko estendeu a mão para pegar a segunda pasta na pilha.

O dia avançava.

Três jovens oficiais de relações públicas queriam expressar sua aflição pela

marca preferida de óculos escuros da rainha. O general do Exército precisava

de um adiantamento do orçamento do ano seguinte: escaramuças com hostis

Errantes na província da Faixa da Natureza. O diretor-assistente da Sociedade

de Luminosidade estava inquieto com um possível avanço revolucionário nas

nuances das Cores. A cozinheira real, uma ruiva alta que usava sempre batom

carmim, precisava da aprovação do cardápio para o Banquete de Boas-Vindas.

– Banquete de Boas-Vindas?

– Sim, Majestade. A Aliança da Juventude Real. A convenção inaugural é

na semana que vem. Com certeza você...

– Esqueci? Será que esqueci!? Não, na verdade estou me virando e revi-

rando no sono da excitação. Ou estaria, se estivesse dormindo.

A cozinheira sorriu.

– é uma pena que sua irmã, a Princesa Júpiter, não estará aqui para o

banquete. Serviremos iguarias de todas as províncias participantes. E há um

garoto vindo das Fazendas...

– Elliot Baranski – completou a Princesa Ko.

– é esse o nome dele? Muito bem. Teremos tortas de noz-pecã, de abó-

bora, de caramelo e de canela, em honra à província de Elliot. Nosso espe-

cialista em sobremesas foi treinado nas Fazendas. Enfim, o que quero dizer

é que sabemos do gosto da Princesa Júpiter por bolos e tortas!

– Eu sei! Ela estaria subindo pelas paredes daquele centro de reabilitação

se... opa. Tente desouvir isso, por favor! A Princesa Júpiter não está nem

perto de um centro de reabilitação! Como é de conhecimento geral, ela foi

para uma faculdade de Matemática a fim de melhorar seus conhecimentos

nesse... campo de... estudo.

A cozinheira arregalou os olhos, confusa, e empurrou o cardápio para

a princesa.

Ca-clamp! Ca-clamp! Ca-clamp!, fez o Selo Real.

Alguns visitantes eram mais formais e sentiam-se constrangidos, o tem-

po todo enxugando as palmas suadas nas pernas da calça. Outros fingiam

indiferença, reclinando-se ou estendendo as mãos para servir-se da água

gelada de um jarro de prata. Outros apresentavam certa dificuldade em

esconder o espanto diante da estupidez da princesa.

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As fendas do reino c 1 7

Todos enalteciam a paisagem vista da janela.

A reunião final do dia era com o secretário social. Era um homem baixo

e de aparência cômica, que gostava de usar camisas com colarinhos altos, e

em tons de verde. Balançava-se o tempo todo para a frente e para trás na

cadeira, enfiava as mãos nos bolsos e logo as retirava, para apontar o próxi-

mo item em sua lista. Depois, metia-as de novo nos bolsos. Aquele parecia

ser um ritual que desperdiçava tempo e esforço.

Por fim, reclinou-se, tirou as mãos dos bolsos e apontou com firmeza o

último item.

– Deixei o melhor para o final – declarou.

– Deixou, sim – concordou a Princesa Ko; e, depois de uma pausa: –

Deixou?

– Um convite que chegou hoje de manhã, princesa. Já comuniquei

os detalhes a seu pai... se é que se pode comunicar alguma coisa a um

navio em cruzeiro pelo Narraburra... Também mandei um alerta para to-

dos os departamentos: Diplomacia, Segurança, Relações Internacionais,

Forças Armadas, sem mencionar Etiqueta e Protocolo. Pode adivinhar

de quem é o convite? – ele lhe deu uma piscadela, e a princesa retribuiu

com outra.

– Não – admitiu ela, depois de trocarem várias piscadelas.

– é do rei de Aldhibah! Ele convida seu pai para a cerimônia de nomea-

ção do filho para o cargo de... veja só: fabricante de velas! Também conhe-

cido como guia de luz! Isto é, o rei de Aldhibah pede que seu pai seja um

modelo de comportamento para seu primogênito durante toda a vida dele!

Bem, você sabe que as relações entre os dois reinos são um tanto... tensas,

para dizer o mínimo, e que portanto esse convite é...! – calou-se, brandindo

um cartão branco do tamanho da palma de uma mão.

– Bem pequeno – murmurou a princesa.

– GIGANTESCO! – gritou o secretário social, sem perder o entusiasmo.

– Não estou certo?

– Por acaso o mar é da mesma cor de um patife? – perguntou a Princesa

Ko, começando a entrar no clima.

– Bem, não, na verdade não. Patifes são de um laranja-avermelhado

pálido, o mar é... mas vejo pelo seu comportamento que você concorda

comigo! Isto é o máximo, certo? Quando mencionei o fato para Relações

Internacionais, eles ficaram tão alvoroçados que quase me derrubaram.

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é melhor que a oferta de um tratado de paz! é mais do que uma aliança!

Pode marcar o fim de séculos de conflito!

– Tão fantástico quanto um arco-íris – concordou a Princesa Ko. – Em Ponta

Serrilhada, para seu governo, os patifes são azul-esverdeados, como o mar.

– Obrigado. Seu pai voltará de Narraburra a tempo, certo? Se não, poderá

encurtar a viagem?

– é claro que ele pode encurtar a viagem se precisar... mas você ainda

não me disse quando será isso.

O secretário social virou o cartão.

– Exatamente daqui a três meses, contando a partir de hoje.

– Responda agora mesmo – ordenou a Princesa Ko. – Não vamos esperar

meu pai responder de seu navio... isso pode levar dias e parecer um insulto.

Diga que ele está honrado em aceitar e...

Ouviu-se, atrás da Princesa Ko, um som agudo como o de um elástico sen-

do esticado e solto. Ko e o secretário social se viraram. Os guardas de segu-

rança estavam parados a certa distância, imóveis e atentos.

– Eles são de verdade? – sussurrou o secretário social.

– Não sei. Como poderia saber?

Os dois estudaram os guardas por algum tempo.

– Opa! – gritou o secretário social. – Ele está tentando não bocejar! Tem

um bocejo completo preso nas bochechas, está vendo? Pode ver?

– Sim. Então eles são reais – a princesa se virou para a frente de novo.

– O que é um alívio. Sem dúvida, o bocejo era de tédio por todo mundo

fazer essa piada. Mas, sim, por favor, aceite o convite em nome de papai e

diga que ele mal pode esperar por essa honra, em que nossos dois grandes

reinos blá-blá-blá! Você sabe as palavras certas. E peça que a Diplomacia

verifique a resposta, bem como todos esses outros departamentos de que

você falou. Onde devo carimbar?

Ca-clamp! Ca-clamp!

O secretário social reuniu as pastas.

– Você – exclamou ele – é a melhor princesa do pedaço! E é bem mais

esperta do que deixa transparecer – ele se voltou para a janela. – Mas isto! –

exclamou –, é quase tão deslumbrante quanto você! Ah, campos de neve ao

crepúsculo... Oh, dragões à distância. Vê a luz que se reflete das escamas?

E o céu está incandescente, com tons tangerina e prat... Espere, isso é prata

de verdade?

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As fendas do reino c 19

A princesa, ainda sentada, contemplou o panorama.

– Não – disse ela. – Não é prata, é só um pôr do sol. Mas com certeza é

de virar a cabeça.

– Ah! – murmurou o secretário social. – Que sortuda! – fez então uma

reverência, lançando um sorriso maroto para os guardas de segurança;

a Princesa Ko se inclinou e sorriu também.

A porta se fechou atrás dele.

A princesa pegou uma pastilha e a fez rolar na palma da mão.

Os guardas de segurança a observavam.

– Temos três meses – disse ela – para trazer minha família de volta.

Depois levantou-se e caminhou até a janela, desatou os cordões que

prendiam as cortinas e as fechou. A sala mergulhou na penumbra.

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