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tradução CLEMENTE PEREIRA Jay Kristoff A sombra do Corvo v. 1 das crônicas da quasinoite

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tradução CLEMENTE PEREIRA

Jay Kristoff

A sombra do Corvo

v. 1 das crônicas da quasinoite

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título original Nevernight

© 2016 Neverafter Pty, Ltd. Publicado mediante acordo com Sandra Bruna Agencia Literaria, SL, representante da Adams Literary. Todos os direitos reservados. © 2017 Vergara & Riba Editoras S.A.

Plataforma21 é o selo jovem da V&R Editoras

edição Fabrício Valério e Flavia Lago editora-assistente Natália Chagas Máximopreparação Isadora Prosperorevisão Fábio Bonillodireção de arte Ana Soltdesign de capa Young Jin Liilustração de capa Jason Chantipografia de capa Meg Morleydiagramação Pamella Destefi

Todos os direitos desta edição reservados à VERGARA & RIBA EDITORAS S.A.Rua Cel. Lisboa, 989 | Vila MarianaCEP 04020-041 | São Paulo | SPTel.| Fax: (+55 11) 4612-2866plataforma21.com.br | [email protected]

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Kristoff, JayNevernight: a sombra do corvo, livro um / Jay Kristoff; tradução Clemente Pereira. – São Paulo: Plataforma21, 2017. – (Crônicas da quasinoite)

Título original: NevernightISBN: 978-85-92783-24-2

1. Ficção juvenil 2. Suspense – Ficção I. Título II. Série.

17-03666 CDD-028.5

Índices para catálogo sistemático:1. Ficção: Literatura juvenil 028.5

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Não há sombra sem luz,O dia à noite conduz,Entre o breu e o que reluzHá o cinza.

- antigo provérbio ashkahi

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Caveat Emptor

As pessoas costumam cagar-se todas ao morrer.Seus músculos relaxam, suas almas voam livres e o resto... escorre. Apesar

de todo o amor do público pela morte, os dramaturgos quase não tratam disso. Quando nosso herói exala seu último suspiro nos braços de sua heroína, eles não chamam a atenção para a mancha vazando-lhe por entre as coxas, nem para o fe-dor que faz lacrimejar os olhos da mulher que se inclina para o beijo de despedida.

Digo isso a fim de avisar, ó caros amigos, que este seu narrador não parti-lha desses escrúpulos. E se a realidade desagradável do sangue derramado revira seus estômagos, estejam cientes desde já que as páginas em suas mãos falam de uma garota que está para o assassinato assim como o maestro está para a música. Que fez com os finais felizes o mesmo que uma serra faz com a pele.

Ela própria está morta, palavras que tanto os perversos como os justos da-riam os olhos da cara para ouvir. Deixou atrás de si as cinzas de uma república. Uma cidade de pontes e ossos caída nas profundezas do oceano por suas mãos. E, contudo, tenho certeza de que ela ainda encontraria um jeito de me matar se soubesse que pus estas palavras no papel. Eu seria partido ao meio e deixado para a Escuridão faminta. Mas penso que alguém deveria pelo menos tentar separar a garota das mentiras contadas sobre ela. Através dela. Por ela.

Alguém que sabe da verdade.Uma garota que alguns chamavam de Moça Branca. Ou a Faz-Rei. Ou

Corvo. Mas, na maioria das vezes, não chamavam de nada. Matadora de

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matadores, cuja lista de finados somente a deusa e eu conhecemos de verdade. E isso a tornou famosa ou infame, ao fim? Tanta morte? Confesso que jamais pude enxergar a diferença. Contudo, jamais enxerguei as coisas como vocês.

Jamais vivi no mundo que vocês chamam de seu.Nem ela, na verdade.Penso que é por isso que eu a amava.

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Livro IQuando tudo é sangue

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Capítulo 1Começos

O garoto era belo.Pele suave em tom caramelo, sorriso doce como o melaço. Cachos pretos e

rebeldes do lado direito. Mãos fortes e músculos rijos e os olhos... Ah, Filhas, os olhos. Tinham cinco mil braças de profundidade. Puxavam você para o riso ao mesmo tempo que te afogavam.

Os lábios dele tocavam os dela, cálidos, curvos e tenros. Estavam enlaçados na Ponte dos Suspiros, um rubor arroxeado recortado contra as ondas do céu. As mãos dele deslocaram-se até as costas dela e agora lhe queimavam a pele. O ro-çar de pena das línguas lhe deu calafrios; seu coração disparava, suas entranhas pulsavam de desejo.

Ambos recuaram como dançarinos instantes antes de a música parar, com as cordas ainda vibrando dentro de si. Ela abriu os olhos, deparou com ele devolvendo o olhar através da luz nebulosa. Um canal murmurava sob eles, a lentidão de suas águas sangrando para o mar. Bem como ele desejava. Bem como ela precisava. Rezando para não se afogar.

Sua última quasinoite nesta cidade. Parte dela não queria dizer adeus. Mas antes de partir, ela queria saber a verdade. Devia isso a si mesma.

– Tem certeza? – ele perguntou.Ela o olhou bem dentro dos olhos.Tomou-o pela mão.– Tenho certeza – ela sussurrou.

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O homem era repugnante.Pele esclerosada, um queixo raso perdido em camadas de banha e buço.

Um brilho de saliva na boca, nódoas de uísque pelas bochechas e nariz, e os olhos, pelas Filhas, os olhos. Azuis como o céu sem nuvens. Cintilando como estrelas na imobilidade da veratreva.

Seus lábios tocaram a caneca, enxugando os restos da bebida, enquan-to música e riso se levantavam ao redor. Equilibrou-se mais um pouco no coração da taverna, em seguida lançou uma moeda no balcão de pau-ferro e caminhou a passos trôpegos para a luz dos sóis. Seus olhos, turvos de álcool, percorreram o calçamento. As ruas enchiam-se cada vez mais, e ele teve de abrir caminho à força por entre a multidão, almejando somente sua casa e um sono sem sonhos. Não olhou para cima. Não espiou a figura agachada no topo de uma gárgula de pedra no telhado oposto, vestida de branco-cal e cinza-cimento.

A garota o observava manquitolar pela Ponte dos Irmãos. De tempos em tempos, levantava a máscara de arlequim para tragar sua cigarrilha; a fu-maça com aroma de alho riscava uma trilha no ar. A visão do homem – com seu sorriso cadavérico, suas mãos ásperas como cordas – a fez ter calafrios; seu coração disparou, suas entranhas pulsaram de desejo.

Sua última quasinoite nesta cidade. Parte dela não queria dizer adeus. Mas antes de partir, ela queria que ele soubesse a verdade. Devia isso a ele.

Uma sombra sob a forma de gato sentou-se ao seu lado no telhado. Era chata como papel e semitranslúcida, negra como a morte. A cauda abraçava o tornozelo da garota de maneira quase possessiva. As águas frias circulavam pelas veias da cidade até o mar. Bem como ela desejava. Bem como ela devia. Ainda rezando para não se afogar.

– ...tem certeza? – perguntou o gato feito de sombras.A garota observou seu alvo coxear rumo à cama.Um aceno devagar com a cabeça.– Tenho certeza – ela sussurrou.

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O quarto era pequeno, despojado; era só o que podia pagar. Mas ela havia disposto velas de rosa e um buquê de lírios-d’água sobre os lençóis, brancos

e limpos e com as pontas dobradas para baixo como que em convite. O garoto sorriu diante da doçura esmerada do arranjo.

Ao aproximar-se da janela, ela contemplou a velha e grande cidade de Godsgrave. Mármore branco, tijolos ocres e cumes graciosos beijando o céu quei-mado de sol. Ao norte, as Costelas erguiam-se centenas de metros até as nuvens douradas, e janelas minúsculas espiavam dos apartamentos escavados no osso antigo. Os canais fluíam da Espinha oca, recortando padrões na pele das cida-des como teias de aranhas loucas. Longas sombras cobriam as vias abarrotadas de gente à medida que o segundo sol sumia – o primeiro já desaparecera havia muito – e deixava o terceiro e intratável irmão vermelho de guarda durante os perigos da quasinoite.

Ah, se ao menos fosse veratreva.Se fosse, ele não a veria.Ela não sabia ao certo se queria que ele a visse fazendo aquilo.O garoto se aproximou por atrás, envolto em suor fresco e tabaco. Escorre-

gando as mãos pela cintura dela, correu os dedos como gelo e chama ao longo das depressões no quadril. Ela respirou mais forte, sentindo formigar um lugar pro-fundo e antigo. Os cílios agitavam-se como asas de borboleta contra suas bochechas enquanto as mãos dele contornavam a cúspide do seu umbigo, dançando por suas costelas, até envolverem seus seios. Sua pele arrepiou-se com a respiração dele em seus cabelos. Arqueando a espinha, devolvendo a pressão daquela rigidez que sen-tia no ventre dele, alçou uma mão até os seus cachos rebeldes. Ela não conseguia respirar. Não conseguia falar. Não queria que aquilo começasse ou terminasse.

Virou-se, suspirando quando seus lábios se encontraram novamente, e brin-cou com as abotoadoras na manga rendada dele; era toda dedos, suor e tremores. Arrancando as suas camisas, lançou os lábios contra os dele e afundaram-se na cama. Só ela e ele agora. Pele com pele. Seus gemidos ou os dele, ela não conse-guia mais diferenciar.

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A dor era insuportável, vazava-lhe; as mãos trêmulas exploravam as ondu-lações no peito dele, suaves como a cera, e a rija linha de carne em V que descia até as calças. Ela enfiou os dedos lá dentro e roçou aquele calor pulsante, pesado como ferro. Terrível. Estonteante. Ele gemeu, fremindo como um potro recém--nascido enquanto ela o acariciava, suspirando sobre sua língua.

Ela nunca sentira tanto medo.Nunca em todos os seus dezesseis anos.– Me fode... – balbuciou.

O quarto era luxuoso, do tipo que só os ricos podiam bancar. Contudo, havia garrafas vazias sobre a escrivaninha e flores mortas na cabeceira,

murchas em seu cheiro rançoso de desgraça. A garota consolou-se ao ver que aquele homem que tanto odiava estava tão bem de vida e tão completamen-te sozinho. Pela janela, ela o viu pendurar a sobrecasaca e apoiar o tricórnio puído num jarro vazio. Tentava convencer a si mesma de que era capaz de fazer aquilo. De que era dura e afiada como aço.

Empoleirada no telhado da frente, baixou o olhar para a cidade de Godsgrave, para os calçamentos manchados de sangue e túneis escondidos e catedrais altivas de osso reluzente. As Costelas penetravam o céu acima dela, os canais tortos fluíam da Espinha deformada. Longas sombras cobriam as vias abarrotadas de gente à medida que o segundo sol sumia – o primeiro já desaparecera havia muito – e deixava o terceiro e intratável irmão vermelho de guarda durante os perigos da quasinoite.

Ah, se ao menos fosse veratreva.Se fosse, ele não a veria.Ela não sabia ao certo se queria que ele a visse fazendo aquilo.Com o braço estendido e dedos ágeis, ela puxou as sombras para si, te-

cendo e torcendo as teias negras até fluírem de seus ombros como um manto. Ela desapareceu dos olhos do mundo, tornou-se quase translúcida, como

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uma mancha numa pintura dos edifícios da cidade. Deu um salto pelo va-zio até o beiral da janela dele. Ergueu-se, rapidamente destrancou o vidro e penetrou no quarto da frente, silenciosa como o gato feito de sombras que a seguia de perto. Puxou um estilete do cinto, a respiração saindo mais pesada, fazendo formigar um lugar profundo e antigo. Agachada, escondida num canto, os cílios agitavam-se como asas de borboleta contra suas bochechas, e ela o observou encher um copo com mãos trêmulas.

Ela estava respirando alto demais, com as lições todas desabaladas na cabeça. Mas ele estava entorpecido demais para notar, perdido em algum lugar nas lembranças do estalar de mil pescoços esticados, do dançar de mil pares de pés dançando ao som do enforcador. Com os dedos brancos ao redor da bainha da adaga, ela observava tudo da escuridão. Não conseguia respirar. Não conseguia falar. Não queria que aquilo começasse ou terminasse.

Ele soltou um suspiro ao beber do cálice, brincou com as abotoaduras nas mangas rendadas; era todo dedos, suor e tremores. Arrancando a camisa, coxeou pelas tábuas do piso e afundou-se na cama. Só ela e ele agora. Fôlego por fôlego. Seu fim ou o dele, ela não conseguia mais diferenciar.

A pausa era insuportável. O suor vazava-lhe nos calafrios da noite. Lembrou-se de quem era, do que aquele homem havia levado, de tudo o que podia acontecer se ela falhasse. E, rígida como aço, removeu o manto de sombras e avançou ao encontro dele.

Ele gemeu, ameaçando correr como um potro recém-nascido quando ela surgiu à luz vermelha do sol com um sorriso de arlequim em vez do próprio.

Ela nunca tinha visto alguém com tanto medo.Nunca em todos os seus dezesseis anos.– Me fode... – ele balbuciou.

Ele montou sobre ela, já com as calças nos calcanhares. Ele com os lábios no pescoço dela, e ela com o coração na garganta. Uma era passou-se, em

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algum ponto entre o querer e o temer e o amar e o odiar, e por fim ela o sentiu, quente, uma dureza estarrecedora, forçando contra a suavidade no meio das suas pernas. Ela tomou fôlego, talvez para falar (mas o que diria?) e então veio a dor, dor. Ai, Filhas, doeu. Ele estava dentro dela – aquilo estava dentro dela – tão duro e real que ela não conseguiu evitar o grito e mordeu os lábios para represar a torrente.

Ele fora grosso, descuidado, jogando o peso sobre ela enquanto forçava e forçava. Nada parecido com os sonhos doces com que ela inflara o momento. As pernas esticadas, o nó no estômago. Ela chutava o colchão querendo que ele parasse. Que esperasse.

Era aquela a sensação certa?Era aquele o jeito certo?Se depois tudo malograsse, aquela seria a sua última quasinoite neste mundo.

E ela sabia que a primeira vez geralmente era a pior. Ela se julgara pronta; tenra o bastante, molhada o bastante, desejosa o bastante. Julgara que tudo o que as outras garotas da rua tinham dito entre risinhos e olhares divertidos não seria verdade para ela.

– Feche os olhos – aconselharam. – Acaba logo.Mas ele era tão pesado, e ela tentava não chorar, e desejava que não pre-

cisasse ser daquele jeito. Ela tinha sonhado com aquilo, esperado algo especial. Mas agora que estava ali, achava aquilo uma coisa tosca, estabanada. Nada de mágica e fogos de artifício ou êxtase. Só a pressão dele sobre seu peito, a dor com os seus movimentos, enquanto ela gemia baixo, encolhia-se, de olhos fechados, à espera de que ele terminasse.

Ele apertou os lábios contra os dela, os dedos agarrando-lhe as bochechas. E naquele momento, houve uma faísca – uma doçura que a fez formigar de novo, apesar da estranheza e pressa e dor de tudo aquilo. Ela retribuiu o beijo e sentiu calor dentro de si, inundando-a e preenchendo-a à medida que todos os músculos dele se retesavam. E ele apertou o rosto no cabelo dela e estremeceu numa pequena morte para enfim desabar sobre ela, mole e úmido e lânguido.

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Ela permaneceu deitada, respirando fundo. Suspirou.Ele rolou para o lado e desabou nos lençóis ao lado dela. Ao colocar a mão

no meio das pernas, ela sentiu umidade, dor. Manchas nas pontas dos dedos e nas coxas. Sobre o linho branco e limpo com os cantos dobrados como que o convidando.

Sangue.– Por que não me disse que era sua primeira vez? – ele perguntou.Ela não disse nada. Só olhava o vermelho reluzindo nas pontas dos dedos.– Desculpe – ele sussurrou.Ela olhou para ele.Desviou o olhar com a mesma rapidez.– Você não tem nada do que se desculpar.

Ela estava montada nele, imobilizando-o com os joelhos. Ele estava com a mão no pulso dela, e ela com o estilete na garganta dele. Uma era pas-

sou-se, em algum ponto entre o debater-se e o bufar e o implorar, e por fim a lâmina afundou no seu lugar, afiada, um dureza estarrecedora, penetrando o pescoço e atingindo a coluna. Ele tentou tomar fôlego (mas o que diria?) e ela conseguia ver nos seus olhos: a dor, a dor. Ó, Filhas, doeu. Aquilo estava dentro dele – ela estava dentro dele –, perfurando duro enquanto ele tentava gritar, a mão dela na boca dele para represar a torrente.

Ele estava em pânico, desesperado, arranhando a máscara dela enquanto ela torcia a lâmina. Nada parecido com os sonhos terríveis com que ela inflara o momento. As pernas esticadas, o pescoço jorrando. Ele chutava o colchão querendo que ela parasse. Que esperasse.

Era aquela a sensação certa?Era aquele o jeito certo?Se depois tudo malograsse, aquela seria a sua última quasinoite neste

mundo. E ela sabia que a primeira vez era geralmente a pior. Ela não se

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julgara pronta; não forte o bastante, não fria o bastante, que as palavras de incentivo do Velho Mercurio não seriam verdade para ela.

– Lembre-se de respirar – ele tinha aconselhado. – Vai acabar logo.Ele se debatia e ela o mantinha no lugar, e tudo nela se perguntava se sem-

pre seria daquele jeito. Ela tinha imaginado que este momento seria algum tipo de mal. Um martírio a suportar, não um momento para saborear. Mas agora que estava ali, achava aquilo uma coisa linda, uma dança. A coluna dele arqueada debaixo de si. O medo nos olhos dele enquanto arrancava sua máscara. O brilho da lâmina que ela tinha enfiado no lugar certo, a mão na boca dele enquanto ace-nava com a cabeça, ninando-o com voz materna, à espera de que ele terminasse.

Ele arranhou a bochecha dela; o odor fétido do seu hálito e da sua merda enchia o quarto. E naquele momento, houve uma faísca – um horror dando à luz à misericórdia, apesar do fato de que ele merecia aquele fim e mais cem outros. Ela retirou a lâmina e a enterrou no peito dele, e sentiu o calor nas mãos, inundando e encharcando, à medida que cada músculo do corpo dele se retesava. E ele agarrou-lhe a mão e suspirou morrendo, mur-chando sob ela, mole e úmido e lânguido.

Sentada sobre ele, ela respirou fundo. Sentiu gosto de sal e escarlate. Suspirou.

Ela rolou para o lado, os lençóis amarrotados ao seu redor. Ao tocar o rosto, sentiu umidade, calor. Manchas nas mãos e nos lábios.

Sangue.– Escuta-me, Niah – ela murmurou. – Escuta-me, Mãe. Esta carne, o

teu banquete. Este sangue, o teu vinho. Esta vida, este fim, minha oferta a ti. Leva-a para perto de ti.

O gato feito de sombras observava do seu poleiro na cabeceira da cama. Observava-a como apenas os cegos são capazes. Não disse palavra alguma.

Não precisava.

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Luz baça do sol na pele. Cabelo de corvo, molhado de suor, caído sobre os olhos. Ela subiu as calças de couro, passou a camisa cinza-cimento por sobre

a cabeça, calçou as botas de couro de lobo. Dolorida. Maculada. Mas contente, de alguma forma. Em algum lugar perto do contentamento.

– O quarto está pago para a quasinoite inteira – ela disse. – Se você quiser.O açucarado observava do outro lado da cama com a cabeça sobre o cotovelo.– E a minha moeda?Ela estendeu a mão para pegar a bolsa ao lado do espelho.– Você é mais jovem do que as minhas clientes regulares – ele disse. – Não

faço muita primeira vez.Ela se olhou no espelho: pele alva e olhos escuros. Mais jovem do que a pró-

pria idade. E embora a prova do contrário estivesse secando em sua pele, por um momento, ela ainda achou difícil considerar-se outra coisa que não uma garota. Uma coisa frágil e trêmula, uma coisa que dezesseis anos nesta cidade jamais conseguiram enrijecer.

Ela enfiou a camisa dentro da calça. Conferiu a máscara de arlequim no manto. O estilete no cinto. Afiado e brilhante.

O enforcador logo sairia da taverna.– Tenho que ir – ela disse.– Posso lhe perguntar uma coisa, mi dona?– Pergunte.– Por que eu? Por que agora?– Por que não?– Isso não é resposta.– Você acha que eu deveria ter me guardado, é isso? Que sou uma espécie

de presente a ser dado? Agora estragado para sempre?O garoto não disse nada, apenas a observava com seus olhos com cinco mil

braças de profundidade. Belo como no retrato. A garota sacou uma cigarrilha de um estojo de prata e acendeu-a numa das velas. Respirou fundo.

– Só queria saber como era – ela disse afinal. – Caso eu morra.

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Ela deu de ombros, e exalou cinza.– Agora sei.E caminhou sombras adentro.

Luz baça do sol na pele. Manto cinza-cimento pendendo dos ombros, transformando-a em sombra na luz melancólica. Ela estava debaixo de

um arco de mármore na Piazza Rei Mendigo; o terceiro sol pendia sem rosto no céu. Lembranças do fim do enforcador secavam com as manchas de sangue das mãos. Lembranças dos lábios do açucarado secavam com as manchas na calça. Dolorida. Suspirando. Mas ainda contente, de alguma forma. Ainda em algum lugar perto do contentamento.

– Vejo que não morreu.O Velho Mercurio a observava do outro lado do arco, tricórnio baixo, ci-

garrilha nos lábios. Parecia menor de alguma forma. Mais magro. Mais velho.– Não por falta de tentativa – retrucou a garota.Ela o observou: mãos manchadas e olhos desbotados. Envelhecido

além da própria idade. E embora ela tivesse a prova do contrário incrustada na pele, por um instante achou difícil considerar-se outra coisa que não uma garota. Uma coisa frágil e trêmula, alguma coisa que seis anos sob a tutela dele não conseguiram enrijecer.

– Não vou vê-lo por muito tempo, vou? – ela perguntou. – Talvez jamais o veja de novo.

– Você sabia disso – ele disse. – Fez sua escolha.– Não sei se em algum momento houve escolha de verdade – ela disse.Ela abriu o punho; havia uma bolsa de pele de ovelha na palma da

mão. O velho tomou a oferta e contou o conteúdo com um dedo manchado de tinta. Tilintando. Manchados de sangue. Vinte e sete dentes.

– Parece que o enforcador perdeu alguns antes que eu o alcançasse – ela explicou.

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– Eles vão entender – Mercurio atirou a bolsa de volta à garota. – Es-teja no décimo sétimo cais quando o sino soar as seis. Um bergantim dwey-meri chamado Namorado de Trelene. É um navio livre que não navega sob as cores de Itreya. Ele a conduzirá dali em diante.

– Para um lugar a que você não vai.– Eu a treinei bem. Você deve ir só. Atravesse a passagem da Igreja Ver-

melha antes da primeira volta de Septimus, ou jamais a atravessará na vida.– Compreendo.Um brilho de afeto apareceu nos olhos reumosos dele.– Você é a melhor pupila que já mandei para o serviço da Mãe. Lá, vai

abrir as asas e voar. E vai me ver de novo.Ela sacou o estilete do cinto. Com a cabeça curvada, colocou-o sobre o

antebraço como que em oferenda. A lâmina era trabalhada em ossário, bri-lhava branca e dura como o aço, o cabo esculpido como um corvo em voo. Os olhos vermelhos de âmbar brilhavam à luz escarlate do sol.

– Fique com ele – o velho fungou. – É seu de novo. Você fez por me-recer. Finalmente.

Ela olhou bem para a faca, de cima a baixo.– Devo lhe dar um nome?– Você poderia, imagino. Mas para que serviria?– Para furar as pessoas – ela respondeu tocando a ponta da lâmina. – É

para isso que servem as facas.– Ah, bravo. Cuidado para não se cortar com esse seu intelecto tão afiado.– Todos os punhais e espadas famosos têm um nome. É assim que

funciona.– Besteira – comentou Mercurio, tomando a adaga de volta e a erguen-

do entre ambos. – Facas com nomes são o tipo de fanfarra reservado aos he-róis, garota. Homens que ganham canções a seu respeito, sobre quem criam histórias, que têm seu nome dado a fedelhos. Você e eu vamos pela estrada das sombras. E se der conta do recado, ninguém jamais saberá sequer seu

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Page 20: Jay Kristoff - plataforma21.com.brplataforma21.com.br/wp-content/uploads/2000/04/Trecho-do-livro... · (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) ... Azuis como o céu sem nuvens

nome, quanto mais o desse espeto de porco na sua cinta. Você será um rumor. Um sussurro. O pensamento que faz os bastardos deste mundo acordarem suando na quasinoite. A última coisa que você virá a ser neste mundo, garota, é heroína de alguém. – Mercurio devolveu o punhal. – Mas será uma garota que os heróis temem.

Ela sorriu. De repente, e com uma tristeza terrível. Hesitou por um ins-tante. Chegou perto. Presenteou as bochechas de lixa com um beijo delicado.

– Sentirei saudades – disse.E caminhou sombras adentro.

Capítulo 2Música

O céu chorava.Ou ao menos assim lhe parecia. A garotinha sabia que a água gotejando

das manchas cor de carvão no alto se chamava chuva – ela não tinha nem dez anos, mas já era velha o bastante para saber disso. Mesmo assim, ainda fantasiava com lágrimas caindo daquele rosto de algodão doce. Tão frias comparadas às dela própria. Não continham sal nem ardiam. Mas sim, o céu com certeza chorava.

O que mais poderia fazer num momento como este?Ela estava no alto da Espinha acima do fórum, ossários brilhando aos seus

pés, vento frio soprando no cabelo. Uma multidão estava reunida na praça lá embaixo, com bocas abertas e punhos cerrados. Debatiam-se ao redor do cada-falso no coração do fórum, e a garota se perguntava se, caso eles o derrubassem, os prisioneiros ali receberiam permissão para voltar para casa.

Ah, não seria maravilhoso?

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