jose manuel mendes desafio das identidades

Upload: daniel-abaquar

Post on 29-Feb-2016

17 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

Jose Manuel Mendes Desafio Das Identidades

TRANSCRIPT

  • 489

    CAPTULO 13

    O DESAFIO DAS IDENTIDADES:

    UMA REFLEXO TERICA

    Jos Manuel Mendes

    (Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e Centro de Estudos Sociais)

    1. Introduo

    O debate sobre a identidade, ou melhor, sobre as identidades, perpassa o campo

    das cincias sociais e humanas. De tal forma que Stuart Hall se interrogava

    recentemente sobre quem necessitaria da identidade. E conclua, a meu ver

    correctamente, que a identidade um conceito crucial, porque funciona como

    articulador, como ponto de ligao, por um lado, entre os discursos e as prticas

    que procuram interpelar-nos, falar-nos ou colocar-nos no nosso lugar enquanto

    sujeitos sociais de discursos particulares e, por outro lado, os processos que

    produzem a subjectividade, que nos constroem como sujeitos que podem falar e ser

    falados (1996:5)1.

    A luta pela identidade legtima permanente e a anlise da mesma ter que ser

    tematizada, no caindo no exagero do psicologismo ou do sociologismo. Mas, a

    relao conceptual e emprica entre identidade pessoal e identidades sociais

    mostra-se difcil de deslindar e de precisar teoricamente. Apelarei a uma concepo

    dinmica da problemtica da identidade, salientando que a identidade socialmente

    1 Ver a este propsito as reflexes de bell hooks sobre o papel das suas identidade negra e sulista como complemento e factor de enriquecimento da sua identidade como escritora (1999:57).

  • Volume I

    490

    distribuda, construda e reconstruda nas interaces sociais. As identidades sero,

    assim, construes relativamente estveis num processo contnuo de actividade

    social (Calhoun,1991b)2. Tm origem na necessidade de controlo, por parte dos

    indivduos e grupos, do espao social e fsico circundante (White,1992)3. As bases

    e as origens das identidade so os acidentes, as frices, os erros, o caos, ou seja,

    o indivduo forma a sua identidade no da reproduo pelo idntico oriunda da

    socializao familiar, do grupo de amigos, etc., mas sim do rudo social, dos

    conflitos entre os diferentes agentes e lugares de socializao. Essas identidades

    so activadas, estrategicamente, pelas contingncias, pelas lutas, sendo

    permanentemente descobertas e reconstrudas na aco4. So, assim, relacionais e

    mltiplas, baseadas no reconhecimento por outros actores sociais e na

    diferenciao, assumindo a interaco um papel crucial neste processo5. Os

    processos de identificao so sempre situacionais e histricos, havendo, a cada

    momento, expresses identitrias que so dominantes (Gallissot, 1989). Contudo,

    necessrio realar a necessidade de um sentimento individual de permanncia

    identitria, permanncia esta que elaborada narrativamente, dentro dos discursos

    activados em contextos distintos. Importante tambm a questo do poder e da

    desigualdade no processo identitrio. A posio no espao social, o capital

    simblico de quem diz o qu, condiciona a construo, legitimao, apresentao e

    manuteno das identidades.

    As contradies e dissonncias da vivncia experiencial requerem, para a

    manuteno de um sentimento de identidade contnuo, um trabalho biogrfico

    constante. O sentimento de continuidade individual articula-se, expressa-se, na

    construo e reelaborao contnua de uma identidade narrativa. A produo de

    2 Para uma excelente reviso da literatura sobre a construo das identidades pessoais e sociais, principalmente na sociologia, ver Burkit (1991).

    3 A identidade para Harrison White um facto social que s pode ser apreendido e exerce efeito em relao a processos sociais que esto a decorrer, quer haja ou no um sentimento subjectivo de identidade por parte das pessoas (1992:208). Os sujeitos devem ser derivados da aco social, tendo-se em conta as tendncias histricas e as transformaes culturais. dada primazia s relaes sociais. Por outro lado, White postula que, pela auto-semelhana, os mesmos processos se aplicam ao longo dos diferentes nveis e dimenses dos actores sociais (princpio da invarincia de escala dos actores. Uma formulao semelhante pode ser encontrada em Callon e Latour, 1981). Uma identidade percepcionada, pelos outros, como tendo uma continuidade inquestionvel, como tendo sentido.

    4 Calhoun ilustra tal facto atravs do movimento dos estudantes chineses em Tiannamen (1991b).

  • Captulo 13

    491

    alteridades, de outros reais e imaginrios, simultaneamente um processo de auto-

    produo identitria, uma tentativa de reificao e de fixao identitrias, e uma

    produo constante de novas realidades (ontologizao).

    O dilogo com os outros essencial na construo da conscincia de cada

    indivduo, dilogo que multivocal e que se produz na interseco de foras

    centrpetas (necessidade de se ligar ao outro) e de foras centrfugas (necessidade

    de diferenciao do outro). A empatia ou a identificao com o outro tm somente

    um papel transitrio e preparatrio. No dilogo cada identidade mantm-se sempre

    irredutvel. A aproximao ao outro, ou at a outra cultura, sendo necessria,

    secundada por um movimento de retorno, de recentramento na sua posio, num

    processo de exotopia.

    A identidade pessoal articula-se na dimenso temporal, num projecto de vida. Esta

    permanncia no tempo, a relao da identidade pessoal com o tempo, pode ser

    entendida como um trabalho constante num espectro de variaes, como uma

    sntese do heterogneo. Ou seja, a linearidade dos relatos um facto provisrio,

    construdo e em constante reelaborao. Por outro lado, a constituio mtua da

    narrativa e do tempo implica que a identidade narrativa se estruture como um

    entrecruzar instvel entre histria e fico. As identidades emergem da

    narrativizao do sujeito e das suas vivncias sociais, e a natureza

    necessariamente ficcional deste processo no afecta a eficcia discursiva, material

    ou poltica das mesmas. As identidades constroem-se no e pelo discurso, em

    lugares histricos e institucionais especficos, em formaes prtico- discursivas

    especficas e por estratgias enunciativas precisas. A circulao crescente de

    discursos pblicos, de narrativas centrais, fornece recursos individuais e colectivos

    para afirmar ou reafirmar essas identidades, mas convm no esquecer que todas

    as sociedades, grupos e classes sociais produzem memrias subterrneas. A

    investigao sociolgica e histrica dever privilegiar os espaos onde exista

    conflito e competio entre memrias concorrentes. As memrias subterrneas

    constituem-se e reproduzem-se em redes sociais informais, cabendo verificar como

    se relacionam com as memrias oficiais e quais as condies materiais, sociais e

    simblicas para se reproduzirem.

    5 Cf. Charles Taylor e a sua obra fundamental para a histria da subjectividade no Ocidente (1989);

  • Volume I

    492

    Comearei, assim, por estabelecer o carcter intersubjectivo e interactivo do

    processo identitrio, apoiando-me nas propostas de George Herbert Mead, e

    abordando tambm a problemtica do reconhecimento social como sendo basilar na

    construo identitria individual e de grupo.

    Partindo de Erving Goffman procederei a uma sistematizao terica da relao

    entre identidade pessoal e identidades sociais, reafirmando a necessidade

    epistemolgica e ontolgica de manter estes dois nveis separados para que a

    compreenso dos processos identitrios seja consequente.

    Se, na minha perspectiva, h que salientar a capacidade construtiva e produtora

    dos sujeitos sociais (individuais e colectivos), estes defrontam-se com limites e

    constrangimentos estruturais que condicionam e enquadram o campo de aco e os

    processos simblicos activados. A minha opo ser por um estruturalismo leve

    baseado no quadro terico de Boaventura de Sousa Santos, complementado com a

    anlise pragmtica de Anselm Strauss.

    Na parte final do captulo abordarei o conceito de identidade narrativa, que

    funcionar como um articulador da relao complexa, complementar e contraditria

    entre as subjectividades e os processos sociais, no deixando de dialogar com

    algumas das propostas feministas mais recentes.

    2. A intersubjectividade e a procura do reconhecimento social

    George Herbert Mead (1967) elaborou uma teoria da intersubjectividade que

    concebia o sujeito (self) como sendo socialmente originado, como um produto das

    relaes sociais. Nesta perspectiva, o indivduo deixa de ser um pressuposto da

    formao da sociedade e a individualizao vista como uma consequncia da

    estrutura dos processos de vida socialmente organizados. A emergncia da

    autonomia do indivduo requer a reformulao da vida social, que deve ser

    organizada de forma a que a livre auto-determinao de todos seja possvel e

    necessria.

    Na discusso destes conceitos e do de papel (role) seguiremos de perto a anlise

    proposta por Hans Joas (1985:118-120). A elaborao dos mesmos, por parte de G.

    ver tambm Madureira Pinto (1991), Calhoun (1991b).

  • Captulo 13

    493

    H. Mead, assenta na teoria antropolgica da comunicao. O conceito de papel

    designa o padro de expectativas comportamentais. Ou seja, tomar o papel do

    outro significa antecipar o comportamento do outro, uma representao interna do

    comportamento do outro. O indivduo torna o seu comportamento um objecto da sua

    contemplao, de forma similar como o faz com o comportamento dos indivduos

    com quem interage. Ele v-se a partir da perspectiva do outro. H agora um

    momento de avaliao dos impulsos do indivduo. Aqui so introduzidos os

    conceitos de Eu (I) e mim (me)6. O Eu no s designa o princpio da

    criatividade e da espontaneidade como atribui ao indivduo pulses. O excedente

    destas pulses expressa-se nas fantasias, que s podem ser canalizadas e no

    atenuadas pelas normas sociais. O mim a apresentao mental que o indivduo

    tem da imagem que o outro faz dele. um momento de avaliao que serve para o

    estruturar das pulses espontneas e funciona como elemento do emergir da auto-

    imagem. Esta separao ente o Eu e o mimparece indicar que, para Mead, os

    indivduos s se tornam conscientes de si prprios enquanto objectos, ou seja, s

    podem adquirir a conscincia de si prprios na medida em que aprendem a

    percepcionar as suas aces a partir da perspectiva de uma segunda pessoa

    representada simbolicamente (Honneth, 1997; 1995:74-75;). O encontro com vrias

    pessoas que funcionam como referncia, leva constituio de diferentes mims.

    Um comportamento consistente por parte do indivduo exige que os diferentes

    mims sejam sintetizados numa auto-imagem unitria. Se esta sntese bem

    sucedida, temos o sujeito (self) como uma auto-avaliao unitria e como

    orientao da aco. Este sujeito , contudo, flexvel e aberto comunicao com

    um grande nmero de parceiros, desenvolvendo-se, simultaneamente, uma

    estrutura de personalidade que estvel e tem certeza das suas necessidades.

    Um outro conceito avanado por Mead o de outro generalizado, que se refere ao

    comportamento de todos os parceiros que tm de ser tomados em conta, e das

    suas posies e funes em grupos cujas actividades esto orientadas para certos

    objectivos atravs da diviso do trabalho. Funciona como uma interiorizao da

    comunidade. A extenso da reaco social de forma a incluir contextos de aco

    6 Optmos por traduzir do ingls o me, forma objectiva do I, por mim, que utilizado quando o complemento objectivo pronome pessoal (cf. Jos Pedro Machado, Grande Dicionrio da Lngua Portuguesa)

  • Volume I

    494

    normativos transforma o mim, passando este de uma auto-imagem cognitiva da

    pessoa a uma auto-imagem prtica. O indivduo assume os valores morais do

    parceiro e aplica-os relao prtica consigo prprio (Honneth,1995:77). Para

    caracterizar esta relao intersubjectiva avanada por Mead, Axel Honneth prope o

    conceito de reconhecimento, entroncando-o nas propostas similares de Hegel. A

    apropriao das normas sociais conduz os indivduos a terem conscincia dos seus

    direitos e deveres como membros de uma comunidade. A este processo Mead

    chama de dignidade. A experincia de reconhecimento corresponde a um modo

    prtico de relao com a subjectividade (self) em que cada um pode estar certo do

    valor social da sua identidade. O conceito que Mead utiliza para caracterizar esta

    conscincia que o indivduo tem do seu valor prprio o de auto-respeito

    (Honneth,1995:78-79). O que inovador, e que abre excelentes perspectivas

    analticas, na leitura que Axel Honneth faz de Mead, que o Eu, ao tentar

    diferenciar-se do mim socializado, na sua actividade incessante e no-conformista,

    leva a um processo de individualizao em que o sujeito constri um mundo

    imaginrio de outros idealizados que, em princpio, fornecero o reconhecimento

    psicolgico e social do acto individualizante e no-conformista do ego (Alexander e

    Lara,1996:129). A existncia do mim fora o indivduo a lutar, no interesse do Eu,

    por novas formas de reconhecimento social. A resoluo do conflito moral do

    indivduo s se pode fazer atravs da idealizao, ou seja, o indivduo antecipa uma

    comunidade em que pode ver os seus desejos realizados. Temos uma idealizao

    normativa presente em todas as prticas sociais, devido impulsividade

    permanente do Eu (Honneth,1995:82-83).

    Mais do que aplicar esta anlise compreenso das exigncias de crescentes

    direitos legais por parte dos indivduos, e do papel dos indivduos carismticos

    nessas exigncias, interessa-me salientar que esta luta incessante pelo

    reconhecimento, pela identidade legtima, cria presses transformativas sobre as

    identidades pessoais e sociais.7 Longe de se poder ter uma viso essencialista do

    processo identitrio, h que salientar os factores histricos e contextuais que

    originam a predominncia ou salincia de determinadas identidades, havendo que

    7 Charles Taylor (1994), tomando como ponto de partida o caso do Quebeque, tem sido dos filsofos que mais tem analisado a importncia da poltica do reconhecimento nos processos identitrios individuais e colectivos. Para ele, a autenticidade identitria s se constri no dilogo com os outros relevantes.

  • Captulo 13

    495

    indagar dos elementos simblicos, discursivos, morais e prticos que as compem,

    e como se cristalizaram. Por outro lado, as identidades predominantes so o

    produto visvel de lutas sociais e simblicas, sendo essencial ter em ateno as

    lgicas de poder subjacentes.

    3. A identidade pessoal e as identidades sociais: uma concepo dinmica

    da identidade

    Um dos autores que mais realce deu e melhor explorou as mltiplas pertenas dos

    indivduos foi Erving Goffman, sendo que, para ele, as identidades so mltiplas,

    flutuantes e situacionais. Contudo, no que concerne problemtica do sujeito (self),

    Goffman no apresenta uma teoria coerente e a sua anlise no est isenta de

    ambiguidades. Num dos seus livros mais famosos, The Presentation of Self in

    Everyday Life (1987), procede a uma anlise dramatrgica da apresentao do

    indivduo no quotidiano. Mas, esclarece que:

    (...) A afirmao de que todo o mundo um palco suficientemente comum para que os leitores estejam familiarizados com as suas limitaes e sejam tolerantes com a sua apresentao, pois em qualquer momento sabem que podem demonstrar a si prprios que a mesma no para ser levada a srio. Uma aco encenada num palco uma iluso relativamente controlada e aceite como tal. Ao contrrio da vida quotidiana, nada de real ou concreto pode acontecer s personagens representadas. (246)

    A preocupao de Goffman sobretudo com a estrutura dos encontros sociais, com

    a manuteno de uma nica definio da situao durante a interaco. Esta

    definio unificadora tem que ser expressa e mantida contra uma grande variedade

    de potenciais disrupes. Contrariamente anlise de Mead, aqui o indivduo, na

    execuo quotidiana e normal dos seus papis sociais, pode ser conduzido a uma

    fragmentao como sujeito, derivada de uma execuo eficaz desses papis sociais

    e impossibilitando a construo de uma auto-imagem unitria. Mas nunca nos

    apresentada, nesta obra, uma definio de sujeito (self) que sirva de fio condutor ou

    como conceito orientador8. em dois brilhantes ensaios (1982a e 1982b),

    8 Goffman limita-se a definir o sujeito (self) da seguinte forma: [...] O sujeito (self), como uma personagem representada, no algo de orgnico que tem uma localizao especfica, cujo destino fundamental nascer, crescer e morrer. um efeito dramtico que emerge de forma difusa a partir de uma cena que apresentada, e a questo caracterstica, a preocupao crucial, se ser reconhecido ou no como tendo valor. (1987:245).

  • Volume I

    496

    curiosamente publicados antes da obra acima citada9, que Goffman melhor explana

    a sua concepo de sujeito.

    Em cada encontro social o indivduo actua seguindo uma linha (line), ou seja, um

    padro de actos verbais e no-verbais atravs dos quais expressa a sua viso da

    situao e a sua avaliao dos participantes, e sobretudo dele prprio. As pessoas

    reagem umas s outras tentando manter uma linha consistente e procurando,

    assim, manter a realidade social que constroem. O conceito de face (face) o

    valor social positivo que um indivduo reivindica, uma imagem do sujeito assente

    nos atributos aceites socialmente e que derivam da linha que manteve (1982a:5).

    As faces so construes sociais, derivadas das regras do grupo e da definio da

    situao. Goffman salienta, assim, que o acto de manter a face numa dada

    actividade implica uma ateno ao lugar que o indivduo ocupa na ordem social, aos

    constrangimentos exteriores e interaco imediata. Para manter o auto-respeito e

    o orgulho durante um encontro, o indivduo deve ser capaz de esconder ou evitar

    qualquer tendncia para se envergonhar ou responder inadequadamente, deve ter

    tacto (poise). O que interessante verificar que, na combinao do auto-respeito

    e da considerao pelo outro, o indivduo tende a comportar-se num encontro de

    forma a manter a sua face e a dos outros participantes, naquilo a que poderamos

    chamar de uma cooperao ritual10. As pessoas acomodam-se s construes

    mtuas enquanto sujeitos sociais (Collins,1988:251). Assim, a manuteno da

    face uma condio e no um objectivo da interaco. Esta manuteno

    processa-se atravs do trabalho relativo face (face work), que a tentativa do

    indivduo de se comportar de acordo com a face que apresentou, seguindo dois

    processos bsicos: evitar situaes potencialmente comprometedoras ou de

    correco e restabelecer eventuais desequilbrios que tenham emergido na

    interaco. Os cdigos ritualsticos construdos e/ou impostos condicionam toda a

    interaco, ou melhor, so o seu sustentculo. A utilizao do termo ritual

    justificada por Goffman da seguinte forma:

    9 On Face Work. An Analysis of Ritual Elements in Social Interaction foi publicado em 1955 e The Nature of Deference and Demeanor em 1956, sendo ambos reunidos em 1967 na publicao que usamos como referncia.

    10 Se for para manter a sua face temos uma orientao defensiva. Se for para manter a face do outro temos uma orientao protectora (1982a:14).

  • Captulo 13

    497

    (...) Uso o termo ritual porque estou a lidar com actos cujos componentes simblicos so usados pelo actor para mostrar que merece ser respeitado ou que sente que os outros o merecem (....) A face de cada pessoa uma coisa sagrada, e a forma expressiva para a manter , por conseguinte, uma forma ritualstica. (1982a:19) (itlico no original)

    O sujeito definido de um maneira dupla: como uma imagem composta a partir das

    implicaes expressivas dos acontecimentos em que participa, e como uma espcie

    de jogador num jogo de ritual em que se adapta s contingncias da situao. A

    ordem ritualstica parece organizar-se basicamente de forma acomodativa. E, numa

    afirmao algo surpreendente para este autor, Goffman acaba por acentuar que a

    ordem ritualstica um universal da natureza humana. Todas as sociedades,

    segundo ele, tm que mobilizar os seus membros como participantes auto-

    reguladores nos encontros sociais. Esta auto-regulao conseguida pelo ritual,

    que ensina o indivduo a ser perspicaz, a ter sentimentos ligados sua

    subjectividade, a ter uma subjectividade expressa atravs da face, a ter orgulho,

    honra e dignidade, a ter considerao pelos outros e a ter tacto (1982a:44). A

    pessoa, o sujeito, um constructo, construdo no das propenses psquicas

    internas mas a partir das regras morais que lhe so inculcadas do exterior. Estamos

    aqui perante uma viso sobre-socializada da subjectividade. Se o indivduo mantm

    uma margem de manobra, esta mostra-se muito apertada. A subjectividade no

    mais do que uma realidade pblica, construda e activada nos rituais quotidianos.

    Como afirma Goffman,

    (...) A capacidade geral de ser constrangido por regras morais pode bem pertencer ao indivduo, mas o conjunto particular de regras que o transformam num ser humano deriva das exigncias estabelecidas na organizao ritual dos encontros sociais. (1982a:45)

    Baseando-se na anlise que Durkheim (1982) faz da alma, Goffman procura

    demonstrar o cariz sagrado da subjectividade nas sociedades modernas e urbanas,

    veiculado sobretudo por dois tipos de ritual: de deferncia e de porte (demeanor)11

    (1982b). Goffman no deixa de frisar que, mais do que falar em subjectividade,

    deve-se falar em subjectividades, dado que a participao do indivduo em cada

    situao s apela a uma ou a algumas subjectividades especficas. Tambm no

    deixa de referir que as regras de conduta e os encontros sociais podem ser

    simtricos ou assimtricos, introduzindo a questo do poder dos participantes. A

    11 No sentido de apresentao para os outros.

  • Volume I

    498

    deferncia uma actividade que, assente em rituais interpessoais12, funciona como

    um meio simblico de mostrar apreciao por outro. a forma como um actor

    celebra e confirma a sua relao com outro indivduo enquanto tal ou como

    representante de uma categoria. Goffman salienta que no se est s a referir a

    rituais de obedincia ou submisso, mas que pode existir uma deferncia simtrica

    entre iguais sociais (respeito mtuo). Mas, as diferenas entre as classes sociais

    nos rituais de deferncia so visveis e acentuadas.

    O porte (demeanor) refere-se a comportamentos ceremoniais do indivduo que,

    pelo vesturio, pela apresentao do corpo, pela pose, servem para expressar que

    uma pessoa portadora de qualidades desejveis ou indesejveis. Tem a ver com

    os atributos que derivam das interpretaes que os outros fazem da maneira como

    o indivduo se comporta durante a interaco social. E tambm aqui as relaes

    podem ser simtricas ou assimtricas. Se o constrangimento e a coero exteriores

    so cruciais nos processos de deferncia e de porte, o indivduo, para actuar de

    forma adequada, necessita de uma margem de manobra em certas reas, de ter

    recursos para se apresentar e gerir a sua imagem e o seu comportamento. Aqui

    Goffman aligeira o peso dos constrangimentos exteriores e atribui ao indivduo uma

    margem de manobra no jogo da interaco ritualstica. Em resumo, o sujeito (self) ,

    em parte, algo de ceremonial, um objecto sagrado que tem que ser tratado com

    cuidado. Ou seja, nas palavras do autor,

    (...) O que tal implica que, num dado sentido, este mundo secular no to irreligioso como se poderia pensar. Muitos deuses foram abandonados, mas o indivduo em si permanece, teimosamente, uma deidade de importncia considervel [...] Talvez o indivduo seja um deus to vivel porque pode realmente compreender o significado ceremonial da forma como tratado e pode, por si prprio, responder dramaticamente ao que lhe exigido. Nos contactos entre tais deidades no so necessrios intermedirios, e cada um destes deuses pode ser o seu prprio sacerdote. (1982b: 95)

    O indivduo, a pessoa, a subjectividade, torna-se um objecto sagrado expresso nos

    rituais activados no quotidiano. Esta abordagem conduz a interpretaes diferentes.

    Para Randall Collins (1988:255-259) o que interessa realar que em Goffman o

    problema no a no existncia de uma subjectividade mas sim de demasiadas

    subjectividades. O normal a existncia de sujeitos mltiplos, flutuantes e

    12 Que podem ser rituais para evitar situaes ou pessoas potencialmente disruptivas ou, ento, serem rituais de apresentao e de aproximao.

  • Captulo 13

    499

    situacionais. O sujeito, a subjectividade enquanto tal o arqutipo do mito moderno.

    As interaes sociais obrigam-nos a ter uma subjectividade nica. A ideia da

    existncia de uma unidade e de uma permanncia pessoais no passa, assim, de

    um mito. Se h alguma entidade (self) que motiva e coordena essas identidades

    mltiplas, ela no tem contedo nem auto-conscincia. A nica unidade pode

    derivar, segundo Collins, talvez apenas da confinao inevitvel ao corpo fsico de

    cada indivduo.

    Contrariamente, para Michael Schwalbe (1993), a base real da subjectividade em

    Goffman no a imagem virtual criada na interaco, mas sim o sujeito

    psicobiolgico a partir do qual a aco emerge. De crucial importncia o papel da

    desigualdade na determinao das subjectividades na ordem interaccional.

    Schwalbe distingue entre sujeito (self) e identidades. O sujeito um processo

    psicobiolgico moldado por signos e smbolos. A sua realidade torna-se patente no

    em momentos de conformidade mas sim em momentos de resistncia e de escolha.

    Por outro lado, as identidades so baseadas em significados que derivam da

    pertena a certas categorias ou a aspectos da biografia pessoal culturalmente

    significantes. As identidades so signos do valor pragmtico do indivduo, variando

    de acordo com os contextos, podendo induzir respostas e expectativas erradas, ou

    levar a ambiguidades. Assim, se as identidades podem desaparecer, o sujeito (self)

    no pode. Se as interaces sociais e os arranjos sociais exigem flexibilidade

    quanto aos processos identitrios, exigem uma adaptao e negociao

    permanentes, o sujeito, por outro lado, tem necessidade de manter a coerncia

    interna. O sujeito uma realidade emocional que, pela manipulao dos signos e

    smbolos, procura gerir os impulsos e respostas conflituantes e contraditrias.

    Estas duas interpretaes de Goffman so importantes porque situam o debate

    sobre a presena, realidade e interaco entre a identidade pessoal e as

    identidades sociais. Mas, no abordam a obra onde Goffman claramente exps

    estes conceitos e os diferenciou. Estamos a falar de Stigma: Notes on the

    Management of Spoiled Identity (1963). Aqui, Goffman distingue entre identidade

    social, identidade pessoal e identidade de ego. A identidade social, ou melhor, as

    identidades sociais, so constitudas pelas categorias sociais mais vastas a que um

    indivduo pode pertencer. A identidade pessoal a continuidade orgnica imputada

    a cada indivduo, que estabelecida atravs de marcas distintivas como o nome ou

  • Volume I

    500

    a aparncia, e que so derivadas da sua biografia. A identidade de ego ou a

    identidade sentida, a sensao subjectiva da sua situao, da sua continuidade

    e do seu carcter, que advm ao indivduo como resultado das suas experincias

    sociais.

    A identidade social um cruzamento de atributos pessoais e estruturais, uma

    categorizao derivada dos contextos sociais onde decorre a interaco social.

    Pode-se distinguir neste processo uma identidade social virtual e uma identidade

    social real. A identidade social virtual constituda pelas exigncias e caractersticas

    que imputamos aos indivduos. A identidade social real so os atributos que aqueles

    realmente possuem e as categorias reais a que pertencem (1963:2). O jogo social

    passa por uma tentativa permanente de ajustar a identidade social virtual

    identidade social real. O respeito, a honra, o equilbrio individual derivam

    directamente do ajustamento entre as duas identidades, ou seja, da menor

    discrepncia possvel entre as duas. Algumas abordagens etnometodolgicas

    acusam Goffman de ter uma abordagem cnica e de apresentar os indivduos como

    mquinas calculistas e frias de gesto da imagem, como autnticos espies

    (Watson,1992:10). Penso, pelo que atrs foi exposto, que mais correcto afirmar

    que a preocupao permanente do indivduo no simular ou manipular, mas sim

    integrar-se, ajustar o seu comportamento s exigncias morais e sociais exteriores,

    manter uma certa coerncia na definio da situao, num jogo permanente de

    negociao e de procura da aceitao. No se deve confundir tal perspectiva com

    uma viso integradora e atenuadora dos conflitos sociais, mas sim, como

    argumentou Michael Schwalbe, uma tentativa permanente por parte do indivduo de

    integrao da multiplicidade de pertenas sociais e papis a que est submetido. A

    busca do reconhecimento, da honra, contnua, procurando o indivduo redes de

    reconhecimento mtuo.13 Os participantes nessas redes procuram criar ideologias

    comuns, histrias comuns, que integrem e legitimem as suas aces. Goffman fala

    de carreiras morais modais, ou seja, de sequncias de experincias pessoais e de

    mudanas na concepo pessoal similares e, por isso, criadoras de laos entre os

    participantes.

    A identidade pessoal relaciona-se com as caractersticas pessoais do indivduo que

  • Captulo 13

    501

    so mais ou menos constantes. A informao que respeita identidade pessoal

    transmitida pelo prprio indivduo, reflexiva e incorporada, manifestando-se,

    nomeadamente, nas impresses digitais, no nome e no facto de aquele estar

    delimitado pelo corpo. H marcas positivas que tornam cada indivduo nico.

    Goffman no se est a referir a um ncleo do ser, a algo de imprescrutvel, mas

    sim que,

    (...) Quando falo de identidade pessoal tenho em mente s as duas primeiras ideias os marcos positivos ou marcas identitrias e a combinao nica de elementos da histria de vida que ficam ligados ao indivduo com a ajuda desssas marcas identitrias. Assim, a identidade pessoal tem a ver com o pressuposto de que o indivduo pode ser diferenciado de todos os outros, e de que a estes meios de diferenciao pode ser colado, entrelaado, um registo nico e contnuo de factos sociais (...) O que difcil de apreciar que a identidade pessoal pode ter e tem um papel estruturado, rotineiro e padronizado na organizao social, pelo facto mesmo da sua qualidade nica e intransmissvel. (1982b:95) (itlicos no original).

    Assim, a biografia ligada identidade documentada oficial e institucionalmente

    coloca limites forma como um indivduo escolhe apresentar-se. A sua biografia

    est ancorada como um objecto. Cada indivduo s pode ter uma biografia, uma

    linha de vida nica e abrangente, estando isto em constraste com a multiplicidade

    de subjectividades que se encontra quando adoptamos a perspectiva dos papis

    sociais (1963:63). Vemos aqui claramente que Goffman, quando fala de identidade

    pessoal, concebe a pessoa como uma entidade nica e integradora, como a

    instncia onde o indivduo controla e gere a informao disponvel sobre si prprio.

    Por outro lado, a identidade pessoal, como a identidade social, divide e escolhe os

    outros com quem o indivduo interage (outros biogrficos), sobretudo entre os que o

    conhecem ou no pessoalmente.

    A identidade social e a identidade pessoal fazem parte, antes de tudo, das

    preocupaes e definies das outras pessoas quanto ao indivduo cuja identidade

    est em causa. Quanto identidade pessoal ela pode aparecer mesmo antes do

    nascimento, por exemplo, nos preparativos, roupa e escolha do nome por parte dos

    pais, e manter-se aps a sua morte, isto , pelas visitas que familiares e outros

    fazem ao cemitrio, por celebrao de misssa, etc. A identidade de ego ou

    13 Goffman d o exemplo de redes de ex-prisoneiros de uma mesma priso, redes de criminosos, etc. (1963:22 e 23).

  • Volume I

    502

    sentida14 uma questo subjectiva, reflexiva, que tem de ser necessariamente

    sentida pelo indivduo. Claro que o indivduo constri a imagem de si prprio a partir

    dos mesmos materiais com que os outros primeiro constroem uma identificao

    social e pessoal dele, mas ele tem uma margem de liberdade importante no moldar

    da sua identidade de ego. A relao no coincidente entre a identidade social, a

    identidade pessoal e a identidade de ego pode conduzir a uma ambivalncia de

    identidade. Mas, acrescenta Goffman, se a identidade de ego se define como o que

    o indivduo deve pensar de si, ela processa-se e constri-se pela presso dos

    grupos a que o indivduo pertence (in-group) e queles com quem os ltimos

    interagem (out-group). E conclui que [...] a natureza de um indivduo, como ele e

    ns a imputamos, gerada a partir da natureza das suas filiaes de grupo.

    (1963:113). E, mais frente, [...] E, na verdade, ele ter aceite uma subjectividade

    (self) para si prprio, mas esta subjectividade , como necessariamente deve ser,

    um residente estranho, uma voz do grupo que fala por e atravs dele. (1963:123)

    (itlicos meus). O indivduo s ter dignidade e respeito se adoptar a linha proposta

    pelos grupos a que pertence, se aderir s suas ideologias, se aderir aos seus jogos

    de identidade e s suas polticas de identidade. Mais uma vez temos patente a

    ambiguidade da anlise de Goffman quanto ao sujeito e subjectividade. A presso

    socializadora dos grupos, dos rituais de interaco quotidianos, a definio de

    identidade altero-produzida, apresenta-se como incontornvel e quase esmagadora.

    Na minha opinio, a distino entre os trs tipos de identidade pertinente analtica

    e empiricamente, permitindo explicitar o vaivm permanente no processo de

    construo, reconstruo e refigurao identitria. Contudo, a viso de Goffman do

    processo identitrio como sobre-socializado deve ser atenuada, utilizando-se para

    tal as prprias pistas que ele fornece. Se a subjectividade se constri socialmente, a

    resistncia ou at o abandono da luta sempre possvel. A busca da permanncia

    identitria um facto, mesmo que esta seja mais uma percepo subjectiva ou

    imaginada do que real (Strauss,1959:144). O afastamento e uma anlise crtica por

    parte do indivduo tem que ser vista como uma possibilidade (Rapport, 1997).

    14 Goffman (1963:105) afirma ter ido buscar este conceito a Erik Erikson. Erikson (1972:166-168) define a identidade como uma etapa posterior introjeco e s identificaes. A introjeco a incorporao primitiva da imagem do outro. As identificaes dependem da interaco da criana com os representantes da hierarquia de papis. A identidade, um processo e uma etapa mais tardia no desenvolvimento do indivduo, surge de recusas selectivas e de assimilaes mtuas das

  • Captulo 13

    503

    Por outro lado, Goffman sublinha que as contingncias que as pessoas encontram

    na interaco face-a-face s podem ser compreendidas por referncia histria,

    desenvolvimento poltico e polticas actuais dos grupos a que os indivduos

    pertencem (1963:127). Ou seja, recomenda o ter em ateno a base estrutural das

    experincias quotidianas. Para tal, a sua anlise de quadros (1974)15 mostra-se

    como um contributo fundamental, permitindo, como afirma Joo Arriscado Nunes

    (1993:45-46), articular a ordem social e a ordem de interaco sem recorrer a

    mudanas de escala e atendo-se aos elementos invocados nos prprios episdios

    de interaco.

    3.1- As identidades sociais primrias e secundrias

    No vaivm permanente entre identidade pessoal e identidades sociais, a

    representao identitria inscreve a pessoa, por projeco, no colectivo, no mtico,

    isto , em identidades secundrias. Da que seja pertinente, quanto s identidades

    sociais, distinguir a nvel analtico entre identidades sociais primrias e categoriais

    (Calhoun,1995;1991a), podendo ambas ter ou no uma base territorial. As primeiras

    referem-se e partem das relaes sociais directas. Esto nesta situao as que tm

    por base o sexo enquanto construdo socialmente, os amigos, o local de trabalho, a

    comunidade local, as associaes locais, etc.16 As identidades categoriais

    assentam nas relaes sociais indirectas, no deixando contudo de ser reais, de

    ligarem os seus membros e de definirem os campos de poder em que so

    importantes para a definio das identidades. Aqui aparecem as identificaes

    relacionadas com a regio, a nao, a classe social (na sua dimenso extra-local), o

    clube desportivo nacional, o grupo de rock, a categoria profissional, etc. O conceito

    de comunidade imaginada foi cunhado por Benedict Anderson (1991), a partir da

    sua anlise das origens e difuso do nacionalismo. Para ele, a nao uma

    comunidade poltica imaginada porque os seus membros nunca conhecero a maior

    parte dos seus concidados. No h comunidades mais ou menos genunas, o que

    identificaes desenvolvidas na infncia, e pressupe a entrada e aceitao do indivduo na comunidade mais vasta.

    15 No se justificando, neste contexto, uma anlise pormenorizada da teoria doa quadros de Goffman remetemos para a excelente anlise de Joo Arriscado Nunes (1993).

    16 Para alguns autores as comunidades primrias e as identidades sociais que derivam de relaes sociais directas podem ser tambm imaginadas. Ver, por exemplo, a argumentao fundamentada de Wendy Griswold (1992).

  • Volume I

    504

    interessa a forma como so imaginadas. Sendo as comunidades imaginadas

    sempre construdas, h que considerar as suas razes culturais17. Anderson

    salienta, nesse processo de construo, a importncia de uma lngua estatal

    unificada18, da transformao de unidades administrativas em unidades de sentido

    e do papel das burocracias nascentes na sua implantao territorial.

    Isto remete-nos para a problemtica da articulao entre estrutura e aco, que

    ser abordada no articulado seguinte deste captulo.

    4. As identidades na confluncia entre estrutura e aco

    A produo e reproduo das identidades sociais processa-se em contextos sociais

    fortemente estruturados. Qualquer teoria das identidades no pode escapar

    anlise da dialctica estrutura-aco. At porque a questo do poder no pode ser

    contornada, cabendo situar claramente os processos em presena, os

    constrangimentos e as oportunidades que se abrem. A dialctica estrutura-aco

    continua, no campo das cincias sociais, a ser motivo de forte debate e de mltiplas

    propostas de resoluo epistemolgica, ontolgica, terica e/ou emprica. No me

    cabe, no mbito deste articulado, fazer uma anlise exaustiva das propostas

    existentes, mas sim explanar aquelas que acho terem marcado mais o debate e que

    revelam maiores capacidades heursticas.

    Numa fase posterior elaborao da sua teoria da estruturao (1984), a

    concepo de Anthony Giddens quanto ao processo identitrio tornou-se explcita

    na obra Modernity and Self-Identity (1991). Aqui Giddens define a identidade do

    sujeito (self-identity) como a subjectividade (self) compreendida reflexivamente pelo

    indivduo em termos da sua biografia(244). O sujeito (self) no uma entidade

    passiva, contribuindo tambm e tendo influncia nas instituies da modernidade.

    17 Para Anderson, a possibilidade histrica de imaginar a nao s foi possvel quando e onde trs concepes culturais de base perderam a sua capacidade de orientao e de influncia sobre os homens. Essas trs concepes eram: a ideia de que havia uma linguagem escrita que permitia o acesso privilegiado verdade ontolgica; a crena de que a sociedade estava naturalmente organizada volta de monarcas que detinham o poder por delegao divina; e, por ltimo, uma temporalidade em que a cosmologia e a histria eram indestrinveis. A crise destas concepes permitiu a emergncia da nao como nova forma de ligar a fraternidade, o poder e o tempo de uma maneira geralmente aceite.

    18 Historicamente assume especial importncia neste processo a Reforma e a convergncia entre o capitalismo e a tecnologia de impresso (sobretudo o livro e, mais tarde, o jornal), criando-se, paralelamente, linguagens estatais e administrativas de utilizao obrigatria e universal.

  • Captulo 13

    505

    Concebendo a modernidade tardia como uma sociedade de risco, de crescente

    reflexividade institucional, de separao no tempo e no espao e constituda por

    mecanismos desenraizadores, afirma que a confiana emerge como um mecanismo

    fundamental de construo da personalidade dos indivduos. A confiana do

    indivduo articula-se, desde cedo, com a segurana ontolgica, entendida esta como

    um sentimento de continuidade e de ordem nos acontecimentos, mesmo que estes

    no se encontrem no seu campo perceptual imediato. O projecto reflexivo da

    subjectividade consubstancia-se em narrativas biogrficas coerentes, apesar de

    constantemente revistas, no contexto das escolhas mltiplas que se colocam ao

    indivduo. neste sentido que a noo de estilo de vida, entendida como um

    conjunto mais ou menos integrado de prticas que um indivduo adopta, e que do

    uma forma material a uma narrativa particular da identidade do sujeito, adquire

    importncia. Os indivduos, nas condies da modernidade tardia, so obrigados a

    adoptar estilos de vida, ou seja, a escolherem e a negociarem as suas identidades.

    Na discusso que faz da distino de Mead entre Eu e mim, Giddens opta por

    privilegiar o mim, a parte socializada, reduzindo o Eu a um mero marcador

    lingustico. O sujeito, para Giddens, define-se na e pela linguagem, sendo o

    processo identitrio fortemente marcado e, diramos ns, condicionado pelos

    factores sociais. Quanto relao estrutura/aco na construo da identidade,

    Giddens afirma que as transformaes na identidade do sujeito e a globalizao so

    os dois plos da dialctica local/global na modernidade tardia (1991: 32). Assim, as

    mudanas nos aspectos ntimos da vida pesssoal esto ligados ao estabelecer de

    conexes sociais mais vastas.

    As propostas de Giddens quanto ao processo identitrio, se esto agora mais

    claras, pecam por um reducionismo exagerado do individual ao social e ao

    colectivo. A identidade pessoal no uma simples sntese das mltiplas identidades

    sociais. O sentimento de integrao, a busca constante, quase obsessiva, de

    segurana ontolgica, no permite apreender a procura de alternativas, de desafios.

    Por outro lado, a questo do poder, da legitimao simblica, est completamente

    arredada deste tipo de anlise, deixando-nos espreitar apenas um indivduo s,

    definido socialmente, e numa luta contra as foras inexorveis da modernidade

    tardia, que invadem, dominam, moldam, o mais ntimo do seu ser. Como muito bem

  • Volume I

    506

    aponta Alain Touraine, a self-identity19 que explora Anthony Giddens uma

    realidade psicolgica, uma aco do indivduo dirigido para si prprio. (1992:306)

    Parece-me ser de realar, nesta proposta terica, a reafirmao de manter

    analiticamente separada a identidade pessoal das identidades sociais. Se a

    definio de identidade social , aqui, demasiado voluntarista e hednica, permite-

    nos ultrapassar o holismo ou o individualismo analtico, precisando os mecanismos

    presentes e os limites estruturais e culturais da construo identitria.

    Uma proposta terica que mostra maiores potencialidades de aplicao emprica e

    que resolve, de uma forma exemplar, a questo da articulao estrutura/aco,

    dando tambm ateno s lgicas de poder e construo de subjectividades, a

    de Boaventura de Sousa Santos (1995;1994c). Partindo da definio de estruturas

    como sedimentaes provisrias de cursos de aco reiterados com sucesso

    (1995:404), Boaventura de Sousa Santos afirma que a proliferao de estruturas

    alarga o contexto onde se aplicam as mltiplas determinaes e contingncias, os

    constrangimentos e as oportunidades, permitindo a formao de mltiplas

    coligaes. Por outro lado, definindo o poder como qualquer relao social que

    governada por uma troca desigual, salienta que o mesmo nunca exercido de uma

    forma pura, mas sim como uma constelao de diferentes formas de poder

    combinados de formas especficas. Se so distribucionais, estas constelaes de

    poder tambm podem ser constrangedoras (construo de fronteiras) ou

    possibilitadoras (inovadoras). Uma mesma situao sempre investida, embora de

    maneira desigual, de caractersticas constrangedoras e possibilitadoras20.

    Conceptualmente, temos uma grande fluidez das relaes de poder e os seus

    limites e potencialidades s podero ser determinadas pela anlise concreta dos

    contextos, das interaes e das relaes entre os grupos sociais numa dada

    sociedade.

    De grande importncia , assim, o mapa de leitura da relao estrutura/aco das

    sociedades capitalistas que prope (1995:416-455). Santos parte de trs postulados

    de base. O primeiro que as sociedades capitalistas so formaes ou

    constelaes polticas constitudas por seis modos de produo de poder bsicos,

    19 Em ingls no original.

    20 Uma formulao semelhante pode ser encontrada em Giddens (1984).

  • Captulo 13

    507

    articulados de maneiras especficas. Estes modos de produo produzem seis

    formas bsicas de poder que, apesar de interrelacionados, so autnomos entre si.

    O segundo postulado que as sociedades capitalistas so formaes ou

    constelaes legais constitudas por seis modos de produo de leis, articulados de

    maneiras especficas. Tambm produzem seis formas bsicas de lei, articuladas

    mas autnomas entre si. Por ltimo, postula que as sociedades capitalistas so

    formaes ou constelaes epistemolgicas constitudas por seis modos de

    produo de conhecimento especificamente articulados entre si. So gerados seis

    formas bsicas de conhecimento que esto interrelacionadas mas so

    estruturalmente autnomas. A primeira inovao nesta teoria dar uma ateno

    equilibrada distribuio desigual e articulao especfica entre formas de poder,

    formas legais e formas de conhecimento.

    So definidos seis lugares estruturais das sociedades capitalistas, seis modos de

    produo da prtica social: o espao domstico, o espao da produo, o espao

    do mercado, o espao da comunidade, o espao da cidadania e o espao mundial.

    Cada um destes lugares estruturais constitui uma espacialidade especfica, uma

    referncia locacional, inscrita nas prticas que perpassam e constituem os lugares

    estruturais. Cada lugar estrutural define-se como um conjunto de relaes sociais

    cujas contradies internas lhe originam uma dinmica endgena. A sua

    especificidade assenta na forma de troca desigual que marca as relaes sociais

    que a constituem. Esta desigualdade relacional, conforme se desenrola, produz

    uma forma especfica de capital cuja reproduo configura o campo social com um

    estilo interaccional e uma direccionalidade prprios21. Mas cada espao estrutural,

    sendo autnomo e tendo uma lgica endgena, articula-se com as relaes sociais

    dos outros espaos estruturais. A lgica de desenvolvimento de cada espao

    estrutural no mais do que uma forma sustentada de hibridizao. Cabe frisar que

    os espaos estruturais operam sempre em constelaes, ou seja, cada dimenso

    de cada espao estrutural pode estar presente em qualquer outra dimenso

    correspondente de outro espao estrutural. O que esta teoria prope uma grande

    flexibilidade das estruturas, mas sem cair no logro da sua proliferao ad infinitum.

    Cabe agora fazer uma breve anlise das prticas sociais que caracterizam cada um

    21 Alguma semelhana conceptual pode ser traada com a definio de campo social em Bourdieu.

  • Volume I

    508

    dos espaos estruturais, uma vez que so o princpio organizador da aco

    individual e colectiva, o critrio principal de identidade e de identificao dos

    indivduos e dos grupos sociais. O espao domstico estrutura-se volta das

    relaes de produo e reproduo da domesticidade e de parentesco. O espao

    da produo consiste nas relaes de produo (produtores directos e

    apropriadores da mais-valia, e entre estes e a natureza) e das relaes na produo

    (entre trabalhadores e gestores e entre trabalhadores entre si). O espao da

    comunidade assenta nas relaes sociais de produo e reproduo dos territrios

    simblicos e fsicos e das identidades e identificaes comunitrias. O espao da

    cidadania o conjunto das relaes sociais que constituem a esfera pblica, em

    particular as relaes de produo de obrigao poltica vertical entre os cidados e

    o estado. O espao mundial, e aqui a proposta original, concebido como uma

    estrutura interna das sociedades nacionais. Define-se, assim, como o feixe de

    relaes sociais locais ou nacionais em que o sistema mundial se inscreve atravs

    dos seus efeitos pertinentes (soma dos localismos globalizados e globalismos

    localizados).

    Para a problemtica que estou a tratar neste trabalho, a produo de identidades,

    interessa-me deter um pouco mais sobre o espao estrutural da comunidade. Com

    efeito, apesar de estarem presentes e incorporadas nos seis espaos estruturais, a

    produo e reproduo das identidades cristalizam-se no espao da comunidade.

    Aqui a lgica de desenvolvimento, definida como a maximizao da identidade,

    caracteriza-se por mobilizar uma forte energia emocional, uma busca contnua de

    razes. A forma de poder, que o autor salienta ser a mais complexa e ambgua,

    opera pela criao de alteridade, pelo privilgio de criar o outro, de separar o ns

    dos outros. No que diz respeito ao direito, o espao da comunidade estrutural pode

    ser reivindicado e instrumentalizado para a constituio de identidade agressivas e

    imperiais ou, pelo contrrio, para dar expresso a identidades defensivas,

    alternativas. As formas de conhecimento sendo definidas, em cada espao

    estrutural, como hegemonias locais, como produo de seis formas de senso-

    comum, so sempre parciais e contextualizadas. No espao da comunidade o

    conhecimento local, a tradio e as culturas locais so preponderantes.

    O que interessante, e contra uma hipottica derivao de poderes, direitos e

    formas de conhecimento, que Boaventura de Sousa Santos distingue entre

  • Captulo 13

    509

    poderes, direitos e formas de conhecimento csmicos e casmicos. Csmico

    significa, aqui, centralizado, exercido a partir de um centro poderoso e

    desenrolando-se dentro de limites e sequncias institucionais. Casmico implica

    mltiplos micro-centros, informais, e sequncias caticas sem limites pr-definidos.

    No que respeita ao poder a dominao csmica, gerada no sistema poltico e

    centrada no estado. Quanto forma de direito, o direito territorial ou estatal

    csmico, estruturador das outras legalidades. Na forma de conhecimento o

    conhecimento cientfico que hegemnico.

    Este quadro terico, flexvel como , refora o papel e a importncia da criatividade

    e da contingncia nas experincias quotidianas, permitindo, ao mesmo tempo,

    delimitar os recursos e os factores estruturadores das prticas e das lgicas

    identitrias. Alguns problemas se colocam, contudo, nas propostas apresentadas.

    Apesar de salientar que h mltiplas hegemonias em cada sociedade, definidas em

    cada um dos espaos estruturais, Boaventura de Sousa Santos refere que h

    estratgias de hegemonia que procuram reduzir e ocultar as constelaes de poder,

    de direito e de conhecimento. Essas redues tornam-se necessrias como iluses,

    imbudas nos habitus das pessoas e dos cientistas, tornam-se senso-comum. Mas

    como co-constroem as pessoas essas realidades quotidianas? A partir de que ponto

    exterior que o analista se pode situar para descrever e explicar esse senso-

    comum? Por outro lado, no fica clara a ontologia em que o autor se baseia. Qual a

    realidade do sujeito? uma construo social, definido nas redes e nos espaos

    estruturais em que circula, ou um possvel espao infra-estrutural que faltar no

    mapa apresentado? Qual a relao entre identidade pessoal e identidades sociais?

    No estar a maximizao da identidade presente em todos os espaos estruturais,

    como bem referiu Goffman? Mais do que no seja como um trabalho do indivduo

    na construo da experincia social como experincia prpria e nica, mesmo que

    esta experincia individualizada seja mais reivindicada do que real (Dubet,1994:184-

    185).

    Para precisar a abordagem do autor quanto ao processo identitrio temos que

    recorrer a outros textos (1994b;1994c). Com efeito, a as identidades so definidas

    como negociaes de sentido, como jogos de polissemia, como identificaes em

    curso (1994b:119). Crucial ser determinar, assim, quem pergunta pela identidade,

    em que condies, contra quem ou a favor de quem, com que propsitos e com que

  • Volume I

    510

    resultados. Distingue-se subjectividade/individual e subjectividade/colectiva, estando

    as duas em tenso permanente. A descontextualizao e a recontextualizao das

    identidades so processos permanentes derivados das relaes sociais conflituais

    entre os indivduos e os grupos. O processo de recontextualizao ter que ser

    analisado tendo em conta as especificidades dos campos de confronto e de

    negociao em que as identidades se formam e se diluem, dando especial relevo

    globalizao do capital e s tenses e contradies da derivadas. As identidades

    contextuais tero que ser conceptualizadas como multiculturalidades. Por outro

    lado, a subjectividade, entendida como auto-reflexividade e auto-responsabilidade,

    como materialidade de um corpo e as particularidades da personalidade, s poder

    ser enriquecida pela cidadania e por uma lgica da emancipao (1994c:207).

    Contudo, ao analisar a relao entre subjectividade e os novos movimentos sociais,

    numa dialctica emancipatria, parece-me haver uma subteorizao, uma definio

    subdeterminada da subjectividade, da identidade pessoal.

    No processo de construo identitria parece ser relevante tambm a equao

    permanente entre razes e opes, como a definiu Boaventura de Sousa Santos

    (1998, 1996). Enquanto o pensamento das razes o pensamento de tudo o que

    profundo, permanente, nico e singular, que d segurana e consistncia, o

    pensamento de opes de tudo o que varivel, efmero, substituvel, possvel e

    indeterminado a partir das razes (1996:9). As razes so entidades de grande

    escala enquanto as opes so entidades de pequena escala. Quanto projeco

    no tempo, as razes so marcadas pelo tempo glacial e as opes pelo tempo

    instantneo (1998: 4-5) A turbulncia actual de escalas e a acelerao do tempo

    desestabilizam a equao entre razes e opes. E, assiste-se a uma exploso das

    razes e opes. A multiplicao das opes, em tempo chamado de globalizao,

    concorre em simultneo, e em aparente contradio, com um tempo de localismos,

    territorializaes de identidade, de singularidades, de genealogias e de memrias

    (1996: 17). Mas o mais relevante para a minha anlise que, segundo Boaventura

    de Sousa Santos, se verifica uma busca de razes particularmente profundas e

    fortes que sustentem opes que so dramticas e radicais. Estaria aqui o

    fenmeno do fundamentalismo, tanto de ordem cultural como poltico ou religioso.

    Estas abordagens sobre as identidades propostas por Boaventura Sousa Santos

    so excepo no campo das cincias sociais em Portugal. Com efeito, se em

  • Captulo 13

    511

    muitos estudos em Portugal se faz referncia identidade social e aos processos

    de identificao, o tratamento terico destas noes tem sido mais escasso.22 No

    campo da psicologia social, Jorge Vala e a sua equipa (Monteiro et. al. 1991), alm

    de procurarem redefinir o conceito de identidade social, procedem sua

    operacionalizao e mensurao num grupo de estudantes do ensino superior

    universitrio. Concluem pela relevncia da identidade social para a distintividade

    grupal e sugerem que necessrio aprofundar os aspectos tericos e operacionais

    daquele conceito. Contudo, se tal clarificao terica, metodolgica e emprica no

    for possvel, propem que se deixe de utilizar o conceito de identidade social como

    panaceia e se procure outros modelos tericos. Seguindo a crtica de Margaret

    Wetherell e Jonathan Potter (1992) s formulaes de Henri Tajfel, parece-me que

    a existncia dos indivduos, dos grupos e das categorias sociais que Jorge Vala e a

    sua equipa utilizam so tidas, neste tipo de abordagem, como adquiridas,

    revelando-se a sua abordagem essencialista e no interrogadora das categorias

    aplicadas. A metodologia usada, pelo uso do questionrio e aplicao de escalas,

    no permite a anlise dos processos temporais e contextuais de construo e

    negociao das identidades.

    J para Jos Madureira Pinto (1991), as identidades so relacionais e construdas a

    partir de alteridades, sendo mltiplas as fontes de identidade social concebveis.

    Madureira Pinto acentua o processo diacrnico, salientando que a construo das

    identidades se alimenta dos trajectos sociais incorporados nos agentes, da posio

    ocupada por estes na estrutura social e dos seus projectos. Chama tambm a

    ateno para a importncia da anlise da esfera social da recepo do sentido

    (semiose social). Contudo, apesar de o autor referir este aspecto, parece-me que

    ser de dar maior nfase construo subjectiva das identidades sociais, sob

    constrangimentos para alm do controlo individual, ficando todo o trabalho

    identitrio sub-teorizado.

    Se o quadro terico apresentado por Boaventura Sousa Santos nos d um

    excelente instrumento de anlise e fixao dos elementos estruturais

    condicionadores e articuladores das prticas sociais, parece-me interessante

    integrar o mesmo com a anlise dos mundos sociais proposta por Anselm Strauss.

    22 Ver, como exemplo o trabalho de Silvano (1997).

  • Volume I

    512

    uma proposta que assenta numa epistemologia pragmtica. Os mundos sociais

    fornecem as condies contextuais para a aco e para o significado imediato

    desta, apresentando-se como formas de aco colectiva (Clarke,1991;Nunes, 1996;

    Strauss,1993). Uma definio de mundos sociais dada por Adele Clarke como

    grupos com compromissos (commitments) partilhados em relao a certas

    actividades, partilhando recursos de vrios tipos para atingirem os seus objectivos e

    construindo ideologias partilhadas de como continuarem as suas actividades

    (1991:131). Numa anlise mais elaborada, Anselm Strauss (1993:212-213) indica

    algumas caractersticas dos mundos sociais: a) num dado mundo social h uma

    actividade que mais preponderante, apesar de estar integrada em feixes de outras

    actividades; b) h lugares onde essas actividades decorrem, um espao e uma

    paisagem que as enquadram; c) h sempre uma tecnologia, entendida como os

    modos de executar as actividades do mundo social; d) os mundos sociais acabam,

    devido diviso do trabalho, por serem constitudos por diferentes organizaes.

    Interessante ser referir que pessoas de diferentes submundos sociais podem

    tomar posies distintas e agir diferenciadamente a propsito de determinados

    temas ou problemas que surjam nos mundos sociais ou na sociedade mais vasta.

    No processo de legitimao h a preocupao de escrever e reescrever a histria

    do mundo social e do sub-mundo a que se pertence e uma competio contnua

    pelos recursos pertinentes. A relao dos mundo sociais com a sociedade mais

    vasta e o Estado-nao pode ser apreendida pelas actividades desenvolvidas e

    pelas tecnologias utilizadas pelos mundos e sub-mundos sociais. Anselm Strauss,

    atento aos condicionalismos e factores estruturais, apresenta uma matriz

    condicional que, partindo da interaco at ao sistema-mundo, fixa os limites e o

    enquadramento das actividades dos mundos sociais e dos indivduos (Strauss e

    Corbin,1990:158-175; Strauss,1993:60-65). Contudo, acho que, a nvel terico, a

    discusso da matriz condicional no se apresenta suficientemente sofisticada,

    sendo preferveis as propostas de Boaventura Sousa Santos sobre os espaos

    estruturais e a sua anlise dimensional.

    Os mundos sociais podem ser locais, regionais nacionais ou transnacionais e serem

    ou no transversais s diferentes classes sociais, ao sexo dos participantes e aos

    espaos estruturais. Os mundos sociais apresentam fronteiras e limites fludos e

    so atravessados, como j vimos, por lutas e debates internos permanentes,

  • Captulo 13

    513

    definindo-se como ordens sociais negociadas (Strauss,1978). Todos os indivduos

    tm mltiplas pertenas, podendo variar a participao na sua intensidade

    (envolvimento total ou relativa marginalizao) e no grau da sua importncia no

    interior de cada mundo social (posio nuclear ou perifrica).

    Cruzando a teoria dos mundos sociais com a problemtica das identidades, alguns

    conceitos so de reter, nomeadamente os de trajectria e de biografia. A trajectria

    o desenrolar no tempo de um dado fenmeno que experienciado, sendo, ao

    mesmo tempo, definida como todas as aces e interaces que contribuem para a

    sua evoluo. Na trajectria os actores sociais procuram moldar activamente os

    fenmenos em causa, sendo tambm afectados pelas condies estruturais e

    contextuais presentes (Strauss,1993:53-54). Os aspectos mais relevantes na gesto

    da trajectria tero a ver com os poderes e estilos de aco dos diferentes actores.

    Contudo, nenhum actor poder gerir ou orientar a aco sozinho. A negociao

    sempre necessria, podendo estar ou no conjugada com a coero, com a

    manipulao ou a persuaso.

    A biografia, entendida como uma identidade definida no tempo, e que pode ser

    individual ou colectiva, tem a ver com o envolvimento dos actores na interaco e

    nos mundos sociais a que pertencem (Strauss,1993:57-58). Tambm aqui se pode

    estabelecer que a biografia passa por fases. Anselm Strauss, na sua definio e

    anlise da identidade social, baseia-se nos conceitos avanados por Mead

    (Strauss,1959). Salienta que o sentimento de identidade assenta num envolvimento

    e dedicao do indivduo nos grupos e mundos sociais a que pertence. O auto-

    sacrifcio implica sempre uma identidade fortemente ancorada e o maior dos

    empenhos (1959:40). Os grupos, os mundos sociais ou os indivduos que neles

    participam podem forar, pela exigncia de conformidade ou por outras lgicas,

    alguns dos participantes a adoptarem determinadas identidades temporrias, forar

    os seu estatuto social (status forcing), numa dinmica que tanto pode ser de

    heroicizao como de envergonhamento. As contradies e dissonncias da

    vivncia experencial requerem, para a manuteno de um sentimento de identidade

    contnuo, um trabalho biogrfico constante Assim, a persistncia da identidade pode

    ser muito diferente da sua persistncia imaginada (1959:144). A relao com o

    passado pessoal e com o passado dos grupos ou dos mundos sociais a que

    pertence ser crucial para o indivduo ter ou no um sentimento de continuidade.

  • Volume I

    514

    Este sentimento de continuidade articula-se, expressa-se na construo e

    reelaborao contnua de uma identidade narrativa. Esta temtica ser abordada no

    prximo ponto.

    5. A identidade narrativa

    Na explicitao do conceito de identidade narrativa e da sua importncia terica

    para o projecto que temos entre mos, acho pertinente partir das propostas de

    Mikhail Bakhtine (1994;1986). Bakhtine, apesar de especialista de crtica literria,

    cunhou conceitos que enriquecem a anlise da construo e reconstruo dos

    processos identitrios Este autor assenta a sua antropologia filosfica na ideia de

    alteridade. Na sua concepo do ser humano o outro decisivo (Todorov,1981:145-

    146)23. O dilogo com os outros essencial na construo da conscincia de cada

    indivduo, dilogo que multivocal e que se produz na interseco de foras

    centrpetas (necessidade de se ligar ao outro) e de foras centrfugas (necessidade

    de diferenciao do outro) (Baxter e Montgomery,1996:25-26). Convm salientar,

    em contracorrente com muitas das interpretaes comuns da teoria de Bakhtine,

    que para este autor a empatia ou a identificao com o outro tm somente um papel

    transitrio e preparatrio, e que, no dilogo, cada identidade presente se mantm

    sempre irredutvel. A aproximao ao outro, ou at a outra cultura, sendo

    necessria, secundada por um movimento de retorno, de recentramento na sua

    posio, aquilo a que Tzvetan Todorov traduziu como exotopia (1981:153). Nas

    palavras de Bakhtine:

    Claro que a entrada, como ser humano, numa outra cultura, a possibilidade de ver o mundo atravs do olhar da mesma, uma parte necessria no processo da sua compreenso. Mas, se isto fosse o nico aspecto desta compreenso, seria meramente uma duplicao e no traria nada de novo ou enriquecedor. A compreenso criativa no se auto-renuncia, no renuncia ao seu lugar no tempo, sua prpria cultura e no esquece nada [...] Na esfera da cultura a exterioridade um factor poderoso na compreenso (1986:7) (itlicos no original).

    Esta exterioridade, esta exotopia no implica uma viso omnisciente e

    transcendente. Trata-se somente de uma ancoragem, de um ponto de confluncia e

    23 Apesar de no terem conhecimento das obras de cada um, as propostas de Bakhtine aproximam-se muito das de Mead. Contudo, Bakhtine est mais atento s contingncias e s contradies presentes na interaco.

  • Captulo 13

    515

    de bifurcao de mltiplas e heterogneas foras, dilogos, presses e vozes

    individuais (heterofonia). pelos enunciados, constituintes do dilogo, que se

    processa a comunicao e o cruzar dessas tendncias contraditrias. Os

    enunciados so constitudos por factores lingusticos e pelo seu contexto de

    enunciao. Este contexto sempre nico, enraizando-se, na noo de crontopo,

    entendido como complexo espcio-temporal que enquadra e limita a actualizao

    concreta do dilogo, a interaco e aquilo que dito, por quem, a quem e como,

    alm de implicar necessariamente a emisso de juzos valorativos. Por outro lado,

    cada enunciado veicula quatro tipos diferentes de dilogo: do enunciado com os

    enunciados do passado; com o passado recente da conversa; com a resposta

    antecipada do interlocutor; e com a resposta antecidada de um supradestinatrio,

    entendido este como um terceiro, como um outro distante cuja resposta

    antecipada, como o peso da comunidade a que se pertence (persistncia do

    passado)24. A criatividade dos interlocutores, a capacidade de improviso na

    produo dos enunciados sempre uma possibilidade, mas estes s podem

    emergir dentro de tipos ou gneros de discursos especficos, que, sendo bastante

    diferenciados (heterologia), apresentam-se em nmero limitado. Estes tipos de

    discurso so condicionadores, delimitam os campos possveis dos enunciados, e

    so partilhados normativamente por uma comunidade.

    O sujeito, na dialctica relacional de Bakhtine, um espao aberto e ocupado por

    vozes mltiplas, inclusive oriundas de um dilogo interno permanente. O sujeito

    dialgico um produto do momento, de uma negociao constante. As emoes,

    as memrias, os desejos e as predisposies podem ser entendidas, nesta teoria,

    como metforas da conversao. Estas metforas, se so essenciais para se

    perceber como as pessoas organizam e ancoram o fluxo contnuo e indeterminado

    das suas experincias, no consubstanciam qualquer interioridade essencialista. Os

    relatos, as narrativas que elaboramos sobre ns prprios, no so mapas de um

    territrio, mas sim simples dirios de bordo (Baxter e Mntgomery,1996:143). Cada

    sujeito portador de vrias subjectividades, co-criadas em contextos distintos, e

    que apresentam verses diferentes e igualmente vlidas desse sujeito. A unidade

    do sujeito, nesta perspectiva, deriva mais das crenas sociais do que da experincia

    24 Este conceito de supradestinatrio muito semelhante ao conceito de outro generalizado em Mead.

  • Volume I

    516

    social. Como sintetizam muito bem Leslie Baxter e Barbara Montgomery:

    As abordagens correntes procuram o que comum no comportamento, as emoes e experincias comuns de uma pessoa em diferentes situaes e relaes. A dialctica relacional reconhece diferenas fundamentais entre as interaces relacionais cronotipicamente situadas, diferenas essas que representam a multivocalidade da existncia social. Estas diferenas sero, muitas vezes, mutuamente exclusivas e contraditrias, mas sempre interdependentes (1996:160).

    O sujeito no , assim, algo de imutvel, mas sim um trabalho constante de

    construo, procurando integrar trs contradies esssenciais: a relao entre o dito

    e no-dito, entre o dilogo livre ou constrangido e entre o discurso interior e exterior.

    As propostas tericas de Bakhtine apresentam, de uma forma exemplar, a

    multiplicidade, abertura e indeterminao dos processos identitrios. Contudo, a

    noo de identidade narrativa no aparece bem sistematizada e trabalhada, no

    permitindo uma aplicao emprica que no seja ambgua. no trabalho de Paul

    Ricoeur (1995;1990), que encontramos uma elaborao terica complexa da

    relao entre identidade e narrativa.25 Para este autor, a identidade pessoal

    articula-se na dimenso temporal, num projecto de vida. Esta permanncia no

    tempo, a relao da identidade pessoal com o tempo, pode ser entendida como um

    trabalho constante num espectro de variaes entre um plo de identidade-idem

    (mesmidade) e de identidade ipse (ipseidade). A identidade mesmidade pode ser

    caracterizada pela estabilidade que deriva dos hbitos, disposies e identificaes

    adquiridas, como alteridades assumidas enquanto membros de certos grupos e

    comunidades.26 Tais traos podero ser sintetizados na noo de carcter que

    engloba a identidade numrica, a identidade qualitativa, a continuidade ininterrupta

    na mudana, ou seja, tudo o que nos permite afirmar que estamos perante a

    25 Margaret Somers (1995,1994a;1994b;1992) tambm procurou sistematizar a relao entre identidade e narrativa atravs dos conceitos de narrativa ontolgica, narrativa pblica, narrativa conceptual e metanarratividade (1994b:617-620). A narrativa ontolgica permite ver como os actores produzem sentido e agem no quotidiano, como constroem as suas mltiplas identidades num processo contnuo e, por vezes, contraditrio. Os factores estruturais no deixam de ter importncia, sendo possvel apreend-los pela incorporao parcial das narrativas pblicas, definidas como as narrativas ligadas aos grupos ou instituies. As narrativas conceptuais so os conecitos elaborados pelos investigadores. A metanarratividade engloba as grandes narrativas da contemporaneidade, como modernismo, ps-modernismo, capitalismo, comunismo, etc. As propostas de Somers tm o mrito de clarificarem conceptualmente a relao entre identidade e narrativa, mas o conceito de narrativa ontolgica, se definido como contraditrio, relacional e no essencialista no parece captar as nuances avanadas pelas propstas de Bakhtine ou, como veremos, de Paul Ricoeur.

    26 Esta concepo da identidade-mesmidade aproxima-se muito da teoria do habitus de Bourdieu. Uma crtica a esta ltima teoria que abordaria a identidade s a partir de um dos seus plos.

  • Captulo 13

    517

    mesma pessoa (impresses digitais, caractersticas genticas, etc.). A identidade-

    ipseidade integra a alteridade, de tal forma que o indivduo no se consegue pensar

    sem o outro, tendo que dialogar continuamente com a polissemia da alteridade.27 A

    identidade-ipseidade a identidade desejada, mantida, o sujeito visto como autor

    das suas palavras e actos, no-substancial e no-imutvel, mas responsvel pelo

    que diz. Esta permanncia de si (ipseidade), que integra o outro e as promessas

    que lhe so feitas, pode ser definida como o plo tico do contnuo da identidade

    pessoal.

    Como se articulam, no tempo, estes dois plos? Tal conseguido atravs da

    identidade narrativa, que contm a dialctica entre a mesmidade e a ipseidade. A

    narrativa, que uma mimesis da aco e tem como referente o tempo, mediadora

    entre a aco e a moral. A narrativa pode-se dizer que descreve, conta e prescreve.

    No h narrativa eticamente neutra e esta apresenta-se como o primeiro laboratrio

    do julgamento moral (1990:167). O grande problema , na confrontao entre as

    duas verses de identidade, a permanncia da identidade no tempo. A narrativa

    refigura o tempo e, partindo da memria construda na continuidade da vida,28

    procura dar-lhe a forma de uma experincia humana. Uma concepo narrativa da

    identidade pessoal tem que passar da aco personagem. considerada

    personagem quem faz a aco na narrativa, a personagem colocada em intriga A

    identidade narrativa o colocar em intriga (mise en intrigue) de uma personagem,

    que permite integrar na permanncia, no tempo, a variabilidade, a descontinuidade

    e a instabilidade. A configurao e refigurao narrativas so concordncias

    discordantes, podendo ser apreendidas pela noo de sntese do heterogneo

    (1990:169). A intriga integra os acontecimentos, as contingncias, incorporando-as

    como efeito de necessidade ou de probabilidade, dando um sentimento pessoal de

    continuidade e estabilidade.29 Ou seja, a linearidade dos relatos um facto

    27 Esta alteridade uma articulao entre o corpo (a carne), o outro (o estrangeiro) e o foro interior da conscincia.

    28 Memria que Ricoeur considera como sendo sub-consciente, como pr-discursiva, articulada antes da verbalizao e do aparecimento da narrativizao.

    29 O mesmo diz Georges Gusdorf (1991) do papel da autobiografia como projeco de uma identidade idealizada, como a projeco de um ideal de pessoa e de vida.

  • Volume I

    518

    provisrio, construdo e em constante reelaborao.30 Estamos, assim, perante uma

    concepo dinmica de identidade e que se caracteriza pela diversidade. Por outro

    lado, a constituio mtua da narrativa e do tempo implica que a identidade

    narrativa se estruture como um entrecruzar instvel entre histria e fico.

    Tambm Stuart Hall (1996:4) refere que as identidades emergem da narrativizao

    do sujeito, e que a natureza necessariamente ficcional deste processo no afecta a

    eficcia discursiva, material ou poltica das mesmas. As identidades constroem-se

    no e pelo discurso, em lugares histricos e institucionais especficos, em formaes

    prticas e discursivas especficas e por estratgias enunciativas precisas.

    6. As subjectividades descentradas, heterogneas e mltiplas

    Como refere Bruno Latour (1996:86-87), temos que ultrapassar, pela anlise das

    prticas, a diferena entre representaes (interioridades) e factos (exterioridades),

    assentar em ontologias de geometria varivel, reterritorializar e refiliar as pessoas

    em identidades artificiais, dado que todos os dispositivos so artificiais e no

    essencialistas, construdos das mediaes, das contingncias e dos

    acontecimentos. Um aprofundamento destas ideias foi avanado pelo autor, de

    forma magistral, no seu livro com Hemilie Hermant, Paris Ville Invisible (1998).

    Recusando os conceitos tradicionais de actor e de contexto social, sugere o

    conceito de movimento entendido como um alinhamento de traos (1998:35). Para

    ele, nunca se passa do abstracto para o concreto, mas sim de um concreto para

    outro concreto. Dando alguma margem de manobra s pessoas, prope que em vez

    de panptico, no sentido de Foucault, se fale de oligptico. A totalizao sempre

    parcial e incompleta.

    Na proliferao de referentes circulantes, em que as forma de referncia podem

    coexistir sem nunca se misturarem, h que atender ao que est ligado, ao que se

    constitui em rede. Ao analista cabe estar atento aos regimes de aco presentes e

    s competncias exigidas. Para a questo das identidades, Bruno Latour prope a

    metfora da assinatura (abonnement). Cada pessoa est formatada com mltiplas

    assinaturas, com histrias e inscries distintas, que obrigam a escolhas por vezes

    30 Aquilo a que Morson (1997) chamou de processo de sideshadowing, tornando o percurso histrico como produto de uma necessidade e no de uma luta entre alternativas que se apresentam

  • Captulo 13

    519

    dolorosas. O eu um fio que liga as mltiplas camadas que envolvem a pessoa,

    camadas que foram antecipadas e formatadas pelos outros. O eu, a identidade,

    algo que circula entre diferentes cenrios e figuraes. Mais do que falar em

    intersubjectividade ou em interaces face-a-face, deve-se falar de interferncias,

    aces, materiais heterogneos, em dobras, temporalidades diversas e em

    interobjectividade31.

    Uma proposta semelhante avanada por Annemarie Mol e John Law (1998)32.

    Baseando-se numa anlise performativa, procuram ver as prticas referenciais, isto

    , como os objectos e as pessoas so desempenhados e no interpretados.

    Utilizando como caso emprico o estudo dos diabticos hipoglicmicos, Mol e Law

    recusam a distino entre a subjectividade e o seu meio envolvente, devido

    continuidade metablica e s exigncias prticas e materiais do dia-a-dia33. A

    subjectividade, o self, no um corpo isolado, mas encontra-se sim distribudo em

    diferentes materialidades e prticas. E, mais importante, cada pessoa no uma

    fortaleza, mas sim algo que ganha em ter fronteiras permeveis de forma a ser

    ajudado por outros. A subjectividade e a corporalidade so activadas e constitudas

    numa variedade de formas e processos. As identidades no so essncias

    desincarnadas, mas teias complexas de relaes, materiais e desejos. A tarefa

    principal e mais difcil para cada pessoa integrar as suas diferentes

    subjectividades incorporadas.

    Este trabalho incessante de integrao de diversas subjectividades incorporadas j

    tinha sido analisado por Michel Foucault (1994a). Procurando analisar a moralidade

    dos comportamentos, isto , como e com que margem de variao e transgresso

    os indivduos e os grupos se comportam em relao aos cdigos morais, Foucault

    conclui pela existncia de diferentes maneiras do indivduo operar como sujeito

    moral da aco (1994a:556). Os indivduos procuram construir-se como sujeitos

    como equiprovveis.

    31 A noo de interobjectividade e o papel dos objectos nas interaces sociais e nos processos de definio das escalas das prticas e representaes foram abordados no artigo de Latour (1994).

    32 Ver tambm os artigos importantes de John Law (1998,1997).

    33 Tambm Donna Haraway fala da tecnocincia como uma forma de vida, uma prtica, uma cultura, uma matriz generativa. A tecnocincia, uma imploso da cincia e da tecnologia, significa ns densos de actores humanos e no-humanos que se aliam atravs de tecnologias, materiais, sociais e semiticas (1997:50). A importncia dos actores no-humanos uma das mais importantes

  • Volume I

    520

    morais, por um trabalho de produo de uma ontologia histrica de si prprios. O

    importante, segundo Foucault, o indivduo permanecer na fronteira, rejeitando

    tanto o estar dentro como o estar fora. A pergunta essencial ser ento: no que nos

    dado como universal, necessrio, obrigatrio, qual a parte do que singular,

    contingente e devido a constrangimentos arbitrrios? O objectivo no procurar as

    estruturas formais que tm valor universal, mas sim, atravs de um inqurito

    histrico, precisar os acontecimentos que nos levaram a constituir-nos e a

    reconhecer-nos como sujeitos do que fazemos, pensamos e dizemos.

    Papel crucial, nessa definio ontolgica dos indivduos, assumem os discursos que

    articulam o que pensamos, dizemos e fazemos como acontecimentos histricos.

    Uma ontologia crtica de ns prprios um desafio histrico-prtico dos limites que

    podemos ultrapassar e, assim, constitui-se como trabalho de ns mesmos sobre

    ns mesmos enquanto seres livres (1994a: 575). As perguntas a que procuramos

    responder so: como nos constitumos (no tempo) como sujeitos do nosso saber?

    Como nos constitumos como sujeitos que exercem e sofrem relaes de poder?

    Comos nos constitumos como sujeitos morais das nossas aces?

    Noutro texto, Foucault (1994b:718) diz que o sujeito no uma substncia, mas

    uma forma que no sempre idntica a ela prpria. No temos a mesma relao

    connosco prprios quando nos constitumos como sujeitos para votar ou para

    realizar o nosso desejo numa relao sexual. No estamos em presena do mesmo

    tipo de sujeito. Em cada caso joga-se ou estabelece-se consigo prprio formas de

    relaes diferentes (diferentes sujeitos e diferentes identidades).

    Estas contribuies foram importantes nas reflexes feministas sobre a identidade.

    Como refere Morwenna Griffiths (1995), s perguntas sobre a identidade avanadas

    pelo autores masculinos34, as mulheres contrapem outras mais pertinentes: quem

    ou o qu sou eu? Como me tornei no que sou? o que considero ser o meu

    verdadeiro eu? O que eu posso fazer sobre isso? Na busca de respostas, a autora

    discerne duas perspectivas distintas, mas prximas, na busca de um ncleo pessoal

    identitrio fixo. Ou esse ncleo pessoal sexuado, o que levou a um feminismo

    contribuies da teoria das redes-actores. Para uma aplicao da mesma questo das identidades, ver Michael (1996).

    34 Essas perguntas so: O eu parece ser unitrio, mas pode realmente s-lo? E se o eu unitrio como o pode ser? (1995:75).

  • Captulo 13

    521

    radical, ou esse ncleo tido como andrgino, estando este ltimo na base de um

    feminismo reformista.

    Contudo, para a autora, h que atender experincia subjectiva como fragmentada.

    Baseando-se em Jane Flax (1993) e nas suas crticas s teorias clssicas da

    psicanlise, Griffiths afirma que a teoria das subjectividades mltiplas pode ser

    emancipatria, dado que a teoria do eu unitrio deriva da dominao masculina e

    da diviso tradicional do trabalho. Contra uma teoria do sujeito como dado e

    constitudo, h que atender capacidade de aco e de afirmao do controlo por

    parte dos indivduos. crucial, neste caso, a noo de mudana e de

    desenvolvimento na constituio das subjectividades, visvel nas tranformaes do

    corpo e das relaes (Benhabib, 1992).

    Para Morwenna Griffiths (1995:93), a identidade pessoal (self-identity) deve ser

    entendida como uma espcie de teia, cuja construo em parte guiada pelo

    sujeito mas que no est sob o seu controlo total. O indivduo tem que enfrentar

    constrangimentos e influncias contraditrias e oponentes. A criao de identidade

    um assunto colectivo, mas em que cada pessoa tem um contributo importante. A

    identidade pessoal s pode existir atravs das diferentes comunidades a que

    pertence, na experincia da aceitao e da rejeio, embebida nas estruturas

    patriarcais da sociedade. A pluralidade e os jogos de poder so a norma, no a

    excepo.

    Uma posio mais radical avanada por Judith Butler (1990)35. Partindo das

    anlises clssicas de Foucault, Butler procede a um exerccio radical de

    desconstruo da subjectividade feminista. Para esta autora, o sujeito feminista foi

    constitudo discursivamente pelo sistema poltico que supostamente facilitaria a

    emancipao das mulheres (1990:2). Os atributos sexuais, segundo ela, no so

    expressivos mas sim performativos. Sendo os atributos e os actos de cada sexo

    performativos, no h uma identidade pr-existente. No h actos falsos ou

    verdadeiros, reais ou distorcidos atribuveis a cada sexo. O postular de uma

    verdadeira identidade sexual uma fico reguladora. As diferenas sexuais so

    criadas atravs de desempenhos sociais sustentados e, normalmente, escondem o

    35 Para uma crtica a Butler, baseada na teoria de Mead, mas a meu ver, demasiado subjectivista, ver Dunn (1997).

  • Volume I

    522

    seu carcter performativo e as mltiplas possibilidades de configuraes de

    comportamentos sexuais. Os sexos no so nem falsos nem verdadeiros, nem reais

    nem aparentes, nem originais nem derivados (1990:141). Os mesmos devem ser

    tornados incrveis, potenciadores de espaos de liberdade e de alternativas. Por