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ESCOLA CIDADÃ NO SÉCULO XXI José Eustáquio Romão 1 RESUMO Em 1994, o Instituto Paulo Freire (Brasil) propôs à comunidade educacional o “Projeto da Escola Cidadã”, no qual registrava, analisava e propunha avanços relativos ao movimento de escolas brasileiras que buscavam a realização plena da cidadania ativa multicultural 2 de seus educandos e educadores. Passados sete anos, o Projeto ainda continua provocando discussões e angariando adeptos, mas como se trata de um movimento, avança para além de suas preocupações limitadas à gestão, originalmente, debruçando-se sobre os conteúdos, os métodos e os procedimentos escolares. Ao final do século XX, a organização das Nações Unidas para a Ciência, Educação e Cultura (UNESCO) desenvolveu, no “Relatório Jacques Delors”, publicado no Brasil com o título Educação, um tesouro a descobrir (2000) os quatro pilares necessários à educação do século XXI. Instado, também pela UNESCO, a manifestar-se sobre a educação necessária aos homens e mulheres deste novo milênio, Edgar Morin, um cientista muito prestigiado no final do século XX, escreveu os Sete saberes necessários à educação do futuro (2000), obra na qual tenta sintetizar quais conhecimentos deverão constar da agenda educativa das formações sociais do século que se inicia. Coincidentemente, na sua última obra publicada ainda em vida, Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática docente (1997), Paulo Freire produziu um de seus textos mais importantes, que se voltou também para a educação necessária à humanidade desses novos tempos. Neste trabalho, procurarei desenvolver uma leitura comparada desses três importantes documentos, tentando lançar luzes sobre o que ainda insistiríamos em denominar “Escola Cidadã do século XXI”. Palavras-Chave Educação – Ciência – Século XXI – UNESCO 1 Fundador e Diretor do Instituto Paulo Freire, Professor no Curso de Pós-Graduação em Educação, no Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora (MG) e Centro Universitário Nove de Julho (SP). 2 O conceito de cidadania multicultural foi desenvolvido por Carlos Alberto Torres em sua última obra, Democracia, educação e multiculturalismo (2001).

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Page 1: José Eustáquio Romão1 RESUMO - unopar.br · ESCOLA CIDADÃ NO SÉCULO XXI José Eustáquio Romão1 RESUMO Em 1994, o Instituto Paulo Freire (Brasil) propôs à comunidade educacional

ESCOLA CIDADÃ NO SÉCULO XXI

José Eustáquio Romão1

RESUMO

Em 1994, o Instituto Paulo Freire (Brasil) propôs à comunidade educacional o “Projeto da Escola Cidadã”, no qual registrava, analisava e propunha avanços relativos ao movimento de escolas brasileiras que buscavam a realização plena da cidadania ativa multicultural2 de seus educandos e educadores. Passados sete anos, o Projeto ainda continua provocando discussões e angariando adeptos, mas como se trata de um movimento, avança para além de suas preocupações limitadas à gestão, originalmente, debruçando-se sobre os conteúdos, os métodos e os procedimentos escolares. Ao final do século XX, a organização das Nações Unidas para a Ciência, Educação e Cultura (UNESCO) desenvolveu, no “Relatório Jacques Delors”, publicado no Brasil com o título Educação, um tesouro a descobrir (2000) os quatro pilares necessários à educação do século XXI. Instado, também pela UNESCO, a manifestar-se sobre a educação necessária aos homens e mulheres deste novo milênio, Edgar Morin, um cientista muito prestigiado no final do século XX, escreveu os Sete saberes necessários à educação do futuro (2000), obra na qual tenta sintetizar quais conhecimentos deverão constar da agenda educativa das formações sociais do século que se inicia. Coincidentemente, na sua última obra publicada ainda em vida, Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática docente (1997), Paulo Freire produziu um de seus textos mais importantes, que se voltou também para a educação necessária à humanidade desses novos tempos. Neste trabalho, procurarei desenvolver uma leitura comparada desses três importantes documentos, tentando lançar luzes sobre o que ainda insistiríamos em denominar “Escola Cidadã do século XXI”.

Palavras-Chave

Educação – Ciência – Século XXI – UNESCO

1 Fundador e Diretor do Instituto Paulo Freire, Professor no Curso de Pós-Graduação em Educação, no Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora (MG) e Centro Universitário Nove de Julho (SP). 2 O conceito de cidadania multicultural foi desenvolvido por Carlos Alberto Torres em sua última obra, Democracia, educação e multiculturalismo (2001).

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INTRODUÇÃO

Quando o Professor Moacir Gadotti e eu escrevemos a primeira versão do “Projeto da Escola Cidadã”3 do Instituto Paulo Freire, para submete-la ao exame de educadores e pesquisadores da educação brasileira, a intenção era a de registrar os avanços das escolas do país que trabalhavam para a construção da realização humana, em um contexto democrático, com todas as dimensões que o conceito de democracia plena deve carregar consigo: econômica, política, social e cultural. Então, destacávamos que se tratava quase que tão somente do registro e sistematização de um movimento que já estava presente na sociedade educacional brasileira. Contudo, tanto adicionávamos algumas questões, a começar, por exemplo, pela relativa ao próprio adjetivo“cidadã” – constructo burguês cujas limitações são conhecidas por suas limitações à institucionalidade democrática formal – como ainda aportávamos discussões a respeito de uma cidadania nova, indutora da conscientização e resistente aos fatores “liberticidas”. Naquela época, entendíamos como “escolas cidadãs” as que se apresentavam, tanto em suas relações internas quanto nas que desenvolvia com a comunidade extra-escolar de seu entorno, como verdadeiros “trailers” da vivência democrática mais ampla. Além disso, defendíamos e apregoávamos que essa escola deveria ser estatal quanto ao financiamento, comunitária quanto à gestão e pública quanto à destinação. Aparentemente simples e sem grandes novidades, o conceito então formulado tinha implicações muito mais profundas do que se poderia imaginar. Assim, nossa formulação reelegia e recolocava em pauta uma discussão que, aparentemente, estava superada e, portanto, sem sentido ou legitimidade para figurar na agenda educacional pós-moderna: público versus privado. Na verdade, o tema estava apenas recolhido ou escondido sob o tapete da epistemologia e da política que não querem tratar de polêmicas. Desde a década de 1950, e mais fortemente ainda na subseqüente, que o confronto entre o público e o privado representava o eixo das discussões entre educadores e pensadores da educação, que confundiam, inocente ou astutamente, de um lado, “privado” com “privatismo” e, de outro, “público” com “estatal”. Com a crescente hegemonia do pensamento neoliberal, a discussão tendeu a se tornar sectária e a perder sua racionalidade, seja por causa da defesa apaixonada do privado pelos intelectuais orgânicos da burguesia, seja pela crítica e pela denúncia veementes do mercado (privado) e apologia, também apaixonada, do estatal, pelos educadores inscritos no campo da pedagogia crítica. Quanto a seu segundo componente – comunitária quanto à gestão – o “Projeto da Escola Cidadã” gerou ainda mais polêmica e, em alguns lugares que o 3 ROMÃO; GADOTTI (1994).

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apresentávamos, era recebido com muita desconfiança, especialmente entre os que pensavam que havíamos aderido ao “comunitarismo” que desresponsabiliza o Estado de suas obrigações relativas às políticas sociais, mormente às educacionais. O terceiro componente – destinação pública – não despertava maiores desconfianças. Sete anos passados, percebemos que grande parte das resistências aos projeto se desvaneceram e a expressão “escola cidadã” acabou por se consagrar numa razoável literatura pedagógica produzida pelo pensamento pedagógico progressista brasileiro. Parece, finalmente, que se tem dado ouvidos ao alerta para o qual sempre chamei a atenção, mais especificamente em Dialética da diferença: a Escola Cidadã frente ao projeto pedagógico neoliberal (ROMÃO, 2000): o perigo das armadilhas da ideologia hegemônica que, ou desqualifica discursos e propostas diferentes ou alternativas aos seus, ou apropria-se das proclamações e dos projetos de maior appeal político do campo adversário, descaracterizando-as e deixando os confrontantes sem bandeiras. Para nós, seus autores, os limites do Projeto não estavam no que nele estava expresso como princípios, diretrizes e estratégias da escola progressista. Porém, logo após sua publicação, já percebíamos que ele se ressentia da falta de elementos e componentes que dissessem mais respeito ao “que-fazer” intra-escolar, aos elementos curriculares, dado que sua estrutura e conteúdo voltavam-se mais para os aspectos macro e administrativo da escola. Nesta mesma época – segunda metade da década de 90 – a maioria dos países empreenderam reformas educacionais, no bojo das quais predominaram as preocupações com as questões curriculares. O governo brasileiro, por exemplo, sancionou sua Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) e iniciou a implantação da nova estrutura dela decorrente, com um forte empenho na formulação e disseminação de novos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs). Em face deste contexto de limiar de século voltado para as questões relativas aos sistemas educativos e do trabalho que se desenvolve em suas unidades operativas, pensamos que devemos centrar nossa atenção na práxis escolar. É com essa intenção que, neste trabalho, tentaremos responder à questão “quais conhecimentos, habilidades e posturas serão necessários aos educadores e educadoras, aos educandos e às educandas do século XXI?”; ou, em outra perspectiva, se, em lugar de tudo isso, o que valerá serão os “pilares” da UNESCO, os “saberes” de Morin ou as “competências” como proclamam os últimos discursos pedagógicos da moda? Discutiremos as novas versões dos projetos político-pedagógicos apresentados como necessários às formações sociais do século XXI à luz da perspectiva freiriana, para a qual a escola cidadã tem de se preocupar é com o aprender a aprender, ou, de modo mais radical ainda, com o re-aprender a aprender.

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O Relatório Delors representa o pensamento pedagógico oficial da humanidade neste início de milênio, já que resultou da contribuição de educadores de todo o Planeta, tendo sido formulado e publicado sob a chancela do órgão máximo responsável pela educação na Terra, que é a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO). Portanto, não há como considerar ou propor qualquer projeto pedagógico – portanto, no caso, não há como desenvolver o tema da “Escola Cidadã” – sem o exame, ainda que sumário, desse documento da UNESCO. Da mesma forma, não se pode desconhecer, para os propósitos deste trabalho, o texto elaborado por Edgar Morin – sob encomenda da própria UNESCO4 – publicado no Brasil com o título Os sete saberes necessários à educação do futuro (2001). Finalmente, não há como deixar de examinar, também, o último livro que Paulo Freire publicou ainda em vida, Pedagogia da autonomia (1997) que, sintomática e coincidentemente, traz o subtítulo de “Saberes necessários à prática educativa”. Neste caso, apesar deste subtítulo, centrado nos “saberes”, veremos como Paulo Freire – reconhecidamente um dos mais importantes educadores do mundo no final do século XX – retoma, ratifica e atualiza um paradigma epistemológico, político e pedagógico novo, que vinha desenvolvendo ao longo de toda sua vasta obra, no qual o “aprender” (verbo) tem mais sentido que os “saber” (substantivo). É referenciado nesta perspectiva que examinaremos as proposições do Relatório Delors e de Edgar Morin.

4 Teriam os responsáveis por esse organismo internacional considerado o Relatório Delors incompleto, apesar de sua elaboração coletiva, a tantas mãos e durante tanto tempo, e buscado as complementações de um pensador de prestígio internacional, mas, de qualquer forma, complementações individuais?

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PILARES

Iniciaremos este trabalho com o exame de um documento que já se tornou muito conhecido: o comumente denominado “Relatório Jacques Delors”. Como sabemos, ele resultou dos trabalhos da Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI, da UNESCO. Na sua versão brasileira, foi publicado sob o título Educação – um tesouro a descobrir (1998)5. No que propõe para a educação deste século, o Relatório Delors pode ser sintetizado em um de seus parágrafos:

Para poder dar respostas ao conjunto de suas missões, a educação deve organizar-se em torno de quatro aprendizagens fundamentais que, ao longo de todos a vida, serão de algum modo para cada indivíduo, os pilares do conhecimento: aprender a conhecer, isto é, adquirir os instrumentos da compreensão, aprender a fazer, para poder agir sobre o meio envolvente, aprender a viver juntos, a fim de participar e cooperar com os outros em todas as atividades humanas; finalmente aprender a ser, via essencial que integra as três precedentes. É claro que estas quatro vias do saber constituem apenas uma, dado que existem entre elas múltiplos pontos de contato, de relacionamento e de permuta. (DELORS, 1998: 89-90).

Primeiramente, cabe destacar que o termo “pilares” é tomado no sentido de “bases”, “fundamentos”, resgatando o significado denotado em sua origem etimológica: de pilare, no latim tardio, que significava “segurar com força”, “sustentar”. Em outras palavras, para o Relatório Delors, os elementos fundadores do conhecimento e da educação são os “aprenderes” mencionados. Uma segunda observação que salta aos olhos é a “educação continuada”6, ou seja, a proclamação da legitimidade das “quatro aprendizagens fundamentais”, segundo o próprio relatório, “ao longo de toda a vida”. Assim, mais do que “pilares do conhecimento” elas são propostas, afinal, como pilares da própria vida. E, continuando a nos restringir ao que se encontra expresso na literalidade do texto citado, os quatro pilares se reduzem a três: aprender a conhecer, aprender a fazer e aprender a conviver. De fato, o quarto – aprender a ser – é apenas o resultado da fusão dos três primeiros. O documento vai mais longe e afirma que o quarto pilar “integra os três precedentes”. Assim, aprender a ser é,

5 Mas, como o que sobrevive, quase sempre, é a nomenclatura sancionada pela opinião popular, a partir de agora deixaremos de registrá-lo entre aspas a ele nos referindo, simplesmente como Relatório Delors; até porque esta denominação é uma justa homenagem a quem coordenou, como presidente, os trabalhos da mencionada comissão internacional durante os anos de 1993 a 1996, responsabilizando-se por seu relatório final. 6 Às vezes, denominada “educação permanente”. No Brasil, na legislação anterior à atual LDB, a educação permanente fora incluída no parassistema do Ensino Supletivo como “Suprimento”. Várias denominações são atribuídas à educação continuada., mas todas acabam conotando ambigüidades que dificultam a compreensão do conceito. Como esta discussão escapa aos limites deste trabalho, remetemos o leitor e a leitora a BÁRCIA, 1982, especialmente às páginas 61 e seguintes.

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simultânea e dialeticamente, a condição e a síntese dos demais “aprenderes”. Ou, dizendo-o de outra forma, não há como aprender a conhecer, a fazer e a conviver se não aprendermos a ser; por outro lado, não podemos ser, se não aprendemos a conhecer, a fazer e a conviver. Finalmente, o relatório não se refere a “saberes”, nem, muito menos, a “competências“, como está na moda do discursos pedagógico neoliberal. Ao contrário, ele se concentra no “aprender”. E o que isto quer dizer? Qual a diferença essencial entre uma concepção pedagógica fundada no “saber” e na “competência”, e uma outra que tenha por centralidade “aprender”? A primeira denuncia uma posição estática, estrutural, dado que o “saber” e a “competência” (substantivos) definem faculdades constituídas e instituídas, enquanto “aprender” (verbo) denota uma dinâmica, um processo, faculdades em constituição e instituintes.

É, no mínimo, curioso que um documento dessa natureza7, ao propor os meios e instrumentos para a satisfação das necessidades básicas do cidadão do século XXI, tenha feito opção por uma concepção pedagógica que foge ao padrão hegemônico. De fato, encarar o “aprender” como mais importante do que o “ensinar” e do que o domínio de “saberes” e “competências”, e considerar o processo de aprendizagem como mais relevante do que os conteúdos socialmente sancionados constitui a eleição da concepção dialética sobre a realidade e sobre a educação, o que constitui, no nosso modo de ver, um avanço fenomenal da UNESCO. Antes de examinar o enfoque e as propostas de Edgar Morin, devo registrar algumas observações sobre, o tão em moda, conceito de “competência”. Primeiramente, o vocábulo “competência” remete-nos, imediatamente, para o campo das relações de trabalho individualizadas. Não estaria aí a explicação para o forte fundamento psicológico do conceito e para o prestígio de determinadas consultorias nas reformas educacionais levadas a efeito na maioria dos países que passam por ajustes em seus projetos econômicos, políticos e sociais? A psicologização dos fundamentos dos projetos pedagógicos, de um modo geral, despolitiza-os pois empurra-os para o campo individualista das estruturas pessoais. No caso específico, a noção de competência parece ser um nov conjunto de signos, combinados pelo pensamento pós-moderno, para legitimar um deslocamento8 conceptual. Este deslocamento visa atender às

7 A maioria dos documentos de organismos internacionais, especialmente os da Organização das Nações Unidas (ONU), geralmente buscam manter uma eqüidistância – para não dizer “neutralidade” (sempre impossível) – em relação às diversas posições ideológicas in praesentia. O Relatório Delors é um dos poucos documentos da UNESCO que não traz o clássico aviso de que o órgão não se responsabiliza pelas opiniões expedidas. Portanto, trata-se de uma posição oficial da ONU!. 8 O conceito “deslocamento”, no caso específico da educação, é tratado por RAMOS (2001). Mais genericamente, ele é desenvolvido por José Luís Vieira Almeida, no seu belo livro Ta na rua (2001), no qual analisa os deslocamentos realizados pelos “educadores de rua” em relação à realidade dos “meninos e meninas de rua”.

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necessidades de substituição da “qualificação”, típica do welfare State e da sociedade industrial, pelo eixo da “avaliação de competências”, exigido pelo sistema produtivo tecnologicamente reconvertido do Capitalismo Organizado e pelo projeto de exclusão da Sociedade Pós-Industrial”, às vezes, eufemisticamente chamada de “Sociedade Pós-capitalista”9. Enquanto a qualificação sugeria a possibilidade universal de aquisição de qualidade exigidas pelo sistema produtivo e pela sociedade, “competências” remete a faculdades inatas ou já incorporadas e que, portanto, devem apenas ser avaliadas. Esta parece ser a razão de alguns países europeus terem criado verdadeiros aparatos ministeriais para a verificação da equiparação de competências, para um mercado de trabalho supranacional e cada vez mais globalizado10. Como a discussão mais pormenorizada das políticas inerentes aos Estados posteriores aos welfare States (seriam badfare States? Ou warfare States?) escapa aos limites deste trabalho, retornaremos ao exame do Relatório Delors. Além das implicações expressas, não se pode perder a oportunidade de derivar as conseqüências potencializadas no trecho citado, mesmo porque elas são corroboradas no restante do documento.

Dentre elas, destacaremos a dimensão processual, contida na formulação “verbal” (são apenas verbos), e a dimensão pedagógica, contida no verbo “aprender” – ambas presentes em todos os pilares.

O texto insiste em conjugar – em todos os sentidos da palavra – dois verbos

em cada um dos “pilares”, sendo que o primeiro, “aprender”, repete-se em todos eles: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a conviver e aprender a ser. Não se propõe “aprender o conhecimento”, “aprender o feito”, “aprender a convivência”, nem, muito menos, “aprender o sido” ou “aprender o ente” ou “aprender o ser”, mas aprender a ser. Apresenta o segundo termo do pilar também como tempo verbal no infinitivo, conferindo-lhe um dinamismo, um caráter processual, não suportado por vocábulos estáticos, estruturais e estruturados como “conhecimento”, “feito”, “convivência” e “ente”. “Aprender o conhecimento” é “aprender o conhecido”, enquanto aprender a conhecer é participar da pesquisa e do processo de construção do conhecimento. Aprender a fazer é muito mais do que aprender como é feito; é também construir os modos e os instrumentos da “feitura”. Finalmente, aprender a conviver não se reduz ao conhecimento dos tipos de convivência existentes – geralmente marcados pela competição e pelos conflitos – mas, estende-se também à busca do conhecimento das diferenças étnicas, econômicas, políticas, sociais, religiosas, culturais, de gênero etc, com vistas à participação na reconstrução das estratégias da convivência na

9 Denominação dada por um dos grandes representantes do pensamento burguês contemporâneo, Peter Drucker. 10 Como é o caso de Portugal que, como outros países do ocidente, vêm recebendo levas e levas de imigrantes qualificados em seus países de origem.

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diversidade, sem os costumeiros etnocentrismos11. Levado às suas últimas conseqüências pedagógicas, os “pilares” se reduzem a “aprender a aprender”, embora o próprio relatório considere esta máxima como síntese apenas do primeiro “pilar”, aprender a conhecer: “aprender para conhecer supõe, antes de tudo, aprender a aprender, exercitando a atenção, a memória e o pensamento” (DELORS, op. cit.: 92). Entretanto, devemos lembrar que o verbo “aprender” encontra-se também nos demais “pilares”, como motor de uma segunda dinâmica contida no segundo verbo das proposições.

Aprender a fazer é o segundo pilar da UNESCO para a educação no

próximo século. Embora indissociável do conhecer, o fazer do Relatório Delors apresenta-se com uma dimensão restritiva e, por isso, com uma conotação empobrecedora, porque vinculado quase exclusivamente ao mundo do trabalho:

Mas a segunda aprendizagem está mais estreitamente ligada à questão

da formação profissional: como ensinar ao aluno a pôr em prática os seus conhecimentos e, também, como adaptar a educação ao trabalho futuro, quando não se pode prever qual será a sua evolução? (DELORS, op. cit.: 93).

Ora, fica cada vez mais claro que, em um sistema produtivo

tecnologicamente reconvertido, não haverá lugar para “pacotes de conhecimento”, mas para a capacidade de aprender a inovar e apreender a inovação criada por outrem. Mais importante do que o conhecimento sobre o processo de produção, uma seção da linha de montagem – existirá no futuro? – uma máquina ou uma operação, será a capacidade de ler um manual, de se comunicar com os parceiros de trabalho, de ter iniciativa, de criar processos de produção inéditos. Portanto, o que mais se demanda de um profissional do futuro é a capacidade de “aprender a aprender a fazer”.

Quanto ao terceiro “pilar”, aprender a conviver – o mais pobremente

desenvolvido no relatório – trata-se de buscar formas de reconhecimento da alteridade, não como antagônica, mas como diferente. Como diz Boaventura de Sousa Santos (1995: passim), não se pode “ficar indiferente às diferenças”. A luta contra a desigualdade entre as pessoas não quer a eliminação das diferenças. A igualdade, por outro lado, não é sinônimo de homogeneidade. Aprender a reconhecer as diferenças ou a enxergá-las como legítimas manifestações do outro é o primeiro passo para a eliminação dos conflitos. Além disso, perceber a uniformidade e o dogmatismo como empobrecimento da trajetória humana e enxergar a multiculturalidade como uma riqueza constitui outro passo significativo para a aprendizagem da aceitação da convivência na diversidade. Esta percepção é importante também para a alimentação da vontade de trabalhar pela defesa do respeito à diversidade cultural. Esses dois componentes – aceitação da

11 Recentemente, no Fórum Mundial de Educação, realizado em Porto Alegre, em outubro de 2001, fomos surpreendidos pela dificuldade que alguns educadores têm – mesmo entre autores consagrados – de aceitar, com tranqüilidade – a diversidade, por exemplo, do mundo islâmico, especialmente a partir dos ataques ao World Trade Center, em New York, numa clara confusão entre mundo árabe, comunidade muçulmana, cânones fundamentalistas e atos de terrorismo (v. Artmed, 2002: 28-35).

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convivência na diversidade e trabalho pelo respeito às diferenças – são fundamentais para a eliminação da competição e dos conflitos tão típicos desses nossos tempos.

O que estamos assistindo, atualmente, nos conflitos entre os Estados

Unidos e o Afeganistão e entre os judeus e os palestinos, por exemplo, é, nada mais nada menos, do que o confronto de três fundamentalismos: o cristão, o islâmico e o judaico. Os esforços pela paz que são feitos de todos os lados dizem respeito à “flexibilização” desses fundamentalismos12.

No mundo do não-diálogo, é preciso “dialogar sobre a negação do próprio

diálogo”, já dizia Paulo Freire em Pedagogia do oprimido (1978: 71). Ainda relativamente a este tema, diz o Relatório Delors:

Parece, pois, que a educação deve utilizar duas vias complementares. Num primeiro nível, a descoberta progressiva do outro. Num segundo nível, e ao longo de toda a vida, a participação em projetos comuns, que parece ser um método eficaz para evitar ou resolver conflitos latentes. (DELORS, op. cit.: 97).

Assim, além da superação das ortodoxias, dos fundamentalismos e dos conceitos de autoridade, são importantes, também, os processos de decisão e produção coletivos, de todo e qualquer conhecimento ou artefato, pois é na cooperação que se descobre a riqueza das diferenças e a possibilidade do sujeito transindividual13, que não é a mera soma dos sujeitos individuais, mas um ente novo, um ator em comunhão, sujeito efetivo da criação cultural.

Aprender a ser é o quarto e último “pilar” necessário ao processo educacional proposto, para o próximo século, pelo Relatório Delors.

Desenvolver a capacidade de aprender a ser significa buscar a realização

plena do homem, em toda sua riqueza e complexidade: “espírito e corpo, inteligência, sensibilidade, sentido estético, responsabilidade pessoal, espiritualidade” (DELORS, op. cit., 99). Este ser complexo, a um só tempo, plenamente biológico, mas que só esgota sua plenitude pela cultura, precisa, desde criança, segundo o relatório, ser instrumentalizado para aprender a ser:

Mais do que preparar as crianças para uma dada sociedade, o

problema será, então, fornecer-lhe constantemente forças e referências intelectuais que lhes permitam compreender o mundo que as rodeia e comportar-se nele como atores responsáveis e justos. (Id., ib.: 100).

12 Fundamentalismo poderia ser traduzido como toda e qualquer doutrina que não abre mão de seus próprios princípios, permanecendo surda aos argumentos de outrem. Ou como escreveu um autor que, embora não muito mais respeitado entre as esquerdas, definiu com propriedade o fundamentalismo como a “defesa tradicional da tradição” (GIDDENS, 1996: passim). 13 Conceito desenvolvido por Lucien Goldmann em várias de suas obras, mais especialmente em A criação cultural na sociedade moderna (1972a).

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Compreende-se assim, que o segundo termo do “pilar”, ser, não é o substantivo que se refere ao ente, mas ao verbo que dimensiona o “sendo”. E, neste caso, aprender a aprender a ser, em cada contexto, é a centralidade, o eixo existencial, a legitimação de nossa vida. Muitas outras questões poderiam ser formuladas sobre o Relatório Delors; mas, seria muita pretensão tentar esgotá-las – e, mais pretensioso ainda – tentar responder a todos os questionamentos, nos limites de um artigo.

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SABERES

Após o exame – sumário, é verdade – dos elementos que constituem a

educação necessária para a humanidade, no século que se inicia, de acordo com as proposições do órgão máximo da educação no Planeta, devemos passar a analisar outro referencial, o que foi elaborado pelo criador da “Teoria da Complexidade”, Edgar Morin, sob a encomenda da UNESCO e publicado no Brasil como Os sete saberes necessários à educação do futuro (2001)14.

Mas, em que consistirá o conhecimento necessário no milênio que se

avizinha? Que paradigma – ou ausência de – informará a configuração da ciência? Que “razão” – ou desrazão – norteará a (cons) ciência humana a respeito das determinações naturais e sociais? Com estas questões, retornamos ao primeiro “pilar” da UNESCO, para verificar como Edgar Morin se posiciona frente a elas, construindo um conjunto de formulações que corresponderia àquele “pilar”.

Morin tenta responder a essas questões, desenvolvendo sua concepção de conhecimento, com base numa “ciência provisória”, “indecidível”15, como ele mesmo a chama. Neste sentido, insere-se no universo dos pensadores críticos da atualidade, que tentam superar a ciência do absoluto, que abandonam o conforto da contemplação da ordem eterna das essências, para discutir os pressupostos da própria ciência.

Para ele, o primeiro “pilar” do Relatório Delors, aprender a conhecer,

corresponde ao “conhecimento do conhecimento”, que constitui uma dos “sete saberes” por ele propostos como necessários à educação do futuro:

... o conhecimento do conhecimento deve aparecer como necessidade

primeira, que serviria de preparação para enfrentarmos os riscos permanentes de erro e de ilusão, que não cessam de parasitar a mente humana. Trata-se de armar cada mente no combate vital rumo à lucidez. (MORIN, op. cit.: 14).

Observe-se que o pensador francês substitui os verbos construtores do primeiro “pilar” por dois substantivos, ao lado de uma preocupação com a eliminação do “erro” e da “ilusão”, insinuando a possibilidade de uma “lucidez universal”. Há uma evidente aspiração cartesiano-positivista-estruturalista no “saber” moriniano. À primeira vista, parece haver, também, um relativo iluminismo na proposição, porque o conhecimento é apresentado como suficiente para a conformação dos projetos pessoais e coletivos do futuro.

14 Aí com o clássico: “Os autores são responsáveis pela escolha e apresentação dos fatos contidos neste livro, assim como pelas opiniões aqui expressas, as quais não são necessariamente compartilhadas pela UNESCO, nem são de sua responsabilidade.” (MORIN, 2001: 4). 15 O princípio da “indecidibilidade” foi construído por Göedel que, com seu famoso teorema, teria “demonstrado” que mesmo na racionalidade lógico-matemática, surgem as proposições “indecidíveis”, isto é, “proposições que não são nem deriváveis nem refutáveis, nos termos daquele sistema formal de onde eles saem” (PESSANHA, 1994: 67).

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No texto moriniano (op. cit.), este único saber se desdobra em três, desenvolvidos nos seguintes capítulos de sua obra: “Capítulo I - As cegueiras do conhecimento: o erro e a ilusão”; “Capítulo II - Os princípios do conhecimento pertinente” e “Capítulo V - Enfrentar as incertezas”. No primeiro deles, Morin propõe a epistemologia como centralidade do processo pedagógico, no segundo, recupera a categoria de totalidade, sugerindo a transdisciplinaridade, e, no último, concentra-se nas incertezas que teriam acometido as “ciências físicas” (microfísica, termodinâmica, cosmologia), as “ciências da evolução biológica” e as “ciências históricas” (MORIN, op. cit.: 16).

Nesta passagem da obra de Morin há algumas evidências anti-dialéticas,

dentre as quais destaco uma clara identificação entre incerteza e imprevisão, entre incerteza e inesperado. Além disso, aponta a possibilidade do arquipélago de certezas. Em outras palavras, a perspectiva dialética da historicização das certezas perspectivadas classistamente se perde na pretensão das certezas universais.

Seria preciso ensinar princípios de estratégia que permitiriam enfrentar

imprevistos, o inesperado e a incerteza, e modificar seu desenvolvimento, em virtude de informações adquiridas ao longo do tempo. É preciso aprender a navegar em um oceano de incertezas em meio a arquipélagos de certezas. (Ib.: 16).

Entre os “sete saberes elaborados por Morin, não encontramos

correspondente explícito ao segundo “pilar” do Relatório Delors. Assim, o saber fazer, mesmo na sua na sua dimensão mais restritiva – preparação para o mundo do trabalho – está ausente do texto moriniano.

O pilar “aprender a conviver” da UNESCO corresponde aos “saberes” que

Morin denomina “ensinar a condição humana” e “a ética do gênero humano”, desenvolvidos, respectivamente, nos capítulos VI e VII de sua obra. Num certo sentido, também o capítulo IV, “ensinar a identidade terrena”, corresponde a uma dimensão desse pilar. Para pensador francês, buscar este objetivo significa encarar o ser humano como uma unidade complexa, a um só tempo física, biológica, psíquica, cultural, social e histórica, que carrega em si também uma condição ternária de indivíduo/sociedade/espécie. Aí, Morin vai mais longe que o Relatório Delors, desenvolvendo sua reflexão sobre a identidade terrena e, no limite, concluindo sobre a dimensão cósmica dos seres humanos.

As partículas de nossos organismos teriam aparecido desde os primeiros

segundos da existência de nosso cosmo há (talvez?) quinze bilhões de anos; nossos átomos de carbono formaram-se em um ou vários sóis anteriores ao nosso; nossas moléculas agruparam-se nos primeiros tempos convulsivos da Terra; estas macromoléculas associaram-se em turbilhões dos quais um, cada vez mais rico em diversidade molecular, se metamorfoseou em organização de novo tipo, em relação à organização estritamente química: uma auto-organização viva. (MORIN, op. cit.: 49).

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Aprender a ser – quarto e último “pilar” necessário ao processo educacional proposto para o próximo século no Relatório Delors – encontra seu correspondente moriniano mais visível no Capítulo III, denominado “Ensinar a condição humana”.

Aprender a ser significa criar as condições para a atualização das

potencialidades plenas do seres humanos, em toda sua riqueza e complexidade: “espírito e corpo, inteligência, sensibilidade, sentido estético, responsabilidade pessoal, espiritualidade (DELORS, op. cit.: 99). Este ente complexo, a um só tempo, plenamente biológico, mas que só pode esgotar sua plenitude na e pela cultura, porque é antes de tudo, um fenômeno histórico-cultural, potencializa, simultaneamente, sua identidade planetária, no contexto de uma ampla diversidade cultural.

Estamos na era planetária: uma aventura comum que conduz os seres

humanos, onde quer que se encontrem. Estes devem reconhecer-se em sua humanidade comum e ao mesmo tempo reconhecer a diversidade cultural inerente a tudo que é humano. (MORIN, 2001: 47).

Contudo a insistência de Morin quanto à “natureza” do ser humano é sua

dimensão tripartite – “complexa”, segundo ele – que “comporta a tríade indivíduo/sociedade/espécie, associados indissoluvelmente.

... qualquer concepção do gênero humano significa desenvolvimento

conjunto das autonomias individuais, das participações comunitárias e do sentimento de pertencer à espécie humana. No seio desta tríade complexa emerge a consciência. (MORIN, op. cit.: 106).

Do “circuito indivíduo/sociedade”, deriva seu projeto de sociedade

democrática, concebendo a democracia no sentido helênico do termo: governo dos governados, ou de regime que se fundamenta no “controle da máquina do poder pelos controlados” (ib.: 107), avançando, quando muito, para o conceito desenvolvido pela burguesia durante a Revolução Francesa:

... a democracia é um sistema complexo de organização e de civilização

políticas que nutre e se nutre da autonomia de espírito de indivíduos, da sua liberdade de opinião e de expressão, do seu civismo, que nutre e se nutre do ideal Liberdade/Igualdade/Fraternidade, o qual comporta uma conflituosidade criadora entre estes três termos inseparáveis. (Id., ib.:108).

Uma das boas contribuições de Morin, nesta parte da obra, se circunscreve

às ameaças ao regime democrático, cujo recuo tem sido acentuado por causa do distanciamento do cidadão do campo político, que fica cada vez mais restrito ao domínio dos “experts”. Como propúnhamos no Projeto da Escola Cidadã de 1994, ele também enxerga a escola como um “laboratório de vida democrática” (i., ib.: 112, nota 15).

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APRENDER OU RE-APRENDER

Neste ponto do trabalho abordaremos as concepções freirianas sobre a educação necessária ao século que se inicia – necessária para qualquer época da história humana – tomando-as como referência para o exame crítico dos “pilares da UNESCO e dos “saberes” de Morin, considerando-as também como princípios fundantes das proposições que julgamos necessárias à educação dos homens e mulheres do século XXI. Ao basear-nos no referencial freiriano, acabamos por refletir também sobre outra preocupação, freqüentemente destacada pelo próprio Pulo Freire nos últimos anos de sua vida: mais do que filosofia, devemos estudar, desenvolver, registrar e divulgar pedagogias. Estaria o autor da Pedagogia do oprimido sugerindo que os filósofos ou os teóricos do conhecimento do novo século serão os pedagogos? Não é a reflexão pedagógica um campo restrito, uma teoria setorial, portanto, inadequada para a abordagem dos problemas mais gerais do Cosmos, da vida e da trajetória humana na Terra? Ou será que ele estaria considerando que o século XXI será mesmo o da aprendizagem e, por isso mesmo, o “Século da Pedagogia?” “Já agora ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se educa a si mesmo: os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo.” (FREIRE, 1978: 79). Esta é uma das afirmações mais citadas e mais conhecidas de Paulo Freire, mas que, se não examinada em profundidade, pode causar estranheza e, o que é pior, grandes equívocos. Re-cito-a com a finalidade de retomar uma idéia tão difícil de ser absorvida na nossa prática, dada a tradição hegemônica de um sistema educacional cujo eixo tem sido, entre nós, o de ensinar coisas. A máxima freiriana constitui-se como auto-educação, pois tem como centralidade o aprender, não o ensinar. Neste sentido, esta concepção se posiciona na mesma linha do Relatório Delors. Paulo Freire é até mais explícito nesta direção:

É preciso, sobretudo, e aí já vai um destes saberes indispensáveis, que o formando, desde o princípio mesmo de sua experiência formadora, assumindo-se como sujeito também da produção do saber, se convença definitivamente de que ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para sua produção ou sua construção. (FREIRE, 1997: 25).

No processo educacional, homens e mulheres são irredutíveis a objetos do educador, isto é, não são informados nem formados por outrem, mas auto-informados e autoformados. Neste sentido, nem mesmo a motivação pode se desencadeada em alguém a partir de seu exterior. Ele também é sempre um processo endógeno, interno. Mas, então, se isso tudo é verdade, qual é a razão de ser e qual é o papel do educador? Como se depreende da citação anterior que o educador tem razão de ser e, mais do que isso, ele é fundamental ao processo, embora sua tarefa, na educação libertadora, seja a de “criar as possibilidades” e

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ambiência adequada para a construção do conhecimento pelos educandos. Na mesma concepção, relativamente à motivação, sua função é a de descobrir e explicitar as motivações que já existem nos educandos. Essa radicalidade que caracteriza o olhar freiriano sobre o processo educacional16 se esclarece na perspectiva histórica:

Ensinar inexiste sem aprender e vice-versa e foi aprendendo socialmente que, historicamente, mulheres e homens descobriram que era possível ensinar. Foi assim, socialmente aprendendo, que ao longo dos tempos mulheres e homens perceberam que era possível – depois, preciso – trabalhar maneiras, caminhos, métodos de ensinar. Aprender precedeu ensinar ou, em outras palavras, ensinar se diluía na experiência realmente fundante de aprender. (FREIRE, 1997: 26).

Nos primórdios da humanidade, como nas formações sociais primitivas, que

constituem verdadeiros “fósseis vivos” de nosso passado cultural, certamente não havia processos sistemáticos e intencionais de ensino. Os seres da espécie aprendiam observando a realidade, buscando, inicialmente, as soluções individuais17. E analisando as perdas resultantes de tais soluções foi que as mulheres e os homens tiveram de superar o “ciúme zoológico”, permitindo os acasalamentos grupais, a fim de construir coesões sociais. Posteriormente, com a evolução das técnicas, dialeticamente, surgiu a necessidade de separar os grupos para a divisão social do trabalho e a especialização das tarefas, provocando a construção ideológica dos tabus do incesto. Mas, o que queremos destacar, neste momento, não é a reconstituição da trajetória das comunidades simples, mas o processo do aprender precedendo o do ensinar. Este, com o correr do tempo, se tornou uma necessidade, dada a acumulação de conhecimentos, habilidades e posturas necessárias à preservação ou à transformação das sociedades.

Já no primeiro livro de sua lavra, Educação e atualidade brasileira, escrito

em 195918, Paulo assim se exprimiu:

Somente uma escola centrada democraticamente nos eu educando e na sua comunidade local, vivendo as suas circunstâncias, integrada com seus problemas, levará os seus estudantes a uma nova postura diante dos problemas de seu contexto.

[...] Escola que se faça uma verdadeira comunidade de trabalho e de estudo, plástica e dinâmica. E que, ao em vez de crianças e mestres a

16 Evitamos, propositadamente, o adjetivo “educativo”, na medida em que ele se carrega de uma dimensão hétero, de fora para dentro, “bancária”. 17 Individuais porque, biologicamente, pertencemos aos ramos dos seres mais evoluídos, cuja tendência é a do “individualismo zoológico”. Isso quer dizer que, ao contrário do que dizia Aristóteles, somos seres, por natureza não sociais, já que o gregarismo é uma tendência indiretamente proporcional á evolução dos seres vivos. Por conseqüência, nossa sociabilidade é resultante de processos intencionais, racionais e pactuantes. Em suma, ela é histórica. 18 Este texto, inicialmente editado pelo próprio autor, como “Tese de Concurso para a Cadeira de História e Filosofia da Educação na Escola de Belas Artes de Pernambuco”, foi publicado (2001), mediante a organização que fizemos e que tentou recuperar os contextos (brasileiro, pernambucano e doméstico) em, que o texto foi elaborado, segundo os desejos de seu autor.

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programas rígidos e nocionalizados, faça com que aqueles aprendam sobretudo a aprender19. (FREIRE, 2001: 85).

O que à época parecia “conversa de bêbados”, acabou por se tornar o eixo

norteador da educação no século XXI. Só mais recentemente, a humanidade descobriu que a possibilidade de

aprender conteúdos, desenvolver capacidades e habilidades, incorporar princípios e posturas só é possível quando a pessoa aprende a aprender, ou, como escreveu Paulo em seu último trabalho, que viu publicado ainda em vida:

Só, na verdade, quem pensa certo, mesmo que, às vezes, pense

errado, é quem pode ensinar a pensar certo. E uma das condições necessárias a pensar certo é não estarmos demasiadamente certos de nossas certezas. (FREIRE, 1997: 30).

É bom lembrar que Paulo Freire vai mais longe ainda, quando distingue

educação de ensino, admitindo a possibilidade do ensinar, como se pode verificar na citação anterior, mas questionando radicalmente a possibilidade da hétero-educação: “ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se educa a si mesmo...” (FREIRE, 1978: 79). Ou dito de outra forma, só pode ensinar – não educar – quem incorpora o princípio da incerteza. E é, com base nele que é possível estabelecer o fundamento dialético do processo de construção do conhecimento e a diretriz pedagógica da transformação do educando na centralidade do processo educacional. Então, mais do que o imprevisto, do que o resultado de nossos erros e ilusões a respeito da realidade, a incerteza se firma como princípio epistemológico.

É curioso observar que enquanto Edgar Morin e Paulo Freire usam,

exaustivamente, o verbo “ensinar”20, o Relatório Delors se concentra no respeito à centralidade da Aprendizagem no processo educacional? Seria apenas uma proclamação de efeito, à radical negação da possibilidade de ensinar e do aprender solitário citado? É preciso, portanto, ir mais fundo no exame destas questões.

A pedagogia centra-a, não numa negação do ensino, mas numa relação

dialética entre aprender e ensinar, com a precedência e a predominância do primeiro.

Ensinar inexiste sem aprender e vice-versa e foi aprendendo

socialmente que, historicamente, mulheres e homens descobriram que era possível ensinar. [...] Aprender precedeu a ensinar, ou, em outras palavras, ensinar se diluía na experiência realmente fundante de aprender. (FREIRE, 1997: 26).

19 Os destaques são meus (J.E. Romão). 20 Todos os títulos dos capítulos da obra de Paulo Freire que iremos examinar, com exceção do primeiro, e todos os títulos das partes em que eles se dividem, sem exceção, começam pelo verbo “ensinar”. O mesmo termo encabeça a maior parte dos títulos do livro de Morin que estamos examinando.

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Além disso, em várias outras passagens ao longo de toda a sua vasta obra, Freire alerta para o fato de que não há educação enquanto ação puramente docente, mas apenas quando se dá a iniciativa discente. Sua pedagogia só se constitui como tal, na medida em que o educando se torna sujeito e centro do processo. Aliás, sua crítica à “educação bancária” se fundamenta, exatamente, no rechaço da iniciativa e do controle docente sobre o processo pedagógico. O Relatório Delors parece inspirar-se nesses fundamentos, quando centra-se mais nas categorias do aprender do que nas do ensinar. A questão da ciência perpassa toda a obra de Paulo Freire, mas, é na última (1997) que ele exprime com mais clareza e rigor sua teoria do conhecimento, também reiterando a necessidade da incorporação da incerteza no universo das verdades científicas.

Relativamente ao segundo “pilar” do Relatório Delors, pode-se dizer que, na

obra freiriana, o fazer é inerente à educação, porque ela é uma forma de intervenção crítica no mundo concreto, histórico, real. Daí a dimensão política de sua pedagogia, traduzida no ato educacional transformador/libertador.

Não junto minha voz à dos que, falando em paz, pedem aos oprimidos,

aos esfarrapados do mundo, a sua resignação. Minha voz tem outra semântica, tem outra música. Falo da resistência, da indignação, da “justa ira” dos traídos e dos enganados. Do seu direito e do seu dever de rebelar-se contra as transgressões éticas de que são vítimas cada vez mais sofridas. (FREIRE, 1997: 113-4).

Alerta-nos Freire que uma visão mecanicista da História encarará a

educação como mera reprodutora da discriminação, da seletividade e, no limite, da exclusão engendrada por sociedades injustamente estratificadas. Por outro lado, denuncia também a visão messiânica que vê a educação apenas como desveladora da realidade alienada/alienante, sem dificuldades ou equívocos. Ainda mais: a mera consciência da realidade injusta, embora necessária, é insuficiente para sua transformação. É necessário, segundo ele, “fundir”, na práxis, a (cons)ciência da realidade com a ação, já que ambas iluminam-se e orientam-se mutuamente. Portanto, a prática educativa é, simultânea e dialeticamente, reprodutora e desmascadora da realidade. Esta perspectiva supera largamente a contida no relatório Delors, que se limita ao preparo para o mundo do trabalho.

Quanto ao aprender a conviver , a comum identidade planetária dos seres

humanos, pode-se dizer que ela estava implícita no pensamento de Paulo, quando ele criticava o Neoliberalismo e provocava os membros do Instituto Paulo Freire, no sentido de buscarem a construção de uma categoria que superasse o ultrapassado internacionalismo socialista, reconhecendo o fenômeno da Globalização, sem cair na tentação do factóide ideológico do “Globalismo”. Penso que Gadotti conseguiu responder, competentemente, à provocação de Paulo,

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desenvolvendo, de modo adequado e oportuno, na sua pedagogia da terra (2000), o conceito de “planetaridade”21.

O conviver é a própria essência22 da obra de Paulo, já que ela tem como

centralidade o diálogo. Ora, ele não é possível sem a existência, no mínimo, de dois seres dialogantes e implica na convivência mútua de ambos.

Pode parecer mistificante ver em Paulo Freire, ou em qualquer outro ser

humano, a capacidade de prever acontecimentos com precisão, de proclamar profecias. Contudo, é sempre possível a qualquer mulher e a qualquer homem, pelo uso da racionalidade dialética – porque mais competente para captar a dialeticidade da própria realidade objetiva – perceber tendências e, por meio delas, vislumbrar acontecimentos. Neste aspecto, é muito interessante observar que Paulo, já em 1997, muito distanciado dos acontecimentos que feriram em 11 de setembro de 2001, tivesse escrito:

O meu ponto de vista é o dos “condenados da Terra”, o dos excluídos.

Não aceito, porém, em nome de nada, ações terroristas, pois que delas resulta a morte de inocentes e a insegurança de seres humanos. O terrorismo nega o que venho chamando de ética universal do ser humano. Estou com os árabes na luta por seus direitos mas não pude aceitar a malvadez do ato terrorista nas Olimpíadas de Munique. (FREIRE, 1997: 16).

Relativamente ao quarto “pilar, aprender a ser, Paulo retoma, na Pedagogia

da esperança (1994) e na Pedagogia da autonomia (1997), também de modo mais sistemático, o importante conceito de inacabamento ou inconclusão, que nos identifica com os demais seres do Cosmos, mas, ao mesmo tempo, deles nos distingue, por nossa consciência dessa limitação:

Aqui chegamos ao ponto de que talvez devêssemos ter partido. O do

inacabamento do ser humano. Na verdade, o inacabamento do ser ou sua inconclusão é próprio da experiência vital. Onde há vida, há inacabamento. Mas só entre mulheres e homens o inacabamento se tornou consciente. (FREIRE, 1997: 55).

Por isso mesmo, na perspectiva freiriana, mulheres e homens são seres

utópicos, esperançosos e educáveis, porque estão sempre acreditando na possibilidade de seu próprio acabamento, buscando-o quanto mais ele permanece no horizonte distante de possibilidades. Os homens e as mulheres nunca alcançam a atualização de todas as suas potencialidades, dado que seu inacabamento está inscrito no inesgotável universo dessas mesmas potencialidades. Também por isso, o ato pedagógico é um ato de utopia e de esperança.

21 No prefácio dessa obra, desço a mais minúcias sobre o conceito e sua importância para a educação da atualidade. 22 Se é que podemos falar de essências, após a assunção da historicidade e provisoriedade de qualquer verdade, ou seja, após a constatação da onipresença da incerteza.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

“Pilares”, “saberes”, “conhecimentos”, “habilidades”, “competências” etc. parecem ser termos que pertencem já a um passado remoto, tal é velocidade com que se impõe o dinamismo das transformações em todos os campos da atividade humana. Apesar disso, é possível registrar alguns aspectos que parecem adquirir relativa estabilidade e, portanto, relativa legitimidade científica e política num espaço de tempo mais amplo. São processos de processos, já que tudo muda. Neste sentido, apresenta-se-nos mais apropriado o que a UNESCO, no Relatório Delors, fez: a junção de dois verbos, no infinitivo, para construir seus “pilares”. É bom relembrar o que foi afirmado anteriormente neste trabalho: já em 1959, no trabalho Educação e atualidade brasileira23, Paulo Freire registrava, literalmente, a expressão “aprender a aprender”, chamando a atenção para a centralidade dessa “capacidade” no processo educacional dos tempos contemporâneos. Ao mesmo tempo, ratificou esta importância, quando demonstrou, ao longo de toda sua, obra que o aprender é o princípio fundante do ensinar.

Foi ele também quem nos ensinou que, dificilmente, alguém ensina algo a alguém; mas que as pessoas aprendem. Ainda para ele, as pessoas nada aprendem sozinhas; elas aprendem nas relações com os semelhantes, mediatizados pelo mundo. Acrescentaríamos que nem mesmo alguém motiva alguém; as pessoas se auto-motivam, a partir de suas relações com o mundo e com os outros, impulsionados por suas necessidades historicamente determinadas, sejam elas materiais, afetivas ou cognoscitivas. Assim, o processo educacional adequado aos novos tempos terá de propiciar momentos para que ocorra a manifestação dessas motivações pelos educandos e sua descoberta pelos educadores, a fim de que elas sejam estimuladas ou inibidas, conforme trabalhem para a civilização ou para a barbárie.

Finalmente, foi Paulo quem constatou que as pessoas não são totalmente

ignorantes em tudo, nem conhecedoras de tudo. Todo mundo sabe algo e tem competências e habilidades específicas. Por isso, todos podem aprender e todos podem ser fator de aprendizagem de outrem. Ou, ainda usando uma linguagem inadequada, mas tão comum no nosso universo pedagógico: todos somos capazes de aprender e todos somos capazes de ensinar algo.

Os “pilares” e os “saberes”, na verdade, transformam-se em “aprenderes”,

ou melhor, em re-aprenderes. E se quisermos ficar com os elementos do Relatório Delors, a educação no século XXI exigirá de todos nós:

23 Em fase final de publicação, para ser lançado na Feira do Livro de Guadalajara (México), em novembro de 2001.

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I – re-aprender a conhecer; II – re-aprender a fazer; III – re-aprender a conviver e IV – re-aprender a ser.

O ataque aos Estados Unidos e a resposta dos norte-americanos está demonstrando o quanto são necessárias estas re-aprendizagens, se não quisermos ameaçar o processo civilizatório e voltar à barbárie, ou até mesmo à selvageria.

Contrapostos a elas, esses acontecimentos estão demonstrando, mais uma vez, que os seres humanos aprenderam de modo equivocado, porque suas certezas absolutas, seus fundamentalismos é que estão provocando toda as violências mútuas. Todo fundamentalista – até mesmo nas relações familiares – é surdo aos argumentos do interlocutor e, portanto, inimigo do diálogo.

Essa incapacidade de re-aprender que devemos, cada vez mais, “não

estarmos demasiadamente certos de nossas certezas” (FREIRE, 1997: 30) é que gera todos os conflitos, na medida em que também não re-aprendemos a conviver. Conviver implica em escutar o outro e ouvir o seu discurso, seus argumentos; e isto exige não ser obsessivo em relação às próprias afirmações. Não é muito fácil ouvir e levar em consideração as razões e os motivos alheios.

Re-aprender a fazer... Certamente, é também a ortodoxia que perpetua a

nossa incapacidade de fazer diferente da maneira que estamos acostumados a fazer. A ortodoxia estrangula também o processo civilizatório, porque ou cria “cordeiros” e “cordeiras”, que seguem cegamente o cajado do “pastor”, o saber instituído, não rompendo com os cânones da ciência, da arte e das outras formas de representação humana da realidade e não re-criando e re-inventando as formas de intervenção e re-construção do mundo. Ao saber instituído tem de ser contraposto o saber instituinte. Através da História, desde os mais remotos tempos até hoje, a ortodoxia e o fundamentalismo somente criaram seres humanos intelectualmente preguiçosos... ou mártires.

Não é necessário desenvolver mais extensamente sobre as implicações do

saber absoluto sobre a convivência humana; que ela sempre é comprometida, quando ninguém abre mão das próprias certezas. Antes de reagir à resistência de alguém ao nosso conhecimento, à nossa maneira de agir e ao nosso modus vivendi, por mais que neles reconheçamos fazeres humanos legítimos, é preciso ler a dor e o sofrimento que está por trás da resistência. Se essa generosidade não caracterizar nossa leitura de mundo, não há como restabelecer o diálogo e a paz.

Finalmente, todos esses re-aprenderes são essenciais à preservação do

ser. Significa afirmar que desenvolver a faculdade do re-aprender esses três outros processos (conhecer, fazer e conviver) é a garantia do re-aprender a ser.

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