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A D IVERSIDADE DA G EOGRAFIA B RASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO DE 9 A 12 DE OUTUBRO 6161 PATRIMÔNIO CULTURAL, EXPROPRIAÇÃO E TURISMO: A RESERVA DA JUATINGA E AS COMUNIDADES TRADICIONAIS. JOSÉ CARLOS DA SILVA 1 BERNADETE APARECIDA CAPRIOGLIO DE CASTRO 2 Resumo: O objetivo principal deste trabalho é analisar o processo de expropriação das comunidades tradicionais na Cajaíba Paraty (RJ). Trata-se de analisar a ocupação da área pela especulação imobiliária, associando o turismo e o patrimônio cultural como elementos potenciais no desenvolvimento e manutenção da cultura caiçara. Foi tomado como recorte a Reserva da Juatinga na Enseada da Cajaíba, inseridos na Baía de Ilha Grande- RJ, Brasil. O tema do artigo está relacionado ao processo de privatização de áreas dentro da Reserva da Juatinga, ou seja, a apropriação privada dentro de Unidades de Conservação. Palavras-chave: populações tradicionais; turismo e patrimônio; reserva ambiental; 1 Introdução O objetivo do trabalho é analisar o processo de expropriação das comunidades tradicionais na Cajaíba. Para os objetivos específicos elencamos analisar a ocupação da área pela especulação imobiliária, associando o turismo e o patrimônio cultural como elementos potenciais no desenvolvimento e manutenção da cultura caiçara; analisar as alterações na configuração espacial da área de estudo, bem como identificar o patrimônio cultural local e documentar expressões do patrimônio cultural presentes nessa área. Apesar dos atrativos naturais e culturais do local, as desigualdades sociais e a apropriação das terras para lazer, têm fragilizado a organização das comunidades caiçaras. O que nos levou a discutir essa questão foi a presença do patrimônio cultural e natural caiçara ainda presente na localidade em conflito com o processo de concentração de terras. A linha de análise está pautada em levantamento sobre a história da área e nos estudos de Geografia Humana, com abordagem da Geografia Cultural. Os desafios colocados por essa nova organização social se deslocam e se intensificam com a profunda intervenção dos agentes financeiros e com o 1 Acadêmico do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Estadual Paulista. E-mail de contato: [email protected] 2 Docente do programa de pós-graduação da Universidade Estadual Paulista. E-mail de contato: [email protected]. Agência financiadora; CNPq Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.

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A DIVERSIDADE DA GEOGRAFIA BRASILEIRA: ESCALAS E DIMENSÕES DA ANÁLISE E DA AÇÃO

DE 9 A 12 DE OUTUBRO

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PATRIMÔNIO CULTURAL, EXPROPRIAÇÃO E TURISMO: A RESERVA DA JUATINGA

E AS COMUNIDADES TRADICIONAIS.

JOSÉ CARLOS DA SILVA1 BERNADETE APARECIDA CAPRIOGLIO DE CASTRO2

Resumo:

O objetivo principal deste trabalho é analisar o processo de expropriação das comunidades tradicionais na Cajaíba – Paraty (RJ). Trata-se de analisar a ocupação da área pela especulação imobiliária, associando o turismo e o patrimônio cultural como elementos potenciais no desenvolvimento e manutenção da cultura caiçara. Foi tomado como recorte a Reserva da Juatinga na Enseada da Cajaíba, inseridos na Baía de Ilha Grande- RJ, Brasil. O tema do artigo está relacionado ao processo de privatização de áreas dentro da Reserva da Juatinga, ou seja, a apropriação privada dentro de Unidades de Conservação.

Palavras-chave: populações tradicionais; turismo e patrimônio; reserva ambiental;

1 – Introdução

O objetivo do trabalho é analisar o processo de expropriação das

comunidades tradicionais na Cajaíba. Para os objetivos específicos elencamos

analisar a ocupação da área pela especulação imobiliária, associando o turismo e o

patrimônio cultural como elementos potenciais no desenvolvimento e manutenção da

cultura caiçara; analisar as alterações na configuração espacial da área de estudo,

bem como identificar o patrimônio cultural local e documentar expressões do

patrimônio cultural presentes nessa área.

Apesar dos atrativos naturais e culturais do local, as desigualdades sociais e

a apropriação das terras para lazer, têm fragilizado a organização das comunidades

caiçaras. O que nos levou a discutir essa questão foi a presença do patrimônio

cultural e natural caiçara ainda presente na localidade em conflito com o processo

de concentração de terras. A linha de análise está pautada em levantamento sobre a

história da área e nos estudos de Geografia Humana, com abordagem da Geografia

Cultural. Os desafios colocados por essa nova organização social se deslocam e se

intensificam com a profunda intervenção dos agentes financeiros e com o

1Acadêmico do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Estadual Paulista.

E-mail de contato: [email protected] 2 Docente do programa de pós-graduação da Universidade Estadual Paulista.

E-mail de contato: [email protected]. Agência financiadora; CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.

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afloramento da dependência econômica das comunidades frente às restrições

impostas pela criação da Reserva da Juatinga.

A velocidade com que se constata o desenvolvimento do turismo e serviços

associados causam problemas ambientais, pobreza e violência nestas comunidades.

Busca-se, portanto, ampliar o debate sobre a preservação ambiental diante da

pressão imobiliária em Unidades de Conservação e valoração de culturas

tradicionais diante do turismo.

No período de implantação da BR 101 (Rio-Santos), diferentes

empreendimentos de grande porte foram instalados na região. São exemplos desses

empreendimentos as conhecidas Usinas Nucleares de Furnas Centrais Elétricas em

Angra dos Reis e o Terminal Portuário da Petrobrás em São Sebastião.

Além da migração de trabalhadores para essas áreas, a valorização da terra

no eixo SP–RJ, atraiu intensa especulação imobiliária e o turismo se transformou em

outro fator de impacto sobre as comunidades caiçaras, quilombolas e indígenas.

Desse modo, o patrimônio natural e cultural existente na região está sendo

ameaçado, comprometendo a sobrevivência dessas populações.

2 – Desenvolvimento

A área de estudo destaca-se pela reunião expressiva de fatores bióticos e

uma extrema compartimentação do relevo e cobertura vegetal, onde se apresentam

paisagens naturais de grande relevância ecológica e beleza cênica, além da

presença do patrimônio histórico como apresentado na figura 1 e de elementos

naturais que segundo Cavalieri, 2003; passaram a ser o suporte financeiro das

comunidades, ao mesmo tempo em que as estruturas sociais de organização veem

sofrendo um processo de desestabilização.

Figura 1. Capela católica na Praia de Itaoca, patrimônio histórico e cultural. Foto: SILVA, 2014.

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Esse processo se deu pela intensa ocupação de novos proprietários que não

pertencem às comunidades caiçaras, mas que adquiriram suas terras, fruto muitas

vezes de ações de grileiros e outros agentes financeiros que interferem diretamente

no cotidiano caiçara através do turismo e atributos advindos da cidade. Neste

contexto, algumas das grandes questões que se formulam dizem respeito às

possíveis consequências, ambientais, sociais e culturais de tal processo sobre as

comunidades envolvidas.

A valorização e os meios de apropriação do território nestas áreas,

dadas à constatação da acelerada desestabilização das famílias e as intensas

transformações que atingem de forma definitiva esses espaços pertencentes aos

caiçaras, alteraram o modo de vida da população local.

A emergência da questão do patrimônio cultural nesse contexto desperta

algumas possibilidades de salvaguarda de elementos significativos da cultura local,

além de considerar a importância da imagem e representação destes territórios

(MIRANDA, 1998).

Com o desenvolvimento dos setores econômicos no fim do século XIX e início

do século XX muitos projetos foram pensados e implementados de forma que as

mais diferentes organizações humanas não tiveram a oportunidade de dialogar com

os empreendedores e órgãos governamentais. Foi o começo do genocídio (morte

física) acompanhado do etnocídio (morte cultural) dos caiçaras e de agrupamentos

de índios guaranis existentes na região (In: SIQUEIRA,1984: prefácio).

A estrada Rio-Santos (BR 101), utilizada desde 1984 entrou direto nesse

processo desenvolvimentista regional, e embora não tenha alcançado todas as

localidades de Paraty, seus reflexos, conhecidos nessa porção do litoral, trouxe

mudanças profundas com a instalação de diversos empreendimentos.

Além disso, é um verdadeiro cartão postal que permite aos turistas, visitantes

e aventureiro, percorrerem e apreciarem durante todo o trajeto, uma das mais belas

paisagens litorâneas do país, um trajeto repleto de sinuosas curvas e caminhos que

levam a praias paradisíacas e cenários maravilhosos em lugarejos com rica história

caiçara e natureza exuberante, (experiência vivida pelo autor do presente trabalho).

2.1. A CHEGADA DOS PAULISTAS

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Com a instalação dos empreendimentos deu-se início a uma migração de

trabalhadores nessa região, trazendo em seu bojo uma intensa especulação

imobiliária e em seguida o turismo sem precedentes que segue aumentando, devido

à presença do patrimônio histórico e de elementos naturais.

Segundo Cavalieri, 2003; a presença desse patrimônio histórico e dos

atributos naturais da paisagem passou a ser o suporte financeiro das comunidades,

ao mesmo tempo em que as estruturas sociais de organização veem sofrendo um

processo de desestabilização, que vão desde a alteração na ocupação do território,

bem como na forma de vida e principalmente em grandes ondas migratórias para a

região. Com essa migração veio também uma grande leva de grileiros e turistas, que

chegaram e lançaram as comunidades num universo distinto daquele vivido pelas

gerações anteriores.

De acordo com Cavalieri, (2003); os moradores que detinham a posse da

terra conheceram, na década de 60, os processos de reintegração de posse, as

ações demarcatórias e as fraudes de cartório para consolidar a propriedade da terra.

Tais processos foram movidos, e continuam sendo, pelos recém - chegados

proprietários, muitos deles paulistas. A partir dessa década, várias famílias,

moradoras das áreas conhecidas como roça, saíram de sua terra de origem e de

trabalho.

Algumas famílias foram obrigadas a venderem ou trocarem a posse por uma

casa no bairro mais simples de Paraty, talvez encantadas com a nova vida que a

cidade começava a experimentar com a chegada do turismo. Segundo relatos dos

atuais moradores muitas foram forçadas a vender a posse devido ao esbulho

violento pelos proprietários recém-chegados como, por exemplo, a criação de

búfalos, que amedrontava a comunidade, sujava as nascentes e pisoteava as roças.

A referência aos búfalos, segundo Cavalieri, 2003; é remetida a uma família

de nome Gibrail Nubile Tannus, grileiro conhecido em toda a região que se instalou

nessas paragens e conseguiu desestabilizar muitas famílias que acabaram

vendendo ou trocando suas posses por valores irrisórios e hoje vivem em situação

degradante na cidade de Paraty ou em casa de parentes.

O problema maior que as comunidades enfrentam atualmente, conforme

referido, são os processos de reintegração de posse e os supostos contratos de

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comodato. A perda da terra, herdada dos antigos, é a maior ameaça que os tempos

modernos trouxeram ao cotidiano caiçara. O conhecimento tradicional (Cavalieri,

2003) dessas comunidades se reproduz enquanto prática social quando se assenta

no território conquistado e transmitido pelas gerações anteriores, sendo essa a

condição para a sua existência.

Muito antes desse processo de ocupação do território pelos grileiros e do

advento da criação da Reserva da Juatinga, os caiçaras produziam seu próprio

alimento e trocavam ou vendiam o excedente em Paraty para comprarem o sal, o

querosene e roupas apenas. A produção era diversificada e cada família detinha um

pedaço de terra demarcada pelas trilhas que cruzam os terrenos e quintais, uma

roça, uma cerca de bambu, uma pedra ou árvore que delimita a posse de cada

família.

“Essa resga de terra é da Belinha, casada com o Benedito, onde tá construída a barraca verde. Pega do pé de baixo, pega o barranco, passa na toca grande, atravessa a cachoeira e volta pro pé de araçá”. Depoimento de Zezinho, que em 1998 ainda morava na Praia Grande de Cajaiba. (CAVALIERI, 2003, p. 31).

Merece destaque a produção de bananas, ervas medicinais, feijão, mandioca,

batata, laranja, abóbora, tomate, farinha, jabuticaba, camucá, entre outros. Os

caiçaras apontam que havia também a criação de animais como porcos, galinhas,

patos e cabras e todo o excedente da produção era levado à Paraty para trocas e

vendas.

De acordo com os relatos dos atuais moradores, a viagem durava cerca de 6

a 8 horas de remo até a cidade em grandes expedições caiçaras. Naquele tempo

ainda não existiam as canoas a motor. Com elas a viagem passou a durar 2h30, o

que permitiu realizar a travessia e voltar no mesmo dia além de aumentar

consideravelmente o número de idas à cidade.

Porém, esse contato mais frequente com a cidade também foi responsável

pela incorporação de novos elementos na cultura caiçara já bastante alterada pela

chegada dos grileiros e outros proprietários de terras. Hoje os moradores dessas

localidades não compram apenas o sal, o querosene e roupas como no pretérito, já

necessitam de produtos específicos da cidade e as trocas já não ocorrem mais.

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A dependência do modelo capitalista se tornou parte do cotidiano e a própria

criação da Unidade de Conservação estimula, por exemplo, o uso do gás de cozinha

substituindo a lenha, que passou a ser proibida em toda a Reserva.

O turismo também é responsável por inovações no modo de pensar e introduz

o consumo de produtos industrializados. É o dinheiro que interessa agora, são as

coisas que os turistas apresentam que interessa ao caiçara, são os inúmeros artigos

e produtos da cidade que encantam as crianças e adultos.

Atualmente outro problema é a entrada de drogas sintéticas, vendida nas

cidades, trazidas pelos turistas e apresentados aos jovens caiçaras, ávidos por

fazerem parte do mundo civilizado das cidades modernas com seus atributos

encantadores do mundo do consumo. Relatos dessa natureza foram repetidas vezes

pronunciados pelos próprios caiçaras mais velhos se referindo aos turistas que

trazem drogas para os caiçaras.

Essa fusão de diferentes valores advindos do crescimento da atividade

turística segundo Mantovani, 2005; têm resultado na obtenção de novos hábitos

como a disseminação do uso da maconha e outras drogas que atingem

principalmente os mais jovens.

“Fica ai fumano, dá fome e vai robá, num vai trabaiá. Vai no Pouso, até a

escola já robaro. Porque fuma e ai dá fome, num tem dinheiro e aí roba, vende pra

qualqué um por mixaria, pra cumê”. Moradora, 53 anos.

As crianças podem até estar com tênis, mas escondem o calçado no mato,

pois pulam melhor as pedras da cachoeira sem ele. No atual período essas crianças

ainda seguem os rastros das pacas como no pretérito e se prontificam a caçá-las de

acordo com as próprias referências dos caiçaras.

Nas comunidades o tempo dos antigos ainda permanece nas memórias, nos

encontros, na roça, na pesca, na caça, nas histórias, nas festas, na música ainda

recitada pelos mais velhos, na ética ao lidar com o ambiente, com a família, com a

terra, as crenças, os medos... O sagrado e o profano convivem em um mesmo

ambiente.

Não é somente o tempo que é sagrado, descontínuo e eternamente revivido,

há também espaços sagrados, fortes e significativos, as memórias, lembranças,

reminiscências, vivências dos antepassados que ainda permanecem vivas. São

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essas memórias a mediação entre o passado e o presente na vida dessas

comunidades que garante que toda produção caiçara tenha um sentido na

construção do presente, palavras do Sr. Chico do Calhaus como é conhecido.

Ainda buscam nos rios os siris que utilizarão como iscas para pescarem o

peixe do dia, alguns jovens ainda acompanham os mais velhos na visita ao cerco e o

cotidiano se reproduz na materialização do espaço caiçara.

O saber do cotidiano parece ser, na concepção caiçara, essencial à própria

existência, é a expressão do interior e do exterior, situada no âmago do meio social

do qual o caiçara faz parte onde ele mesmo é a expressão privilegiada dessa

dinâmica humana onde o ser constrói e se desconstrói no cotidiano, - observações

do autor durante os vários anos de visitação a essa comunidade da Praia do

Calhaus e adjacências.

2.2. Populações tradicionais e as Unidades de Conservação

A Área de Proteção Ambiental Cairuçu é uma Unidade de Conservação

Federal de Uso Sustentável criada pelo decreto nº 89.242, de 27 de dezembro de

1983. Localiza-se ao sul do Município de Paraty, Estado do Rio de Janeiro,

constituída para cumprir a função de proteger a maior concentração de

remanescentes de Mata Atlântica da costa fluminense e também se dispõe a

proteger as comunidades caiçaras da região.

O plano de manejo da APA Cairuçu, na Enseada da Cajaiba, aprovado pela

Portaria ICMBio nº 28/2005, foi elaborado entre os anos 2000 a 2005 pela SOS Mata

Atlântica com recursos do Condomínio Laranjeiras (ver figura 4).

A Enseada da Cajaiba (figura 2) apesar de ser um braço do continente,

apresenta interfaces com o centro urbano de Paraty e na região de Trindade com

um processo urbano mais evidente com via de acesso pavimentada e expressivo

comércio local. As áreas de proteção ambientais intimamente relacionadas com

centros urbanos, como é o caso da APA Cairuçu e Paraty, necessitam estar

minimamente articuladas com o Plano Diretor que é o principal instrumento de

ordenamento do uso e ocupação do solo do município. É fundamental que o Plano

de Manejo e o Plano Diretor sejam elaborados de forma integrada definindo regras

coerentes que não gerem conflitos na gestão do uso de um mesmo território.

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Figura 2. Enseada da Cajaiba. Fonte: Google Image 2008. Acesso em fevereiro de 2015.

No período atual o Município de Paraty vem passando por um momento

importante onde a Prefeitura está conduzindo um processo de revisão do Plano

Diretor e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade - ICMBio -

vem trabalhando na avaliação e atualização do Plano de Manejo da APA Cairuçu, de

acordo com Cavalieri, 2003 e segundo as informações apresentadas pelo agente do

INEA – Instituto Estadual do Ambiente - em 2012 durante trabalho de campo

realizado.

Ao mesmo tempo, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional –

IPHAN - está conduzindo um processo de revisão da Portaria que normatiza o

tombamento do município de Paraty como sítio histórico, arqueológico e

paisagístico. O INEA também está conduzindo um processo de recategorização da

Reserva Ecológica da Juatinga, criada pelo Decreto Estadual nº 17.981 de 30 de

outubro de 1992 e da Área Estadual de Lazer de Paraty Mirim, duas áreas

protegidas sobrepostas totalmente a APA Cairuçu não contempladas pelo SNUC,

que vem sofrendo com a expansão das ocupações humanas.

Diante do contexto atual, a revisão das normas que regem o uso e a

ocupação do solo de Paraty deve ser vista como uma oportunidade para o município

aperfeiçoar as suas ferramentas de direcionamento do desenvolvimento da região

em busca de um equilíbrio ambiental e não uma brecha para viabilizar

empreendimentos imobiliários ou atividades meramente especulativas como veem

ocorrendo nessa região desde muito antes da criação da Reserva.

Cavalieri (2003) aponta que essas comunidades da Cajaiba vivenciaram, da

década de 50 até a década de 80, uma forte especulação imobiliária com a chegada

de grileiros e dos turistas. A partir da década de 90, somados aos problemas

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fundiários surgiram conflitos ambientais devido à criação dessa Unidade de

Conservação de natureza non edificandi – a Reserva da Juatinga.

Atualmente, além dos desdobramentos da chegada dos grileiros, dos turistas

e da Unidade de Conservação (há um Plano de Gestão em elaboração), os

moradores enfrentam mais um desafio: continuar na sua terra por meio da

reclassificação da Unidade, prevista em lei federal de 2000.

Essa questão da reclassificação, de acordo com Cavalieri, 2003; já mobilizou

inúmeros especialistas, pesquisadores, estudantes, entidades e órgãos

governamentais no sentido de tentar definir os melhores usos para o local, porém,

surgiram inúmeros conflitos com a ideia de criação da Reserva e agora a

necessidade de reclassificação da mesma.

Por outro lado os caiçaras veem sofrendo uma série de restrições como a

proibição de manter a roça, modificar o estilo de suas casas e retirar árvores para

construírem suas canoas, legado que foi deixado pelos mais antigos moradores

daquelas paragens. Assim, a tradicional canoa caiçara, apresentada na figura 3,

esculpida em um único tronco de árvore, corre o risco de desaparecer.

Utilizada para a pesca por gerações em Paraty e na Enseada da Cajaiba, a

canoa já não pode mais ser construída com troncos da região da Reserva Ecológica

da Juatinga. Com essa perspectiva de mudança, outras atividades também correrão

o risco de desaparecerem para sempre, o que poderá inviabilizar a sobrevivência

dos caiçaras dessa região, segundo explanações do Sr. Chico da Praia do Calhaus.

Figura 3. Canoa construída com um único tronco retirado da região. Foto: SILVA; 2014

Se com a criação da Reserva Ecológica já fica difícil a reforma das casas,

torna ilegal fazer roça, pegar uma casca de árvore para remédio, cipó para

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artesanato, tirar madeira para a canoa ou remo, logo mais será proibido também

passar pelas trilhas de séculos que dão acesso às comunidades, pois os turistas

estão adquirindo as terras dos caiçaras e nelas reproduzindo os problemas e vícios

das cidades.

A questão sobre Cajaiba entrou em pauta por meio de uma consulta pública

sobre a transformação da Reserva em Parque Estadual, a chamada

recategorização, no município de Paraty. A proposta de mudança faz parte do

esforço da Secretaria Estadual do Meio Ambiente para se adequar à lei federal que

criou o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), mas o modelo,

segundo Cavalieri, 2003; não previa a categoria “Reserva Ecológica” e sugeria 12

modalidades de Unidades de Conservação, entre elas, além do Parque, está a

Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS), que tem a preferência de algumas

comunidades caiçaras na Mata Atlântica de Paraty.

Na proposta do estado algumas áreas seriam transformadas em Parque e

outras em RDS. Porém, nenhuma das duas categorias resolverá de vez os inúmeros

problemas locais já criados pela Reserva. Atualmente a maioria das comunidades

caiçaras vive confinada na área costeira da Enseada (ver figura 5), pois com a

criação da reserva muitas proibições foram instituídas sem nenhuma consideração

pela cultura secular dessas comunidades.

Um Parque Estadual na Enseada da Cajaiba fragiliza a vida da população

residente, pois essa categoria vai praticamente expulsar de vez os caiçaras dessa

região e mesmo a proposta de uma RDS - Reserva de Desenvolvimento

Sustentável, permitirá a criação de um mosaico de propriedades públicas e privadas,

o que beneficiará muitos grileiros que também têm como prática expulsar os

caiçaras para a construção de condomínios de luxo ou hotéis.

Como exemplo disso temos o condomínio Laranjeiras na APA Cairuçu (figura

4), localizado numa planície entre a serra e o mar, distante aproximadamente 25km

do centro histórico de Paraty. Durante a instalação do mesmo, a comunidade caiçara

foi praticamente expulsa do local sendo empurrada para uma vila de pescadores ás

margens do condomínio, a Vila Oratório.

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Figura 4. Vista aérea do Condomínio Laranjeiras. Fonte: http://www.imobiliariaparaty.com.br/condominiolaranjeiras.php. acessado em fevereiro de 2015.

A Vila foi criada para abrigar a comunidade que hoje são meros empregados

em serviços gerais nas luxuosas propriedades do Condomínio, porém, os mesmos

não podem mais circular livremente pelo território onde nasceram e cresceram,

todos estão sujeitos às normas estabelecidas pelo Condomínio, onde nem o turismo

é permitido. Há um carro que transporta as pessoas de um lado ao outro do

condomínio para acessarem os caminhos que levam as demais praias da região

como a Praia do Sono e Ponta Negra.

Depois de definir o modelo que substituirá a Reserva da Juatinga (figura 5), a

proposta deve ser aprovada pela Assembleia Legislativa do Estado do Rio, mas

enquanto a decisão não é tomada, as comunidades caiçaras fazem campanha para

que o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) declare a canoa

caiçara um patrimônio imaterial. Para tanto, será necessário desenvolver

metodologias que contemplem os objetivos propostos no trabalho.

Figura 5. - Reserva da Juatinga-Cajaíba, vista da Ponte Aérea Rio-São Paulo.

Fonte: http://www.skyscrapercity.com/showthread.php?t=1657431, acesso em fevereiro de 2015.

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3. Metodologia Para atingir os objetivos propostos será feita inicialmente a caracterização

socioeconômica da população da área de estudo com base em dados censitários do

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE (1980 – 2010). Também serão

identificadas transformações do meio físico causado pela ocupação e uso do solo na

área de estudo, onde o trabalho de campo contará com o levantamento de

documentos, mapas e fotos na Prefeitura de Paraty.

Junto aos moradores da área serão realizadas entrevistas semi-estruturadas

com representantes das comunidades e gestores, cujo universo ainda será definido

a partir dos dados censitários. Será de interesse da pesquisa também analisar o

marketing imobiliário sobre a área, assim todos os dados, informações,

apontamentos e demais produtos gerados a partir da investigação serão analisados

possibilitando a elaboração de mapas, figuras e tabelas que auxiliem na

compreensão da realidade local e suas dinâmicas.

O levantamento bibliográfico sobre a área de estudo em jornais da época,

livros, blogs e demais publicações vem sendo realizado, assim como deverá ser

realizado a análise do Plano Diretor e o Zoneamento urbano da cidade de Paraty,

buscando informações na própria prefeitura e órgão ambientais;

4. Considerações finais

A comunidade caiçara tradicional da Cajaiba desde tempos imemoriais

elaborou técnicas que permitiram estabilizar as relações do grupo com o meio,

embora em nível que reputaríamos hoje precário. No entanto, essa organização

e essa interação com o meio se deu mediante um conhecimento satisfatório dos

recursos naturais, a sua exploração sistemática e o estabelecimento de uma

produção agrícola suficiente para manter as relações de trocas.

O conhecimento e as técnicas de produção e exploração da natureza são

passados oralmente aos jovens durante séculos, porém, com o advento do novo

contexto social que se apresenta a essas comunidades, muito da sua cultura

vem se perdendo ao longo dos anos e corre o risco de desaparecer para sempre.

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Esperamos com esse trabalho alguns resultados que permitam a essas

comunidades permanecerem em seu local de origem mantendo suas culturas e

tradições como no pretérito, de modo a salvaguardar seus conhecimentos,

crenças, costumes e a rica interação com a natureza.

Os resultados esperados nesse sentido passam pela contextualização da

área de estudos a partir da produção de mapas temáticos, gráficos e tabelas que

permitam estabelecer um entendimento dessa dinâmica caiçara mais afinada com

os novos discursos e realidades desse contato cada vez mais profundo com a

cidade.

É preciso ter uma compreensão das dinâmicas trazidas pela expansão

capitalista da cidade tendo como foco a especulação imobiliária dentro da Reserva

da Juatinga, com a identificação de marcadores territoriais que representem o

patrimônio cultural e natural na área estudada, indicados pela população local.

5. Referências ADAMS, Cristina. As roças e o manejo da Mata Atlântica pelos caiçaras: uma revisão. BALLABIO, Sati Albuquerque. Viagem ao Sono. Relações de tradicionalidade e consumo na Praia do Sono – Paraty/RJ. Dissertação de mestrado, Marília: UNESP, 2010. CASTRO, Bernadete. Patrimônio Plural e Singular: a dupla face da mesma moeda. In: Valor patrimonial e turismo: limiar entre história, território e poder / Everaldo Batista da Costa, Leandro Benedini Brusadin, Maria do Carmo Pires (organizadores) 1. Ed. São Paulo: Outras expressões, 2012. CAVALIERI, Lucia. A comunidade caiçara no processo da reclassificação da Reserva Ecológica da Juatinga. Dissertação de mestrado, São Paulo: USP, 2003. DIEGUES, Antônio Carlos. Ecologia humana e planejamento em áreas costeiras. São Paulo: Nupaub, 1995. DIEGUES, Antônio Carlos. O mito moderno da natureza intocada. São Paulo: Hucitec, 2001. DIEGUES, Antônio Carlos. O nosso lugar virou parque: estudo sócio-ambiental do Saco do Mamanguá - Paraty - Rio de Janeiro. São Paulo: Nupaub/Usp, 1994. FONSECA, Maria Cecília L.–O Patrimônio em Processo: trajetória da política federal de preservação no Brasil. Rio de Janeiro; UFRJ/MinC-Iphan. 2005. FRANCESCO, Ana Alves de. O território em disputa: o caso dos caiçaras da Cajaíba. V Encontro Nacional da Anppas. Florianópolis, 2010. GONÇALVES, José Reginaldo S–“O patrimônio como categoria de pensamento” in: CHAGAS, Mário e ABREU, Regina.-“Memória e Patrimônio: ensaios contemporâneos”. Rio de Janeiro. DP&A. 2003.

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