josé bragança de miranda da interactividade (crítica da nova mimésis tecnológica)

34
.! r:zm "--- ____ / DA INTERACTIVlDADE. CRITIC<\ DA NOVA MIMESIS TECNOLOGICA Jose Braganra de Miranda ( «E mai.\· j(icif aigir wn altar do qul' sohre elc fa:.c•· dcscer ) 11ma dil'indadc para o habitar. » Beckett \ 1. IntrodU<;ao Ao que se ouvc dizcr, a obra de arte, apcsar do velho anuncio de Marcel Duchamp, abandonou o cdibato. Dc- pois dos .flirts com o poder medieval, em scguida com o dinheiro, e, ao que se diz, com os media, tcria finalmente dado em casar-sc com a tecnica. A arte tccnol6gica, me- l.hor scmpre no plural, as artes intcractivas, afirmarn-sc rno a ultima c a unica artc possivcl, por as con- dic;<>cs da epoca. Diz Simon Penny: <<!l.Jl!le in!.f...ract(vare- prescnta uma radical de fasc na csfl.;tica ociden: tal. Os artistas es!lio confimztados com wn terrif()rio por .___,

Upload: renato-baractho

Post on 10-Jul-2015

541 views

Category:

Technology


4 download

TRANSCRIPT

Page 1: José bragança de miranda   da interactividade (crítica da nova mimésis tecnológica)

.!

~~

r:zm "--- ____ /

DA INTERACTIVlDADE. CRITIC<\ DA NOVA MIMESIS TECNOLOGICA

Jose Braganra de Miranda

(«E mai.\· j(icif aigir wn altar do qul' sohre elc fa:.c•· dcscer ) 11ma dil'indadc para o habitar. »

Beckett \

1. IntrodU<;ao

Ao que se ouvc dizcr, a obra de arte, apcsar do velho anuncio de Marcel Duchamp, abandonou o cdibato. Dc­pois dos .flirts com o poder medieval, em scguida com o dinheiro, e, ao que se diz, com os media, tcria finalmente dado em casar-sc com a tecnica. A arte tccnol6gica, me­l.hor scmpre no plural, as artes intcractivas, afirmarn-sc co~ rno a ultima c a unica artc possivcl, por adequa~~i.'io as con­dic;<>cs da epoca. Diz Simon Penny: <<!l.Jl!le in!.f...ract(vare­prescnta uma radical mudan~·a de fasc na csfl.;tica ociden: tal. Os artistas es!lio confimztados com wn terrif()rio por

.___,

Page 2: José bragança de miranda   da interactividade (crítica da nova mimésis tecnológica)

./--------.

180 /~NA£Q~.0 Jose Bragan1·a de Miranda' - 'r \

explorar: a estetica da interactividade mediada par md­quinas» (Penny, op. cit.). Mas o assunto c mai~Jio ue es­@ic~ estando em causa 'urn nova ordem do mundo ue essa arte anteciparia, e exige. Dado o excessivo do prog­n6stico, temos de nos intrometer neste caso de ligac;oes.

Desde ~ter Benjamin que as diversas «liaison.;,· dange~_ reuses» da arte sao atacadas, ele que descobriu que a ulti­ma ligac;ao - mas 0 que e 0 ultimo? - e a dela consigo_ mesma, o que leva ao esteticismo, com tudo o que isso im­plica de domfnio do agir pela «estetica» e as categoria~

· que dela dependem: a «criac;ao», a «obra», o «helm>, etc. Benjamin acentua nitidamente a necessidade de «deixar de lado uma scrie de conceitos tradicionais - ~_QIDQ_cri_~~a_o,

~_nio, ,eternidade e misterio» (Benjamin, 1939: 138), que deixam a arte desarmada perante a vontade de domfnio to­tal. Transfe.!!; a demiurgia da obra para a recrias;ao plastica do mundo, eis a essen~i'!_Q~~~sao_d_~! ~stetica «idealista>:

· com a vontade de domfnio total. Esta tinha de ser combati­da porgu·e-_a·~~ii~l~£a.?._ ~~-!ri_~pdo era «Eoliticarp~n-t~~~-~-­rigosa~. Benjamin tra~ou para a arte urn outr~ destino, que passava por uma «rela~ao» com a polftica. E certo que a epoca nao estava preparada para isso, porque a polftica s6 se revelava na sua ausencia impressionante como concen­traciomiria. Claro que ele tinha uma ideia de politica que nao se compadecia com a «apropria~ao» da arte pela polf­tica. Eram rela~oes tensas, mas a retra~ar em permanencia, e af o ~ e os seus procedimentos de ruptura desempenhavam urn papel decisivo.

Toda a crftica da «estetica idealista» ou p6s-romantica dependia da tecnica, como anuncia o bern conhecido en­saio sobre «a reprodutibilidade». Benjamin nao visava apenas as tecnicas de difusao ou distribuic;ao, mas a entra­da da tecnica em todos os segmentos cia cxperiencia, trans-

iUI()Vd. 1-1-CltilU ct ~~ "~

Ars Telematica

1 181

formando o mundo em «espcctl)culo» ou em «ohrb de arte total». _R~sde cs anos 30 nos nossos dias scguiu-sc um cur­~o que desmentiu a esperan9a de Benjamin de que a tecni­ca pudesse er~trar numa outra rela9ao com. o hu~nano, fa­zenda obra de liberdade. A lucidez benjaminian1a faltava urn ultimo dado: se de infcio a tecnica safra do cstrito do­mfnio do trabalho (relar;ao a natureza) para pcnetrar a esfe­ra da cultura, £,Sta agora a penetrar as tcrnolagi 111 i!I£tala:,. .Q?s historicamcnty.J.?..Q£_s;.;Lq rela£ao milenar a_ naturG_za. 0 resultado e interessante, a crescente integra<;B.o das tecno­logias num dispositivo cada vez mais imatcrial, que tcndc a determinar a constitui<;B.o da cxperiencia na sua totalida­de. A itecnica pomo gesto total que suhstitui a' ~<rcvoluvao» J como gesi:OITitimo. ·

·A cxigencia de que a arte, nomeadamcntc o van~uardii­IUQ, modalizasse a rcpcti~ao pela diferen<;a, impcdindo a estabiliza~ao em catcgorias esteticas, libcrtando as tccno-

.logias para um trabalho da liberdade, succdcu a evidcncia 9e uma nova instaura~B.o da ilusao estetica. De facto dc­pois de destrufdas todas as categorias idealista~a arte .apa-rece C_£_nfro_~tn~~~ ~~~~~- da inte:.__ ractividade. Esta aqui. Poaemos suspeita-Io, e dcsta sus­peita faG~<Cestc artigo, o modelo de uma _nova mimesis tecnol6gica que em colusao com a arte procura determinar a Torma do mundo. A crftica dessa 1nimesis t~ necessAria, '

pois lesa a arte e impede uma corrcspondencia com a tcc­nica, a altura do scu cstado terminal.

_As -~rt~~~_intcractivas, mcsmo que os scus c•1ltorcs cste­jam convencidos de que se trata de um «novo comes;o», estao claramente na sequencia do vanguardismo, mas de um vanguardi~mo em que a for~a do «negativo» sc csgo­tou. Esta negatividade que um dia Hcidcggcr acusou de «furor destrutivcJ», foi dcscrita como «choquc>> por Benja-

4

Page 3: José bragança de miranda   da interactividade (crítica da nova mimésis tecnológica)

182 Jose Braganc;a de Miranda

min, ou como movimento inintcrrupto _Q<)LQICQJlberg. 0 furor negativo do vanguardismo deve-sc ao facto da van­guarda se exercitar na fronteira h~nue c, em hoa medida, imagiiiar1a, que passa entre _arte e «vida». Par um parado­xa que agora deixamos de lado, mas que tcm aver com a essencia da arte, o vanguardismo ao mesmo tempo que desmaterializa os objectos, nem que seja par transforma­~6es incorporais, como ocorre com Duchamp - recriando o espa~o da «eternidade actual» da obra de arte2 -, tende par outro lado a disseminar os procedimentos estcticos na totalidade da «existencia» (vida). Proccsso tanto mais in­.tenso quanto e suportado pelas tecnologias de repcti~-59. Em suma, a sua insistcncia na «vida» dissemina o esteti­cismo. A medida que a sua negatividade sc esgota, o mo­vimento cristaliza-se e a estratcgia de choquc desvirtua­-se3, funcionado como urn a operador de dissemin~~o do estetico na e2tperiencia.

Tudo indica que -a.s artes interactivas, que recorrcm in­tensivamente as novas tecnologias digitais, veem na conti­nua~ao da vanguarda, nao pelos aspectos disruptivos desta, mas pela tendencia a visar esteticamente o mundo, a pro­duzi-lo tecnicamente. A negatividade desaparece numa po­sitividade feliz, que o «p6s-modernismo» cxpressa no con­vencimento de que chegaram ao fim as divisocs «irrecon­ciliaveis» da modernidade, entre sujeito e objecto, entre arte e vida, entre actividade e passividade, entre presentee ausente, e todas as outras instauradas pcla metafisica e a sua peculiar hierarquiza~ao do mundo.

0 melhor sinal dessa positividade esta na categoria de «interactividade», com que culminaria a artc c a vida, pais esta categoria tern aplica~ao universal4. Isso cst:i bcm pa­tente em Roy Ascott, que nao par acaso accntua os aspec­tos vanguardistas de «revela~ao do invisfvcl» e de «cons-

1\ ... t

Ars Telematica ---183

tru~ao da rcalidade» (sic), privilegianclo Pollock como Erot6tipo da <~_c;on~£tiYidade»[iOIJer~·stdo.swptimeim a Le­

.... ~EL!L~ig_{dg ('l:lf.JLl£l£La:unen.to d. a ii1Ulg£1n e.llf/Jl£Wlo Jcme.lt.L da njntura nora j'ora <J.a uarerJe da gale ria. truzcnda-a PE: ra a suee.!lfcie ({f!.__Tert;[!. demarcando wna arena para JJ.

• accc1q e a interactividade, criando assim as bases para as --~---~---~~~~~~--mane ira holf,·ticas de ver, de produzir imagen\· c de intc-ractividade, de que no TWsso espa~~o digital somos os prin­cipais herdeiros e ben(~f'iciados» (Ascott, 1993, op. cit.). Para este influcnte te6rico da interactividadc, Pollock e um «pioneiro>> incompreendido, e mcsmo reprimido pclos es­pecialistas, que s6 p6de scr rcconhccido quando sc fizeram sentir «OS efeitos da cibercultura e as suas radiutis impli­cartJes para a arte das novas tecnologia.\'» (hi.). Do cla­dafsmo e suas provocar;oes, do happening. e excluida a for~a do ncgativo, para funclarem a nova positividade cste­tica. Reinventa-sc uma tradi~fio, rcfazendo-sc o vanguar­dismos.

E interessante vcrificar que Iv1arcel Duchamp foi esco­lhido par Rauschcnherg e outros artistas ligados a ~trte tec­no16gica como «inspirador» da arte tecnol6gicafi. Alga re­nitente, diz elc numa entrevista a Dora Ashton: <<eles ri­nham de arrm~jor alguem como progenitor para ll(/o pare­cer que tinham inventado tudo soz.inhos. A coisa jica as­sim melhor emhalada. Sobre a tccnologia: a artc ((/tmdar­-se-d ou serd afogada pela tecnologia.7» Trata-sc de uma «houtade)) em que ele era fcrtil? Duchamp, que tanto fez par desestcticizar <l arte, par cncontrar uma outra rela~ao entre os objectos c a arte, parece reccar que a forma final da ilusi1o esttStica seja a operada pela tecnologia.

Deixando par agora de lado o [1cto de que t(via a tcolo­gia e tocla a arte estao dcpendentcs de uma peculiar «eco­nornia do visfvcl>>, de que a arte e a essencia, parecc clam

..

' )• . '. l ~ ' < v·, t·

l

Page 4: José bragança de miranda   da interactividade (crítica da nova mimésis tecnológica)

IR4 Jose Bragan((a de Miranda

que os te6ricos da interactividadc tendem a accntuar os as­pectos de liga~ao geral do mundo segundo uma «forma es­tetica», liga<;ao essa que cria uma unica obra, o «mundo como obra de arte». 0 destino da arte sera o da realizagao8 dcsse objecto-mundo, sem hierarquias nem diferenc;as, pu­ramente nomadico e imaterial. A arte e a forma e a tecnica e o onerador dessa revolu\;ao sem rcvolu~.a9. ~- -

Parece que retorna o velho projecto wagneriano da «obra de arte total», mas com uma diferenga importante: deixa-se de lado a sua configurac;ao politica que refigura o m.undo, com toda a violencia que isso implicava, como mostrou Silberberg, para agora se introduzir o mundo no interior da arte em expansao total. Abole-se a difcren<;a entre arte e vida, fazendo entrar a vida na arte, e nao a arte na vida, como pretendeu o vanguardismo. Mas o efeito e similar: o imperio da ilusao estetica. A diferen<;a e que se preve e deseja, com algumas verti~ens, uma tccnica capaz de afectar a totalidade do mundo. E esta ilusao estetica que permite deixar inquestionada a tecnica, que levaria por si SO a «fUSUO» (sic) do «real» e do «Virtual» numa «realida­de» perfeita: «construir a arte e construir a realidade» (Ascott, 1995, op. cit.), processo garantido «com as redes do ciberespar;o a apoiar o nosso desejo de amplificar a cooperafiiO e interacr;iio humanas no processo de constru-

~·iio». Essa realidade perfeita que tern a forma bela da estetica

chissica e a dinamica processual das novas artes, e afinal baseada numa <<ilusao estetica total», que nada deixa no seu exterior. A «constrll(;ao» elimina o exterior, mas nao e este 0 «real», cujo unico destino e ser interiorizado na «fe­de de conexoes». Essa obra e imediatamente polftica, sem precisar do agir polftico. Trata-se de urn efeito da perfei­~.;ao este.tica sustentada tecnicamente que se expressa, de

Ars Telematica \85

imediato, numa (<JJarticipa~:cio compartilhada na cria~·lio e posse da realidade>> (Ascott 1995 op. cit.)9. Este dcsejo de mimesis perfeita, em que rcalidade e artc se fundcm num todo sem verso ncm revcrso, explica que todos estes auto­res vao contra a prescric;ao kantiana da «~rath!idad~_£.!!_

...:n~a~o;;_;,«;.;;U._ti:.:.h:;;. d;.:a;.;:~Jl.!:!£~ o. U m ex em pI o en trc m u ito s, de Eduardo Kac, que afina pclo mesmo diapasao: «a Internet representa um novo desajio para a arte. Ela tmz para pri­meiro plano o imaterial e fortalece proposta.\· culturais, colocando o dc/Jate esh~tico no dmago das tran4ormw;r)es sociais» (Kac, 1995, op. cit.).

Evidcntemcnte que a tccnologia contemporanca ohriga a urn qucstionar da polftica, e isso podc ter interessantes efeitos esteticos. Mas ler a polftica a Iuz das formas do es­tado actual e urn crro. E prcciso dcslocar a politica dos ca­minhos onde se desencaminha, e alguns artistas tem sido importantes neste processo. Ocorre aqui o cxempio da File Room de Antoni Muntaclas, obra sedeada na Internet. E -preci"sa uma crftica da politica, mas nao basta a iuversao da polftica real, por exemplo, as liga9ocs hicrarquicas, que sc baseiam num espa\O criado pcla hicrarquia das ligac;ocs. Nao chega na.1dar a direcc;ao para aholir a «hicrarquia», como e insuficientc torna-la biunfvoca. Tudo ckpende da

i l ~{

imposi~ao de uma dada «figura?> de repcti~ao, e da sua(. ltv'~ :\-M maior ou menor univcrsaliclade. §. menos import ante a 2,_e- ~ leza ou a eticidade de uma figura, que o tipo de rcpeti(,iaO . LJ2tlP(~ que ela infunde. 0 problema da mimctolocia 1ccnol6~ica e \fl \"

gue im_Qoe uma figura unica, aparentementc neutra, que e a da «interactividad~». A sua aparcnte ncutralidadc dcvc-sc <~que e liiTia catr~oi·ial«tecnic~_~;> (c ~ma mctafuriza\ao do Jeed-bacl{J}_~. ·

Daf a necessidJdc de uma critica da mimesis tccnol6gi­ca, que aboliu o ekmento ncgativo que toda a «n:peti<;5o»

Page 5: José bragança de miranda   da interactividade (crítica da nova mimésis tecnológica)

\ ~ ", ~"\.,."

·~ ~

IX6 Jose Hragan<,:a de Miranda

ainda contem. A alegre superac;ao da representac;ao e feita abandonando a hesitac;ao do «re» da repetic;ao, em favor de uma aprescntac;ao automatica e imediata. Ora,' uma arte positiva pode dcixar de scr «ornamento»? Ou «experimen­ta£fiO» que mais nao e que uma forma o~~~_ll;l~l_l_t£.1LQ<J .. K~~:: to? .. ~po~~~~2!I!Q._Q~.Q~scnfio:'; fra~t~~-~--de Jean~Fanc;ois­-~QI!!!g] Que a arte vise o munclo na <;ua totalidade e o inquietante .. A arte nao tern directamente. a ver com o mun-

r •"-'~"'-

'do: preenche-o de objectos gue dao visibilidade ao inyisi-vel, mas tambem o destr6i1 ao fazer dele materia p~ra Q

.§.~-Y~X~cicia Mas esse...exerci.~io e emJ?oa me9}da «incor­ES'ra!~> e-~~!!E!!~~.i-~!?>.J~~~~a, a ?rte nao e <J!go Hf!!:mati~ vo, __ mas sinaL de .. uma «falta» que ~sLdes~

das obras. E.Jll!£!_~~~ i.l~J:iaLfaz..~!lti.LJ!!P espac;o dJ; .. Cl~~ .. ~.!~li.ltiillL s~. anodex~:ml. e.J;!e~ fia12. E agora o imagin~rio da tecnologia, que ainda nao tern nome. Sed. a obra de arte um «grito de dar» como pretendeu Adorno, ou uma «promessa de felicidade>> que Nietzsche retoma de Stendhal? Se calhar ambas as coisas. Falha irremediavel das artes que decoram o mundo, que fazem uma cosmctica do cosmos que nao ha.

Daf a importancia de analisarmos as artes interactivas, nem que seja para as libertar desse imaginario mimetico. De facto, apesar das crfticas fortes que dirige ao modelo classico, a interactividade, enquanto categoria universal, pode ser interpretada como o final, senao mesmo a culmi­nac;ao do modelo classico, que se realiza integrando no seu interior o «espectador», e em geral toda a extcrioridade, ou seja, a «natureza» e a «expericncia». Enguanto _D_Q_.QJJlSS.i: cismo a exterioridade exigia processos de aproximac;ao, mais ou menos complexos, jogando-se muito nos trajectos da obra ao publico, da representac;ao ao real, agora esses trajectos sao controlaclos no interior do dispositivo tecnico.

.,.,,..,

·~;,>

Ars Telemalica 187

A actividade c uma actividade no interior de um espa~o de cont.rolo. 0 acontecimento irrompe «de-fora», fazendo com que este tipo de pensamcnto esteja ahismado entre a performatividade e o acidente.

A relac;ao entre arte c tecnica e primordial, por razoes que se irao esclarccendo, mas tudo depenck da «parcialida­de» dos proccssos, dos lances c nao do jogo. Este nao csta feito, nem o podcr;i cstar, sob pcna de sc cair simplcsmentc no controlo, 16gica do cyberspace, que muitos confundem com o «virtuai>.\~c]u-e·c nature~<~sf.2_.~5E~}~9 .. ()l1(1e Y.~~Jvel ~ invislvel se afront.an1 hist()i·ic~mente. 0 ciherespa~o naqui- ~ lo que nao c simplcs.iTusao, rcaliza o virtual como uma OE::: combinat6ria sustentada tccnicamentc, que poc.lc ser anali- ) ~~ ticamente intrauivcl, mas que c dcterminado porum centro de controlo, .o progr,gma1 De facto tudo ocorrc no lance, _ .. -h, _ mas no imagin;irio o lance fundc-se imediatamente com o)~~ jogo. A artc tem de abalar o desejo de fusao ahsoluta, im- ~ pedindo a realizac;ao do ciberespa9o como cspa~o univer- ~P\'~ sal, no qual tudo sc devcria integrar. Dinkla rcfcre que «as \.t~ c£ estratt;gias mim(;ficas da arte interactiva !Uto visam em ~

"" primeiro Iugar qualidades visuais: e antes o did/ogo cnire ~ ~ · o programa e o utilizador que constitui o mmeriol artf.,·ti- l\M)-} ~ CO» (Dinkla, 1996. p. 279). Is so e vcrdadeiro, sc esse dialo- ('~ w..~

. b d .,. yUM. go esttver a erto ao que exec co <<programa» c o «lilt tza- ~\~~ dor». 0 acontccimento em que o humano se prova. -

A realizac;ao do cihcrcspac;o como o cspa~o de todos os \ M.C· espa9os, ou hiperespa9o, capaz de proccssar a rcalidade I /ri(9rl~_ apela para urn a mimesis imaginaria. Contrariamcntc a visao '('/ o \>~ i vulgar q_ue y~ na miwesi.~ u~na «c6_nia», a miwr.:,,fs corres-.. 1 ~~~~~

.. _p~mdc a uma jVOIHackJE_e 1usao. A dtsputa de Platao com os / O'Of"D ""'¢'rl ~ poetaC~ool·e a mimesis tinha mais a ver com a falsa «fu- I sao», com simulacro, que a arte scmprc c, do que com a fu- I sao do :1pareccr com o scr que a filosofia devcria, cia sim, j

Page 6: José bragança de miranda   da interactividade (crítica da nova mimésis tecnológica)

188 Jose Bra~an<;a de Miranda

propiciar. Esta tenclcncia mirnetica funda-sc no romantismo que sempre insistiu na critica da «represcnta~.;ao». Ora are­presenta~ao implicava uma forma de mimesis. reprodutiva, enquanto o romantismo visava uma mimesis produtival3, uma fusao da ficc;:ao com a vida. Este projccto de uma :tlti­ma Gesamtkunstwerk, proprio do romantismo, e assumido, ja urn pouco descolorido, e ccrto, pclas artes interactivas e a sua insistencia ua produ~ao ou fabrica~~ao. Fabrica-sc a

. -realidade fazendo arte. A ontologia construtivista e assim uma mimesis perfeita, que, pensando-se alem da ilusao es­t~tica, transforma a expericncia em pura ilusao.

No que se segue, procede-sc entao a cdtica da nova mimesis tecnol6gica, isso num duplo senti(io: a sua deter­minac;:ao pela tecnica que a domina inteiramcnte; e na sua relac;:ao a arte, que acaba por excluir incvitavclmente. As­sunto politico, mas num sentido peculiar, que Michaux descrevia como «transjigurm:;iio poetica», essa «Jwva (J[J­

tica» na qual pressentia a resposta a «intrusiio da ciencia nos elementos mais humanos» (Michaux, 1936, 18).

2. A instaura-;ao das artes interactivas

«A falta de clareza que reina entre mtlsicos, escritores e criti­

cos, tern consequencias enormes ils quais se presta escassa

atenriio. Porque ao considerarem que estiio em posse de um

aparelho, que na realidade os possui a eles, acabam por de­

fender urn aparelho sabre o qual n{io rem qualquer contro!e»

Brecht

A arte tecnol6gica nas suas diversas variantes, e sao ca­da vez mais, esta colocada no horizonte da catcgoria de <dnteractividade», cia qual dependem muitas outras, como

~.

\;;:'

\1"---

"""' .,

~-­<:::)

\

Ars Tclematica 189

conectividadc, cmcrgcncia, interfaces, mas tamhem «simu­la<;fto», «inteligcncia artificial», «hipcrtcxto» (1U '<hipcr~e- \ dia>), «virtual», «tempo real», «instantancidade», etc. E a categoria de «int~.:ractividade» que funda todas as subsidia- 1

rias, apresentando-se como o critcrio absoluto das artes. 1,

Parece evidente que esta categoria, que sc prctcndc cienti- I fica, resulta de um alargamento metaf6rico de um tecnisse- ) ma cibernetico, ofeedbackt4. «1 -e e--rvt-h~ evo i

A nova categoria poe em causa os dinones csteticos, os peta/b:tc classicos, mas tambem os romanticos c os vanguardistas, embora este f~)SSi!!1_]llfan_:i~ivqS) De c~rto modo ~--· ... _ -~,. ... ······- ~-·---..~-----eram tropismos operados sobre as catcgorias cl<issicas. A

omnipresen<;a da «interactividade» 6 acompanhada da cri­se das categorias esteticas, sofrendo com isso o «iclealis­mo» estetico um abalo intenso, mas ncccs~;ario. As catego-rias esteticas que perdcram for<;a quase scm nos darmos ~-:. _ .. !F'! conta disso, sobrevivcm quanto muito nos produtos edul- .,.c;>e>~.,,

curados dos medit~ 1 5. 0 dcsaparccimento do cfmone esteti- c'~r l co e do conjunlo de categorias que o estruturavam, era '~'f7'\."t> j uma exigencia do vanguardismo, como refcrc Benjamin, 5 de que a obra de Bcuys c um exemplo radical. 0 rcsultado ~

foi uma imensa prolifera<;ao de ubras, onclc a propria arte · f se abismava.

Ora e justamcnte a no<;ao de «interactividadc» que vai instaurar uma nova ordcm, criando urn c:1none, que se pre­tende mais do que isso, um imperativo que rcsulta de que «a interactividade 11{/o e wn genero, mas tmt modo de exis­tencia, um pariimetro.fimda~T>-:-(Oi-;-g:ucr,-1996·: 148)? -----~- .. ···---------········•"" ... ..... . ...

As artes mtcractivas inicinram-se «fora dos museus», em festivais de design. de artc elcctr6nica, como e o caso do festival de Linz, An Elcctronica, criado em 1979 por .1:-lu­_bert.Bngnern}a)~Cr: Nao c. mcnos vcrdadc que csta a entrar neles muito rapiclamcntc, a mcdida que se cstahilizam al-

Page 7: José bragança de miranda   da interactividade (crítica da nova mimésis tecnológica)

190 Jose Braganc;a de Mi -anda

guns nomes, como os de Vera Molnar, Jean-Fan~ois-Co­lonna, Jeffrey Shaw, Lynn Hershman, Nicole Stenger, Myron Krueger, Matt Mullican, Scott Fisher, Kad Sims, Roy Ascott, Jean-Marc Philippe, Pierre Comte, Fred Fo­rest, Edmond Couchot, Herve Huitric, Michel Bret, Jean­-Louis Boissier, Monique Nahas entre outros I 6.

Ora, a primeira questao e essencial passa pelo modo co­mo das obras interactivas sc extraiu um canone universal 2

que se fundamenta nao na excmplaridadc do gesto hist6ri­co, mas ;1a imediaticidadc de um cxistir, tecnico. Neste prpcesso desempenhou um papel csscncj;d ..u..releitura QQ di one estetico, estrategia uc <:~ dcterminante para a «su­perago» da arte cl<issica pois sao todas c ass1cas se nao forem int.erartivas. Estc proccsso de «Supera9ao» c conco­mitante com o que se poderia chamar sublima9ao positiva do vanguardisrno, sobre que ja rcflectimos no ponto ante­nor.

0 procedirnento e simples e, portanto, cficn. Partindo da evidencia absoluta da «interactividadc» como o «110-

\'0», basta demonstrar que a arte classica, incluindo 0

<<Vanguardismo», lhe falta esse atributo. 0 caracter termi­nal da interactividade e frequentemente assumido pelos te6ricos desta corrente. Como c deste actuar que depende tudo o mais, todas as obras de arte anteriores sao remetida. para o «passado»l7, restando quanto muito como materia de arquivo, util afinal, de uma arte que rcciclara incessan temente o arquivo, acrescentando-lhe o «tempo real» da interactividade.

Detectam-se algumas hesitay6es relativamente a esta construyao, ja que devido a estrutura relacional da expc­riencia estetica, mesmo o receptor mais passivo e ohrigado a colocar-se no espayo delimitado por uma dada obra de arte, tendo assim a obra alguma «interacli vi dade». Ilip6tc-

~ :!:

Ars Telcmatica 191

se que e recusada in limine por Simot~ _ _Pcnny: ~<algumas pessoas vieram diz.er-me que umafotogn~fia vu unw pTntu­ra e ram mte ra(~ja~C-oque-me Jelxo/TfiTriosi> >>H(Pcnny, 1996,op~Clt.TF~i!:-a-os autores da interaetTvida(fe, -as artes anteriores baseavam-sc na «representa~ao», sendo assim,

·~ i

estaticas, enquanto que as «obras de arte interactivas nlio sao instancias de representa{-·ao, lfjo mdquinas virtuais que produzem instiinc:J.as de representa{-·ao bas~!~t~as em inputs em temeo real» ( id.). A representar;ao mais a dina- ~ mica em tempo real, salvam assim as artes anteriores, con- ~ venientemente transformada em «belas» imagens c still- ~ stands, i. e., em materia de arquivo, que «cnriquece» as data bases dos artistas interactivos I H.

N ~ & ~ ...

~ ~ A perturbac;ao de Penny pela possibilidadc de que toda a arte fosse interacliva c cxccssiva, talvez um pouco ret6ri-ca. Alguns autor~s, como Dinklu c outros, rnais modcra­dos, refcrem uma fasc de artes da participa9ao como o ha­penning (casos do FJuxus, de Spoerri e, acima de tudo. de Allan Kaprow) ou a arte de ambiente cte (Cage, Raus­chenberg, Schaffer), ou as instalar;oes da video art, para as artes interactivas. Mas isso nao altern os dados, rcfinando apenas as tfpicas posi9ocs de Penny. De facto, o que est<1 em causa e a intcrioridade ou exterioridade do espectadQL No caso de ficar no exterior temos a\I?articipacaoJ no caso de ficar no inte:-iur, a intcractividade. Em rincipio esse processo viria pelo mcnos desdc o dadaismo, mas e o van­guardismo que trabalha a reJac;ao com o «espcct<Jdor», um dos elementos do cspac;o da obra, que 6 integrado na nova estetica.

""" E dyyidosa toda c~onstrw;ao.:. De facto poderfamos / considerar que toda obra de artc. em geral, todo o ohjccto

contem urn «grau mfnimo» de interactividadc. Quandn Pe­ter Weibel diz que <<Jllcsnw uma pintura. ou Wllll estrela,

\ ~ '~. ·s t i ·c. _\. ~ ~ ~ c -~ ~~ ~

~ l --"" at ~ ~

)

t

' ~ ~ l ~

Page 8: José bragança de miranda   da interactividade (crítica da nova mimésis tecnológica)
Page 9: José bragança de miranda   da interactividade (crítica da nova mimésis tecnológica)

'f '· i

i1

1,~;.:·. .,

i

'

"l

~; f: ~

'

192 Jose Braganya de Miranda

existe mesmo que niio sejam observadas, mas e preciso por a cassete no vfdeo para a poder observar» (Weibel, 1996, op. cit.), grau mfnimo que seria «o grau mais baixo de interactividade» (id.), denota alguma confusao. De fac­to, qualquer objecto materialmente existente pode ser vis­to, seja uma estrela ou urn efeito de programa de computa­dor. Neste caso deveria falar-se, recorrendo a Barthes, de urn «grau zero» da interactividade.

, Mas a guestao e outra. Nao e a de ~e a interactividade __ _ esteja presente em toda a arte, mas sim se a arte c:.teveter

-como criteria abs~Imoai"iiteractividade, Mais ainda, esta · em causa a apreensao do que significa esse desejo de inte­

ractividade total. 0 problema comec;a desde logo com a «inclusao» do espectador no interior do espac;o cibernetico da obra interactiva. Para estes autores terminaria assim o espectador, tornando-se todos «produtores» ou, mais pudi­camente, «Operadores». Nem passa pela cabec;a dos inty ractivistas a suspeita de que tal «produtor» seja apenas a re rodu ao do «espectador» no espac;o 9JLobraJ.nle.rac.ti: ~9. A gran e velo-cidad;;todo oesp~ctador parece urn operador. Aceitando-se que sempre houve «interactiviQ.a­de», e temos boas razoes para pensa-lo, a j!iQVa~iio--reside -~~~_!~ na visibili~~EO da «in~~~ivi@_9_~~ __ at~ <1!Jecnologia:~-fut}lQQ-s_e_lllE ~§~~ ~~_pandido da _<?bra de art no ual se mobiliza totalmente o espectador2o.

Urn dos elementos mais importan e a arte e justamente

r a desafeccao ou des-fixacao do espectador, justamente o efeito das obras de culto ou «catarticas»21. Por exemplo; o

ldadafsmo, tinha a intenc;ao explfcita de «provocar» o es­pectador, de o afastar do espac;o da arte, sendo a sua «inte­ractividade» uma estrategia de «desesteticizac;ao» e, em consequencia, de desafecc;ao passional22. Este elemento fundamental, que e a base do vanguardismo, a sua forma

de se relacionar com a «polftica», e destrufdo com a recusa da distfmcia e indiferenc;a das artes anteriores. . ~

Percebe-se oeste contexto que muito se joguc na crfffca da arte da aparencia e da representa~ao, verdadeira bete noir desta nova estetica. 0 que se visa e «exterioridade» da obra, a sua aparente indiferen~a ao in..Q!_vfduo, assim tr ado es ectador. Demasiado liminarmente cri-tica-se o facto de constituir uma «superffcie» sem profun­didade, alga «estatico» e uniforme, urn simples reflexo da «realidade», ou como lhe chama Ascotl, !!;!Ola r@idade c.eacJl-madt:», que depois de vigorar ha milenios, teria che­gado ao fim. 0 a-vontade com que se faz dcsaparecer toda a arte anterior, a confusao da «imagem» com a bidimen­sionalidade da pintura - entao e a literatura ou a poesia, ou a escultura? -, tudo isso seria bizarro nao fora dever--se a motivos profundamente incrustados na metafisica ocidental. Por exemplo pode ler-se em Ascott: ~ votada a aparencia aca./2..Q_ sempre par fplsear o que estd -_: ------~m causa, P!:!E_ o olhar r~tinJQ_no ~~!:.!.!!J..fL parte m_yitf!._1!!!fLI!:~'!_f! ~l!!_!_s!a_d_q__!!~t:_!_fgLtL~-~-o

· estado material das ClJL\~(l~: J!. super(fcie d.Q.!!l:~'!£1_() Of_Ul~a -----.;,.__:_:----·--·-··-···--- -· -'!!_aj_~ggl!_ .r_~yela. -~ cien~_~o secu}Q XX __ baseo~~g/.ar-= .E!!!!lgnte "!!.Cf!!.{!~J q_u~_EJ:z~i~fv!!_L~visiio retinjang_J]o ~J!.ois tento!i.!_empre_ compreend(}_[_asJarftlS e _Q§

£!Jlnpo& __ e __ {ls relarlies que estiiq subjQ<:entes JlQ "nos so·~ 11J:U1J{jQ_Xf~f!:a!?~ (Ascott, 1995, op. cit.). A «espiritualida­de», urn dos estados espectrais da arte classica, urn topos teol6gico, e assim assumido pela ciencia, como se ela pu­desse fazer melhor onde a teologia ou a filosofia falha­ram23.

Marte e ressurrei~ao da arte, que e coetanea do seu desa­parecimento ou aparecimento abso1uto. Nao sera.um pou-co a mesma coisa? A arte morre como superffcie ou apa-

Page 10: José bragança de miranda   da interactividade (crítica da nova mimésis tecnológica)

194 Jose Bragan<;a de Miranda

rcncia, retornando como arte absoluta da interactividade. Ascott revela-o com clareza: «enquanto a arte foi tradicio­nalmente centrada na aparencia das coisas e na sua re­presentarao, as artes digitais estcio preocupadas com sis­temas interactivos, com a transformarao, o emergente, o trazer-ao-ser» (Ascott, 1996, op. cit.). Onde vao Q.§__Nietz­sche e a sua demonstra~ao de que s6 existe arte da su erff­~- omo se a y rzs, o dtomstaco nao pudessem existir' no hieratismo da arte chissica. Nao e evidente que o van­guardismo, por exemplo de Pollock ou de Mondrian, ou 1 toda a pop art, tao admirados por estes autores, ja estaoi lmfge da representa~ao como reflexo do «real», para naq falarmos de toda a revoluvao literaria que vern desde JoycCI ou Beckett? Mas pode a representa~:rao reduzir-se a simpld

l I c6pia ou reflexo do «real»? :.-J , . Ha urn certa brutalidade nesta filosofia ready made da ) I representavao e da aparencia, que repetem uma certa doxa

• ~ :;... ' ~ ~

plat6nica. Mas sem a sua subtileza. Em Platao, esse pri­meiro crftico das «aparencias», existe uma exigencia de salva~ao da aparencia, de nao-violencia as coisas, que de­ve ser privilegiada. A tematiza~ao plat6nica tinha a ver com a contradivao entre a aparencia_exl!!!!~~ do movirnentQ dos astros e a_QQgu~ao matematicadQ~seus movimeJ:ltQs 9g:ulares. Giorgio Agamben sugere num texto denso, mas decisivo, ,3!le a salva~ao da~ aparenciasl tern justamente a ver com a necessidade de uma rela ao ao material, ue nao o negue ou lhe fa¥a v1o encia, mas gue nao o deixe tam­bern imperar na sua opacidade in-humana. Diz Agamben: «a aparencia bela ... e "salva" para uma -outra compreen­sao, que a apreende agora tal como ela e, no seu esplen­dor. 0 que se acrescentou e ainda urn sensfvel ( daqui o tcrmo idea, que indica uma visao ), mas niio e um sensfvel subordinado a linguagem e ao conhecimento, mas antes

h~:

Ars Telematica 195

exposto nestes tUtimos. A aparencia ja nlio repousa sobn! hip6teses,, mas sobre si propria, a coisa ja m1o e separave da sua inteligibilidade, mas no meio desta ultima, esta a

)deia, esta a pr6pria coisq:_> (Agamben, 1985, 90-91). 0 controlo do aparccer e justamente o gesto de que Platao se afasta, e que acaba por determinar o pensamcnto octdental e-o seu esquema de controlo tecnico. Ao inves da l6gica do controlo que e codificada por Arist6teles na Metaffsica, -·· h onde codifica as relavoes entre energeia e dynamis, aqui _

0 ~·

ha pura liberdade do deixar-ser, do aparecer. ~m cada mo- ; wt# mento, pois, tudo 0 que aparece e salvo. mas oao tica..r.eti:; ~

.,.mdo na sua opacid_~l~t~! nem 1!:.!!_!11:_f:!.~hesis cien~.f~a:_O apa: t:'tb':-Vo recer da aparenciq_e marcad.Q__pela mistura inextricavel do-~ r<

l eidos e da linguagem24. E e al que toda a arte intervern .. ~ ~~ - Em suma, todas as artes dependem da aparencia e, por.Y~':v­tanto, da apari~ao e is so nada tern a ver com o «olhar reti- \ P-----niano» (sic), mas com uma peculiar economia do visfvel e do invisfvel. Para a arte a visao e uma metMora de algo mais essencial, a economia que rege o «aparecer» ou a ma­nifestavao. Como dizia Walter Benjamin: «Assim como por tras do espectro visfvel ha urn mundo de cores, assim existe urn mundo de figuras por tras da natureza corrente» (W. Benjamin, 104 )25. S6 que .~ figura nao est a oculta atras, ela declina a materia segundo a. forma da obra, do objecto ou da coisa. Na medida em que a arte visa o apare­cer, toda a arte e mats uma esp~Cle de «fenomenologia do

1riaparente» e ao «llicorporal», do que uma fenomenologia -do aparente... - --------------

G Enquanto para a arte a visibilidade e um problema, para a-} stetica interactiva ela, c os seus avatarcs, os «interfaces>;, { ao a «solu~. A «aparic;ao» ou apresentavilo da «totali- \ ..........,___~-·· . -~

dade» da coisa e 0 efeito do £QQtrolo do programa, que se retira no aparelho. mas que sc expressa scmpre em visttali-

Page 11: José bragança de miranda   da interactividade (crítica da nova mimésis tecnológica)

196 Jose Bragan~a de Miranda

za<;ao imediata. N~io c que nao haja nada de «novo» na in­teractividade, mas naquilo que tern de radical sorrespon.Q_e .:j j.ill operar da arte de trazcxftvisjbilldJJQ_~. Disso dcu-se con-ta Ted Nelson: «no interior das massas de escritos, por to- J do o lado, existem ligaroes que tendemos a niio ver. Lida- '' mas apenas com o documento singular que temos na mil.o, ~ mas nao vemos a soma total das ligaroes nele existente. i lvfas elas estiio lei, s6 que o documento ml.o apresenta nem as que nele estiio, nem a trama formada por todas elas» ~ (Nelson, 1993, op. cit.). Trata-se de uma bela descoberta, s i mas que deixa problemas essenciais. De facto dizer que ca- ~~~ da·palavra ou branco e urn ponto de passagem, que abre pa- ~ ra outros, em catadupa, nao podc significar, como pretende o projecto Xanadu, a criac;ao de urn programa que de con~J sistencia tecnica a todas essas ligar;oes. Porque elas nao es~ tao hi, tern de ser inventadas. 0 controlo da visibilidade e feito a custa da disseminar;ao do «arquivo», fazendo do acontecimento urn simples processo de actualizar;ao26.

Aquilo que e a vantagem inapreciavel da arte interacti­va, trazer A wanifi<sta"UQ vwcegimeotQS «jntnitivOS))_ odi.l~ Jntes. s::lassicas, acaba por ser tambem a sua maior limita­~ao. Com efeito, codificam de modo demasiado rfgido o que ficava em estado de diferimento ou de expectancia nas obras de arte. E o que se esperava, que e senao o «novo», o outro do que esta? Isso deve-se ao caracter de design to­tal da obra e do seu espar;o, e2.Paco esse que era «incons-. ~ nas antigas~ aolinternamento do «espectador») que antes era apenasl «implicado») a constituir;ao de urn l«apa- 1

~ que dantes era{!!:_Jfd3, e em falh~ a dominancia da u;isibilidade, reduzida a visualizac;ao, j!Uando dantes estava

l abismada na invisibilidade) a,apresentacao direct£k quando "'dairtes imperava 0 ~iferimento da repetis;~:..; a&_rogram~ <;ao dos efeitos.. enquanto dantes vigoravam os «efeitos dos ~ _;:.]

-~~

Ars Telematica 197

~(Greenberg). A interactividade transforma-se num puro actualismo, que ~ntaneidade do novo _ ..£2.!!!_Q_t~Qrc.al_g~ r~aliza~ao. ----

Algo de novo se joga na interactividade, que s6 pode ser apreendido atraves de uma critica da critica da «tecnica», que nao podercmos fazer aqui27. Baste-nos a pen as referir que emboru boa parte dos apologistas da interactividade tenham superado a visao instrumentalista, isso e feito a custa da atribui~ao de capacidadcs salvfficas a tecnica, que as teria por natureza ou essencia2B. E nessa essencia salvf­fica que se funda a «interactividade», verdadeira po~ao mUfiica, de que tudo depende.

E certo que Roy Ascott fala de duas «interactividades», uma trivial e outra nao-trivial: «A primeira e urn sistema fechado com um con} unto finito de elementos. A segunda e aberta e inji'nita na sua capacidade para integrar novas variaveis » (Ascott, 1996, op. cit.). Est a distinr;iio e impor­tante, sendo bastante mais evidente a primeira que a se­gunda. Ora e esta que alimenta o desejo de absoluto da mimesis tecnol6gica. A abcrtura do sistema acaba por visar a inclusao de tudo no sistema, o que implica a transforma­r;ao da experiencia, mas tarnbem os corpos em variaveis discretas, traduzfveis na linguagern digital e numerica. Es­tamos Ionge desta inclusao tecnica, a tradur;ao digital de­fronta-se com lirnites tecnol6gicos importantes, como se­jam a velocidade de proccssamento, a largura de banda, etc. Mas o que e~:ta em causa c a maneira como o imagina­rio extrema a l6gica do feedback, que pela inclusao perma­nente, s6 terminaria quando nada restasse de fora. 0 que, em terrn:Js cosmol6gicos, se confundiria como univcrso.

Qual a natureza dcste imaginario? Diria, sem intuitos provocatorios, que vern da teologia. N~hJ csta aqui uma teologia oculta? Accrtadamcntc falou Lacan de que n6s

~Hc0 d-~

rf.w:l

Page 12: José bragança de miranda   da interactividade (crítica da nova mimésis tecnológica)

198 Jose Bragan<;a de Miranda

<<extrafmos a machina ex Deus» (Lacan, 1978: 63). A in­ven~ao metaf6rica do Deus ex machina continua a agir en­quanta nao se realizar a maquina universal, capaz de gerar uma realidade «perfeita». Como se depreende de Ascott, a tecnica tomou conta dos atributos teol6gicos: «durante mi­lenios 0 desejo humano de transcendencia assumiu varias formas. Tivemos telepatia, sem qualquer evidencia mate­rial, tivemos adivinhariio, tivemos jcmtasmas. Agora temos telemdtica, telepresenra e a estetica aparicional. 0 alem estd agora aqui. Chama-se ciberespafO» (Ascott, 1996, op~ cit.). Esta aqui em causa uma curiosa denega~ao. A crftica do espectral implica a sua realiza~ao tecnica, mas a custa da aboli~ao da estranheza dos espectros e fantasmas do transcendente. Tudo agora e nitido e luminoso, mas i) nessa luz excessiva perde-se o maravilhoso c o estranho. Mas as suas sombras mantem-se na propria luz que as in­visibiliza, e quando retornam sao mais assustadoras que nunca.

Neste quadro nao e de estranhar que a visibilidade se re­J suma a questao dos interfaces e, em geral, ao design ou a I c§uitectuii)O que levou Myron Krueger a afirmar: «CO­

mero a ver o interface como uma forma de arte, e inespe­radamente vejo-me a mim proprio como um artista» (sic). 0 que parece resultar de uma necessidade de «visualiza­~ao», indispensavel pela nossa incapacidade para funcio­nar a velocidade da luz, ou na informa~ao pura, acaba por se revelar como derivando da 16gica do dispositivo. E,

__ alias, do jnterface que dep~nde toda a obra interactivU:C

~~.~-~_t(l_.~.~cim_<i~-.Li!QQ .urn t~(l~aJhc> .<!~ :v_L~!JllJl~~gao, mesmo que na doxa destes autores, estejamos hoje dianre de urn menu de sentidos mais complexos que a «Visao». -

A interactividacte depenae do numeroetl-po-dc-Interfa­ces que produzem a obra de arte, e acima de tudo da maior

Ars Telematica 199

ou menor capacidade do dispositivo para alcanpr a «imer­sao total». De facto sao as tecnologias das redes, da VR, do hipermedia, c1ue constitucm a «obra>> em si mesn-1a, tu- ~~o do o mais sao actualiza~oes. A arte acaba por ser uma das dJ- W

/ «homoestases» do sistema, constituindo uma incessante ) ~~e... t\ actualiza~ao dos interfaces, que se adaptam em «tempo l real» a gualquer ~'i_tf~tl<:? CQgiflE_ado no esp~~QJ:fc C9!lt!:OJQ_ _ ( ~ o interface inscreve no mundo. . ---

Ora OSTriferfaces sao ainajl~fQrmA_~ ~e media~JlQ1 impli- . f.JVtAL­can]_QJ.tma_(Tistancia. E esta e o «mal» absoluto da nova tR~oW.:fD mimesis. Zielinski reconhece o problema- e preciso existir .. ~ uma linha, uma fronteira, que nos relacione com a tecnica, cuja .t~ndenci~ mais ~vidente e a invisibiliza~~o do inte~face.~, 0 <ifnendly» e uma forma de ocultamento. Dtz ele: «O mter- ~ face niio e uma supelfl'cie do maqufnico que tem de ser de- ~ senhada, nem a sensorialidade expandida do homem-media, .fc\i.t J

mas sim um movimento, como uma aresta a percorrer»29. 0 interface -~~2_t'!!E2. int~rm~.Qi~i(), e a outra vertente da vi­sualiza~~() cl_(l~_po~~~~d~~~ combinat6rias do software

__Q!!c;lo prograrpa. Trata-se de criar urn sistema capaz de intc­grar e responder a todos os lances, em tempo real, o que im­plica o aumento da velocidade de processamento, a replica­~ao dos sentidos fi'sicos, anal6gico, integrac;ao num espa~o de combinat6rias rnultiplas. De acordo com Zielinsky: «os interfaces tem de ser interactivos e empaticos ou me!Jmo biociberneticamente interactivos, isto e, tern de organizar algo de vivo no interior do circuito fechado» (Zi~linsky, 1996, op. cit.). Este ponto de vista, o <<corpo» humano o ul­timo interface, vcrdade ja enunciada por William Gibson no John Menmonics, que nos aprcsenta o modelo de fusao o da articulw;ao de chips de silfcio com os terminais neuronai·;.

A hiocomputat;<.1o c a inteligcncia artificial tornam-se um problema para a artc, porquc e nos interfaces que as-

Page 13: José bragança de miranda   da interactividade (crítica da nova mimésis tecnológica)

200 Jose Bragan~a de Mirand

-------senta mimesis dinfunica da tecnologia. E cste dinamismo em permanente reequilfbno que da a 1 usao de que estamos perante sistemas abertos cuja forma e estmtura depende do envolvimento activo do opcrador, i.e., do espectador inter­nalizado. Essa ilusao refor9a-se com a explosao da combi­nat6ria e pela dificuldade em esgotar analiticamente urn sistema.

Mas e nesta dificuldade de esgotar o programa que as­senta toda a arte interactiva. Contudo, na verdade a apreensao das «modalidades esteticas» (Penny) de boa parte das obras de arte interactiva dcpendem apcnas de ca­~egorias tecni~ ( f~ (.lM_ ~ rs-1t'""""c~ C'.;.' "'\1 U. -;c..) -

0 crescente interesse na chamada Web art n:io parece por em causa esta tendencia. Sao consideradas tanto mais «esteticas» as obras que utilizam elementos de interactivi­dade mais plenos. Depois de urn domfnio quase absolute do computador como interface, ha uma inclina9ao para as instala96es interactivas, que utilizam varios processadores com uma multiplicidade de interfaces sensoriais, utilizan­do processos complexos de scanning do anal6gico, que podem ser pessoas, paisagens ou objectos das artes classi­cas. Ma~-~.aQ __ h9jf!.daramente valorizadas as Web arts, ca­~os de Stelarc em Fractal Flesh, embora nada de radical­miiiie novo ai tenhisurgido.

Seja como for, as obras interactivas, por mais «irnersi­vas» e dinamicas que se pretendam, nao podem ir alem da articula9a0 do «espac;o real» e 0 «espa<;o virtual», 0 que e mais urn constrangimento dos condic;oes de processamento e de incompletude programa biocibernetico. rMas todo o sistema esta fascinado pelas possibilidades da «realidade virtual», ou seja uma realidade inteiramente construida. A situac;ao actual, claramente «impura», tendc a scr provis6-ria. Bern vistas as coisas, os artistas mais intercssantes das

,w.

~

,LQ LLU . h':-(h> lA .. ·~ ~'\_~--__ .

Ars Telematica ~b"'»-t)

( 201

artes electr6nicas sao os que trahalham na[ «mistura» 2_1:!_

j~ameJ.!!9_gc esp~~os e exp~riencias. [ Muito depende da dominante: se impera a vontade de

criar urn mundo total do digital, ou se se esta em corres-pondencia com as tensoes introduzidas pela tecnica na contemporaneidade, nomeadamente com a sua tendcncia para a «naturaliza9ao» mimetica.

E exemplo disso a famosa obra, «Legible City», de __.-:-Jeffrey Shaw em que os movimentos do corpo sao imedia- ~ tamente traduzidos para uma cidade virtual, formada dele- v ~

1 tras. 0 «real» e desvanecido a medida que entra no espa90 ~V() virtual. Toda a actividade do corpo na bicicleta dotada de) ~ ~ sensores esgota-se num pedalar sem sair do sitio, ac~ao 1 f+'yo inutil, se nao for a experimental. Em geral hn urn desapa- tfA ~ ~cimento do gest<?_, transformado num_gcsto_gtJ_alg~~E~ que f!.h fap 0 que. fizer sc trans forma em musica c em imagens, 0-=-

Cas.odo «Very Nervous System», de David Rokeby. A ma quaJidade deste tipo de obras, Oll rnelhor, dos seus estados homeoestaticos de resposta ao «operador», c cvidentc.

Num sentido difercnte, tcmos o por em crise do mime-tismo tecnol6gico, o que pode ser feito por meios tecnol6- ___ gicos bern interessantes, como e o caso da utiliza~ao de ~·c~ tecnicas de «teleprescn~a» por Paul Ser~on na sua instaJa~-./-­~ao «Te1ematic Dreaming», em que a presen~a st1bita de urn corpo virtual nurna cama real cria efeitos de distancia-mento extremamentc dram<1ticos e interessantcs.

Os casas mais intercssantes sao os quc_ill)aiam a mimesis ~!.~'1. ass unto a que voltaremos. ~s._:)-; outEo-s· .~a..r.cf<?r~<lr a ilus~o estetica, procurando integrar o que arnpiguamcntc denominam por «espa~o real», que sc dese}a transferir intcgralmcntc para dentro do cspa~o ci­

·oernetico. Oeste ponto de vista, as Web arts ocupun 'um -~-.. "

Jugar central. De facto c na \Vch art total que csl:l (l mode-

Page 14: José bragança de miranda   da interactividade (crítica da nova mimésis tecnológica)

202 Jose Bragan<;a de Miranda

lo da «constni<;ao da realidade», construti vismo que se ali­menta da mimesis interactiva.

Na verdade o que ha de novo nesta artc e ·a maneira co­mo trabalham o «espac;o», que verdadeiramente e a sua «unidade» de intervenc;ao. Mas esse espac;o tem de ser tra­balhado contra a iliJs~Qj:ecnol6£iC~ lllOdelP. C a IC_{!}J­dade virtual, que se constr6i uma ilusao de liberdade, tao ......__,_~ .. =·-verdadeira como a libertac;ao pela droga. A liberta<;ao do espa<;o e do tempo, do proprio corpo, c feita a custa de urn corpo deixado atras. Que ele venha a entrar no mundo, s6 .agrava as coisas. E a fusao entre «real» e «artificial», entre «Virtual» e «real» que esta em causa. Sabemos que nao e atingfvel a curto prazo, e nem mesmo podemos declinar os trajectos para a realizac;ao de tal «fusao». Nao e essa a questao. Tudo se joga na orientac;ao da arte por esse imagi­mirio tecnologico . ..Q.§. artistas mais .ID1~I~ssantes sao '!qt)e­les que mantem <! l~Jta contra a «esteticizac;ao» actual, como ,-&.~caso de_Lynn Hershman Lees.on, cujos trabalhos reman­tam aos anos 6De-cit:le .desenvol~-e-trabalhos fundamentais nos dias de hoje, que ela jocosamente dcnomina como A. C. (after Computer). E na sua reflexao sobre as mascaras que tudo se joga: «Urn requisito do ciberespa~o, como em muitas tribos primitivas, e 0 da criac;ao de uma mascara pessoal. As mascaras camuflam o corpo e ao fazerem isso libertam e dao voz a personalidades virtuais. Sob di.sfarce, a verdade pessoal pode ser expressa, ao mesmo tempo que a tenue e fragil face de vulnerabilidade permanece protegi­da. Mascaras fazem parte da gramatica do ciberespac;o» (Leeson, op. cit.). As mascaras nas redes continuam a ser essenciais. Desse trabalho sabre elas depende toda a pro­tecc;ao a carne, a invenlividade e a liberdade humana.

A vontade de construir «realidade» 6 largamente imagi · naria, baseando-se numa defini<;ao do «real» bastante clu-

')

dWJ lt'j~

Ars Telematica 203

vidosa. Quando falam de «Sen> e o aparecer suportado pe- , los interfaces tecnol6gicos que e visado. Contra a erotica classica, que considera problematica a ligac;ao, o Todo e ) aqui constitufdo pcla totalidade das liga~()es tccnicas. Daf que a dramatiz;.u;ao das conex6es e a base do intcractivis-mo. Mais uma vcz e Ascott, que representa excelentemen-te esta correntc: (((} conexionismo e o modo de opaar dos cientistas cognitivos, conectivismo e o modo de operar do artista digital. Conexionistas e conectivistas convergem para o local da cultura mule o artUicial cola/y>ra com o natural em novas s[nteses de sen> (Ascott, l996, op. cit.). Como se fosse possfveluma sfntese do «Sen>, como se nao fosse o «Ser» o fundamento que acolhe em si todas as sin-teses e todas as divisoes.

A mimetologia .estetica baseia-se nesta ontologia cons­trutivista, que critica a representac;ao e a imagern como re­flexos «parciais>> e «incompletos», senao mesmo errados, do mundo e da natureza, equa9ao sempre omnipresente. ~ Como se o humano nao resultasse de um «salta» no natu- jJ) ral contra o natural. A incompletude que estava por tras da ]~ ~ representac;ao, que deixava algo no seu exterior. e atacada 4ofA.~,cY'-atraves de cria\aO ere urn «IllUndO» interior, construfdo pe- ~~ ~a a pe9a, e alargado segmento a segmento30. )1PI>-

A estrategia de «fechamento» que· se descrevc a si pr6-pria como «abertura», arranca de um trabalho sabre a «consciencia>> que 6 vista como mais urn «interface»: «no mundo electn5mco m5s somos menu ohservadores inter­nos, e o mundo torna-se num problema de interface» (Weibel, 1996, OJ I. cit. )3 i. Mas o interface cnguanto for sensfvel e visfvc! implica uma ccrta cxterioridade, como t> c.h'-~

' --dissemos ja. E preciso que se enxerte e finalmente S<? fun- "-' da com o «interface» da consciencia que sao os sentidos, vistos como percep\~5es corporais. Como o ccrchro coor-

Page 15: José bragança de miranda   da interactividade (crítica da nova mimésis tecnológica)

204 Jose Braganya de Miranda

dena os sentidos, a solw;;ao e imediata: ele c o «ultimo» in­terface. Sera a partir dele -~~_pode «criar a realidade~> interactiva. ---~.

Sintomaticamente Roy Ascott dctecta esse projecto na fic9ao cientifica, nomeadamente na novela de Greg Egan, Quarentine32. 0 desejo de abolir a <<exterioridade», a dis­Hincia da representa9ao, nao destr6i a representa~ao, mas funde-a directamente na consciencia, scm «desilusao» pas­sive!, que e sempre a marca do «real». A mimesis perfeita entre a realidade e a representa9ao obtem-se atraves de in­ser9ao de tecnologias directamente no ccrebro. 0 ultimo interface e 0 cyborg absoluto, que dispensaria as mcsclas com as maquinas ou aparelhos. Procura-se uma ordcm p6s-biol6gica, que se funda essencialmente na tecnica. Co­mo refere entusiasticamente Ascott, na sua discussao de Egan, «seja ou nilo possfvel desenvolver um mod~ficador cerebral, o facto e que as nossas tecnologias de per­cepfilO, cognifi'io e comunicarilo- o ;ntcrface para siste­mas complexos de computadores que ao mesmo tempo me­diam a nossa consciencia e constroem a nossa realidade - estilo a mover-se cada vez para mais proximo do corpo e ate ao cerebra» (Ascott, 1995, op. cit.).

Tal como e errada a concep9iio do artificial, que se ba­'fo~J seia apenas na «exterioridade» da representa9ao, nao o c

menos a ideia de «natural», com que se identifica o corpo. ~ 0 p6s-biol6gico baseia-se na supera9ao do corpo «natu­~. ral», s6 que este nunca existiu. Poi o programa cartesiano

que criou o corpo natural, e e por isso mesmo que ele pode servir de «interface» para a fusao com a tccnica. Diz As­cott: «queremos que as fronteiras entre "natural" e "arti­ficial" sejam tilo redundantes tecnologicamente como se tomaram do ponto de vista conceptual e espiritual. Isso significa falar do corpo p6s-biol6gico como interface»

Ars Telematica 205

(Ascott, 1995, OfJ. cit.). Nao sera evidcnte que isso s6 e possfvel porque o <<corpo» sempre foi urn «interface>>, sen­do atraves dele que os poderes, a tortura ou a alian9a se es­tabeleciam. Poi «construfdo» historicamente para ser urn interface, do podcr, da tecnica. E a carne que c visada, e esta exige mascaras para ser protegida, como rcssalta das obras de Lynn Hershman. Agora a mascara cola-se a «fa­ce» e essa colagcm funciona atraves de sensores tecnicos que controlam os impulsos que, sendo exteriores, sao scm­pre «modulados» interiormente, sonhando-se com «bio­controladores» implantados no cerebro. Com a criac;ao do «interface neura!» toda a distancia se aboliria, a perturba-9ao desaparecia.

Atinge-se assim uma mimesis perfeita, que e o cumulo da ilusao, quando e o cumulo da «realidade». Nao sera a consciencia telematica a forma mais absoluta de ilusao? Quando, seguindo Greg Egan, Ascott fala em estJbilizar a «onda quantica» nao significa isso ficar rigidamente preso de uma «ViSiiO» q llC SO parcce «real» porque C «CStavel » e omnipresente? Ou seja, por que se nao podc alterar? Pen­sando escapar-se ao «moderno», o que esta em causa c a culmina9ao da mctaffsica cia presenc;a que, de acordo com Heidegger, caractcriza o operar tecnico da reprcsentac;ao modern a.

Esta aqui em causa um aparente paradoxa. Prc•cndc-se uma fusao numa totalidade ultradensa c scm exterior, mas esta s6 pode obter-s.:, nas condi96es actuais, atraves da pulveriza9ao do continuum do «real» (naturezas ou cultu­ra) numa mirfade de variaveis discrctas, traduzidas para a linguagem digital. 0 construtivismo que est:! em instala-9fto funciona a partir de interfaces que se relacionam com o c6digo como numa cspccic de banda de moebius, sem verso nem revcrso, mas em que tudo c detcrminado pclo

Page 16: José bragança de miranda   da interactividade (crítica da nova mimésis tecnológica)

206 Jose Bragan~a de Miranda

c6digo. Como afinna Peter Weibel, numa analise de «Bar Code Hot~l>>: «qualquer coisa pode ser visivel como uma pintura, uma palavra ou um c6digo, mas o c6digo perma­necera sempre dominante ... os c6digos decidem sabre co­mo algo e vis[vel, quando algo e visfvel e em que forma, ou Gestalt, algo e ·visivel» (Weibel, 1996, op. cit.). 0 do­minio do c6digo implica uma sublima~ao da figura pelos processos de agenciamento, desde sempre presentes na ex­periencia ocidental. Michel Foucault ja tinha mostrado co­mo e preciso criar urn quadro axiomatico para instituir a «representa~ao»33. Mas a «figura» sempre resistiu a repre­serita~ao, porque confere uma espessura e dissonancia aos corpos e objectos, que s6 nao e visivel para quem tern uma concep~ao puramente fisicalista do mundo. Que na merca­doria se veja apenas urn objecto e nao as suas envolven­cias fantasmag6ricas, cis algo para que Marx chamou a aten~ao no seculo passado.

A sintese tecnol6gica do Ser constitui cJaramente a «alu­cina(:ao consensual»34 de que falava Gibson, que se espera que resulte do «empenhamento dos participantes numa ex­periencia mediada e compartilhada» (Kac, 1996, op. cit.). Espera-se assim criar a «realidade», como diz Eduardo Kac na sequencia de muitos outros, seria essa a li~ao a extrair do obra «Ornitorrinco»: «nesta nova realidade as distancias e.~pacio-temporais tornam-se irrelevantes, os esparos vir­tual e real tomam-se equivalentes» (Kac, op. cit.). No caso dos mais radicais isso deveria levar a substitui9ao da expe­riencia hist6rica por uma realidade inteiramente SU[;tentada pcla tecnologia, a que chamam «virtual». Para alem da in­compreensao do que se fala quando falam de <-:realidadc», o que esta em causae a vontade de abolir a tensao constituti-. Va da experiencia, que C base do agir. Quanta muito pode-St'

Ars Telematica 207

Claro que mesmo estas obras, enquanto parciais, ainda fazem parte da experiencia, por mais que tenham saido de­la no imaginario. E e este que esta verdadeiramente em causa. E na verdade nao e novo. A interactividade inscre­ve-se na fantasmagoria do projecto wagneriano da Ge­samtkunstwerk. Mas da pior maneira, sem a poesia nem o mito. Mas ela pr6pria e um mito. S6 que esse mito alimen­ta-se hoje da ideia de uma actividade dos espectadores en­quanto operadores, estando na base de «estralef.:ias parti­cipat6rias», para usar uma formula~ao de Peter Weibel, que sao claramente indutoras ... de «actividade». Urn dos exemplos dados por Weibel e bern sugcstivo: «David Dunn tem uma pet;a maravilhosa na qual pdssaros num dado meio criam um som. Um computador processa o som em tempo real e V'JIW a toca-lo para os ptlssaros. Enttio os passaros reagem aos sons e esse som volta a ser tocado para eles. Dessc modo os passaros, os elementos reais, tornara-se numa especie de elemento virtual» (Weibel, ~Q •

1996, op. cit.). Esta forma de participa~ao e curiosa nos y~l?n.~ v.w seus efeitos. Antes a passividade resistia a obra que queria · u ~'!.u intervir no mundo, agora age-se activamente num mundo tJA> ~ simulado. Trata-se de urn novo mimetismo, em que todos) ~~ fazem arte tao naturalmente como os «passaros». Perde-se V. o humano para atingir o estado «canoro» dos passaros. ~ ~

dcclinar o eidos da expericncia e nao de faz~-la.

A interactividadc, ao reproduzir o cspcctador passivo como operador activo, disscmina uma ilusao de controlo, produzida pe~a a pe~a pelo aparelho instalado. 0 simula­cra de actividade c!cvc-sc afinal ao encurtamento do espa­~o existentc entre activo e passivo, que era «enigmatico» e contingente. Ao intcrioriz~i-lo dentro do eSJW\O cibernctico todos os pcrcursos sfio agora intciramcnte tra~ados, prc­-determinados. Ser:l que a arte pode abrir esse sistema, quando esses percursos sao inumeros, ou quando sao ex-

( ~~~.- ;,: ie..,reli ~~·./-,.J>v,. .... t1 4 .h<f""~ ''

Page 17: José bragança de miranda   da interactividade (crítica da nova mimésis tecnológica)

208 Jose Bragan\a de Miranda

ponenciais os «estados homeoestaticos» da «obra interacti­

va»? Em Uma Filosofia da Fotografia, urn livro cuja. impor-

tancia tern vindo a incrementar-se, Vilem Husser parte da «fotografia» como paradigma da epoca dos <<aparelhos», e esta e uma epoca de programa~ao total. Diz Flusser: «Se considerarmos o aparelho fotografico sob tal prisma, constataremos que o que o caracteriza e estar programa-do. As superficies simb6licas que produz esttio, de alguma forma, inscritas previamente ("pro-gramadas", "pre-es­critas") par aqueles que o produziram. As fotogra.flas sao realizaroes de algumas das potencialidadcs inscritas no aparelho. 0 numero de potencialidades e grande, mas li­mitado: e a soma de todas as fotogrqfias fotografaveis par este aparelho. A cada fotografia realizada, diminui o nLl­mero de potencialidades, awnentando o m1mero de realiza­roes: 0 programa vai-se esgotando e 0 universo fotogrdfi­co vai-se realizando. 0 fot6grafo age em prof do esgota­mento do programa e em prol da realizariio do universo fotografico» (Flusser, 1983: 28). Nao se trata de algo de ra­dicalmente novo, pois todo o jogo com regras coloca o problema do «esgotamento» das possibilidades, como e 0

caso do xadrez. Mas aqui ha uma diferem;a importante, pois nos jogos do xadrez foi durante muito tempo impossf­vel esgotar o programa, dado que as possibilidades sendo tao grandes colocavam de fora o jogador. Na nossa situa­~ao, depois do Deep Blue come<;ar a csgotar as possibilida­des contra Karpov, o jogador esta internalizado no jogo. A conclusao inevitavel, como o reconhece Flusser, e que o artista ou operador «ndo se encontra cercado de instru­mentos (como o artesiio pre-industrial), nem submisso 1l maquina (como o proletario industrial), mas encontra-.H' no interior do aparelho. Trata-se de funr;iio nova, na qual

Ars Telematica 209

o homem niio e constante nem variavel, mas esta indelevel­mente amalgamado ao aparelho. Em toda afunr;iin apare­lhtstica, funciondrio e aparelho se confundem-se » (Flusser, 1983: 29). A situa<_;ao pareceria desesperada, levando a urn domfnio total pela l6gica da potencialidade programada, a nao ser em algumas condi9oes necessarias: 1) e preciso urn programa «rico» que produza inumen.lveis possibilidades, que sendo penetravel pelo proprio aparelho ou seu progra­mador, nao 0 e pelo utilizador; 2) e preciso pensar uma in­decidibilidade de raiz que se devc a impossibilidadc de fe­char a programa~ao, o que implica uma «hierarquia de pro­gramas», que c assim circunscrita: «Niio pode haver urn "ultimo" aparellzo, nem um "programa de todos os pro­gramas". lsto porque todo o programa exige metaprogra­ma para ser programado. A hierarquia dos programas esta aberta para cima» (Flusser, 1983: 31-32)35.

Na verdade, parece plausfvel esta versao godeliana da abertura, mas no imagimirio tecnol6gico actual o metapro­grama dos programas esta ja af, inscrito na totalidade do cosmos e as leis d:1 termodinamica. A abertura esta garan­tida por cima, vcrticalmente, sendo o fechamento apenas produzido h~;rizontalmentc, num dado aparelho. Sucede que, do ponto de vista da mimetologia interactiva, esta a ocorrer uma cres,~ente integra~ao das tecnologias, dos apa­relhos e maquinas, bcm como revcrsibilidade crescentc en­tre hardware e software e entre «real» c «digital». 0 sonho de uma rede total como «obra de arte» provem da possibi­lidade de uma «rede de computador integrada a nivel mundial>> (Kac, 1996, op. cit.), e o rcsultado e. a cria~ao de urn espa~o de im<mencia, que se funda nas topologias do mundo digita}36.

De qualquer modo parece escusadamente dramatica a crftica de que a artc tecnol6gica impede 0 novo, que nao e

" 1 i ~

\

Page 18: José bragança de miranda   da interactividade (crítica da nova mimésis tecnológica)

210 Jose Bragan~a de Miranda

criativa37. Trata-se de problemas que advrm de uma esteti­ca ch'issica que por mim nao quero repropor. E o arquivo que pesa de mais, fazendo da arte uma especie. de arquiva­~ao dinamica, ou seja urn processo e substitui9ao digital da experiencia e progressiva cria9ao de urn mapa 1: 1, como refere Borges. Tudo permanece, e esse e o problema. A aletheia que Heidegger descreve como manifestavao que oculta, e destruida pela visibilidade perene que 0 cybers-

pace garante. A interactividade tern de ser «impurificada» para poder

ter valor estetico. Algumas indica9oes vem neste sentido d·e Andrew Lippman, do MIT, que em conversa corn Stewart Brand referc como caractcristicas csscnciais da in­teractividade, «evitar construir um sistema que tern wn ca­rninho obrigat6rio, que tern de ser seguido, a nao ser que seja mudado» (Brand, 1987: 48-49); e «ter a impresscio de urna data base infinita», sem uma escolha for~ada e ern que «tudo est a pre-computado» (Brand, 1987: 50)38. Desta coloca~ao resulta uma questao interessante: e possfvel per­derma-nos num sistema de hipertexto, sem que essa perda seja apenas a confusao dos caminhos que se «bifurcam» de que fala Borges? Sera que o acaso pode resultar apenas da «incompetencia» ou «mau uso» do operador39? Sera que para a abertura do «novo» basta o aumento das possibili­dades combinat6rias do programa? Trata-se apenas de urn criteria tecnico da feitura dos programas?

Urn dos aspectos mais positivos da arte actual e a manei-ra como a interactividade poe em causa a hierarquia e a autoridade. Este e urn problema decisivo, que nao se resol­ve com a simples inversao das estruturas chissicas. E csta interven9ao na «liga9ao hierarquica» que distingue Antoni Muntadas e Eduardo Kac, que se baseia na idcia de que a crise da linearidade pelo hipertexto e da «identidade» pclo

Ars Telem;itica 21 I

hipermedia, alteram radicalmente o estado de coisas. Diz Kac: «autores de hipertexto e.~crevem com software que permite organizm;tio niio-hierarquica da ir~formarJio, o que e absolutmncnte adequado QO interface interactivo que impera na Internet» (Kac, 1996, op. cit.). Atncar cx­plicitamentc a hierarquia e interessante, mas nao chega, podendo mesmo scr regressivo relativamcnte ;, expcrien­cias fortemente valorizadas como sao as de E. E. Cummin­gs, cujas experimenta96cs tipograficas prefigurariam a ne­cessidade do hipertexto. Ora as coisas sao hem mais com­plexas. A abertura s6 pocle ser pcnsavel contra a «mctapro­grama9ao», que institui uma cadeia de programas que con­trolam outros programas, que sc podem percorrer «hiper­textualmente» scm abalar essa encapsula9ao. Ora so as li­ga~oes impossfveis, prefigurando ltnks inesgoh'iveis e ins­taveis, que nao se confundem com os links tecno16gicos, podem ter efeitos politicos e artisticos interessantes. Entre­gar a «liberta9ao» a um mecanisme tecnico parece ser tao par6dico, como garantir a moral pela policia.

Do ponto de vista estetico e necessaria criticar a ideia de que a <<interactividade» por si so pode garantir efeitos ar­tisticos e, por ai, politicos. A hierarquia, como a que estru­tura a passividadc, e apenas urn problema enquanto resul­tado de um automatismo de repeti~ao4o. Nao por acaso Duguet vai contestar a ideia de uma comunidade de produ­tores unidos peL1 csp;wo interactivo: «O artista e o criador da proposta, do conceito subjacente a per;a, do dispositi­VO, do contexto ~era/. Urn artista e assim responsavel pela coerencia e a l6gica da obra» (Duguet, 1996: 149-150). 0 fundo de verdade dcsta crftica e que a obra de arte nunca e «pura» mas antes misturada. Para isso nao basta colocar a interactividade C(llllO mais um criteria estetico, porque jus­tnmente o que esla em causa, nesta mimetologia tecnica,

' i i !

I

Page 19: José bragança de miranda   da interactividade (crítica da nova mimésis tecnológica)

212 Jose Bragan~a de Miranda

nao e a obra de arte, mas toda a experiencia como «obra de arte» a ser «construfda».

Para libertar os artistas que recorrem as tecnologias nu­mericas e precise libertar as suas «Obras» e insta}a~oes, nova mimesis tecnol6gica. Na verdade, e nas fronteiras, nas passagens, nas «borderlines» que a arte encontra o ')ett Iugar impossfvel, que se expressa41. E na opacidade desse Iugar impossivel, mas que e criado e exigido pelas pr6-prias obras, que esta todo o problema. A tecnica tende a usar da tensao para prosseguir o seu trabalho de fusao com ~ ' o humano. Ora, o preocupante e a inclusao de tudo, desde ~ o corpo ao «espirito», dos diversos media e do real mn~~ espa~o de controlo. Procurar dar visibilidade as rela~oes ~ entre virtual e «real», entre espa~o real e ciberespa~o e cla- 1, ramente insuficiente. Esta visibilidade ja impera em cada uma das obras, e corresponde a uma desloca~ao das rela­~5es do visfvel e do invisivel para o lado da visualiza~ao tecnica.

0 trabalho a fazer, que tern valor artfstico e polftic~, passa pela reintrodu~ao de tensoes e contradi<;:5es que fo­ram abolidas, e que deixam a diferen~a desenvolver-se apenas como urn espa~o de jogo. Tambem aqui o exemplo de Lynn Hershman parece-me excelente, mostrando que a arte, o que corresponde a uma tendencia intemporal, traba­lha justamente a figurabilidade, a maneira como esta decli­na incorporeamente42 a materia e os corpos, salvando-os da sua precipita~ao na «natureza», e do seu aprisionamen-to identitario como «corpos» ou «objectos». Desde que to- -­cados pela arte tudo e mais do que corpo ou objecto. «0 corpo nao e necessaria» (Hershman), mas e atraves dele, enquanto figura, que se pode visar a carne. S6 com a im-\ posi~ao de uma figura abstracta como eo «corpo>~, que co grau zero de todas as figuras, se pode cercar os indivfduos,

~

Ars Telematica 213

numa especie de campo de for~as, onde o ~~~ com-_ plementa com a tecnica: «as acroes e os gestos estiio ·­~nJ~!!!.!!Jite sob vigiltmcla. Pode11J: _sf!.r se~uidos e re-_ ~~!~!~~zados e armazenados» (Leeson, op. cit.). A solu~ao passa pelo «disfarce» que «re]leCr~ .. E.....'}[!{f:!.tf!.Za tif{mera de U"}_c .. ~.~~t!.C:,~t~d_f!.~~_vq~~q~~a__nyanipula£iio df} imagem e pa!E.JL!f!_~qJas:t1QJ/Q sujeifQ_!! (id.). Eanecessi­dade de dividir a imagem contra si propria que justifica a necessidade de mascaras, processo artfstico que vern desde

. •-' os anos 70, em que criou «mascaras» de cera com «voz 'J;t:lW '--gravada», que se autodestruiam.

No caso do cibcrespacro, cuja gramatica estetica e a mas­cara, wuito dep,~nde da pqssibilidade de criar mascaras d~ corpos inexist~!!~es, ruat_que «rQ!!!Eem» com a fix'!£_ao m!:­~tica a obr__~o mesmo tc~P.?._ q~e _des-fix am o sujeito das suas afecco~ mats ou menos perver~. Atacar por ~ abata a ilusao estetica produzida pela interacti vi dade. Isso e muito evidente na peer a America:\' Finest, que recorre a uma espingarda M 16 intcractiva, com objectivos bern precisos: «a acr/io e directamente instigada pelo gatilho, 0

qual, quando premido, coloca o espectador/participante dentro do site da anna (neste caso, todo o corpo seguran-do a arma). Veem-se a si pr6pfios apagar-se debaixo de :!Xemplos horr[veis em que a M 16 e usada, e se aguentam, fantasmas das imagens dissolvem-se no presente. Mais uma vez, o agressor torna-se na vftima e o todo o corpo do espectador e colocado dentro do local da obra. Atraves desta imersiio total, mais uma vez perdem o controlo das suas imagens, tonzmulo-se num jlutuante m1o-corpo» (L,ec: ~ op. cit.). 0 interessante de Leeson c que ela joga com os elementos da anc electr6nica para os declinar. 0 tltcntc mais nao pode do :juc escapar-sc tao rapidamcnlc quanto possfvel da «irncrsuo I utah>, na obra e em si mesmn.

Page 20: José bragança de miranda   da interactividade (crítica da nova mimésis tecnológica)

214 Jose Bragan<;a de Miranda

~~..:se assit!l_gj1Qdcr provocat{>rio do dadafsmo_ e __ de toda a artc em geral. A capacidadc pan:~ repudiar

:-- '•··

quem dela se aproxima. Facto que ainda ccoa na crftica kantiana ao utilitarismo. Dcscobrc o cssencial, e que s6 aparentemente a interactividade e interactiva. De facto tra­ta-se de uma forma de liga950 tccnica a tccnica, atraves das paixoes. Como estas podem ser mecanizadas podem tambem ser destruidas, ou «Secas». Esse trabalho de Lee­son e essencia!. Na VR esse desejo podc ser prosseguido,

·-;te ao terror. 0 corpo pode nao aguentar. E sempre no ter­rqr. .. que acaba o desejo.

Se para atacar e demolir a mimesis tecnol6gica e prcciso privilegiar a obra de arte, por outro lado esta nao e a uni­

.A. dade de amilise estetica. E urn espa~o mais iato que nao se / ' confunde com nenhuma ou nem com todas as obras de ar­

te, mas que esta impressa nestas e tendido entre elas. Con­ferindo-lhes uma eternidade e instantaneidade, que a inte­ractividade inconscientemente «copia», e desvirtua. Mas

r. que, por outro !ado, explicita e traz a luz. Trata-se de pros­IJ- seguir essa descoberta, scm a deixar capturar pelo imagi-Lil mirio da tecnica.

3. Conclusiio: ~~nto poOtico do espa~o «Para muitos artistas o esparo estcl em expansZio; fhlra

alguns estd em desvanecimento»

Robert Smithson

As artes interactivas estao a criar e a cstcncler um espar;o novo, dotado de uma consistencia tecnica, i. c., o «cibercs­pa~o», definido pela leveza e a «imatcrialidade»43. 0 ljliC'

desaparece verdadeiramcnte e o cspa~o imatcrial onck as

\>0 P' Wt- t u 7t"'"'Y\4fl'\M. ~ ·~·,~ 0 l}t.~ -

Ars Tclcm<lticu 215

obras de arte ganham a sua «Cternidadc>> actuaL Isso expli­ca urn fen6mcno estranho, que os te6ricos desta corrente refiram pouqufssimas obras de arte anteriores a interactivi­dade44. Ilusao de um novo come~o, ou come~o de urn no_­vo lance da hist6ria milenar -do-controlo? ---sefia bern nccessario mostrar como dcsdc a metafisica grega se institui uma l6gica do controlo, fundamental­mente organizada em torno da estabiliza~ao tecnol6gica da passagem do «potencial» para o «actual •>45. 0 interface como permanentc «actual» parcce culminar cssa longa hist6ria, que sc aproxima agora de uma decisao final. E o interactivismo recolhe muito do dramatismo desta deci­sao .

Ora, a arte scmpre descontrolou a vontade de controlo, pela sua hyhris propria, cedo denunciada por Platao, cen­trada como sempre esteve numa economia do invisfvel e do inaparente de que a Razao nao era capaz de dar conta. Os principais autores dcste campo tendem aver na interac­tividade o fim do vclho conflito entre episteme e «poesia» ou mythos. A crftica da ilusao tecnica passa pela revela9iio _ dos tra~os ou vcstfgios dessa tensao, o que implica a dis- ,..----- .f tin~ao nftida do espa~o da arte relativamente ao espa~o-de- -,AP-~ ~ -controlo ( cyber.\jmce). Em vez de fundi-los, trata-se de ~ • redividi-los segundo outros princfpios, que nfio :1s pura- ;;,.,.;o mente tecnicos. ~

Isso nao implica que a arte possa ou deva alhcar-se da tecnica, mas dcvc cvitar compromcter o scu «celibato» vanguardista com casamcntos aprcssados e intcrcssciros. A exclusiva dctcrmina\~:lo da interactividade tende, ao in­ves, a alargar o cspa\o-dc-controlo, scrvindo de ponte para uma tccnica cuja csscncia fica rctirada. Se um dia Samuel Buttler dissc CJIIC ,, 1111za galinha (; o prdexro r;ttc Wll ovo arraniou pam ainr outro m·o», (liria agon, qth~ a artc in-

Page 21: José bragança de miranda   da interactividade (crítica da nova mimésis tecnológica)

216 Jose Bragan~a de Miranda

teractiva e 0 pretexto que a tecnica arranjou para criar mais tecnica~

0 espa~o-de-controlo sustenta-se na interactividad.e que agencia os seus c6digos em inumeras homoestases, inume­ras mas \finitas; Dada a exigencia de crescente intemamen­to nesse espa~o. a arte e determinada pelo controlo, apare­cendo como: a) realiza~ao de combinat6rias do programa~ b) a extensao das bases de dados.

0 que nos preocupa nao e tanto a «Captura» da arte, CO­

mo o fazer do mundo a «presa» ou o saque, da coalizao entre arte e tecnica. Lance a lance, «homoestase» a «ho­moestase» consolida-se e expande-se o espa<;o-de-contro­lo. E, imaginariamente, depois de intemada ai a arte, s;­gue-se o internamento do mundo.

-.>.::.. A critica da mimesis tecnol6gica que detectamos no co -ceito de interactividade prende-se justamente com a domi­nancia da visibilidade, ou melhor, da visualizas:ao, que se expressa na cria~ao de interfaces pelo c6digo ou o progra-ma. Nao e na finitud~~ das combina~5es que esta o prob!~­ma, essa finitude ocorre em qualquer jogo ou no proprio_ ..--··--~to~ que nem por isso deixou de produzir excelentes obras. 0 que esta em causae a determina~ao da arte pela Vfsibilidade, quando, como afirma Paul Klee, o essencial da arte e a relacao a invisibilidade. Tese bastante mal intcr­pretada, mas que e esseilC'iai)

r\~ Ora a visualiza~ao produzida pelos interfaces, centrada ~nos sentidos e nos sensores, prende a arte a uma especie de ~ replica~ao do humano demasiado humano do «corpo». Le-

sa assim a arte e a carne. A tendencia para criar sensores e descodificadores da perceps:ao humana, de que depende a

.;-o «apresentas:ao» imediata em tempo real das artes tecno16-

. gicas, s6 e perigosa porque alimenta 0 imaginario de uma :9..'~ reconstru~ao «p6s-biol6gica» do humano. Como se o hu-

~ ~~ ~.d~ ~~~ ~ qj·~ vov.'or~J Ars Telematica ./.J.J~IA fr 1 11_ ~ t:i4 ~ 217

A-~~IM~~~ ~ ~+-rNJI.£1 mano fosse igval ao «corpo». Mas essa e a base da bio­computa~ao, das nanotecnologias, em suma, do programa de desenvolvimento do cyborg47.

Urn pouco por todo o lado vai-se sustentando que «as instalafoes interactivas introduzem experiencia multi-sen­sorial no campo da arte ... Os procedimentos opt:ratorios interactivos e experimentafiio de interfaces fornecem a possibilidade de repensar as relafoes espec({tcas entre 6r­gii_os dos sentidos, redistribuindo as suczs fun{~Oes» (As­~c;p~""Cii.). Nada menos evidente. De facto a vi­sualiza~ao que esta implicada nos interfaces c numerica e sera crescentemente digitalizada, sendo indiferente que o c6digo se expresse atraves s.fo §Om ou da fala, da visao OY.... do tacto, e meg_:Qq por ~entidos menos trabalh_aveis, ainda, como o «sabon>. 0 problema nao esta ai mas a defini~ao da arte como <~re~osta em tempo real>~ a inputs que vin--dos do corpo ou do aparelho/programa, sao similares (dada a desapari~ao tendencial da exterioridade ).

0 tempo real c afinal a replica~ao mimetica dos limiares percepcionais dos humanos, mas acima de tudo, o rebati-mento sobre o espa~o-de-controlo de todos os actos, no­meadamente os estcticos. Tempo real e afinal <(processa-mento de data alta velocidade» (Penny, 1996, op. cit.) no espac;o-de-controlo. De toda a maneira a replica~ao senso-rial, o bloco sentidos bio16gicos-sensores tecnicos, implica ainda uma distancia, que sc procura reduzir para finalmen-te anular. 0 paradigma actual destc processo e a tecnologia da «realidade virtual>>. 0 caso agrava-se com a «reconstru-950 p6s-organica» do hurnano, mas nao muda de figura. Mas o que esta em causa e que a arte seja visualizas:ao, identica aos limiarcs percepcionais, quando ela e visibili- i

dade deter!Tiinada pela invisibilidade, luz determinad~ pela T\ escuridao, prcsen~a Jetenninada pela ausencia. __J }

Page 22: José bragança de miranda   da interactividade (crítica da nova mimésis tecnológica)

218 Jose Bragan<;a de Miranda

Daf que se me afigure inevit<'ivel a conclusao de que a mimesis tecnol6gica se funda afinal numa tendencia da tecnica, insuficientemente criticada: a de provocar uma «re-naturaliza~ao» da experiencia tal como se c6nstitui fiistoricamente. Esta a ocorre~ ~rna in~~~·sii-~--do ~pa-radTgrna· que opunha natureza e artificial nos classicos dos moder­nos, como Hobbes ou Rousseau. E certo que a crise desse modelo cria novas potencialidades, mas tambem novos pe­rigos. A inversao referida e feita a custa da integra~ao da­quilo que de contingente e arbitrario havia na «hist6ria», e cada cristaliza~ao da hist6ria e necessaria porque esta af e e contingente, porque poderia nao estar, integra~ao que ocorre menos na «natureza» que numa certa visao fisica­lista da physis. E de uma visao parcelar e contingente que falamos, a da ciencia aqui e agora, mas que se aprcsenta como a ultima das visoes possiveis.

A consequencia tern algo caricatural: fazer das realiza­c;oes contingentes da hist6ria o modelo de urn novo mundo, o do «Virtual», transferindo para o espa<;o tecnol6gico a fi­gura em que se «congelou» a hist6ria, os seus resultados e problemas, a sua forma. Nada de grave aqui, apenas a con­tinua~ao da velha hist6ria. A experiencia continua enquanto as velhas ilusoes continuarem. Com uma diferenc;a: o acon­tecimento da tecnica que temos de considerar como crucial fica completamentc sem resposta. As famosas respostas em «tempo real», nunca sao a resposta a Tecnica, mas a alguns dos SeUS aparelhos, programas Oll maquinas.

S6 a arte pode responder ou estar em correspondencia com a tecnica, mas o teor de liberdade dessa resposta e «politico», tern a ver com a des-naturalizar;ao, afastamen­to ou diferimento da Physis. Estamos Ionge da «queda» teol6gica», ficou para tras a «qucda» na «realidadc». 0 perigo c:gora e a queda na Physis definida a imagem das

-~·

Ars Telem;itica 219

ciencias fisicalistas de hoje. Nao sera possfvel encetar a critica das artcs interactivas nem aproximarmo-nos da tec­nica sem se contestar a i!usao maxima que elas projectarn, justamente quando se apresentam como «naturais» ou fisi­calistas e artificiais e imateriais. Esta fusao nao pode ser orientada pela tecnica. Toda a artc, tecnol6gica ou nao, de­pende desta questao. E no caso das artes tecnol6gicas o criteria essencial c menos a «interactividade» que a ma­neira comoJmpedeJ.n. i~'itabili~am c~-~~~!~J11 a __ 11!1!!~~~~ tecnol6gica. Dispomos de bons excmplos desta possibili­dade, valenao a pena registar aqui urn trabalho de Dan Graham, «Present conliiHl()lJS past(s )», dos anQs 70~ Graham constr6i um sistema de circuito- fechado em que urn video devolve a imagem do espectador, como num es­pelho numa sala fechada. Como ha uma decalage de al­guns segundos entre a imagem vista e a efectivamente produzida, origina-se um efeito de choque pela incoinci- . dencia entre os gcstos actuais e a irnagem passad.1. Crise~ narcfsica, pequena fcrida, que fere mais a «ideologia» do «tempo real» que outra coisa. • ·

Fora do imagin<irio mimetico, cujo moclelo actual e a VR tern alguma pcrtincncia a ideia de «hibrida~ao», uma velha categoria de McLuhan. Eduardo Kac valoriza este aspecto: «alguns artistas estiio a expandir e a hibridizar a Internet com outros csparos, media, sistemas l' processos, explorando ate uma nova zona de explorat;flO» (Kac, op. cit.). E evidentc que em si mesma a «hibridac;ao» nao sera uma panaccia. podcndo significar reunioes hctr;n)clitas sem grande interesse estetico. Maseste conceito pode dar algum sentido aos elementos de interactividade que as obras de arte t·ontemporanca nao podem deixar de levar em linha de conta. Ali:is, a hihrida<,~ao c inc, it<ivcl, en­quanta nao se atingir o «p6s-biol6gico>>, hojc em· grande

Page 23: José bragança de miranda   da interactividade (crítica da nova mimésis tecnológica)

220 Jose Braganr;a de Miranda

medida imagiml.rio. Dos te6ricos actuais tcm sido EdmqnQ Couchot que mais tern avan~ado neste scntido: «se o vir-,.. -" zual implica uma arte dos modelos de simulariio, implica ainda mais uma arte de hibrida@_p. Niio uma arte da cola­gem, da mescla, do patchwork, que actua apenas sabre fragmentos do real (por justaposi~iio, inserfiiO, incrusta­r;iio, etc.), mas sim uma arte que actua na trama, na estru­tura, no proprio conhecimento do real e do seu homologo simulado, o virtual. No mais profunda das suas relaroes e complexidades» (Couchot, 1997: 84).

Edmond Couchot prop6e assim um verdadeiro programa para a «arte de hibrida~ao», cujo destino est<'i ainda em aberto. Mas o que esta em causa sao as liga~oes da obra, nao com outras obras nem com o mundo, mas com o espa­~o da arte, que constitui o hiperespa~o de todos os espa~os de «manifesta~ao» ou «apari~ao», mas tam bern de desapa­ri~ao. Sublinhamos ja que as liga~oes sao hoje insepan1-veis da tecnica . .]. do quest!Q~s!~_ t~~cnica, fora de cujo horizonte nao e possfvel pensar nem agir, que ~~P.~E.:. de a amilise das novas artes. Reacende-se assim num deba­te que se iniciou neste s6culo que agora finda, e depois se esbateu. E: claro, pelo menos para mim, que a medita~ao sobre a tecnica se torna impossfvel quando e demonizada e mais ainda quando ela e angelizada.

Em Walter Benjamin encontramos algo desta medita~ao necessaria, nomeadamente num texto decisivo intitulado «0 autor como prod11tor~~· Seria preciso voltar a ler esse ensaio48. Limitamo-nos aqui a acentuar algumas linhas de for~a. a jeito de conclusao. E que Benjamin e tambem urn autor da «hibrida~ao», a que coloca quest6cs radicais. Que sao questoes que a arte coloca a tecnica.

E interessante verificar que Benjamin ja detectara a «in­teractividade», nomeadamente na crisc da rcla9ao autor/r~-

Ars Telematica 221

ceptor, que justamente faz de todos «produtores»49. Toda a critica de Benjamin, de que nem os vanguardistas sao isen­tados passa pelo questionamento da sua «rela~ao com a tecnica» (123), questao que e polftica, como ele refere no ensaio sobre a reprodutibilidade. Mas nao e possfvel a arte ser polftica, dir-:cramente ou imediatamente. A politica ex­pressa-se na rela~ao a tecnica, que nao seja puramente in­terior, como no trabalho, nem puramente exterior, como nas artes chissicas. Poderia ser delimitada essa rclarrao co­mo declinac;ao, 16gica que esta na base de urn programa sobre o qual se devcria reflectir.

Numa breve reconstru~ao desse programa benjaminiano destacarei apenas os seguintes procedimentos de «hibrida­c;ao»:

a) a modificar;a(J do aparelho tecnico, em vez da sua uti­liza~ao correcta;

b) a liberlClf'clO dos aparclhos, relativamente as apropria­~OeS privadas que os dominam~

c) a combina~lio de meios, em vez da sua separac;ao se­gundo generos ou tipos;

d) a dissonancia dos processos, para impedir a queda na «moda»;

e) a re.fundifiio como forma .de produzir «a mass a in­candescente na qual se fusionam as for mas novas» (128).

f) a con.frontar;;ilo com o aparclho tecnico, como forma de estar a altura da epoca.

g) a exposir;iio de situar6es, como forma de romper ilu­sao estetica da ac~flo dramatica.

h) a interrupr;ilo, como forma de ruptura de <<O contcxto de montagem)> (131).

i) a revolu~·rio das forma.\·, em vez do abastecimento de conteudos «revoluciontirios>> ou outros;

Page 24: José bragança de miranda   da interactividade (crítica da nova mimésis tecnológica)

222 Jose Bragan~a de Miranda

j) a colaborar;fw da palavra, como forma de alegoriza­c;ao da obra.

Trata-se de urn verdadeiro programa de «hibridac;ao», todo ele voltado contra a ilusao estetica e a incompreen-_g~~k~, ~e e_~elTipre du£!~~-~-~~~~~ua= <;ao. A estrategia benjaminiana, que deveria ser comema-da passo a passo, baseia-se menos nas «obras» que na permanente alegorizac;ao que a abre para alem da sua «materialidade» ou «restancia». Esse estado-outro da obra deveria operar uma expansao do espac;o, que ja nada fern aver como espac;o hierarquico da experiencia, nem com as suas purifica96es tecnol6gicas, o «ciberespa90», mas com urn «hiperespa<;o poetico», que s6 pode aceder a visibilidade, nao na visualiza<;ao, nem no interface, mas 12.ela presenxa da pa~. Ocorre de imediato aqUTO exemplo de Jenny Holzer, em que o poetico ilumina o electrico.

Nesse espa<;o de perfeita liberdade, de eternidade das obras, e possiveluma resposta a tecnica, mas fora da de to­do o «utilitarismo». A arte nao serve a ciencia, nem a mo­ral, nem a polftica, nem se adequa a epoca nem as necessi­dades, antes os liberta da sua premencia, deixando-as ilu­minar pelo imperativo da «liberdade». E a liberdade nao sera produzida pelas maquinas uteis, que poden: produzir a falta dela. No «mau-USO», na inutilidade, fundam-se ma­quinas maravilhosas, que esperam por quem as mere<;a. Como as de Tinguely, que na sua obra dos anos 60, Hommage a New York, criou uma maquina que se autodes­trufa. Neste retorno da negatividade mantem-se a alegria do novo, sendo esta destruic;ao a unica imaterializa<;ao pensavel: abrir para outro espac;o, protcgendo as obras, unica forma de «salvar as aparencias».

Ars Telematica 223

Esse espa<;o poetico, onde impera a palavra certa, espa9o onde tudo e «protegido», onde se inventou Deus, que nos inventou a n6s, que inventamos a tecnica, que nos reinven­ta outra vez, soa assim na fu:ao poetiQ.{!_pe Manoel de Bar-

"=·-·--.. ' ,_ ~-

ros: ~'"'"-~--- ·1,

~efiro as maquinas que servem para nCio fimcionar; \ ( quando cheias de areia de formiga e musgo - elas

\ podem um dia milagrar de flo res.

(os objectos sem funrao tern muito ape go pel a abandono.)

Todas as coisas apropriadas ao abandono me rcligam a Deus.

Senhor eu tenho orgulho do imprestavel!

(0 abandnno me protege.)

~---~~-~~ros, 1996: 57).

Notas

\ 1

1 A crftica a estas categoriais, boa parte delas proveniente do roman­tismo, nao se devc a screm falsas ou lnaplicaveis. Para Benjamin, depo!s d~ quebra da autenticidade provocad~~~J§cnicas de rcprodu'iao ... tms categorias ficam inJefcsas perante a vontade totalitaria de «reconstruir» o mundo como se fosse urna obra de materia plastica a mao de qualquer de­rniurgo polftico. Pvr seu lado, os conceitos que advem da rela\ao da tec­nica com a m1e e a polftica «distinguem-se dos conceitos correntes pelo facto de serem completamente inuti/izaveis para as finalidades do fascis­mo» (Benjamin, 1939: 138). Vale a pena referir que no ensaio de 1934 sabre «o autor com produtor» ele tinha feito tambem uma crftica bastante vigorosa do «realismo socialista». Em Peter BUrger encontram-se interes­santes desenvolvimentns para a crftica do «idealismo estetico» em que se funda a institui~ao da artc. Cf. JHJRGER, Peter- Zur Kritik der idealis­tischen Asthetik ( 1983 ).

Page 25: José bragança de miranda   da interactividade (crítica da nova mimésis tecnológica)

224 Jose Bragan<ya de Miranda

2 Trata-se de uma excelente formula~ao de Henry Michaux, que se da perfeitamente conta dessa natureza ambivalentc. Cf. MICHAUX, Henri­«A Verdaceira Poesia faz-se contra a poesia» (l936).

3 Diria que a vanguarda tinha de recorrer a estrategia·de choque e de ruptura, como forma de libertac;:ao da arte relativamente a instituic;:ao es­tetica, e de aligeiramento de uma experiencia invadida pela proliferac;:ao de objectos originada pelo progressivo esbatimento das fronteiras entre «obras de arte» e «objectos de todo o genero». Sucede, porem, que os procedimentos de «choque» nao eram suficientemente fortes para sobre­viverem a capacidade de apropriac;:ao pelas obras «mediaticas», que a ele recorrem ahundantemente. 0 zapping parece ser a estrutura final de um_ desejo que nao pode «parar>> em nenhuma obra nem em nenhuma coisa, abismado como esta pelo vazio absoluto.

~ 4 As artes interactivas tendem a apresentar-se como do horizonte para todas as outras artes, o que passa pelo privilegiar da «interactividade» co­mo dinone da arte adequada ao «p6s-moderno». Boa parte da capacidade de evidencia destas teorias deve-se ao facto de, pensando ter entrado nu­ma epoca «nova», a «p6s-modernidade», nunca por em causa a sacros­santa categoria de «epoca» tao caracterfstica do historicismo do seculo XIX. Numa obra anterior, procurei mostrar as consequencias desta visao epocol6gica. Cf. BRAGAN<;A DE MIRANDA, Jose A.- Analftica da Actualidade, part. Parte II (1994).

5 Nao e que as obras do «passado» sejam recusadas absolutamente, ou simplesmente «superadas». Acima de tudo sao «arquivadas»», nos mu­seus, em particular nas Bases de dados de natureza hipermedia. Ficam as­sim a disposi<;iio para toda a apropriac;:ao das artes «interactivas».

6 Conta-se urn caso curiosa ocorrido com Ducharnp. Em 1938, numa exposi<;ao de pintura surrealista, na Galerie des Beaux-Arts em Paris, propt}s deixar os quadros as escuras, sendo apenas iluminados quando os visitantes activassem determinados sensores. Devido a dificuldades tec­nol6gicas, que os computadores actuais resolveriam sem qualquer difi­culdade, acabou-se por entregar lanternas ao publico, procedimento que teve de ser abandonado depois de todas terem sido roubadas. Desiludi­dos, voltaram a ilumina~ao costumeira (cf. para o contexto, Dinkla, !996, p. 280-281 ). Bern vistas as coisas, a hist6ria e rnais duchampiana nos re~ sultados do que o procedimento. De facto, a emergencia da imagem da escuridao nao pode ser control ada, a nao ser quando a «escuridao» ja faz parte do espac;:o tecnico. Agora ninguem poderia «roubar>> as lanternas, talvez porque ao publico ja foi «roubado» o poder de roub.tr, ou de alte­rar. Tudo ocorre numa transgressao autorizada.

7 Dore Ashton, "An Interview with Marcel Duchamp," Studio Interna­tional 17), no. 878 june 1966), 244-47. Citado par Dinkla, 19%, p.355.

Ars Telematica 225

8 Parece haver alguma l:Ontradi~ao entre o incessantc elogio dos «irna­teriais» (que ganha urn curso imparavel depois de urna famosa exposi­c;:i:io no Centro Pompidou organizada nos anos 80 por Lyotard) e a ideia de que a visualiza~ao e uma forma de «materializac;:ao». Trata-se, porem. de uma contradir;ao aparente, pois no irnagin<lrio da realidadr virtual toda a materia ja foi traduzida para o arquivo, e e partir daf que ,; «actua1iza­da» em obras instant1neas que constroi urn mundn em puro nomadismo de conectividade. Deixo de !ado o facto de que os «irnateriais>> s6 nao sao «materia» para quem ve a materia como algo «denso», •<opaco>>, «resis­tente», ou seja, de acordo com a velha hyltf grega.

9 A imediaticidadc e da ordem do «desejo», mas e ela que alimenta a «luta» contra as formas de organizarriio do mundo real, i.e., nao interacti­vo. Passo a passo sera integrado no seio do «ciberespar;o».

10 Por exemplo Eduardo Kac refere que «este tipo de obra estd pro­fundamente enraizado na ideia de que a arte tem uma rcsponsabilidade social, e que os novos media criam novas formas de relariies sociais» (Kac, I 995, op. cit.). A detcnninarrao da arte pel a pedagogia ou a etica le­sa aquilo que de rnais essencial encontramos na arte, a possibilidade de realizar o «irnpossfvel», de dar a ver o «outro» do prescnte ou do «exis­tente». Qualquer relac;ao ao <<presente» tera semprc de ser «indirecta» e nao imediata. Por outro !ado esta definic;:ao obrigaria a excluir Pound, Wilde, Rimbaud ...

II Essa neutrulidade e inseparavel do apagamento dos tra~os de fic­cionalidade que rodeia a cria<;ao das categorias, mas que sobrevive nelas mesmo depois de apagada teoricamente. Heidegger extraiu consequen­cias interessantes deste facto para a sua crftica das categorias metaffsi­cas.

12 No conhecido esquema hegeliano a arte esta primeiro na ordem da «realiza<;iio» da ldeia absoluta, seguindo-se a_religiiio e finalmente a fila­sofia, o que parec~~ mais acertado do que a tese de Benjamin que a coloca na sequencia da rcligiao. Como e sabido e nesta «progressao» que assenta a tese do «flrn da arte». De qualquer modo o problema nao e hist6rico, nem se trata de uma progressao, mas de uma tendencia profundamente incrustr1da na cultura ocidental que origina a materializa<;iio do imaterial (por exernplo, os dcuses) e a desrnaterializac;:ao do material.

13 Esta crftica da mimetologia deve bastante as teses de Lacoue-La­barthe, ue mostra como a crflica da. re r s nta ao como imi io ocu!ta uma «rnimetologia» profun a, que armnca de Platao e culmina corn Hei­degger e o seu desL~jO'-oC uma «polftica ontol6gica». que !eve as conse­quencias conhecidas. Cf. LACOUE-LABARTHE, Philippe ---. L 'Imita­tion des Modemcs ( 19~6). ~

Page 26: José bragança de miranda   da interactividade (crítica da nova mimésis tecnológica)

226 Jose Bragan<;a de Miranda

14 Norbert Wiener, o fundador da cibernctica, define-o assim: «Feedback ... [e) o controlo de um sistema pela reinser(:l'io dentro do sistema dos resultados da sua performance .... Na sua forma mais sim­ples, 0 prindpio do feedback significa que 0 comportamento e analisado em vista dos seus resultados, e que o sucesso ou fracasso desse resulrado modifica o comportamentofuturo» (Wiener, 1988,69, 71). Este elemento de «abertura» do sistema alimentou o imagimirio da «democraticidade» desta rela~'io biunfvoca entre emissor e receptor, mas de facto implica uma integra~ao crescente do «exterior» dentro do «sistema». 0 biunfvoco terminaria quando terminasse o «exterior». - 15 0 esquema narrativo da tragedia sobrevive nas series televisivas, ou nas telenovelas, na montagem cinematogratica ou vanguardista, nos videoclips publicitarios. etc. etc. Note-se ainda que boa parte dos esque­mas esteticos est~O a ser transferidos para OS jogos de computador e da realidade virtual, de que mi.Jito haveria a dizer.

16 0 International Directory of the Electronic Arts regista mais de mil entradas no apartado relativo as institui~6es especializadas, e cerca de I 500 artistas ligados a interactividade.

17 Por exemplo, Simon Penny afirma: «no Ocidente, as artes visuai.~ niio tern qualquer tradiriio de uma estetica da interactividade. Seis secu­!os de pintura originaram uma rica estetica da imagem pamda, de core linha, contorno e area, de geometria representacimwl e pcrspectiva. (. .. ) Cern anos de imagem em movimento forneceu-nos um conjunto cultural­mente estavel de convenroes cinemdticas, mas ainda niio possu[mos uma esttftica culturalmente estabelecida da interacriio em tempo real» fPen­ny, 1996, op. cit.).

18 Como a dinamica em tempo real da interactividade e considerada a grande «inova~iio» estetica, o anterior fica remetido ao «arquivo», o que lesa as obras de m te pre-interactivas e as obras de arte interactivas. E evi­dentfssimo o efeito de repeti~ao das formas, estilos e tigura~oes das artes anteriores, fen6meno que esta bern patente no design «neo-gt'itico» dos jogos de computador ou nos clip arts que acompanham e servem os pro­gramas graficos. Pelo menos tendencialmente, o elemento tecnico con­verge com um academismo redivivo.

19 Andrew Cameron que critica as artes interactivas mostrando a sua debilidade narrativa e a sua afinidade com os «jogos de computador», diz sobre o jogo de guerra Hellcats: «Hellcats representa um aspecto concre­to da experiencia de guerra no Pacifico, mas e mais a experiencia da mdquina qui! do pi/oro. Mais precisamente, e a experiencia do piloto na

medida ern que ele ou eta e uma extensao da mdquina, a parte que man­tem o aviao no ar, que voa desta e daquele maneira, que prime o gatilho

,_-.:4

' . ~

~ . ..,

-....

Ars Telematica 227

e lanra bombas, mas nunca aquela parte que tem uma hist6ria, uma fa­rn{[ia, cor de pel£· ... » (Cameron, 1995, op. cit.).

20 Deveria mesmo dizer-se que a «interactividnde» sernpre existiu, mas «descontrolada». 0 que e uma vantagem. De certo modo as formas e as maneiras agem, como as narrativas operam, etc. Com a tecnologiza~iio da interactividade d:'i-se urn controlo de um processo ']Ue seguia vias complexas e indircctas. 0 estudo de Jonathan Crnry sobre «as tecnicas do obs~ryagm>> mostra como se construiu um observador qualificado no se­culo XlX(Cf. -Crary;-T990}.--0 inesmo se depreendedas-estra~gias- de impfica~ao dos espectadores no classicismo, como mostra fRIED, Mi­chael em Absorption and Theatricality: Painting and Behr!der in the Age of Diderot ( 1980).

21 Do ponto de vista crftico c essencial a crftica de Brecht aos proces­sos de identifica\ao catartica, que se inscrevem numa longa tradi~ao do aristotelismo. Pese cmbora algumas ambiguidades, Brecht sublinha forte­mente a necessidade de des-tixa~ao da obra e do espectador relativamen­te as suas «ligm;oes pcrigosas».

22 Criticou-se muito a «monotonia» da arte vanguardista, como suce­de na literatura de Beckett ou de Sarraute. Trata-se de uma estratcgia es­sencial de «afastamento» do cspectador «apnixonado», ou seja, que quer penctrar na obra c se deixa penctrar por ela. Adorno na Teoria Estetica sublinhou este aspccto.

23 Como, para OS crfticos, toda a arte pre-interactiva e baseada na «aparencia», porque sc retem no exterior, rnostrando apenas a sua «super­ffcie», a consequencin inevitavel e que «a arte das aparencias que e for­necida por lojas, ga/erias, museus e pelas paginas de rel'ista de arte Itt· xuosas, estd a morrcr. Esrd a morrer pois ja nclo l! re!evante para uma cultura que estd prof1ressivamente preocupada com a compft'xidade de retar6es e a suhti!idadc dos sistemas, como invisfvd e o imaterial, com o evolutivo e evancscmte, em suma, com a aparirlio» (Ascot!, 1995, op. cit.). Aparentando 0 dcsejo do «110VO», 0 que sc assiste e ao rcpisar dos piores topoi do classicismo ocidcntal, que ou sao invertidos deixando a cstrutura como estc~va, ou siio superados numa~se>> in_]_~giniiria.

24 Nao e tanto a linguagem que esta em causa, em si mesma ~<a lin­guagem nao existc > (como diz Lyotard em Le Differend).J,rata-se dogue aparecc no movimL·nw do diz'-!jcm que atraves da palavra aparece o ma­terico recoberto p\lr uma figura invisfvel, mas que o rctira do continuum inumano da «natureza>>_

25 Sl') ultimamcntc se tcm vindo a reconheccr a ct~ntralidade .da teoria benjamineana de figura. Cf. por cxemplo, de Siegrid Weigel Body and lnw - ·;pace. Re-rending W. Benjamin ( 1997).

Page 27: José bragança de miranda   da interactividade (crítica da nova mimésis tecnológica)

228 Jose Braganr;a de Miranda

26 Isso e bern evidente na defini<;1io de «hipertexto» apresentada por Nelson: «Hypertext e uma forma de armazenamento, uma nova forma de literatura, e uma rede que pode revitalizar a vida humana». Nao e por acaso que a primeira caracterfstica e o «armazenamento>;, que constitui uma das modalidade principais da experiencia contcmporanea. Abordei esta questao em «A virtualiza~ao do arquivo» ( 1996)

27 Urn problema grave e a desatenr;ao a tecnica. Esta e descrita segun­da a tecnologia existente, sabre a qual se projectam sonhos salvfficos ou maleticos. Mas a tecnologia tern de ser rebatida na tecnica, o que exige uma medita~ao pr6pria, necessidade exibida por autores como Heidegger, Junger, Simondon, Anders ou Flusser, entre outros, (poucos diga-se de passagem).

28 0 problema nao se poe de modo diferente para aqueles que lhc atri­buem uma natureza malefica ou demonfaca. Nada de importante passa por esta divisao.

29 Cf. Siegfried Zielinski: «Interface/recoupment/subject- Thinking the boundary, making it flexible, keeping it Experiential» (texto online).

30 Esta a ocorrer uma especie de movimento em pin<;a, em que a reali­dade e substitufda por $Ersatz tecno16gico e, simultaneamentc, em que ela e introduzida dentro do espa<;o cibernetico.

31 Como Ascott tern uma visao «comportamentalista» da experiencia, que exorbita a posi<;ao do «indivfduo» e dos «indivfduos» em vez da tra­ma que os tecem e que eles tecem, percebe-se que tudo se jogue em fazer do corpo humano urn interface para a «consciencia», conectando assim a realidade sobre o cerebra: «a questiio da conscibzcia, a tecnologia da consciencia sera o tema fundamental da vida do seculo XXI. Questoes de consciencia e de constmr.iio da realidade estiio no centro de qualquer discussiio do estatuto, papel e potencialidade da arte na cibercultura emergente» (Ascott, 1995, op. cit.). Nao sera estc tipo de arte interactiva o imaginario da mimesis «cyborguica» da consciencia?

32 Enquanto o Neuromante de Gibson que colocava a questao da en­trada no cyberspace pelo exterior, modelo dos anos 80, seria agora em Quarentine que terfamos o modelo dos anos 90, a da construc;ao de um 0!};z9rg perfeito. Modelo dos anos 90.

33 Toda a obra de Michei Foucault assenta precisamente na tentativa de determinar as regas e axiomaticas que agenciam e sao agenciadas pela «representa<;ao». E esse o objecto do livro de Foucault Les Mots et le.f Chases: Une Archeologie des Sciences Humaines ( 1966).

34 De facto a loucura e a droga ja eram cxperiencias desta substitui<;ao perfeita da construc;ao exterior pela interior, criando uma «confornw~ao• absoluta entre ambas. Essa mimetica e o perigo actual, nao sendo possf-

Ars Telematica 229

vel que 0 pensamcnto da «intcractividadc» va alegrcmcntc pclo caminho da metaffsica sem detcr-se para pensar.

35 A n~iio de aparelho de Flusser e bern interessante, mostrando que os automatismos de rcpeti<;ao e controlo vi.io alem das m<iquinas, e e por af que ele garante uma certa abertura do processo. Diz Flusser: «Uma dis­tinfilo deve ser feita: hardware e software. Enquallto objecto duro, o aparelho fotogrdfico foi programado para produzir automaticamente fo­tografias; enquanto coisa mole, impalpavel, foi programado para perrni­tir ao fot6grafo j(tzer com que fotografias deliberadas scjam produzidas automaticamente. S£/o dois programas que se co-implicam. Por tras des­tes, ha outros. 0 da ftibrica de aparelhos fotograjlcos: aparelho progra­mado para programar aparelhos. 0 do parque industrial: aparelho pro­gramado para progmnzar indlistrias de aparclhos fotoguificos e outros. 0 econ6mico-social: aparelho programado pam progrmnar o apare/ho industrial, comercial e admimstrativo. 0 polftico-cultural: aparelho pro­gramado para programar apare/hos econ6micos, culturais, ideol6gicos e outros» (Fiusser, 1983: 31 ).

36 Gilles Deleuze mostra a oposi~ao entre urn «espa<;o liso-> e um «es­pa~o estriado», respectivamcnte nom::iuico c tecnologico. 0 pmblema e a reduc;:iio da espacializa<;i'io a urn espac;o unico, ainda por cima det1nido pela «homogeneiJade», geometriza<;i.io», »controlo», etc. Trata-se, ao in­ves, de encontrar no espac;o «estriado», tecnoJ6gico, a presen~a do «OUtro esp~o». Cf. Deleuze e Guattari «Le lisse te le strie» in Mille Plateaux (1980).

37 Eduardo Knc e optimista sabre a questao da criatividade, acentuado que as obras de arte da rede sao baseadas em «estrutttras mutaveis e li­garoes instdveis» (Kac, 1996, op. cit.).

38 As outras caractcrfsticas referid~as por Lippman sao: a «interruptibi­lidade», ou scja a capacidade para <<interromper)} a ,<ac~i'io>>, o que impli­ca que o sistema tenha uma ccrta «granularidade» (interva!os), ou seja, os elementos mfnimos (o tamanho no espa<;o, o interva!o no tempo) do siste­ma que podem ser interrornpidos scm destruir o processo; a «degrada~ao :1ceit:ivel (gracehll)>· ou seja a maneira como o <<sistema>' se degrada sem se destruir, ou seja, o grau de confusi.io e de incerteza inclufdo no proces­so; 3) «antevisao limitada», ou seja nao antecipar a totalidade ncm o ob­jectivo de rnaneira absoluta, o lJLIC implica niio pcrcorrer toda a «base de dados», mas de ve-la intuitivarnente (cf. Brand, 1987: 50).

39 !:: esse o problema de Mallarme sobre as 25 letras do alfabeto. 40 ~U liga<;oes que sao por natureza hierarquicas, c outras niio. 0 pro­

blema cshi na impo'i\·;io da hierarquiu como liga\Ull repetitiv<\ e de de­p.·r,lencia. A Cfl!lca d.t hierarquia e antes de mais urna crftica das liga-

I

Page 28: José bragança de miranda   da interactividade (crítica da nova mimésis tecnológica)

230 Jose Braganr;a de Miranda

\DeS fon;adas. Os casos abundam na literatura, fascinada pelos «doces la­c;-os do amor», como eo caso das obras de Masoch.

41 Desde o corpo ate a tecnica e as artcs, tudo e inclufdo num espa<;o de experiencia, que deve incluir o tecnol6gico e nao o contnirio. Pergun­to-me se a no~ao «debordiana» (e Sartriana) de «situac;ao» nao sera mais essencial do que a de «instala~iio».

42 A «incorporalidade» e urn problema antigo, que remonta pelo me­nos a 16gica dos est6icos. Cf. BREHIER, Emile- La Theorie des lncor­porels dans /'Ancien Stoicisme (1928).

43 Vive-se ou sonha-se aparentemente com urn mundo mfstico da rela­'<iio e do imaterial, s6 que o anacoreta ja nao vai para o deserto, mas para dentro de si. De qualquer modo esta «imaterialidade» nao impede que se seja bastante loquaz sobre o mundo «real», entreguc ao politicamente cor­recto, a contratualizar;ao e a vigilancia permanente. Situar;iio nao casual.

44 0 problema da temporalidade ou adequar;ao das obras de arte ao tempo foi claramente abordado por Baudelaire, nomeadamente no «Pin­tor da Vida Modern a» ( 1860), on de defende que a obra tern ao mesmo tempo urn canicter «efemero» e «eterno». Mas ja Marx se tinha dado conta do «encanto» persistente das obras de epocas desaparecidas, como a grega con1 a tragedia, ou o barroco com Cervantes ou Shakespeare. Sem pensar demasiado no assunto, considerou Marx que se devia a nossa «nostalgia» pela infancia, que nos levava a admirar a «infancia» do anti­gas. Esta Ionge de ser uma solu~ao aceitavel, mas o problema e claro. Tu­do indica que as obras de arte nao tern tempo, justamentc por se inscreve­rem num espar;o de permanente aparir;ao ou infancia. Deixo o assunto de Ia do.

45 Apresentei alguns desenvolvimentos sabre esta questao em «Con­trol e Passion» ( 1996).

46 Este processo e algo de decisivo. Depois de urn esforr;o milenar pa­ra fazer entrar a tecnica no esquema instrumental, de determinar os seus objectos como instrumentos, estamos a assistir a destrui\aO do proprio esquema. Com a crise deste torna-se ilus6ria a vontade de controlo da tecnica pela economia, a moral ou a governa~ao. Incluindo tambem a ar­te, claro.

47 E inevitavel a progressiva cibernetizar;ao do «corpo», e como os re­sultados sao imprevisfveis, querer parar aqui c agora seria absurdo. Mas cssa ligar;ao entre arte e tecnica tern de respeitar a Infima possibilidade da «liberdade», signifique ela o que significar, i.e., tcmos Je perceber­mo-nos na palavra e nao detini-la.

48 Diria que a leitura mais poderosa deste ensaio e a de ViiCm Flusser, que pouco se lhe refere, mas cujo livro esta inteirmnente detcrmin:~do por

'!,• •,'

; .. :., ' •('!

;.

:?1

~

~·~.·. ~,·

~-

';;f

~ ;,

' "~ :11

Ars Telematica 231

ele. A tese de Flusser e que «A tarefa dafilosoj/a dafotoKrafia e dirigir a questtio da libenlade nos fot6grafos, a fim de captar a sua resposta . ... Varias respostas aparecemm: I. o aparelho e infra-hunumamcnte estupi­do e pode ser enganado; 2. os programas dos aparelhos permitem illlro­durao de elementos humanos niio previstos; 3. as informaroes pmduzi­das e distribufdas por aparelhos podem ser desviadas da intens;ao dos aparellzos e submetidas a intenroes humanas; 4. os aparelhos sao des­prez{veis. Tais resposras, e outras poss{veis, siio redut(veis a uma: fiber­dade e jogar comra o aparefho. E is to e possfl'f;l. » (Fiusscr, 19~3: 71 ). 0 problema e que() aparelho inscreve-se num espa~o mais lato, que se nao for «salvo» tornara imlteis touos os «jogos».

49 Diz Benjamin: «Espero ter mostrado que a repre.l"entarrio do aurar como produtor deve remontar ate a imprensa. Porque somente na im­prensa ... nos damos conta de que o vigoroso processo dt• rejimdifiio nao passa unicamellle pelos distinri)es convencionais entre ghreros, entre es­critor e poeta, entre investiRador e divulgador, mas que obriga a rever inclusivamente a rehzr(/o entre au tore lei tor» (Benjamin, 1934: 122).

Bibliografia

AA VV (1994)- Catalogo da Exposi<;iio Mziltiplas Dimensoes no Cen­tro Cultural de Belem (7 de Junho a 31 de Julho), Lisboa, CCB.

--7- AGAMBEN, Giorgio ( 1985) -Idea della Prosa, Miiio, Feltrinelli. ASCOTT, Roy ( 1993) - «De Ia Apariencia a Ia Aparicion» in lnterme­

dia. Nuevas T("cno/ogias, Creacion, Cultura, Vol.l, No.I. November, Madrid, 1993 (cf. na Internet: «From Appearance to Apparition: Communications and Culture in the Cyberspherc» in Leonardo Elec-tronic Almanac, No.2, 1993) ·

ASCOTT, Roy ( 1995) - «The A- Z of Interactive Arts» in Leonardo Electronic Almanac, Volume 3, No.9 September 1995

BARROS, Manocl ( 1996) -_Lil!lu.s.aiu;e.l){g,r/(J.. Rl£lJ!<::.!!!n.£i!o, Req~rd. ~ BAUDELAIRE, Charles (I ~60) - 0 Pintar da Vida Modema (or. Le'

Peintre da Ia \lie Afodeme), tradur;ao e pref<icio de Teresa Cruz, Lis­boa, Vega, 1990.

BENJAMIN, WaIter - Jlist!Srias e Contos (or. Grscluchtcn und No­vcl!istisches), Li,boa, Teorerna, 1992.

BENJAMIN, W:dter ( llJ34)-· «El autor como productor·> («Dcr Autor als Produzent») in Tentatit•as sobrt• lJrechr. Madrid, Tauru-s, pp.IIS­-134.

t

I

Page 29: José bragança de miranda   da interactividade (crítica da nova mimésis tecnológica)

232 Jose Braganc;a de Miranda

BENJAMIN, Walter ( 1939) -«A obra de arte na era da sua reprodutibi­lidade tecnica» («Das Kunstwerk im Zeitalter seiner technischen Re­produzierbarkeit») in Benjamin: L 'Homme, /e Langage (!t Ia Culture, Paris, Denoel, pp. 137-196.

BRAGAN<;A DE MIRANDA, Jose A. ( 1994) - Analitica da Actualida­de, Lisboa, Vega.

BRAGAN<;A DE MIRANDA. Jose A. (1996)- «A virtualizac;ao do ar­quivo» in Mem6ria e Traairiio, n. 0 tematico da REVISTA DA FACUL­DADE DE ClENCIAS SOCIAlS E HUMAN AS, 1996, 9, pp. 95-11 H.

BRAGAN<;A DE MIRANDA. Jose A. (1996a)- 1996- «Control and Passion», texto apresentado na Fifth International Conference 011

Cyberspace, Fundaci6n Arte y tecnologfa, Madrid, 6 de Junho (no prelo). BRAND, Stewart (1987)- The Media Lab, Inventing the Future at MIT,

Londres, Penguin Books, 2ed, 1988. BREHIER, Emile (1928) -La Theorie des lncorporels dans /'Ancien

Stoicisme, Paris, Vrin, 1982. BVRGER, Peter (1983)- Zur Kritik der idealistischen iisthetik, Fank­

furt, Suhrkamp. CAMERON, Andrew - «Dissimulations: Illusions of interactivity» ·in

lnteractivities, MFJ-Millenium Film Journal, No. 28, Spring 1995 (online em <http://www.sva.edu/MFJ/journa1Pages/MFJ28/Dissimula­tions.html>)

Cf. MICHAUX, Henri (1936)- «A Verdadeira Poesia faz-se contra a poesia» in MICHAUX, H.- Nos Dais Ainda, Lisboa, &etc, 1988.

fcOUCHOT, Edmond (1997)- «Entre lo real y lo virtual: un arte de laj ' hibridaci6n» in GIANNETI, Claudia (org.)- Arte en Ia Era Electro·

nica. Perspectivas de una Nueva Estetica, Barcelona, L' Angelot. CRARY, J. (1990)- Techniques of the Observer: On Vision and Mo­

dernity in the Nineteenth Century, Cambridge, Mass., MIT Press. DE LEUZE, Gilles & GUA TT ARI, Felix ( 1980)- Mille Plateaux. Capi­

talisme et Schizophrenic, Paris, Minuit. DEUELLE-Liiski, Aim- «L'oeuvre d'art a l'ere de Ia memoire nurne­

rique ou Ia perte de faculte de representation» in Cata!ogo da exposi­\ao Connexions lmplicites ( 13 mai - 13 juillet 1997) da ENSBA (Eco­le Nationale Superieure des Beaux Arts de Pa;is) (online em <http://www .ensba.fr/connexions/texto/tex t6 .html>)

DINKLA, Soke (!996)- «From participation to interaction. Towards the origins of Interactive Art» in Leeson (org.) Clicking ln. Hot Linsk ro a Digital Culture, Seattle, Bay Press, 1996, pp. 279-290.

DUGUET, Anne-Marie ( 1996)- «Does interactivity lead to new defini­tions of art?» in Perspektiven der Medienkunst/Media Art Perspecti-­l'es, Karsruhe, Cantz Verlag.

1

I !

I ., .

Ars Telematica 233

FLUSSER, Vilem (19!B)- Filosofia da Cai.m Prcta (or. Fiir cine Phi­losophie der Fotogmjle), Sao Paulo, Hucitcc, 1985.

FOUCAULT, Michel (1966)- Les Mots et les Chases: Une ArchColo­gie des Sciences Hcmwines, Paris, Gallimard.

FRIED, Michael ( 1980) - Absorption and Theatricality: Painting and Beholder in the Age of Diderot, Chicago, The Univ. of Chicago Press, 1988.

KAC, Eduardo ( 1995)- «Interactive Art in the Internet» in Karl Gerbel and Peter Weibel (orgs.). Mythos Information; Welcome to the Wired World, Vienna, New York: Springer-Verlag, 1995, pp. 170-179 (Onli­ne em <http://www.ckac.org>)

LA CAN, Jacques ( 197H) - Le Moi dans Ia Theorie de Freud et dans Ia Technique de Ia Psychanalyse, Paris, Seuil.

LACOUE-LABARTHE, Philippe (1986)- L'lmitation des Modernes, ParL;, Galilee.

LEESON, Lynn Hershman - «Reflections and Preliminary Notes: A.C.IB.C.» Online en http://arakis.ucdavis.edu/hershman/intro.html)

LEESON, Lynn Hershman (org.) Clicking 111. lot ink to a igital Cui-___.. ______ .. _,._ .. .__

lure, Seattle, Bay Press, 1996. NELSON, leil Tl993) Litemr)'"ifachines, Sausalito, California, Min-

dful Press. PENNY, Simon (1996)- «From A to D and back again: the emerging

aesthetics of inte1active art» in Leonardo Electronic Almanac, Volu­me 4, No.4, 1996 (E-mail: [email protected]).

POPPER, Frank - Social and Aesthetic Implications of the Art of the Electronic Age in

POPPER, Frank (1994)- «Visualization, Cultural Mediation and Dual Creativity» (Originalrnentc publicado em alemao, P. Zoche (Hrsg.), Heraulforderungen fur die lnformationsteclmik, Heidelberg, Physica­-Verlag, 1994, pp. 405-415).

SMITHSON, Robert ( 1996) - The Collected Writings, org. por Jack Flam, Berkley, University of California Press.

WEIBEL, Peter (1996) -- «Ars Electronica: An Interview by Johan Pii­nappel» in A&:.D. numem tcm;\tico sobrc «Tecnological Al1».

WEIGEL, Siegnd (I 097) - Body and lmagespace. Re-reading W Ben­jamin, Lonclres, Routledge.

WIENER, Norbert -- · The Human Use of Human Beings, New York, Da Capo, 19XX.

ZIELINSKI, Siq;fri,~d ( i 996) ---- «Seven Items on the Net>• in Leeson (org.): Clickim; Ill. H(lr Link to u Digital Culture, Seattle, Bay" Press, 19%, pp.338-343.

I l l

Page 30: José bragança de miranda   da interactividade (crítica da nova mimésis tecnológica)

~

!-(

<t: ..D

~ 0 "0

0

~

0 ~

"0

~

0 ~

.. ro c C

/J 0 ~

()

0 ·~

0 -~

11

Page 31: José bragança de miranda   da interactividade (crítica da nova mimésis tecnológica)

} f I

t •

l 1

TIME CAPSULE

Eduardo Kac

Introdu~ao

«Time Capsule)> e uma obra-experiencia que se encontra algures entre urn evento-instala~ao, uma obra ffsica de lo­cal especifico, na qual o local e ao mesmo tempo o corpo do artista e um banco de dados localizado nos Estados Uni­dos, e uma transmissao simu!Hinea na TV e na Weh. 0 ob­jecto que da nome a obra e urn microchip que contem urn capacitor e bobina integrados no chip, ttido lacrado herme­ticamente em vidro biocompatfvel. 0 chip contem tambem urn mlmero de identifica~ao pre-programado e irrepetfvel.

A escala temporal do trabalho estende-sc entre o efemc­ro e o permancntc, ou seja, entre os poucos minutos neces­saries para a conclusao do procedimento basico, ·t implan­tm;ao do microchip, e 0 caracter permanente do unplante. Assim, como acontcce com outras capsulas do tempo sub­tern1neas, 6 soh a pelc que essa capsula do tempo digi~al se projccta no future.

Page 32: José bragança de miranda   da interactividade (crítica da nova mimésis tecnológica)

t

I

238 Eduardo Kac

0 procedimento

Ao entrar na galeria onde esta obra se realiza, o publico ve urn medico e urn leito hospitalar cercado por urn compu­tador on-line, por equipamento adicional de transmissao e Uffi dedo tele-rob6tico. 0 medico inicia OS procedimentos basicos limpando a pele do meu tornozelo com urn anti­-septico, insensibilizando uma pequena area com urn anal­gesico. Eu concluo o procedimento usando uma agulha es­pecial para inserir subcutaneamente o microchip passivo, que e, de fact'), urn transponder scm fonte de alimenta~ao nem partes m6veis, isto e, nada nele precisa ser trocado ou substituido. 0 processo de scanizar o implante com urn scanner portatil gera urn sinal de radio de baixa energia (125 Khz) que energiza o microchip. Este transmite entao o seu inaltenivel e unico codigo numerico de 16 caracteres, mostrado na tela de cristal lfquido do scanner. Imediata­mente apos obter esta informa~ao, registo-me via Web no banco de dados. Essa e a primeira vez que urn ser humano e catalogado nesse banco de dados, ja que cste tipo de registo foi originalmente projectado para identifica~ao e recupera­~ao de animais perdidos. Registo-me tanto como animal co­mo como proprietario usando o meu proprio nome. Apos a implanta~ao, forma-se uma pequena camada de tecidc con­juntivo em torno do microchip para evitar migra~ao.

Memoria e informa~ao

A documenta9ao~ideJ.ltifica~ao tern sido os impulsos orals importantes no desenvol virilento das tccnologias da imagem, desde a primeira fotografia ate a ubiquidade das cfunaras de video de vigilfmcia.

l ~

:~ t

1 I .I

~t 1 ·~

i i • j

9P

il

" '.,1

Ars Telematica 239

Ao Iongo dos seculos XIX e XX, a fotografia e demais instrumentos imageticos funcionaram como uma capsula do tempo social, possibilitando a preserva~ao colectiva da mem6ria dos nossos corpos sociais. No final do seculo XX, no entanto, testemunhamos uma infla~ao global da imagem, e o esbatimento promovido pelas tecnologias di­gitais do poder sagrado da fotografia como verdade. Hoje ja nao se pode confiar na natureza representacional da imagem como agente vital da prescrva~ao da mem6ria e da identidadc social ou pessoal. As actuais condi£6es per­mitem-nos mlJsillr a configur~aQ cl~ nossa p_eje p()r ro.cio da c!xu_rgia, pl4stic;_~g)m a mesma facilidade com quema­nl ulamos a representa ao de nossa elc or meio da ima-

em di 1t ' tal forn~1 que podemos transformar-nos n11 imag~rp. de nos mesmos gue desejarmos. Associada a ca­pacidade de mudar o corpo e imagem existe a possibilida­de de oblitera9ao da sua mem6ria. Na medida em que cha­mamos «memoria» as unidades de armazenamento de in­forma~ao de cornputadores e robos, antropomorfizamos as nossas maquinas, fazendo com que elas se pare~am con­nosco. Ao Iongo deste processo e de forma subtil, tambem come~amos a parecer-nos com elas. Hoje a memoria esta num chip. 0 corpo e tradicionalmen_te visto como o sagra­do reposit6rio de memorias humanas, adquiridas por he­ran~a genetica ou atraves de experiencias pessoais. Chips de memoria sao vulgannente encontrados dentro de com­putadores e robos c nao dentro de seres humanos. Na obra <<Time Capsule» a presen~a do chip (com os seus dados re­cupeniveis) dcntro do corpo fon;a-nos a considerar a pre­sen9a simultanca de memorias internas vividas, e mem6-rias artificiais externas dentro de n6s.

Mem6rias externas convertem-se em implantes intracor­porais, antccipandn situagoes futuras nas quais evcntos co-

Page 33: José bragança de miranda   da interactividade (crítica da nova mimésis tecnológica)

240 Eduardo Kac

mo este podem tomar-se vulgares e levantando problemas acerca de legitimidade e das implica~oes eticas de procedi­mentos como este na cultura digital. Transmissoes ad vivo na televisao e atraves da Internet trazem estas questoes pa­ra perto de cada urn, dentro de casa.

Incorpora~ao e biotecnologia

Para considerarmos algumas dessas quest6es basta exa­minarmos melhor o presente, e nao o futuro. Urn exemplo e o rastreamento por radar para monitorar a disUlncia a po­sic;ao e o comportamento de animais tao pequenos como uma borboleta, e tao grandes como uma baleia. 0 surgi­mento da biometrica, com sua conversao de tra~os pes­soais irrepetfveis - como os padroes da iris e os cantor­nos das impressoes digitais - em informa~ao digital, e um sinal claro de que quanto mais a tecnologia se aproxi­ma do corpo, mais tende a permea-lo. 0 actual uso bern sucedido de microchips em cirurgias na coluna vertebral abre uma area sem precedentes para a investiga~ao, na qual fun~oes do corpo sao estimuladas e controladas exter­namente por microchips. A pesquisa medica experimental para a cria~ao de retinas artificiais usando microchips no olho para tomar o cego capaz de ver, por exemplo, obriga­-nos a aceitar os efeitos libertadores dos microchips intra­corporais. Ao mesmo tempo, a propriedade, o registo de patente e a venda legal de amostras de ADN de culturas indigenas na Internet por empresas de biotecnologias mos­tra que nem mesmo o mais pessoal de todos os tra~os bio­Iogicos esta imune a omnipresenr;a da tecnologia.

j I

t I ). . ~ l

I i

' l t i f i • t

.l

J cJ

·t J :t ·'j ,.,.

·::~

Ars Telematica 241

Etica e trauma

A medida em que vivenciamos, nos dias de hoje, a pas­sagem para uma cultura digital- com interfaces padroni­zadas e padronizadoras que exigem que ao martelarmos urn teclado estcjamos sentados a uma mesa como olhar fi­xo num ecra - cria urn trauma ffsico que amplifica o cho­que osicol6gico gerado pelos cada vez mais rapidos ciclos de inven~ao, descnvolvimento e obsolescencia tecnol6gi­ca. Na sua manifesta~ao mais 6bvia, esse trauma ffsico as­sume a forma de dores nas costas e tendinite. Na forma menos evidentc, a actual interface leva-nos a uma conten­~ao generalizada do corpo, 0 qual e for~ado a moldar-se as formas cubicas do computador (monitor e CPU). E quase como se o corpo se tivesse tornado uma extensao do com­putador e nao o contrario. Talvez isso apenas reflicta uma pe~spectiva geral da tecnologia, ja que a vida orgfinica esta a tornar-se realmente uma extensao do computador a mc­dida que os vectorcs emcrgentes da tecnologia do micro­chip apontarn claramente para fontes biol6gicas como uni­ca forma para dar continuidade aQprocesso exponencial deinin!aturiia~ao, para alem dos limites dos materiais tra~-

AJ£!Qnais, . ( CM-0---M ~ -{Wi· DO--(ji, ~'~, rv- ·· vsA ) --

A necessidade de formas alternativas de experiencias na cultura digital e evidente. Em «Time Capsule» o hospedei­ro da mem6ria digital e 0 COqJO humano. Estc facto aponta talvez para uma forma nao menos traumatica, porem, mais livre desta proposi<;ao. 0 corpo com vida necessita de mo­vimentos irrestritos; s6 com a morte o corpo jaz numa cai­xa. A presen~a intrad~rmal de urn microchip revela o -dni: ilia destc conflito a medida que tcntamos desenvolver mo­delos conceptuais que tornam explicitas as implicay6es in­deseja<1· " desse impulso e que, ao mesmo tempo, nos per-

Page 34: José bragança de miranda   da interactividade (crítica da nova mimésis tecnológica)

242 Eduardo Kac

mitam reconciliar aspectos de nossa experiencia ainda considerados antag6nicos, como o armazenamento e o processamento de informa~oes e a liberdade qe movimen­to, ambientes de network e interfaces humidas.

Agradecimentos especiais para o Dr. Paulo Flavio de Macedo Gouvea, Ed Bennett, Mike Rodemer, e a equipa da Casa das Ro­sas.

Tradurao de Irene Hirsch e Solange Lisboa

l :/1 •

'I

l ~

i J t

l 1

t

l

t

i 1 \

SOMBRAS E RESfDUOS A Arte Tele-robotica de Ken Goldberg na Internet

lillian Burt

Ken Goldberg impcle-nos a ac~ao. A arte de Ken Gol­dberg, como tantas outras coisas no tin. do milenio, e urn hfbrido: embora distantes, temos de agir. Se queremos for­mar uma ~omunidade rudimentar de interesses, devemos deambular e buscar. Se queremos alimentar uma comunida­de estabelecida em tomo de urn jardim, temos de plantar as sementes e rcspeitar os nossos vizinhos. Todavia, o que dis­tingue o trabalho de Goldberg dos projectos de arte proces­sual, da Land Art, e ate dos happeninlf\' que tambem inves­tigaram estes assuntos, e que as suas comunidades e as suas ac~oes devcm ocorrer on-line, criando ur.1a tensao entre presen~a e auscncia, visao e ac~ao. Goldberg, urn cspeciali~ta em rob6tica e urn artista, criou dois sites Web que aliam a ciencia (a cficacia dos rob6s e a simplicidadc do seu funcionamcnto) a arte (a actividade que define c in­lerroga a cultura). Afercwy Prqject ( 1996) e urn site arqueo­~,,£!,ico bast· <I·· num enigma retirado de um classico litera-

._ L

' ; ,•