jornalismo e teorias da verdade

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35 Intercom – Revista Brasileira de Ciências da Comunicação São Paulo, v.30, n.1, p. 35-48, jan./jun. 2007 Jornalismo e teorias da verdade Orlando Tambosi * Resumo O artigo analisa as três principais teorias da verdade discutidas pela epistemologia contemporânea, com o objetivo de identificar qual delas melhor se aplica ao Jornalismo. Examinando a teoria da ver- dade como coerência, a teoria pragmática e a teoria da correspon- dência, conclui que esta última é a mais adequada, visto que o Jornalismo, tanto quanto a ciência, postula uma relação entre lin- guagem e realidade. Palavras-chave: Jornalismo; verdade; epistemologia. Resumen El artículo analiza las tres principales teorías de la verdad discuti- das en la epistemología contemporánea, con el objetivo de identi- ficar cual de ellas mejor se aplica al periodismo. Examinando la teoría de la verdad como coherencia, la teoría pragmática y la teo- ría de la correspondencia, concluye que esta ultima es la más ade- cuada, visto que el periodismo, tanto cuanto la ciencia, postula una relación entre lenguaje y realidad. Palabras-clave: periodismo; verdad; epistemología. Abstract This article analyzes the three main theories of the truth argued by the contemporary epistemology, in an attempt to identify which of them better suits journalism. Examining the theory of the truth as coherence, the pragmatic theory and the correspondence theory, it * Professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), autor de O declínio do marxismo e a herança hegeliana, Florianópolis, Editora da UFSC, 1999. Desenvolve pesquisa sobre Epistemologia do Jornalismo. E-mail: [email protected]

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Teorias da verdade

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  • 35Intercom Revista Brasileira de Cincias da ComunicaoSo Paulo, v.30, n.1, p. 35-48, jan./jun. 2007

    Jornalismo e teorias da verdade

    Orlando Tambosi*

    ResumoO artigo analisa as trs principais teorias da verdade discutidas pelaepistemologia contempornea, com o objetivo de identificar qualdelas melhor se aplica ao Jornalismo. Examinando a teoria da ver-dade como coerncia, a teoria pragmtica e a teoria da correspon-dncia, conclui que esta ltima a mais adequada, visto que oJornalismo, tanto quanto a cincia, postula uma relao entre lin-guagem e realidade.Palavras-chave: Jornalismo; verdade; epistemologia.

    ResumenEl artculo analiza las tres principales teoras de la verdad discuti-das en la epistemologa contempornea, con el objetivo de identi-ficar cual de ellas mejor se aplica al periodismo. Examinando lateora de la verdad como coherencia, la teora pragmtica y la teo-ra de la correspondencia, concluye que esta ultima es la ms ade-cuada, visto que el periodismo, tanto cuanto la ciencia, postulauna relacin entre lenguaje y realidad.Palabras-clave: periodismo; verdad; epistemologa.

    AbstractThis article analyzes the three main theories of the truth argued bythe contemporary epistemology, in an attempt to identify which ofthem better suits journalism. Examining the theory of the truth ascoherence, the pragmatic theory and the correspondence theory, it

    * Professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), autor de O declniodo marxismo e a herana hegeliana, Florianpolis, Editora da UFSC, 1999. Desenvolvepesquisa sobre Epistemologia do Jornalismo. E-mail: [email protected]

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    concludes that this latter is better adjusted, since journalism as wellas science claim to hold a relation between language and reality.Keywords: journalism; truth; epistemology.

    No h conhecimento sem verdade, isto , todo conhecimento verdadeiro ou no conhecimento. Assim, no podemossustentar que temos conhecimento do falso (no h fatos fal-sos), embora possamos saber que uma afirmao falsa ou men-tirosa. Por exemplo, se algum se depara com a afirmao de queLuiz das Neves o atual governador de Santa Catarina e acre-dita nisto, no poder afirmar que conhece. Isto significa queverdadeiras ou falsas so as nossas afirmaes, sentenas, crenas,proposies etc. no a realidade, o mundo objetivo , e queafirmaes ou proposies falsas no geram conhecimento1.

    Aqui j se percebe que a verdade no questo pacfica. Hsculos a Filosofia se defronta com vrias teorias, algumas delasno necessariamente prximas, mas tampouco excludentes ouantagnicas. O fato que no existe uma teoria geral e completada verdade. Sendo um dos mais controversos conceitos filosficos,a verdade ora tem sido considerada absoluta, ora relativa, ora ape-nas um ideal a ser alcanado, ora um conceito simplesmente dis-pensvel quando no decretada a sua inexistncia (no hverdade). Trata-se de uma questo relevante no s para a Filoso-fia, mas que se estende aos domnios da teoria do conhecimento,da lgica, da lingstica, das cincias e tambm do Jornalismo.

    No Jornalismo, especificamente, observa-se a tendncia de reduzira verdade a imperativo tico, sem o esforo, por parte dos estudiosos,de enfrentar a questo epistemolgica da verdade, relacionando-a comas teorias compartilhadas pela filosofia e pelas cincias. Transformadaem princpio tico tal como a referem os cdigos deontolgicos ,a verdade jornalstica parece tornar-se, no fundo, apenas um ideal dehonestidade ou credibilidade do reprter e de suas fontes, ou dos

    1 Sobre a relao entre jornalismo e conhecimento, tomo a liberdade de indicar meuartigo Informao e conhecimento no jornalismo, publicado na revista Estudos emjornalismo e mdia, Florianpolis, Insular, v. 2, n. 2, 2. sem. 2005, p. 31-38.

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    prprios media. Ora, se o Jornalismo no trata apenas de opinies oujuzos de valor, mas procura relatar imparcialmente fatos ou aconteci-mentos, no poder escapar a questionamentos epistemolgicos formu-lados tambm na esfera filosfico-cientfica.

    Para elucidar tais questes, o primeiro passo analisar as prin-cipais teorias da verdade e identificar qual ou quais delas melhorse aplicam atividade jornalstica em geral. Identificada a teoriamais apropriada, ser ento o momento de apontar se, quanto aoproblema da verdade, apresenta o Jornalismo algumas caractersti-cas especficas em relao s teorias correntes em outras reas. E,caso a verdade jornalstica seja algo absolutamente diferente, quese mostrem as cartas.

    As teorias da verdade

    Historicamente, trs teorias da verdade assumiram importnciana perspectiva da teoria do conhecimento: a) a da verdade comocorrespondncia (ou conformidade, ou adequao); b) a teoria daverdade como coerncia (ou no-contradio); e c) a teoria pragm-tica da verdade (ou utilidade).

    A teoria correspondentista a mais antiga, tendo sua origemna clebre formulao de Aristteles na Metafsica: dizer do que que no , ou do que no , que , falso, enquanto dizer do que , ou do que no que no , verdadeiro. Verses da teoriada correspondncia foram defendidas por Wittgenstein, Russell,Austin, Searle, entre outros. Apesar das distines, pressupostobsico dessa teoria que a verdade de uma proposio2 consiste emsua relao com o mundo, isto , em sua correspondncia com osfatos ou estados de coisas. Sendo S uma sentena qualquer (ouafirmao, crena, proposio etc.), eis a formulao bsica:

    S verdadeira se e somente se corresponde a um fato.

    De acordo com a teoria da correspondncia, portanto, as afirma-es procuram descrever como so as coisas no mundo, e tais afirma-

    2 Proposies, crenas, sentenas e afirmaes podem todas ser verdadeiras ou falsas.

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    es sero verdadeiras ou falsas em funo de as coisas serem realmen-te como elas dizem que so. Contra essa teoria se levantam algumasobjees, notadamente em relao noo de fato e de correspon-dncia. Em poucas palavras, seu ponto fraco estaria em compararplanos heterogneos, j que postula uma relao entre linguagem erealidade: de um lado, o lingstico, de outro, o no-lingstico.

    A teoria coerentista, defendida por Bradley, Blanshard,Neurath, Rescher, Lehrer, entre outros, entende que a verdadeconsiste em relaes de coerncia num conjunto de crenas. Assim,

    S verdadeira se e somente se coerente com umsistema de proposies ou crenas.

    Diferentemente da teoria da correspondncia, a teoria da coern-cia compara enunciados com enunciados, e no palavra e mundo,proposio e realidade. Ela tende a uma perspectiva relativista: conjun-tos de crenas seriam, no limite, apenas relativos uns aos outros.Outro problema, como observa Vassallo (2003, p. 17), que quemassume a coerncia como nico critrio de verdade forado a con-siderar verdadeiros, do mesmo modo, uma fbula, um relato histricoou as leis cientficas, bastando que a fbula no contenha contradiese que as suas proposies sejam reciprocamente compatveis. Almdisso, dizer simplesmente que uma proposio coerente com outraatesta a fragilidade dessa teoria. Podemos, por exemplo, considerar quea proposio as pessoas de Sagitrio so extrovertidas coerente comas proposies da astrologia, mas isto nada diz a respeito de sua ver-dade, j que no so verdadeiras as proposies astrolgicas, nemtampouco a astrologia pode aspirar ao status de conhecimento.

    Reconhea-se, por fim, que tanto os textos jornalsticos quantoas teorias cientficas devem ser coerentes, mas ambos buscam ne-cessariamente a relao com o real, o mundo, relao que o coeren-tismo dispensa.

    A teoria pragmatista, por sua vez, define a verdade em termosde utilidade, isto , em termos daquilo que desejvel ou temconseqncias teis para aquele que cr na proposio tida comoverdadeira. Em sntese,

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    S verdadeira se til aos nossos fins ou obtm sucesso.

    Defendida por Peirce, James, Dewey e Haack3, a teoria pragm-tica situa a verdade em uma teoria da ao, assumindo que a cren-a verdadeira contribuir para a utilidade e o xito das aes. Ditode outra maneira, as crenas verdadeiras funcionam.

    Haack (2002, p. 140-142) observa que a teoria pragmtica daverdade combina elementos de coerncia e de correspondncia. EmPeirce, a verdade tanto o fim da investigao quanto correspon-dncia com a realidade e, ainda, crena (estvel) satisfatria. EmJames, , alm disso, coerncia com a experincia (verificabilidade),enquanto Dewey acrescenta a essas teses ainda uma outra: verdade o que autoriza a crena a ser denominada conhecimento.

    O problema, em relao teoria pragmtica, que utilidadee sucesso so critrios dbios. Adotado o critrio do sucesso, se-ramos compelidos a admitir que as proposies da doutrina na-zista teriam sido verdadeiras caso o nazismo vencesse a II GuerraMundial. Por ouro lado, o pragmatismo poderia nos levar a reco-nhecer que a proposio a Terra o centro do universo ver-dadeira s porque, durante longo tempo, foi considerada til(VASSALLO, 2003, p. 18).

    Todavia, parece razovel pensar, como prope Nozick (2003),que nosso interesse originrio em relao verdade tenha um fun-damento instrumental. Para escapar aos perigos do mundo e colheras oportunidades que ele oferece, certamente as verdades foram maisteis que a falsidades. Aquilo que precisamos no uma verdadeperfeitamente completa, mas uma crena verdadeira o quanto bastapara oferecer resultados (mais) desejveis quando a seguimos numaao. Nesse sentido, argumenta o filsofo, desejamos ter crenasverdadeiras e nos preocupamos com a verdade porque as crenasverdadeiras so teis a uma vastssima gama de objetivos. Sob esta

    3 Pragmatistas recentes, porm, a exemplo de Richard Rorty, deixam de lado aquesto da verdade - assim como a da objetividade -, em sua ps-filosofiareduzida a gnero de literatura ou crtica literria. A observao da prpriaHaack, no captulo Pragmatismo do Compndio de filosofia organizado por N.Bunnin e E.P. Tsui-James, So Paulo, Loyola, 2002.

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    luz, o nosso interesse pela verdade seria pelo menos na origem instrumental. E conclui Nozick (2003, p. 44-45): em geral, me-lhor agir com base na verdade do que apoiando-se em falsidades.Alcanamos com mais freqncia os nossos objetivos quando ascrenas sobre as quais so fundados so verdadeiras.

    O fato que essas trs teorias tradicionais (a verdade consiste nacorrespondncia entre proposio e realidade; a verdade resultado dacoerncia entre proposies; a natureza da verdade pragmtica) noso antagnicas. Afinal, em todas elas, verdadeiro aquilo que satisfazalguma relao de adequao. Isto significa que a teoria da correspon-dncia, apesar de todas as objees contra ela levantadas, tem se reve-lado a mais resistente historicamente. Nos trs casos, dominaestruturalmente a primeira definio isto , a verdade como corres-pondncia -, que pode muito bem sobreviver relativizada e atenuadatanto no interior de um sistema de perspectiva coerentista quanto nointerior da verdade-utilidade. Pode ela configurar-se como correspon-dncia em relao a certas regras do sistema, como norma ideal (ja-mais perfeitamente realizada), ou ainda como verdade=utilidade,caracterizvel em termos de critrio de escolha entre diversas verdades-correspondncia em antagonismo (DAgostini, 2000, p. 207).

    Verdade e correspondncia

    atividade jornalstica insuficiente a simples coerncia entreproposies ou afirmaes. Tampouco se pode avaliar uma notcia,que o relato de um determinado fato ou acontecimento, peloexclusivo critrio de utilidade, ainda que a informao possa sertil. O Jornalismo se situa no plano linguagem-mundo, discurso-realidade ou seja, no auto-referencial , posio que compar-tilha epistemologicamente com as cincias. Se fosse um ramo daliteratura, bastar-lhe-ia a coerncia entre enunciados. fico bastaa coerncia, mas o Jornalismo no fico. Como seu imperativotico a verdade, que no pode ser um mero ideal, necessariamen-te ele ter que se defrontar com as teorias da verdade e a dacorrespondncia (dos relatos com os fatos) parece ser a mais ade-quada ao campo jornalstico, como veremos mais adiante.

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    Preliminarmente, enfrentemos as objees teoria da correspon-dncia (TC). Justamente por relacionar dois planos heterogneos(palavra-mundo), a TC tem sido criticada por no esclarecer sufici-entemente o que seja fato e correspondncia4 no seu clssicoformato uma afirmao verdadeira se e somente se corresponde aos fatos.

    Como diz Kirkham (2003), as diversas verses da teoria dacorrespondncia so reunidas sob este lema, e isto nos leva apensar que h alguma relao nova, especial e antes desconhecida.Da alguns filsofos desqualificarem a TC como misteriosa. Oproblema que se d palavra correspondncia uma significaomaior do que ela tem. Correspondncia, prossegue Kirkham, uma palavra que funciona apenas como uma cmoda recapitulaode uma teoria na qual no aparece nenhuma daquelas relaesespeciais. Trata-se de uma simples expresso idiomtica, que apropriada para descrever a verdade. No mesmo sentido vai D. W.Hamlyn5, citado pelo prprio Kirkham (2003, p. 195):

    Se algum quiser generalizar isso e dizer quais as condies necessrias esuficientes para que uma assero seja julgada verdadeira, difcil saber oque mais algum poderia dizer alm de que a assero deve corresponderaos fatos. Mas o uso da palavra corresponde aqui no acarreta mais nada.Tudo o que se quer dizer que, sempre que houver uma afirmao verda-deira, existir um fato afirmado por ela e sempre que houver um fatohaver uma afirmao verdadeira possvel que o afirme.

    Ora, precisamos de um verbo para descrever a relao entreafirmaes e fatos quando as afirmaes forem verdadeiras. Apalavra pode ser corresponder, ou adequar-se, ou descrever.Searle (1996, p. 238) corrobora o que dizem Hamlyn e Kirkham:

    Assim como temos necessidade de um termo geral para todas as diferentescaractersticas do mundo que podem tornar verdadeiras as asseres, tam-bm temos necessidade de um termo geral para designar os modos em que

    4 Cf., por exemplo, o verbete Theories of truth, redigido por P. Horwich, emJ. Dancy e E. Sosa (Orgs.), A Companion to Metaphysics , Oxford, Blackwell, 1995,pp. 491-496.5 D. W. Hamlyn, The correspondence theory of truth, Philosophycal Quarterly,n. 12, p. 193-105, 1962.

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    as asseres verdadeiras podem representar acuradamente o modo em queas coisas so no mundo e a expresso corresponde aos fatos somenteuma caracterizao geral desse tipo. Corresponde aos fatos s umaabreviao para a variedade de modos em que as asseres podem repre-sentar corretamente o modo como as coisas so.

    E aqui Searle esboa uma interpretao inovadora, usando emfavor da TC uma teoria minimalista como a teoria da descitao,geralmente brandida contra as verses correspondentistas. Sigamoso raciocnio, que demonstra no serem elas conflitantes. Geralmen-te se afirma que:

    S verdadeira se e somente se p,5

    Como no seguinte exemplo:

    A neve branca verdadeira se e somente se a neve branca.

    Este critrio geralmente chamado de descitacional6 porque afrase entre aspas, esquerda, ocorre direita sem as aspas. Parece algobanal, diz Searle (1996), mas importante notar que 1) a frase setorna verdadeira porque satisfaz uma condio que se encontra foradela, e que 2) podemos especificar, num grande nmero de casos, ascondies que tornam a frase verdadeira simplesmente repetindo-a.

    Necessitamos de um nome para designar todas as condiesque tornam verdadeiras as frases. A palavra fato, segundo Searle(1996, p. 226), evoluiu como termo geral para designar os opera-dores de verdade, e corresponde somente um termo geral paradesignar todas as diversas maneiras em que as frases so verdadeirasem virtude dos fatos. Ora,

    o critrio de verdade como descitao, juntamente com a compreensoapropriada das noes de fato e correspondncia, implica a teoria daverdade como correspondncia porque, se a frase entre aspas na parteesquerda (...) realmente verdadeira, ento esta deve corresponder ao fatoestabelecido na parte direita.

    5 Ou seja: a sentena verdadeira se e somente se corresponde ao que a frase diz.6 Trata-se da Disquotational Theory of Truth, defendida por W. O. Quine, entreoutros. Sua ascendente direta a teoria da redundncia, de F.P. Ramsey, para quemo termo verdadeiro redundante, pois dizer que verdade que p equivale a dizerque p (a propsito, ver Haack, p. 129 e 177 e segs; e Kirkham, p. 436 e segs).

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    Ocorre que muitos autores entre eles Strawson e Davidson rejeitam a prpria noo de fato como entidade no-lingstica, isto, existente no mundo. Fatos, dizem eles, no so mais que sentenasverdadeiras. No haveria, de um lado, a frase verdadeira, e, de outro,o fato. Em outras palavras, os fatos no seriam coisas no mundo,independentes da linguagem, uma vez que para especificar um fatosomos obrigados a enunciar uma afirmao verdadeira.

    Kirkham (2003, p. 199), no entanto, diz que h boas razespara resistir a essa linha de pensamento, j que fatos podem en-trar em relaes causais de uma forma que sentenas verdadeirasno podem. Os fatos so extralingsticos, e no necessriorecorrer a uma noo fortemente metafsica para afirmar isto,como demonstrou Searle (1996, p. 30): qualquer coisa que torneverdadeira uma proposio ou afirmao (ou o que seja) um fato.No se pense, portanto, que fatos so somente os fatos duros oufatos naturais, inalterveis, ou, pelo menos, no alterveis vonta-de. Mas, duros ou moles, os fatos so totalmente independentesda linguagem. No h dvida de que criamos palavras para afir-mar fatos e para dar nome a coisas, mas isso no significa queinventamos os fatos ou as coisas.

    Por isso mesmo h compatibilidade entre o critrio de verda-de como correspondncia e o critrio descitacional. Se, com efeito,fato significa apenas aquilo em virtude do qual uma afirmao verdadeira, ento a a descitao d a forma daquilo que tornauma assero verdadeira simplesmente repetindo a assero. Aindasegundo Searle (1996, p. 236):

    Mas se a assero verdadeira, ento repeti-la exatamente a mesma coisaque afirmar o fato. O critrio de descitao nos diz que a assero O gatoest sobre o tapete verdadeira se e somente se corresponde a um fato.Mas qual o fato? O nico fato a que pode corresponder, se verdadeira, o fato de que o gato est sobre o tapete.

    Ressalte-se que desnecessrio estabelecer qualquer isomorfismoestrutural entre as afirmaes e os fatos, como se as afirmaes fos-sem um pedao de cdula de dinheiro rasgada que se ajusta perfei-tamente ao outro pedao, isto , aos fatos. Como vimos,

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    corresponde aos fatos apenas uma abreviao para a variedade demaneiras com que as asseres podem representar o modo como ascoisas so. Uma afirmao pode at mesmo ser aproximativamenteverdadeira, caso em que a afirmao s aproximativamente corres-ponde aos fatos. Por exemplo, a afirmao de que a Terra dista 93milhes de quilmetros do Sol s aproximativamente verdadeira.

    Verdade-correspondncia no Jornalismo

    A questo da verdade no Jornalismo no tem sido encaradaem termos epistemolgicos. Como vimos, reduzida a compromis-so tico do jornalista, e como tal tratada no cdigo de tica pro-fissional dos jornalistas. Pesquisa realizada por jornalistas (Kovach;Rosenstiel, 2003) americanos com mais de 300 profissionais che-gou seguinte concluso: a primeira obrigao do Jornalismo com a verdade. Mas o que verdade para o jornalista? Os prpriosautores do estudo, reconhecendo que a verdade tambm o pri-meiro e mais confuso princpio, esboam uma resposta que, pelomenos, remete ao campo epistemolgico. Segundo eles, h doistestes da verdade a correspondncia e a coerncia , sendo a co-erncia o teste derradeiro da verdade jornalstica.

    Ora, a verdade como coerncia se aplica bem literatura ou lgica, mas no ao Jornalismo, j que este pressupe a relao lin-guagem-mundo, como j foi dito. Alguns enunciados ou proposi-es podem, de fato, ser logicamente coerentes sem apresentarqualquer correspondncia com o mundo. Pode-se, igualmente,elaborar um discurso literrio que nada tenha a ver com a realida-de objetiva. Mas o Jornalismo deve, necessariamente, reportar fatos e isto implica a TC como teoria da verdade mais adequada.

    Ocorre que o Jornalismo enfrenta uma dificuldade que os ci-entistas, em geral, no enfrentam: a excessiva dependncia das fon-tes. O fato, nesse caso, comporta verses que nem semprecorrespondem verdade. um fato, por exemplo, que dirigentesdo PT disseram que no houve mensalo, mas essa afirmao nocorresponde verdade, conforme evidncias e provas apresentadasna investigao promovida pela Cmara dos Deputados.

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    O Jornalismo est exposto diariamente a afirmaes cuja vera-cidade em geral sequer pode investigar, notadamente na coberturapoltica. Em decorrncia, facilmente se pode confundir afirmaes(das fontes) com fatos. Confuso tpica, alis, de certas perspectivasrelativistas em relao ao conhecimento. Cite-se como exemplo ofilsofo da cincia Grard Fourez7 (citado por SOKAL;BRICMONT, 1999, p. 105) que assim define fato:

    O que geralmente se chama fato uma interpretao de uma situaoque ningum, pelo menos no momento, quer trazer discusso. (...)Exemplo: as afirmaes o computador est sobre a mesa e se a gua fervida, evapora so consideradas factuais no sentido de que ningumdeseja contest-las por ora. Trata-se de proposies de interpretaestericas que ningum questiona. Afirmar que uma proposio expressaum fato (quer dizer, tem o status de proposio emprica ou factual) sustentar que dificilmente existe qualquer controvrsia acerca desta in-terpretao no momento em que se est falando. Mas um fato pode serquestionado. Exemplo: durante sculos foi considerado fato que o Sol girava emtorno da Terra cada dia. O surgimento de outra teoria, como a da rotao diriada Terra, acarretou a substituio do fato acima citado por outro: a Terra giraem torno de seu eixo cada dia. (destaque meu).

    Eis a demonstrao de que Fourez confunde precisamenteafirmaes e fatos. Jamais foi fato que o Sol girasse em torno daTerra. O que se tinha antes era uma concepo errnea, que foisubstituda por outra, correta, verdadeira. Afirmaes podem serfalsas, mas no os fatos. Assim, se levssemos ao p da letra a afir-mao do filsofo belga de que um fato foi substitudo por outro,seramos obrigados a dizer que a Terra passou a girar em torno doSol s depois de Coprnico!

    bem verdade que o Jornalismo, muitas vezes, lida com fatosque so apenas textuais. Boa parte dos fatos jornalsticos emergemenos dos acontecimentos que dos discursos, e, com freqncia,comeam por ser fatos de linguagem. Como lembra Cornu(1994, p. 352), no h garantia alguma de que a multiplicao dos

    7 G. Fourez, A construo das cincias, So Paulo, Unesp, 1995.

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    discursos e a sua confrontao, maneira da experimentao cien-tfica, permitam aceder mnima certeza8.

    Com efeito, no h garantia de que as afirmaes (ou discur-sos) sejam verdadeiras a priori, mas isto no impede que o jorna-lista alcance a verdade, por mais aproximativa que seja. E, por maisproblemtico que seja estabelecer qual a melhor apreenso e in-terpretao de um fato, deve ser de algum modo possvel estabele-cer que algumas dentre as apreenses e interpretaes concorrentesso decididamente falsas (GOMES, 1997, p. 64). Um mesmo fatopode ser relatado (afirmado) de diferentes maneiras, algumas atincorretas ou falsas. As afirmaes ou relatos verdadeiros corres-pondero a um fato, porm no a um fato diferente, j que aaplicao das afirmaes verdadeiras aos fatos no biunvoca(Nozick, 2003, p. 316). Portanto, nem todos os discursos estoem p de igualdade.

    O jornalista, assim como o leitor, freqentemente s temcondio de saber se o que disse um entrevistado corresponde aosfatos muito tempo depois da entrevista, principalmente quando setrata de denncias, que demandam investigaes ulteriores. Obvia-mente, as denncias sero verdadeiras se corresponderem aos fatos;falsas, se no corresponderem (nada a ver com os inexistentes fa-tos falsos9). Recordemos que qualquer coisa que torne uma afir-mao verdadeira um fato, e que o fato sempre extralingstico,isto , est fora da linguagem. Assim, o fato de que no existemcavalos com trs cabeas um fato do mesmo modo que o fato deque o gato est sobre o tapete.

    Um bom exemplo da aplicabilidade da teoria da correspondn-cia ao Jornalismo (sem isomorfismo estrutural) so as dennciasformuladas pelo ex-deputado Roberto Jefferson em entrevista ao

    8 Vale observar, no entanto, que o jornalismo est longe de buscar a certezapretendida pelas cincias. Tampouco o texto jornalstico pode ser reduzido adiscurso, como se tudo se resumisse a uma questo de hermenutica.9 Ora, se fato justamente o que torna uma proposio ou afirmao verdadeira,no h fatos falsos, como supe Lorenzo Gomis em seu artigo Os interessadosproduzem e fornecem os fatos, in Revista Estudos em jornalismo e mdia,Florianpolis, Insular, vol 1, n 1, I semestre/2004, pp. 102-117. Podem existir,sim, verses falsas ou incorretas de um fato, como j foi dito.

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    jornal Folha de S. Paulo em 6 de junho de 2005. Passo a passo, asafirmaes do ento deputado foram confirmadas factualmente,desde a existncia do mensalo dinheiro pago aos deputadospara que votassem a favor do governo , at as ramificaes comsetores bancrios, que culminaram no que ficou conhecido comovalerioduto10, fatos que ocasionaram o afastamento de ministrosde Estado e a cassao de vrios deputados. As denncias geraramainda uma ao, por formao de quadrilha, promovida pelaProcuradoria Geral da Repblica junto ao Supremo Tribunal Fede-ral, envolvendo ex-ministros, dirigentes de partido e outras figurasimportantes do governo Luiz Incio Lula da Silva.

    Como concluso, pode-se afirmar que a teoria da verdade comocorrespondncia (ou adequao, ou acordo), como temos insistidoaqui, a teoria que melhor se aplica ao Jornalismo, que, pelo menosnesse sentido, est num campo epistemolgico prximo ao das cin-cias, justamente por relacionar, tanto quanto estas, linguagem erealidade. A nica diferena que o Jornalismo trata mais da reali-dade social que da realidade natural. Mas isto tema para outroescrito, que demanda um estudo sobre o conceito de objetividade.

    Referncias

    CORNU, D. Jornalismo e verdade. Lisboa: Instituto Piaget, 1994

    DA COSTA, N. C. A. O conhecimento cientfico. So Paulo: Discurso Edito-rial, 1999.

    DAGOSTINI, F. Disavventure della verit. Torino: Einaudi, 2000.

    GOMES, W. Verdade e perspectiva (A questo da verdade e o fato jornalstico),Textos, n. 29, Salvador, UFBA, 1997, p. 63-83.

    10 Conferir, a propsito, os 100 fatos relacionados pela revista Veja, edio on-line, 06 de agosto de 2005 (http://veja.abril.com.br/100805/p_078.html,acessado em 20 de maio de 2006), bem como os arquivos da Folha de S. Paulo,particularmente aps a entrevista de Roberto Jefferson, realizada pela jornalistaRenata Lo Prete.

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