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Cultura Cultura Jornal Angolano de Artes e Letras LETRAS - 6 50 ANOS DE ANTÓNIO OLE Com a exposição “50 Anos Vivendo, Criando” António Ole apresenta o trabalho de meio século em prol das belas artes. ARTES - 9 OURO DO LOUVRE PARA ANGOLA A artista benguelense Zélia Ferreira foi distin- guida com o Prémio de Ouro, da 21.ª Art Shopping, no célebre Carrousel du Louvre, pelo seu trabalho “Sorrisos”. ESCALADA AO MORRO DO MOCO O cubano Amilkar Flores subiu ao Morro do Moço e traz gravada na memória cada pegada para chegar até ao seu extremo, que as evoca, com um humilde suspiro. ECO DE ANGOLA - 3 LETRAS - 6 D 6 PRÉMIO “SAGRADA ESPERANÇA 2016” 16 S ag r r al de or so ag inár ruíd ESPERANÇA 2016” ada al de or sobr e inár i - onstruídos ECO DE ANGOLA - 3 ECO DE ANGOLA - 3 NAVEGAÇÕES - 16 NAVEGAÇÕES - 16 om um humilde suspir c a chegar a par o e tr M O cubano A MORRO DO MOCO ESCALADA AO . o om um humilde suspir , que as ev emo tr x é ao seu e t a chegar a ia cada pegada ada na memór v a r az g o e tr es subiu ao M lor ar F milk O cubano A MORRO DO MOCO ESCALADA AO oca, , que as ev ia cada pegada o do r or es subiu ao M . isos r or abalho “S tr seu ar e C élebr , no c Shopping émio de O r om o P guida c élia F tista benguelense Z A ar OUVRE PARA ANGOLA OURO DO L NAVEGAÇÕES - 16 , pelo e ouvr ousel du L r ar t r , da 21.ª A o ur émio de O - oi distin a f eir r er élia F OUVRE PARA ANGOLA NAVEGAÇÕES - 16 OUVRE PARA ANGOLA 7 a 20 de Novembro de 2017 | Nº 147 | Ano VI Director: José Luís Mendonça Kz 50,00 UNIDOS POR UMA ANGOLA DEMOCRÁTICA, UNA E INDIVISÍVEL

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CulturaCulturaJornal Angolano de Artes e Letras

LETRAS - 6

50 ANOS DE ANTÓNIO OLECom a exposição “50 Anos Vivendo, Criando” António Ole apresenta o trabalho de meio século em prol das belas artes.

ARTES - 9

OURO DO LOUVRE PARA ANGOLAA artista benguelense Zélia Ferreira foi distin-guida com o Prémio de Ouro, da 21.ª Art Shopping, no célebre Carrousel du Louvre, pelo seu trabalho “Sorrisos”.

NAVEGAÇÕES - 16

ESCALADA AO MORRO DO MOCO

O cubano Amilkar Flores subiu ao Morro do Moço e traz gravada na memória cada pegada para chegar até ao seu extremo, que as evoca, com um humilde suspiro.

ECO DE ANGOLA - 3

LETRAS - 6

D 6

PRÉMIO “SAGRADA ESPERANÇA 2016”

16 Sagrada ral de or sobr

aginárruídos

ESPERANÇA 2016”ada

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ECO DE ANGOLA - 3

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NAVEGAÇÕES - 16

NAVEGAÇÕES - 16

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NAVEGAÇÕES - 16

OUVRE PARA ANGOLA

7 a 20 de Novembro de 2017 | Nº 147 | Ano VI • Director: José Luís Mendonça • Kz 50,00UNIDOS POR UMA

ANGOLA DEMOCRÁTICA,UNA E INDIVISÍVEL

2 | ARTE POÉTICA 7 a 20 de Novembro de 2017 | Cultura

Propriedade

Sede: Rua Rainha Ginga, 12-26 | Caixa Postal 1312 - Luanda Redacção 222 02 01 74 |Telefone geral (PBX): 222 333 344Fax: 222 336 073 | Telegramas: ProangolaE-mail: [email protected]

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O jornal Cultura aceita para publicação artigos literário-científicos e re-censões bibliográficas. Os manuscritos apresentados devem ser originais.Todos os autores que apresentarem os seus artigos para publicação aojornal Cultura assumem o compromisso de não apresentar esses mesmosartigos a outros órgãos. Após análise do Conselho Editorial, as contribui-ções serão avaliadas e, em caso de não publicação, os pareceres serãocomunicados aos autores.

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Conselho de Administração

António José Ribeiro

(presidente)

Administradores Executivos

Victor Manuel Branco Silva Carvalho

Eduardo João Francisco Minvu

Mateus Francisco João dos Santos Júnior

Catarina Vieira Dias da Cunha

António Ferreira Gonçalves

Carlos Alberto da Costa Faro Molares D’Abril

Administradores Não Executivos

Olímpio de Sousa e Silva

Engrácia Manuela Francisco Bernardo

PERGUNTAS DE UM TRABALHADOR QUE LÊQuem construiu a Tebas de sete portas?Nos livros estão nomes de reis.Arrastaram eles os blocos de pedra?E a Babilónia várias vezes destruída –quem a reconstruiu tantas vezes? Em que casasda Lima dourada moravam os construtores?Para onde foram os pedreiros,na noite em que a Muralha da China ficou pronta?A grande Roma está cheia de arcos do triunfo.Quem os ergueu? Sobre quemtriunfaram os Césares? A decantada Bizânciotinha somente palácios para os seus habitantes?Mesmo na lendária Atlântidaos que se afogavam gritaram pelos seus escravosna noite em que o mar os tragou. O jovem Alexandre conquistou a Índia.Sozinho?César bateu os gauleses.Não levava sequer um cozinheiro?Filipe da Espanha chorou, quando a sua Armadanaufragou. Ninguém mais chorou?Frederico II venceu a Guerra dos Sete Anos.Quem venceu além dele? Cada página uma vitória.Quem cozinhava o banquete?A cada dez anos um grande homem.Quem pagava a conta? Tantas histórias.Tantas questões.

CulturaJornal Angolano de Artes e Letras

Nº 147/Ano VI/ 7 a 20 de Novembro de 2017E-mail: [email protected]: www.jornalcultura.sapo.aoTelefone e Fax: 222 01 82 84

CONSELHO EDITORIAL

Director e Editor-chefe:José Luís MendonçaEditor:Adriano de MeloSecretária:Ilda RosaFotografia:Paulino Damião (Cinquenta)Arte e Paginação: Jorge de Sousa,Alberto Bumba, Sócrates SimónsEdição online: Adão de Sousa

Colaboram neste número:

Angola: Albino Carlos, António Fonseca, Fragata deMorais, Mário Pereira

Cuba: Amilkar Féria Flores

Alemanha: Bertolt Brecht

FONTES DE INFORMAÇÃO GLOBAL:

AFREAKAAFRICULTURES, Portal e revista de referênciaAGULHACORREIO DA UNESCOMODO DE USAR & CO. OBVIOUS MAGAZINE

POEMA DE BERTOLT BRECHT

Qua

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AMILKAR FERIA FLORES1. Em mais de uma oportunidade,pretendi colocar no meu currículo aquantidade de montanhas que subina minha vida. Mas esta pretensão,também, pareceu-me ridícula, toda avez que danificaria um aconteci-mento de indecifrável transcendên-cia espiritual. Em todo o caso, deve-ria esclarecer, ao menos para mimmesmo, que subir uma montanhanão é propriamente um desporto,em termos estritamente técnicos, talcomo um evento cultural, tão-poucome atreveria a qualificá-lo mera-mente de turismo.Em Cuba, subi todas as montanhasque pude, tentando com isso escalaras que imaginei; inclusive o monteOlimpo, no vizinho planeta Marte.Muitas vezes, para acalmar essa es-tranha propensão às alturas, chegueia pensar que um corpo celeste, comoa Terra, pudesse ser, em si mesmo,uma montanha orbitando ao redordo Sol. Mas nunca foi suficiente. Sem-pre ficam alguns altos que rompem anorma da superfície, aqueles que fi-cam, de modo enganosamente insig-nificante, mais perto de outros cor-pos celestes.Já antes de viajar para Angola co-nhecia a existência de um lugar proe-minente chamado Morro do Moco, umsítio que ultrapassava em altura tudoo que tinha subido com antecedênciana minha humilde experiência demontanhista amador. Uma vez na Áfri-ca, tinha-o tão localizado no mapa e naminha mente, que tivesse resultadoquase uma aberração sair de Angolasem me confrontar fisicamente comuma ideia tão elevada. Somente sabiaque o morro vivia sua imponente efresca monumentalidade na provínciado Huambo, nas proximidades da lo-calidade do Usoke, fronteira com Ben-guela, e que a sua altitude se elevavaaté os 2.620 metros sobre o nível domar. Por sorte, para os impacientes-neurónios de uma espera que já dura-va três anos, a minha noiva Marcela seconverteu na melhor cúmplice de umpropósito que passou a ser comum.Todo esse amontoado de energiamental, que atraía a possibilidade denos aproximar do Sol sem que derre-tesse a cera de nossas expectativas,passou por uma interminável fila depropostas a amigos, para visitar esseabrupto e enigmático paradigma daorografia africana. Infelizmente, a ini-ciativa não rendeu fruto entre as deze-nas de convidados, mas não deixámosde plantar a ideia.2. Gretel e Edulo, realizadora audio-visual e engenheiro, respectivamente,disseram que sim, com uma prontidão

tão assombrosa, que Marcela e eu nãopodíamos acreditar na indecisão dosnossos amigos. Logo,presumimos queandassem aqueles dois atrás do mes-mo objectivo há muito tempo. Depoisde tanto procurar sem êxito, era lógicover aquilo com certa suspeita, mas, nofim do nosso assombro, não nos res-tou senão aceitá-lo: tínhamos compa-nheiros de viagem. Encontramo-noscom eles em Benguela, dois dias antesda escalada, de onde viajamos até asimediações do Huambo no todo-o-ter-reno do Edulo, o qual se mostrou serum experiente condutor. No dia se-guinte, partimos para a base do morropor caminhos de difícil acesso e sobuma tempestuosa chuva, que parecianos advertir dos rigores de nosso ob-jectivo. Quando chegamos à aldeia doCadjonde, o fenómeno climático per-sistia. Os vizinhos explicaram que achuva era uma residente habitual du-rante esta estação, de modo que nosacostumamos rapidamente à húmidacircunstância. Com a maior imediatezpossível, fomos conduzidos perante oSoba local, a quem Edulo Batalha en-tregou uns presentes de cortesia (vi-nho, sabão, fósforos, sal e certa quanti-dade de dinheiro). Segundo a tradição,o Soba deve autorizar e dar os seusbons augúrios para que a incursãocorra da melhor maneira, ao mesmotempo que atribuía um guia para faci-litar as complexidades da escalada.

Para nossa surpresa, muito boa, porcerto, muito poucos residentes da al-deia falavam o português com fluidez.Só alguns jovens, que tinham estadotemporalmente fora do restringidoâmbito rural, expressavam-se no idio-ma oficial do país; o resto, principal-mente os mais velhos, falavam umavariante regional do Umbundo, umformoso idioma que se aferra à vidanestes compartimentados lugares. Pe-rante a chuva impetuosa, e por suges-tão de nossos anfitriões, não restououtra alternativa senão esperar, emtendas de campanha, até ao dia se-guinte, para subir. Marcela e eu, noapertado recinto de nylon que nos fa-cilitaram Gretel e Edulo, caímos naconta de nossa improvisada experiên-cia, pois nossos companheiros de via-gem nos proveram de todos os recur-sos para atacar o acto poético que es-távamos vivendo.3. A noite de 31 de Dezembro foiuma delirante prova de resistência. Ofrio e onevoeiro, que se filtravam pelasparedes e o chão da tenda, localizadano campo de futebol da aldeia, torna-ram quase impossível que pudésse-mos dormir. Segundo o nosso guia,por ordem do Soba, deveríamos partirpor voltadas quatro da manhã do pri-meiro dia do ano; mas a nossa bússolanão apareceu até as sete em ponto. Lo-go depois de um frugal café da manhã,apenas um sorvo de café e umas colhe-

radas de aveia, partimos. O guia se em-penhava uma e outra vez em nos con-duzir até o “Morro Pequeno”, de 2.400metros. Com igual insistência, e quasecomo se não escutasse suas palavras,eu lhe repetia que queríamos ir ao“Grande”, ao verdadeiro. Semelhantefraude, depois de tanto tempo de es-pera, não valiam duzentos metros me-nos. Subitamente, o guia chamou ou-tro moço, chamado Simão, para quenos conduzisse até o morro verdadei-ro. Com diligente investidura, “o falsoguia” se despojou de seu casaco, capa,cachecol e botas de água, para entre-gá-los formalmente ao outro. Vendoaquele trespasse de poderes, me gelouo sangue, pois o único que levava emcima era um suéter, não muito denso, eum gorro de fio de lã ajustado à cabe-ça. Marcela estava outro tanto despro-vida, e ambos calçávamos sapatos na-da adequados para a epopeia vertical,molhados desde o dia anterior. Logodepois de caminhar uns quarenta mi-nutos, até onde começava a autênticaascensão, já não sentia que estivessetão ensopado como tinha amanheci-do. Como saídos do nada, dois meni-nos de onze ou doze anos começarama nos acompanhar com a destreza decabritos montanheses. Simão os inter-pelou em seu idioma, ao que eles res-ponderam, ao que parecia, com rápidaeloquência, convertendo-se em nos-sas escoltas inseparáveis. O guia nos

ESCALADA AO MORRO DO MOCOUM HUMILDE SUSPIRO

ECO DE ANGOLA | 3Cultura | 7 a 20 de Novembro de 2017

Morro Moco

4 |ECO DE ANGOLA 7 a 20 de Novembro de 2017 | Cultura

mostrava a direcção em que ficava oMoco, mas ali só havia nuvens. Sóquando estávamos na metade da en-costa, durante o “síndrome da blasfé-mia”, no que te jura que nunca mais temeterás em semelhante apuro, podia-se apreciar a completa magnitude dotopo durante breves intervalos. 4. Após muito tempo de uma fria ebrumosa quietude, em que somenteescutava os golpes agitados do meucoração e o roçar dos nossos pés con-tra a erva molhada, pois tínhamos per-furado uma nuvem desde a base, che-

gámos ao ponto em que já não haviamais que subir. Estávamos exaustos.No pico se erigia uma pequena placametálica, fixada no extremo de um tu-bo, com a inscrição: “IGREJA Adv. 7:DIA // CENTRAL- BENGUELA //25/09-2016”. Do outro lado havia ou-tra, mais baixa, em que já não podialer-se nada. O pequeno espaço da cús-pide estava cheio de comestíveis derefugos, bolsas e garrafas plásticas,restos de comida e rastos de fogueiras.É óbvio que nem todos rendem igualculto ao benemérito Moco, ou, tentan-

do vê-lo de um ângulo antropológico,seria esse o modo mais sublime comooutros visitantes manifestaram a suasatisfação de ter chegado ao extremovertical de Angola. Todos nos disper-samos, possivelmente querendo en-contrar o melhor sítio onde registar,individualmente, o mais amplo espec-tro daquela calma cósmica. Em silên-cio, os meninos perambulavam de umlado para o outro, brincando seria-mente, para os seus espíritos, com aeterna solenidade daquela plataformasuspensa nas nuvens. Talvez fossem

eles, em seu ingénuo desconhecimen-to, ou em sua infinita sabedoria, quemmelhor conectados estavam com esteâmbito, que para nada lhes resultavadesconhecido. Simão, que nalgum mo-mento deve ter passado pela mesmaformação dos pequenos, centrava-semais na sua encomenda, observandodistraidamente a aberta configuraçãodo grupo. Depravado do esforço físico,nem minha respiração sentia: apenaso leve assobio do vento, peneirado en-tre as folhas e ramos dos arbustos.5. Há um refrão que diz: “Para baixo,todos os santos ajudam”, algo quequestionas criticamente quando estasdescendo uma montanha. É provávelque os santos ajudem, de tal modo quea leveza do corpo o interpreta de outramaneira. Categoricamente, assevera-ria que descer uma montanha é tãocomplicado como subi-la. Logo depoisde sair das vísceras da nuvem, costaabaixo, os meninos subiam e baixa-vam ao nosso redor como anjos guar-diães, até que se perderam entre abruma de uma névoa que começou adificultar a descida. Apenas escutáva-mos as suas risadas e chamados, lon-ge, lá em baixo. Para nós, os tropeçõese escorregadelas estavam na ordemdo dia na escarpada encosta. Emboravoltando sobre as próprias pegadas, oregresso é um caminho diferente,acreditem. Possivelmente pelo entu-siasmo de alcançar a cúspide, quasenunca se calcula o que se esbanja parachegar até ela; unicamente se constataquando se está de volta. Apesar disso,Gretel Marín tirava, a intervalos, a suaCanon para fazer fotos. Com a cautelaque exigia a sofisticadamáquina,apontava aqui, acolá, clicava, e a guar-dava rapidamente no estojo. O verdeintenso e húmido das ervas se esten-dia pelas ladeiras. Era impossível nãodeter-se a contemplar a relação de co-res da montanha e o seu contraste comos cinzas do céu. Tínhamos os dedos eas mãos enregeladas, e resultava mui-to complicado realizar qualquer ope-ração manual, desde subir um zipper,até agarrar-se a um ramo. Ao chegaraté uma lavra, a pouco mais da metadede caminho para a aldeia, os meninostinham assado espigas de milho paranós. Ninguém pôde imaginar o imen-samente reparador que isto resultapara alguém que acaba de passar poruma experiência tão extenuante.6. Outras vezes me aconteceu, aopassar por uma experiência literal-mente tão elevada, que as suas reper-cussões, sem contemplar as osteo-musculares, começassem a destilar nomomento em que chego a casa, des-canso, e acordo no dia seguinte. Desdeaí em diante, há pequenas mudançasque, com o tempo, terminam por ope-rar modificações substanciais na per-cepção das coisas. Não imagino quepudesse ter ganho a montanha com anossa presença. Para ela, talvez, fomosum pensamento mais, desses que pas-sam fugazmente pela cabeça. Em tro-ca, nós trazemos gravada na memóriacada pegada para chegar até ao seu ex-tremo, de onde emitir, cada vez que aevocamos, um humilde suspiro.

Amilkar e esposa

Amilkar com meninos do Huambo

1. A importância e a projecção de umlivro são sempre determinadas peloseu objecto, ou aspecto representati-vo da vida. Um livro só é um bom livroquando traz para a praça pública umproblema que preocupa de modo re-levante o ser humano e a sociedadeem que vive.O livro é importante, é útil, quandoobriga o leitor a pensar, a reflectir.Quer dizer que um bom livro, ao trazerà liça, ao abordar um problema can-dente da Humanidade, força necessa-riamente o leitor a dar uma espécie decontinuidade mental ao seu objecto.Seja esse livro um romance, um en-saio, ou um texto das ciências exactas,como a Matemática.O livro de Miguel Júnior, “A Guerra naÁfrica Austral – Análise da EstratégiaTotal Nacional da África do Sul, 1948-1994” possui esse desígnio inspirador,é um livro aberto que força o leitor a ircom ele para além dele, a retirar ilaçõescapazes de exigir da mente do leitor umnovo ensaio sobre o tema abordado.Ao ler esta obra, o leitor sente-seviajar no tempo da História mais re-mota e mais recente desta parte aus-tral de África. É impressionante pas-sear no tempo, assistir à chegada doseuropeus ao Cabo da Boa Esperança,ficar horrorizado com as guerras san-grentas entre as grandes potênciasmarítimas da era Medieval e Moderna,como Portugal, a Inglaterra, a Holandae a Alemanha, e a defesa acérrima dalegitimidade territorial dos africanos,menos equipados tecnologicamente.De 1948 até 1994, a África do Sulfoi-se moldando enquanto nação, combase em três pressupostos: a ideolo-gia, o medo e a violência. Este últimopressuposto degeneraria, num perfei-to síndrome da violência compulsiva,doença-matriz do sistema colonial. 2. O que é que extraímos dos confli-tos que grassaram e grassam na Áfri-ca Austral e que é válido para o Mun-do inteiro? A actual guerra na RDC, com as in-tervenções de guerrilhas escudadasnas fronteiras com alguns países limí-trofes, pode esclarecer as razões dacrónica indigência dos povos africa-nos desta região do continente, desdeo chamado Encontro de Civilizações,iniciado no século XV. Essas razões an-coram no estado de dependência eco-nómica do Mundo Ocidental em rela-ção às matérias-primas raras existen-tes na África Austral. Hoje em dia, já

não existem economias parcelares,continentais, nacionais. Mesmo o so-nho kadafiano da União Africana coma sua moeda única levá-lo-ia à destrui-ção física e à instauração do caos na Lí-bia. Nós continuamos a viver num con-tinente, onde a visão do Europeu ain-da é a mesma do tempo dos romanos,quando o senador romano Catão, o Ve-lho, no século II a.C., terminava sem-pre, reiteradamente, os seus discursosno Senado latino, com o grito de guer-ra “Delenda Carthago!” Ou quandoCleópatra foi sacrificada porque Romaprecisava do trigo que crescia às mar-gens do rio Nilo para fazer pão para ossoldados e os populi de Roma.Tenho defendido que não foi o Pla-no Marshall, o único instrumento dereconstrução da Europa no pós-guer-ra. Foram, essencialmente, as colóniasque os estados coloniais europeus fa-ziam questão de manter sob sua tutelaefectiva e que lhes forneciam riquezaquase a custo zero. 3.Outro aspecto que há que reter é avisão eurocêntrica do Mundo, que ca-racteriza os dirigentes e as forças polí-ticas do Ocidente. Há muito que se sa-bia que o regime bóer sul-africanooprimia com base na raça os africanos.Porém, só em 1973, as Nações Unidascondenaram o Apartheid como crimecontra a Humanidade. Mesmo assim,se, em 1945, os Aliados intervieramdirectamente na Europa e na Ásia paraacabar com outro crime conta a huma-nidade, o Nazismo, como é que foramimpotentes para fazer o mesmo naÁfrica do Sul? Tratou-se de uma apa-rente inacção conjuntural internacio-nal, e chamamos de aparente inacção,pois, por detrás, havia até cooperaçãomilitar com o Apartheid, senão esteregime nunca adquiriria os famigera-dos Mirage, nem a potente artilhariareactiva Kentron que tantos estragosfez no Cunene e no Kuito Kuanavale.Nem teria, como refere o livro de Mi-guel Júnior, no capítulo As DoutrinasEstrategicas, obtido capacidade de dis-suasao. Ora leiamos: “Para conter apossibilidade de um ataque contra aRepublica da Africa do Sul por forcasconvencionais, o brigadeiro-general D.J. Mortimer, das Forcas de Defesa, fezconsideracoes criticas no artigo Con-ventional Deterrence with Specific Re-ference to the RSA (Dissuasao Conven-cional com Referencia Especifica paraa RSA) sobre o ponto em analise e des-tacou que a «dissuasao e, de facto, uni-camente possivel se as nacoes pos-suem armas nucleares». Depois daOperacao Savannah – longos meses de

incursao sul-africana de 1975 e 1976em Angola, que colapsou num caos totalmesmo antes da retirada portuguesa –terminou ignominiosamente quando apequena forca de intervencao sul-afri-cana se retirou. Um resultado dessabreve campanha foi a aceleracao paraaquisicao de armas nucleares. F. W. de Klerk fez, finalmente, umadeclaracao perante o Parlamento sul-africano nos termos que se seguem: «Em certa fase, (a Africa do Sul)

MIGUEL JÚNIORA GUERRA NA ÁFRICA AUSTRAL

JOSÉ LUÍS MENDONÇA

Miguel Junior

ANÁLISE DA ESTRATÉGIA DA ÁFRICA DO SUL 1948-1994

LETRAS | 5Cultura | 7 a 20 de Novembro de 2017

desenvolveu, de facto, uma capacida-de limitada de dissuasao nuclear. (...) Foi a primeira vez que, num tal am-biente de guerra, esteve previsto oemprego de armas nucleares de «ca-pacidade de dissuasao limitada» e foia primeira vez que no continenteafricano se colocou «enfase na dis-suasao» nuclear.”4.Como escreve Miguel Júnior, “Esteestudo implicou também perceber oimpacto da guerra do ponto de vistapolítico, económico, social, cultural noseio da sociedade sul-africana, já que acompreensão de uma guerra trans-cende os campos de batalha.”Nestaobra, emos ainda que “Magnus Malan,no seu livro autobiografico – My lifewith the SA Defence Force – enfatizou: «o Governo acedeu ao meu pedido

para mudar o perfil de defensivo paraproactivo, como era do interesse nacio-nal aprovar accoes proactivas paramanter a seguranca nacional. Esta mu-danca – (explica Magnus Malan) – parauma postura proactiva foi uma das ra-zoes por que nenhuma ruina de guerrae encontrada na Africa do Sul.” Esta ob-servação narcisista de Malan é, porémdesmentida por Sampie Terreblanche:“Apesar da nossa transição para umademocracia inclusiva, velhas formasde desigualdade foram perpetuadas, ealgumas delas consolidadas muitomais profundamente do que antes.”As ruínas de guerra nem sempre es-tão nos buracos de balas das paredesdas cidades, como nós temos aqui nacidade do Kuito. Há ruínas mais pene-trantes na forma da pobreza e da indi-gência humana. Que podem fazer cairtodo o edifício político-social aparen-

temente sólido das democracias.A prová-lo está o massacre de Mari-kana, na África do Sul, em Agosto de2012, onde 34 mineiros em greve forammetralhados pela polícia, um destaca-mento composto de polícias brancos,mas de polícias maioritariamente ne-gros. Acabado o Apartheid, vencido oColonialismo, aparece à tona a pura es-sência do Estado e as tensões entre li-berdade, democracia e poder. Assim, to-mamos de empréstimo a tese de MaxWeber, quando define que "um Estado é

uma comunidade humana que se atri-bui (com êxito) o monopólio legítimo daviolência física, nos limites de um terri-tório definido". Aqui, já não vemos o co-lono banco e o africano negro, mas o Es-tado moderno na sua essência exercen-do o direito de repressão armada, para asua própria defesa. Este postulado daviolência legítima do Estado não seráum sintoma, um resquício sobreviventeda estratégia de defesa (talvez não já to-tal, mas ainda nacional) dos sucedâneosboers do poder branco na África do Sul?

Teve lugar, no passado dia 1 de No-vembro, no Memorial Antonio Agosti-nho Neto, em Luanda, a cerimonia deoutorga do Premio Sagrada Esperanca,edicao 2016. O premio literario Sagrada Esperancae uma promocao do Instituto Nacionaldas Industrias Culturais e da FundacaoDr. Antonio Agostinho Neto em parceriacom o Banco Caixa Geral Angola que pa-trocina a iniciativa com o compromissode fomentar a criacao e divulgacao daarte angolana de forma sustentavel eagregadora de valor para a sociedade. Ohistoriador Alberto Oliveira Pinto ven-ceu o premio literario Sagrada Espe-ranca 2016 com o ensaio “Imaginariosda Historia Cultural de Angola”, um textoinedito que aborda as preocupacoes doautor sobre a chamada historia cultural(ou das representacoes ou dos imagi-narios), vista como um conjunto de sig-nificados e simbolos construidos peloshomens para explicar o mundo. Alberto Oliveira Pinto foi escolhidoentre trinta candidatos e e distinguidopela segunda vez com o premio, depoisde ter sido galardoado em 1998 com oromance Mazanga.

PRÉMIO SAGRADA ESPERANÇAENTREGUE DIA 1 DE NOVEMBRO

Míssil nuclear

Soldados sul-africanos retirando-se de Angola em 1975

Secretária de Estado Maria da Piedade entrega o Prémio a Oliveira Pinto

6 | LETRAS 7 a 20 de Novembro de 2017 | Cultura

ANTÓNIO FONSECA“Imaginários da História Culturalde Angola”, de Alberto de Oliveira Pin-to, Prémio Sagrada Esperança 2016,reparte-se por um conjunto de abor-dagens, um conjunto de textos quepercorrem a história do esclavagismoe as influências angolanas para lá doAtlântico, recuperadas para a literatu-ra, com incidência no que o autor de-signa como “imaginários românticos”,assim como as inequívocas influên-cias brasileiras na História de Angola ena sua literatura, desde o romanceprecursor Scenas de África, de PedroFélix Machado, a Luandino Vieira, cu-jas influências de Guimarães Rosa sãoevidentes, passando por outras in-fluências e outros autores. Esta obra percorre ainda ciclos dahistória do Kongo, a que se associa aenigmática e problemática figura deLuís Lopes Sequeira, associado à bata-lha de Mpungu-a-Ndongo, à campa-nha do Libolo e – a mais referenciada –à célebre Batalha de Ambwila, de1665, de que no final fica como factohistórico a decapitação do Rei do Kon-go e o início da ocupação efectiva doespaço que viria a ficar integrado nochamado “Congo Português”. Outrossim, percorre o Corredor doKwanza, em que o autor nos dá infor-mações históricas importantes e sedetém sobre o percurso biográfico deMwen’Exi Njinga Mbande, a nossaquerida Rainha Njinga Mbande, (im-porta dizer que MWEN’EXI é como sedeve designar os titulares do podermáximo no contexto de língua kim-bumdo), com o que somos impelidos arevisitar e a criticar as fontes a partirdas quais se escreve a História de An-gola, fontes essas muitas delas eivadasde erros propositados, ou decorrentesdo pouco conhecimento das línguas eculturas das comunidades em presen-ça, – como de resto se percebe do factode erradamente, em nosso entender,serem designados como manis, e qui-çá ntotela, os mais elevados titularesde poder no Reino do Kongo – comodizíamos, pouco conhecimento daslínguas e culturas das comunidadesem presença, o que leva a inadequadasinterpretação dos factos.A obra de Alberto Oliveira Pinto de-semboca, por fim, na luta de libertaçãonacional e independência do país, naforma de análise semiótica de textosliterários, umas vezes, na forma de

narração de factos históricos, outras,cuja análise e discussão se faz no bri-lhante prefácio à obra feito por IreneAlexandra Neto que, discordante porvezes com o autor, tal como nós quan-to a alguns detalhes da mesma, dizía-mos, Irene Alexandra Neto evidencia osentido da necessidade do “mais alar-gado debate de ideias” proposto pelopresidente Neto no seu célebre dis-curso Sobre a Cultura Nacional, e, domesmo modo, evidencia o exercício daplena democracia que, não obstanteos críticos e as críticas, se converteráseguramente num dos principais ele-mentos identitários dos angolanos.CONTRADIÇÕES E MISTIFICAÇÕESA par dos temas já enunciados, o au-tor remete-nos igualmente para con-tradições e mistificações quer do pro-cesso colonial, quer da luta de liberta-ção nacional, quer do processo pós-co-lonial de Angola, quer para algumasquestões candentes que povoam onosso imaginário e provocam acesasdiscussões nos nossos dias, nomeada-mente, as teses da crioulidade e do lu-sotropicalismo que, a par das novascorrentes “auctoctonistas” e da cha-mada “Angola profunda”, parecemquerer fazer morada entre nós, contra-ditoriamente, no país independente.Sendo embora discordantes quantoà exclusão de Alfredo Trony da Litera-tura Angolana, para situá-lo na litera-tura colonial pelo facto de, à seme-lhança de Scenas d’África, ter sido asua obra instrumentalizada como veí-culo da propaganda colonial, (escrevea páginas 70 o autor: “ De uma pers-pectiva objectiva, Cenas de Áfria - Ro-mance Íntimo, de Pedro Félix Macha-do – à semelhança aliás de Nga Muturide Alfredo Trony – pode ser conside-rado um romance de literatura colo-nial porque, havendo sido publicadonum jornal de Lisboa em 1891, (…) in-dependentemente da vontade, da sen-sibilidade e dos sentimentos do autor,foi utilizado como veículo de propa-ganda colonial e como legitimaçãoideológica do facto colonial.”), ou se,tendo reservas quanto à tradução dotopónimo Kakongo como PequenoKongo ou Konguinho, partindo do pre-fixo diminutivo KA, próprio do kim-bundo, língua que não faz parte docontexto daquela região, diferente-mente do kikongo, língua em que o di-minutivo KA só se encontra presentenas zonas de confluência linguísticaentre o kimbundo e o kikongo, o cha-mado dihungo, poder-se-ia encontrarna língua kikongo uma tradução maisprópria, até porque a partir da tradi-ção oral nessa língua encontramos ex-plicações para a génese dos Estadosdaquela região que teriam sido cons-tituídos a partir de um dos sobrinhos

do Ntinu, do Ntetela, do Ne Kongo,que teria sido enviado castigado paraaqueles territórios.É no entanto com grande júbilo quefelicitamos o autor Alberto de OliveiraPinto que, estando embora na diáspo-ra, talvez seja o único daqueles atéagora, que faz uma abordagem clara eobjectiva destes e outros temas comoo do lusotropicalismo, da angolanida-de e da crioulidade, respondendo dealgum modo às dúvidas que aqui te-mos sobre as teses da génese crioulada literatura angolana sustentada pe-la escola portuguesa, representadapor Mário António, (curiosamente umdos grandes poetas da Mensagem), Jo-sé Carlos Venâncio, Salvato Trigo, Car-los Pacheco, David Mestre, apadrinha-do por Hamilton e por Gerald Moser”.1Cremos mesmo que o nosso júbilodeve ser redobrado, pois, Alberto deOliveira Pinto, com esta obra, se, porum lado nos traz importantes subsí-dios à história contemporânea de An-gola, particularmente quanto a contra-dições entre e no seio dos movimentosna guerrilha durante a luta de liberta-ção nacional, e que se reflectiram noprocesso que culminou com a procla-mação da independência angolana pe-lo Dr. António Agostinho Neto, de queemergiu o Estado em que hoje vive-

mos, Estado nascido num contexto deimplosão do Estado e da Economia co-loniais por consequência do abandonodo território pelos portugueses, o queexplica em certo momento da nossahistória a estatização da economia, e aproclamação no Huambo de uma outraindependência e Estado, a RepúblicaDemocrática de Angola, entretanto fa-lida à nascença, como dizíamos, deve-mos congratular-nos porque esta obrado Alberto de Oliveira Pinto, com aqual o autor se torna talvez no primei-ro daqueles angolanos na diásporaque nos traz uma clarificação do quedeve ser entendido por literatura an-golana, por oposição à literatura colo-nial, nos evidencia as teses do lusotro-picalismo de que se alimentou em lar-ga medida o sistema colonial e umaclarificação quanto à questão de umasuposta crioulidade em Angola e posi-ciona-se de forma única e inequívocaante a interpelação de Maria da Con-ceição Neto quando esta escreve a pro-pósito da crioulidade:(O conceito) “paradoxalmente, vemsendo cada vez mais usado, sobretudoa partir de portugueses e angolanosresidentes em Portugal, o que merece-ria outra reflexão, sobre o papel dasdiásporas no jogo das (re)definiçõesidentitárias.”2

“IMAGINÁRIOS DA HISTÓRIA CULTURAL DE ANGOLA”DE ALBERTO DE OLIVEIRA PINTO

LETRAS | 7Cultura | 7 a 20 de Novembro de 2017

SEPARADOR DE ÁGUASCremos ser oportuno dizer que apresente obra de Alberto de OliveiraPinto, do muito que nos traz, permite-nos também esclarecer de maneiraexaustiva, algumas das questões queensombram os fundamentos iniciaisda CPLP cujos sentimentos lusotropi-calistas ainda pairam entre muitos ese transpuseram para o actual acordoortográfico da língua portuguesa, fe-lizmente não subscrito por nós. “Imaginários da História Culturalde Angola”, é uma obra que segura-mente se imporá como obra de refe-rência, quer no estudo das Letras,quer da história antiga, quer da histó-ria contemporânea de Angola, pois, aoesclarecer-nos sobre as questões aci-ma, ao deter-se sobre a realidade ac-tual, partindo dos textos literários namesma referenciados, ao trazer valio-sos esclarecimentos sobre informa-ções que nas fontes antigas se fazem apropósito de Mwen’Exi Njinga Mban-de, a rainha Njinga Mbande, ou aindaao trazer de maneira expressa refe-rências a contactos com madeireirosportugueses do Moxico, em 1971 e ac-ções de cooperação “com o exércitoportuguês na luta contra a Frente Les-te do MPLA”3, como de resto pode serlido a páginas 198 deste livro, permi-tirão ajudar a compreender algunsdos problemas que o país viveu. A pro-pósito, para ajudar a encaminhar o es-tudo desta questão, lançando desde jáo repto aos estudiosos, importa lem-brar que Angola, em 1972, passou deProvíncia Ultramarina a Estado de An-gola, o que deixa então antever umaperspectiva federalista porventura,autonomista talvez… uma política deassociação entre Portugal e Angola.Entretanto, nesta análise, importaatender ao facto histórico de, no actualZimbabwe, ter sido antes instituído oEstado da Rodésia do Sul, que teve vi-gência de 1965 a 1979 e uma indepen-

dência, declarada unilateralmente pe-los colonos brancos, entretanto nãoreconhecida, “tendência independen-tista branca” que igualmente existiuem Angola e que teve de adaptar-se naestratégia, em função do não reconhe-cimento daquele Estado (Rodésia doSul), poderemos vislumbrar que, nabase da cooperação e acordos a queacima fizemos referência, com a trans-formação do estatuto de Angola deProvíncia Ultramarina em Estado deAngola, se instituiria entre nós um po-der político de “maioria negra”, comuma “supremacia económica branca”,o que de resto constitui uma das ra-zões de alguma hostilidade que aindahoje encontramos em alguns círculosda antiga metrópole.Como nota final, quereremos subli-nhar que esta obra do Alberto de Oli-veira Pinto, para lá do que já foi dito, vi-rá ajudar a “separar as águas” entre a li-teratura angolana e a literatura colo-nial, sendo por isso um instrumento

precioso para aqueles que virão a es-crever a História da Literatura Angola-na, assim como para aqueles que terãoa seu cargo no futuro escrever a Histó-ria de Angola com todo o rigor que seimpõe, do mesmo modo que permitiráiluminar as mentes quanto à Nação An-golana em cujos fundamentos se en-contram a nossa história e a nossa cul-tura, cuja diversidade é como os afluen-tes que fazem a força do Rio Kwanza.1 Caley, Cornélio – Teoria de Angolani-dade Literária: ensaio sobre caracteriza-ção do texto literário angolano , Colectâ-nea de textos sobre angolanidade literá-ria, INIC, Luanda, 2011. 2 Neto , Maria da Conceição, Ideolo-gias, Contradições e Mistificações da Co-lonização de Angola no Século xx, pp.327-359 Lusotopie 1997 “Evitemos equí-vocos lembrando, em primeiro lugar, que« crioulo » tem uma pluralidade de signi-ficados que chegam a ser contraditórios :no Brasil, designava o escravo negro nas-cido localmente; noutras colónias ameri-

canas, os brancos ali nascidos. Em CaboVerde, todos se assumem « crioulos » delonga data. Em Angola, o termo está hojeem dia fortemente politizado, ao ponto dehaver três ou quatro significados corren-tes, donde resulta ser cada vez menor aoperacionalidade do conceito. Mas, mes-mo no sentido que na história de Áfricageralmente se dá a « crioulos » (grupossocial e culturalmente distintos, comconsciência de grupo, reivindicando-seda dupla herança africana e « ocidental »),crioulidade e mestiçagem « racial » nãosão sinónimos. Não só a mestiçagem não écondição suficiente para o surgimento de« crioulos », como também pode sucederque estes não se distingam « racialmente» dos «não-crioulos» que os rodeiam. (…)Ou seja, os processos de «crioulização»pertencem a diferentes épocas e a povosdiversos e referem-se a novas identida-des socioculturais resultantes da interac-ção prolongada de línguas e culturas dife-rentes, num espaço geralmente limitado eem determinadas circunstâncias (ou en-tão, seríamos todos crioulos, como resul-tantes que somos de múltiplas interac-ções culturais). “Durante todo o períodoque antecedeu a criação da Comunidadedos países de língua portuguesa (CPLP) («inocentemente » chamada por várias ve-zes Comunidade lusófona, lusofonia ou,pelos saudosistas do império, Comunida-de lusíada), a par de posições mais escla-recidas, foram inúmeras as declaraçõesque explícita ou camufladamente ressus-citaram o lusotropicalismo, aparente-mente sem sequer se darem conta do cho-que provocado em alguns dos seus parcei-ros africanos. Aquele que foi um dos moto-res da criação da Comunidade dos paísesde língua portuguesa, JoséAparecido de Oliveira, foi pródigo emafirmações «lusotropicalistas», de que cita :« A CPLP já nasce com a herança quePortugal legou ao mundo, esse"mundo que o português criou", a quese referia Gilberto Freyre. Ela aí está vivaperante nós… » .-Dizia no (O Dia, 25 de Ja-neiro de 1994).3 Idem.4- Pinto, Alberto Oliveira – Imagináriosna História Cultural de Angola, INIC, 2017.

Alberto de Oliveira Pinto

Público presente no acto da entrega do prémio

8 | LETRAS 7 a 20 de Novembro de 2017 | Cultura

Depois de anos a redefinir o próprioestilo, a adaptar-se aos novos ventosdo modernismo, mas sem descurar oconhecimento da sua geração, e sem-pre a mostrar, ao público, tendênciase, às vezes, a fazer críticas sociais, o ar-tista plástico António Ole apresentahoje, no Camões - Centro Cultural Por-tuguês, o resultado de 50 anos de tra-balho em prol das belas artes.Quando questionado sobre o que sepode esperar desta mostra, que traz27 trabalhos de pintura, colagem e de-senho, o artista disse: “acrescentar al-go novo, de forma a trazer mudança”.Esse parece ser o actual pensamento ea linha filosófica de toda a exposição,denominada “50 Anos vivendo, crian-do”, que pode ser vista pelo público atéao próximo dia 20 de Dezembro.Portanto, a dúvida mais comum,num trabalho como este - que tambémtraz inéditos -,é até onde o artista podesurpreender e prender o público, nu-ma exposição que se espera como umaponte entre dois mundos, o do passadoe o do presente, hoje muito diferentesum do outro no país, devido, em parte,aos avanços da globalização.Apesar de ter aprendido muito dopassado, António Ole disse que ac-tualmente busca pouca motivação datradição, por se considerar um artistado seu tempo e como tal com a obri-gação de mostrar as mudanças so-ciais dos dias de hoje. Grande parte dos artistas que pro-curaram se inspirar na tradição, expli-ca, prevaleceram e o vão fazer poranos, porque as origens e a tradiçãosão sempre motivos de investigação ede inspiração. “Mas o papel do artistavai mais longe desta visão”, defende opintor, para quem “é importante tor-nar a arte parte de um processo detransformação social melhor”.Filho de um funcionário público, co-locado no Porto do Lobito e depoistransferido para Luanda, o artista disseque aprendeu a conhecer a “Angola Pro-funda” ainda jovem, no Liceu Paulo Diasde Novais, através de um movimentocriado na época para descobrir mais so-bre a cultura angolana. Este saber, acre-dita, o ajudou a ser o homem e o criador

que é hoje. “O artista deve estar numconstante processo de aprendizagem.Tudo o que sei, aprendi nos museus”,disse o artista, que conheceu e teve mui-tas influências ao longo da sua carreira,alguns dos quais ainda lembra com ale-gria, como o professor de etnografiaque o incutiu o gosto pela arte Lunda, ouo de desenho, que o descobriu e o aju-dou a explorar o seu talento artístico.Hoje, relembra, conseguiu atraves-sar várias fases e períodos, ao pontode ter criado um estilo seu, assente noseu conhecimento sobre a identidadee a cultura nacional adquirido ao lon-go de anos, cuja temática está mais re-lacionada aos temas actuais.Os trabalhos de pintura, na suamaioria feitos em acrílico e pigmen-tos sobre tela, procuram comunicarao público a ideia do artista sobre oque é a sua visão da realidade actual.“A arte tem um papel decisivo na mu-dança social”, admite, acrescentandoque toda a alteração dos dias de hojedevem ser analisadas, criticadas oupreservadas pelos artistas.Considerando a si mesmo como um“reciclador compulsivo”, António Olea-credita que um artista não deve seprender a limitação, temática ou esté-tica, mas sim explorar a sociedade aoseu redor e procurar transforma-la,através da inovação e do experimenta-lismo. “O reciclador é aquele que vê va-lor em tudo o que a sociedade desvalo-riza. Um artista tem de ser criativo.”A exposição “50 Anos vivendo,criando” volta a ser apresentada ao pú-blico o próximo ano, mas de uma for-ma mais abrangente, numa coopera-ção com a Fundação SindikaDokolo. “Aideia é apresentar, numa visão maisampla, todo o trabalho feito por mim,incluindo alguns que estão em institui-ções nacionais, ou em várias colecções,assim como os que tenho em posse”.Alertas50 anos depois, o artista continua achamar atenção aos jovens artistas pa-ra importância de valorizarem mais assuas raízes, mas sem desprezar as ac-tuais tendências, em particular da artecontemporânea. “A investigação é par-te fundamental deste legado, cujomaior acervo, até hoje, ainda se encon-tra na Europa e outros continentes, on-de está guardado grande parte - ou pelomenos o mais notável - da arte cokwe. Amaioria dos museus de arte de Bruxe-las são claros exemplos disso. É umarealidade que precisa ser invertida.”Porém, para superar tal desafio, o ar-tista pede uma maior aposta na formaçãode criadores e um maior interesse destesem descobrir e mostrar a “Angola profun-da”, que aos poucos vem sendo esquecidaou ignorada, devido ao crescimento defenómenos como a globalização.

50 ANOS DE ANTÓNIO OLEINOVAÇÃO E EXPERIMENTALISMO

ADRIANO DE MELO

Angola in Africus Pintura de A. Ole

ARTES | 9Cultura | 7 a 20 de Novembro de 2017

Lavores

Twins

António OLE

A linguagem do corpo

Num mundo, onde o mercado geral-mente é feito por artistas da Europa,Américas e Ásia, com poucas referên-cias aos africanos, os angolanos “aindaestão a abrir caminho”. Mas, destaca, épreciso “injectar sangue novo com co-nhecimento para se impor, não só nopaís, mas também além-fronteiras”.Outro mundoO artista que ainda sente falta dotempo da “câmara em punho”, paramostrar as várias modificações da so-ciedade - por sinal uma das suas maio-res preocupações enquanto artistas -,disse que tem projectos guardados nodomínio da sétima arte, mas só não osconcretiza por falta de financiamento.Como parte de uma geração que foidecisiva no surgimento do cinema ango-lano e mostrou as mudanças do pós-in-dependência, António Olecriticou a ac-tual geração por fazer os seus trabalhosmuito “atados” as novas tecnologias. “É claro que o cinema de película ho-je é um processo arqueológico. Porém,a temática é uma vertente importante,que os jovens criadores pouco têm ex-plorado”, lamentou, acrescentandoque alguns dos trabalhos feitos na suaépoca de realizador podem não tertanta qualidade - estilística ou técnica-, mas são uma parte fundamental daHistória do país, em particular da cida-de de Luanda, por mostrarem o que se

passou na época. “A realidade é um la-boratório em constante mudança.”Para o seu futuro projecto, o artistadisse que gostaria de fazer um filmesobre Luanda, por ser o principal focodas mudanças sociais que ocorrem ac-tualmente. “Actualmente é o espaçoonde tudo converge”, destacou. Por is-so, reforça, é fundamental registar aHistória e reavaliar a importância doaudiovisual para a sociedade.António Ole chamou ainda atençãopara o facto de muitas das produçõesfeitas na sua época estejam a se per-der, devido a falta de condições parapreservar estes acervos. “O esforço demuitos artistas preocupados com apassagem de um testamento históricoàs novas gerações está quase a se per-der”, reprovou o artista, cuja produçãocinematográfica já foi referência a ní-vel internacional e tema de trabalhosteóricos de estudantes na Alemanha.“O meu sonho é publicar um livrocom informações suficiente para mos-trar aos mais novos todo o trabalhoque fiz em prol das artes”, concluiu.O artistaArtista plástico, fotógrafo e realiza-dor angolano, António Ole nasceu em1951, em Luanda (Angola). Fez parte,em 1974, da equipa de Contrato Popu-lar , um programa radiofónico, e foiaceite, em 1975, como realizador de

programas na Televisão Popular deAngola, cobrindo, nesse mesmo ano,as celebrações do 11 de Novembro,em Luanda. Ainda em 1975, formou-se no AmericanFilmInstitute, em Lo-sAngeles (EUA) e, entre 1981 e 1985,estudou cultura afro-americana e ci-nema na Universidade da Califórnia(EUA), onde obteve o diploma do Cen-ter for AdvancedFilmStudies. Desde 1975, dirigiu vários docu-mentários e vídeos sobre a vida e his-tória de Angola, como “Os Ferroviá-rios” (1975), “Aprender” (1976), “Car-naval da Vitória” (1978), “Sonangol:10 Anos Mais Forte” (1987), entre ou-tros. De salientar, ainda o filme “NgolaRitmos”, sobre o popular grupo musi-cal angolano dos anos 50 e 60. Inspira-do no passado e presente de Angola,

António Ole aborda sobretudo as te-máticas da colonização, guerra civil,fome, conflitos sociais e a explosão de-mográfica em Luanda.Quanto ao seu trabalho como fotó-grafo, o artista começou por fotogra-far famílias angolanas retratando osseus numerosos elementos e mos-trando certos temas metaforicamen-te. Realizou a sua primeira exposiçãoem 1967 e desde a sua estreia interna-cional, no MuseumofAfricanAmerica-nArt, em LosAngeles, em 1984, os seusvários trabalhos têm sido apresenta-dos em várias exposições, bienais, fes-tivais, como em Havana (1986, 1988,1997), São Paulo (1987), Expo’92, emSevilha, Berlim (1997), Joanesburgo(1995, 1997), Dakar (1998), Amester-dão (2001) e Veneza (2003).

ADRIANO DE MELOQuem foram os Hereros? Qual oseu papel na História de Angola?Esta e outras dúvidas foram res-pondidas pelo artista plástico Thó Si-mões que, depois de meses de pesquisa,apresentou o resultado do seu trabalhoem “Senhores do Vento”, uma exposiçãode pintura sobre coragem e determina-ção de um povo.Aberta ao público no passado dia 27, amostra, patente na galeria Mov’Art, emLuanda, promete levar, qualquer um dosseus visitantes, por uma viagem pela his-tória dos hereros e alguns dos seus desa-fios mais marcantes, com base no heroís-mo de Samuel Maherero.Quando questionado sobre “quemsão os ‘Senhores do Vento’?”, o artistadisse que eram os 24 mil hereros que fu-giram com medo de ficarem confinadosaos campos de concentração, dos quaismil, sob a liderança de Samuel Mahererochegaram até o Botswana.A base de todo o trabalho é a travessiaque este povo - de origem Bantu, tradicio-nalmente pastoris - efectuou pelo deser-to do Kalahari (Namíbia), quando o te-nente general alemão LotharVonTrothatentou os eliminar, devido a questão das

terras do sudoeste africano. Este conflitoque quase levou a completa extinção doshereros está agora descrito em diversastelas, em acrílico e noutras técnicas, cujascores são uma das predominâncias.Com vários traços da arte urbana, o ar-tista procura dar vida a inconformidadede um povo perante a colonização, a suaguerra contra o invasor e a divisão e ex-propriação de terra, mas enquadrando oassunto também as reflexões dos temposde hoje. “A determinação de um povo quemesmo perante a adversidade não desis-tiu é algo que impressiona qualquer um”,disse, destacando que enquanto artistavê esta motivação como pilar para a cons-trução de uma sociedade melhor.Para Thó Simões, o tema da exposição- cujo enfoque principal é a negritude, acolonização, a expropriação de terras ouaté mesmo de culturas - apesar de ter asua base no passado, é e continua a serbastante actual. A única variável, acres-centa, são as reflexões que as pessoaspodem fazer ao visitar a mostra, como“o que leva o homem a explorar o seu se-melhante”. “Desde o início do Mundo es-te tema tem sido uma constante. Hojetrouxe a abordagem do assunto atravésda História de um povo - como quase to-dos os do Sul do país - que me fascinamuito, devido a sua cultura e determina-

ção para vencer as dificuldades”, conta.Constantemente em busca das cau-sas e motivações que levam as pessoas aagirem desta ou daquela forma, o artis-ta prometeu continuar a procurar porrespostas para as suas indagações, al-gumas das quais muito comuns. Embo-ra a sua pesquisa esteja mais virada pa-ra os povos do Sul de Angola, Thó Si-mões também tem curiosidade de co-nhecer mais sobre o seu passado, “co-mo angolano, pessoa e africano”. “En-quanto não estiver satisfeito com as res-

postas os temas dos meu trabalhos vãoser sempre os mesmos.”Depois de meses a seguir o rasto doshereros, o artista, que acredita muitona sua intuição, nas vibrações e na cu-riosidade, promete continuar a desen-volver o seu trabalho em temas que aju-dem as pessoas a conhecerem mais so-bre a cultura e História de determina-dos povos, cujo acervo histórico-cultu-ral é vasto, mas correm o risco de se-rem “engolidos” e esquecidos dentrodo fenómeno globalização.

OS “SENHORES DO VENTO”COSTUMES DOS HEREROS EM EXPOSIÇÃO DE ARTE

10 | ARTES 7 a 20 de Novembro de 2017 | Cultura

Burned Expectation

1.IntroduçãoCantar é tudo na vida. Nietzsche dis-se que sem música, a vida seria um erro.Na cultura bantu, a música acompanhaas diversas fases da vida e da morte.Para Lambo (1962), o canto é com-panheiro inseparável do angolano, é oseu cajado de apoio na escalada da vi-da e o túmulo feliz onde esconde a taçaamarga da existência. Neto tambémreconhece o valor poderoso da músicano todo formativo do Eu Africano. O angolano encara a vida como umapartitura musical. Ele usa a música pa-ra se identificar com o seu País, paradesenvolver o sentido de pertença àNação e vincar singularidade culturalna relaçao com o Outro.A minha comunicação mostra co-mo, através da música, o angolano fa-la de si e abre-se ao mundo; aborda arelação ambígua que ele tem com omar e com as crenças e devoções reli-giosas; revela também a ligação en-tre música e revolução e a forma co-mo se canta a saudade nas cançõesda diáspora.2. Música e identidade nacionalOs cantores angolanos têm partici-pado no processo de construção daidentidade nacional, tecendo, com fiosde História e de Memória, um mantoque se traduz num redimensionamen-to do espaço e do tempo.De acordo com Hall (2000), é atra-vés das construções identitárias queos indivíduos reconhecem-se e intera-gem entre si e com o universo. A músi-ca assegura a convivência e o reconhe-cimento singular e colectivo dos ango-lanos, contribuindo para ampliar oolhar sobre Angola e sobre os pró-prios angolanos. Os jovens tambémconstroem as suas plataformas identi-tárias através de signos culturais tra-duzidos em música. A música é um dos principais meiosde expressão e de articulação da di-versidade etno-cultural de Angola,sendo que o nosso imaginário social éenriquecido pelas imagens sonoras epelos efeitos de sentidos produzidospelas composições musicais angola-nas. A memória cultural do cidadão edo país também materializa-se pelamúsica, que constitui a linguagem pe-la qual essa mesma memória transitae imprime a marca do seu tempo.Neste contexto, a música angolanafunciona como um dos lugares de me-mória , até porque, mais do que qual-quer outra manifestação cultural, elarevela-se um mecanismo poderoso deprodução de símbolos e alegorias,

bem como de criação e recriação devalores e de estabelecimento de rela-ções sociais inerentes ao modo comose é ou como se deve ser angolano. Bebendo do folclore e da oralidade,a música angolana é, ao mesmo tem-po, espaço de fruição estética e de pro-jecção identitária, consubstanciadono intenso diálogo entre valores artís-ticos e substratos culturais.O Semba é a nossa bandeira. É voz eeco de vozes, fulgores de vozes; cruzatempos e contextos e abarca diversasgeografias e múltiplos afectos da alma.Representa a filosofia angolanade vida, expressa espiritualidade,preenchendo inteiramente a almados angolanos. É um lugar de dizer ede ser, fazendo-se tradução dosacordes da angolanidade.2.1. Ao ritmo das vagas do marHá uma forte ligação entre litera-tura e musica e vice-versa. O ritmo ea música impõem-se como elementoconstitutivo da escrita, pontuando opoema e o livro. Mário António, Vi-riato da Cruz, assim como ManuelRui e Agostinho Neto são os nossospoetas mais musicais e mais musica-dos. Poetas em cujas palavras guar-dam sempre um valor de música, ca-da um, à sua maneira, leva poesia àsvozes do semba.Até aos anos 1990, nos textos literá-rios, mar significava kalunga, morte,desgraça. Por força desse facto, a mú-sica condicionou o mar como inspira-ção e limitou-o como temática. A vozdo mar foi, então, a voz do nosso sofri-

mento e desesperança; foi a voz domedo do desterro.A música «Pangui iami», da autoriade Massano Júnior e cantada por TonyCaetano, é uma das composições quemelhor espelha a relação de amor eódio que os angolanos têm com o mar;mar, esse aberto poema que ressoa nobúzio do semba:Pangui iami, uaiáTuá mussageleBoxi ya menhaPangui iame, uafuáTuámussageleBoxi ya menha

Nga Zuá, eme ngondiodo!Katule pangui iamiUala boxi ya menhaKutale mutandoOh oh uala boxi ya menhaMama óh dilóohhhUala boxi ya menhaPapa óh dilóohhhhhUala boxi ya menha. Hoje, afastados que estão os fantas-mas da colonização, o mar se constituinum dos veios da memória do passadoe do presente. Ao ritmo das vagas do mar, hoje amaioria dos cantores atravessa o amordo mar e ao mar, outrora kalunga ngu-ma, cantam-se odes e mais odes, hinose adágios. Há um mar imaginário aber-to em cada uma das rimas do semba.2.2. Cantos de resistência e lutaSe Nietzsche ressalta a importância

da música para a beleza da vida,Brecht valoriza a música enquantoinstrumento capaz de elevar a cons-ciência crítica do homem.Em Angola, através dos tempos, dasgeografias e das ideologias políticas, amúsica também foi arma de combate eresistência, uma forma de legitimaçãosocial e cultural; foi graças a força dascanções que Angola resistiu aos horro-res da escravatura; a independência na-cional está fortemente marcada por umuniverso de músicas empenhadas; foigraças a força das canções que Angolasobreviveu aos duros anos da guerra.Se no tempo colonial, as músicas deintervenção carregam a urgência daindependência, procurando desper-tar a consciência nacional para os ele-mentos identitários, actualmente ocanto de luta tenta resgatar o sonhoadiado da criação do homem novo.No processo de consciencialização ede mobilização cívica e política dos ci-dadãos, um nome se destaca no perío-do pré e pós-independência: David Zé.É o guerrilheiroQue passa o tempo lá na mataLá na mata do MaiombeLá nas chanas do lesteAonde chove todos diasAonde os mosquitos não se con

tamOs miruís já não se contamA gente as vezes passa fomePara libertar o nosso povoEste é o preso da revoluçãoÉhmangolé!,éhmangolé!Éhmangolé!,éhbmangolé !

SOMOS A MÚSICA QUE OUVIMOS

A MÚSICA ANGOLANA E O SEU PAPEL NA CONSOLIDAÇÃO DA IDENTIDADE NACIONAL

ALBINO CARLOS

David Zé

Cultura | 7 a 20 de Novembro de 2017 ARTES |11

O que David Zé tem de extraordiná-rio é o facto das letras das suas músicassobreviverem ao calor dos tempos po-liticamente engajados, trazendo à lem-brança, a melancolia de uma era queteima em surgir como uma aparição.Hoje, os heróis da canção política jánão são guerrilheiros barbudos e mui-to menos engajados activistas, mas jo-vens que não se querem calar nem sedeixar subjugar pelo status quo.2.3. Ritmos de crença e devoçãoAs músicas angolanas evocativas decrenças e fé, cujo eco se repercute ao lon-go dos tempos, são autênticas lições devida para a vida, sendo espelho do cantoprofundo brotado da própria terra. Reflectindo o sentir do nosso povo,elas permitem a reflexão e compreen-são sobre a complexidade do mundo edos homens, dos animais e das coisas,uma vez que a música angolana é, aomesmo tempo, espaço de fruicaoestetica e de expressao identitaria.Os relatos cantados sobre feitiçariasão textos em forma de sons e ritmosdo nosso universo fantástico:Muloji uatula kubata ni kinda

kyeze ku mutuUeza musakela jingongo ngi mo-

nandenge ngadiwana.Muikuebi Ngadiuana muloji ua-

tula kubataNgadiuana muloji uatula kubataNgadiuana muloji uatula kubata .Angola é culturalmente sincrética,sendo marcada pela espiritualidademusical, uma luz que permite com-preender e respeitar os silêncios e rit-mos de Deus.Somos um povo temente à Deus. Re-ligiosidade sustentada na crença e naaceitação de valores espirituais; espi-ritualidade que, pela emoção que des

perta e sentimento que aflora emcada nota musical, vão ditando o ritmoda batida do music-hall nacional. Muxima, Muxima, Muxima óhMuxima nga ndala ngo sauidiKi ngi zeca ki ngi zeca pala bulo

bumakaMami ngi matudika ngo tulueKi ngi zeca ngubinga engo ze nganaUnguiendesse unguizekesse ue

nguialongaMuxima, Muxima, Muxima óhMuxima ngandala ngo sauidi .A dimensão religiosa do panoramamusical angolano consubstancia-sequer pelas referências à Deus e efeitosde identificação espiritual, quer pelossentidos filosóficos das letras ou pelasinvocações de músicas sacras em can-ções de estrutura musical profana.2.4. Cantos de exílioNeto associa as questões da diáspo-ra à metáfora da Mãe África, em cujavoz ecoa a voz de todos os filhos espa-lhados pelo mundo afora, todos se-dentos de regressar à Mátria.Recordar é viver. Sendo cada cançãodo exílio uma saudade diferente, osmúsicos angolanos fazem eco do cho-ro lamentoso dos homens que vivem aPátria como causa perdida, mas tãosaudosos da Pátria que até parece quenunca a tivessem abandonado.Diversos são os percursos e varia-das as motivações que estão na base doafastamento do país, quer no períodocolonial, quer no pós-independência.Muitas foram as vozes no exílio:Duo Ouro Negro, Eduardo Nascimen-to, Sara Chaves, Ana Maria Mascare-nhas, Belita Tchuma, Bonga, Rui Min-gas, Teta Lando, Vuvu, Mário Rui Silva,Ricardo Lemvo, Waldemar Bastos, Oli-veira, Matadidi, Samanguana, Paulo

Flores, Tropical Band e muitos outros.No essencial, a música feita na diás-pora constituiu-se num espaço atra-vés do qual os emigrantes angolanosprocuram vincar a sua identidade cul-tural, procuram reactualizar a sua his-tória e sentido de comunidade, assimcomo procuram conjecturar uma ideiade Nação, mesmo que a realidade dossonhos se manifeste através da me-mória histórica ou através da imagina-ção artística.Xiami, xiamyé, xiamyéNgidila ngo wéKuxi ya mundeleNgandala amié kuxala bobaXiamyé!Kamba dyami wayi kya wéWayi mu NgolaEme ngo xala bobaKuxy ya mundeleNga xala ngo bobaKuxy ya mundeleXiami, xiamyé, xiamyéNgala ni ji hendaNgala ni ji hendaNgala ni ji hendaYa ixiamyéNgala ami ku xala bobaXiamyé .

A música da diáspora é também olugar da contestação à situação rei-nante na terra natal, assumindomesmo formas de protesto e de in-tervenção política.As letras das canções da diásporaangolana são radiantes como os so-nhos das crianças. E porque todo exí-lio é impaciência da espera, parafra-seando Hall, a esperança no regresso àterra-pátria passa a ser o verbo e apoesia das músicas da nossa diáspora.3. ConclusãoA Música Angolana é viva e eficaz;descobre-se nela princípios e valoresque asseguram o funcionamento equi-librado da sociedade; descobre-se,igualmente, elevados padrões estéti-cos e simbólicos através dos quais seperpetuam hábitos e costumes.E porque somos cidadãos do mundo,as mensagens da Música Angolana re-metem para a universalidade do pensa-mento e da acção, bem como reflectema universalidade do nosso processo deconstrução de sentidos de vivências.Assim, apelamos que, aos esforçosencetados para o Desenvolvimento eProgresso de Angola, se associem es-forços no sentido da recuperação, pro-tecção, preservação e valorização doPatrimónio Musical que nos identificae que nos orgulha de sermos angola-namente nós mesmos.A questão é tanto mais séria em vir-tude de confrontarmo-nos com umaGlobalização promotora de uniformi-zação cultural e de gritantes assime-trias que se repercutem nos padrões evalores universais.Urge, por isso, desencadear um in-tenso movimento social e cultural, polí-tico e institucional no sentido do Sem-ba ser consagrado Património CulturalImaterial da Humanidade, começando

já pelo seu reconhecimento como Pa-trimónio Cultural de Angola. Devemos pensar no Semba, em parti-cular, e nas manifestações artísticas, emgeral, como activos culturais de grandevalor económico e financeiro, facto quepressupõe reconhecer a importânciaestratégica das indústrias culturais ecriativas para a dinamização e diversifi-cação da economia nacional e, sobretu-do, para a preservação e promoção danossa identidade cultural.A expressão lugares de memória é da

autoria do historiador francês PierreNora, para analisar o entrecruzamentoentre o respeito ao passado e o senti-mento de pertencimento a um dadogrupo; entre a consciência coletiva e apreocupação com a individualidade;entre a memória e a identidade. NORA,Pierre.Entre mémoire et histoire: laproblématique deslieux. In NORA, Pier-re (Org.). Lexlieux de mémoire. Paris:Gallimard, 1984.

Meu irmão, morreu, encontramos-lhe em baixo da água/ Sr João, eu peço,tira o meu irmão/ que está debaixo daágua/ olho para cima, nada!/ Está embaixo da água/ Mama chora/ Está de-baixo da água/ Papa chora/ Esta de-baixo da água. «Panguiiami», de auto-ria de Massano Júnior, interpretadapor Tony Caetano.

Muangolê, David Zé.Muloji, João Pequeno.Muxima, Elias diá Kimuezo. Tradução:Ixiamyé, música e letra de Rui Mingas.

Elias dya Kimuezu nos anos 60

Tony Caetano

12 | ARTES 7 a 20 de Novembro de 2017 | Cultura

Anabela Aya, Mig, Kiluanji Kia Hen-da, Janguinda Moniz "Cabuenha", JotaJota e Ana Loyd foram os convidadosdo embaixador sueco Lennart Lars-son, no jantar que os reuniu à actriz edramaturga Lena Nylén no passadodia 1 de Novembro na residência sue-ca em Luanda. Lena Nylén nasceu a 27 de Setem-bro de 1963 em Malmö, é actriz e di-rectora sueca. Nylén frequentou a Tea-terhögskolan (Academia de Teatro)em Malmö (1987-1990).Lena é actriz, directora e dramatur-ga. Já trabalhou muito em teatro, tele-visão e cinema. Actualmente, dedica-

se a avaliar obras dramáticas para oteatro na Suécia e internacionalmen-te. Em 1992 foi nomeada na categoriade melhor actriz secundária nos pré-mios European Film Award.Lena Nylén mostrou aos presentesno jantar a poeta polaca WislawaSzymborska, da qual recitou os poe-mas O ódio, Por um acaso e Salmo, quetermina com estes versos: “Só aquiloque é humano consegue ser verdadei-ramente estranho/ O resto são flores-tas mistas, buracos de tatu e vento.”Em retribuição, o poeta angolano Jo-sé Luís Mendonça, também convidado,recitou dois poemas da sua autoria.

Este ano marca o centenário do nas-cimento da artista versátil que foi Vio-leta Parra. Em todo o continente, vá-rios eventos são realizados, progra-mados e espontâneos, para homena-gear aqueles que dedicaram tanto dassuas vidas ao folclore popular e quepromoveu a Nova Canção Chilena. Acomemoração do seu nascimento, em4 de Outubro, também foi escolhidahá alguns anos como Dia Nacional daMúsica no Chile.A chilena Violeta Parra (San Fabiánde Alico, 1917; Santiago do Chile,1967) viveu múltiplas vidas ao longode seus 49 anos. Foi cantora e compo-sitora, ofício pelo qual foi mais reco-nhecida, mas também compiladora demúsica folclórica e artista plástica.“Por que Violeta Parra transcende?”,pergunta-se a pesquisadora Paula Mi-randa, uma das maiores especialistasem sua figura. “Porque tem um traba-lho com a palavra muito sofisticado. Adimensão poética está presente emtoda sua obra”.Miranda fala de Violeta Parra comouma das melhores poetas da música eressalta que a discussão sobre a entre-ga do Nobel de Literatura a Bob Dylanno ano passado também poderia valerpara a cantora e compositora chilena:“Existe muita poesia fora dos livros e apoesia, além do mais, era cantada emsua origem”. Miranda, doutora em Li-teratura e autora do estudo La Poesía

de Violeta Parra, publicado em2013, cita como exemplo um dos hi-nos mais conhecidos da criadora: “Apoesia em sua máxima expressão éaquela que consegue transformar omundo, e isso é o que Parra faz em Gra-cias a la Vida. (Obrigado à Vida). Porum lado agradece e, por outro, tentaretribuir algo que recebeu da vida. Suaarte não é de adorno, nem de entrete-nimento, mas de reflexão e emoção.Acompanha as dores e os amores hu-manos”, diz a pesquisadora.

ACTRIZ LENA NYLÉN JANTA COM ARTISTAS ANGOLANOS

VIOLETA PARRA,A CANTORA QUE VIVEUMÚLTIPLAS VIDAS

DIÁLOGO INTERCULTURAL | 13Cultura | 7 a 20 de Novembro de 2017

Obrigado à Vida Obrigado à vida, que me deu tantoMe deu dois olhos que quando os abroDistingo perfeitamente o preto do brancoE no alto céu seu fundo estreladoE nas multidões o homem que eu amo.Obrigado à vida, que me deu tantoMe deu o ouvido que em todo seu comprimentoGrava noite e dia grilos e canáriosMartírios, turbinas, latidos, aguaceirosE a voz tão terna de meu bem amado.Obrigado à vida, que me deu tantoMe deu o som e o abecedárioCom ele, as palavras que penso e declaroMãe, amigo, irmãoE luz iluminando a rota da alma do que estou amando.Obrigado à vida, que me deu tanto

Me deu a marcha de meus pés cansadosCom eles andei cidades e charcosPraias e desertos, montanhas e planíciesE a casa sua, sua rua e seu pátio.Obrigado à vida, que me deu tantoMe deu o coração que agita seu marcoQuando olho o fruto do cérebro humanoQuando olho o bom tão longe do malQuando olho o fundo de seus olhos claros.Obrigado à vida, que me deu tantoMe deu o riso e me deu o prantoAssim eu distingo fortuna de quebrantoOs dois materiais que formam meu cantoE o canto de vocês que é o mesmo cantoE o canto de todos que é meu próprio canto.Obrigado à vida, obrigado à vida.

Há sete longos anos que o filholhe remexia as entranhas. Nãohavia dúvida, há sete anos quea criança a apalpava por dentro, quelhe falava em silêncio penoso. No início da gravidez os médicos ob-servaram-na cuidadosamente, todavia,à medida que os meses passavam, insi-nuaram uma gravidez psicológica.Ao décimo sete mês, uma amiga, in-sidiosa, propôs-lhe a possibilidade deuma barriga de água. “Não sabes o que é, eu explico-te?...”,ofereceu-se.As íntimas, propuseram os remé-dios da terra, a visita aos kimbandas,aos adivinhos. Não haveria nada a per-der, que não tentasse esconder o que éda terra. Mulher grávida há sete anossó pode ser curada com a tradição,com o debicar engasgado do galo.Angustiada, cruzou as longas pernas,vestia o robe de chambre azul cor daságuas e reclinou-se no cadeirão de cou-ro da vasta sala de visitas de sua casa.Acendeu, silenciosa, um cigarro.Não queria ser apanhada em kimban-das. Isso não. Seria o perder do pudor,sabia que os rótulos arquitectam-senos vastos silêncios sociais.Atirou, com displicência, o fósforopara o cinzeiro e serviu, da pequenamesa ao lado uma bebida, levando-a àboca em longos e melancólicos sorvos.Olhou para o quadro pendurado naparede oposta. Paisagem típica africa-na, o capim em movimento, fustigadopela brisa da tarde. Suspirou nostálgi-ca, sentindo a paisagem embrenhar-se nos poros das paredes da sala, e ocopo da bebida estremeceu na mão, àcarícia do vento melódico que sopravado norte. O fumo nervoso do cigarroesvaiu-se no ar, rumo ás nuvens ondepairavam as águias das palmeiras, en-quanto que, contemplando o momen-to de ilusão, acabou por tombar ador-mecida anestesiada pela angústia dodesassossego, ao badalar dos pios an-gustiados do mocho ora desperto naárvore soberba. meio perdido de cin-za, e retirou-o da mão palpitante.As águias das palmeiras gritaramestrídulas. Como todos, igualmentepensara que a estória da gravidez fos-se passageira, e por essa razão acari-nhara os anseios da esposa, nunca adesfalcando de amor e compreensão.

“Olha a criança mexeu, o nosso filhomexeu, não viste?”, dizia-lhe, mão noventre ofegante.E com este acanhamento vestido deverdades aparentes, foi contando aosparentes e amigos as vicissitudes defuturo pai. Por volta da gravidez psicológicacomeçou a não conseguir pôr cobro àchacota mal disfarçada, aos ditos ape-nas sussurrados à sua passagem. O desânimo aproximou-o mais daesposa e passaram horas de deleiteencontrando nomes para a criança,para o filho.“Sim só poderá ser um menino”.

Inventaram creches e escolas.Mas quando qualquer dúvida re-nascia, quando o terror se lhe asse-nhorava da alma, fugia tinhoso para aamante, pronta e aberta, que o com-pensava pela gravidez inexplicável,mesmo se, no expirar do tempo, partiamais triste do que viera e mais vaziodo que chegara, revertido criança naestórias meio contadas dos adultos, deser ele o filho do dragão, o fruto do pe-cado e da vergonha sempre eterna quelambe as labaredas do inferno.Seu pai, era tio de sua mãe.E na descendência dos mal amados,os antepassados obrigá-lo-iam a car-

regar até aos fins do caminho, a sarnaque há sete anos passara para o ventrefrutificado da esposa.Só poderia ser isso. Agarrou o sufoco e embrenhou omedo nos seios flácidos da amante.Regressou a casa encontrando amulher ainda no mesmo lugar, ador-mecida. Pensou em acordá-la, não ofez, sentou-se no cadeirão e teve a levesensação de sentir a carícia do ventono rosto. No véu da memória que não era asua, o cadeirão de couro da sala era otronco seco já meio apodrecido no ca-pim onde sua mãe, ainda mulher-meia, tentava agarrar a brisa suavecom as mãos, enganando o desesperoque a cingia porque, em breve, seria aépoca das queimadas, a derruba do ni-cho incestuoso do amor, e assim nãopoder encontrar-se com o tio para asrezas suplicantes da carne. No tempo do *cacimbo, a terra re-veste-se de castanho seco, a mata res-sequida é chama lambedora do fogo-posto, impudico em labaredas devora-doras . De um momento para o outro, oque era abrigo e escondia momentosprazerosos, nada mais seria do queum descampado com nascente capimverde, pasto das *seixas, dos veados,até mesmo das **pacaças mais afoitas.Na espera do tio, deitou-se não lon-ge do tronco e pressentiu, que alguémse sentara. Soergueu-se com ansieda-de mas não, não fora o tio que chegara,aliás tê-lo-ia visto.Recordou o momento acre-doce dedevaneio, da entrega rendida ao latejodo desejar. Tinha quinze anos e o tiovinte e oito. Verdadeiramente nuncaconseguira explicar por palavras oupensamentos conscientes como tudocomeçara, o que a dominara, possuíra,feita animal envolta nos perfumes docio manifestado.Uma tarde de calor, o capim alto ob-servando-a, aconchegando-a, excitan-do-a ao âmago, foi a carícia que fez jor-rar a água das fontes internas do desejo.Abrira a blusa e expusera os seios ne-gros e luzidios ao beijar da brisa, ao res-tolhar das folhas próximas das árvores.Mulher feita, mulher desejando, ar-fando sem motivo aparente. Mulherfêmea em aromas vaporosos, aindaque não sabendo.

E quando o tio apareceu feito vadio,como que não conhecendo das tardesde calor da sobrinha, ela fez que nãosabia do desejo e do ardor, pretenden-do que nunca desejara o que então es-tava pronto e sacrificial.E talvez até tivesse sido assim.Na escuridão da eterna culpa e nodespir da razão vacilante, em jeito dedespedida, sem saberem ou deseja-rem, na morte da alma entregaram-searfantes um ao outro. Deram-se a carne perante os olha-res nunca adormecidos dos que eter-namente vigiam, dos que vivem nosfundos dos rios e das lagoas. E dos quepercorrem os caminhos tortuosos dosmatos nas noites de luar cheio.Quando se sentiram saciados, lam-buzados do mel e da água viscosa quebrevemente os unira na perdição, ficoucomo marca do diálogo que os corposmantiveram, a brusca revoada das per-dizes assustadas com o lancinante gritode dor do conhecimento que ganhara.O sangue virginal no capim não foichorado nem cantado pelas mulheres,como deveria, em afirmações honrosas.O último pingo da seiva amorosa queescorrera envergonhado das carnes jámarcadas pela maldição, teimosamen-te agarrou-se à pequena espiga dobra-da, até que a hiena sequiosa o lambeuem gargalhada esdrúxula do pôr do sol.Nunca mais se falaram, quase nuncamais se olharam, mas nos momentosinseparáveis em que ambos sonha-vam com as águas do rio transbordan-do raivoso pelas margens, nesses mo-mentos, como que por acção fatídica,encontravam-se para o amor, para atroca de fluidos, sempre sob a vigilân-cia acesa dos olhares albinos dos quenunca adormecem, dos que vivemcom os caranguejos doces.Aos dezassete anos engravidou. Pé-rola lançada no chiqueiro.O tio, em fuga para terras longín-quas e inacessíveis, lugares inenarrá-veis, ninguém mais dele soube.“Acusa o padre da missão, já temdois filhos.”, recomendou-lhe ainda.Aos dezassete anos engravidou mi-nutos quando foi derrubada a árvoreainda verdejante dos sonhos.“Acusa o padre da missão, não se-jas parva.” Engravidou horas, dias, se-manas, até o aterrador compasso do

14 |BARRA DO KWANZA 7 a 20 de Novembro de 2017 | Cultura

O FILHO

FRAGATA DE MORAIS

E viu-se outro sinal no céu;e eis que era um grande dragão vermelho...

e o dragão parou diante da mulherque havia de dar à luz, para que, dando à luz,lhe tragasse o filho. S. JOÃO - APOCALIPSE 12

Estatueta

BARRA DO KWANZA | 15Cultura | 7 a 20 de Novembro de 2017tempo não permitir mais aquele escon-der do inevitavelmente inescondível.Engravidou desesperos e raivas an-cestrais obscuras que desconhecia. Das mãos paternas, medrou chico-tes *cavalomarinhados em sulcos ar-dentes fendidos no corpo tenro, naira sempre justa e profunda da famí-lia secular, e na dança das kiandasinjuriadasFoi fechada, desterrada para o conven-to das madres carmelitas até ao fim dopernoitar do pecado, para o nascer alvo-roso do dragão encarnado, já que a noitenão é para ser vista com os olhos do dia.No parto-morte clamou por vin-gança no nome daquele que fustigarasua inocência, que saciara seu desejode virgem-fêmea não conhecedora

das regras com que a natureza joga ojogo dos calores e dos suores. Poisque a natureza se vingasse. Gemeu as entranhas até o filho nascere, ao sustentá-lo brevemente nos braçospara lhe inculcar todo o fundo tenebro-so de sua alma, cuspiu com o olhar em-baciado pela dor a maldição perpétua eautófaga. Só então sentiu a força das la-goas profundas a puxar, feliz e liberta. Na sala, o marido notou a esposa aarfar em agonia no sono, sentiu-a fe-bril ao tomar-lhe a mão.Tacteando, beijou-a com culpa insa-ciável, nem se lavara ao sair da aman-te. Esta, grata pela carícia, levou-lhe amão ao ventre e puxou-o a si, ardendonão da febre mas do desejo. Penetroucom a língua sedosa o bacio da orelha

do esposo e vasculhou-lhe os putre-factos segredos da alma.A vontade renascida entumeceu-lhe as calças, tentou ignorar. “Que si-tuação ridícula, não posso”.Todavia os lábios femininos insufla-ram a não mais o estertor do delírio. Equando a penetrou desvairado, sentiu acriança agarrar-lhe a força máscula, opénis, e a levá-lo para o ventre maternono momento supremo do prazer, da ago-nia, no explodir tumultuoso do plasma.Em seguida veio a paz e o ruído mei-go das cataratas deslizando sobre asrochas em musgo.Foi, na sala de visitas espaçosa, aolado do sofá de couro onde repousavao corpo inerte e putrefacto da compa-nheira, que os vizinhos o encontraram

sete dias mais tarde.Do carcomido ventre da esposa saiuassustado um sardão vermelho quedesapareceu por trás do cadeirãotronco de árvore, restolhando as fo-lhas secas das tristezas. O corpo da mulher exalava todo operfume e aromas mornos das festasdas divindades aquáticas.Ele, coitado, anunciava feliz aos ros-tos contritos de ansiedade, que o con-templavam em silêncio, que o filho fi-nalmente nascera.Agora que o desculpassem, teriaque ir buscar mel às colmeias e leite àstetas das cabras para o alimentar.In "Momento de Ilusão", Campo dasLetras, Portugal, 2000 e Edições Cháde Caxinde, Angola, 2000.

MAKA MA NDUMBA(MAKA NDUMBA)

QUESTÕES DIVERSAS

(I)Ngitatama ni usukusuku wenyo ujiza Sumbala ngadikolo kulenga dikanga Kudibala ku tandu dya nzo yami ni Ni ngitene hanji kuzekesa omutumini Kwila eme mwene ngala boba bu kanga Kisunji kyami kixi kwilembwesa kutuza! (II)Ngevu ku mukutu wami kuma mvula iza Ni kutubuka kwa matuta memita menya Madizanze mwenyomo ni utemenu ulaya Moxi ya ufutilu wa mwanya wavulu mukujiza! (III)Mu milemvu ya mwenyu ndumba aswama Kyenyeki anga adikisa okiswamenu kya Kyoso kyatunda kwenyoko kwavundu aya Kutambula kamwanya kandala kwaazukama! (IV)Omvula ijiza kutula kamwanyu uzediwisa Woso uzula mukutu wazulu mukuditakula Mu dizanga dya mwenyu ukudisa okitulu Okitulu kina kibana dizumba dina dyatulu Mukuvumuka mu jindemba jina jolokula Mukujikwata kyambote kina kala kyamwijidisa!(V)Okitulu kyavulu minya iminyisa kuzola Kyoso muxima udikwama kwenyoko anga Kuzola kwalenge anga ulembwa kusanga Mukwanyi usanga minya Ina imusosola!

(I) Enervo-me com essa chuva miúda que teima/Apesar de ter gritadoque fugisse para longe/Cair sobre o meu tecto, para que/Para que aindapossa fazer dormir quem ordena/Que sou eu mesmo que estou aqui fora/E oespírito afirma que a impeçam de mexericar!

(II) Tive a sensação de que chuva vem/Com a furação das nuvens grávi-das de água/Que lá se estendeu com o calor que vive/A expensas do sol quese excede em teimosia!

(III) Nos labirintos da vida muitos se escondem/E, assim, mostram o seuesconderijo/Quando saem da penumbra e vão /Receber um pouco de sol quedeles se quer abeirar!

(IV) A chuva que teima em chegar, devagar, torna feliz/Quem despe o cor-po molhado para atirar-se/No lago da vida que faz crescer a flor/Aquelaflor que oferece o odor que pousou/Para voar para aqueles cabelos que es-tão a crescer/Para agarrá-los bem tal como lhe deram a conhecer!

(V) A flor repleta de espinhos faz engolir o amor/Quando o coração ali sefere e/E o amor fugido não consegue achar/Quem encontra a espinha que odefinha!

MÁRIO PEREIRA

16 | NAVEGAÇÕES 7 a 20 de Novembro de 2017 | Cultura

ZÉLIA FERREIRA E NGUXI DOS SANTOSOURO DO LOUVRE PARA ANGOLAAartista plástica Zélia ReisFerreira foi distinguida dia23 de Outubro, em Paris,com o Prémio de Ouro, no âmbito da21.ª edição Art Shopping, exposiçãointernacional no célebre Carrousel duLouvre, pelo seu trabalho “Sorrisos”.Zélia Maria do Carmo Reis Ferreiranasceu na cidade das Acácias Rubras,província de Benguela, e está radica-da em Vilamoura, no Algarve, ondetem o seu atelier. Pintora e artistaplástica, é Diplomada do Instituto Di-derot de Belas Artes em Bruxelas, Bél-gica, (Antiga Escola do Sablon, no“Vieux Sablon de Bruxelles”) em Pin-tura de Aquarelas, Carvão, TrompeL’oeil, Falso Mármore, Arquitectura eDecoração de Interiores.O realizador N’guxi dos Santos, quese deslocou a Paris para uma reporta-gem sobre a artista plástica, foi tam-bém homenageado com uma meda-lha de ouro pelo seu trabalho em prolde Angola.Nascido a 22 de Janeiro de 1960, noNzeto, província do Zaire, Nguxi dosSantos foi repórter de guerra na Tele-visão Pública de Angola (TPA), na dé-cada de 80. Nguxi dos Santos e JoséRodrigues venceram, em 2015, na ca-tegoria de cinema e audiovisual, oPrémio Nacional de Cultura e Artescom o documentário “Langidila”, umaobra dinâmica que, num crescente es-tado de emoção, culmina com umasensação de que algo mudou em nos:um misto de orgulho pátrio com umamais sentida identidade nacional.A Arte Shopping comemorou esteano a 21.ª edição do encontro inter-nacional de arte contemporânea noCarrousel du Louvre.A Art Shopping reuniu cerca de 700artistas e galerias dos quatro cantosdo mundo. Esta 21.ª edição é sinóni-mo de mais de 10 anos de exposições.

Mais uma vez, o programa afirma oseu DNA: Acessibilidade para domi-nar uma obra de arte e talvez adquiri-la. ART Shopping renovou o seu amorpela fotografia e arte de rua que lá es-tiveram em dois espaços. Pintura, es-cultura, arte digital, fotografia e artede rua foram todas as disciplinas doprograma desta edição de 2017.O CARROSSEL DO LOUVREO Carrossel do Louvre tem esse no-me por conta da Praça do Carrossel si-tuada na frente da pirâmide principal.Uma vista aérea permite ver a base dapirâmide invertida sobre a praça. O seucume é visível de dentro da galeria.

A construção do Carrossel do Lou-vre foi pensada como uma extensãoda entrada em um projecto iniciadono início dos anos 90. Foi inauguradoem 1993 e é hoje um centro comercialapreciado do centro de Paris. As obrasdo Carrossel permitiram a descober-ta dos antigos fossos de Paris. Deci-diu-se que as ruínas medievais deve-riam ser preservadas em sua situaçãoinicial. São actualmente visíveis nagaleria do Carrossel, sendo parte inte-grante deste complexo. Esculturas fo-ram acrescentadas ao conjunto. Ocarrossel do Louvre tem um papelmais que prático para o museu, poisprotege os vestígios de seu passadocom uma zona arqueológica.

A força de uma mãe

A travessia

Zélia Ferreira e Nguxi

dos Santos

e

Zélia Ferreira junto a uma das suas obras