jornada de educação para promoção da igualdade racial

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ASSIM SE FAZEM GRANDES JORNADAS UM PASSO DEPOIS DO OUTRO A Primeira Jornada de Promoção da Educação para a Igualdade Racial foi realizada em março de 2009, em São João do Meriti. A Segunda Jornada aconteceu no princípio deste mês de novembro de 2011, em Nova Iguaçu – ambos, não por acaso, municípios da Baixada Fluminense, uma tradicional região de resistência, identidade e ancestralidade negra. Neste segundo momento, o que se pretendia era facilitar a reflexão e a troca de ideias e experiências sobre o processo de implementação da lei 10.639, nas escolas brasileiras. Nas semanas que antecederam a Segunda Jornada, Antônio Cesar Marques, diretor da ONG Se Essa Rua Fosse Minha e um dos idealizadores do encontro percorreu os vinte municípios da Região Metropolitana do Rio de Janeiro fazendo essas perguntas e convidando as Secretarias e escolas para o evento. Para complementar os preparativos do encontro, foi realizada a Jornadinha, um evento direcionado exclusivamente a crianças e adolescentes, que falaram de suas experiências e apresentaram sugestões para minorar o problema do racismo na escola. Para a mesa de abertura, compareceram representantes da Prefeitura de Nova Iguaçu, da Secretaria Municipal de Educação, da ONG Se Essa Rua Fosse Minha, da Universidade de Nova Iguaçu/UNIG (que acolheu o evento) e do UNICEF. Em sua fala, a Prefeita O QUE JÁ FOI FEITO? O QUE RESTA POR FAZER? O QUE PODE SER MELHORADO? Sheila Gama lembrou, não sem orgulho, que Nova Iguaçu é o primeiro município brasileiro a ter estabelecido cotas raciais para concursos públicos. Este foi, justamente, um dos motivos pelos quais o município foi escolhido como sede do evento.

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Evento que aconteceu nos dias 4,5 e 6 de novembro e discutiu, entre outras coisas, a implementação da lei 10.639.

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Page 1: Jornada de Educação para Promoção da Igualdade Racial

ASSIM SE FAZEM GRANDES JORNADASUM PASSO DEPOIS DO OUTRO

A Primeira Jornada de Promoção da Educação para a Igualdade Racial foi realizada em março de 2009, em São João do Meriti. A Segunda Jornada aconteceu no princípio deste mês de novembro de 2011, em Nova Iguaçu – ambos, não por acaso, municípios da Baixada Fluminense, uma tradicional região de resistência, identidade e ancestralidade negra. Neste segundo momento, o que se pretendia era facilitar a reflexão e a troca de ideias e experiências sobre o processo de implementação da lei 10.639, nas escolas brasileiras.

Nas semanas que antecederam a Segunda Jornada, Antônio Cesar Marques, diretor da ONG Se Essa Rua Fosse Minha e um dos idealizadores do encontro percorreu os vinte municípios da Região Metropolitana do Rio de Janeiro fazendo essas perguntas e convidando as Secretarias e escolas para o evento. Para complementar os preparativos do encontro, foi realizada a Jornadinha, um evento direcionado exclusivamente a crianças e adolescentes, que falaram de suas experiências e apresentaram sugestões para minorar o problema do racismo na escola. Para a mesa de abertura, compareceram representantes da Prefeitura de Nova Iguaçu, da

Secretaria Municipal de Educação, da ONG Se Essa Rua Fosse Minha, da Universidade de Nova Iguaçu/UNIG (que acolheu o evento) e do UNICEF. Em sua fala, a Prefeita

O QUE JÁ FOI FEITO? O QUE RESTA POR FAZER? O QUE PODE SER MELHORADO?

Sheila Gama lembrou, não sem orgulho, que Nova I guaçu é o p r ime i ro município brasileiro a ter estabelecido cotas raciais para concursos públicos. Este foi, justamente, um dos motivos pelos quais o município foi escolhido como sede do evento.

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História e Cultura Afro-Brasileira e Africana Ela foi criada em 2003, durante o mandato do Presidente Lula. Ela diz que “os estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira.” Os artigos explicam que: O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo de História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil.

Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de educação Artística e de Literatura e História Brasileiras. Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como “Dia Nacional da Consciência Negra”.

UMA ALTERNATIVA PARA O EUROCENTRISMO

O tema “Por Infâncias e Adolescências sem Racismo” foi abordado durante a Segunda mesa, pelo professor da PUC-Rio, Augusto Werneck, que é também Procurador Geral de Nova Iguaçu, por Wânia Sant'Anna, Consultora da Petrobras para questões de Diversidade e Jacques Schwarzstein, Gestor de Programas do UNICEF no Rio de Janeiro. Como síntese desta primeira mesa, ficou, entre tantas outras, a constatação de que, no Brasil, o processo de acumulação do capital tem sua origem no tráfico de escravos e na própria escravidão. Que por conta disso, não há lugar para eurocentrismo nas escolas. Que assim como se abre espaço, na educação, para a cultura e as tradições europeias, deve se abrir e garantir um mesmo espaço para a cultura e às tradições africanas. Que não é possível deixar em segundo plano, nas escolas brasileiras, as contribuições daqueles que, indiscutivelmente, estão na origem da riqueza do país. Wânia falou de três princípios básicos da educação, que, para ela, são acesso, permanência e conteúdo, destacando, porém que este sistema não funciona, “...porque escola é, algumas vezes, um lugar execrável para as crianças, principalmente as negras... Elas não se enxergam como participantes da escola e da sociedade... Tem que haver um plano para garantir a implementação da lei que propõe discutir a África e o legado da população negra neste país.” Lembrou ainda que ações como a criação da lei e encontros como a Jornada, não seriam hoje possíveis sem o trabalho desenvolvido pelo Movimento Negro, que foi o precursor na luta pelos direitos da população negra. Augusto Werneck, destacou que a redução das desigualdades é prevista já nos artigos da Constituição, que se trata de um dever da República e que todos podem basear-se diretamente nesses

artigos para trabalhar duro na implementação da lei. Neste contexto, dissertou sobre as Ações Afirmativas que, na sua visão, são coerentes com o texto constitucional, não havendo motivo para polêmica, quando delas se fala. Pelo contrário, destacou que essas ações são hoje centrais para o projeto de uma sociedade que já não aceita a perspectiva de uma vida baseada em qualquer forma de desigualdade estrutural ou simbólica. Quatrocentos professores, estudantes, pesquisadores e militantes se inscreveram e participaram da Jornada. Os grupos de trabalho e estudo se reuniram durante os três dias para desenvolver propostas de abordagem e promoção da igualdade racial não apenas durante as aulas de Geografia e História, mas também durante as aulas em que se fala de Matemática, Religiosidade, Mídia e Imagem, Corporeidade, Artes e Literatura, Ciências. A equipe dos GTEs (Grupos de Trabalho e Estudo) contou com palestrantes vindos de diferentes estados do país e focalizadores especializados em cada tema para a condução das discussões.

O QUE É A LEI 10.639?

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INTERDISCIPLINARIEDADE E ESTUDO DAS RELAÇÕES

ETNICORRACIAIS O professor Guimes Filho, da Universidade Federal de Uberlândia, foi o palestrante do GTE de Ciências. Ele falou do enorme conhecimento científico e tecnológico que nasceu na África, mas não é disponibilizado para os estudantes. “A maioria da população sequer ouviu falar neste assunto. Isso já figuraria como uma enorme justificativa para que a l e i s e j a , d e f a t o , i m p l e m e n t a d a interdisciplinarmente nas escolas”. No GTE de Literaturas, a escritora Heloísa Pires, de São Paulo, tratou da dificuldade de convencer as editoras a publicarem livros que destaquem contextos baseados na matriz africana. Por isso, a própria Heloísa idealizou, em 1999, a Selo Negro Edições, uma editora que tem como prioridade dar visibilidade a autores e ilustradores negros. “Temos que enxergar e valorizar esses profissionais. Além disso, esta literatura tem que ser disponibilizada não só para as pessoas negras, mas para todo mundo”, afirmou. Heloísa é uma das autoras de “A semente que veio da África” (Salamandra, 2006), livro premiado que conta histórias e lendas do Baobá em vários lugares do mundo, além de ter escrito também o premiado “Histórias de Preta” (Cia das Letrinhas, 1998). O GTE de Religiosidades teve um dos debates mais acalorados e teve como palestrante uma da referências do Movimento Negro Brasileiro, professor Ivanir dos Santos. Professores e professoras falaram da dificuldade de pôr em prática os estudos da África, principalmente por causa das crenças religiosas dos profissionais da educação. A professora da UNIABEU, Ivonete Souza, disse que para que a lei vigore é fundamental que as secretarias se articulem e trabalhem na preparação dos professores. De acordo com ela, o papel do educador não é só estar dentro da sala de aula, mas também é mobilizar e incentivar os alunos, aplicando

A professora da UNIABEU, Ivonete Souza, disse que para que a lei vigore é fundamental que as secretarias se articulem e trabalhem na preparação dos professores. De acordo com ela, o papel do educador não é só estar dentro da sala de aula, mas também é mobilizar e incentivar os alunos, aplicando a interdisciplinaridade. “Eles [os educadores] são a chave para que essa política dê certo, eles não podem apresentar resistência à proposta”, observou. Outra integrante do grupo disse que um dos caminhos é que o diálogo não fique limitado aos muros das escolas, mas que as CRAS e CREAS também participem deste processo.

a interdisciplinaridade. “Eles [os educadores] são a chave para que essa política dê certo, eles não podem apresentar resistência à proposta”, observou. Outra integrante do grupo disse que um dos caminhos é que o diálogo não fique limitado aos muros das escolas, mas que as CRAS e CREAS também participem deste processo. A primeira mesa do segundo dia de encontro falou dos aspectos psicológicos, filosóficos, sócio políticos e culturais do impacto do racismo na educação. Esta mesa teve a participação de representantes do GESTAR, da Secretaria Estadual de Educação, do INDEC (Instituto de Desenvolvimento Cultural) e da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). A professora Conceição Chagas, do GESTAR de Nova Iguaçu, abordou o aspecto psicológico do indivíduo que sofre racismo ainda na infância. “O racismo afeta o negro em sua psiqué e o faz negar sua origem. As escolas não identificam no negro uma figura positiva, pois, na maioria das vezes, ele é apresentado em uma posição de subalternidade – isso atrapalha o processo de libertação”, observou.

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Adailton Costa, do INDEC, mostrou que, ainda hoje, as crianças que vivem em comunidades de terreiros não podem “revelar” sua religião na escola – isso ainda é um grande tabu, que as faz viver em um processo de suprimir sua identidade. Ele contou sobre a dificuldade que ele mesmo tinha em encontrar reflexividade nos textos que lia. “Eu tinha que ler Nietzsche e não via nada da minha cultura naquilo, eu não entendia nada. Quantos de nós não desistiram no meio do caminho por causa disso?”, problematizou. Renato Nogueira, da UFRRJ, abordou os aspectos filosóficos do racismo na educação. Segundo ele, as culturas brancas são vistas como lugares de produção intelectual, enquanto aos negros só cabe o lugar da festa e do futebol. As tradições culturais e religiosas africanas, baseadas na oralidade, são portadoras de sofisticado conteúdo filosófico. Mesmo assim, sobrevive e impera a ideia de que a Filosofia é uma exclusividade do Ocidente (Europa e Estados Unidos), o que configura-se como grande problema para a identificação do negro como um verdadeiro ator social.” Durante o segundo dia do encontro, os GTEs tiveram a tarefa de começar a desenhar um Plano de Ação sobre cada tema, para apresentá-los à audiência no último dia do evento.

COMPROMISSOS ACADÊMICOS, POLÍTICOS, CULTURAIS E

PEDAGÓGICOS

O terceiro e último dia de Jornada, levou Eloy Ferreira, Presidente da Fundação Palmares, Luiz Cláudio Barcellos, da Secretaria Especial de Políticas e Promoção da Igualdade Racial/ SEPPIR, Nilma Gomes, do Conselho Nacional de Educação, Amaury Mendes, militante histórico do Movimento Negro Brasileiro e Jacques Schwarzstein, do UNICEF, à mesa dedicada aos Desafios e Compromissos Pol í t icos, Adcadêmicos, Pedagógicos e Culturais da Educação para a Igualdade Racial,. Jacques Schwarzstein, do UNICEF, apresentou trabalho desenvolvido com as escolas municipais do Rio de Janeiro através da campanha “Por Uma Infância sem Racismo”. Com o apoio de um grupo técnico integrado pela a Secretaria Municipal de Educação, A Cor da Cultura e Se Essa Rua Fosse Minha, foi elaborado um questionário de auto-avaliação para saber com que qualidade as unidades da rede estão implementando a lei 10.639. Os questionários foram preenchidos pelos Conselhos Escola-Comunidade em mais de 800 unidades da rede, permitindo a identificação de avanços e dificuldades e abrindo caminho para investimentos dirigidos para a melhora da situação. A partir do ano que vem, o UNICEF estará disponibilizando para todas as redes municipais do país, um kit com um questionário e um aplicativo capaz de produzir um relatório de resultados. .

O último dia de trabalho dos GTEs foi dedicado ao fechamento do Plano de Ação, que é uma espécie de documento de planejamento e fomento da implementação da lei, através do qual se busca reduzir os casos de racismo dentro das escolas. Cada grupo apresentou suas propostas na plenária.

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SUGESTÕES PARA AS FUTURAS CAMINHADAS

As principais sugestões apresentadas se relacionam com a participação de pais, escolares, gestores e professores na discussão da implementação da lei 10.639; com o trabalhar da religiosidade enquanto cultura; com o estudo das raízes africanas; com atividades artísticas que valorizem a cultura negra; com a ressignificação da imagem do estudante negro; com a integração das ciências com a religião; com a utilização da arte negra como forma de acesso social e com a promoção da interdisciplinaridade na abordagem de conteúdos de valorização da diversidade, das relações étnico-raciais e da cultura africana. Um dos principais frutos dos três dias de Jornada é a possível criação de uma rede entre os municípios participantes que vão estar sempre em contato para discutir e trocar experiências sobre a diversidade cultural e promoção da igualdade racial nas escolas. Antônio Cesar Marques, da Se Essa Rua Fosse Minha, falou sobre o assunto: “Uma das ideias faladas foi a da criação de uma rede de discussões de questões étnico-raciais entre os vinte municípios. Pensa, se tivermos dois ou três representantes de cada município, já teremos uma enorme representatividade de indivíduos preocupados e atuantes nesta questão. Os participantes já vieram me “oferecer” seus municípios para acontecer a próxima Jornada. Estou muito feliz e satisfeito com esse resultado”, concluiu.

“É muito importante ter um espaço de discussão de uma lei que já existe há um tempo, mas que ainda não é muito debatida. Essa discussão é bem vinda e necessária. Quem está participando aqui está sendo atingido e isso há de ter uma ressonância.”

(Kátia Santos, professora do Conservatório Brasileiro de Música)

Organismos Nacionais e Internacionais, sociedade civil e ONGs tem se esforçado para construir conhecimentos aplicados a partir da legislação nova [a lei 10.639]. Eles estão conseguindo gerar conhecimentos de maneira simultânea e interativa, não só para os gestores, mas também para os educadores. Isso impacta direto na metodologia, levando à implementação da lei para os professores e alunos. (Helena Oliveira, oficial de projetos do UNICEF)

“Essa jornada deu visibilidade e serviu como espaço de formação para o fomento das ações que já existem. É um contexto muito bom para a criação de uma rede entre esses 20 municípios – os professores que estão aqui não são exclusivos de uma escola e às vezes nem sempre do mesmo município. A adesão deles, apesar da dificuldade de locomoção e etc já demonstra um enorme interesse em querer integrar essa rede. O resultado, no geral, foi muito bom.” (Azoilda Trindade, Professora e Doutora em

Educação, consultora do UNICEF e do projeto A Cor da Cultura e uma das

idealizadoras da Jornada)

“Falamos muito de políticas de igualdade, mas não somos integrados. A jornada integra esses profissionais e cria um espaço democrático de discussão – gerando um impacto maior. Não é fácil dialogar com 20 municípios. Se esta troca não é feita, a gente também não consegue pensar em uma perspectiva mais global, integrando o país inteiro. Acho que o maior capital da jornada é esse.” (Dayse Marcello, coordenadora de políticas de igualdade racial de Nova Iguaçu e articuladora

do grupo gestor da jornada)

DEPOIMENTOS

Créditos:Fotos: Jorge FerreiraTexto e diagramação: Debora DantasEdição e colaborações: Jacques Schwarzstein, Azoilda Trindade, Augusto César Marques