jogos de azar

16
ISSN 1984-9583 Combate à jogatina em Goiás Ano II - n. 5 - jul/set 2010 Jogos de Jogos de Jogos de Jogos de Jogos de Jogos de Jogos de Jogos de Jogos de Jogos de Azar Azar

Upload: direito-legal

Post on 11-Mar-2016

226 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

jogos, azar

TRANSCRIPT

Page 1: Jogos de Azar

Fato Típico - jul/set 2010

ISSN 1984-9583

Combate à jogatina em Goiás

Ano II - n. 5 - jul/set 2010

Jogos deJogos deJogos deJogos deJogos deJogos deJogos deJogos deJogos deJogos de Azar Azar

Page 2: Jogos de Azar

Fato Típico - Goiânia, ano II, n° 5, jul/set 20102

Ano II - n. 5 - 2010

Fato TípicoRevista do Núcleo de Persecução Criminal daProcuradoria da República em Goiás (PR/GO)

EntrevistaChefe da PR/GOMarco Túlio de Oliveira e Silva

Coordenador do Núcleo de Persecução CriminalMarcelo Ribeiro de Oliveira

Conselho EditorialDaniel de Resende SalgadoLéa Batista de OliveiraWladimir Ferreira LimaViviane Sousa Lima Ribeiro de OliveiraLucas Carvalho de OliveiraMarcos Lee Araújo Matsunaga

ColaboraçãoMartha Izabel de Sousa Duarte

Produção jornalística(projeto gráfico, diagramação, reportagens e fotos)Ascom da PR/GOAldo RizzoJoanatha MoreiraMurillo BuarettoJoão Adolfo Amaral

RevisãoLudmila Pavlovna Déroulède

EndereçoAvenida Olinda, Edifício Rosângela Pofahl Batista,Quadra “G”, Lote 2, Park Lozandes, Goiânia/GOCEP 74884 120Fone: (62) 3243-5400E-mail: [email protected]

Tiragem1.000 exemplares

Expediente

07

04Psicóloga e escritoraSálua Omais fala das

consequências da jogatina

Nesta edição

ISSN 1984-9583

Bingos: muito além dalegalização (José Vagos)11

Por trás da jogatina emGoiás

Reportagem

Entrevista

Artigo

Page 3: Jogos de Azar

Fato Típico - jul/set 2010 3

Editorial

Insigne leitor,

Muito nos apraz apresentarmos outraedição da Revista Fato Típico,publicação oficial do Núcleo de

Persecução Criminal da Procuradoria daRepública em Goiás.

Escolhemos nesta oportunidade tratar sobre atemática dos jogos de azar, seus aspectos jurídicose sua alta nocividade ao indivíduo e à sociedade.Momento oportuno, podemos dizer, porquantoaprovado na Câmara dos Deputados umsubstitutivo de projeto de lei com vistas a legalizara atividade. Semelhantemente àsedições anteriores, ocupamo-nosem trazer não somente as açõesdesenvolvidas pelo MinistérioPúblico Federal no Estado deGoiás, mas, de igual forma,fomentar relevantes discussõessobre o tema, bem comocolacionar trabalhos científicos aele pertinentes.

De fácil acesso, o lúdicocombinado com a possibilidade delucro tem sido, há várias décadas,alvo de debates. Para os que militam a legalizaçãodos jogos de azar, erigem-se como justificativas ainofensividade da prática, a opção de lazer, ageração de empregos e o crescimento daeconomia do país. De outro lado, os opositores àautorização da jogatina firmam como argumentoso grave dano à saúde, à ordem e à segurançapública que os jogos acarretariam.

Subsiste, portanto, a indagação: os supostosbenefícios que podem ser trazidos com os jogosjustificam os malefícios por eles ocasionados?

Sob o prisma da saúde pública, com a proliferaçãodos jogos, aumenta-se o número de jogadorespatológicos e as consequências prejudiciaisindeléveis do vício nos âmbitos psíquico, físico,familiar e profissional. Na óptica da ordem e dasegurança pública, a legalização dá azo à

intensificação da lavagem de dinheiro, corrupçãoe sonegação fiscal.

Noutro aspecto, saliente-se que a legalização dosjogos de azar não almeja legitimar novel ramoeconômico aberto a qualquer empreendedor.Busca-se, porém, outorgar legalidade e proteçãoàs ações delituosas de megacontraventoresproprietários do mercado da jogatina. De mais amais, os órgãos fiscalizadores do governo jádeclararam sua imaturidade para fiscalizar aprática de jogos azar.

É nesse contexto que, ciente desua missão constitucional depromover a defesa do regimedemocrático, da ordem jurídica edos interesses sociais e individuaisindisponíveis, bem como de seuimportante papel como agente detransformação da realidade social,em esforços hercúleos, trabalha oMinistério Público Federal pormeio da Procuradoria da Repúblicaem Goiás.

Desde o ano de 2006, o Ministério Público Federalem Goiás, em trabalhos articulados com a ReceitaFederal, Polícia Federal e Ministério PúblicoEstadual, combate a ilegalidade dos jogos de azare seus delitos conexos.

Nada obstante as vicissitudes que circundam atemática, a atuação do Ministério Público Federalem Goiás tem-se mostrado crucial, ora noexercício do seu mister, ora trazendo a lumeessenciais discussões e estudos direcionados.

Dessarte, segue doravante nossa colaboraçãopara o aperfeiçoamento dos estudos sobre amatéria em comento, sempre com o anelo deestimular o debate e mostrar nossas ações nadefesa da sociedade.

Marcos Lee Araújo Matsunaga

O lúdicocombinado com apossibilidade de

lucro tem sido, hávárias décadas,alvo de debates.

Page 4: Jogos de Azar

Fato Típico - Goiânia, ano II, n° 5, jul/set 20104

Entrevista

Julya Sotto

Sob a escravidão do jogo

“Para cada indivíduo com o transtorno,aproximadamente quatro, dentro do seu

círculo social, sofrem algum tipo deprejuízo em função do jogador”

Sálua Omais

Adiscussão a respeito dalegalização dos jogos de azarainda é uma questão

controversa. As consequências dajogatina para o indivíduo e para asociedade são maiores que osbenefícios que podem ser trazidos pelaatividade à economia e à geração deempregos. Tal paradoxo e outrospontos cruciais para esse debate é oteor da conversa que a Revista FatoTípico teve com a psicóloga SáluaOmais, também formada em Direito.Autora do livro “Jogos de Azar:Análise do Impacto Psíquico eSociofamiliar do Jogo Patológicoa partir das Vivências do Jogador”(Juruá Editora, 176 páginas), ela fezsua dissertação de mestrado sobre oassunto. Acompanhe.

Qual é a sua posição em relação àlegalização dos jogos no Brasil?

Para legalizar uma atividade que trazprejuízos à sociedade, não cabeutilizar os argumentos de que trariabenefícios para o país – como ageração de empregos, fortalecimentode áreas de turismo e aumento daarrecadação de impostos – pois amesma lógica teria que ser aplicadana legalização da indústria de drogase substâncias psicoativas, cujoimpacto econômico, social e fiscaltraria tanto ou até mais lucros, doponto de vista financeiro, do que aindústria do jogo. Em razão disso, épreciso ter muita cautela antes de seaprovar uma lei, cujo impacto podeafetar de forma profunda a sociedade,

Page 5: Jogos de Azar

Fato Típico - jul/set 2010 5

analisando não apenas dados numéricos oueconômicos, mas, sobretudo, qualitativos e sociais.

Quais são os principais malefícios que alegalização pode causar?

À medida que a oferta de jogo aumenta, o númerode jogadores patológicos também aumenta. Comisso, a regulamentação da jogatina abriria espaçopara a proliferação de casas de jogos e dificilmentehaveria possibilidade de o governo ter um totalcontrole sobre o seu funcionamento. Além disso,muitos equipamentosrelacionados aos bingos ejogos eletrônicos podemapresentar irregularidades quenem sempre passam por umafiscalização efetiva. E há aindaos riscos de vício que ajogatina pode provocar, quegeram prejuízos imensuráveisnos âmbitos psíquico, físico,familiar, profissional, legal esocial. A legalização dos jogostraz ainda sérios riscossociojurídicos, pois podefacilitar a formação deorganizações ligadas a crimesde lavagem de dinheiro,corrupção, sonegação fiscal.

Como o Estado deve trataro jogador patológico?

O melhor remédio ainda é aprevenção. Daí a importânciatão grande do Estado nesseprocesso. Ele tem o dever dezelar pela saúde dos cidadãos, e, a partir domomento que legaliza uma atividade na sociedade,essa abertura passa a ser vista como algo seguro,inofensivo, já que tem o aval do próprio governo.Com isso, fica muito difícil conscientizar apopulação sobre a prevenção do problema. Existea necessidade de uma ação conjunta do poderpúblico – sobretudo do poder legislativo – em serealizar uma reflexão profunda sobre essaproblemática antes de legalizar os jogos de azar

no país, analisando não apenas a riqueza que essasatividades podem trazer, mas também o impactonegativo que podem ter sobre todos os setoresda sociedade brasileira.

Ao legalizar os jogos, o Estado contribui paraaumentar ainda mais o problema?

Sim. O aumento do número de estabelecimentosde jogos de azar no país pode gerar um problemade saúde pública, tão ou mais grave do que o uso

de substâncias psicoativas.Vários estudos relatam que alegalização dos jogos de azartende a aumentar os índicesde problemas na sociedade.Para cada indivíduo com otranstorno, aproximadamentequatro, dentro do seu círculosocial, sofrem algum tipo deprejuízo em função do jogador.O maior problema do jogopatológico é contabilizar oscustos das perdas não-materiais, ou seja, medir aquiloque não é possível ser medido,como a perda de confiança,as lágrimas, o sofrimento, araiva passada, a vergonha, oressentimento, a culpa e todosos outros sentimentos quedeixam profundas cicatrizesemocionais. Não é apenasuma questão de segurançapública, mas, sobretudo, desaúde pública.

O Brasil está preparadopara tratar esses casos patológicos?

Não. Inicialmente, há uma falta de informaçãogeral da sociedade a respeito dessa problemática,tendo em vista que muitas vezes nem mesmo opróprio jogador, afetado pela jogatina, aceita quetem o problema. Em segundo lugar, os própriossetores ligados à saúde pública não possuemprofissionais capacitados para lidar com essepúblico, sendo raríssimos os centros especializados

O Estado tem odever de zelar pela

saúde doscidadãos, e, a

partir do momentoque legaliza uma

atividade nasociedade, essaabertura passa aser vista como

algo seguro,inofensivo, já que

tem o aval dopróprio governo.

Page 6: Jogos de Azar

Fato Típico - Goiânia, ano II, n° 5, jul/set 2010

6

“Era, no papel, o negócioperfeito, porém, no dia emque tivessem que pagar adívida, não se teria caixa”

Marcos Santos

no atendimento de jogadores patológicos no país,como, por exemplo, o AMJO (Ambulatório do JogoPatológico), em São Paulo. Por fim, como otratamento é bastante complexo – já que não hásequer medicação para o distúrbio (apenaspsicoterapia) –, torna-se ainda mais difícilcontornar o problema.

O que leva as pessoas a se interessarem pelojogo de azar?

São vários os motivos. Algumas são influenciadaspor amigos ou familiares quejá jogavam anteriormente;outras já possuem atraçãopelos jogos desde aadolescência. Há aquelas quecomeçam a frequentar casasde jogos apenas socialmente,para acompanhar amigos e,com o passar do tempo,acabam se arriscando. Doponto de vista psicológico, oque pode levar alguém a seenvolver com o jogo sãoaspectos negativos oufragilizados da suapersonalidade, relacionadosprincipalmente à baixaautoestima, à necessidade deautoafirmação, à depressão, àfalta de assertividade, àsdificuldades perantesentimentos de hostilidade e de desmerecimento,à inabilidade de suportar o estresse e de identificarou expressar sentimentos.

É possível, em geral, traçar um perfil dojogador patológico?

Não é possível traçar um perfil exato, já que osjogos de azar estão distribuídos de diversasmaneiras na sociedade, desde o jogo do bicho oucarteado aos luxuosos bingos ou cassinosinternacionais, e até mesmo na internet. Alémdisso, o jogo patológico afeta indivíduos de diversas

faixas etárias, níveis educacionais esocioeconômicos. Alguns estudos encontraram umnúmero maior de indivíduos solteiros, do sexomasculino e de baixo nível educacional. Contudo,outros autores detectaram que muitos jogadorespatológicos são casados, com idade acima de 40anos, bem inseridos no mercado de trabalho e comelevado nível educacional e alta renda.

Quais os prejuízos psicológicos provocadosao jogador pela dependência?

Nas primeiras vezes que frequenta o jogo, osprincipais sentimentos esensações percebidos pelojogador são sensaçõesprazerosas de expectativa, deliberdade e de superioridadesobre os outros. No entanto,logo após o jogo, ossentimentos percebidos porele são de raiva, culpa,tristeza, arrependimento comrelação às perdas, impotênciaperante o ato de jogar,humilhação e vergonha diantedos outros. Podem surgiroutros vícios como o fumo eo uso de álcool.

Quais os tratamentos paralivrar a pessoa dessadependência?

Ainda não existe qualquermedicamento aprovadoespecificamente para o

tratamento do jogo. Os mais indicados são apsicoterapia, terapia individual e de grupo,participação nas Associações de JogadoresAnônimos (JA) e a terapia familiar. Além disso,sessões de relaxamento, filmes educacionais queexpliquem sobre a problemática do jogo, aulas deadição e terapia conjugal também podem auxiliar.O tratamento para a dependência do jogo éextremamente difícil, de longo prazo, podendo tervárias recaídas. Mas a melhor opção, no casoem questão, é a prevenção.

A legalização dosjogos traz sérios

riscossociojurídicos,

pois pode facilitara formação deorganizações

ligadas a crimes delavagem de

dinheiro,corrupção,

sonegação fiscal.

Page 7: Jogos de Azar

Fato Típico - jul/set 2010 7

CAPACapa

Apesar de intervalos de suposta“legalidade”, o jogo de azar é proibido noBrasil desde 1946. Mais de meio século

de proibição é resultado das consequênciasnocivas dessa atividade à sociedade e ao indivíduo.O combate aos malefícios dessa contravençãopelos órgãos de persecução é permeado dedificuldades criadas principalmente pelainfluência, poder e corrupção de grupos poderososque exploram essa atividade.

Nos últimos anos, malgrado um trabalho intensodo Ministério Público Federal (em Goiás, peloNúcleo de Persecução Criminal) para erradicaressa prática – principalmente a proliferação decaça-níqueis e vídeo bingos – a iminenteaprovação na Câmara dos Deputados de umsubstitutivo de projeto de lei para legalizar aatividade (confira detalhes no artigo de JoséAugusto Simões Vagos, páginas 11 a 15) faz comque a Revista Fato Típico dedique esta edição aodebate da temática, mostrando o trabalho do MPFem Goiás e os problemas relacionados aos jogosde azar.

Em âmbito federal, a atuação no combate àjogatina ilegal é embasada na repressão aos crimesde contrabando (artigo 334 do Código Penal) –por existir mecanismos e equipamentos

importados clandestinamente –, bem como delitoscontra a economia popular.

O trabalho geral de persecução ganhou força coma edição de uma Instrução Normativa pelaReceita Federal (IN n° 093), no ano de 2000. Deacordo com a norma, as máquinas paraexploração de jogos de azar procedentes doexterior e de importação proibida devem serapreendidas para aplicação da pena deperdimento. Basta, para isso, que os equipamentosou peças tenham procedência estrangeira.

Em Goiás, laudos periciais em máquinas de caça-níqueis apontaram que boa parte das peças éproveniente de locais como Inglaterra, Cingapurae Filipinas, entre outros países. Houve empresasem Goiânia que chegaram a montar mais de 300máquinas ao mês, no ano de 2006. Por mais deuma década, a jogatina no estado foi controladabasicamente por dois grupos, mas em 2005 já eram31 proprietários de máquinas e 21 empresas quebuscavam se firmar no mercado.

Nesta luta de influências e poderes, as ações derepressão do MPF em Goiás se intensificaramem 2007, principalmente com o entendimento doSupremo Tribunal Federal (STF) de que as leisestaduais que autorizavam o funcionamento dascasas de jogos seriam inconstitucionais.

Por trás da jogatina em GoiásPor trás da jogatina em Goiás

Page 8: Jogos de Azar

Fato Típico - Goiânia, ano II, n° 5, jul/set 2010

Com respaldo do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, aempresa Meneses Diversões e Eventos mantinha, por meiode mandado de segurança (n° 200601353077), a exploraçãode 400 máquinas caça-níqueis e outras atividades ilegaisligadas aos jogos de azar no território goiano.

Entretanto, a partir de um dossiê elaborado e encaminhadopelo Núcleo de Persecução Criminal do MPF/GO àProcuradoria-Geral da República, o então PGR ingressou comuma suspensão de segurança solicitando fosse cessada aatividade, com base na inconstitucionalidade das leis estaduaisn° 13.639/2000 e n° 13.672/2000.

Em sua decisão, ao analisar pedido do MPF, posicionou-se aministra Ellen Gracie, presidente do STF no período(Suspensão de Liminar n° 133), que “No presente caso,entendo que se encontra devidamente demonstrada a gravelesão à ordem e à segurança públicas, pois a manutenção daatividade de exploração de produtos lotéricos comexclusividade de terminais de vídeo-loteria off line e on lineem favor da impetrante (Meneses Diversões), é medida quenão se compatibiliza com a natureza contravencional dessaatividade. Além disso, a decisão impugnada (pelo Tribunal deJustiça do Estado de Goiás), ao impedir o legítimo exercíciodo poder de polícia, o qual, no caso, destina-se a prevenção eà repressão da prática de contravenção penal, configuraofensa à ordem pública”.

Naquela mesma época, a Comissão Parlamentar de Inquérito(CPI) dos Bingos no Congresso Nacional apresentou relatóriofinal. Uma das conclusões referentes a Goiás foi quebingueiros, bicheiros e proprietários de máquinas caça-níqueisestão por trás dos mesmos negócios no estado.

As investigações dos parlamentares mostraram que o jogose caracterizava pela capilaridade, ou seja, pela distribuiçãode unidades de aposta em diferentes regiões. Por trás dojogo, estava a prática de crimes como sonegação fiscal,lavagem de dinheiro, contrabando, crime contra a economiapopular e falsidade ideológica. Um dos esquemas paramanter-se no “negócio” era a instalação de caça-níqueis embares, padarias e postos de gasolina, destinadas a apostadoresde menor poder aquisitivo, bem como a associação entre obingo tradicional e o eletrônico.

PersecuçãoAs estratégias adotadas pelos procuradores da República paracoibir a proliferação do jogo em Goiás incluíram desde açõesem conjunto com outros órgãos – como a ReceitaFederal do Brasil, Polícia Federal, Ministério Público Estadual– para obter o levantamento dos locais onde existiam

8

1993 – Aprovada a Lei Zico (lei n°8.672/93), ficou autorizada àsentidades de administração e práticaesportiva a explorarem, em caráter deexclusividade, os jogos de azar,desde que as receitas sedestinassem ao incentivo esportivo.

1998 – A Lei Pelé (lei n° 9.615/98) éeditada para corrigir as falhas danorma anterior e é regulamentadapelo Decreto 2.574/98.

2000/2001 – Escândalos envolvendoos bingos levam à promulgação dalei n° 9.981/2000, revogando a LeiPelé. Os bingos voltam a ser ilegais.

1946 – Os jogos de azar passam aser considerados contravenção penal,proibidos em todo o território nacionalpelo Decreto-Lei 9.215/1946.

2006 – A CPI dos Bingos noCongresso Nacional apresentarelatório final.

2007 – Operação Hurricane édeflagrada com a prisão demagistrados e policiais envolvidoscom a máfia dos jogos de azar.Decisão do STF não permite aimportação ou exploração daschamadas máquinas caça-níqueis.

Atualmente tramita no Congresso Nacional projetode lei para regularização dos jogos de azar no país.

Os chineses foram os primeiros a registraroficialmente a prática dos jogos de azar, em

2300 a.C.

Na História

Page 9: Jogos de Azar

Fato Típico - jul/set 2010 9

máquinas caça-níqueis a pedidos de busca e apreensõesem diversas casas de jogos.

O resultado foi o desmantelamento da prática ilegal, com ofechamento de diversas localidades que exploravam caçaníqueis e vídeos bingos e o oferecimento de denúncia contraalguns dos exploradores da jogatina no estado, por práticado crime de contrabando e crime contra a economia popular.

Em abril de 2007, por exemplo, o MPF/GO obtevedeferimento de pedido de busca e apreensão em sete casasde bingo em Goiânia. Além de máquinas caça-níqueis,computadores, livros contábeis e documentos foramapreendidos como prova da prática ilegal.

As máquinas caça-níqueis e os “bingos eletrônicos” eram,pelo menos em parte, compostos por peças e equipamentosde importação proibida, caracterizando crime decontrabando. Além disso, a exploração comercial dessasmáquinas caracterizou crimes contra a economia popular econtravenção penal (art. 2º, IX da lei n° 1.521/51 e 50 daLCP). Outros dois pedidos de medidas cautelares de buscae apreensão foram protocolizados em 2007, um em julho eoutro em setembro, todos relativos a estabelecimentos nacidade de Anápolis.

Na seara do consumidor, foram concedidas liminares parao fechamento de diversos bingos. Em ação civil pública, foiimpedido o funcionamento, em Goiás, de estabelecimentosirregulares de jogos de azar. Em atuação conjunta dessaárea com o Núcleo de Persecução Criminal, foirecomendada ao Município de Goiânia a inibição daexploração das atividades de jogos ilegais. O resultado foia cassação de diversos alvarás de funcionamento pelaPrefeitura Municipal.

A recomendação ao Poder Executivo Municipal foi um

esforço do MPF/GO para “minimizar em Goiás aorganização criminosa em torno dos jogos deazar”. Os procuradores da Repúblicarecomendaram também à Receita Federal, àJunta Comercial e aos Cartórios que seabstivessem de praticar atos administrativo emrelação às empresas que tivessem como atividadea exploração de jogos de azar. A recomendaçãose embasava na lei n° 8.934/94 que proíbe oregistro de documentos que não obedeçam àsnormas legais ou regulamentares.

Outra ação preventiva foi criar, na página dainternet da Procuradoria da República em Goiás(www.prgo.mpf.gov.br), um canal para que apopulação pudesse noticiar possívelfuncionamento de empresas de jogos de azar.Houve o recebimento de diversas notícias deexploração de máquinas, inclusive algumasrelatando os vícios que dilaceravam as famílias.“O meu pai joga nas máquinas caça-níqueis todosos dias e minha mãe já está querendo largar dele,porque ele está deixando de comprar coisas pracasa para ir jogar”, relatou um cidadão.

Em 2008, o MPF/GO processou três pessoasenvolvidas com esquema de montagem edistribuição de máquinas caça-níqueis para omercado ilegal de jogos. Os sócios da empresa“Forte Diversões Eletrônicas” Olímpo José deAlencar, Euler Charles Cunha e Celson de CastroJúnior foram acusados de contrabando. “Asmáquinas fabricadas no exterior ou fabricadas emterritório nacional com componentes estrangeirossão de importação proibida desde outubro de 1999,

Atuação do MPF/GO2006 - Identificados os pontos de caça-níqueis no estado de Goiás.

2007 - Propostas diversas medidas cautelares de busca e apreensão, com desmantelamento de “locais” com a presençade caça-níqueis em Goiânia e Anápolis.

2007 - Ação conjunta entre o Ofício de Tutela do Consumidor e o Núcleo de Persecução Criminal recomenda ao PoderExecutivo Municipal cassar alvarás de funcionamento de estabelecimentos que exploram jogos de azar em Goiânia, além deexpedir recomendação à Receita Federal, à Junta Comercial e aos Cartórios para não registrarem tal atividade no estado.

2008 – “Empresários” de caça-níqueis são denunciados pelo Ministério Público Federal em Goiás.

Page 10: Jogos de Azar

Fato Típico - Goiânia, ano II, n° 5, jul/set 201010

Inconformados, os “empresários” dos jogos deazar moveram várias ações judiciais. Em diversosestados, por meio de liminares, foram mantidasem funcionamento casas de bingo. No entanto,predominou a tese de que não havia espaço noordenamento atual para a exploração da jogatinacomercial, mesmo se existentes legislaçõesestaduais permissivas, uma vez que foramconsideradas reiteradamente inconstitucionais,dada a competência exclusiva da União paralegislar sobre o assunto.

Em Goiás, a atuação do Ministério Público Federalfoi crucial para neutralizar essas atividades, orapor meio de recomendação ao Poder Público, orarecorrendo ao judiciário federal, em todas as suasinstâncias, para assegurar que interessesindividuais não sobrepusessem à coletividade.

ConsequênciasClassificado como transtorno psiquiátrico, o jogopatológico atinge, em média, 10% da populaçãobrasileira, números apresentados na dissertaçãode mestrado da psicóloga Sálua Omais (confiraentrevista nas páginas 4 a 6). “Apesar de existir,há muito tempo, entre as mais diversas culturas,os jogos de azar ainda seduzem milhares depessoas por meio do lúdico combinado à sorte,bem como do prazer associado à probabilidadede ganhar”, relata.

O mecanismo psicológico de dependência do jogoé bastante semelhante à dependência de drogas.Estudos revelam que 47% a 52% dos jogadoresfazem uso de álcool ou outra substânciapsicoativa. As estruturas cerebrais ativadasenquanto a pessoa está jogando são as mesmasque uma pequena infusão de cocaína ativaria,demonstrando que o jogo e a droga atuam nasmesmas estruturas cerebrais.

“Se por um lado a jogatina proporciona lucro egrande movimentação financeira dentro de umasociedade, por outro ela traz prejuízos psíquicos,sociais e econômicos tão ou mais importantes doque os ganhos materiais obtidos para essa mesmasociedade”, destaca Sálua.

Estudos comprovaram, ainda, que a legalizaçãoe a abertura de novas casas de jogos aumentama prevalência de transtornos psiquiátricos.

sendo passíveis de apreensão e aplicação de penade perdimento”, argumentaram os procuradoresda República em Goiás.

HistóricoA exploração dos jogos de azar no Brasil éproibida em todo o território nacional pelo Decreto-Lei n° 9.215/1946, bem como a importação decomponentes eletrônicos (Receita Federal, IN n°093). A exceção sempre foi a exploração do jogopelo Estado, por meio de loterias diversas(Decreto-Lei nº 6.259, de 1944), com o objetivode canalizar recursos para o custeio de programassociais, sob tutela da Caixa Econômica Federal.

Apesar disso, ainda hoje, a legislação brasileiraestá indefinida em relação aos jogos de azar;exemplo disso é a tramitação de projeto de lei noCongresso Nacional para regularização daatividade (PL n° 2254/07 e PLs n° 2944/04 e n°3489/08), além de, por duas vezes, os bingos teremsido supostamente “legalizados”: no ano de 1993,por meio da Lei Zico, e no ano de 1998, com aLei Pelé.

A Lei Zico (lei n° 8.672/93), em caráter precário,temporário e provisório, autorizava as entidadesde administração e prática esportiva a explorarem,em caráter de exclusividade, os jogos de azar,desde que as receitas se destinassem ao incentivoda área esportiva.

A falta de clareza das modalidades de jogoshabilitadas pela lei (passavam a ser permitidosbingo, sorteio numérico, bingo permanente e“similares”) levou à edição da Lei Pelé (lei n°9.615/98), regulamentada pelo Decreto n° 2.574/98. Dessa forma, o bingo só poderia ser realizadoem duas modalidades: bingos permanentes eeventuais, sempre vinculados à obtenção derecursos para o desporto.

Em razão de escândalos envolvendo os bingos, aUnião retrocedeu e pôs fim a toda espécie debingo, com a promulgação da lei n° 9.981/2000.“Ficam revogados, a partir de 31 de dezembro de2001, os artigos 59 a 81 da lei n° 9.615 – Lei Pelé– de 24 de março de 1998, respeitando-se asautorizações que estiverem em vigor até a datada sua expiração”. A partir do ano subsequente,os bingos caíram novamente na ilegalidade.

Page 11: Jogos de Azar

Fato Típico - jul/set 2010 11

Artigo Por José Augusto Simões Vagos

Sumário: I- Introdução. II- A ineficácia dalegalização sob a perspectiva do controledo Estado. III- A ineficácia da legalização

sob a perspectiva dos destinatários da lei. IV- Osdonos do jogo clandestino: monopóliointransponível. V- Conclusões.

I- IntroduçãoTramita na Câmara dos Deputados umsubstitutivo de projeto de lei que pretende legalizara exploração de bingos, videobingos e videojogos(caça-níqueis)1.

Os seus defensores garantem que dessa vezforam criados mecanismos suficientes ao controledo Estado contra a lavagem de dinheiro e asonegação de impostos. Seriam arrecadadosanualmente cerca de sete bilhões de reais emtributos e criados mais de cem mil postos detrabalho formais, sendo que 17% do lucro daatividade seriam divididos entre a saúde, osesportes, a cultura e a segurança pública. Osprogramas de computador dos jogos seriam

Bingos: muito alémda legalização

Bingos: muito alémda legalização

Procurador da República no Estado do Rio deJaneiro, José Vagos é representante do

Ministério Público Federal no Grupo Nacionalde Combate às Organizações Criminosas

definidos tecnicamente e homologados peloMinistério da Fazenda, e estariam ligados emtempo real com o Conselho de Controle deAtividades Financeiras (Coaf) e a Receita Federal.

Já os seus opositores sustentam que essesmecanismos não seriam aptos a evitar a lavagemde dinheiro e a sonegação fiscal; que a estimativade arrecadação de tributos está inflada (R$ 7bilhões), já que, enquanto os bingos estiveram nalegalidade (Lei Pelé, entre 1998 e 2002), osvalores de fato não chegaram sequer a 1% dessacifra; que os repasses sociais seriam ínfimos, hajavista o histórico de subfaturamento formal dessasempresas; e, os tributos arrecadados e empregoscriados não compensariam os gastos públicos como tratamento dos viciados patológicos (ludopatas)e os efeitos nefastos sobre as famílias arruinadaspelas dívidas de jogo2.

A proposta já foi aprovada pelas comissõespermanentes. Mas, antes de levar o projeto ao

Page 12: Jogos de Azar

Fato Típico - Goiânia, ano II, n° 5, jul/set 201012

Entrevistaplenário, o presidente da Câmara, deputado MichelTemer, convocou uma comissão geral, havida em30/04/2010, quando diversos especialistas noassunto apresentaram em tribuna sua visão sobreo tema. Nessa oportunidade, o presidente do Coaf,Antônio Gustavo Rodrigues, foi taxativo aoafirmar que “os mecanismos para mitigar osriscos das casas de jogos que constam daproposta atual não são adequados”, e que oCoaf e a Receita Federal – responsáveis pelafiscalização, conforme a proposta – “não estãopreparados para isso”. Essa opinião foicompartilhada por diversas autoridades presentes,inclusive o representante do Ministério daFazenda3.

II- A ineficácia da legalização sob aperspectiva do controle do EstadoSe os próprios órgãos queseriam os responsáveis pelafiscalização dos bingosmanifestaram publicamente aabsoluta falta de condições defazê-lo, como esperar do nossoparlamento postura outra quenão a sumária rejeição doprojeto?

Em excelente artigo intitulado“A legalização dos bingossob prisma da lavagem dedinheiro”4, o procurador daRepública Deltan MartinazzoDallagnol, integrante do grupo de trabalho emlavagem de dinheiro do Ministério Público Federal,conclui de forma irrefutável sobre a inviabilidadede controle da lavagem de dinheiro e dasonegação de tributos nos bingos. Como bemesclareceu, “quando é o próprio titular dobingo que promove a lavagem, resta inócuaqualquer regulamentação do COAF quedetermine a comunicação de operaçõessuspeitas, pois é o próprio lavador, comoagente obrigado, que detém em suas mãos asrédeas que lhe permitirão omitir qualquercomunicação sobre negócios ilícitos por elegeridos.”

Esse descontrole sobreleva ao considerarmos aestimativa de criação de nada menos que 1.500

bingos no Brasil a curto prazo, pelo menos segundoas projeções dos defensores do projeto (númeroeste utilizado na especulação sobre os empregosque seriam criados e os tributos que seriamarrecadados). A exagerada quantidade de bingos,estimulada pelo projeto, está em evidentedescompasso com a realidade dos órgãosnacionais de controle, ainda que estes fossemdotados de estrutura de fiscalização de primeiromundo. Para se ter uma ideia da realidade deoutros países da América Latina, na Argentinaexistem apenas 70 casas de jogos oficiais,enquanto no Chile são 7, no Uruguai 17 e noParaguai 35.

Nesse contexto de imediata proliferação de casasde jogo, cujo número superaria todos os cassinosque existem no mundo6, alguns comandos do

projeto parecem piadas de maugosto. Por exemplo: odispositivo que limita aquantidade de bingos porhabitantes em cada cidade e oque dispõe sobre a distânciamínima de escolas, além deoutros comandos criados “parainglês ver”, como o utópicocontrole de entrada de viciadospatológicos (a “galinha dos ovosde ouro”); ou o dispositivo queprevê capital social mínimo deR$ 500 mil para a constituição

formal dos bingos (quando muitos arrecadavamem 2002 quase metade desse valor apenas numúnico dia); ou, por fim, o que limita a exploraçãode três bingos por dono, exigindo ainda que esteseja pessoa idônea (requisitos facilmente burláveis,como se viu do fértil “laranjal” plantado durante avigência da Lei Pelé).

Outra forma de controle do Estado que ficariaseriamente prejudicada seria a de importação doscomponentes das máquinas eletrônicasprogramáveis. Isso porque, embora o projeto nãopreveja a exploração de caça-níqueis fora dosbingos – que continuaria, portanto, ilegal – estariaa Receita Federal impedida de negar odesembaraço para as declarações de importaçãoque classificassem o produto como destinados ao

Os próprios órgãosque seriam os

responsáveis pelafiscalização dos

bingos manifestarampublicamente aabsoluta falta de

condições de fazê-lo.

Page 13: Jogos de Azar

Fato Típico - jul/set 2010 13

“Os administradores daAvestruz Master tentavam, de

todas as formas, burlar e escaparda fiscalização da CVM”

Julya Sotto

uso no interior de bingos. Vencida a zona primáriade fiscalização, seria praticamente impossível aoórgão fazendário fiscalizar o destino daquelesitens, que certamente seriam desviados paraexploração em bares, padarias e bingosclandestinos. Efeito disso seria a reposição maisrápida e a menor custo das máquinas apreendidaspelos órgãos de repressão penal, praticamenteimpedindo o Estado de desarticular, por asfixiafinanceira, as organizações criminosas quedominam essa atividade7.

III- A ineficácia da legalização sob aperspectiva dos destinatários da lei

São destinatários imediatos da legalização osfuturos donos de bingos e máquinas caça-níqueis.Dados empíricos que sobejam a partir de grandesinvestigações policiais revelam que, mesmo diantede uma legislação formalmente perfeita, o país –em especial os maiores estados, e notadamenteo Rio de Janeiro – seria, neste momento histórico,irremediavelmente refratário à concreção materialde qualquer dos dispositivos de controle dispostosno projeto de legalização dos bingos em trâmitena Câmara dos Deputados.

A assertiva parte de pressuposto erigido a umadas verdades absolutas identificáveis no estudoda criminalidade organizada: o jogo que sepretende legitimar não será uma atividadeeconômica aberta a novos empreendedores. Elejá tem dono8. O megacontraventor comanda um“estado paralelo” que se mistura, e algumas vezesse sobrepõe, ao Estado oficial. Não obstantetodos os esforços que têm sido empreendidos, oBrasil ainda não foi capaz de transformar estestatus quo. Certamente essa transformação nãopassa pela legalização dos bingos, ao contrário, alegalização viria ao encontro dos anseios dospróprios megacontraventores.

Essa simbiose com o poder estatal é perceptívelno Brasil mesmo para o leigo. Basta rememoraralguns fatos não tão distantes no tempo, tais como:o estouro da fortaleza de Castor de Andrade nadécada de 90, que revelou a famosa “lista dobicho”, integrada por diversos policiais; as prisões,no RJ, entre 2006 e 2008, de dois ex-chefes depolícia civil9, vários magistrados e delegados

federais, bem como a denúncia contra um ex-governador10; a cumplicidade das escolas desamba e autoridades no carnaval carioca; oescândalo envolvendo um ex-assessor dapresidência da República e ex-presidente da Loterjetc.

As próximas linhas deste artigo pretendemdemonstrar alguns contornos dessa simbiose, quese instalou como um câncer em estado demetástase nas instituições do país. A fim deescapar da mesmice do relato de acusaçõespenais, já de conhecimento público, ater-me-ei aalguns detalhes que muitas vezes expressam maisdo que o todo.

IV- Os donos do jogo clandestino: monopóliointransponívelO ano era de 2006; a investigação densa, baseadaem escutas telefônicas. Os diálogos maisimportantes, como de costume, cifrados, lacônicos,isoladamente não diziam nada, a não ser quandoconsiderados num determinado contexto fáticoprobatório e pelo cotejo de outros diálogos, quandonão raras vezes desnudavam fatos de formaexuberante. Os alvos eram pessoas envolvidasnuma situação aludida pela mídia local como“guerra dos caça-níqueis” ou “máfia dos caça-níqueis”, na zona oeste do RJ11. A imprensanoticiava mais de oitenta assassinatos em apenasdois anos. Esperava deparar-me com algumasituação que indicasse crimes de sangue. Mas mesurpreendi já no primeiro áudio: mni12: “oi amor”/alvo: “matei o ‘Cenoura’” / mni: “tá tudobem?”/ alvo: “...tive que passar o cara, tavabagunçando a área aqui...”

O alvo era um cabo da polícia militar. Cenoura13

era o chefe do tráfico de drogas na localidade.Sua morte foi ecoada pela mídia, numa açãoexitosa da polícia, precedida de troca de tiros. Ocabo era segurança de um dosmegacontraventores que detinham o monopólioterritorial naquela localidade. O jornal O Globonoticiou o evento: “(...) (Cenoura) seria o terceirofilho de Severina (...) a ser assassinado durantetroca de tiros com policiais militares. Segundoamigos e parentes (...), ele era evangélico epretendia largar logo a vida no crime, paranão ter o mesmo destino dos irmãos (...) : –

Page 14: Jogos de Azar

Fato Típico - Goiânia, ano II, n° 5, jul/set 201014

NOTÍCIASEle não tinha nada. Tudo que ganhava erapara pagar os policiais que o achacavam (...)– disse um parente.”

Ao contrário do que sugere a reportagem,Cenoura não morreu pelas mãos de um policialporque infringira a lei, mas pelas mãos de umsegurança de megacontraventor por contrariar osinteresses deste, relacionados à rentabilidade desuas máquinas caça-níqueis. Naquela área, quemmandava era o megacontraventor. A política derepressão da polícia era determinada ou limitadapor ele. Vários policiais do batalhão da áreatrabalhavam para ele na segurança, intimidação,vazamento de informações, execução dedesafetos etc. Não por acaso, além do cabo e dediversos colegas de farda, foi denunciado porcorrupção e exploração de contrabando o entãocoronel que comandava o respectivo batalhão daPM.

Quando soube desses fatos, logome veio à memória uma conversaque, anos antes, tive com umempresário que pretendiainaugurar um bingo numa casa deshows localizada na zona norte doRJ. Questionei-o sobre asinseguranças desse tipo denegócio, inclusive porque o STFvinha declarando inconstitucionaisas leis estaduais que autorizavam bingo, e a doRJ era questão de (pouco) tempo14. Sua respostafoi rápida: em apenas seis meses com a casaaberta conseguiria resgatar com sobras todo oinvestimento. Porém, antes da inauguração,durante a reforma, três operários foram mortos,fato amplamente noticiado na mídia. O desavisadoempresário, que não tinha o menor receio dedesprezar a orientação que vinha se firmando nopoder oficial (STF), foi ingênuo o bastante pararelegar o implacável poder paralelo da jogatina.Esqueceu-se de pedir autorização aomegacontraventor da área, “dono” do território.Nunca mais cogitou se meter nisso.

No âmbito daquela “guerra dos caça-níqueis”foram identificados, a partir dos áudios, mais seishomicídios e quatro tentativas. O do Cenoura nemfoi o mais impactante. Uma mulher foi assassinada

na presença da filha de dois anos porque flertaracom um dos comparsas do megacontraventorrival. Mas a morte do Cenoura melhor escancarouo estado de metástase do câncer da jogatina nasinstituições: o chefe do tráfico de drogas sucumbiupor ter cruzado o caminho do megacontraventore foi morto por um policial a serviço dele, e nãodo poder público.

Essa série de assassinatos por domínio territorialna zona oeste sempre foi repudiada pelos demaisbarões do jogo, porque chamava a atenção damídia, o que era ruim para os negócios, incluindopretensões legislativas. Mas os doismegacontraventores rivais da zona oeste jamaisse submeteram ao “tribunal paralelo” da jogatina,intitulado “Clube Barão de Drummond”, que hámuito vinha tentando a sua conciliação15. Elespermaneceram presos até a fase de diligênciasna ação penal decorrente da operação Gladiador.

Suas defesas procrastinaramexcessivamente o trâmite do feito.Apesar disso, contrariando duas desuas Súmulas16, a Sexta Turma doSTJ os soltou “por excesso deprazo”17.

Recentemente o crime organizadono Rio de Janeiro inovou, no melhorestilo da cosa nostra italiana: no dia08 de abril deste ano, em plena

tarde de uma avenida movimentada da Barra daTijuca, o carro blindado em que estava ummegacontraventor sofreu atentado a bomba.Morreram o seu filho, de apenas dezessete anos,e um dos seus seguranças18.

V- ConclusõesÉ neste cenário adverso que se pretende discutira legalização dos bingos e das máquinas caça-níqueis, sob a pueril esperança de que esse estadode coisas, as mortes e as corrupções desenfreadasteriam um fim. O momento não poderia ser menosadequado.

Algumas conclusões podem ser destacadas:

1. O projeto de lei que legaliza a exploração debingos e caça-níqueis no Brasil não criamecanismos de controle efetivo da lavagem dedinheiro e da sonegação fiscal, tampouco dos

A ilegalidade dojogo desnuda os

quadroscorrompidos dopoder público.

Page 15: Jogos de Azar

Fato Típico - jul/set 2010 15

“Caso semelhante ao daAvestruz Master ocorreu nos

Estados Unidos e ficouconhecido mundialmente

como pirâmide de Madoff”Daniel Salgado

repasses sociais que ele mesmo prevê. Aocontrário, cria novos e poderosos mecanismos paraa lavagem de dinheiro.2. Os próprios órgãos aos quais incumbiria ocontrole dos bingos e máquinas caça-níqueis jámanifestaram publicamente a absolutaimpossibilidade de fiscalizar essas atividades,circunstância que, por si só, já imporia a rejeiçãodo projeto.3. O projeto de lei é inócuo, inoportuno edemagogo.3.1. É inócuo porque, ainda que contemplassemecanismos formalmente eficazes de controle, o“estado paralelo” que monopoliza o jogoclandestino às custas de sangue e corrupção jamaisse curvou e não se curvará aos comandos da lei.Neste contexto, não importa quem será o donoformal do bingo legalizado; quem o comandaráserá o megacontraventor que detém o domínioterritorial na sede do estabelecimento.3.2. É inoportuno porque há em andamento umaenorme comunhão de esforços por parte dosórgãos de repressão penal para desarticular asorganizações criminosas voltadas para o jogoilegal. Este esforço está retratado, por exemplo,na exclusão, dos quadros da polícia, de agentescorrompidos pelas máfias; nas ações penaispromovidas recentemente em desfavor dos barõesda jogatina e seus comparsas; na asfixiapatrimonial das organizações, por meio dosequestro de seus bens e na apreensão diária ecrescente de máquinas caça-níqueis.3.3. É demagogo, à vista da natureza de algunsdos seus comandos: o controle do ingresso deviciados patológicos; a quantidade máxima debingos por habitantes em cada cidade; a limitaçãode três bingos por dono; a distância mínima deescolas; os repasses sociais calculados sobfaturamento impossível de ser conhecido etc.4. Obviamente a legalização não viria aoportunizar investimentos de empresários bemintencionados, eventualmente interessados na“nova” atividade econômica.

Por fim, pode-se dizer que a ilegalidade do jogodesnuda os quadros corrompidos do poder público,enquanto a legalidade escamoteia. Se a atividadeé ilegal, qualquer cidadão se torna um potencialnoticiante de um bingo clandestino ou da

exploração de máquinas caça-níqueis. Mas alegalização daria a falsa aparência de que todosos bingos, mesmo os clandestinos, e qualquercaça-níquel, mesmo os dispostos em bares epadarias, seriam lícitos.

Para o bem do país, espera-se que esse projetonão seja sequer votado e, se o for, que sejarejeitado.

_______________

Notas1O texto é do Deputado Régis de Oliveira (PSC-SP), aprovadoem setembro/2009 pela Comissão de Constituição e Justiça ede Cidadania e se baseia no projeto de lei n° 2.254/07 dodeputado Arnado Faria de Sá (PTB-SP), englobando tambémos PLs 2944/04 e 3489/08. Régis rejeitou cinco projetos queproíbem os bingos ( n° 270/03, n° 1.986/03, n° 2.999/04, n°3.492/04 e n° 2.429/07) e que tramitam em apenso.

2Sobre esse tema, v. matéria publicada na Folha de São Paulo,do dia 20/09/2009, sob o título “Viciados em jogos tememreabertura de casas de bingo”: http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u626539.shtml3Fonte: Agência Câmara de Notícias (http://www2.camara.gov.br/agencia/noticias)4Fonte: Site da ANPR (http://www.anpr.org.br)5Fonte: Boletim de Novidades Lotéricas – BNL (site: http://www.magocom.com.br/bnl/ver_not.asp?noticia=1199)6A afirmação foi feita pelo Secretário Nacional de Justiçadurante a sessão do Parlamento citada (Agência Câmara deNotícias).7Já foram apreendidas nos últimos três anos mais de 35.000somente no Rio de Janeiro. Em janeiro de 2010 foram destruídaspela Receita Federal e Secretaria de Segurança Pública cerca de6.000 caça-níqueis, no Terreirão do Samba, Praça Onze.8Apesar de sujeito ativo de crimes variados, neste artigo serádesignado como “megacontraventor”.9Um deles, não por acaso, também integrava aquela “lista dobicho” da década de 90.10Operações Gladiador, Furacão, Ouro de Tolo e SegurançaPública SA.11Esse caso foi designado pela PF como “operação Gladiador”,em que atuei em comunhão com os laboriosos colegas LeonardoCardoso de Freitas, Eduardo André Lopes Pinto e Carlos AlbertoGomes de Aguiar.12mni: mulher não identificada.13O nome é fictício, a fim de se preservar o sigilo.14Ainda não tinha sido editada a Súmula Vinculante nr. 2 peloSTF.15A esse “tribunal”, composto pelos megacontraventores maispoderosos e experientes, cabia “dirimir os conflitos deinteresse” envolvendo a jogatina no Rio de Janeiro (fonte:operação Furacão).16Súmula 52: “Encerrada a instrução criminal, fica superadaa alegação de constrangimento ilegal por excesso de prazo”.Súmula 64: “Não constitui constrangimento ilegal o excessode prazo na instrução, provocado pela defesa”.17Fonte Site STJ: http://www.stj.gov.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=8812118Fonte O Globo on line: http://oglobo.globo.com/rio/mat/2010/04/08/bicheiro-alvo-de-atentado-bomba-no-recreio-dos-bandeirantes-916278986.asp

Page 16: Jogos de Azar

Fato Típico - Goiânia, ano II, n° 5, jul/set 2010

Liberalismo,Comunitarismo eGarantismo Penal

Integral:Perspectivas

Contemporâneas

Congresso

Local: Auditório da Procuradoria da República em GoiásEdifício Rosângela Pofahl Batista - Avenida Olinda, Quadra G, Lote 02,

Park Lozandes - Fone: (62) 3243-5454Goiânia - GO - CEP: 74.884-120

Promoção: Escola Superior do Ministério Público da União - ESMPU

Goiânia14 a 16 de setembro/2010