jogo ou brincadeira

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  Introdução Durante toda a graduação em Educação Física por inúmeras vezes escutei, seja por parte dos professores ou dos livros, pelos quais fui mediado à apropriação desse conhecimento, que seus componentes e conteúdos curriculares se fundavam em uma diversidade de movimentos corporais materializados através de danças, lutas, folguedos, jogos, brincadeiras, esportes, dentre outros. Não via qualquer problema nesta definição, aliás, considerava-a como um importante avanço ao quadro esportivista que tem caracterizado marcantemente o espaço da Educação Física escolar. Este novo universo que se debruçava sobre meus olhos trouxe consigo a visualização da diferença como um importante fator de desenvolvimento omnilateral dos seres humanos. Diferença que se estabelece sobre a própria percepção da semelhança, por isso, de acordo com Vygotsky (2004), apenas conhecendo o outro alcanço pressupostos norteadores para me auto-conhecer. Partindo deste pilar fundado sob a égide do materialismo histórico 1  e fincando as diretrizes analíticas nos conteúdos componentes da Educação Física, comecei a perceber que suas definições eram claras quanto às danças, folguedos, lutas e esportes, mas abstrusa no que tange as diferenças entre brincadeiras e jogos, os quais em determinados momentos eram considerados como sinônimos, enquanto em outras situações eram vistos como se 1  De acordo com Engels (1985, p.28), o materialismo histórico representa uma abordagem metodológica ao estudo dos fenômenos sociais, sendo definido como “uma visão do desenrolar da história que procura a causa final e a grande força motriz de todos os acontecimentos históricos importantes no desenvolvimento econômico da sociedade, nas transformações do modo de produção e de troca, na conseqüente divisão da sociedade em classes distintas e na luta entre essas classes.” Enriquecendo esta conceituação, é importante acrescentar que não há no materialismo histórico qualquer desconsideração do ser humano como sujeito e construtor da história, mas apenas a afirmação categórica de que essa construção não se dá de maneira isolada do contexto social que nos circunscreve. Logo, de acordo com Chauí (1995, p.414) a díade do materialismo histórico deve ser explicada nos seguintes termos: “Materialismo, porque somos o que as condições materiais nos determinam a ser e a pensar. Histórico porque a sociedade e a política não surgem de decretos divinos nem nasce da ordem natural, mas dependem da ação concreta dos seres humanos no tempo.” Motriz, Rio Claro, v.15 n.4 p.925-934, out./dez. 2009 Artigo de Revisão JOGO OU BRINCADEIRA: A fi nal , de q ue estamos fal and o ? Gustavo Martins Piccolo Departamento de Educação Física da UFSCar, São Carlos, SP, Brasil Resumo: O presente artigo parte do pressuposto de que existe uma diferença etimológica, funcional e simbólica sobre os termos jogo e brincadeira, cuja visualização ainda não está bem definida no campo da Educação Física. Esta manifestação produz como conseqüência uma obnubilação que nos impede de percebermos o processo de evolução histórica pelo qual se constituem as atividades lúdicas. Em virtude destes elementos e em coerência aos princípios da Psicologia Histórico-Cultural, destacamos a premência em considerarmos o processo de construção histórica dos jogos e brincadeiras, intentando desmistificar sua suposta sinonímia e os pressupostos que caracterizam cada atividade em particular. Palavras-chave: Jogo. Brincadeira. Educação Física.  AGAME OR PLAY:  After all, that we are talking about?  Abstract:  This present article assumes that presupposed there is a difference etymological, functional and symbolic terms about the game and entertainment, whose view is not well defined in the field of Physical Education. This manifestation produces as a result obscurities that discern us from the process of historical development at which they are the playing. Because these components and consistent with the principles of Historic-Cultural Psychology, highlight a crying need in considering the historical process of building the games and entertainment, attempted demystify their supposed synonymy and presupposed that characterize each activity in particular. Key Words: Game. Entertainment. Physical Education.

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jogos e brincadeiras

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  • Introduo Durante toda a graduao em Educao

    Fsica por inmeras vezes escutei, seja por parte dos professores ou dos livros, pelos quais fui mediado apropriao desse conhecimento, que seus componentes e contedos curriculares se fundavam em uma diversidade de movimentos corporais materializados atravs de danas, lutas, folguedos, jogos, brincadeiras, esportes, dentre outros. No via qualquer problema nesta definio, alis, considerava-a como um importante avano ao quadro esportivista que tem caracterizado marcantemente o espao da Educao Fsica escolar.

    Este novo universo que se debruava sobre meus olhos trouxe consigo a visualizao da diferena como um importante fator de desenvolvimento omnilateral dos seres humanos. Diferena que se estabelece sobre a prpria percepo da semelhana, por isso, de acordo com Vygotsky (2004), apenas conhecendo o outro alcano pressupostos norteadores para me auto-conhecer.

    Partindo deste pilar fundado sob a gide do materialismo histrico1 e fincando as diretrizes analticas nos contedos componentes da Educao Fsica, comecei a perceber que suas definies eram claras quanto s danas, folguedos, lutas e esportes, mas abstrusa no que tange as diferenas entre brincadeiras e jogos, os quais em determinados momentos eram considerados como sinnimos, enquanto em outras situaes eram vistos como se

    1 De acordo com Engels (1985, p.28), o materialismo histrico representa uma abordagem metodolgica ao estudo dos fenmenos sociais, sendo definido como uma viso do desenrolar da histria que procura a causa final e a grande fora motriz de todos os acontecimentos histricos importantes no desenvolvimento econmico da sociedade, nas transformaes do modo de produo e de troca, na conseqente diviso da sociedade em classes distintas e na luta entre essas classes. Enriquecendo esta conceituao, importante acrescentar que no h no materialismo histrico qualquer desconsiderao do ser humano como sujeito e construtor da histria, mas apenas a afirmao categrica de que essa construo no se d de maneira isolada do contexto social que nos circunscreve. Logo, de acordo com Chau (1995, p.414) a dade do materialismo histrico deve ser explicada nos seguintes termos: Materialismo, porque somos o que as condies materiais nos determinam a ser e a pensar. Histrico porque a sociedade e a poltica no surgem de decretos divinos nem nasce da ordem natural, mas dependem da ao concreta dos seres humanos no tempo.

    Motriz, Rio Claro, v.15 n.4 p.925-934, out./dez. 2009

    Artigo de Reviso

    JOGO OU BRINCADEIRA: Afinal, de que estamos falando?

    Gustavo Martins Piccolo Departamento de Educao Fsica da UFSCar, So Carlos, SP, Brasil

    Resumo: O presente artigo parte do pressuposto de que existe uma diferena etimolgica, funcional e simblica sobre os termos jogo e brincadeira, cuja visualizao ainda no est bem definida no campo da Educao Fsica. Esta manifestao produz como conseqncia uma obnubilao que nos impede de percebermos o processo de evoluo histrica pelo qual se constituem as atividades ldicas. Em virtude destes elementos e em coerncia aos princpios da Psicologia Histrico-Cultural, destacamos a premncia em considerarmos o processo de construo histrica dos jogos e brincadeiras, intentando desmistificar sua suposta sinonmia e os pressupostos que caracterizam cada atividade em particular. Palavras-chave: Jogo. Brincadeira. Educao Fsica.

    AGAME OR PLAY: After all, that we are talking about?

    Abstract: This present article assumes that presupposed there is a difference etymological, functional and symbolic terms about the game and entertainment, whose view is not well defined in the field of Physical Education. This manifestation produces as a result obscurities that discern us from the process of historical development at which they are the playing. Because these components and consistent with the principles of Historic-Cultural Psychology, highlight a crying need in considering the historical process of building the games and entertainment, attempted demystify their supposed synonymy and presupposed that characterize each activity in particular. Key Words: Game. Entertainment. Physical Education.

  • G. M. Piccolo

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    representassem duas atividades diferentes, s vezes diametralmente opostas.

    Lembro-me at hoje de um questionamento que realizei em 2005 a um professor de Educao Fsica a respeito de uma possvel diferena existente entre jogos e brincadeiras, assim como de sua resposta enfatizando o carter no essencial deste questionamento. De acordo com suas palavras afinal, para que serve saber se existe uma diferena entre jogos e brincadeiras.

    Resposta um tanto quanto rspida, mas, atordoante no sentido de projetar o apontamento de um novo ponto de vista sobre esta distino, heuristicamente oposto quele anteriormente recebido. A confuso epistemolgica e etimolgica que envolvia os termos jogo e brincadeira ganhou ainda mais sentido e intensidade em minha vida quando tomei contato com as produes da Escola de Vygotsky, a qual atribua atividade ldica protagonizada o papel de atividade principal praticada pelos pr-escolares. Dentre os expoentes desta corrente terica, Elkonin (1998) utilizava somente a expresso jogo como atividade principal, j Luria (1987), Vygotsky (2004; 1998), Leontiev (1988) e Usova (1979) misturavam os termos jogo e brincadeira, todavia, intrigantemente pareciam apontar a existncia de uma diferenciao entre estas atividades.

    O direcionamento intrigante norteado pela Psicologia Histrico-Cultural2 se tornou ainda mais marcante em virtude da realizao de minha pesquisa de mestrado em uma pr-escola, cuja insero buscava compreender a interferncia da atividade principal na construo da personalidade e no desenvolvimento social e motor das prprias crianas. A partir de ento,

    2 A psicologia Histrico-Cultural surge como uma resposta a profunda crise que grassava o campo da Psicologia em princpios do sculo XX, crise cuja gnese foi desencadeada pelo estabelecimento de um conflito entre dois princpios explicativos diametralmente opostos, quais sejam: os idealistas e os biologicistas. Como contraposio dialtica a estas correntes Vygotsky (2004) prope sua Psicologia, que tem no materialismo histrico seu mtodo analtico, e, entende o ser humano como uma totalidade de relaes sociais. histrica pelos motivos j explicados anteriormente por Chau (1995), e cultural pelo fato de considerar o psiquismo como produto da apropriao dos conhecimentos acumulados pela humanidade e da prpria atividade humana. Por isso, para Luria (1991, p.1), a Psicologia Histrico-Cultural tem como principal objeto de estudo a atividade do prprio homem, tencionando estabelecer as leis bsicas da atividade psicolgica, estudar as vias de sua evoluo, descobrir os mecanismos que lhe servem de base e descrever as mudanas que ocorrem nessa atividade

    estabelecia-se claramente em minha conscincia a necessidade da distino entre os termos jogo e brincadeira, pois sem ela acredito que no conseguiremos delimitar ao certo qual a atividade principal do pr-escolar, conceito caro a educao e as mais diversas concepes de ensino e aprendizagem, porm, nem sempre apropriado na totalidade de seus componentes.

    Esta a tarefa que este artigo se prope, qual seja, de assinalar algumas caractersticas que permitem a construo de uma arquitetura de relaes conceituais que diferenciem funcional e etimologicamente os termos jogo e brincadeira, cujo resultado certamente no ser sistematizado apenas neste texto, mas, aguardamos que ele se torne ao menos uma fonte de questionamento que nos tire do lugar comum, pois por diversas vezes a verdade mais revolucionria consiste no simples pensar da diferena, de como poderia ser diferente.

    Um olhar sobre a histria A conceituao em um trabalho de corte

    acadmico do melhor vocbulo para a definio de atividades cuja anlise se configura como o objetivo de nossas empreitadas, em algumas circunstncias especiais no das tarefas mais fceis. Esse certamente o caso dos estudos que se valem das atividades ldicas como ferramentas metodolgicas e buscam uma diferenciao entre os termos jogo e brincadeira. Esta definio est longe de representar uma mera formalidade, pois como bem ressalta BAKHTIN (1999, p.95), a palavra est sempre carregada de um sentido ideolgico ou vivencial. assim que compreendemos as palavras e somente reagimos quelas que despertam em ns ressonncias ideolgicas ou concernentes vida.

    Diversos autores (Brougere (1998), Kishimoto (1997), Huizinga (1980), Caillois (1990), Bomtempo (1997)) se dedicaram a essa rida empreitada na busca de uma configurao mais exata do termo jogo ou brincadeira, para isso, se utilizaram de dados de mltiplas reas da cincia como Antropologia, Psicologia, Filosofia, Histria, dentre outras. Entretanto, muitas dessas tentativas esbarraram na vastido de significados assumidos pelos termos jogo e brincadeira ao longo da histria.

    Parte desta dificuldade em se encontrar um conjunto de caractersticas que possa ser

  • jogo ou brincadeira?

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    expresso heuristicamente como jogo ou brincadeira deriva do prprio processo da construo histrico-cultural destas atividades, uma vez que sua dependncia em relao sociedade na qual esto inseridas engendra significativas diferenas quanto a sua estrutura e funo em contextos espaciais e temporais especficos. Como mostra das imprecises e das distintas funes sociais destinadas aos jogos e brincadeiras encontramos na literatura variaes que vo desde a prpria etimologia do termo, at elementos cuja alterao incide sobre o significado das referidas prticas sociais.

    Bomtempo (1997) destaca que a categorizao usada para jogo em ingls game, j para brincar se utiliza o play, porm esse termo tambm pode envolver uma gama de outras atividades, quais sejam tocar, pintar, participar de uma partida esportiva. Em francs temos algo parecido com o termo jeu e jouer (jogo/brincadeira e jogar), os quais podem ser utilizados em contextos no necessariamente relacionados com atividades ldicas, tais como na bolsa de aposta, no embate entre polticos, etc. Na antiga Unio Sovitica, a palavra Igrii, de acordo com Elkonin (1998), era utilizada como se representasse jogos ou brincadeiras, ou seja, tambm no se notava uma distino etimolgica rgida de significados.

    Enriquecendo estas consideraes, para Elkonin (1998) a etimologia jogo e brincadeira sede de uma grande complexidade de significados, os quais podem estar relacionados diverso, passatempo, manipulao, resultados indefinidos/presena de riscos, alm de uma srie de outros elementos.

    Alm das diferenciaes na prpria terminologia das palavras jogo e brincadeira, tambm notamos uma miscelnea de significados construdos sobre estes termos. Para os gregos os jogos significavam aes especificamente realizadas pelas crianas; entre os judeus seu entendimento est relacionado a gracejos e risos; j os romanos interpretavam seu conceito caracterizando-o como uma festa; por fim, entre os germanos, os jogos so encarados como um determinado grupo de aes que no requerem trabalho rduo e propiciam satisfao (ELKONIN, 1998).

    Brougre (1998), em seus estudos sobre a evoluo histrica dos jogos em diversas

    culturas, destaca que o jogar e o brincar assumem perspectivas diversas, algumas vezes at conflitantes, devido ao fato de sua classificao ser fortemente marcada por elementos sociais, polticos e ideolgicos caractersticos de um determinado contexto histrico. Devido a isto, de acordo com o referido autor (op. cit.), as idias que se tm dos jogos e brincadeiras variam conforme autores, pocas e contextos histricos particulares. Em coerncia a estes elementos, Kishimoto (1997, p.13) argumenta que:

    Tentar definir o jogo no tarefa fcil. Quando se pronuncia a palavra jogo cada um pode entend-la de modo diferente. Pode-se estar falando de jogos polticos, de adultos, crianas, animais ou amarelinha, xadrez, adivinhas, contar estrias, brincar de mame e filhinha, futebol, domin, quebra-cabea, construir barquinho, brincar na areia e uma infinidade de outros.

    Ou seja, as definies sobre o termo jogo vo desde as brincadeiras realizadas pelas crianas, passando por uma relao entre objetos, indo, incrivelmente, at o campo econmico do pas. Mesmo com toda essa complexidade, de grande importncia estabelecer alguns parmetros sobre o que consideramos jogo para depois realizarmos uma distino entre ele e as brincadeiras, objetivando, assim, um melhor esclarecimento sobre a utilizao deste termo. Para isso, utilizamo-nos primordialmente do trabalho de Huizinga (1980) e Caillois (1990).

    Huizinga (1980) talvez seja o estudioso sobre os jogos mais citado historicamente no universo da Educao Fsica, o que se justifica pelo prprio pioneirismo empreendido em suas anlises ao demonstrar a importncia exercida pelos jogos quanto ao desenvolvimento da prpria sociedade, da cultura e do estreitamento de laos coletivos. Esta assertiva pode ser confirmada mediante suas prprias palavras (HUIZINGA, 1980, p.3), pois para o referido autor ... o jogo fato mais antigo que a cultura, pois esta, mesmo em suas definies menos rigorosas, pressupe sempre a sociedade humana.

    Alis, digno de nota, que, segundo Huizinga (1980), os jogos, a partir de sua intensidade e fascinao que despertam, podem ser considerados como verdadeiros fundadores da cultura humana, posio esta da qual discordamos frontalmente, uma vez que partimos do pressuposto de que apenas posteriormente ao

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    surgimento da cultura, criada pelo trabalho, o ser humano produz suas mltiplas atividades artsticas e ldicas.

    O capital intento de Huizinga (1980, p.16) foi o de demarcar as principais caractersticas dos jogos, os quais transpem a esfera material, e, tampouco podem ser determinados biologicamente ou pelo produto de sua atividade. Grosso modo, os jogos concretizam uma atividade libertria,

    [...] conscientemente tomada como no sria e exterior a vida habitual, mas ao mesmo tempo capaz de absorver o jogador de maneira intensa e total. uma atividade desligada de todo e qualquer interesse material, com a qual no se pode obter qualquer lucro, praticado dentro de limites espaciais e temporais prprios, segundo uma certa ordem e certas regras.

    Destarte, apesar de ser inegvel o esprito empreendedor de Huizinga (1980), cuja proficuidade de seus apontamentos ainda continua a representar um importante marco ao entendimento da prpria atividade definida como jogo, acreditamos que tambm se faz premente nos dias atuais ressaltar algumas lacunas inexploradas por Huizinga (1980), e exatamente neste espao que deve ser compreendida a obra de Caillois (1990), posto se tratar de uma tentativa de continuao, mas tambm de superao dos elementos apontados por Huizinga (1980).

    De acordo com Caillois (1990, p.27), o principal mrito de Huizinga (1980) foi o de ter ter analisado magistralmente vrias caractersticas fundamentais do jogo e em ter demonstrado a importncia e sua funo no desenvolvimento da civilizao, todavia, segundo Caillois (1990), necessrio irmos alm das definies estabelecidas no Homo Ludens, na medida em que a obra no retrata alguns aspectos orgnicos ao entendimento da atividade analisada, tal como a questo dos jogos de azar e do carter laborioso da atividade praticada pelos profissionais dos jogos, os esportistas.

    Assim, enquanto Huizinga (1980) se focou essencialmente nas funes, caractersticas e estrutura dos jogos, Caillois (1990) ir ressaltar primordialmente o tipo de experincia que o jogo proporciona, ou seja, seu contedo. Para tanto, os divide em quatro categoriais basilares, quais sejam, Agn, Alea, Mimicry e Ilinx.

    Na categoria Agn se encontram os jogos dominados basicamente por atividades

    competitivas. Teleologicamente no Agn se busca criar situaes ideais e igualitrias para todos os participantes, intuindo que o vencedor aparea como o melhor preparado. Hodiernamente, o Agn aparece de maneira predominante nas competies esportivas e sua prtica supe ... um treino apropriado, esforos assduos e uma vontade de vencer (CAILLOIS, 1990, p.45).

    Na contraposio aos princpios do Agn deve ser buscada a conceituao da Alea, pois neste espao o jogador atua passivamente, no fazendo uso de habilidades anteriormente adquiridas. Na Alea prepondera a fora do acaso, o destino, a sorte, cuja representatividade social dada nos dias atuais pelos diversos jogos de azar. Para Caillois (1990, p. 38), esse tipo de jogo se encontra apenas nos seres humanos, j que:

    [...] os animais, demasiado dominados pelo imediato e demasiado escravos dos seus impulsos, no seriam capazes de imaginar um poder abstrato e insensvel, a cujo veredicto se submeteriam previamente, por diverso e sem reagir.

    Coerentemente, Caillois (1990) parte do pressuposto de que os animais tambm jogam, princpio similar concepo estabelecida por Huizinga (1980). Portanto, a intencionalidade do jogo humano novamente preterida por classificaes que, de to genricas, s vezes nada classifica.

    J na Mimicry encontramos os jogos em que os participantes adotam para si o papel de determinados personagens. uma forma de se apropriar de outra realidade que no a sua, por isso, para Caillois (1990, p.58), ... a Mimicry a inveno incessante. Na criana este jogo se caracteriza, sobretudo pela imitao do adulto. Aqui, o prazer ser outro, ou pelo menos se passar por outro, sendo que seus maiores exemplos se encontram nos jogos protagonizados.

    Por fim, destacamos a Ilinx, categoria que compreende os jogos assentados na busca de vertigem. O objetivo principal destes jogos consiste em quebrar os padres de estabilidade do corpo humano. Essa atividade pode ser encontrada tanto em crianas, como nos adultos. De acordo com Caillois (1990, p. 44), cada criana sabe tambm que, ao rodar rapidamente, atinge um estado centrfugo, estado de fuga e de evaso, em que, a custo, o corpo reencontra seu equilbrio e a percepo sua nitidez.

  • jogo ou brincadeira?

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    Colocado estes elementos, de certa forma, mais relacionados ao contedo do que a forma, Caillois (1990), tambm tece argumentos sobre a estrutura componente dos jogos, os quais existem em nmeros vastssimos, e, carregam sempre uma idia de facilidade, risco e habilidade. justamente essa idia que garante o fascnio por sua prtica, que pode gerar tanto satisfao quanto frustrao, dependendo do resultado da atividade ldica e das expectativas e objetivos estabelecidos anteriormente por seus participantes.

    Independentemente da complexidade dos jogos, estes sempre possuem determinados cdigos definidores, que so construes sociais realizadas pelos homens ao longo da histria e que s podem ser modificados pela prpria atuao humana.

    Em conformidade com esse raciocnio, para Brougre (1998, p.11): ... todo o jogo um sistema de regras que definem o que e o que no do jogo, ou seja, o permitido e o proibido. Continuando em Brougre (op. cit., p.11), estas convenes no podem ser violadas sob nenhum pretexto, pois, se assim for, o jogo acaba imediatamente e destrudo por esse fato. Em geral, a construo da legislao que governa os jogos realizada de forma tcita entre os participantes, e o desrespeito das regras significa, em algumas vezes, o fim do prprio jogo. Porm, de acordo com Leontiev (1988), na brincadeira este fenmeno tambm observado, logo, seu parmetro no nos fornece pressupostos fiveis para sua distino em relao a elas.

    Seguindo essa linha de raciocnio, mas extrapolando seus apontamentos, de acordo com Huizinga (1980), mais do que o no cumprimento das regras a atitude de indiferena do jogador para com a atividade que destri radicalmente o universo arquitetado pelo jogo, posto sua prtica ser ainda menos tolerada que a violao das regras.

    Enriquecendo estas conceituaes, Caillois (1990) descreve de forma resumida os principais traos estruturais constituintes dos jogos, os quais nos permitem defini-lo como uma atividade, que em sua essncia : 1- livre: o jogador s joga quando tiver vontade, no pode ser obrigado, seno este perderia sua diverso e alegria; 2- delimitada: est restrita a espaos de limite e tempo; 3- incerta: o resultado no pode ser

    determinado a priori; 4- improdutiva: no gera bens e riquezas, apenas os movimentam; 5- regulamentada: sujeita a convenes e regras que devem ser obedecidas para o desenvolvimento da atividade; 6- fictcia: carter opositor a vida cotidiana e sria.

    Partindo desta base epistemolgica, Kishimoto (1997) tencionou realizar uma estrutura relacional que garantisse a possibilidade de diferenciao entre o jogo e a brincadeira. Tal empreitada fundamentou-se na anlise da estrutura dos componentes presentes em cada uma dessas atividades, enfocando essencialmente a presena de regras implcitas ou explcitas presentes em cada prtica para apenas posteriormente estabelecer as particularidades de cada vocbulo. Entretanto, Elkonin (1998) destaca que apesar de as brincadeiras serem regulamentadas essencialmente por regras implcitas (que se manifestam explicitamente), e os jogos por regras explcitas (que se manifestam implicitamente), isso no esgota a questo, uma vez que algumas atividades classificadas como jogos se orientam por regras implcitas, ou seja, no precisam necessariamente ter um cdigo de conduta (regulamentos) anteriormente estabelecido com os princpios norteadores da atividade, sendo este construdo no transcorrer de sua prtica. Os jogos pr-desportivos se constituem como os maiores exemplos, talvez por representarem uma atividade intermediria entre os jogos protagonizados e os jogos esportivos.

    A complexidade e dificuldade na construo de uma precisa definio sobre o que podemos classificar como jogo ou brincadeira encontrado cristalinamente em Wajskop (1995; 1990). Vejamos como a autora define o jogo e a brincadeira

    Para Wajskop (1995, p.28), a brincadeira pode ser definida como uma atividade:

    [...] social, humana, que supe contextos sociais e culturais, a partir dos quais a criana recria a realidade atravs da utilizao de sistemas simblicos prprios. A brincadeira infantil pode constituir-se em uma atividade em que as crianas, sozinhas ou em grupo, procuram compreender o mundo e as aes humanas nas quais se inserem cotidianamente.

    A mesma autora em um artigo sobre o papel do jogo na Educao das Crianas (WAJSKOP, 1990, p.46), embasada em uma perspectiva histrico-cultural e, fundamentada nos estudos de Elkonin, define que:

  • G. M. Piccolo

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    [...] ao contrrio das concepes idealistas que concebem o jogo como algo inato nas crianas, este, na sua forma encontrada atualmente, social por sua origem e natureza, constituindo-se num modo de assimilar e recriar a experincia scio-cultural dos adultos. Ou seja, o jogo de faz-de-conta infantil constitui-se uma atividade infantil na qual as crianas, sozinhas ou em grupo, procuram compreender o mundo e as aes humanas nas quais se inserem cotidianamente.

    Neste universo conceitual criado por Wajskop (1995; 1990) jogo e brincadeira so definidos quase que como sinnimos, todavia, o pargrafo final de ambas as citaes nos oferece importantes indcios de que a brincadeira talvez possa ser considerada sob a alcunha de jogo protagonizado/faz de conta. Ou seja, parece que os termos brincadeira e jogo protagonizado (no confundir com outros jogos) so usados como se representassem a mesma atividade e prtica social, porm com vocbulos distintos.

    Em contrapartida a esta definio, existe na literatura acadmica uma mistura entre os termos jogo (quaisquer jogos) e brincadeira que indica um processo oposto ao de Wajskop (1990), posto representar equivocadamente a transformao sinonmica destas atividades, tal como encontramos em Pontes e Magalhes (2002, p.216) na seguinte assertiva: ... a estrutura da brincadeira, no geral determina o desenrolar dos acontecimentos no jogo, prevendo padres, estratgias e sanes tpicas (grifos meus). Apontamentos similares so encontrados em Peters (2006), Sager e Sperbe (1998) Barbosa (1997) e Volpato (2002).

    Destarte, nos colocamos em uma perspectiva de contraposio dialtica em relao afirmao de Barbosa (1997, p.403), aps sintetizar criticamente a obra de Kishimoto (1996), da no existncia de diferenas entre jogos e brincadeiras, concretizadas cristalinamente na seguinte assertiva: jogo e brincadeira (grifos meus).

    Colocado estes elementos, destacamos como de fundamental importncia a materializao de uma diferenciao entre o jogo e a brincadeira, sendo que o referencial terico-filosfico que nos d indcios, ainda que vagos e no concretos, a este processo categorial se encontra depositado no arcabouo de estudos realizados pela Psicologia Histrico-Cultural.

    A Escola de Vygotsky e a epistemologia da atividade ldica De maneira geral, Vygotsky (1999), Leontiev

    (1988), Elkonin (1998) e Mukhina (1995), da Teoria Histrico-Cultural3, no realizam uma separao etimolgica entre os termos jogo e brincadeira que, em algumas circunstncias, so praticamente utilizados como sinnimos, na medida em que se mesclam em diversos momentos de uma mesma obra. Todavia, como o prprio Elkonin destaca (1998), isso no necessariamente significa que jogos e brincadeiras sejam sinnimos. Existe uma diferena, contudo, esta ainda no foi precisada dentro do contexto do materialismo histrico e da Psicologia Histrico-Cultural de uma forma organizativa clara e coesa.

    Isto posto, uma anlise mais atenta sobre as obras de Leontiev (1988), Vygotsky (1998) e Elkonin (1998) aponta-nos caminhos que oferecem elementos indicadores de possveis diferenas entre esses termos.

    As atividades ldicas para Vygotsky (apud ELKONIN 1998) englobam tanto as brincadeiras como os jogos, inclusive os esportes. Os jogos protagonizados evoluem at a construo dos jogos pr-desportivos (amarelinha, brincadeiras de roda, pega-pega, esconde-esconde, bandeirinha) e destes aos jogos esportivos, para apenas posteriormente desaguarem no moderno sistema simblico erigido pela sociedade capitalista classificado como esporte. Nesse percurso, Vygotsky (1998) destaca que os jogos praticados pelas crianas (o autor raramente utiliza o termo brincadeira) se desenvolvem a partir das situaes em que a imaginao assume o papel de principal motivo no transcorrer da atividade, ficando as regras subordinadas quelas situaes, at a construo de um espao que inverta esta racionalidade lgica, passando as regras a sobrepesar sobre o ambiente e a imaginao. Neste caso, a situao imaginria, apesar de existente, desempenha papel secundrio em relao ao desenvolvimento

    3 A Teoria Histrico-Cultural pode ser definida mediante os mesmos pressupostos da Psicologia Histrico-Cultural, todavia, no necessariamente sua rea de insero se limita ao campo da Psicologia, logo, compreende um campo gnosiolgico relacional mais amplo. Assim, enquanto Vygotsky pode ser destacado tanto na Psicologia como na Teoria Histrico-Cultural, Marx se insere apenas na Teoria Histrico-Cultural, posto no tecer apontamentos teleolgicos Psicologia. Ou seja, tudo o que faz parte da Psicologia Histrico-Cultural tambm o faz da Teoria Histrico-Cultural, mas, a recproca no necessariamente verdadeira.

  • jogo ou brincadeira?

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    da atividade. As dramatizaes (papai e mame, brincadeira de casinha, casamento) so caractersticas das primeiras atividades, denominadas por Leontiev (1988) de brincadeiras; e os jogos pr-esportivos e esportivos das segundas.

    De acordo com Vygotsky (apud ELKONIN, 1998), quaisquer jogos possuem uma determinada situao fictcia e regras, as quais, tal qual o mecanismo construtor das funes psquicas superiores (memria, ateno voluntria, imaginao, conscincia, linguagem), se desenvolvem do exterior (sociedade) para o interior (conscincia), uma vez que o processo de internalizao das regras nas atividades ldicas organizado tal qual a formao de qualquer constructo humano, sendo que a sociedade necessariamente se configura como o palco inicial de nossas apropriaes, sejam elas ldicas, artsticas ou laboriosas. De acordo com Vygotsky (apud ELKONIN, 1998, p. 429):

    A trajetria central do desenvolvimento do jogo vai da situao fictcia patente com regras e objetivos latentes com fico, at a situao fictcia com regras e objetivos constantes (o jogo com bonecas e o jogo de xadrez so os plos deste desenvolvimento), ou seja, do prprio jogo extrai-se sua essncia.

    Nas dramatizaes ldicas/brincadeiras, as regras, apesar de internas, so expostas de maneira externa, ou seja, a criana literalmente vocaliza os pressupostos norteadores de suas aes, os quais podem ser transformados de uma ora para outra, por exemplo: a vassoura, antes assumida como cavalo, agora se transforma em uma espada. A estrutura das brincadeiras definida por Benjamin (1984, p. 76-77) a partir da seguinte alegoria:

    A criana que puxar alguma coisa, torna-se cavalo, quer brincar com areia e torna-se pedreiro, quer esconder-se, torna-se ladro ou guarda e alguns instrumentos do brincar arcaico desprezam toda a mscara imaginria (na poca possivelmente vinculada a rituais): a bola, o arco, a roda de penas e o papagaio, autnticos brinquedos, tanto mais autnticos quanto menos o parecem ao adulto.

    E acrescentemos tanto mais jogo quanto maior seu nmero de regras e mais intensas as obrigaes de agir conforme parmetros anteriormente estabelecidos, ou seja, quanto mais tendem a se parecer com os adultos. Por isso, para Brougre (1998), a brincadeira uma forma de mutao temporria das atividades sociais e do prprio mundo, que ganham outros

    contornos e funcionalidades. Em seu espao os objetos se transmutam, as regras passam a ser criadas pelas prprias circunstncias do desenrolar da atividade. Nada pr-fixado, exceto, a vontade e o prazer de brincar.

    Assim, os participantes expressam publicamente e a todo o momento os limites impostos pela brincadeira, funes e papis sociais ocupados por cada sujeito em particular (a situao imaginria prevalece). Nos jogos pr-esportivos e esportivos (pega-pega, amarelinha, prottipos do futebol, basquete etc.) essas regras, apesar de externas, expressam-se internamente (nenhum jogador de xadrez fala qual ser seu prximo movimento, assim como no pega-pega o pegador no verbaliza sobre qual criana ser alvo de sua investida).

    No bastasse isso, a transgresso dessas regras severamente punida pelos demais participantes. Aqui a regra que prevalece sobre a situao imaginria e o produto torna-se cada vez mais importante ao processo. A vitria torna-se o objetivo, mesmo que isto suscite atitudes no prazerosas. Quanto mais desenvolvidos so os jogos, maiores e mais complexas so suas regras, porm menor a liberdade oferecida aos seus participantes, cada vez mais submetidos s regras da prpria atividade.

    Com base nesses elementos podemos elencar algumas diferenciaes entre os termos jogo e brincadeira. A primeira delas reside em estabelecer uma trade configuradora dos jogos, cujo percurso histrico se inicia nos jogos protagonizados, passa pelos jogos pr-esportivos e incide nos esportivos. Neste percurso os jogos protagonizados, assumem por semelhana funcional, conceitual, atitudinal e procedimental as mesmas funes da brincadeira, sendo que sua referncia terica encontrada em Usova (1979) e Leontiev (1988).

    Coerente a estes pressupostos, as brincadeiras no se estenderiam para o universo caracterstico dos jogos pr-esportivos e esportivos, uma vez que, enquanto na brincadeira a imaginao assume um papel primordial, pois est direcionada para a imitao de uma funo social, no jogo esta denota um papel secundrio, j que as regras delimitam rigidamente o espao de aes pelo qual seus participantes podem intervir em seu universo, espao este delimitado populacional e geograficamente, j que apenas

  • G. M. Piccolo

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    um determinado nmero de participantes admitido nos estgios mais avanados dos jogos pr-esportivos e esportivos, alm da exigncia cada vez crescente de certo nvel de habilidades tcnicas para a incorporao plena e efetiva do participante ao jogo. Por conseguinte, quanto mais se aproximam das atividades rigidamente regulamentadas, mais excludentes, discriminatrios e opressivos se tornam os jogos.

    Permanecendo nessa linha de anlise e expandindo algumas dessas consideraes, destacamos que outro elemento basilar na arquitetura analtica diferenciadora dos jogos e brincadeiras situa-se no motivo impulsionador de cada atividade, o qual pode at se configurar como um elemento mais profcuo na distino desses termos do que a presena ou ausncia de situaes imaginrias e regras.

    O motivo impulsionador da brincadeira ou das dramatizaes est associado com o domnio da realidade externa, materializada pelas funes desempenhadas pelos adultos, inalcanvel nas atividades realizadas cotidianamente pelas crianas. Nesse espao, alm da diverso, o que move a criana a fictcia idia de se tornar senhora de suas aes, para empregarmos um termo utilizado por Leontiev (1988).

    J nos jogos pr-esportivos e esportivos o domnio da realidade externa mediante uma situao fictcia no mais incita o agir das crianas, que se encontram em uma etapa superior de desenvolvimento psquico, social e cultural. Por isso, a imaginao e a fico assumem outras perspectivas, no mais idealizadas apenas durante o transcorrer da atividade. Aqui, o motivo impulsionador dos jogos pr-esportivos e esportivos est relacionado com a apropriao do sistema de regras e significaes caracterstico de uma dada atividade ldica, e, com a edificao de um processo comunicativo entre os participantes da atividade.

    Nesse processo, as movimentaes corporais se tornam a principal fonte de dilogo para as crianas, uma vez que o sistema de codificao mediante regras fixas estabelece um espao no mais demarcado por uma srie de papis sociais como nas dramatizaes, mas pela habilidade apresentada por cada criana na realizao de determinado jogo. Nesse universo codificado, a imaginao, apesar de menos aparente, mostra-

    se inclusive mais rica do que nas situaes estabelecidas pelas brincadeiras, j que mesmo com todas as limitaes impostas por um sistema codificado de regras, os participantes da atividade vislumbram situaes imaginrias que podem ocorrer durante seu transcorrer. Assim, por exemplo, em um jogo de futebol que ser realizado no dia seguinte, a criana se imagina realizando dribles no adversrio e marcando um belo gol, mesmo antes de a atividade ter iniciado. Isso denota uma diferenciao nas situaes imaginrias presentes nas brincadeiras e jogos, uma vez que neles a imaginao surge, apesar de internamente, inclusive anteriormente execuo da atividade, o que inexiste nas dramatizaes ou brincadeiras. Entretanto, isso no significa que a situao imaginria engendre os jogos realizados pelas crianas, mas que apenas se desenvolve em um nvel superior ao daquela apresentada nas brincadeiras.

    Devido conjuntura destes elementos e com base em Leontiev (1988) e Usova (1979) destacamos que a utilizao do termo brincadeira deve ser realizada quando estivermos falando das atividades ldicas protagonizadas, sendo que o termo jogo pode ser empregue inclusive para essas atividades, desde que complementado pelo adjetivo protagonizado, mas, sobretudo quando estas transcenderem sua rea de atuao para a esfera pr-esportiva e esportiva. Ou seja, no jogo e brincadeira como ressalta Barbosa (1997), mas, sim, jogo ou brincadeira.

    Consideraes Finais Os elementos fornecidos pelo texto nos

    permitem realizarmos uma distino entre os termos jogo e brincadeira. No uma distino rgida e em moldes estabelecidos pelo positivismo cartesiano, mas, uma distino dialtica, em que a discordncia de um termo pressupe necessariamente a apropriao de seu oposto constituinte. Sendo assim, a materializao de uma arquitetura epistemolgica sobre o significado do conceito jogo fincada em trs pilares, a citar: jogos protagonizados, jogos pr-esportivos e jogos esportivos, nos possibilitam a classificao de cada uma dessas prticas a partir da relao que o ser humano desempenha com a sociedade.

    Por isso, apenas o jogo protagonizado, que pode ser usado em termos funcionais, etimolgicos e simblicos como sinnimo de

  • jogo ou brincadeira?

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    brincadeira, de fato a atividade principal de que fala a Psicologia Histrico-Cultural, estando restrita ao estgio de desenvolvimento pr-escolar nesta perspectiva. Destarte, brincadeira sinnimo de jogo protagonizado e no de qualquer jogo praticado pelos seres humanos, portanto, o vocbulo jogo necessita, quando nos referimos ao mbito acadmico, de um complemento que o defina objetiva e teleologicamente para que no caiamos analogamente na perigosa viso da noite em que todos os gatos so pardos, tal qual demonstra Hegel (1999).

    Por fim, esperamos que este texto se manifeste como fonte de questionamento sobre alguns dos valores auto-definidores expressos pela academia e, incentive novas pesquisas que critiquem esta posio e nos fornea ao menos o benefcio da dvida. Dvida de nossas posies, de nossos questionamentos e da prpria forma como visualizamos a diferena e a semelhana.

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    Este trabalho parte constituinte da dissertao de mestrado intitulada: Educao Infantil: anlise da manifestao social do preconceito na atividade principal de jogos, defendida em agosto de 2008 na UFSCar. Endereo: Gustavo Martins Piccolo Alameda Estevo, 330 Centro Gavio Peixoto SP Brasil 14813-000 Telefone : (16) 3308.1243 e-mail: [email protected] Recebido em: 20 de novembro de 2008. Aceito em: 13 de maio de 2009.

    Motriz. Revista de Educao Fsica. UNESP, Rio Claro, SP, Brasil - eISSN: 1980-6574 - est licenciada sob Licena Creative Commons