joÃo alves, o pintor da cidade · 2018-09-25 · a deus pela sua maravilhosa graça. a minha...

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1 MÁRCIO SANTOS LIMA JOÃO ALVES, O PINTOR DA CIDADE RELAÇÕES DIALÓGICAS ENTRE A PINTURA “PRIMITIVA” E O MODERNISMO BAIANO Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, Escola de Belas Artes, Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Artes Visuais. Área de concentração: História da Arte Orientadora: Profa. Dra. Elyane Lins Corrêa SALVADOR 2012

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MÁRCIO SANTOS LIMA

JOÃO ALVES, O PINTOR DA CIDADE RELAÇÕES DIALÓGICAS ENTRE A PINTURA

“PRIMITIVA” E O MODERNISMO BAIANO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, Escola de Belas Artes, Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Artes Visuais. Área de concentração: História da Arte Orientadora: Profa. Dra. Elyane Lins Corrêa

SALVADOR

2012

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À dona Amélia, minha “Manken”, minha saudosa mãe, que acreditou em mim e

sempre me fez sonhar

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AGRADECIMENTOS

A Deus pela sua maravilhosa graça.

A minha esposa, Claudia Lima, meu porto seguro e ponto de equilíbrio, pela ajuda,

companheirismo, cumplicidade, paciência e principalmente, amor.

A minha família, pela presença indispensável em meu caminhar.

Ao Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da

Universidade Federal da Bahia, a sua coordenação, funcionários e professores.

À Escola de Belas Artes, a sua diretoria e aos seus funcionários.

Aos colegas do Mestrado pela solidariedade dispensada.

À minha orientadora Profa. Dra. Elyane Lins, pela dedicação, entusiasmo e incentivo

à minha pesquisa.

Aos Professores da banca, Prof. Dr. Luiz Freire, pelas trocas de informações e pelo

ânimo enquanto tudo parecia concorrer desfavorável à minha pesquisa, e Profa. Dra.

Renata Wilner por aceitar o convite e pela excelente contribuição na qualificação.

Aos artistas plásticos Sante Scaldaferri, Justino Marinho e Emanoel Araújo pela

prontidão em atender-me e no favorecimento do desenvolvimento da pesquisa.

Ao Museu de Arte da Bahia, ao Museu de Arte Moderna da Bahia e ao Museu Afro

Brasil, na pessoa de seus dirigentes e funcionários por disponibilizarem seus

acervos para estudo.

Às Bibliotecas da UFBA: Belas Artes e Central.

Aos profs. Drs. José Dirson Argolo, Alejandra Muñoz e Mariela Hernadez.

A Inaldo Ribeiro pela generosidade e apoio na procura de obras de João Alves.

A Maria Tavares (in memoriam) pela simpatia e disponibilidade em ajudar, abrindo

sua casa para estudo de sua coleção.

À minha irmã Quézia Lima pela enorme contribuição na revisão dos textos e, Danilo

Lima pela coleta em jornais da Biblioteca Pública do Estado da Bahia.

Aos meus amigos Robério e Yara, Claudio e Agueda, Robson e Elisângela, João

Marcos e Sandra, Thiago Novaes, enfim, todos aqueles que, direta e indiretamente,

me ajudaram a concluir essa pesquisa.

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Não vejo nêle nem o pitoresco nem a lenda, não vejo nêle o

curioso folclore para gaudio dos turistas, o ex-engraxate, e ex-vendedor de refrescos, sei lá o que, Deus meu! Vejo, sim,

o pintor da cidade, de suas casas, suas ruas, sua gente miúda da festa do Bonfim e da eterna mulher-dama do

Pelourinho, das noites de São João, do mágico carnaval dos afoxés, das areias sob a lua, e da côr desta cidade da Bahia,

côr de João Alves, homem bom, de sofrida humanidade e generoso coração. Um homem do povo, nascido e plantado

na pobreza e na grandeza das Portas do Carmo, um verdadeiro artista, um poderoso creador, um homem do

povo e um mestre do povo, mestre da cidade e seu arquiteto, o pintor João Alves, um grande da Bahia.

Jorge Amado, 1964

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RESUMO

Nesta pesquisa, tive como objetivo principal estudar e analisar a obra de um dos artistas autodidatas mais expressivos do período do Modernismo baiano, em meados do século XX: o pintor e ex-engraxate João Alves. As interações e as relações dialógicas entre sua pintura e o denominado Movimento Moderno oferecem um pano de fundo para a elaboração do texto, trazendo à discussão o contexto histórico e algumas implicações culturais, étnicas e socioeconômicas. Partindo do método histórico-biográfico, optei por adotar o uso de entrevistas, depoimentos e revisão literária, além da pesquisa bibliográfica. Cabe salientar que não havia, até a atual dissertação, qualquer obra biográfica do referido artista. Portanto, na pesquisa, busquei montar, através de depoimentos de artistas, colecionadores, escritores, catálogos, recortes de jornais, fotografias e documentos, a sua biografia. Para tanto, ressalto a relevância das palavras de Jorge Amado, em seus textos literários, os escritos dos críticos de arte José Valladares e Clarival do Prado Valladares, bem como as entrevistas realizadas com contemporâneos do artista e com Renot, dono da Galeria Querino, na qual João expôs. Destaco a importância das contribuições dos artistas plásticos Sante Scaldaferri, com depoimento e com sua coleção, e Emanoel Araújo, diretor do Museu Afro Brasil, em São Paulo, com seu posicionamento crítico e combatente contra o emprego do termo primitivo para definir a arte de João Alves. Essa expressão foi questionada e problematizada no intuito de refletir sobre seu caráter evolucionista e, logo, preconceituoso de claro teor eurocêntrico. A falta de um arcabouço bibliográfico especializado na discussão sobre a pintura primitiva, no Brasil, foi o que me motivou para a organização e sistematização cronológica da investigação desse termo polissêmico no universo artístico baiano. Enfim, finalizei a pesquisa com a análise de pinturas de João Alves, que fazem jus ao seu título de Pintor da Cidade. Foram as obras que, tematicamente, versaram entre as igrejas de Salvador e os casarios do Pelourinho, representando com interpretação pessoal a Bahia, sua beleza, encanto e seus problemas sociais. Destaco também o enorme esforço para reunir, de maneira organizada, por tema e ano, a obra de João Alves que fora dispersa pelo mundo. Como resultados, as discussões não foram esgotadas nem conclusivas, foram propositivas e abriram possibilidades para, quem sabe, novas pesquisas e aprofundamentos futuros sobre referido tema e o artista João Alves. Palavras-chave: Pintura “primitiva”. João Alves. Modernismo baiano. Pelourinho.

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ABSTRACT This research aims to study and analyze the main work of one of the most expressive self-taught artists of the period of Modernism Bahia, in the mid-twentieth century: the painter and former shoeshine João Alves. The interactions and dialogical relations between his painting and called Modern Movement provide a backdrop to the drafting of the text, bringing to the discussion of the historical context and some implications of cultural, ethnic and socio-economic. Based on the historical-biographical chose to adopt the use of interviews, literature review and interviews, as well as literature. It should be noted that there was up to the current dissertation, any biographical work of this artist. Therefore, the research sought to ride through testimonials from artists, collectors, writers, catalogs, newspaper clippings, photographs and documents, his biography. Therefore, I emphasize the importance of the words of Jorge Amado, in their literary texts, the writings of art critics and José Valladares Clarival Prado Valladares, as well as interviews with contemporaries of the artist and Renot, owner of Gallery Querino in which John explained the importance of the contributions of artists Sante Scaldaferri, with testimony and his collection, and Emanoel Araujo, director of the Museu Afro Brazil, in Sao Paulo, with its critical stance and combatant against use of the term to define the primitive Art of John Alves. This expression was questioned and problematised in order to reflect on their evolutionary character and therefore biased Eurocentric content of course. The lack of a framework in specialized bibliographic discussion of primitive painting in Brazil is what motivated the organization and systematization of chronological investigation of this polysemic term in Bahia artistic universe. Anyway, finished the research on the analysis of paintings by João Alves who do live up to their title of Painter City, were the works that thematically dealt among the churches of Salvador's Pelourinho and hamlets. Representing personal interpretation with Bahia, her beauty, charm and its social problems. I also emphasize the enormous effort to gather so organized by subject and year, the work of João Alves had been scattered throughout the world As a result, the discussions were not exhausted nor conclusive, were purposeful and opened possibilities for perhaps new research and future insights about said topic and artist João Alves. Keywords: Painting "primitive." João Alves. Modernism Bahia. Pelourinho.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ............................................................................................. 13

2 A OBRA E O ARTISTA ............................................................................... 16

2.1 ANÁLISE DE UMA OBRA DE ARTE............................................................ 17

2.2 BREVE RELATO BIOGRÁFICO: DE IPIRÁ AO PELOURINHO .................. 28

2.3 A COR DE JOÃO.......................................................................................... 33

2.3.1 Religiosidade .............................................................................................. 39 2.4 PARTICIPAÇÃO E INTERAÇÃO DE JOÃO ALVES NO CIRCUITO

DE ARTE ...................................................................................................... 42

2.4.1 A pintura de João Alves, Cardoso e Silva e Willys ................................. 47

2.4.2 Mercado de arte .......................................................................................... 52 2.4.3 Exposições e presença de João Alves no cenário artístico baiano Coletivas e Individuais ............................................................................... 57

3 AS RELAÇÕES DIALÓGICAS ENTRE A PINTURA “PRIMITIVA” E O MODERNISMO BAIANO ...................................................................... 65

3.1 A TENDÊNCIA MODERNISTA NO BRASIL ................................................ 65

3.2 O POPULAR NA ARTE MODERNA............................................................. 74

3.3 O PRIMITIVO: O TERMO E SUAS CONOTAÇÕES NA HISTÓRIA DA

ARTE ............................................................................................................ 76

3.3.1 A pintura primitiva ...................................................................................... 81 3.3.2 O interesse moderno pelo primitivo ......................................................... 88 3.3.3 A crise do esgotamento plástico .............................................................. 92

3.4 UMA NOVA PROPOSTA TERMINOLÓGICA .............................................. 95

4 A CRÍTICA E A ANÁLISE DA OBRA DE JOÃO ALVES.......................... 100

4.1 A CRÍTICA DE ARTE NOS ANOS 1950 E 1960 NA BAHIA ...................... 100

4.2 JOÃO ALVES NA IMPRENSA E NOS LIVROS ......................................... 106

4.2.1 Paisagem Rediviva ................................................................................... 115 4.2.2 Gente da Terra .......................................................................................... 118

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4.3 JOÃO ALVES NA LITERATURA AMADIANA ............................................ 120

4.4 JOÃO ALVES, O PINTOR DA CIDADE ..................................................... 125

4.4.1 As igrejas de João .................................................................................... 125 4.4.2 Os casarios de João................................................................................. 137

CONSIDERAÇÕES............................................................................................... 143

REFERÊNCIAS..................................................................................................... 147

ANEXOS ............................................................................................................... 152 ANEXO A – Quadro Sinóptico das obras de João Alves

ANEXO B – Fichas técnicas de conservação e restauro de pinturas de João Alves

ANEXO C – Relação de obras nos Museus de Arte da Bahia e Afro Brasil ANEXO D – Lei Estadual da Fundação do Museu de Arte Moderna ANEXO E – Recortes de jornais sobre a crítica de arte nos anos 1950 e 1960

ANEXO F – Confronto de dois primitivos de Clarival do Prado Valladares ANEXO G – Publicação sobre romance de Jorge Amado: Dona flor e seus dois maridos

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – João Alves. Incêndio no Pelourinho, óleo s/ tela, São Paulo: Museu Afro

Brasil...................................................................................................................... 17

Pormenor 1 - Detalhe da figura 1 ...................................................................... 20

Pormenor 2 - Detalhe da figura 1 ...................................................................... 22

Pormenor 3 - Detalhe da figura 1 ...................................................................... 25

Figura 2 – João Alves – década de 1960 .............................................................. 28

Figura 3 – João Alves. Foto de Pierre Verger ....................................................... 33

Figura 4 – Foto de Zélia Gattai do casamento de João Alves .............................. 44

Figura 5 – João Alves com Mário Cravo Jr., atrás, Marina e Sante Scaldaferri .... 46

Figura 6 - João Alves. Festa do Senhor do Bonfim, 1961, óleo s/ tela,

37,5 x 45cm, Coleção particular Maria Tavares ............................................... 48

Pormenor 1 da figura 6...................................................................................... 48

Pormenor 2 da figura 6...................................................................................... 49

Pormenor 3 da figura 7...................................................................................... 49

Figura 7 - Cardoso e Silva. Igreja. 1964, óleo s/ tela, 39,5 x 52cm, Coleção

particular Maria Tavares.................................................................................... 50

Figura 8 – Cardoso e Silva, Jorge Amado e João Alves ....................................... 50

Figura 9 – Willys. Bahianas com acarajé. Década de 1960, óleo s/ madeira,

28,5 x 29cm, Coleção particular Maria Tavares................................................ 51

Figura 10 – Capa do catálogo da exposição Artistas da Bahia, de 1957, no Museu

de Arte Moderna de São Paulo ......................................................................... 58

Figura 11 – Lista de obras de João Alves expostas na exposição Artistas da

Bahia, de 1957, no Museu de Arte Moderna de São Paulo .............................. 59

Figura 12 – Coleção inicial do acervo do Museu de Arte Negra ........................... 60

Figura 13 – Lei de fundação do MAM-BA, DN – 6 de jan 1960 ............................ 61

Figura 14 – Capa do catálogo da Bienal Nacional de Artes Plásticas da Bahia,

1966 .................................................................................................................. 62

Figura 15 – Lista de obras de João Alves expostas na Bienal Nacional de

Artes Plásticas da Bahia, em 1966 ................................................................... 62

Figura 16 – Revista carioca GAM, de 1968, edição especial da Segunda Bienal

Nacional de Artes Plásticas da Bahia ............................................................... 63

Figura 17 – Lista de obras de João Alves expostas na 2ª Bienal Nacional de

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Artes Plásticas da Bahia, em 1968 ................................................................... 63

Figura 18 - Jan van Eyck. Retrato de um homem de turbante. 1433, 15.5 × 19 cm,

National Gallery................................................................................................. 78

Figura 19 – Figura rupestre. Caverna Las Monedas, Santander, Espanha.

Período Pleistonceno. Fonte Bihalji-Merin, 1978, p. 17 ................................... 78

Figura 20 - Henri Rousseau, The Sleeping Gypsy. 1897.

Fonte: Bihalji-Merin, 1978, p.11 ........................................................................ 83

Figura 21 - Children feeding the birds. Aquarela de Savica Kocovic, entre 7 e 8 anos,

Isidora Sekulic, Grammar School, Belgrade. Fonte: Bihalji-Merin, 1978, p.29 . 86

Figura 22 - Female Figure. Desenho com giz, de um paciente chamado Hans,

1960. Fonte: Bihalji-Merin, 1978, p.30 .............................................................. 87

Figura 23 - César, desenho de um paciente chamado Aloyse, 1948.

Fonte: Bihalji-Merin, 1978, p.29 ........................................................................ 87

Figura 24 - “Diário de Notícias-SDN”. Salvador. 24 de dezembro de 1961.

Páginas 1 e 4. Biblioteca Pública do Estado da Bahia.................................... 102

Figura 25 - SDN. Salvador. 20 de dezembro de 1964. Biblioteca Pública do

Estado da Bahia .............................................................................................. 107

Figura 26 - DN. Salvador. 13 de junho de 1968. Arquivo de Sante Scaldaferri .. 108

Figura 27 - Jornal Estado da Bahia. Salvador. 21 de dezembro de 1968, p. 5.

Coluna Notícias do Renot. Biblioteca Pública do Estado da Bahia................. 109

Figura 28 - Revista GAM. Nº 17, dezembro de 1968. Biblioteca da EBA ........... 110

Figura 29 - O Modernismo na Bahia. Tablóide da exposição, 1994.

Biblioteca da Escola de Belas Artes da UFBA ................................................ 111

Figura 30 – Jornal A Tarde. Salvador. Dezembro de 2005. Artes Plásticas.

Arquivo do MAB .............................................................................................. 112

Figura 31 - Jornal A Tarde. Salvador. Dezembro de 2005. Artes Plásticas.

Arquivo do MAB .............................................................................................. 113

Figura 32 - João Alves. Igreja do Bonfim. 1961, óleo s/ tela 51,5 X 74,5 cm,

Museu Afro Brasil ........................................................................................... 126

Figura 33 - João Alves. Igreja de Monte Serrat. 1954, óleo s/ tela, 58 x 67,3 cm,

Museu de Arte da Bahia ................................................................................. 127

Figura 34 - João Alves. Igreja da Boa Viagem. 1954, óleo s/ tela, 49,5 x 58,5 cm,

Museu de Arte da Bahia ................................................................................. 128

Figura 35 - João Alves. S/ título. 1962, óleo s/ tela, 45,5 x 60cm

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Coleção particular de Maria Tavares .............................................................. 129

Figura 36 - João Alves. Igreja Nossa Senhora da Conceição da Praia. 1954,

óleo s/ tela, 56,5 x 57 cm, Museu de Arte da Bahia ....................................... 130

Figura 37 - João Alves. Igreja de São Francisco de Assis. 1959, óleo s/ tela,

52 X 66,7 cm, Museu Afro Brasil .................................................................... 131

Figura 38 - João Alves. Catedral Basílica. 1954, óleo s/ tela, 49,5 x 59 cm,

Museu de Arte da Bahia ................................................................................. 132

Figura 39 - João Alves. Ordem Terceira de São Francisco. 1954, óleo s/ tela,

52,4 x 65,6 cm, Museu de Arte da Bahia ....................................................... 133

Figura 40 - João Alves. São Pedro dos Clérigos. 1954, óleo s/ tela, 58 X 48 cm,

Museu de Arte Moderna da Bahia – MAM ..................................................... 134

Figura 41 - João Alves. Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos. 1954,

óleo s/ tela, 38 X 54 cm, Museu de Arte da Bahia ........................................ 134

Figura 42 - João Alves. Igreja SS Sacramento do Passo. Óleo s/ tela,

66 X 51,5 cm, Museu de Arte Moderna da Bahia – MAM .............................. 135

Figura 43 - João Alves. Igreja Santo Antonio da Barra. 1954, óleo s/ tela,

51 x 64,2 cm, Museu de Arte da Bahia .......................................................... 136

Figura 44 - João Alves. Antiga Sé. Óleo s/ tela, 52,5 x 58,7 cm,

Museu Afro Brasil ........................................................................................... 137

Figura 45 - João Alves. Casario. 1965, óleo s/ tela, Museu Afro Brasil ............. 138

Figura 46 - João Alves. Casario. 1969, óleo s/ tela, 45,5 x 37,5 cm,

Coleção pessoal Marcelo Delame ................................................................. 139

Figura 47 - João Alves. Casario. Óleo s/ tela, 39,5 x 47,5 cm,

Museu Afro Brasil ........................................................................................... 139

Figura 48 - João Alves. Reforma no Pelourinho. Óleo s/ tela, 46x37cm

Coleção particular Sante Scaldaferri ............................................................. 141

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1 INTRODUÇÃO

Na primeira metade do século XX, em uma época considerada de afirmação

identitária, de busca de propostas estéticas oriundas do povo, de construção de um

pensamento e “gosto” com feições genuinamente brasileiras, os olhares de

intelectuais, literatos, críticos de arte e artistas, incumbidos de implantar o

Movimento Moderno no Brasil, voltaram-se para a produção artística popular como

fonte inspiradora para uma reinvenção plástico-pictórica que rompesse com a

maneira tradicional de se fazer arte. Essa produção parecia oferecer um caminho

em direção às sonhadas “autenticidade” e “originalidade”, consideradas perdidas

pelo vazio e dureza representativa de modelos prontos do Academismo.

É neste contexto que a arte de pessoas sem formação acadêmica, sem

cursos oficiais de arte, autodidatas e, muitas vezes, com poucos recursos

financeiros, ganha imensurável admiração e respeito no meio intelectual. No âmbito

da pintura, particularmente no século XX, essa cultura não oficial foi chamada de

diversos nomes, todos eles sinônimos ou subdivisões do que entendia-se naquela

época por arte primitiva: naïf, art brut, incomum, ínsita e ingênua (MIDLEJ, 2006,

p.140). Na Bahia, o incentivo a esse gênero da arte dava-se ao interesse em

associá-lo e relacioná-lo com o Movimento Moderno, que despertava em ascensão

nos finais da década de 1940.

Para tratar desse tema, escolhi como objeto de estudo a obra de um desses

artistas autodidatas de grande envergadura artística, o pintor João Alves Oliveira da

Silva. Afro-brasileiro, nascido em 1906, natural de Ipirá-BA, o artista pesquisado

faleceu em 1970, em Salvador, onde trabalhou como engraxate, dentre muitos

outros ofícios no Pelourinho, Centro Histórico de Salvador, Bahia. A escolha partiu

da orientação do prof. Dr. Luiz Freire, na disciplina Artes Visuais na Bahia, quando a

cursei, na qualidade de aluno especial, desdobrando na atual pesquisa.

No título da dissertação, parafraseei Jorge Amado que, ao descrever João

Alves o intitulou como o Pintor da Cidade.

Justifico o atual estudo como importante, tanto para a Academia quanto para

a sociedade artística da Bahia e do Brasil. O aprofundamento na análise das

implicações socioculturais que envolvem uma época – as décadas de 1940, 1950 e

1960, um espaço – o Pelourinho – e uma tendência plástica – a arte não oficial –, na

cidade de Salvador-BA.

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Com a pretensão de organizar a abordagem dialógica entre o Movimento

Moderno e o gênero artístico de João Alves, construí a dissertação contendo três

blocos estruturais: a) A obra e o artista – com a explanação da análise de uma obra

de João, sua apresentação e seu envolvimento no circuito de arte na Bahia, no

intuito de elevar e destacar seu fazer artístico; b) As relações dialógicas entre a

pintura “primitiva” e o modernismo baiano – com as afinidades e aproximações entre

as duas propostas artísticas, bem como a problematização do termo “primitivo” até

chegar a uma nova proposta terminológica; c) A crítica e análise da obra de João

Alves – com a presença do artista em jornais, livros e literatura, finalizando com a

análise de obras que retratam a Cidade de Salvador. Esses blocos deram origem a

três capítulos da pesquisa.

No capítulo – A OBRA E O ARTISTA –, apresento uma pintura de João Alves

– Incêndio no Pelourinho – e realizo uma análise crítica, apontando para

características plásticas procuradas pelo Movimento Moderno. A abordagem

investigativa nesta seção, inicia-se pela obra até chegar ao artista, que tem um

breve conteúdo biográfico, dada a dificuldade de coleta de informações devido à

distância temporal de sua morte, aos poucos registros documentais sobre o artista, à

ausência de familiares e aos depoimentos parcos e repetitivos dos entrevistados. O

capítulo segue com as implicações étnicas, econômicas socioculturais e religiosas

em sua arte. Propus uma análise comparativa e aproximativa de dois pintores

autodidatas com João Alves, no período estudado: Cardoso e Silva, e Willys. O

capítulo é concluído, destacando a inserção de João Alves no mercado e no circuito

de artes baianos, bem como sua participação em exposições individuais e coletivas,

como na fundação do Museu de Arte Moderna e nas duas Bienais Nacionais da

Bahia.

No capítulo seguinte – AS RELAÇÕES DIALÓGICAS ENTRE A PINTURA

“PRIMITIVA” E O MODERNISMO BAIANO –, a ênfase é dada à considerada

lacuna na História da Arte baiana, no tocante à pintura primitiva. Inicia-se fazendo

um apanhado histórico na direção das discussões sobre a arte moderna com sua

investigação de valores autóctones indígenas e afro-brasileiros, dialogando com os

movimentos modernos europeus. Os modernistas buscavam interpretar e apropriar-

se das expressões culturais do povo, mediante os seus comportamentos,

idiossincrasias, políticas e gostos visuais. Aqui, é feito um breve recorte no tema

arte popular, explorado pelos artistas, e especificamente é abordado e

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problematizado o gênero de pintura conhecido como primitiva, que tinha na época

um enfoque demasiado eurocêntrico. De maneira linear, o segundo capítulo faz um

levantamento histórico do tema, seu emprego, sua multirreferencialidade e

polissemia, percorrendo, de modo sintético, do século XV até aos dias atuais, e

questiona seu valor conceitual como rótulo para a pintura de João Alves. A revisão

bibliográfica partirá de teóricos como Oto Bihalji-Merin e Robert Goldwater, que

expressavam, de maneira clássica, o ponto de vista europeu; passará por Salle

Price e Gill Pery, que contestavam o referido termo primitivo; até chegar em Lélia

Coelho Frota, que vai sugerir uma nova terminologia para classificar o gênero

artístico em questão. Desta forma, é construído um escopo teórico que suspeita o

sentido de subestima e inferioridade na expressão primitivo. Surgem, assim,

questões como: “A arte é primitiva porque carece de evolução por estar em seu

estado primeiro e ‘atrasado’?”; “Existe arte “atrasada”?”; “A arte primitiva é pura e

autêntica por ser produzida por pessoas das classes popular ou proletária?”; “Há

subestimação no emprego do termo arte primitiva?”; “João Alves necessita mesmo

de um rótulo que reduza sua arte?”. Enfim, esse capítulo se encarregará de buscar

respostas para essas e outras perguntas.

O último capítulo – A CRÍTICA DA OBRA DE JOÃO ALVES – aborda a

análise de pinturas do artista, para tanto, é iniciado com um olhar para a crítica de

arte exercida na Bahia, no período estudado. Havia uma crítica diversificada,

passando pela Filosofia (Formalista e Expressionista), pela literatura e poesia, até

pelos textos de caráter enaltecedor e de favorecimentos às afinidades relacionais.

Em seguida, é realizado um levantamento de citações e referências do artista João

Alves na imprensa e em livros como Artes Maiores e Menores, de José Valladares;

Paisagem rediviva, de Clarival do Prado Valladares; e Gente da Terra, de António

Celestino. Estes dois últimos com textos consideravelmente amplos sobre João

Alves. Também foi analisada a presença do artista na literatura amadiana, com no

romance Dona Flor e seus dois maridos, onde o artista aparece como personagem

de Jorge Amado, retratado com fidelidade em suas características físicas, psíquicas

e comportamentais. Logo adiante, é realizado um elaborado estudo crítico de obras

com temática comum: a cidade de Salvador. Nesta parte, que leva o título da

dissertação: João Alves, o pintor da cidade, os trabalhos são divididos em dois

grupos: as igrejas e os casarios. A tentativa é mostrar que a pintura do artista vai

muito além de um registro histórico de uma época e um espaço urbano, e se faz

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necessário chamar a atenção para a interpretação e reinvenção pessoal de João, de

seu universo sociocultural.

Para a atual pesquisa, utilizei a metodologia histórico-biográfica. Foi

construído o entrelaçamento de dados biográficos e históricos com a crítica à obra

do artista. Para isso, a pesquisa foi executada a partir de técnicas metodológicas de

abordagem qualitativa, de tradição oral, na busca de documentos históricos,

literatura, histórias e depoimentos da vida cotidiana e profissional do artista

estudado. Foi feito um levantamento de obras do pintor em museus, coleções e

leilões, além de revisão bibliográfica na relação do Modernismo brasileiro e baiano

com a arte de pintores autodidatas sem formação artística oficial na Bahia. Também

foi feito a análise da representação dos casarios e das igrejas do Pelourinho, a

inserção do afro-brasileiro e do pobre nas Artes Plásticas e dos aspectos

econômicos e socioculturais de sua época (meados do século XX). Foram

elaboradas entrevistas com colecionadores, admiradores e artistas plásticos da

época, também foram colhidos depoimentos afins como técnicas metodológicas.

Assim, o projeto foi desenvolvido por meio de pesquisa tradição oral, documental,

bibliográfica e de campo.

Nas Considerações, estão presentes as inquietudes e perguntas que não

tiveram respostas, devido ao pouco tempo de pesquisa, considerado-se dois anos

pouco tempo para a demanda que se tem desdobrado no aprofundamento do tema.

Além das referências, os anexos, como elementos pós-textuais, trazem as fichas

técnicas de conservação e restauro de obras de João Alves, pertencentes a museus,

bem como relações de pinturas em seus acervos, e textos em jornais e livros, e um

quadro sinóptico (ANEXO A) das telas do artista.

2 A OBRA E O ARTISTA

Antes de abordar a contextualização histórica, artística e social do artista -

centro da atual pesquisa - e de analisar sua obra, enquadrando-a em algum grupo

estilístico, tempo ou época, devo salientar que iniciarei o trabalho mostrando uma

tela do pintor em questão. Sugerindo desconhecer qualquer informação exterior da

obra, analisarei a pintura pela pintura, seus efeitos produzidos na mente de quem a

observa, levantando suspeitas e indagações sobre seu tema, natureza, gênero,

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época, até chegar ao seu encadeamento histórico, ainda neste capítulo. Para isso,

segue abaixo a imagem que escolhi para principiar a análise.

Figura 1 – Pintura óleo s/ tela Museu Afro Brasil

2.1 ANÁLISE DE UMA OBRA DE ARTE

Não vejo nêle nem o pitoresco nem a lenda, não vejo nêle o curioso folclore para gaudio dos turistas, o ex-engraxate, e ex-vendedor de refrescos, sei lá o que, Deus meu! Vejo, sim, o pintor da cidade.

Jorge Amado

Ao olhar o quadro acima (figura 1), suponhamos que desconhecemos sua

autoria. Partindo da pintura em si, sua fruição formalista e descontextualizada - sem

sequer saber seu período, estilo, propostas plásticas, a vida do artista, sua técnica -

exposta e submetida à análise de um público seleto, acredito que um estudante de

arte identificaria, talvez sem muita dificuldade, alguns elementos de uma construção

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da época do modernismo, como o empasto da pincelada, forma indefinida e

simplificada, perspectiva não linear etc.

Nos aspectos indiciais da obra, percebemos que a questão da

verossimilhança, presente na pintura, parece se distanciar das propostas modernas,

quando as cores eram postas de maneira arbitrária. Aqui, nesta pintura, onde as

cores pretendem demonstrar nos tons como os olhos, fisiologicamente,

compreendem o real: o céu é azul, o fogo é vermelho e amarelo etc. As cores não

são arbitrárias como na maioria das obras modernas. Este contraponto, talvez,

pudesse suscitar dúvidas ao observador, se a pintura estudada seria mesmo uma

produção moderna. No entanto, se o público que analisa a tela acima tiver um pouco

mais de aprofundamento histórico, diria se tratar de uma categoria específica,

chamada de primitiva, do início do século XX1. Isso se dá, segundo Clarival do

Prado Valladares,  porque “seus valores cromáticos são puros para cada superfície

definida (a fôlha é verde, a casa é amarela, a telha é vermelha, etc.)”

(VALLADARES, 1962, p. 238). Também na observância do aprimoramento técnico

do trabalho, nas pinceladas soltas, no ritmo descompassado, na fatura das cores.

Estas, muito vibrantes. Por isso, darei início à análise começando exatamente por

elas - as cores.

Antes de analisar seu caráter indicial, o qual reforça o princípio da

verossimilhança, desejo começar pela abordagem a partir de suas qualidades

sensíveis, seu aspecto icônico. As cores e as formas serão examinadas por elas

mesmas, sem interferência, por enquanto, de sua representatividade.

Sendo assim, observo que os tons contrastantes dos vermelhos com os

laranjas, por exemplo, dão movimento, dinâmica e muito calor à composição, além

das cores complementares na parte superior entre a concentração de um borrão

amarelado e uma extensão de azul. Essa combinação de cores quentes, de fato, dá

a ideia de que algo está queimando de dentro para fora da tela. Embora exista uma

concentração maior e mais intensa dos vermelhos e laranjas no centro, as cores

quentes são irradiadas por toda a extensão e extremidade da obra. Não há, nesta

análise, a identificação de uma construção composicional com clara perspectiva

linear, segundo os moldes renascentistas. No entanto, há linhas que mudam de

direção, como retas não colineares, juntando-se a cores fortes e intensas, que

                                                                                                               1  Todas as questões levantadas sobre o Modernismo e arte primitiva serão abordadas no capítulo 3.  

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permitem dispensar tal recurso de projeção cônica/central aprendido na Academia e,

com isso, promove uma harmonia espacial apenas com certa simplicidade de traços,

tons e borrões, que me levam a procurar um ponto de fuga no centro do quadro.

Apenas com esta breve descrição, já posso notar características marcantes

de algumas propostas modernistas do início do século XX, que intentaram romper

com os padrões estéticos e plásticos de uma tradição secular de beleza. Será que a

tela acima não poderia tratar-se de uma obra moderna? Posso seguir com a análise

de suas qualidades sensíveis, insistindo na observação das pinceladas, pois são

carregadas de tinta, numa profusão de tons. Não vejo cores puras homogêneas.

Apesar da paleta utilizada ser resumida e limitada a cores como os vermelhos, os

laranjas, os amarelos, os ocres e os marrons, existe uma riqueza de tons alcançada

pelo artista. A utilização do branco, a princípio, me traz a ideia de necessidade em

dar maior luminosidade e brilho em algumas áreas da composição. As formas não

são totalmente chapadas (cores puras), são trabalhadas com diversas nuances com

uma resolução plástica desprovida de detalhes. Com um pouco mais de atenção,

além da parte superior da tela, encontram-se suaves pinceladas de verde e azul em

toda a pintura, especialmente no centro, onde o colorido é mais intenso e vibrante.

Vou passar a extrair agora seus aspectos indiciais, sua qualidade de particular, por

ser uma obra singular com características e insinuações próprias.

Aqui fica clara a intencionalidade das cores, sua verossimilhança. Olhando

para a parte superior da tela, as linhas sinuosas serpentinadas sobre as estruturas

trapeziais indiciam os telhados de casarios, que são sugeridos pelos grandes blocos

de trapézios, com pequenos retângulos distorcidos em seu interior, que, por sua vez,

indicam as janelas dessas habitações. A área azul na parte superior da composição

é limitada ao fundo pelas linhas onduladas, esta área parece referendar o

firmamento.

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Pormenor 1 - Detalhe da figura 1 Museu Afro Brasil

Borrões adquiridos por pinceladas simples que levam estruturas

antropomorfas no centro e no espaço inferior da tela indiciam seres humanos.

Dentre estas formas, as cores sugerem que há pessoas negras e brancas, e

também vestimentas diferenciadas, predominando as cores brancas e o vermelho na

indumentária dos moradores. Observa-se também formas variadas de móveis e

tabuleiros de baianas no ar, sem estarem apoiados ao chão, indiciando estarem em

movimento, sendo arremessadas ou até mesmo caindo. A postura dos homens

representados como bombeiros ao lado esquerdo da tela, de braços cruzados e

encostados na parede, parece demonstrar certo descaso com o que estava

ocorrendo (pormenor 1). Não por acaso, a cor da pele, da maioria deles, é branca.

Ou talvez sua inércia represente a dificuldade e a falta de recursos tecnológicos do

corpo de bombeiros para resolver o problema. O título do quadro é Incêndio no Pelourinho, o que depõe como índice de um grande incêndio em um lugar

específico: o Pelourinho. Isso leva o olhar para o centro da tela onde se encontra

uma mancha triangular avermelhada, que remete às chamas do referido incêndio. O

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tema da pintura é o cotidiano, outra característica comum nos primórdios da

modernidade do século XIX, quando a pintura distanciava-se dos palácios e igrejas,

passando a abordar assuntos, considerados vulgares, do dia a dia do povo, em que

pessoas humildes eram retratadas. Com tudo isso que vimos até aqui, já se pode,

sem medo de errar, afirmar que os borrões sugerem casarios, telhados, janelas,

homens, mulheres, cadeiras, mesas, tabuleiros, móveis, carro, bombeiros e, em

bastante evidência, fogo. E as cores denotam a verossimilhança da cena trágica.

São mais que borrões, são índices de um grande desespero, agonia, descaso e

aflição. São o objeto dinâmico da obra, ou seja, aquilo a que a pintura se reporta – o

incêndio.

O quadro, praticamente, pede socorro, pede ajuda, mas, ao mesmo tempo,

não demonstra esperar, é dinâmico, é impaciente, é desesperador. A cor da fumaça

também é laranja, mas dessa vez corta o azul do céu, criando um efeito comum às

cores complementares. A fumaça avança sobre um casario ao fundo, encobrindo-o e

dando à pintura a sensação de que há diferentes planos, ao mesmo tempo que

parece abraçar os telhados das habitações. A pintura não tem os “truques”

acadêmicos de claro e escuro, luz e sombra, mas apresenta propostas e soluções

interessantes de volumetria e perspectiva singulares, à maneira do artista, em sua

composição.

As cores vivas e o céu pintado de azul-claro remetem ao turno diurno o

acontecimento trágico. Podemos notar, portanto, que o incêndio aconteceu durante

o dia.

As pinceladas não têm a mínima intenção em detalhar os semblantes, as

feições, mas é exatamente por isso que a tela torna-se cada vez mais dramática

(pormenor 2). Pelas dimensões do quadro, não foi possível pintar a expressão facial

nas pessoas, mas há expressão gestual das pinceladas, do tratamento plástico da

tela, da dramaticidade formal. Bem ao modo expressivo de composição.

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Pormenor 2 - Detalhe da figura 1 Museu Afro Brasil

A sugestão formal nos faz identificar elementos físicos e materiais, como

homens brancos e negros, mulheres brancas e negras, homens do corpo de

bombeiros, escadas, móveis e um grande casario do Pelourinho no centro pegando

fogo. A tela faz referência também a elementos abstratos como dor, indiferença,

descaso, sofrimento, desespero, solidariedade, lamento e terror; e até mesmo a

questões sociais, quando sugere que a população desesperada com a tragédia é

negra, ao passo que, as pessoas espectadoras, até mesmo aquelas que deviam

fazer alguma coisa para conter o fogo, são, em sua maioria, brancas. A proporção

do carro de bombeiros, menor em relação aos corpos de mesmo plano, chama a

atenção para o reduzido grau de importância conferido ao veículo que, estático, não

mostrava para que veio. Estes são grandes exemplos de poder de referencialidade

expressos nesta tela.

Se, de fato, tivéssemos a obrigação de enquadrar a pintura analisada em

algum movimento, legitimado pela historiografia da Arte, em qual se adequaria?

Será uma obra moderna por trazer o novo, aquilo que causa certa estranheza e

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desconforto, a princípio, pela falta de costume e assimilação do que se está

propondo? Também, o despojamento da composição, as pinceladas curtas e

sintéticas, a inobservância da perspectiva cônica/central e a temática de forte cunho

social não podem estar indicando um modernismo nacionalista? Mas será mesmo

necessário classificá-la? Enfim, sem a pretensão de rotular a referida pintura, e sem

a intenção de enquadrá-la em qualquer movimento, darei seguimento à análise,

partindo para os dados singulares e únicos da obra para, desta vez, contextualizá-la

e aprofundar melhor seu aspecto simbólico.

O pintor chama-se João Alves Oliveira da Silva (1906-1970), conhecido como

primitivo pelos estudiosos da arte de sua época. Seu ateliê: as ruas do Centro

Histórico do Salvador, o Pelourinho, na Bahia; e a tela é dos anos 1950, apogeu do

Modernismo baiano no estado, o que parece esclarecer, a princípio, a afinidade

pictórica com o movimento moderno em Salvador. Essa tela encontra-se em

exposição nas paredes do Museu Afro Brasil, no Ibirapuera, em São Paulo.

A pintura é a óleo, e dentro desta categoria tem o tratamento pessoal do

artista, que era desprovido monetariamente e dependente de auxílios financeiros de

alguns poucos incentivadores de sua arte. A tinta utilizada não era apropriada à

pintura de cavalete; o pintor usava esmalte sintético (tinta industrial usada para

pintar portas e madeiras), no início da carreira artística, ou, na maioria das vezes,

fabricava sua própria tinta. O artista iniciou sua carreira de pintor utilizando

querosene como solvente, além do chassi de pinho – fatores relevantes que não

garantiam uma boa durabilidade ao material. Suas dimensões são 63 x 48,2cm,

portanto, de formato retangular horizontal.

A curadoria do Museu Afro Brasil, representada pelo artista plástico Emanoel

Araújo, suspeita que a tela em estudo foi produzida na década de 1950. Essa

década foi marcada na história da arte baiana, já mencionada acima, como a época

de grande efervescência dos movimentos modernistas em Salvador. Havia uma

disposição artística de romper com a arte tradicional, acadêmica, que insistia em

continuar seguindo, em pleno século XX, os moldes da Missão Artística Francesa

implantados no Brasil, em 1816, enquanto toda a Europa já se distanciava com as

inúmeras vanguardas artísticas do início do século XX. Aqui na Bahia, as propostas

chegaram como uma tempestade de novidades visuais, gerando um turbilhão de

resistência no final da década de 1940 (SCALDAFERRI, 1998). Somente na década

seguinte, o Modernismo firmou-se na capital baiana com certo prestígio. As

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propostas, exclusivamente plásticas, modernistas eram muitas e variadas, e

rejeitavam os já citados moldes acadêmicos como: 1) a verossimilhança e riquezas

de detalhes próximos do “real” mimético e retiniano, combatidas com cores

arbitrárias, a pincelada forte, sintética e expressiva que afirmavam a pintura como

pintura; 2) a perspectiva cônica/central linear e seu sistema de pontos de fuga foram

refutados com o seu abandono parcial e/ou total propondo novo ordenamento

composicional; 3) os temas históricos e mitológicos foram superados pela a busca

por temas do cotidiano e de teor social; e 4) a composição estrutural de leis

renascentistas do equilíbrio formal, com treinamento exaustivo de cópias de modelos

clássicos eram geralmente encontradas nas pinturas de João Alves, inclusive na que

estamos analisando. Não me arvoraria dizer, com isso, que a obra estudada faz

parte desse movimento, mas adianto que existem relações dialógicas evidentes, as

quais aprofundarei no próximo capítulo.

Além disso, um aspecto também relevante é compreender que o artista não

era acadêmico, era um autodidata, nunca frequentou qualquer escola de arte,

tampouco tinha as preocupações de rompimento modernistas, aliás ele não tinha

com o que romper, já que nunca esteve imerso na Academia. João Alves era

rotulado pelos críticos de arte daquela época como primitivo2 ou primitivista e até

primitivo moderno. O que a princípio posso adiantar, resumidamente, é que, aqui na

Bahia, o quadro em análise representa uma categoria conhecida, consensualmente,

no universo artístico da época, como pintura primitiva.

O trabalho é “figurativo realista”, e contém elementos de referencialidade

comuns ao seu convívio urbano do século XX, no Pelourinho. Sua pintura chama

atenção para si mesma como pintura, para aquilo que faz dela uma pintura.

Outro fator a ser destacado é a utilização, em sua plasticidade, de elementos

que remetem ao Candomblé, religião professada pelo artista. João Alves era de

Xangô, e as cores de seu Santo são o branco e o vermelho. Apesar da tela levar o

princípio da verossimilhança, e por isso não ser a mais apropriada para esse

                                                                                                               2  A expressão será grafada em itálico e será discutida no capítulo posterior, mas, para esclarecimento conceitual prévio do termo empregado na primeira metade do século XX, segue uma feliz explicação de Carlos Cavalcanti citada na dissertação de Patrícia Miranda D’Ávila, em 2009, na USP, sob o titulo Primitivo, naïf, ingênuo: um estudo da recepção e notas para uma interpretação da pintura de Heitor dos Prazeres, que reflete o pensamento da época: “A espontaneidade lírica e a ausência de intelectualismo das artes das crianças e dos autodidatas passaram a interessar não somente os artistas, como também aos estudiosos dos problemas da criação artística. Os pintores populares ou autodidatas, assim como os artistas negros, desconhecidos e negligenciados durante muito tempo pelos preconceitos acadêmicos, tiveram nos princípios deste século súbita valorização.”.(p. 36).  

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exemplo, pode-se identificar a presença destas cores em muitas outras obras do

artista. Aqui, as cores avermelhadas remetem ao fogo e à explosão, mas,

indiretamente, posso associá-las em uma análise pessoal, com as cores específicas

de Xangô, o Orixá do fogo e do trovão (pormenor 3).

Pormenor 3 - Detalhe da figura 1 Museu Afro Brasil

A tela enquadra-se nas pinturas urbanas, indica um espaço geográfico

específico, os casarios coloniais do Pelourinho, seu povo humilde e, no caso em

particular do incêndio, sua solidariedade e aflição compartilhada por todos os

envolvidos em contraste com a apatia dos espectadores. Desastres desse gênero

não eram raros, no início do século, naquele lugar, uma vez que seus grandes

casarios estavam em visível decadência. Daí a abertura da polêmica sobre a

reforma e “revitalização” do Centro Histórico de Salvador, desde meados do século

XX, e que até hoje é pauta de discussão nos centros acadêmicos e políticos do

estado e do país.

O professor Milton Santos destaca os recorrente incêndios naquela região,

abordando a baixa renda dos proprietários, quando o valor dos aluguéis era muito

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baixo, comparado com o de localidades privilegiadas como a rua Chile, por exemplo.

Com isso, o Centro Histórico da cidade do Salvador, abandonado à sorte e sem

incentivos para preservação, tinha moradores que não dispunham de recursos

financeiros e adequados para fazer qualquer forma de recuperação e reforma,

melhoramentos estruturais e simples reparações. Esses cortiços ficavam a mercê do

tempo e do descaso político:

Não é por outra razão que esse bairro conhece o maior número de incêndios em toda a cidade. Dos 854 incêndios registrados em Salvador entre 1943 e 1952, mais da metade, isto é, 453, deu-se nos bairros centrais da Sé e da Conceição da Praia, onde se acrescentam a presença de casas velhas e uma atividade comercial intensa. No distrito do Passo, que é completamente deteriorado, mas quase completamente residencial, o número dos incêndios subiu a 28 nestes dez últimos anos. Entretanto, os distritos da Conceição da Praia e da Sé tinham, em 1950, mais ou menos 25% do total das casas, isto é, 2.479 sobre um total de 94.020. (SANTOS, 2008, p. 169)

De fato, durante a maior parte do século XX, o Pelourinho permaneceu

abandonado pelas políticas públicas, comportando unidades habitacionais que se

adensavam cada vez mais. Ao final da década de 1980, segundo Azevedo (1994,

p.131), uma vista aérea do Pelourinho lembrava uma “cidade bombardeada.

Empilhada em ruínas e mofo, convivendo com ratos e baratas, uma população

preservava, como podia, o espaço que ocupava”. Outra realista descrição dessa

degradação foi a que Milton Santos fez em sua tese O centro da cidade do Salvador,

defendida em 1958 e publicada no ano seguinte, onde o professor comenta sobre os

casarões e solares abandonados pelas famílias ricas e que, na época, passou a ser

habitado pela população pobre e marginalizada da cidade.

Casas que outrora abrigavam apenas uma família, com seus escravos ou domésticos, sofreram um processo de subdivisão cada vez mais avançado; salas e quartos demasiadamente pequenos, verdadeiras células, estão separados por paredes de madeira. Nesses cubículos não há luz, nem ar e inexiste higiene. A vida nesses cortiços é um verdadeiro inferno e as diversas famílias que ocupam um mesmo andar se vêem obrigadas a servirem-se de um único banheiro e de uma só latrina. Escadas estragadas, soalhos furados, paredes sujas, tetos com goteiras formam um quadro comum a toda essa zona de degradação. (SANTOS, 2008, p. 171)

Mas a “revitalização” foi cruel para com os antigos moradores do lugar, na

década de 1990, centenas de famílias foram obrigadas a desocupar os casarões do

Maciel e nunca mais voltaram. "O Pelourinho se transformou em um cenário (...) um

teatro onde se representa Salvador para turistas" (AZEVEDO, 1994, p.131).

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O descaso e indiferença das autoridades já estavam presentes nesta tela de

João Alves. Ela denunciava, propositalmente ou não, aquilo que era de mais natural

em seu espaço urbano: a desigualdade social latente ao seu redor. Aquele episódio

fazia parte do cotidiano do artista. Mas quem foi este artista? Quem foi esse morador

do Centro da cidade do Salvador? E o que retratou muitas vezes e de muitas

maneiras através de sua pintura?

A apresentação da plasticidade, da composição pictórica e da análise de uma

das telas de João Alves, logo no começo do texto, foi intencionalmente disposta para

apreciarmos a obra antes mesmo de conhecermos o artista. Agora que

contemplamos uma curta parte do gigantesco trabalho de uma arte de grandes

qualidades plásticas e artísticas, com significados fortes e relações expressivas com

as artes plásticas da Bahia, vale então, aprofundarmos um pouco mais sobre a vida

e obra deste homem artista que esteve presente intensamente no cenário moderno

da Bahia.

Veremos, a seguir, um conciso histórico da caminhada de João Alves, onde

as questões étnicas e socioculturais ocupam lugar decisivo na abordagem.

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Figura 2 – João Alves – década de 1960

2.2 BREVE RELATO BIOGRÁFICO: DE IPIRÁ AO PELOURINHO

João Alves é o pintor da cidade, de suas casas, de suas ruas, de sua gente miúda, da festa do Bonfim, e da eterna mulher-dama do Pelourinho, das noites de São João, do mágico carnaval dos afoxés.

Jorge Amado

João Alves Oliveira da Silva ainda não era capaz de viver de arte, embora

suas telas fossem bem aceitas, sobretudo pelos turistas, assim, sua renda principal

continuava sendo a de seu ofício de engraxate. Isso mesmo, o artista em questão foi

um engraxate. Só mais tarde, depois da fama, conseguiu manter-se com a pintura.

Afro-brasileiro, nascido em Ipirá - Bahia, em 1906, logo cedo, ainda criança, veio

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morar em Salvador. Segundo Ceres Coelho (1973), ao completar 19 anos, passou a

exercer várias profissões, como qualquer batalhador de baixa renda vindo do interior

para a capital do Estado. João Alves foi empregado doméstico, auxiliar de torneiro,

carregador de caminhão, estivador, carroceiro e, por fim, engraxate, além de

desenhista nas horas vagas, quando, com lápis de cor, rabiscava caixas de papelão.

Adquiriu uma cadeira de engraxate num bazar de antiguidade, segundo Syvia

Athayde3. Para Milton Santos (2008), entre os moradores do Centro de Salvador,

60% eram de imigrantes rurais. Esse contingente de famílias vindas do interior do

Estado pelo êxodo não dispunha de trabalho permanente, na maior parte dos casos

uma forma de “subemprego” com salários quase miseráveis.

Entre os ofícios mais freqüentes, encontramos sobretudo os seguintes: bicheiro, encanador, lavadeira, cozinheiro, bombeiro, pequeno funcionário, porteiro, engraxate, encerador, viajante comercial, tipógrafo, empregado doméstico, vendedor ambulante, chofer, condutor de ônibus, camelô etc. Em suma, são pequenos empregados ou pessoas sem uma ocupação permanente ou bem definida. Seu local de trabalho era, de preferência, no centro da cidade. (SANTOS, 2008, p. 172)

João Alves foi mais um naquele contingente rural que tenta a sorte na capital

do estado. “Sem lenço e sem documento”, pode-se dizer, o que justifica a dificuldade

e o insucesso na busca de registros documentais sobre sua existência. Nem mesmo

no Arquivo Público do Estado da Bahia foi encontrada alguma nota de seu

nascimento, nem de sua morte. Família não foi encontrada, sequer alguém com

certo grau de parentesco. Por essa razão, na atual dissertação, considero as

pesquisas oral e bibliográfica como fundamentais para a estrutura metodológica do

trabalho. É de real valor citar que a revitalização do Pelourinho, abordada acima,

que retirou dezenas de famílias, dificultou a localização de antigos moradores,

prováveis contemporâneos e vizinhos de João Alves. Muitos já devem ter falecido e

outros, não há informações para onde foram deslocados.

Seguindo com o que pude encontrar, é certo, através de depoimentos e

registros de exposição, que João Alves Oliveira da Silva nasceu no município de

Ipirá, na Bahia. A cidade de onde vem o engraxate e artista modernista João Alves é

um município a 209 km de Salvador, sertão baiano, com área de 3.049 km2, que

hoje4 tem uma população de aproximados 57.640 habitantes. Ipirá localiza-se na

Microrregião Homogênea e Administrativa de Feira de Santana e, do ponto de vista                                                                                                                3  Diálogo informal com Athayde, diretora do Museu de Artes da Bahia, em agosto de 2010.  4  Fonte: IBGE. Dados do Censo 2010 publicados no Diário Oficial da União do dia 04/11/2010.  

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econômico, na Região do Paraguaçu. Segundo o sítio eletrônico

ipiranegocios.com.br, na pecuária destacam-se os rebanhos de bovinos, suínos,

equinos, asininos, caprinos e ovinos. No setor de bens minerais, é produtor de

pedra. Seu parque hoteleiro registra 62 leitos. No ano de 2001, o município registrou

9173 consumidores de energia elétrica com um consumo de 13.893MWH. Segundo

dados da SEI/IBGE, o PIB do município para 2003 foi de R$122,88 milhões, sendo

28,98% para agropecuária, 17,39% para indústria e 53,63% para serviços. A

Indústria de couro é uma atividade secular, que tem importância fundamental na

economia local, através da geração de emprego e renda. A feira livre da cidade é

considerada a segunda maior do Nordeste.

Ipirá situa-se com altitude em torno de 330 m. Mas desmembrou-se de Feira

de Santana em 20 de abril de 1855, quando foi automaticamente emancipada pela

resolução provincial de número 520. A partir do decreto 7.521 de 20 de julho de

1931, passa a se chamar Ipirá, palavra de origem Tupi que significa "Rio de peixe",

fazendo relação com o rio que banha parte das terras locais, de mesmo nome.

Santana do Camisão, assim que era chamada no passado, mais conhecida

como "Camisão", segundo o senso, ainda hoje, divaga no terreno das especulações

a origem do nome da cidade. Várias são as hipóteses que explicam a origem do

nome Camisão e, dentre elas, segundo o IBGE, por apresentarem resquícios de

logicidade, destacam-se as duas histórias abaixo: Conta-se que teria um velho desterrado português que era proprietário de um rancho e que por sua hospitalidade para com os que ali passavam e por vestir longas camisolas de algodão, ficou conhecido por todos como o Homem do Camisão, assim originando-se o nome.[...] Outra hipótese é de que o nome Camisão originou-se do Coronel Manoel Maria Camisão, entradista português homenageado pelo Governador Geral do Brasil ao dar seu nome ao aglomerado de ranchos existentes na região. O mesmo é descendente do herói da retirada de Laguna durante a Guerra do Paraguai, tenente Coronel Carlos de Moraes Camisão.5

É importante destacar que a própria fonte, o IBGE, declara que não há provas

documentais tanto para a primeira como para a segunda hipótese. É bem provável,

então, que João tivesse saído de lá quando a cidade ainda era conhecida por esse

curioso nome, Santana do Camisão. Mesmo deixando sua terra natal ainda muito

novo, é perceptível, em alguns quadros do artista, a memória de sua infância na

referencialidade do sertão, da festa de São João, nos trens que circulavam os

                                                                                                               5  Fonte: IBGE. Dados do Censo 2010 publicados no Diário Oficial da União do dia 04/11/2010.

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interiores do estado etc. Neste estágio, a pesquisa não conseguiu dados

documentais, registros comprobatórios do nascimento de João, assim como sua

família.

Como já vimos, o professor Milton Santos considera o crescimento

demográfico da cidade do Salvador à vinda de uma população de origem rural e

que, “atraídos pela miragem da grande cidade tentacular, vieram morar nos velhos

casarões da Sé e do Passo, bem como nos da Cidade Baixa” (SANTOS, 2008, p.

174). Foram atraídos por outras pessoas naturais de suas regiões que já tinham

chegado na capital primeiro, “chamados por uma espécie de simpatia, característica

aliás da distribuição espacial dos habitantes nos centros metropolitanos” (SANTOS,

2008, p. 174).

Na capital do estado, João chega a morar nos bairros de Cosme de Farias,

Nazaré e Pelourinho, mais precisamente, na esquina da Rua das Laranjeiras com a

igreja de São Domingos, onde, no final desta rua, existia uma “casinha, como um

subterrâneo” com escadaria, ali ele residia segundo relato de Sante Scaldaferri

(2010)6. Sua cadeira de engraxate ficava instalada na Praça da Sé, ao lado do

Palácio do Arcebispado e próximo ao Cinema Excelsior, onde existia uma oficina de

um judeu ourives. Ali ele pintava.

É importante reforçar a informação de que não há qualquer texto com

aprofundamento, substancialmente, biográfico sobre João Alves Oliveira da Silva.

Sua família é desconhecida, assim como parte de sua história. Quase uma lenda do

Pelourinho, o engraxate-pintor ficou conhecido pelo seu prestígio com os intelectuais

de sua época. Sua obra foi dispersa por todo o mundo. Turistas domésticos e

fluviais7, colecionadores e amigos, todos eram clientes do homem simples, afro-

brasileiro, pobre e trabalhador, que reinventava o que via, muitas vezes em cunho

social, a partir de sua pintura.

Tive dificuldade, confesso, em encontrar alguém que tivesse conhecido “Seu

João”, muitos de seus contemporâneos já não estão mais entre nós. Muito menos,

alguém que reivindicasse qualquer tipo de parentesco com o artista. João Alves

morreu em 28 de junho de 1970, na cidade do Salvador-Bahia, e parece que ele não

deixou herdeiro. Sim, herdeiro porque, apesar de pobre, ele deixou um tesouro

                                                                                                               6  Entrevista realizada especialmente para esta pesquisa em abril de 2010 7   Termos utilizados atualmente pelos artistas do Pelourinho para identificar clientes locais – domésticos; e compradores estrangeiros europeus – fluviais.  

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incalculável para a cultura baiana, representativo de um período áureo das artes

plásticas na Bahia, do século XX. Período este, que carece de um aprofundamento

histórico e teórico, que traga questões e reflexões sobre a arte popular para os dias

de hoje. Tempo de efervescência cultural jamais presenciado no Estado e que, hoje,

nos perguntamos quando ocorrerá algo parecido novamente, ou, pelo menos, que

movimente o circuito das artes plásticas na Bahia, com a valorização de seus

artistas e obras, com o respeito e o reconhecimento que lhes é devido. Atualmente, o cenário parece estar estagnado artisticamente, decorrente da

falta de investimentos públicos na cultura, fomento e incentivos de projetos

artísticos, resultando na pouca produção cultural em artes plásticas na Bahia. Isto

nos faz olhar saudosos para dias de destaque e respeito na esfera intelectual da

sociedade, quando o cuidado e a atenção para esse ramo da cultura baiana era

valorado com dignidade e considerável apoio. Dias em que, na Bahia, foram

sediadas duas Bienais Nacionais de Artes Plásticas, as quais serviram como

afirmação do panorama artístico local em resposta à produção nacional, ou seja,

uma espécie de descentralização do Sudeste brasileiro, que ditava e concentrava a

produção plástica do país. Mas, por razões, supostamente, mesquinhas e

questionáveis deixaram de existir a partir do fechamento truculento da II Bienal, em

1968 pelas forças militares.

Falar sobre João Alves é reviver esse momento, e ao mesmo tempo, é

reclamar uma prestação de contas, uma liquidação de uma pequena parte do débito

que a História da Arte tem com aqueles, subestimadamente, conhecidos por

primitivos modernos, que foram decisivos, desde a influência à construção da arte

que hoje chamamos de contemporânea.

Portanto, devo começar a abordagem destacando o valor desse gênero da

arte e, com um olhar centrado naquilo que mais discursa sobre o artista – sua obra,

farei uma análise de sua condição socioeconômica e cultural, questões étnicas que

podem ter interferido diretamente em sua maneira de representar e ressignificar o

que via a partir de sua pintura.

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Figura 3 – João Alves. Foto de Pierre Verger

 2.3 A COR DE JOÃO ALVES

Os negros apresentam suas armas As costas marcadas, as mãos calejadas E a esperteza que só tem quem tá Cansado de apanhar

Herbert Vianna

A questão étnica é sempre um fator relevante quando se trata das condições

socioeconômicas de qualquer artista. João Alves era negro e viveu a dura realidade

da escassez de oportunidades, da dificuldade de encontrar emprego, da falta de

perspectiva de ascensão financeira, da luta pela sobrevivência. Problemas comuns a

todo homem pobre de sua época, e principalmente, ao se considerar a sua cor.

Historicamente, com a abolição, impõe-se a transformação do escravo em

trabalhador livre, daquele que é meio de produção8 em assalariado. Em outras

                                                                                                               8  Para entender o escravo como meio de produção, o sociólogo Octavio Ianni (1987) afirma que no regime escravocrata, nos termos em que ele se organizou no Brasil, o escravo aparece na condição de meio de

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palavras, a mão de obra, simplesmente, transforma-se em força de trabalho, fator

adequado à produção de lucro.

Era importante o trabalhador ser livre para que sua força de trabalho virasse

mercadoria. Mas esta nova condição do homem negro o levou a uma acirrada

disputa por um lugar no recém-formado mercado de trabalho assalariado, tendo

como concorrentes diretos, imigrantes europeus que acharam acolhimento em solos

brasileiros em finais do século XIX e início do XX. Os trabalhos tidos por braçais ou

pesados, aqueles evitados pela maioria branca, passaram a ser a opção dos afro-

brasileiros para sobrevivência. Como João Alves nasceu no início do século

passado, ele viveu essa condição social, e na década de 1930, já em Salvador,

optou pelos trabalhos informais como citados inicialmente neste texto: empregado

doméstico, auxiliar de torneiro, carregador de caminhão, estivador, carroceiro e, por

fim, engraxate. A partir do recenseamento de 1950, o sociólogo Octavio Ianni

destaca a desigualdade social no Brasil, onde o negro e o mulato ocupam posição

de trabalhadores informais e empregados: Em 1950 havia 1.214.184 estrangeiros no Brasil, para um total populacional de 51. 944.397. O maior contingente era italiano; em seguida vinham os espanhóis , japoneses e alemães. O Estado de São Paulo é o que reúne maior porcentagem de estrangeiros.[...] Esses dados começam a ganhar alguma vida quando os relacionamos com as condições sócio-econômicas, políticas e culturais nas quais as pessoas vivem. Continuando a aproveitar o recenseamento de 1950, vejamos como se distribuem as pessoas economicamente ativas. Dentre os brancos, 5,1% encontravam-se na condição de empregadores, ao passo que 28,3% trabalhavam por conta própria e os restantes eram empregados. Os negros, por seu lado, eram principalmente empregados (60,9%) e por conta própria (24,5%), sendo que menos de 1% eram empregadores. (IANNI, 1987, p.119 - 120)

Em pesquisa sobre o desemprego no final do século XX, mais precisamente

em 1998, encontramos dados do DIEESE/SEADE e entidades regionais. Na

Pesquisa de Emprego e Desemprego (PED)9, sobre estimativa do total de

                                                                                                               produção. A maneira pela qual ele é incorporado na estrutura do empreendimento, ao lado da terra, da tecnologia, da matéria-prima, dá-lhe o caráter de um entre outros meios de produção. O escravo é comprado, alugado, emprestado, dado de presente ou vendido, como coisa. “O escravo subordinado ao poder do senhor, e, além disto, equiparado às cousas por uma ficção da lei enquanto sujeito ao domínio de outrem, constituído assim objeto de propriedade, não tem personalidade, estado. É pois privado de toda capacidade civil. Entretanto, enquanto capital aplicado, a sua vida produtiva está sujeita à fuga, à doença, à incapacidade temporária ou permanente, à morte. Isso significa que, enquanto meio de produção, o valor do escravo é suscetível de flutuações bruscas, inclusive reduzindo-se a zero. Em outros termos, num momento o escravo representa a aplicação de uma soma relativamente elevada de capital, tendo-se em vista que corresponde a uma inversão para vários anos. Ao passo que no instante seguinte pode corresponder a uma perda total. (IANNI, 1987, p.46)  9  Cf. Seminário relações raciais e desigualdades econômicas, realizado em 7 de outubro de 1999, pela Comissão de Economia, Indústria e Comércio e Comissão de Direitos Humanos. – Brasília : Câmara dos Deputados, Coordenação de Publicações, publicado em 2000.

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desempregados negros no Brasil em regiões metropolitanas, Salvador aparece com

uma população de 81% de negros, e a taxa de desemprego indicava 25% entre os

negros e 17% entre os brancos.

O cenário social na época de João era este: 24,5% dos negros trabalhavam

por conta própria, em serviços informais, os chamados “bicos” ou “biscate”, onde o

artista estudado fazia parte desse contingente.

Para António Celestino, autor do livro Gente da Terra, de 1972, João Alves

teve uma vida muito dura e sofrida de trabalho braçal, quando substituiu esse labor

para engraxar sapatos no Pelourinho:

Antigo carregador das docas, o esfôrço dispendido nêsse desumano e selvagem mister de ganhar o pão de cada dia, arrazou-lhe o coração. Arranjou então uma banca de engraxate, trabalho mais mole, e na porta do Palácio Arquiepiscopal da Praça da Sé ia lustrando os sapatos e as botinas numa freguesia que muitas vêzes ficava alarmada com sua cara braba de poucos amigos, seu grosso vozeirão e seus modos soltos de homem do povo. (CELESTINO, 1972, p.103)

Ainda como engraxate, João passou a pintar, não se tem registro de quando

exatamente, mas as telas mais antigas indicam que, provavelmente, tenha iniciado a

pintar no final dos anos 1940. Em relação à escrita, segundo conversa informal com

a diretora da Fundação Casa de Jorge Amado, Myriam Fraga, João Alves escrevia o

necessário, a mesma disse: “João Alves escreveu um texto, manuscrito, sobre o Rio

Vermelho, e Jorge Amado insistiu em publicá-lo em um livro de homenagem ao

bairro de Salvador10, foi financiado pela Fundação Cultural do Estado da Bahia”.

Infelizmente, a citada publicação não foi encontrada.

Por causa de sua condição financeira, que não era das melhores, João

começou fabricando suas próprias telas com madeira de pouca qualidade e tecido

pobre – algodãozinho – e fabricava sua própria tinta. O artista engraxava os sapatos

de fregueses, expunha suas pequenas telas, fruto de seu esforço para expressar

seu olhar, no universo visual das artes plásticas. Aos poucos, foi sendo reconhecido,

sobretudo, por nomes de destaque no cenário cultural baiano, como Pierre Verger,

Jorge Amado e Odorico Tavares.

                                                                                                                 10  Conversa informal no dia 17 de agosto de 2010, na Fundação Casa de Jorge Amado. O livro que se refere foi publicado pela Fundação Cultural do Estado da Bahia, mas não foi encontrado.  

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Para o professor da UFBA e restaurador José Dirson Argolo11, nos anos 1940

e 1950, é provável que não existisse ainda casas comerciais que vendessem telas

prontas, “e se existiam eram poucas e caras”. Com isso, os artistas fabricavam suas

telas comprando os tecidos nas lojas, geralmente “algodão, algodão grosso,

algodãozinho, lona de saveiro e esticavam num chassi de madeira, geralmente de

pinho”. Eram armações sem chanfro, “eles não chanfravam”, “não era um chassi

bem elaborado”, as telas eram esticadas e presas com tachas de ferro, e “como

Salvador é uma cidade com alto índice de salinidade, então as tachas iam

enferrujando e o tecido ia folgando naquele engradado de madeira que é o chassi”,

isto favorecia ao que conhecemos por craquelamento. E continua: “O craquelamento

geralmente ocorre, primeiramente, porque o tecido, como também a madeira,

absorvem a água e a umidade do ar, então eles sofrem o problema de dilatação e de

retração”. Isso pode ser constatado a partir dos relatórios (ver ANEXO B) de

conservação e restauração de telas de João Alves pertencentes aos museus Afro

Brasil e Arte Moderna (MAM-BA), onde alguns detectam e apontam para esse

processo de craquelamento. Ainda segundo o Professor Argolo: Nesse expandir e encolher, geralmente as tintas, sobretudo, a óleo, que ele usava, tinta a óleo comercial que não tinha o óleo de linhaça na sua composição, e também, pelo fato do uso do querosene ou da gasolina como diluente da tinta favorecia o ressecamento da camada pictórica, qualquer movimento do tecido então a pintura craquelava. As telas dele que restaurei até hoje, uma média já de umas 20 a 30 não me lembro exatamente, os maiores problemas eram: ou que o cupim havia dado no chassi e havia corroído também o tecido ou descolamento e craquelamento da camada pictórica. (ARGOLO, 2011)

O professor Argolo também alimentava a suspeita de que João Alves,

possivelmente, fabricava sua tinta e utilizava pó xadrez na mistura: “Eu já vi obra

dele fabricada com pigmento xadrez e provavelmente óleo de linhaça, quer dizer,

era uma tinta artesanal que ele fazia e não a tinta industrial” (ARGOLO, 2011).

Essa suspeita do professor foi confirmada através de depoimento do

ambientalista Celso Luiz de Barros Guedes, em entrevista12 cedida especialmente a

esta pesquisa, ao afirmar que, quando conhecera João, em 1966, o artista fabricava

sua própria tinta e não usava mais querosene como solvente, tampouco esmalte

sintético, como sabemos sobre o início de sua carreira como pintor. O mesmo Celso

Guedes declarou ter aprendido e ajudado João Alves a fazê-la. Com mais

                                                                                                               11  Entrevista cedida exclusivamente por José Dirson, no dia 23 de agosto de 2011, em seu ateliê.

12  Entrevista realizada no dia 06 de outubro de 2012.  

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maturidade, o pintor misturava pó xadrez13 com óleo de linhaça e fazia sua paleta de

cores. Como a opção de cores dos pigmentos xadrez é resumida (verde, amarelo,

vermelho, marrom, laranja terra e preto), a escala cromática de João era limitada. O

artista, segundo Celso Guedes, utilizava alvaiade14 para clarear os tons. E por essas

características, de mistura artesanal de materiais baratos, João Alves foi também

rotulado de “primitivo sujo” - com um adjetivo tão questionável quanto o termo.

Acerca do suporte, na época em que Celso Guedes conheceu João, ele

utilizava chassi pronto, comprado em lojas especializadas, de baixo valor. Ele

utilizava óleo direto na tela, sem base no tecido algodãozinho, o chassi era de pinho,

e mantinha sem moldura. Ele dizia: “o povo não vai ver a moldura” (GUEDES, 2012).

Celso Guedes também contou que, conheceu João Alves quando este

morava na casa de Sr. Carlos, na segunda metade da década de 1960. O Sr. Carlos

trabalhava com Renot, dono da Galeria Querino, que tinha grande interesse

mercadológico na arte de João Alves. Para Celso Guedes, o pintor foi morar com Sr.

Carlos exclusivamente para produzir para o mecenas que negociava suas obras

com compradores ricos. Na ocasião, Guedes lembrou a sensibilidade social de João

Alves e afirmou que o artista pintava, de fato, o que via: desigualdade, sofrimento,

trabalho, solidariedade entre os iguais, tendo sempre como fundo a paisagem do

Pelourinho, seus casarios, suas igrejas e a cidade do Salvador. O ambientalista

conta que, certa vez, João Alves pintara uma criança subnutrida às portas de uma

igreja do Centro Histórico, com o título: O menino do amanhã. A compradora da tela

sequer atentou para o título do trabalho e para a criança pintada. Ela se encantou

com os portais da igreja, “quem comprou, comprou por causa da porta que chamava

a atenção, pela beleza, mas nem notou o menino raquítico da pintura, que era o

objetivo do pintor” (GUEDES, 2012).

Este depoimento me fez suspeitar que o artista João Alves, mesmo sem

instrução ou educação oficial, aprendeu a olhar o mundo que o cercava sob um

prisma peculiar de quem conhece os problemas sociais de sua comunidade. Sua

obra está longe de ser descontextualizada histórica e socialmente. Está longe de ser

uma obra encomendada e ditada pelo gosto de um público consumidor, apesar

dessa prática ser recorrente na época, como Clarival Valladares disse:

                                                                                                               13  Como se sabe, o pó Xadrez é um pigmento inorgânico, atóxico, à base de óxido de ferro e de baixo preço, é bastante utilizado para colorir pisos e paredes.  14  Pó branco 100% mineral.  

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Raros são os artistas pretos e mestiços que se afirmam sob critério crítico mais exigente, pois se conformam às regras do jogo sobre sua produção, que deverá ser ao gosto do consumidor. E este último, muitas vezes requer do “primitivo” ser homem de cor, preto, mulato ou índio, procedente da pobreza a fim de que a obra seja autêntica pela origem. Isto não corresponde à generalidade, mas uma das características da elite mandatária, em que os participantes procuram acrescentar, a si mesmos, uma aparência intelectual. (VALLADARES, 1968)

Valladares observava, assim, a condição social como fator determinante para

a aceitação da obra produzida por afrodescendentes, no circuito de arte baiano e

demonstrou seu lamento pelo fato de poucos artistas negros se imporem como

deveriam, pois, como disse, muitos se conformam com o rótulo “primitivo” para ser

considerado artista pela “elite mandatária”. Apesar de João Alves pintar como um

meio de sobrevivência, ele parece não abrir mão de sua visão social, impregnada de

sua experiência vital, ambientadas e compartilhadas no Pelourinho com aqueles de

sua mesma classe social.

Infelizmente, na época de João Alves, a própria sociedade intelectual

categorizava a arte produzida pelo afro-brasileiro ou pelo pobre como “primitiva”. Já

se pode perceber que o termo engendra em si teor de subestimação e poder. Por

que “primitiva”? E mais: “Por que o descendente de negro não participa ativamente

da vida artística brasileira na área de artes plásticas, salvo como primitivo?”. Esta foi

uma indagação muito perspicaz de Aracy Amaral (2010, p.9) em seu texto Um

inventário necessário e algumas indagações: a busca da forma e da expressão na

arte contemporânea, publicado no 2º volume do livro A mão afro-brasileira. A autora

sugere a resposta a seguir, constatando a grande dificuldade enfrentada pelo afro-

brasileiro ainda hoje: Na realidade, a razão fundamental é sempre a marginalização socioeconômica. Ou seja, o homem de origem humilde, com a permanente dificuldade de acesso a uma formação cultural de nível mais ou menos elevado, em país onde o sistema educacional já é, por si só, tão elitista como carente em geral quanto à qualidade. A inexistência de um maior número de artistas plásticos de origem negra é tão real quanto sua ausência nas universidades brasileiras. (AMARAL, 2010, p.9 - 10)

A reduzida presença do negro no circuito das artes plásticas é motivo de

discussão mais aprofundada, pois “...são poucos os artistas negros ou descendentes

de negros no Brasil contemporâneo no meio das artes visuais ditas cultas”

(AMARAL, 2010, p.10). Estes poucos surgem exatamente em “regiões do país onde

há um maior número de negros de classe média: como no Nordeste (na Bahia, em

particular) e em Minas Gerais” (AMARAL, 2010, p.10).

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É na Bahia que se encontra o contingente um pouco mais expressivo de

representantes populares na arte: João Alves e O Louco, na Bahia, Artur Pereira e a família Julião, em Minas Gerais, alguns ceramistas do Vale do Jequitinhonha, Madalena dos Santos Reinbolt, baiana que vive no Rio de Janeiro, são alguns exemplos desses artistas populares negros que obtiveram um merecido reconhecimento. (ARAÚJO, 2010, p.110)

Mas é com otimismo que Emanoel Araújo acredita que um dia a sociedade

terá de reconhecer que “o negro não é só cor; é sobretudo valor – e aí reside a

grande conquista do corpo e da alma do negro: o valor da cor”.   (ARAÚJO, 2010,

p.110)

2.3.1 Religiosidade

Quanto às características físicas, psicológicas e comportamentais, Sante

Scaldaferri (2010) descreve algumas peculiaridades de João Alves ao se lembrar do

pintor com admiração:

Era capoeirista, se vestia de branco, tinha uma corrente de ouro, ele andava sempre de camisa aberta, era muito desconfiado e, como toda pessoa desconfiada, tem rispidez, respondia com uma certa brutalidade, mas não era por maldade não, era inerente ao caráter dele. Era negro e tinha olhos pequenos e apertados. Tinha uma criatividade muito grande, tinha o sentimento, a tendência de ser pintor e extravasava aquilo. (SACALDAFERRI, 2010).

Os depoimentos se repetem, parecem ecoar daqueles que viram e

conviveram parcialmente com o artista, foram poucos que, ainda vivos, puderam

contribuir com esta investigação. Seu Armando (2010), por exemplo, um senhor que,

ainda hoje, pinta no Pelourinho, diz ter conhecido João Alves e, como que ensaiado,

repete traços comuns já apresentados por outros também entrevistados. Ele cita que

o artista era um negro esguio e sólido, de olhos estriados e pequenos. “Alto e muito

desconfiado. Capoeirista, se vestia de branco, tinha um transelim15 de ouro, e

andava sempre de camisa aberta, como bom galanteador que era”. Parece que é

                                                                                                               15  Para Hilton Gouvêa, em texto publicado no Jornal A União, sob título Sua excelência, o ourives, de 13 de dezembro de 2008, transelim, hoje com o nome popularizado de cordão de ouro, era a coqueluche da juventude dos anos 50 e 60. Foi a moda ditada pelos astros do cinema da época, como Elvis Presley, Kim Novack, James Dean e Sophia Loren. Esses, deixavam a juventude morrer de inveja quando, em cena ou nos palcos, exibiam esses penduricalhos em pescoços.  

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consensual, na impressão dos que conheceram João, a percepção de ser o artista

uma pessoa desconfiada. Com certa brutalidade ou brabeza como dizia Jorge

Amado no romance Dona flor e seus dois maridos:

“Vivia num porão ali perto, com seus resmungos, suas mandingas, sua aparente brabeza, suas má-criações, alguns dos netos, e o porão abria sobre um vale plantado de verde, de seu buraco, o negro João Alves comandava as cores e a luz da Bahia”. (AMADO, 2008, p.139)

Talvez essa sua desconfiança e brabeza tenha a ver, como já mencionado na

análise acima da tela Incêndio no Pelourinho, com sua ligação com Xangô, de quem

era filho ou descendente mítico, na tradição do Candomblé. Jorge Amado cita essa

ligação do artista em seu romance: Levantou-se, entregou a cadeira de engraxate ao cuidado dos netos, era um negro esguio e sólido, passado dos cinquenta, a carapinha começando a embranquecer; trazia um colar de orixá ao pescoço, contas vermelhas e brancas de Xangô, e apenas os olhos estriados denotavam a intimidade da cachaça. (AMADO, 2008, p.141)

Segundo o sociólogo Reginaldo Prandi(2002),16 no Candomblé, “os orixás

dividem-se em vários orixás-qualidade”, Xangô, por exemplo, tem várias qualidades

ou avatares que determinam cada ser humano que é considerado seu filho.

Analisando as características do arquétipo de Xangô na qualidade ou avatar Baru17,

posso ver traços que são comuns à personalidade de João Alves. Xangô Baru é

desconfiado, ambicioso, elegante, teimoso, hospitaleiro, galante. E, para Prandi,

somente neste avatar, Xangô surge como rei humilde e solidário com a causa de

seu povo. Como vimos, para Seu Armando, ele era galanteador, tinha fama de

mulherengo, predicado comum do orixá que também é o grande amante e teve

muitas mulheres.

Mas, segundo depoimentos de Sante, Sylvia Athayde e do próprio Jorge

Amado, também no romance supracitado, João tinha um papel social voluntário com

menores carentes. Vivia cercado de crianças negras, mulatas e até loiras que o

tratavam como pai e avô. Eram filhos de meretrizes, prostitutas, mulheres da vida,                                                                                                                16   Fragmento do texto Xangô, Rei de Oió, de autoria de Reginaldo Prandi e Armando Vallado, extraído da Revista eletrônica Xirê. Disponível em: <http://www.revistaxire.com.br/web/?p=1700>. Acesso em: 11 ago 2011.  17  Conta o mito que Xangô recebeu de Oxalá um cavalo branco como presente. Com o passar do tempo, Oxalá voltou ao reino de Xangô Baru, onde foi aprisionado, passando sete anos num calabouço. Calado no seu sofrimento, Oxalá provocou a infertilidade da terra e das mulheres do reino de Baru. Mas Xangô Baru, com a ajuda dos babalaôs, descobriu seu pai Oxalá preso no calabouço de seu palácio. Naquele dia, ele mesmo e seu povo vestiram-se de branco e pediram perdão ao grande orixá da criação, terminando o ato com muita festa e com o retorno de Oxalá a seu reino. (PRANDI, 2002)

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que João cuidava e achava madrinhas para seus filhos-netos, as quais doavam

alimentos e roupas usadas. Praticamente, ele mantinha um projeto não

institucionalizado com veio social, que dava educação, mantimento e vestimentas a

essas crianças. Tal projeto era como tudo o que fazia, à sua maneira, eram as suas

clientes do engraxe de sapatos as mantenedoras desse nobre gesto. Jorge Amado

descreve esse comportamento do artista:

[...] foram encontrar o negro João Alves em sua banca de engraxate, no passeio da Faculdade de Medicina. Estava cercado de crianç as, e tanto o negrinho de carapinha, quanto os diversos mulatos mais escuros ou mais claros, assim como o loiro de cabelos de trigo, todos o tratavam de avô. Eram todos seus netos, aqueles meninos e os demais, soltos no dédalo de ruas entre o Terreiro de Jesus e a Baixa dos Sapateiros. O negro João Alves jamais tivera filhos nem com sua mulher nem com outras, mas arranjava madrinhas para seus netos, comida, roupas velhas e até cartas de abc. (AMADO, 2008, p.139)

Essa é outra característica de Xangô, o rei humilde e solidário com a causa

de seu povo. São dados relevantes para a construção do perfil do artista, uma vez

que a religiosidade parece estar presente na maioria de suas pinturas. Acerca dessa

identificação com a crença que alguns artistas têm e, que são, inevitavelmente,

refletidas em suas obras, Lélia Coelho Frota (2010) cita a pintura de João Alves,

junto com outras tantas, como exemplos de composições de elementos que

remetem o sobrenatural comum às esculturas:

“Na categoria da pintura, embora seja ainda a religiosidade a tônica dominante na obra de [...] João Alves (Bahia, 1909), encontraremos posturas diversas do quadro invariavelmente voltado para o sobrenatural que configura o campo da escultura”. (FROTA, 2010, p. 303)

Em outra passagem do mesmo texto, mais adiante, Frota destaca a presença

de elementos do sobrenatural do panteão afro-brasileiro nas pinturas de João Alves:

Na década de 1950, pesquisa realizada por José Valladares revela em Salvador a pintura ritual do pai de santo Rafael Borges de Oliveira, ao mesmo tempo que a da dona de casa Luiza de Souza Santos, especialista em representações de Oxum, a do oficial barbeiro Olimpyo Costa Lima, pintor de caboclos, e a do então engraxate João Alves Oliveira da Silva (João Alves, já mencionado), que, ao lado da paisagem, retratava também, em suas telas, figuras sobrenaturais do panteão afro-brasileiro. (FROTA, 2010, p. 316)

Depois de vermos aspectos religiosos e sociais importantes do artista, que

apesar de sua condição social desfavorável, de baixa renda, morador de cortiço e

engraxate, desenvolvia um projeto social com os seus iguais, pessoas carentes e

desprovidas de assistência governamental, é por demais necessário destacar agora

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outra questão relevante para o estudo da obra de um artista do povo: a sua

participação e interferência na criação artística moderna na Bahia.

  2.4 PARTICIPAÇÃO E INTERAÇÃO DE JOÃO ALVES NO CIRCUITO DE ARTE

Pois é preciso que se diga, ao fim dessa longa trajetória em busca do lugar e do significado da contribuição do negro nas artes do Brasil, que esse valor é a expressão de um sentimento profundo e a afirmação de um povo, cuja vingança é a obra que está aí para julgamento de todos.

Emanoel Araújo

João Alves foi bastante incentivado por Pierre Verger. Segundo Ceres Coelho

(1973), foi o antropólogo fotógrafo quem “descobriu” João, comprou seu primeiro

quadro e o incentivou a produzir. A partir desse momento, concomitantemente com o

serviço de engraxate, passou a se dedicar mais em pintar telas, deixando mais tarde

o ofício de engraxar. Outro grande estimulador de sua arte foi Jorge Amado, que,

além de dar total apoio a João, o imortalizou como personagem vivo de seu, já

citado, romance Dona Flôr e seus dois maridos (AMADO, 2008). No capítulo em que

Flôr vai visitar a suposta mãe do filho de Vadinho - a meretriz Dionísia de Oxóssi -,

conta com a ajuda do ilustre João Alves que, como personagem do romance,

gozava de boa relação com a rapariga Dió, o autor traça aí o perfil do artista em

suas palavras literárias.

Já para Sante Scaldaferri (2010), artista plástico da segunda geração dos

modernistas baianos, o grande incentivador de João Alves foi Odorico Tavares:

“quem botou ele muito pra frente foi Odorico Tavares que era representante dos

Diários Associados e fazia umas crônicas, uns textos e falava muito de João”

(SCALDAFERRI, 2010), como veremos no capítulo quatro. Odorico também foi um

colecionador da então arte primitiva e, em sua coleção, acha-se algumas obras do

referido artista18.

Outra pessoa que teve certo grau de importância, sobretudo na divulgação do

nome do artista no mercado de arte daquele período, foi o investidor e mecenas

Renot, colunista do jornal Estado da Bahia e dono da extinta galeria Manuel

Querino, instalada no Grande Hotel da Bahia, na Carlos Gomes, onde João Alves

                                                                                                               18  Acerca da crítica de arte de Odorico Tavares, aprofundarei no último capítulo.  

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expôs seus quadros. Atualmente Renot tem um atelier onde produz pintura e

gravura, no centro de São Paulo.

Essa atenção, admiração e respeito de intelectuais, literatos e artista para

com a obra de João Alves não eram gratuitos ou desinteressados. No mínimo,

curioso, pois praticamente isolado nas ruas do Pelourinho, João Alves pintava suas

telas com uma despretensiosa, porém clara aproximação com obras de pintores

modernistas nacionalmente conhecidos, como Aldo Bonadei, Aldemi Martins e José

Pancetti. Muito antes de ir morar em Salvador, ou seja, sem o conhecimento da

existência de tal artista, João já pintava com uma economia de gestos formais em

sua fatura plástica, ao representar os casarios, característica, notoriamente,

presente na obra de Pancetti. Apesar de não ter acesso a produções desses artistas

célebres do Modernismo nacional, João Alves tinha uma sintonia espantosa com o

Movimento Moderno de finais dos anos 1940.

A primeira geração de modernistas baianos, assim como parte da segunda, o

respeitava e o admirava. Para alguns autores, João Alves fazia parte do seleto grupo

de inovação das artes visuais na Bahia. Como se pode perceber no texto de

Calazans Neto, no caderno da exposição O Brasil de Pierre Verger sob título As

lentes de Verger revelam a alma da Bahia. Onde, além de citar nomes importantes

do cenário modernista das artes na Bahia, como Carybé, Mario Cravo Jr., Pancetti,

Genaro de Carvalho, Jenner Augusto e até o pai de santo Rafael Borges de Oliveira,

ele destaca também João Alves como integrante desse “mitiê”, todos capturados

pelas lentes do grande fotógrafo francês.

O grande João Alves, que pintava seus quadros onde ganhava a vida engraxando sapatos, confessou a Zélia Gattai e a Jorge Amado, padrinhos de sua filha, que tinha mais ambição para ela – desejava que em vez de pintora, como seu pai, ela fosse datilógrafa... São todas essas manifestações que fazem parte dos registros de Verger. Registros de representantes da arte baiana...(NETO, 2006)

Na citação acima, Calazans Neto também deixa evidente a relação próxima

de Jorge Amado e Zélia Gattai com João Alves, os quais foram padrinhos de sua

filha19, bem como, acrescento, também padrinhos de casamento, conforme a figura

4, na foto da saída da igreja do artista e sua esposa.

                                                                                                               19  Como já foi citado no início do texto, João não teve filhos biológicos, cuidando ele de várias crianças, filhas de prostitutas, as quais o chamavam de pai e/ou avô. A citação de Calazans Neto não deixa claro se a referida filha de João Alves é biológica.  

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Figura 4 – Foto de Zélia Gattai do casamento de João Alves (à direita), estão presentes, Jorge Amado, sua filha Paloma e Norma Sampaio, esposa de Mirabeau Sampaio. Imagem extraída do livro Bahia de todos os santos. Guia de ruas e mistérios, de Jorge Amado. Infelizmente, o nome da esposa do artista não foi mencionado

Diferentemente dos demais artistas da primeira geração de modernos

baianos, João era pobre, não dispunha de recursos para investir em sua arte e

contava, muitas vezes, com a ajuda de amigos e de alguns dos artistas modernistas

para comprar materiais de pintura como suportes, pincéis e pigmentos. Passou a

comprar latas de esmalte sintético e a preparar suas próprias tintas. Dona Norma,

sua comadre (madrinha de um de seus filhos-netos) e mãe do artista classificado de

naïf20 Yrakitan Sá21, ao observar a precariedade de seu material, chegou a financiar

tintas a óleo de bisnagas.

                                                                                                               20  O termo naïf vem do francês e quer dizer “ingênuo”. O primeiro artista a receber a denominação de naïf foi o pintor francês Henri Rousseau, na segunda metade do século XIX. O autor do batismo foi o escritor Alfred Jarry, que se fascinou com a obra daquele alfandegário autodidata, capaz de criar imagens fantásticas. Desde então, o termo foi usado para designar qualquer artista que não cursou Escolas de Belas Artes e não se filiou a nenhum dos movimentos consagrados na história da arte, como impressionismo, surrealismo ou expressionismo.  21  Entrevista cedida em 11 de maio de 2010  

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“Seu João, com o mesmo pincel que engraxava o sapato, ele pintava as

telas”, diz o artista, autointitulado, primitivo Nery22, que se recorda do tempo quando

ainda era um menino e revela, por um lado, a parca qualidade do material utilizado

e, por outro, a inventividade e criatividade do artista João Alves, frente às limitações

de suas ferramentas.

A despeito dos materiais e tintas tecnicamente inadequados, João Alves

vendeu facilmente suas primeiras telas a colecionadores e turistas que levaram sua

obra para a Europa e Estados Unidos. O incentivo e a boa aceitação de sua

expressividade autodidata pictórica o levaram a produzir em larga quantidade o seu

trabalho. Segundo a professora Ceres Coelho (1973), João Alves pintou a partir daí

“mais de 4.000 quadros, nos quais registrou ruas, casas, gente pobre, igrejas e

festas de Salvador, em sua concepção de artista primitivo”.

Para Yrakitan (2010), naquela época, nos anos 1950 e 1960, “a quantidade

de gente no Pelourinho era pouca, mas já era o centro turístico alternativo da

cidade”. O artista Yrakitan Sá, lembra que, quando menino, via muitos turistas

armando o seu cavalete e pintando as “nuances coloniais, aquilo que tinha mais

sensibilidade artística para eles”, e documentavam através de aquarela. Ele declara,

saudosamente, que notava “vários artistas bons, japoneses, americanos e franceses

pintando figuras locais e o arquitetônico colonial”. E é através destas recordações

que acha que “Seu João”, como era conhecido pelos mais novos, deve ter se

inspirado e se tornado pintor.

                                                                                                               22  Entrevista cedida em 11 de maio de 2010.  

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Figura 5 – João Alves, Mário Cravo Jr., atrás, Marina e Sante Scaldaferri

Contudo, a pesquisa que tenho feito, em sua grande parte oral, de um artista

que quase não deixou história, família e posses, mas que, com certeza, deixou um

valoroso legado para as artes popular e moderna na Bahia, raiz do que hoje

entendemos por arte contemporânea no Estado. Deixa evidente também, o apoio e

incentivo de modernistas como Carybé, Jorge Amado, Mario Cravo Júnior, Pierre

Verger e outros, no destaque da então chamada arte primitiva de João Alves Oliveira

de Souza.

Tudo isso se deve indiretamente ao momento histórico e político que o Brasil

estava vivendo. Na década de 1940, quando João Alves era notado, eclodia no país

um sentimento ideologizado de nacionalismo, que, dentre muitas facetas, destaco

apenas dois viés entendidos como relevantes para a atual abordagem com a arte no

país: a linha liberal, pelo governo Vargas, e a linha socialista, pela oposição de

esquerda. Ambas com enfoque na valorização da nação brasileira, que,

provavelmente, tenham balizado as discussões modernas como veremos no capítulo

seguinte. Esse nacionalismo, com desenvolvimento de políticas trabalhistas, volta-se

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ao povo, que aqui passa a ser sinônimo de nação, e a arte de pessoas “simples” é

vista como potencial expressão do que entendia-se por “autenticidade”, capaz da

construção identitária do povo brasileiro. É nesse contexto que os olhares de

intelectuais sensíveis às discussões nacionalistas, como Pierre Verger, Jorge

Amado, Mario Cravo, Lina Bo Bardi e outros voltam-se ao popular, ao fazer

artesanal e artístico do homem “comum".

A arte de João Alves, assim como de muitos outros pintores de mesmo

gênero, é valorizada, respeitada, admirada e incentivada. Uma arte que conquista

seu lugar na história da arte como colaboradora direta ou indireta do fator de

mudança no olhar da nação para com sua própria produção artística, originalmente

brasileira, e reivindica seu valor artístico frente às influências vanguardistas

europeias. Mas também evidencia sua interação, diálogo, inserção e, quem sabe,

sua influência na definição da essência do modernismo baiano, deixando de ser

considerada uma arte pitoresca, engraçada, ou até ingênua, e passando a ser

reconhecida como uma arte de grande repercussão para o desenvolvimento de um

novo olhar plástico na capital baiana. E é exatamente este viés que veremos em

todo este trabalho.

 2.4.1 A pintura de João Alves, Cardoso e Silva e Willys

Assim como João Alves, havia vários artista autodidatas em meados do

século XX, no circuito de artes baiano. Dos quais, apresento apenas três, que

gozaram de certo respeito e reconhecimento da crítica de arte e de colecionadores:

o próprio João Alves, Willys e Cardoso e Silva. Tanto que receberam uma sala

somente para eles na II Bienal Nacional de Artes Plásticas da Bahia.

As aproximações e os distanciamentos aqui serão feitos no intuito de

conhecer caminhos e plasticidades diferentes de um mesmo gênero de pintura sob

um tema comum: as igrejas e casarios de Salvador; bem como notar que, apesar da

temática ser a mesma, a abordagem de cada um era pessoal, não havendo cópias,

nem repetições entre os três artistas contemporâneos. Cada um com sua

interpretação e simbolismo peculiares, claros e distintos um do outro, havendo,

inevitavelmente, algumas similitudes na composição e disposição plástico-espacial.

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As telas que serão apresentadas aqui para essa aproximação foram cedidas

gentilmente para fotografar por Maria Tavares, filha de Odorico Tavares, da coleção

particular da família.

Figura 6 - João Alves Festa do Senhor do Bonfim Pintura óleo s/ tela, 37,5 x 45cm, 1961 Coleção particular Maria Tavares Foto Márcio S. Lima

O tema das igrejas e casarios era comum para esses pintores autodidatas.

Acima, na pintura de João Alves, da festa do Bonfim, pode-se perceber todas

aquelas características atenuadas no primeiro capítulo: a simplificação das formas,

através do recurso de pinceladas curtas e grossas, com pouco detalhe, mas com

expressão simbólica nos borrões de tinta, indiciando pessoas, suas ações,

sentimentos, etnias e poder, de maneira sintética e eficiente. A frontalidade das

fachadas das igrejas também chamam atenção (observar detalhes das fachadas

abaixo). Característica comum também na pintura de Cardoso e Silva (pormenor 3),

sendo que João dá continuidade aos planos posteriores da arquitetura e Cardoso

encerra seu trabalho no primeiro plano inicial do imóvel.

Pormenor 1 da figura 6  

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Pormenor 2 da figura 6 Pormenor 3 da figura 7

Apesar das semelhanças temáticas, composicionais e plásticas, pode-se

notar pequenas diferenças entre as duas pinturas (figuras 6 e 7). Um exemplo é a

maior economia de tinta nas telas por parte de João, que obtém uma camada

pictórica bastante fina, enquanto a de Cardoso e Silva é encorpada, permitindo uma

textura mais evidente. As cores usadas por Cardoso e Silva são berrantes, forte e

vibrantes, talvez devido ao efeito complementar das cores. Estas são quase puras,

diferentes das cores de João, que sofrem diversas misturas pigmentais, talvez por

serem produzidas pelo próprio artista. O desenho de Cardoso busca uma simetria

intencionalmente simbólica e sua linearidade é mais definida do que a de João, que,

com suas pinceladas, apenas sugere a narrativa de suas obras, sem muito esforço

de detalhes. Cardoso e Silva não tinha formação de pintura oficial, mas obtinha

formação escolar, logo, gozava de melhor condição financeira e até social do que

João Alves. Cardoso e Silva, pintor, poeta e mágico. [...] Figura das mais curiosas nesta terra de tão diferentes tipos humanos, de inconfundível presença física e original sotaque de emigrado nórdico, dono da mais desconcertante gargalhada humana, enciclopédico, viajado à roda do seu quarto... (CELESTINHO, 1972, p.180)

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Figura 7 - Cardoso e Silva Igreja Pintura óleo s/ tela, 39,5 x 52cm, 1964 Coleção particular - Foto Márcio S. Lima

Figura 8 – Cardoso e Silva, Jorge Amado e João Alves. Fonte: Fundação Casa de Jorge Amado

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Outro pintor bastante conceituado no período moderno baiano foi Thales de

Araújo Pôrto, o Willys. Este foi professor do Instituto de Preservação e Reforma,

sendo, entre os três artistas aqui citados, o que adquiria melhor condição econômica

e social. Produzia pouco, cerca de dois quadros de pequena dimensão por mês, era

o que chamavam de pintor domingueiro, mas participava ativamente do circuito de

arte baiano com diversas exposições em seu currículo.

A verdade é que Willys é pintor categorizado, por conhecimento e habilitação, desde quando deixou a vida de cenografista no Rio a caminho de seu pendor de artista domingueiro, como intérprete da paisagem urbana de Salvador, onde nasceu. (VALLADARES, 1962, p.241)

Figura 9 - Willys Bahianas com acarajé Pintura óleo s/ madeira, 28,5 x 29cm década de 1960 Coleção particular Maria Tavares – Foto Márcio S. Lima

Apesar de uma simplificação formal, comum aos pintores desse gênero,

Willys, diferente de João Alves e Cardoso e Silva, trabalhava com desenho um

pouco mais detalhado, com uma geometrização mais definida. Quanto à

semelhança das pinturas de João Alves com as de Willys, além da composição

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formal e simbólica dos temas, pois ambos pintavam as igrejas e os casarios de

Salvador, a proporção de elementos para dar relevância no que os artistas queriam

ressaltar era comum. No quadro a cima, de Willys (figura 9), a ênfase proporcional

das baianas - de quem está à frente, mais próximo do observador -, não ofusca a

representação dos casarios, tema central da tela, e título da obra, pois a disposição

composicional favorece a contemplação das fachadas sem qualquer interferência

das figuras em primeiro plano. Tanto as baianas, em seus tabuleiros com seus

quitutes, como a árvore ao lado esquerdo da tela não cobrem a paisagem

arquitetônica do espaço urbano pintado pelo artista. Observe o mesmo recurso na

distribuição da população entorno da Igreja do Bonfim (figura 6) de João Alves,

deixando o templo em total evidência e destaque.

Sobre Willys, também escreveu Celestino em seu livro Gente da terra,

quando faz relação com as pinturas de João Alves: Aqui na Bahia tivemos o nosso bom João Alves, falecido há pouco mais de um ano, fôrça curiosamente primária e que não raro lançava, na tela mais pobre que havia, e com tinta mais desprezível, pedaços luminosos da sua Bahia humilde e alegre. [...] Mas o nosso mais tranqüilo e sossegado dito primitivo, o pintor Willys, senhor da sua certeza, artesão honrado e artista que segue sua própria doutrina e não faz nenhuma questão de que gostem ou não, tal sua fôrça poética, seu amor às coisas que vê formadas por seus próprios prismas, seus casarios da velha Bahia, suas amadas portas e janelas de sobrados já derrubados, mas ainda elegantemente firmes na sua saudade de levantador de lembranças. (CELESTINO, 1972, p.112)

O interesse nas aproximações da obra de João Alves com as obras dos dois

pintores aqui mencionados é de dialogar com as manifestações artísticas da época,

trazendo para o campo teórico a discussão da relevância de tais artistas do povo, na

formação de um movimento moderno na Bahia. João Alves não estava só, como ele,

havia alguns artistas autodidatas que cooperaram para esse processo, Agnaldo

Manoel dos Santos (escultor), Pedroso, José de Dome, Waldomiro de Deus,

Aurelino dos Santos, Rafael Borges de Oliveira e Olimpyo Costa Lima, para citar

alguns.

 2.4.2 O mercado de arte

O mercado de arte sempre foi um assunto preocupante no universo artístico.

Quanto custa uma obra de arte? Qual seu valor simbólico, estético, plástico e

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cultural? Quais os compradores e clientes? Que importância as galerias, salões e

bienais exerceram no comércio da arte? Essas são questões pertinentes na

abordagem do tema. Como minha proposta aqui é levantar relações, consensuais ou

conflituosas, da arte moderna, no meado do século XX, com a arte autodidatista, de

João Alves, faz-se necessária a análise plurilateral e o cruzamento das ideias

concernentes ao assunto do comércio de obras de arte no período estudado, que

envolvem tanto a pintura produzida por autodidatas em geral, como a arte

considerada oficial ou profissional. Vejamos então alguns contrapontos.

Primeiro, quero abordar que, na arte dos autodidatas, a relação cliente/artista

parece estar, na maioria das vezes, em torno do gosto do comprador, o qual, por

diversas vezes, opinava e exigia determinados elementos na composição pictórica

do artista. A partir das entrevistas com pintores locais, parece que, até os dias atuais

no Pelourinho, há um problema recorrente: o surgimento do copista - aquele artista

que recebia um valor, bem abaixo de mercado, para copiar as telas que mais caiam

ao “gosto” dos turistas, e reproduzi-las em série. As lojas que as encomendavam

vendiam essas telas a preço modesto, visando o lucro imediato em cima dessas

reproduções. Isto ecoou para mim, como um reclame uníssono dos artistas

autodidatas mais comprometidos com a qualidade técnica, no Centro Histórico e

turístico de Salvador. Veja o que artista popular Yrakitan Sá falou sobre os diversos

quadros de casarios, hoje espalhados nas ruas do Pelourinho, como uma verdadeira

“coqueluche plástica” que, por ironia, ele próprio contribuiu e incentivou para esse

cenário:

A arte naïf cresceu muito – com a liberdade de fazer o que quer – todo mundo que vem à Bahia quer. E com os valores ‘baratos’, tudo ficou desqualificado. [...] Os copistas prejudicaram os naïfs do Pelourinho porque os lojistas pagavam e revendiam a preço muito ‘barato’ as obras copiadas pelos copistas dos artistas naifs originais. Eles atrapalharam o mercado. (SÁ, 2010)

Sá atribui a “coqueluche pictórica” ao comportamento mesquinho dos donos

de lojas do comércio do Centro Histórico. Mesmo pensamento é comungado por Seu

Armando23, um senhor que pinta tacos de madeira de efeitos decorativos defronte às

portas da Escola de Medicina da UFBA, no Pelourinho atualmente. Ele citou os

copistas e os lojistas como responsáveis pela poluição visual, hoje comum às ruas

do Centro Turístico.

                                                                                                               23  Entrevista cedida em 11 de maio de 2010.  

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Até a década de 1980 (antes da cópia), a gente tinha o doméstico - o pessoal da terra (Barra, Graça), mas depois o doméstico desapareceu por falta de segurança no Pelourinho. [...] Hoje o Pelourinho ficou poluído por causa de copistas. O próprio comprador (lojista) incentivava o pintor a copiar as obras que tinham maior aceitação pelos turistas. (ARMANDO, 2010)

Para alguns críticos de arte como Aquino (1978), a qualidade artística das

artes chamada de “ingênuas”, no Brasil, declinou devido às repetições temáticas e à

parca expressividade plástica das telas:

O Brasil é um berço da pintura ingênua. As solicitações sensoriais criadas por um país tropical e por seu folclore, ligadas à liberdade gerada pela arte moderna, fizeram surgir nos campos e nas cidades milhares de ingênuos — a maioria sem qualquer expressão. Sobram poucos, uns trinta, cujas qualidades vão além do simples colorismo bruto e das incorreções anatômicas para chegarem à arte propriamente dita. (AQUINO, 1978)

Já para alguns artistas de formação, como o professor Juarez Paraíso, em

entrevista à Revista da Bahia nº 4024, o mercado de arte, em meados do século XX,

passou por uma crise, que teve como responsáveis, desde o fechamento de galerias

importantes como a Querino e a Convivium, por causa das pressões econômicas de

um mercado de arte fragilizado pela ausência de colecionadores, até, segundo o

professor, a “falta de cultura artística das classes mais abastadas”. Para Juarez

Paraíso, outro agravante que serviu para endossar essa crise foi que, “na década de

1960, houve uma verdadeira fábrica de primitivos e ainda se faz muita coisa com

selo de arte ingênua para vender aos turistas como “lembranças da Bahia”.

Juarez não tira o valor da arte autodidata, mas parece considerar sua

exploração comercial prejudicial ao mercado de arte em Salvador. Esse pensamento

encontra eco na tese de Ceres Coelho (1973), quando diz que:

Os turistas, que afluem à Bahia em certas épocas do ano, preferem adquirir trabalhos de primitivos; o potencial do mercado de vendas a turistas cresceu muito com a atuação dos “marchands”, exclusivamente preocupados com o lucro certo. Esse tipo de filosofia mercantilista se fundamenta no fato de que é muito fácil e rentável vender ao turista uma lembrança da cidade – quadros com vistas do Pelourinho, lagoa do Abaeté, igreja do Bomfim, etc. – do que procurar desenvolver, no público, autênticos valores estéticos, o gosto pela arte, e criar um mercado consumidor. [...] Por outro lado, o artista que faz casario, marinhas ou flores, explorando o folclore, conta com um público comprador quase certo. (COELHO, 1973, p. 36)

                                                                                                               24REVISTA DA BAHIA.Salvador: Fundação Cultural da Bahia. Nº 40. Disponível em:  http://www.fundacaocultural.ba.gov.br/04/revista%20da%20bahia/Artes%20Plasticas/entre.htm. Acesso em: 07 jun. 2012.

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Algumas declarações, no mesmo período (meados do século XX), foram

selecionadas e analisadas nesta pesquisa e mostraram que esses argumentos ora

concordam ora se contrapõem. Os depoimentos a seguir foram extraídos do Jornal

da Bahia, em 19 de fevereiro de 1968, em uma matéria construída por Mara

Leibman sob título Declínio das artes plásticas baianas. Começamos com o que

declarou o escultor Mario Cravo Júnior: “de repente se fizeram numerosos artistas

muito mais primários que primitivos” (Cravo Júnior apud LEIBMAN, 1968). O artista

sugere a perda de qualidade da então arte primitiva na Bahia e critica a proliferação

de artistas primitivistas comerciais, chamando-os ironicamente de “primários”,

conotação ainda mais pejorativa que o primeiro, que dá ideia de amadorismo.

Para Leonardo Alencar, “O comércio de arte tem sido feito na base da

amizade sem se levar em conta a projeção de valôres verdadeiros” (ALENCAR apud

LEIBMAN, 1968). Aqui me parece um desabafo quanto à política de favorecimentos

no mercado de arte da época em Salvador, que sugere preferências fraternas no

lugar de qualidades artísticas.

Já Jenner Augusto(1968) tem um olhar otimista frente ao comércio de arte na

Bahia, bem na contramão dos seus colegas:

[...] a Bahia está passando por um período bom em artes. Com muitos valores novos e jovens interessados, o que se comprovou na I Bienal. E quanto ao mercado, esboça-se já em Salvador um grupo bom de compradores. (AUGUSTO apud LEIBMAN, 1968).

Para alguns artistas, a estima e os baixos preços dos quadros chamados

primitivos e naïfs interferiam no mercado de arte. Como já citado, é bem verdade

que as telas serviam mesmo como lembranças da Bahia para os turistas. E essa

relação parecia desviar a atenção da produção profissional, daqueles artistas de

formação oficial.

Foi antes e durante essa suposta crise que João se destacou. Não por fazer o

jogo do mercado de arte, mas por desenvolver uma linguagem autêntica e capaz de

dialogar com as mais modernas propostas consideradas vanguardistas da época.

Também é certo não deixar de considerar que, por João Alves pertencer, segundo

os críticos, ao gênero de pintura primitivo, estava reivindicada implicitamente sua

excelência e qualidade artística historicamente procuradas nas manifestações

artísticas distantes e estranhas à civilização europeia como símbolo de pureza e

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“autenticidade”. Mas isso aprofundarei no capítulo seguinte acerca dos detalhes

conceituais e questionáveis do termo arte primitiva.

Voltando a falar do comércio da arte na Bahia, especificamente no período

das décadas de 1950 e 1960, é importante abordar que era como morador do

Pelourinho, habitante genuíno daquele espaço urbano, que João começou a pintar

suas telas com temas variados, e dentre eles, os casarios em estilo colonial às suas

próprias cadeiras de engraxate, na Praça da Sé, onde ali mesmo as vendia.

Segundo Yrakitan Sá (2010), a rua Chile tinha muitos advogados que compravam

seus quadros para decorar os escritórios. Não sabendo Yrakitan que o alcance da

obra de João era muito maior do que qualquer um imaginava. Sua obra estava indo

para fora do país, e era muito mais requisitada do que determinados acadêmicos e

artistas profissionais de formação oficial da Bahia. Daí a sua valorização e

reconhecimento no ramo intelectual aliado ao bom discurso promovido pelos

letrados, na literatura e nos jornais que referendavam seu trabalho.

Para Seu Armando, a clientela de João Alves era basicamente composta por

dois tipos de clientes, os fluviais e os domésticos. Os fluviais seriam os turistas

europeus e norte-americanos - colecionadores, artistas e donos de escritórios - já os

domésticos, tratavam-se dos compradores que residiam em Salvador, mais

precisamente oriundos das classe mais abastadas, dos bairros da Barra e da Graça

(SR. ARMANDO, 2010).

Mas como vimos anteriormente, além da clientela fluvial e doméstica, havia

os donos de galerias, mecenas, os quais bancavam artistas autodidatas com

materiais (chassis, tintas, pincéis) e até habitação, como foi o caso de João Alves

que, segundo Celso Guedes (2012) em seu depoimento, chegou a morar na casa de

um funcionário de Renot, dono da galeria Querino.

Mas não foi só dessa clientela que a arte de João firmava-se como referência

das artes plásticas na Bahia. A inserção do pintor no cenário artístico através de

exposições coletivas locais e nacionais, convites para eventos, participação nas

duas históricas bienais de artes plásticas da Bahia, e as críticas de arte publicadas

em cadernos especiais de cultura em jornais de grande circulação formam um

plantel de requisitos para o sucesso no ramo plástico de representação no universo

artístico. Quanto à crítica de arte e notas em jornais, bem como à presença do

artista em livros e obra literária amadiana, serão abordadas no quarto capítulo.

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2.4.3 Exposições e presença de João Alves no cenário artístico baiano

Coletivas e Individuais25

Acerca das exposições que João participou, destacam-se as seguintes:

1954 – IV Salão Baiano de Belas Artes

1954 - Goiânia, GO - Exposicão do Congresso Nacional de Intelectuais 1956 -

São Paulo, SP - 50 Anos de Paisagem Brasileira, no MAM/SP

1957 - São Paulo, SP - Artistas da Bahia, no MAM/SP

1961 – Escola de Belas Artes – UFBA – Salvador, Bahia.

1961 – Museu de Arte Moderna da Bahia – Salvador, Bahia.

1961 - Salvador BA - Individual, no MAM/BA

1964 - São Paulo SP - Individual, no João Sebastião Bar

1964 – Salvador, BA - Mostra, na Galeria Querino

ca.1964 – Salvador, BA - Salão Bahiano de Belas Artes - medalha de prata

1965 - Rio de Janeiro, RJ - Individual, na Galeria Montmartre

1966 – Salvador, BA - I Bienal Nacional de Artes Plásticas da Bahia

1967 – Salvador, BA - Exposição Coletiva de Natal, na Panorama Galeria de Arte

1968 – Salvador, BA - II Bienal Nacional de Artes Plásticas – Salvador, Bahia.

Póstumas 1980 - São Paulo, SP - Gente da Terra, no Paço das Artes

1981 – Maceió, AL - Coletiva Artistas Brasileiros da Primeira Metade do

Século XX, no Instituto Histórico e Geográfico

1988 - Rio de Janeiro RJ - O Mundo Fascinante dos Pintores Naïfs, no Paço

Imperial

1994 - Salvador BA - 1º Salão MAM - Bahia de Artes Plásticas, no MAM/BA

1996 – Osasco, SP – 4ª Mostra de Arte, no Centro Universitário Fieo

2000 - São Paulo, SP - Mostra do Redescobrimento, na Fundação Bienal

2001 - São Paulo, SP - Figuras e Faces, na A Galeria

2002 – Osasco, SP - Santa Ingenuidade, no Centro Universitário Fieo

2005 – Salvador, BA - MAB

                                                                                                               25 Dados extraídos da Enciclopédia Itaú Cultural de Artes Visuais e da tese de Ceres P. Coelho: Movimento moderno na Bahia. Salvador, 1973.  

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Acerca da exposição de 1954, no IV Salão Baiano de Belas Artes, no governo

de Antônio Balbino, a Divisão Moderna apresentou, segundo José Valladares, um

“bom pano de amostra da pintura de vanguarda no País” (VALADARES, 1957, p.

161). E no quesito pintura, as obras de João Alves foram bastante elogiadas pelo

crítico de arte: “Treze artistas da Bahia contribuíram para a secção de pintura.

Representam vinte por cento dos expositores da secção. Mencionarei apenas dois,

ou seja, exclusivamente aqueles que a mim surpreenderam” (VALADARES, 1957, p.

161). E acrescentou mais adiante: “Os dois expositores baianos que me dão o que

pensar no presente salão são, em primeiro lugar, João Alves Oliveira da Silva, o

conhecido João Alves, de profissão engraxate” (VALLADARES, 1957, p.162). Uma

abordagem mais detalhada sobre a análise de José Valladares e de outros críticos

da obra de João Alves será discutida no último capítulo, no item João Alves nos jornais e livros.

Em caráter de exemplificação da clara inserção de João Alves no circuito

artístico nacional, destaco a exposição citada acima: Artistas da Bahia, que

aconteceu no Museu de Arte Moderna de São Paulo, em 1957, em homenagem a

Francisco Matarazzo Sobrinho.

Figura 10 – Capa do catálogo da exposição Artistas da Bahia, de 1957, no Museu de Arte Moderna de São Paulo.

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Figura 11 – Lista de obras de João Alves expostas na exposição Artistas da Bahia, de 1957, no Museu de Arte Moderna de São Paulo

João Alves participou intensamente do circuito de arte da época modernista,

com expressivo reconhecimento artístico nacional. Foi inserido no universo da arte,

no momento em que a produção de um novo olhar plástico estava em pleno vapor.

Mesmo sem estudos e viagens para fora do País, sendo engraxate e morador do

Pelourinho, participou de exposições individuais e coletivas, promovidas por aqueles

que valorizavam sua arte e mantinham um diálogo plástico com a concepção e

estética tidas por primitiva.

João Alves também esteve presente na constituição do Museu de Arte Negra,

através de suas obras que fizeram parte do acervo inicial. Segue abaixo texto de

Abdias do Nascimento, publicado na Revista GAM (Galeria de Arte Moderna) nº 14,

em 1968, página 21, sob o título, Cultura e estética no Museu de Arte Negra:

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Figura 12 – Coleção inicial do acervo do Museu de Arte Negra, onde o nome de João Alves aparece.

João Alves também esteve presente, indiretamente, na implantação do

Museu de Arte Moderna da Bahia (MAM-BA). Algumas de suas obras fizeram parte

do primeiro acervo do MAM-BA, em sua abertura no Solar do Unhão, na Avenida

Contorno, em Salvador, Bahia, sob a direção de Lina Bo Bardi, após passar um

tempo, de maneira provisória, no foyer do Teatro Castro Alves. O Museu foi

idealizado no ano de 1959, no governo de Juracy Magalhães, este, junto com Wilson

Lins e José Valladares, determinou que fosse formado um grupo para desenvolver

um projeto de lei para o Museu de Arte Moderna. Este grupo foi então constituído

por Godolfredo Filho, Robato Filho, Diógenes Rebouças, Walter da Silveira, José

Valladares, Clarival Valladares, Mario Cravo e Carlos Bastos.

O projeto-lei foi encaminhado à Assembleia Legislativa e, ao mesmo tempo, a

comissão continuava a se reunir em reuniões presididas pelo então governador e

sua esposa Lavínia Magalhães, os quais solicitaram a inclusão do jornalista Odorico

Tavares como tesoureiro da campanha de doações do Museu.

O projeto-lei foi aprovado pela Assembleia e sancionado pelo então

governador do Estado, quando foi nomeado para o corpo diretor da Fundação, o

reitor da Universidade Federal da Bahia, Edgar Santos, o embaixador Assis

Chateaubriand, o professor Clemente Mariani, Gileno Amado, Fernando Correia

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Ribeiro e, como presidente, escolheram a então primeira-dama do Estado Lavínia

Borges Magalhães, a qual convidou a arquiteta Lina Bo Bardi para direção-geral do

Museu.

Veremos abaixo trecho da Lei Estadual, de julho de 1959, publicada no jornal

Diário de Notícias de 6 de janeiro de 1960, p.3 do 3º Caderno (Ver em ANEXO D, a

publicação da Lei completa), onde são citadas três obras de João Alves como parte

do acervo inicial do Museu.

Figura 13 – Lei de fundação do MAM-BA, obras de João Alves fizeram parte do acervo. DN – 6 de jan 1960

É bom registrar que, no recorte de jornal acima, o texto passa do artigo 44

para o 46, o que faz notar a ausência do 45, o qual contempla a quarta obra de João

Alves doada pelo Museu de Arte da Bahia - MAB para o recém- criado MAM. Isso

pode ser conferido no sitio jusbrasil.com.br26, onde é disponibilizada a Lei 1.152/59

na íntegra. Assim, de acordo com esta, a lista completa seria a seguinte: 42 - um

óleo João Alves da Silva, 1954, tamanho 0,39x0,51, sob a denominação "S.S.

Sacramento do Passo"; 43 - idem, mesma data, tamanho 0,49x0,67, sob a

denominação "Piedade"; 44 - idem, mesma data, tamanho 0,48x0,585, sob a

denominação "São Pedro dos Clérigos"; e 45 - idem, mesma data, tamanho

0,56x0,57, sob a denominação "Conceição da Praia".

                                                                                                               26 http://www.jusbrasil.com.br/legislacao/85503/lei-1152-59-bahia-ba Acesso em 28 out. 2012

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Outro destaque importante para a relevância da obra de João Alves no

circuito artístico baiano foi sua participação das duas bienais de artes plásticas

ocorridas na Bahia. O artista expôs duas telas na Bienal Nacional de Artes Plásticas

da Bahia, que teve abertura em 28 de dezembro de 1966, no Convento do Carmo,

sob a presidência da primeira dama do Estado, a senhora Hildete Lomanto, esposa

do então governador Lomanto Jr. (Figuras 14 e 15)

Figura 14 – Capa do catálogo da Bienal Nacional de Artes Plásticas da Bahia, 1966

Figura 15 – Lista de obras de João Alves expostas na Bienal Nacional de Artes Plásticas da Bahia, em 1966.

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Na II Bienal Nacional de Artes Plásticas da Bahia, ocorrida no Convento da

Lapa, em 20 de dezembro de 1968, no governo de Luís Viana Filho, João Alves

participou com e cinco obras. (Figuras 16 e 17)

Figura 16 – Revista carioca GAM, de 1968, edição especial da Segunda Bienal Nacional de Artes Plásticas da Bahia. A publicação traz a relação das obras da Bienal, dentre as quais, cinco telas de João Alves foram expostas.

Figura 17 – Lista de obras de João Alves expostas na 2ª Bienal Nacional de Artes Plásticas da Bahia, em 1968.

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Nas duas Bienais Nacionais de Artes Plásticas da Bahia, João Alves foi uma

das notórias atrações do evento. Não resta dúvida de que, a participação do referido

artista nas bienais da Bahia, tanto em 1966 como em 1968, foi um marco na carreira

do pintor rotulado de primitivo.

Embora João Alves tenha obtido respeito e admiração dos intelectuais das

artes de seu tempo, sua arte não sofreu grandes modificações e influências

externas. Era o que o agradava. As telas pequenas com materiais precários

continuou sendo sua marca por anos. Sua obra não pode ser definida por fases. Ele

pintava aquilo que via, estruturas físicas, espaciais, arquitetônicas, igrejas, casarios,

a vida urbana, os conflitos sócio-econômicos, as injustiças sociais etc.

Sua obra era carregada de significados e expressividade, em uma

espontaneidade singular. Apresentava ao mundo uma Bahia de diferenças sociais,

de belezas naturais, de cores sóbrias, de uma arquitetura característica que remetia

a um período colonial, e de um povo, que, apesar de pobre e desassistido,

trabalhava e lutava por sobrevivência. Ele foi a voz desse povo nas artes plásticas

baianas.

Volto então, às questões iniciais deste capítulo: Por que o artista é chamado

de primitivo e ingênuo? Qual a melhor classificação para a arte de João Alves? Ou

por que é necessário uma rigidez classificatória? Quais suas relações positivas e/ou

negativas com o movimento artístico moderno na Bahia? Quais as implicações

conceituais do termo pelo qual era conhecido: primitivo? Será que há preconceito e

subestima no rótulo primitivo, quando tudo o que não é masculino, branco, ocidental

e cristão foi reunido na construção de seu significado? Qual o seu contexto histórico,

social e cultural?

Algumas dessas questões serão abordadas no próximo capítulo, no intuito de

entendê-las e de analisar se há necessidade em sugerir uma terminologia que

nomeie mais adequadamente sua arte.

 

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3 AS RELAÇÕES DIALÓGICAS ENTRE A PINTURA “PRIMITIVA” E O

MODERNISMO BAIANO 3.1 A TENDÊNCIA MODERNISTA NO BRASIL

Desfruta-se o que é convencional, sem criticá-lo; critica-se o que é novo, sem desfrutá-lo.

Walter Benjamin

Antes de chegarmos ao tema proposto para este capítulo, abordando a

problemática terminológica do primitivo e das interações e relações da pintura de

João Alves com a arte moderna na Bahia, tenho algo curioso a destacar: o emprego

do termo moderno, que, atualmente, tem sido questionado, haja vista alguns títulos

especializados, como Neolítico: arte moderna, de Ana Cláudia de Oliveira(1987), e

Quarenta mil anos de arte moderna, de J. A. Maudit(1961), dentre outros, na

abordagem questionadora do caráter temporal e de progresso atribuído ao tema.

Vale aqui deixar claro o conceito, dentre muitos, adotado por este trabalho

para se referir a um período histórico onde respeitará as transformações na

mentalidade coletiva vigente na época. A palavra, grafada em itálico, moderno é

vista aqui sofrendo alguns reajustes conceituais, muitas vezes provocadores, pois se

trata de um construto ideológico e social que, em um passado não muito distante,

obtinha conotação de progresso, como já citado, avanço tecnológico, velocidade de

produção e da emergente industrialização decorrente do que a História chama de

Revolução Industrial. O exemplo que posso ilustrar para tal constatação é a

concepção de moderno, segundo aquele que é considerado o primeiro crítico de arte

moderna, por inaugurar a crítica a partir da análise dos processos criativos e dos

fazeres artísticos, e o primeiro a abordar o termo modernidade na história da arte, o

francês Charles Baudelaire.

A partir da concepção do célebre texto O pintor da vida moderna, de

Baudelaire (1993), destaco duas dentre muitas características da modernidade: o

tempo e o tema modernos. Quanto à primeira, o poeta entende que o tempo

moderno é determinado pela celeridade industrial, e o pintor, por sua vez, adquire

habilidades técnicas na produção de suas telas, acompanhando o ritmo de produção

exigido pela modernidade. Um exemplo do “pintor da vida moderna”, para

Baudelaire, foi Claude Monet (1840-1926), que desenvolveu uma quase frenética e

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obsessiva pintura pautada em inúmeros estudos sobre a intervenção da luz sobre a

superfície material da Catedral de Rouen, como um incansável registro de cores e

efeitos produzidos pela luz nos diverso horários do dia. Outro exemplo, agora na

primeira metade do século XX, dessa vida moderna associada ao progresso, dessa

vez com uma dose de sátira sobre a questão, é o longa-metragem de Charles

Chaplin, Tempos modernos, de 1936.

A segunda característica, o tema, Baudelaire compreendia que o que

caracterizava a pintura como moderna era o tema vigente de sua época. “Houve

uma modernidade para cada pintor antigo” (BAUDELAIRE, 1993, p. 227). O que era

atual, recente para a sua época, era a modernidade de cada pintor, por exemplo,

havia modernidade nos pintores renascentistas assim como nos medievais. Com

isso, percebo que a ideia de progresso, desenvolvimento industrial e tecnológico,

bem como o interesse para com a estética urbana, estavam impregnadas no tema

da modernidade para o poeta oitocentista, que viveu sua época de deslumbramento

com a expansão urbana com certo otimismo. Mas ao mesmo tempo, Baudelaire me

faz pensar que o moderno não aponta para o futuro, muito menos para o passado, e

sim para o presente, o aqui e o agora.

E o curioso é notar que um pouco mais tarde, ou até mesmo paralelamente

ao seu tempo, começa a surgir outro entendimento sobre o moderno. Essa nova

concepção é o que vai balizar a grande produção do século XX, a qual faz um

contraponto com a ideia exposta acima, ou seja, paradoxalmente os então artistas

modernos passam a caminhar na contramão da cultura burguesa moderna,

sobretudo no período pré-guerra:

Muitos artistas que hoje denominamos “modernos” na verdade se opuseram ao processo de modernização (entendido como as forças de industrialização e urbanização na sociedade capitalista ocidental). Essa oposição assumiu com freqüência a forma de uma discriminação positiva em favor dos chamados temas e técnicas “primitivos”. (PERRY, 1998, p.3)

A ideia agora é redirecionar o olhar para o campo, para onde o avanço

industrial e civilizatório ocidental ainda não tivesse alcançado, para os meios

artísticos desenvolvidos fora da Europa, dos povos “exóticos” chamados de

primitivos. Talvez influenciados por alguns escritos de Nietzsche, segundo

Perry(1998), onde a Modernidade era frequentemente associada à “decadência

cultural, que deve ser superada por processos dialéticos de ‘revalorização’ e de

‘auto-superação’” (PERRY, 1998, p. 65). Assim, os artistas que, sob este ideário,

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acabaram por contender contra o que se entendia, na época, por moderno e

modernidade, foram curiosamente denominados de modernos.

Moderno passa a ter um sentido de radicalidade, de rompimento com padrões

estabelecidos, enfrentamento às imposições burguesas, daí a inclinação para outro

termo, bastante aceito em questão: vanguarda artística. Essa é uma grande

mudança, um tanto paradoxal, é verdade, sobretudo para o tema moderno, porém

muito relevante, nos aspectos técnicos e formais dos artistas, que passam a se

ocupar com a preocupação de um suposto esvaziamento da autenticidade nas artes

plásticas, decorrido dos próprios meios da modernidade burguesa, e apontam para

uma tendência primitiva como provável solução do problema na direção de um

desligamento dos padrões composicionais, plásticos e ideológicos oficiais, assunto

que abordo com maior cuidado histórico mais adiante. Por hora, saliento que, esses

artistas formam, a partir de finais do século XIX e início do XX, diversos movimentos

vanguardistas de caráter plástico-estético-ideológico também chamados de

modernos ou modernistas.

Rompimento, quebra de padrões tradicionais, novos estudos plásticos e

espaciais eram centros de discussão na Europa. Os artistas brasileiros, de família

burguesa, como Tarsila do Amaral, Anita Malfatti, Lasar Segall dentre outros,

participavam, aprendiam, influenciavam e eram influenciados no circuito de arte

europeu. A experiência e sintonia com assuntos estéticos e artísticos foram trazidos

ao Brasil como uma maneira de atualização intelectual no país, na intenção da

formação de um movimento artístico brasileiro que assimilasse o grande arcabouço

de informações discutidas e aplicadas nas artes plásticas europeias.

Porém, o modernismo brasileiro tem uma especificidade clara em sua

proposta de origem: a busca da brasilidade como sonho de suprir a carência de

identidade nacional. Ao mesmo tempo, essa busca soa como reação à procura

europeia do exótico, do primitivo como algo externo, fora de sua cultura, ao passo

que para o Brasil, os valores considerados primitivos estavam dentro, no cerne da

criação popular, artesanal, na produção indígena, afro-brasileira, nordestina,

sertaneja etc. Valores estes que serviriam como fundamentação plástica da

identidade do país. Inspiravam-se nas vanguardas europeias, mas com uma

interpretação particular, voltada para elementos locais, regionais da camada popular

da nação.

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[...] diferentemente das vanguardas européias, que para afastar-se da tradição dissolviam as identidades, os modernistas assumiam e positivavam as condições e características locais, o hibridismo cultural e do olhar – uma espécie de “compulsão de conciliar e misturar”. O cubismo que Tarsila do Amaral mobilizava para pintar o Brasil é, portanto, estratégico: “formular uma percepção moderna brasileira”. Aquilo que pareceria uma limitação, dela e de Anita Malfatti – o primado do tema – era, na verdade, um modo de “projetar o Brasil”. (FAVARETTO, 2004, p. 124)

A interpretação brasileira das vanguardas europeias dava-se na “devoração”,

conforme a Antropofagia de Oswald de Andrade, dos estudos universais sobre a

pintura ocidental na atualização da intelectualidade nacional, partindo de temas,

cores, paisagens, expressões e narrações legitimamente brasileiras. Assim, a

proposta modernista do Brasil olha para si na busca do primitivo ao contrário dos

modernistas europeus. Para Antonio Candido, “no Brasil as culturas primitivas se misturam à vida cotidiana ou são reminiscências ainda vivas de um passado recente. As terríveis ousadias de um Picasso, um Brancusi, um Max Jacob, um Tristan Tzara eram, no fundo, mais coerentes com a nossa herança cultural do que com a deles (...). Os nossos modernistas se informaram pois rapidamente da arte européia de vanguarda, aprenderam a psicanálise e plasmaram um tipo ao mesmo tempo local e universal de expressão, reencontrando a influência européia por um mergulho no detalhe brasileiro. (FAVARETTO, 2004, p. 127)

Mas o Brasil passava por uma série de mudanças políticas na primeira

metade do século XX, principalmente nos anos 1930, quando surge o então

segundo modernismo brasileiro.

Acontecimentos como a conquista do direito ao voto feminino, em 1932; a

subida ao poder – presidência da República - de Getúlio Vargas, em 1934, dando

início à conhecida era Vargas, com diversas leis trabalhistas que mudam o cenário

social do trabalhador, com o estabelecimento da jornada diária de oito horas laborais

na indústria e no comércio, a regulamentação do trabalho feminino e dos menores

nos estabelecimentos comerciais e industriais, a instituição da carteira profissional e

do salário mínimo, entre outras; no mesmo ano, a fundação da Universidade de São

Paulo; ainda com Getúlio na presidência, a criação do Estado Novo, em 1937, com a

dissolução do Congresso, são indícios de radicais mudanças no cenário político, que

não podem ficar de fora na análise da emergência da arte moderna no Brasil.

Sendo assim, é importante destacar que, no “primeiro modernismo”, que teve

início na semana de 22, para Mario de Andrade, a falha dos modernistas era a

“despolitização” (p.134). Já no segundo modernismo, das décadas de 1930 e 1940,

com ascensão de artistas como Di Cavalcanti, pintando as mulheres mulatas,

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lavadeiras e trabalhadores dos canaviais; Cândido Portinari, pintando os retirantes, a

seca, a fome, o trabalho rural e a agonia do oprimido marcam a tendência socialista

na arte moderna com uma temática voltada para os conflitos e tensões sociais de

cunho fortemente político. o moderno é um problema, pelo menos nos desenvolvimentos que vão das presenças inaugurais de Anita Malfatti, Tarsila do Amaral e Lasar Segall até afixação da pintura de Cândido Portinari e Di Cavalcanti como emblemas de modernidade artística brasileira nos anos 30-40, época do segundo modernismo. (FAVARETTO, 2004, p. 125)

Na década de 1960, essa postura politizada com uma preocupação social nas

artes e com o nacionalismo encontra terreno fértil no Brasil, com a crise das

vanguardas construtivas, que antecede o golpe militar de 1964, o que para Celso

Fernando Favaretto: [...]ocorreu tanto pelo acirramento das posições estéticas dos grupos divergentes, como pela pressão do momento histórico, que estava propondo aos artistas a necessidade de repensar e repropor as conexões entre modernidade e nacionalismo. Atividades diversas disseminam as várias tendências em ebulição: happening, novas figurações, realismo mágico, arte popular, arte popular revolucionária, novo realismo, além do prosseguimento de experiências concretas-neoconcretas. Inaugurava-se um período de férteis e variadas experimentações e, ao mesmo tempo, de intenções nitidamente sociais. (FAVARETTO, 2004, p. 131)

Posso considerar, então, que estes movimentos modernistas ocupam lugar de

destaque na história da arte, como desbravadores de uma nova maneira de olhar,

por conseguirem romper com padrões seculares rígidos da plasticidade e estética

ocidentais e, sobretudo, pelo engajamento político na esfera nacional. Para o

professor Carlos Zílio, Do ponto de vista político-partidário não há muita dúvida quanto à trajetória dos modernistas. Se no início da década de 1920 tendiam para o descompromisso boêmio ou o apoio aos partidos oligárquicos, eles iriam, pouco a pouco, buscar outras possibilidades. Estas tanto poderiam ser as vias da oposição ainda nos marcos da República Velha, como o Partido Democrático ou, de modo mais significativo, o engajamento nas duas correntes que no seu antagonismo iriam marcar o século: o comunismo e o fascismo. No âmbito das artes plásticas há o predomínio quase total do engajamento à esquerda. De fato, se a primeira fase do modernismo e do nacionalismo, num segundo momento, já nos anos 30, teríamos de acrescentar a questão social.  (ZILIO, 1994, p.111)

Era necessário repensar os meios oficiais da arte e voltar-se para o social, se

quisesse instaurar um novo modo de ver, libertador de tais convenções. Mas onde

entra a obra do artista João Alves nesse contexto? Onde quero chegar com todo

esse apanhado histórico? É exatamente nesse momento que, na Bahia, os olhares

da elite intelectual baiana voltam-se para a obra de artistas em condições

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socioeconômicas desfavoráveis, como João Alves, Willys, Cardoso e Silva, Ema

Valle, Lucidio Lopes, Manoel Bonfim e Pedroso. Havia a suspeita de encontrar

artisticidade nas camadas populares, o que parecia favorecer uma afirmação

identitária. Havia a necessidade de se conhecer o Brasil, e o caminho para isso, era

o olhar para o povo.

Com isso, voltando para o cenário nacional, observo que o respeito e

valorização da produção de arte popular no Brasil é ampliado pela classe dominante.

Redobram atenção para o homem humilde e distante da aspiração brasileira de uma

cultura cosmopolita. São Paulo, por exemplo, procurou ter sua formação cultural

pautada nas, já citadas, tendências europeias. Seu espaço urbano europeizava-se,

sobretudo à feição italiana, desde os fins do século XIX, e a busca pelo exótico e

primitivo apontava para o fazer artístico do povo rural, indígena, afro-brasileiro e

nordestino. Considerado como centro cosmopolita do Brasil, São Paulo vivia

antenada com as discussões e novidades evocadas na Europa. Segundo Walter

Zanini (1983), isso fica claro no ecletismo e depois no Art-Noveau, na arquitetura e

na decoração, nos hábitos, e na própria miscigenação da língua com a profusão de

diversos idiomas em uma única cidade, devido a afluência de imigrantes

estrangeiros e, bem como, migrantes nacionais oriundos de áreas rurais e

especialmente da região nordeste, atraídos pela oferta de trabalho, pelo crescimento

industrial e urbano. A cidade adquire ares de capital. Em 1905, funda-se a

Pinacoteca do Estado, que não escaparia do espírito conservador até os anos 1960.

Quanto ao evento histórico que marca a “chegada” do Modernismo no Brasil - a

Semana de 22 -, Zanini pontua o seguinte: São Paulo era espiritualmente muito mais moderna, porém fruto necessário da economia do café e do industrialismo conseqüente [...] São Paulo estava ao mesmo tempo, pela sua atualidade comercial e sua industrialização, em contato mais espiritual e mais técnico com a atualidade do mundo. (ZANINI, 1983, p. 506)

Era natural que as ideias modernas europeias chegassem primeiro em São

Paulo, no chamado primeiro modernismo. Porém, na Bahia, assim como,

provavelmente, em boa parte do Brasil, esse ideário plástico europeu chamado de

Modernismo era gradualmente introduzido por aqueles artistas e intelectuais que

voltavam da Europa. Porém, com árduo esforço, engatinhou sob forte resistência,

encontrando duras críticas de autoridades renomadas que, assentados nas bases

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tradicionais, negavam-se a romper com os padrões clássicos da “beleza”. Mário de

Andrade já dizia:  O modernismo, no Brasil, foi uma ruptura, foi um abandono de princípios e de técnicas conseqüentes, foi uma revolta contra o que era a Inteligência nacional. É muito mais exato imaginar que o estado de guerra da Europa tivesse preparado em nós um espírito de guerra, eminentemente destruidor. E as modas que revestiram este espírito foram, de início, diretamente importadas da Europa. (ANDRADE, 1942, p.25)

Isso levou, na Bahia, mais tempo para o despertar dessas novas tendências

pictóricas, e alguns críticos interpretaram que a chegada desses movimentos teve

um certo anacronismo em relação ao Sudoeste do país, segundo Maria Helena

Flexor (2003), quando considera que:

A população diminuta, a migração de intelectuais para o Sul, a inexistência de instituições oficiais, ou oficiosas, como museus, galerias, salões, etc. ainda na década de 1940; a falta de rotas de comunicação interna e rápida com os grandes centros culturais; a falta de desenvolvimento industrial, técnico e científico foram fatores que não permitiram, de um lado, o conhecimento instantâneo do que se passava em matéria de criações artísticas novas em outros meios e, de outro, para que o Modernismo não encontrasse campo próprio e mentalidade para a sua instalação. (FLEXOR, 2003, p. 41)

Para Flexor (2003), a Bahia do início do século XX “não possuía condições

culturais e sociais para acolher novidades”. Assim, para a historiadora, os fatores

que corroboraram a hipótese de demora da chegada do Modernismo na Bahia foram

“a falta de comunicação rápida com os grandes centros culturais, de

desenvolvimento técnico, industrial e científico, aliada à não existência de museus,

galerias e estudo especializados” (FLEXOR, 2003). Estas questões dificultaram, de

maneira decisiva para a autora, a implantação e expansão das tendências modernas

da arte e sua divulgação.

Para Mota e Silva apud Coelho (1973, p. 10), outro fator foi que,

“acostumados a servir ao clero e a uma burguesia rural latifundiária, os artesãos

baianos de pintura e talha viram-se sem estímulo quando a mesma declinou”. Com

isso, segundo o autor, os pintores da Bahia prosseguiram copiando artistas do

barroco ou dos acadêmicos franceses do século XIX.

Essas afirmações, no entanto, compreensíveis pela intenção de ruptura e

transgressão do Modernismo, parecem cometer equívocos por deixarem de

contemplar a relevância que a Academia de Belas Artes e o Liceu de Artes e Ofícios

exerceram, no século XIX, na criação do campo artístico na Bahia. Hoje,

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diferentemente do período modernista, já se entende que a arte acadêmica teve sua

importância e valor histórico, social, cultural e político.

Além disso, a despeito dos argumentos supracitados, é importante sublinhar

também que a chegada do Modernismo na Bahia foi marcada pela larga propriedade

e amadurecimento artístico pictórico de seus artistas. Os quais já, muito cedo,

vinham trabalhando propostas novas na arte com uma linguagem internacional, em

direção contrária ao academicismo, que insistia em manter o modelo da arte “oficial”

baiana, fundamentado nas regras criadas no Brasil pela “Missão Artística Francesa

de 1816 e pela Academia de Belas Artes do Rio de Janeiro”. Embora essas regras

ocupassem papel de destaque no processo de desenvolvimento artístico no País,

como já citado, “para os modernistas, elas continuavam a imitar os padrões de

Paris” (COELHO, 1973). Considerar atrasada a implantação do Modernismo na

Bahia seria injusto para uma sociedade que dispõe de tempos, fases e

amadurecimentos próprios e peculiares, inerentes às suas particulares

transformações política, social e econômica.

Destarte, mesmo tendo sua consolidação firmada apenas em 1948, após

duros embates com conservadores a partir da exposição de 194427, o Modernismo

baiano apresentava traços de consistente assimilação do movimento modernista,

quando é inaugurada, pela segunda vez na Biblioteca Pública do Estado, uma

mostra, a “Exposição de Arte Contemporânea”, promovida pelo Secretário de

Educação e Saúde da época, Anísio Teixeira e pelo então governador do Estado,

Otávio Mangabeira, sob curadoria do escritor carioca Marques Rebelo. Esse período

de implementação do pensamento e percepção modernos na Bahia tem o que os

historiadores chamam de “primeira geração” dos artistas modernos.

Para Jorge Amado (1983), três artistas são considerados como os pioneiros

desse movimento nas artes plásticas baianas: Genaro de Carvalho, Mário Cravo Jr.

e Carlos Bastos. Carybé chega depois para reforçar essa linha de frente. Surge,

assim, o que muitos consideram como a primeira geração modernista da Bahia,

                                                                                                               27 A primeira exposição moderna é uma mostra coletiva realizada na Biblioteca Pública, no dia 5 de agosto de 1944. Participam artistas conhecidos em todo país como Lazar Segall, Manoel Martins, Noemia, Di Cavalcanti, Santa Rosa, Osvaldo Goeldi, Hélio Feijó, Augusto Rodrigues, Pancetti, Scliar, Osvaldo de Andrade Filho, Valter Lewy e Takaoka. A referida mostra sofre duras críticas e severos discursos depreciativos de escritores respeitados da época, e culminam, dois meses depois, em uma exposição revanchista sob a curadoria do escritor e dono do jornal O Imparcial Wilson Lins, com o título Exposição Ultramoderna inaugurada em 14 de outubro de 1944, no Salão Azul do Palace Hotel, na rua Chile. Com o poder da mídia, esse grupo ridiculariza e zomba da arte dos artistas modernista. (SCALDAFERRI, 1998)

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integrada por nomes ilustres, além dos quatro supracitados, como Jenner Augusto,

Agnaldo, Raimundo de Oliveira, Rubem Valentim, Mirabeau Sampaio, Maria Célia e

Antônio Rebouças. Jorge Amado completa a lista, destacando Pierre Verger, que

“descobre João Alves, engraxate”, Willys, Cardoso e Silva e Pedroso (AMADO,

1983, 51). Estes quatro últimos, apesar de serem autodidatas e não pertencerem a

nenhuma escola de arte, foram incluídos no seleto grupo.

Na década de 1950, a Arte Moderna na Bahia deu um salto de largas

proporções. Além de diversas exposições individuais, os artistas baianos

promoveram coletivas como “Artistas Modernos da Bahia”; “1ª Exposição de Arte

Popular”; “Retrospectiva da Pintura no Brasil”; “Um Século de Pintura Brasileira” e o

“IV Salão baiano de Belas Artes”. (SCALDAFERRI, 1998)

É justamente a partir do final dessa década(1950/60) que surge uma

“segunda geração” de artistas baianos modernos, composta por Glauber Rocha,

Fernando da Rocha Peres, José Júlio de Calasans Neto, Paulo Gil de Andrade

Soares, Sante Scaldaferri, Frederico de Souza Castro, Carlos Anísio Melhor,

Florisvaldo Mattos, João Carlos Teixeira Gomes, João Eurico Matta, Nemésio Salles,

Raymundo Amado, Sylvio Pinheiro, Silva Diltra, Julia Conceição, Lina Gadelha, José

Turisco, Antônio Guerra Lima, Ângelo Roberto, David Salles, Rex Schindler, Luiz

Pulino, Robero Pires e Fernando Rocha, entre outros.

A assimilação das vanguardas europeias, na Bahia, assim como em todo o

país, buscou também, como já citado, a investigação de valores autóctones

indígenas e de cultura negra, dialogando com os movimentos modernos europeus.

Esses valores eram encontrados na raiz popular28 e reinterpretados pelos artistas

profissionais. No sentido “antropofágico”, era a devoração cultural das técnicas

importadas para a reelaboração, com autonomia, na conversão em produto de

exportação. Pelo menos a conhecida “primeira geração” de modernistas baianos

mergulhou com profundidade neste ideário.

                                                                                                               28   Para Renato Ortiz (1992), apesar de inúmeras divergências em torno do termo popular, existem duas vertentes sobre o tema que o avaliam bem, uma com a perspectiva de que os grupos populares têm cultura própria, completamente oposta a da elite, na outra, popular é considerado sinônimo de povo, em uma análise mais abrangente. Já Néstor García Canclini (1982) vai mais adiante e, tratando da análise sobre a produção artística popular, considera fruto de relações sociais, troca, e interferência da recepção nas obras e não meramente originado do povo: “Nenhum objeto tem o seu caráter popular garantido para sempre porque foi produzido pelo povo ou porque esse o consome com avidez; o sentido e o valor populares vão sendo conquistados nas relações sociais. É o uso e não a origem, a posição e a capacidade de suscitar práticas ou representações populares, que confere essa identidade”. (CANCLINI, 1982, p. 135)

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Resumindo, os modernistas buscavam uma “emoção estética”29 e

encontraram nas expressões culturais de origem popular, mediante os

comportamentos, idiossincrasias, políticas e gostos visuais, uma fonte de pesquisa

plástica.

3.2 O POPULAR NA ARTE MODERNA

[arte popular] é o elemento simbólico que permite aos intelectuais tomar consciência e expressar a situação periférica que seus países vivenciam.  

Renato Ortiz

O interesse dos primeiros modernistas do Brasil pela cultura e arte populares,

sobretudo para a contribuição da construção de uma “identidade brasileira”, é o

grande exemplo de que a estética do povo30, do homem “simples” e seus fazeres,

despertava os olhares de uma nova arte balizada nas questões identitárias. De fato,

esta visão de ingenuidade, romantismo e espontaneidade, na idealização da

natureza do humilde, trata-se de uma folclorização da cultura popular, onde está, de

certa maneira, implícita uma relação de poder na desqualificação indireta do fazer

artístico do dominado.

Fazia-se necessário transfigurar a produção do povo sob forte apelo de

reafirmação da construção da identidade brasileira, na visão dos intelectuais. O

artesanato, a arte popular, os quadros chamados de primitivos e tantas outras

expressões artísticas,   por vezes nomeadas, preconceituosamente, como “arte

menor” ou “não arte” foram devidamente reconhecidas como obras de arte, por

aqueles que presumiam ter o poder legitimador de eleger o que era e o que não era                                                                                                                29 O termo emoção estética foi cunhado e propagado pelo crítico e filósofo inglês Clive Bell para balizar sua teoria essencialista clássica da arte. (CARROLL, 2010) O assunto será melhor explorado no capítulo seguinte  30  Segundo Mouralis (1982, p.132), após a revolução industrial, duas modalidades essenciais definem o povo, “o seu lugar e a sua função no interior do sistema econômico” e, no plano literário, a partir do século XIX, passa a se resolver como classe, e não mais através dos planos estéticos, morais, religiosos ou filosóficos. Assim, com a consolidação das sociedades de classes economicamente definidas, alguns intelectuais marxistas denominam por povo o proletariado. E os termos popular e povo são compreendidos como camponeses, gente “simples”, gente modesta e maioria subalterna. Embora este entendimento perdure até os dias atuais, nas mentes de alguns poucos pensadores, salienta-se que a arte popular não se restringe a determinada classe social, mas se estende a outros segmentos, em menor grau, porém, de natureza semelhante. A ideia concebida aqui é de não estabelecer limites aos processos criativos populares, seja por fatores econômicos, sociais, físicos ou biológicos, mas sim observar o fenômeno de sua transposição nas variadas faces da sociedade, e analisar o seu papel na constituição de identidades culturais, como sinaliza Renato Ortiz (1992), quando sugere a “cultura popular como elemento de extrema importância para a formação da identidade nacional”.

 

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arte. Como se esse gênero artístico dependesse de um parecer oficial para se

constituir como tal.

Sendo assim, houve uma relação dialógica entre a arte modernista e a arte

popular no Brasil, no sentido de uma construção identitária. Houve uma união de tais

linguagens artísticas para esse fim. Na Bahia, muitos artistas profissionais se

apropriaram dessas expressões culturais, como Carybé (1911-1997) e a

religiosidade afro-brasileira – o Candomblé, no uso de materiais oriundos dos ritos

como metais, roupas de capim e tecidos; Rubem Valentim (1922-1991) e Emanoel

Araújo (1940), com as simbologias e instrumentos dos orixás; Sante Scaldaferri

(1928), com os ex-votos sertanejos, dentre outros artistas. Fora da Bahia, em meio a

vários exemplos, destaca-se o fluminense Alberto da Veiga Guignard (1896-1962),

que foi bastante influenciado pela arte popular das Minas Gerais e passou a

simplificar a perspectiva e estimular o olhar ingênuo sobre os objetos. A artista

carioca Djanira Mota e Silva (1914-1979) também pode ser citada pela sua pintura

de festas populares, procissões e orixás, com cores chapadas e simplificação da

perspectiva. (TIRAPELI, 2006, p. 50)

É precisamente na arte popular que muitos artistas irão balizar seu trabalho.

Essa busca faz com que seu olhar volte-se para expressões consideradas puras,

encontradas em pinturas desenvolvidas por pessoas do povo, sem estudo das

convenções artísticas e, concomitantemente, desprovidas de reconhecimento

acadêmico. Porém, com expressivo valor pictórico, pela espontaneidade,

inventividade e significados culturais fortemente representados. Estas obras são

classificadas, na História da Arte, como arte primitiva. E, geralmente, caracterizam-

se pelo autodidatismo, por técnicas rudimentares adquiridas de modo empírico, pela

expressividade e liberdade formal (ausência de “aspectos acadêmicos”, como

composição, perspectiva linear e respeito às cores “reais”).

A obra de João Alves, objeto de estudo desta dissertação, faz parte desse

gênero artístico que sofre sérias conotações preconceituosas, perigosas e de

relações de poder. Mas por que o uso dessa classificação? De onde surgiu? Qual o

seu valor para a História da Arte? Quais as ideias por trás da expressão? Quais os

interesses de quem a utiliza? É mesmo adequada para o gênero de pintura do

artista em questão? Ainda é aplicada nos dias de hoje? E, devemos insistir na

utilização do termo primitivo? Estas perguntas e outras tantas receberão um

tratamento especial a seguir, no intuito de compreender sua origem, e desmitificar

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seu emprego, bem como sugerir que seja repensada sua localização e utilização no

âmbito artístico, no período atual.

  3.3 O PRIMITIVO: O TERMO E SUAS CONOTAÇÕES NA HISTÓRIA DA ARTE

O primitivo é um problema moderno, uma crise na identidade cultural

Hal Foster

Conforme já mencionei, a pintura executada por João Alves foi classificada

por críticos, intelectuais e artistas modernos de sua época como primitiva. Por esta

razão, é necessário fazer uma análise histórica do discurso social e artisticamente

construído ao longo dos anos.

O termo primitivo é polissêmico e multirreferencial. A início, parece tratar de

expressões pictóricas encontradas em grutas, por antropólogos, datando do período

Paleolítico ou Neolítico, por exemplo. Depois, se levantarmos relações com a ciência

moderna, sobretudo a darwinista, poderemos entender o primitivo como tudo aquilo

que carece de evolução, ou seja, algo que ainda não obteve total desenvolvimento.

Este conceito propõe a observação das obras oriundas de regiões colonizadas pelos

europeus, como as indígenas, tribais e as não ocidentais como mais simples e

inferiores em relação àquelas produzidas nos países tidos como civilizados.

Agora veja o que dois dos maiores dicionários brasileiros de língua

portuguesa dizem significar a palavra primitivo: Primitivo [Do lat. Primitivu.] Adj. 1. De primeira origem; original, inicial, inaugural: os tempos primitivos. 2. Dos primeiros tempos; primordial, primeiro: povos primitivos. 3. Que não é derivado; básico, primário. 4. V. Primigênio. 5. Diz-se de um organismo, órgão, etc., em começo de evolução, ou muito pouco diferenciado de seus antepassados mais remotos. 6. P. Ext. Simples; áspero, rude: É uma alma primitiva: Usa métodos primitivos para alcançar seus fins. 7. Antrop. Obsol. Relativo aos povos não letrados, que vivem em sociedades ger. caracterizadas como de escola menor, organização social menos complexa e nível tecnológico menos desenvolvido do que as sociedades ditas civilizadas, e vistos pelos evolucionismo social (q.v.) como representantes de um estado social e mental supostamente mais próximo da condição original, natural, da humanidade, ou dela sobreviventes. 8. Art. Plást. Num conceito que data do romantismo, diz-se da arte (pintura e escultura) própria dos séculos que precederam imediatamente a eclosão do Renascimento. 9. Diz-se do artista do final da Idade Média cujos valores clássicos se prendem à mensagem do cristianismo e que, como os primitivos italianos aliam a pureza da inspiração ao despojamento técnico. 10. V. Naïf (2). 11. E. Ling. Diz-se da palavra que não resulta de processo de formação vocabular: pedra, mesa. 12. E. Ling. Diz-se dos tempos verbais que servem para formar outros. São: o presente do infinitivo e o pretérito perfeito. ~ V. artéria carótida – a, corpo -, dado -, fosseta –a, intestino -, linha –a, nó -, povos primitivos, saco vitelino -, sociedades primitivas, vesículas encefálicas primitivas, vesícula vitelina –a e vesícula vitelínica –a. • S.m. 13. Aquilo ou aquele que é primitivo (acepç. 1 a 6). 14. Antrop. Obsol. Indivíduo de povo

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considerado portador de características (mentais, psicológicas, intelectuais, afetivas, etc.) de estágios menos desenvolvidos da humanidade, [Atualmente, o emprego do termo nas acepçs. 7 e 14 é, ger., evitando pelos antropólogos, por ser considerado cientificamente errôneo e decorrente de pressupostos ocidentais etnocêntricos.] 15. Art. Plást. Artista primitivo (9)... (FERREIRA, 1999)

***

Primitivo adj. (sXV) 1 que é o primeiro a existir; que coincide com a origem de algo; inicial, primevo, original <restaurar as cores p. de um quadro> 2 contemporâneo dos primeiros tempos de uma civilização; antigo, ancestral, remoto <ruínas p.> <cristianismo p.> 3 diz-se de organismo pouco diferenciado de seus ancestrais originais 4 que não evoluiu, não se aperfeiçoou; antiquado, arcaico, atrasado < método p. de arar a terra> <povo p.> 5 fig. Sem técnica ou arte; rude, simples, tosco, rudimentar <vestimenta p.> <costumes p.> 6 sem instrução ou refinamento; bronco, ignorante, obtuso, desajeitado <a gente dos grotões é muito p.> 7 fig. Impulsivo, bárbaro, brutal, institivo 8 que não é derivado; básico, primário <palavra p.> <conceito p.> • adj.s.m. HIST. ART. 9 diz-se de ou pintor ou escultor que precedeu os mestres da Renascença 10 diz-se de ou aquele que é adepto do primitivismo; primitivista...(HOUAISS, 2009)

Lendo os diversos significados de primitivo acima, nos dicionários Aurélio e

Houaiss, respectivamente, dá para perceber a profusão de conceitos e o complexo

emprego do termo na arte de pintores autodidatas como João Alves. O desconforto

conceitual levou-me à investigação do termo, em seu aspecto artístico, histórico e

social, uma vez que a intenção da pesquisa, além de contribuir com a construção da

historiografia da arte baiana, é ter o comprometimento de identificar valores

simbólicos e artísticos da obra de João Alves, valorando o seu processo artístico,

relacionando-o ao movimento de sua época, no caso o modernismo no Estado, e

destacando sua participação e contribuição para as artes plásticas na Bahia, além

de sua condição social, cultural, política e econômica. Com isso, foi relevante

envidar esforços na busca bibliográfica para esse assunto que, apesar de sua

importância, é pouco discutido no Brasil. Sugiro, portanto, repensar a expressão com

mais cuidado, com a preocupação de evitar reducionismos e deméritos de

determinados capítulos da História da Arte, que parecem ter sido negligenciados por

um olhar ocidental estritamente eurocêntrico. Segue assim um sumário do apanhado

histórico, que deve servir para nos situar na esfera dos conceitos da arte moderna e

assegurar um melhor arcabouço teórico que possibilite uma embasada discussão

sobre o tema.

Nas artes, até meados do século XIX, o termo primitivo é empregado, como

se sabe, sem a conotação de carência de evolução. Remete, conforme trecho de

dicionário supracitado e segundo Gil Perry (1998, p. 5), às obras italianas e

flamengas dos séculos XIV e XV, que antecederam o Renascimento, no sentido de

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anterioridade, ou começo, ou princípio de um despertar artístico que revolucionaria o

mundo das artes ocidentais nos séculos posteriores.

A obra de Jan van Eyck (figura 18) do século XV é considerada um clássico

exemplo de uma arte primitiva desse período.

Figura 18 - Jan van Eyck Retrato de um homem de turbante 15.5 × 19 cm – 1433 (século XV) National Gallery

Somente no final do século XIX o termo sofre uma mudança conceitual,

quando passa a ser empregado para se referir “às antigas culturas egípcia, persa,

indiana, javanesa, peruana e japonesa”, aos produtos de sociedades vistas como

“mais próximas da natureza” e à arte “tribal” da África e da Oceania.

Com este mesmo viés, na transição para o século seguinte, o significado

atribuído ao primitivo propõe a observação das obras provenientes de regiões

colonizadas pelos países europeus como mais simples e inferiores em relação

àquelas dos países colonizadores. “Desde então, a noção de primitivo serve para

expressar uma relação e uma subordinação” (ANDRIOLO, 2006, p.3).

É neste mesmo caminho que alguns estudiosos ocidentais preferem seguir no

século XX. Com um viés etnológico, toda produção artística que não fazia parte do

desenvolvimento artístico ocidental, distante da cultura eurocêntrica, é chamada de

Figura 19 – Figura rupestre na caverna Las Monedas, Santander, Espanha. Período Pleistonceno. Fonte Bihalji-Merin, 1978, p. 17

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primitiva. Continua a nutrir, então, o entendimento de incivilizado através de

aspectos de simplicidade, ingenuidade, inexperiência, inobservância dos padrões

eruditos como atributos indispensáveis para o que passam a identificar de arte

primitiva. Neste enfoque, o primitivo, especificamente nas artes plásticas, passa a

ser compreendido como um conjunto que abarca desde a arte das crianças, dos

doentes mentais, a arte popular, a naïf e folclórica, até a arte da pré-história (figura

19). Com abrangência também da arte “advinda de fora da Europa”, como a da

“América pré-colombiana, a indígena, a dos habitantes das ilhas do Pacífico” e a

africana.31

Esta última, chamada de “negra” pelo etnólogo Arthur Ramos, é o mais

característico exemplo da chamada arte primitiva, já catalogada pelos europeus,

segundo Ramos (2010). O mesmo entende a complexidade do termo e cita o

antropólogo Leonhard Adam para tentar elucidar a compreensão do abstruso

assunto: Na realidade, é hoje extremamente difícil definir o que seja propriamente primitivo, e essa discussão vem desde os antropólogos do século passado, com Andrew Lang. Podemos dizer, da mesma forma como Leonhard Adam, que: ‘arte primitiva não é mais do que um termo geral que engloba toda uma variedade de fenômenos históricos, produtos de diferentes raças, mentalidades, temperamentos, sucessos históricos e influências do meio’. (RAMOS, 2010, p.247)

O termo arte primitiva remete, assim, às produções primeiras, rudimentares e

iniciais, com soluções formais rústicas, com certo sistema de ordenamento arcaico.

Refere-se, portanto, a um pensamento reducionista de obras carregadas de

significados e valores plásticos e estéticos, (no entendimento pseudodarwinista)

como se carecessem de evolução técnica e artística, por se tratarem de trabalhos

originados de “povos atrasados”. Destarte, reitero que há sérios problemas no

emprego do referido termo, sobretudo na história das artes plásticas, assim como na

insistência dessa concepção classificatória. Todas essas conotações geradas pelo

termo mantêm uma estrutura velada de sujeição e dominação em uma teia tênue de

relação de poder. Só para citar um exemplo de como, atualmente, se tem pensado o

tema, trago o crítico Francisco Oiticica Filho, que, em seu livro Enfim, Primitivos, de

1999, salienta que só recentemente os estudos sobre o assunto têm sofrido cotejos

                                                                                                               31Disponível em:  <http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/index.cfm?fuseaction=termos_texto&cd_verbete=3183  >. Acesso em 30 out. 2012.  

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críticos e têm abordado as questões do primitivo “não como um dado, mas como um

problema”: De fato, a freqüente distinção entre artes tribais da África, Oceania e América, que faz a etnografia ocidental, e sua apropriação estética, são inseparáveis da história brutal de conquista e exploração colonialistas. Apesar do tratamento esteticista dado ao primitivismo, e da energia cultural liberada, o julgo sob o qual se deu este fenômeno permaneceu sem dúvida como um componente intrínseco de uma longa história de intromissão. (FILHO, 1999, p.18)

Oiticica Filho classifica como “intromissão” o comportamento ocidental na

exploração dos artefatos não ocidentais e na estetização do primitivo. Em

contrapartida destaca essa “intromissão” como fator relevante para colocar na vitrine

ocidental a imensa e rica produção artística de povos fora da Europa. Se, por um

lado, a arte moderna beneficiou-se da arte não europeia, explorando seus valores

simbólicos e estéticos, por outro lado, para o autor, esta última tem a “dívida” de sua

projeção e sua inserção na História. Se é que essa arte necessitasse de alguma

projeção, mas este assunto será abordado mais adiante. Agora, se faz necessário

um mergulho na História da Arte, no intuito de entender como a expressão arte

primitiva foi aceita e, quase unanimemente, utilizada sem qualquer restrição por

artistas e intelectuais desde fins do século XIX até meados do XX, em detrimento à

rejeição terminológica de estudos antropológicos e sociológicos.

Portanto, deixando um pouco de lado o sentido do termo que corresponde às

obras produzidas na América pré-colombiana, às indígenas, às dos habitantes das

ilhas do Pacífico e às africanas, concentrarei-me, a princípio, no entendimento

engendrado no início do século XX sobre a categoria exclusiva das pinturas

primitivas32, que recebem associações, por demais exploradas, de teóricos, ao se

debruçarem sobre o tema, das quais ressalto algumas que considero essenciais

pelas aproximações com o movimento modernista ocidental, são elas: as pinturas

naïfs, de crianças e pessoas emocionalmente perturbadas. Com isso, devo envidar                                                                                                                32 Aqui no Brasil, Clarival do Prado Valladares elencou atributos que depõe sua compreensão sobre a pintura primitiva, o texto com mais detalhes encontra-se no livro Paisagem Rediviva, de 1962, e cito algumas características que ele elaborou por identificar valores históricos. Segundo Valladares, a pintura primitiva é reconhecida porque:

“– baseia-se no desenho descritivo enfático dos detalhes e objetos implícitos à intenção temática. – resolve-se em bidimensionalidade. – seus valores cromáticos são puros para cada superfície definida (a fôlha é verde, a casa é amarela, a telha é vermelha, etc.), desconhecendo e evitando o uso de tons diversos. – não existe paleta, como meio de se obter efeitos pluritonais, porém apenas como recurso de se preparar uma superfície plana, monotonal. – repele a atmosfera física, conseguindo entretanto estabelecer uma outra de qualidade pictórica, mesmo em exemplos de acentuado rudimentarismo”. (VALLADARES, 1962, p. 238)  

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esforços, a partir daqui, em observar apenas aspectos do gênero da pintura

primitiva, e não mais dos variados objetos e artefatos não ocidentais de culturas

distantes da Europa.

   3.3.1 A pintura primitiva

Amo a Bretanha. Aqui encontro algo selvagem, primitivo. Quando meus tamancos ecoam nesse chão de granito, ouço a nota surda, abafada, potente que estou buscando na pintura.

Paul Gauguin

Para iniciar o desdobramento histórico da pintura denominada primitiva, cito

um dos mais relevantes teóricos deste gênero de arte em sua época, pelo seu

extenso trabalho, que contribuiu para a ampliação da discussão do assunto nos

circuitos modernos, o sérvio Oto Bihalji-Merin (1904-1993).

Em seu célebre livro El arte naïf, de 1978, Bihalji-Merin, mantendo o discurso

conservador evolutivo do termo “primitivo”, descreve seu olhar sobre este tipo de

pintura como uma arte que esteve fora da história e do estilo contados nos livros de

História da Arte, ou seja, à margem do interesse historiográfico ocidental das artes.

Esta observação encontra eco no trabalho da antropóloga americana Sally Price,

que, para expressar essa ausência e esse anacronismo históricos, utiliza o termo

“presente etnográfico” para designar o tempo, através de um reducionismo, juntando

passado e presente em uma só ideia. Ela trata, em seu livro Arte primitiva em

centros civilizados, de obras produzidas em sociedades incivilizadas, onde o

anonimato era outra premissa dessa categoria e, por isso, destaca o olhar

eurocêntrico que restringe essas obras a uma coletividade comum a eras de um

mesmo povo. A antropóloga considera uma prática que “isola a expressão cultural

do fluxo do tempo histórico”, fazendo com que indivíduos e gerações inteiras sejam

reduzidos a “uma personagem composta que supostamente representa seus

semelhantes do passado e do presente” (PRICE, 2000, p. 88). Com esse mesmo

teor problemático, volto à abordagem de Oto Bihalji, o qual, com olhar eurocêntrico,

chama atenção para a ausência de registros da arte primitiva na História da Arte,

reiterando o seu afastamento das propostas de investigação e desenvolvimento

artístico tão valorizadas pela sociedade ocidental, segundo o modelo europeu. Com

isso, para Bihalji, essas obras chamadas de primitivas – que o autor se refere a

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produções de crianças, doentes mentais e pintores naïfs - estavam fora da história e

do estilo europeu de fazer arte. Toda inclinación hacia lo primitivo y lo arcaico fue un proceso consciente en aquellos artistas que se resistían al virtuosismo inanimado y a la perfección tecnicista de la civilización. El arte del niño, del enfermo mental y de los pintores naïfs se encuentra fuera de este círculo de evolución histórica. (BIHALJI-MERIN, 1978, p. 16)

Oto Bihalji tem uma visão evolucionista da arte, por isso classifica a arte

primitiva como expressões artísticas de pessoas alheias a uma suposta evolução

ocidental da arte e a ordena em três aspectos: a pintura naïf – subdividida em

autodidatas profissionais, limners, camponeses, aficionados e não aficionados–; a

pintura infantil; e a pintura dos doentes mentais. Bihalji (1978) destaca o interesse de

artistas do circuito oficial por estas manifestações estilísticas, pelo seu

distanciamento das convenções e técnicas da civilização europeia. O autor

corrobora essa ideia, quando salienta a amplitude conceitual da expressão primitivo

e suas associações com as artes de crianças, doentes mentais e povos estranhos

ao europeu. Sally Price aborda criticamente, sob um prisma antropológico, a

aplicabilidade peculiarmente elástica ou multirreferencial do termo primitivo,

incentivando a associação conceitual de “instintos primitivos” em crianças, seres

humanos da Idade da Pedra, indivíduos com doenças mentais ou perturbações

emocionais, e em povos contemporâneos que não tenham sido “civilizados” no

sentido especificamente ocidental do termo. (PRICE, 2000, p. 76)

Seguindo a linha conceitual de Oto Bihalji-Merin (1978), mesmo que

conservadora do termo primitivo, pretendo analisar suas associações, no intuito de

entender o pensamento e discurso eruditos ocidentais daquela época sobre a

pintura primitiva e sua relação com a então emergente arte moderna.

Primeiro, discutirei a classificação de naïf como parte constituinte de um todo:

pintura primitiva. Destarte, é bom salientar que não é do interesse desta pesquisa o

aprofundamento e o desdobramento teóricos do tema naïf, tampouco tratá-lo como

sinônimo do primitivo. Apenas devo levantar uma discreta abordagem sob o olhar de

Bihalji-Merin a cerca do naïf. Enfim, seguem essas considerações:

Segundo Oto Bihalji-Merin, na Europa havia, no século XIX, os aficionados,

também chamados de dilettanti ou artistas diletos, que pintavam com meios

inadequados e pouca habilidade, pintavam por hobby, sob forte influência dos estilos

oficiais. Na contramão, havia também os pintores autodidatas profissionais, mais

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tarde denominados de naïfs – do francês, ingênuos -, que se achavam à margem do

desenvolvimento histórico e cultural, não imitavam a arte oficial, e pintavam o mundo

como o viam e o sentiam, de maneira particular (BIHALJI-MERIN, 1978, p. 71).

Na América do Norte, a diferença entre o dilettanti e o naïf era mínima. Oto

Bihalji (1978) destaca que o primeiro pintava para decorar suas habitações,

enquanto o outro recebia encomenda e vivia da arte, pintando, geralmente, a gosto

do cliente. Estes pintores, no século XVII, eram chamados de limners, pelo fato de

serem responsáveis por colorir velhos manuscritos, chamados de iluminuras

(BIHALJI-MERIN, 1978, p 71 e 72). Somente no século XIX, como já foi dito, são

conhecidos por naïfs, devido à influência terminológica francesa, cunhada para

designar a pintura do então famoso autodidata Henri Rousseau (1844-1910),

importante nome desse gênero de arte e ícone da pintura “ingênua”. (figura 20)

Embora o entendimento de arte naïf no atual texto seja de subdivisão da arte

primitiva, aqui na Bahia, especificamente em Salvador, alguns pintores tradicionais

do Pelourinho, sem estudo acadêmico, fazem observações antagônicas das pinturas

naïf e primitiva. Erroneamente, alguns historiadores as tomam como sinônimas, sem

engendrar os devidos contrapontos, mas para esses pintores, há diferenças

pictóricas pontuais que eles próprios convencionam. Em entrevistas com três artistas

de rua, no Centro Histórico da cidade, ficou clara a defesa dessas diferenças entre

Figura 20 - Henri Rousseau, The Sleeping Gypsy (O sono do cigano), 1897. Fonte: Bihalji-Merin, 1978, p.11    

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os dois estilos autodidatas, quando foi perguntado acerca das suas principais

características. Seguem algumas dessas declarações:

“Eu sou primitivista, sou diferente do naif. O naif é imaginação”. (Nery33, 2010) “Naif é a técnica, naif não é o Pelourinho, naif é a técnica”. “O naif é uma pintura alegre, é uma pintura limpa, colorida. Não tem sombra e luz, é tudo chapado”. “Você pode encontrar numa pintura primitiva ou naif”. (Sá34, 2010) “A minha arte é naïf porque tem técnica. Já o primitivo é solto, não tem regra, ele é primitivo, é como foi a primeira vez, o cara foi pintando e o que saiu, saiu. Não tem compromisso com perspectiva, com ângulo”... “O cara pode sair da Escola de Belas Artes e fazer naïf, mas ele não consegue fazer primitivo”. (Armando35, 2010)

Para eles, a pintura naïf segue regras técnicas pré-convencionadas, enquanto

que a primitiva é solta e livre de qualquer padronização plástica, como disse Seu

Armando. Compreendendo essas diferenças como conceitos e padrões

estabelecidos pelos próprios artistas populares, identifico que a pintura que sustenta

a ideia de “ingênua”, pouca coisa tem deste adjetivo, uma vez que, se enquadrada

em regras próprias e não acadêmicas ou oficiais, convencionadas por eles mesmos

e os norteiam na identificação do que é naïf ou primitivo.

Como foi demonstrado a início, o interesse do atual texto é para com o termo

primitivo, e no atual contexto, para a pintura primitiva. Por isso, deter-se

exclusivamente em apenas uma de suas subdivisões seria limitar a discussão e

deixar de problematizar seu emprego. Destarte, é relevante voltar o olhar para

outros sentidos da palavra em questão. Para isso, cito outro livro emblemático sobre

o assunto, Modern primitives, com primeira edição em 1975 e reimpressão em 1978,

também de Oto Bihalji-Merin, o qual chama a atenção para duas manifestações

artísticas, dentro de seu entendimento de pintura primitiva, que estiveram distantes

do desenvolvimento histórico e estilístico ocidental: a arte das crianças e a dos

doentes mentais. Ambas, como toda a arte primitiva, influenciaram a arte moderna

para, segundo o autor, a saída do “esgotamento” plástico e expressivo da arte

ocidental, assunto que aprofundarei mais tarde. Foi basicamente desta fonte que os

artistas modernos passaram a beber e ressignificar seus trabalhos.

                                                                                                               33  Nery, 1955 – artista primitivista, também se considera impressionista  34  Yrakitan Sá, 1953 – artista naïf  35  Seu Armando, 1938 – artista naïf  

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Mesmo identificando alguns exageros36, devo pontuar aqui o entendimento

dos pintores daquela época, os quais reproduziam a ideia, segundo Bihalji-Merin, de

que a arte das crianças era desprovida de conhecimento lógico e dos limites

convencionalmente relacionais entre homem e objeto, isso atraiu os artistas

modernos. Mantém-se, então, a ideia de algo inicial primordial e rudimentar da arte,

portanto “primitivo”. Observa-se a utilização de um processo de ordenamento

arcaico das figuras, onde noções de proporção como grande e pequeno, largo e

estreito, exterior e interior irão seduzir e sugerir certa tendência no gosto dos artistas

modernos. Para alguns destes, a arte de crianças como seres que, de fato, não

desenvolveram ainda uma linguagem escrita, vale-se de signos apreendidos pelo

olhar, sendo representados à sua própria maneira. Wassily Kandinsky (1986-1944)

foi um dos pintores modernos que mais se interessou por essa proposta, segundo

Oto Bihalji(1978), e estudou a arte das crianças a fundo em sua obra:

Kandinsky, in his essay on the question of form (Der blaue Reiter, 1912), insist that the practical and effectual are quise foreign to the child, that he views every object with a fresh eye and still enjoys the unspoiled capacity to perceive the thing in itself. As though with X-ray eyes, the child sees through walls and clothing, through all artificial barriers, and depicts what lives and breathes behind them. In the process, he alters proportions to bring things into his own scale, as thougn employing quite archaic distinctios between latge and small, exterior and interior. Out of play and emotion he constructs his miraculous world; but when play and emotion cease, his artistry vanishes. (BIHALJI-MERIN, 1978, p. 21)

Outro artista a se debruçar nos estudos de garatujas infantis foi Paul Klee

(1879-1940). O artista que lecionara na famosa escola de arquitetura, arte e design,

Bauhaus, junto com o já citado Kandinsky, experimentava os tons e pigmentos, em

um estudo sobre a teoria das cores, sob forte influência das tensões tonais desses

desenhos e pinturas de crianças, classificados nesta abordagem como uma das

subclasses da arte primitiva (Figura 21).

                                                                                                               36 Estudos mais aprofundados sobre o desenvolvimento da criança que não reflete o parecer romantizado dos artistas modernos, podem ser encontrados nas pesquisas de Piaget, Wallon, Vigotsky e Gardner e mais especificamente, sobre grafismo infantil, as de Luquet, Meridieu, Arnheim, Marjorie e Brent Wilson, entre outros.  

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Já a arte produzida por doentes mentais, mais tarde denominada de arte

bruta por Jean Dubuffet (1901-1985), é outro aspecto apontado por Oto Bihalji-Merin

(1978) da arte primitiva. Assim como o tema das pinturas infantis, esse assunto

também necessitaria, pela complexidade do tema, de maior discussão científica,

problematizações pertinentes e suficientes para outro trabalho de dissertação.

Comparando com a pintura “ingênua”, o autor cita o doutor L. Gans, que destaca

uma diferença básica entre as pinturas naïf e as dos enfermos, quando afirma que

“os doentes pintam as imagens que estão dentro de si”, em seu interior, em sua

mente, geralmente “formas distorcidas, enquanto o artista naïf tem a livre escolha de

seus motivos para a sua arte” (BIHALJI-MERIN, 1978, p. 24). (Figuras 22 e 23)

Com isso, Bihalji (1978) chama a atenção para o interesse dos artistas pela

busca de sua subjetividade, seu interior, seu inconsciente, seu mundo distorcido,

seus terrores e pesadelos, uma procura pela arte dentro de si mesmo, o que revela

um diálogo de afinidades com a produção de doentes mentais:

He makes use of the language of the absurd and fantastic in order to portray the nightmares and hallucinations that oppress him; visions of terror, insecurity, and isolation thus find expression. Hell is no longer a distant threat remote from earthly existence; it is all too present in our world. The

Figura 21 - Children feeding the birds(Crianças alimentando os pássaros). Aquarela de Savica Kocovic, entre 7 e 8 anos de idade, Isidora Sekulic Grammar School, Belgrade. Fonte: Bihalji-Merin, 1978, p.29    

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disruption of the relationship of man to his surroundings, once a characteristic of mental illness, has nearly become a standard ingredient of tue modern sense of life. As such it finds expression in images of a decomposed and transposed world, as ours has come to be represented in modern art. (BIHALJI-MERIN, 1978, p. 24)

Também para Maria Alexandra S. Quintas (2009), havia uma valorização ao

desprendimento de uma pintura solta e liberta de regras acadêmica, pelos artistas

modernos, que os deixava curiosos com essas produções. As colecções e o interesse pela Arte Bruta disponibilizariam outro dos filões que viria a interessar alguns dos artistas contemporâneos, num regresso a uma espontaneidade e uma considerável força expressiva. O desenho na sua vertente infantil, potenciadora de uma saudável “desaprendizagem” de um academismo,- porventura carente de frescura criativa, - interessou numerosos artistas como o próprio pintor Paul Klee. (QUINTAS, 2009, p.250)

Esse interesse moderno amplia-se na construção do discurso da arte da

virada do século XIX para o XX. Passou a se tornar comum esse despertar para a

expressão artística carregada de sugestões puras, com novas propostas

composicionais e pictóricas. Assim, é forçoso notar que o “primitivismo37 artístico”

                                                                                                               37  Segundo Gil Perry, o termo primitivismo é usado geralmente, para referir-se aos discursos sobre o primitivo. Ou seja, é derivado ou relativo ao termo, o ato de produzir uma arte, de maneira intencional, que adquira qualidades, características e aspectos pontuados como primitivos é chamada de primitivismo.

Figura 23 - César, desenho de um paciente chamado Aloyse, 1948. Fonte: Bihalji-Merin, 1978, p.29    

Figura 22 - Female Figure (Figura feminina) Desenho com giz, de um paciente chamado Hans, 1960. Fonte: Bihalji-Merin, 1978, p.30    

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abrigou o mito do “artista marginal”, desenvolvendo uma série de representações

não apenas dos outros estranhos à Europa, mas também de camponeses, ciganos,

loucos, prostitutas, criminosos, artistas de circo, ou seja, sobre o outro do interior de

sua própria cultura. (ANDRIOLO, 2006, p. 5) Também se ampliou a ideia de que a

arte dos primitivos era impregnada de valores simbólicos e artísticos, sendo assim

constantemente reinterpretada pelos artistas em suas obras, como forma de

inovações técnicas e plásticas ocidentais na pintura. Essas fontes primitivas, além

de influenciar artistas modernos, “conformavam-se a eles”, como destaca Gill Perry

quando afirma que: Uma tendência ‘primitiva’ já estava se produzindo internamente à arte moderna,e na verdade deveria tornar-se um aspecto distintivo do ‘moderno’. [...] essa idéia também teve implicações importantes para a auto-imagem do artista, no sentido de que ela contribuiu para o mito de que artistas de vanguarda como Gauguin e Picasso estavam de algum modo em contato com um modo de expressão artística puro e direto. (PERRY, 1998, p.3)

 Essa tendência “primitiva”, citada por Gil Perry, tem sido entendida quando

estudamos os caminhos percorridos por pintores modernos em suas concepções

plásticas. Ë o que veremos a seguir, na abordagem sobre o interesse desses artistas

pelo que se chamava de “primitivo”.

  3.3.2 O interesse moderno pelo primitivo

...uma mulher. Humana, cósmica e bela. E para exemplo das gerações futuras [Depois do pecado, Adão pôs-lhe a folha de parra; Caim pôs-lhe um “velocino alvíssimo”; os gregos deram-lhe o coturno; os romanos o peplo] “Os indianos, pérolas; os persas, rosas; os chins, ventarolas”. [Surge então o “vagabundo genial” e dá um “chute de 20 anos naquela heterogênea rouparia”.] “Tudo desapareceu por encanto. E o menino descobriu a mulher nua, angustiada, ignara, falando por sons musicais, desconhecendo as novas línguas, selvagem, áspera, livre, ingênua, sincera / Esta mulher escandalosamente nua é que os poetas modernistas se puseram a adorar...

Mario de Andrade

Os modernistas, então, elaboram na arte primitiva o conceito de pureza,

ingenuidade e espontaneidade, ou seja, engendram, no termo, qualidades

balizadoras que garantem a proposta de uma arte não contaminada com os cânones

acadêmicos das Belas-Artes e, de certa forma, admirada por adquirir valores                                                                                                                  

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genuínos e autênticos, que buscavam na luta pela implantação de um olhar sensível

novo. No Modernismo, como diz Gill Perry (1998, p.6), “desenvolveu-se uma

tradição ‘primitivista’, que associava o que era percebido como vidas e sociedades

simples com pensamentos e expressões mais puros”. A esse conceito, há uma

tentativa de associação com a alteridade, onde, do olhar para o outro: diferente,

“engraçado” e pitoresco, surge uma dialética plástica, uma troca de informações e

percepções artísticas que ampliam o modo de olhar do homem hodierno.

Na verdade, é mais uma maneira de exploração da alteridade, onde o artista,

tido por erudito pelo caráter de formação intelectual, apropria-se dos valores e

qualidades plásticas do outro, do diferente. Estes artistas são também chamados de

primitivistas, porque tiram proveito da arte primitiva para empregar em seus

experimentos visuais. Aqui há uma pequena distinção entre primitivo e primitivista,

onde o último deriva do primeiro.

Na Bahia, para o doutor e crítico de arte Clarival do Prado Valladares(1962),

esses artistas primitivistas, diferentes dos primitivos, assumem, intencionalmente, o

“desenho descritivo e enfático do primitivo, atingem mais facilmente a intenção de

monumentalizar o tema, ao estabelecer a sua plenitude sôbre o mundo empírico

figurado”. (VALLADARES, 1962, p. 239)

Uma abordagem de maior abrangência sobre o assunto do primitivismo, ou

seja, da exploração da arte primitiva pelo artista ocidental é o clássico livro do norte-

americano Robert Goldwater (1907-1973), Primitivism in modern art, de 1938, que,

apesar de manter a ideia pseudodarwinista, vigente da época, sobre a obra primitiva,

classifica de maneira interessante o trabalho de artistas vanguardistas ao longo da

primeira metade do século XX sob o prisma primitivo. O autor, teórico respeitado em

torno do assunto, cria relações e diálogos, partindo sempre da intelectividade

ocidental ao aproveitamento do diferente, de maneira unilateral. Goldwater passeia

pela História de seu período – início do novecentos - , associando os diversos

movimentos de Vanguarda europeus ao forte poder da influência primitivista, e

esquematiza quatro categorias para sustentar seu discurso, são elas: primitivismo

romântico; primitivismo emocional, primitivismo intelectual e primitivismo do

subconsciente. Segue uma sumária análise dessas categorias.

A primeira delas, começando praticamente na transição do século XIX ao XX,

ele a chama de primitivismo romântico e inicia citando Paul Gauguin (1848-1903)

como principal expoente desta categoria, O autor comenta sua passagem na escola

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de Pont-Aven, na Bretanha, seu contato com os povos não europeus, sobretudo sua

morada nas ilhas Marquesas, onde absorveu o máximo da cultura local, copiando

seus motivos estéticos, buscando a simplificação dos meios formais, o que

alimentou sua proposta de afastamento da civilização ocidental e suas convenções

temáticas e plásticas (GOLDWATER, 1938, p.63). As interpretações de Gauguin

sobre o primitivo davam-se pela exploração da aproximação com a natureza, daquilo

que considerava exótico e misterioso, ou seja, o que, para o artista, faltava à arte

tradicional da Europa. Suas críticas às normas e padrões iam desde a composição

formal e cores fortes, até as representações de temas bíblicos protagonizados por

nativos das ilhas em que passou a viver (GOLDWATER, 1938, p.74, 75). Na mesma

categoria, insere também os fauves, quando atribui ao movimento o alargamento da

discussão sobre o primitivo, na arte ou desconhecido para eles, nas influências com

as esculturas africanas, sua admiração pela arte popular e pela produção artística de

crianças (GOLDWATER, 1938, p.86). Robert Goldwater cita os artistas André Derain

(1880-1954), Maurice de Vlaminck (1876-1958) e Henri Matisse (1869-1954).

A segunda categoria é denominada de primitivismo emocional, quando se

refere aos grupos alemães Die Brüke (A Ponte) e Blaue Reiter (O Cavaleiro Azul),

ambos inseridos no movimento expressionista. O primeiro, além de explorar a

escultura africana, amplia o olhar para as oceânicas (GOLDWATER, 1938, p.105). O

autor aborda a questão do natural, do oculto e do exótico, na união do homem com a

natureza, emprega ênfase na violência, no ritmo, no movimento e nas emoções

básicas. Os artistas destacados por Goldwater são: Emil Nolde (1867-1956) e Erich

Heckel (1883-1970). O segundo grupo sofre diretamente influências do medieval, do

oriental e da arte popular (GOLDWATER, 1938, p.125), com destaque para os

artistas do grupo O cavaleiro azul, Franz Marc (1880-1916) e Wassily Kandinsky.

Primitivismo intelectual é o rótulo que Robert Goldwater dá à terceira

categoria dessa abordagem primitivista das vanguardas europeias (GOLDWATER,

1938, p.143). Aqui ele dá ênfase ao poder de influência das esculturas africanas

sobre a pintura de Pablo Picasso (1881-1973), e também sobre a pintura abstrata,

quando busca a forma básica na representação (GOLDWATER, 1938, p.163). A

semelhança de elementos primitivos no cubismo, purismo e construtivismo é

destacada. Os artistas estudados foram Picasso, já mencionado, Amédée Ozenfant

(1886-1966), Kazimir Malevich (1878-1935) e Piet Mondrian (1872-1944), na relação

com o abstracionismo.

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Para concluir, Goldwater denomina de Primitivismo do subconsciente a

quarta categoria. Nesse capítulo, o autor usa o termo primitivo moderno, que, para o

mesmo, resume com precisão e inteligência o tema do livro (p.178). Também

associa o culto infantil e o trabalho de doentes mentais à produção pictórica

ocidental. A veneração das garatujas de crianças foi bem exemplificada com os

experimentos do já citado Paul Klee e do catalão Joan Miró (1883-1993). Jean

Dubuffet foi destaque para a abordagem da arte influenciada pela produção de

pessoas emocionalmente perturbadas (GOLDWATER, 1938, p.209-212). Estas

últimas influências despertam um diálogo com a obra de Bihalji-Merin, também

estudada nessa dissertação e citada acima. Robert conclui apontando indícios de

contribuição do primitivo para o Dadá e o Surrealismo (GOLDWATER, 1938, p.216).

Ele finaliza também seu texto, declarando que seja a arte primitiva qual for, por ser

tão rica e extensa, ela nunca terá um estilo único, nem serão unidas por quaisquer

qualidades comuns de forma e composição.

Primitivism presupposes the primitive, and at the core of an artistic primitivism we may expect to find a nucleus of "primitive" works of art. In the case of the divisions we have made - the romantic, the emotional, and the intelectual or formal, there were works of art considered primitive by the modern artists, and appreciated and influential because of that. Without, going into the question of what the really primitive is, the paleolithic or the neolithic, the African or the Eskimo, we may note that in accordance with the primitivist assumption just described, these supposedly primitive arts are not united by any common qualities of form and composition. (GOLDWATER, 1938, 252)

Isso parece reforçar o desejo de autores, de que a arte primitiva detenha seu

anonimato e, como já abordei antes, abarque eras e estilos de povos, ficando fora

da história, sem acompanhar o “desenvolvimento” artístico ocidental na

contemporaneidade. O importante é ressaltar que, curiosa e paradoxalmente, essa

arte primitiva ou “atrasada”, para alguns, era a que tinha as respostas e perguntas

para a maioria das questões plásticas ocidentais. Esse discurso ambíguo, comum do

Modernismo, que ora enaltece, ora parece manter uma relação de poder, de

dominação, falarei mais adiante. Agora, pretendo trazer à discussão o porquê de tal

interesse quase unânime dos artistas ocidentais para com as artes de povos

diferentes e distantes de sua civilização, livres de preocupações de caráter

intelectual, na técnica e na expressão de sua arte.

Talvez Oto Bihalji-Merin (1978) nos dê uma pista sobre a origem desse

interesse artístico, quando destaca as classificações da arte primitiva: de Kandinsky,

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que a chama de Gran realismo; de Franz Roh, ao referir-se a um Realismo mágico;

e de Werner Haftman que engendra na arte primitiva o “real em sua aparência

primitiva, sua perpetuidade, sua existência arcaica”. E conclui salientando que

“Cualquier classificación en el arte sólo tiene valor a titulo orientativo” (BIHALJI-

MERIN, 1978, p. 13). Para o autor, estava havendo uma espécie de esgotamento

plástico nas artes e o “primitivo” indicava novo caminho para a pintura moderna.

3.3.3 A crise do esgotamento plástico

Oto Bihalji-Merin (1978) sugere que os artistas estavam vivenciando uma

crise de esgotamento plástico, e uma das saídas dessa crise na Europa, em finais

do século XIX, seria o realismo primitivo, o qual propunha uma aproximação da

natureza e de sua essência. Era procurada exatamente na arte primitiva essa

realidade como a esperança de uma nova abordagem visual. Conforme observa

Hermann Broch, em seu ensaio sobre Hugo Von Hofmannsthal, citado por Oto, na

página 11 do livro El arte naïf, o “realismo del arte primitivo, que intenta copiar

fielmente la naturaleza y, al mismo tiempo, supera ya el naturalismo, y se interna en

lo esencial”. (HOFMANNSTHAL apud BIHALJI-MERIN, 1978, p.11)

Bihalji-Merin (1978) entende que o homem de finais do oitocentos perdera a

habilidade de expressar o que chama de “realidade pura da essência natural das

coisas”. É o que ele denomina de realidade perdida e que a arte primitiva se revelara

aos olhos ocidentais como potenciais fontes de “autenticidade” e essencialidade

universais. Daí a influência desta plasticidade na arte moderna e sua reinvenção por

muitos artistas profissionais: Se los conoce bajo distintos nombres y denominaciones: pintores del instinto, pintores del Sacré-Coeur, ‘maîtres populaires de la réalité’, neo-primitivos y también pintores domingueros. Llamémosles como queramos, la verdad es que, en una época de dissolución y abstracción en el arte, se han convertido en portadores de la readopción de la realidad perdida. (BIHALJI-MERIN, 1978, p. 12)

O autor também destaca que os artistas modernos mergulharam na busca por

esta realidade perdida, pela simplicidade da expressão primitiva e clareza naïf,

extraídas da arte africana. Oto Bihalji, assim como Robert Goldwater, também cita

alguns artistas e seus interesses na arte primitiva. Mais uma vez aparece o

reconhecimento do pintor Paul Gauguin como o mais célebre exemplo, este entende

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que a construção mental racionalista da civilização era como uma prisão para a

natureza humana. Sua ânsia pelo natural, o bárbaro, o primitivo, o fez deixar a

Europa para buscar, nas remotas ilhas dos mares do Sul, as comunicações míticas

e as conexões com os deuses e com a natureza. Vejamos abaixo outros pareceres

de artistas contemplados pelo autor:

Hacia finales de siglo muchos artistas volvieram su mirada hacia el secreto encanto del arte negro. Y mientras la mágica relación entre cosa y persona en los llamados pueblos primitivos decrecía a ojos vistas, los artistas intentaban vivificar de nuevo aquel espíritu que en otro tiempo estuviera oculto bajo formas aparentes. Picasso se volvió, del diáfano clasicismo de sus figuras de saltimbanquis, hacia el mundo mágico-arcaico de los pueblos primitivos. Derain, Matisse y los expresionistas se inspiraron en máscaras africanas. Las angulosas figuras de los pueblos bakotas y la estilización en forma de T de los ojos de los pangores del Gabón influyeron en la forma de los cubistas. El arte de Modigliani se inspiró en las talla de los pueblos gurus de la Costa de Marfil. A Emil Nolde le impresionó el arte de estos pueblos: ‘Sus productos artísticos son los últimos restos de un arte primitivo’. (BIHALJI-MERIN, 1978, p. 16)

Essas relações assinalaram o que Robert Goldwater chamou de primitivo

moderno, já citado neste texto. Oto Bihalji também reitera o termo quando lança seu

livro Modern Primitives, em 1978, e observa que os modernos, na virada do século

XX, desde que passaram a investigar a arte primitiva, a arte de crianças e as votivas

de camponeses, que os traços naïfs estão presentes em suas pinturas.

Outro autor que faz questão de utilizar a expressão, porém com intenção de

questioná-la é o crítico inglês Gill Perry (1988), quando cita um “sofisticado catálogo

em dois volumes de uma exposição ambiciosa e influente de 1984”, com o seguinte

título: “Primitivismo” na arte do século XX: afinidades entre o tribal e o moderno,

editado por William Rubin, onde ressaltava a relevância de Lês Demoiselles, de

Picasso, como uma obra do “primitivismo modernista. A ênfase, como o título

sugere, é posta nas afinidades formais entre a arte e os artefatos ocidentais

modernos e os ‘primitivos’”. (PERRY, 1998, p.4)

Até aqui vimos uma relação unilateral de encantamento, apropriação e

exploração de um para com o outro. O que pretendo abordar daqui para frente é de

supremo valor para a compreensão que se deseja chegar acerca do termo. Que a

arte primitiva contribuiu para “dar gás” à arte ocidental, quando passara por séria

crise de esgotamento, não resta dúvida. Mas não foi apenas a arte moderna que

ganhou com isso, a arte chamada de primitiva também logrou o prazer de ocupar

papel de destaque na História da Arte ocidental, do século XX. Uma via de mão

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dupla, diria. Assim, posso classificar a relação e interação da arte primitiva com a

moderna. Uma colaborou com a outra na consolidação do cenário mundial da arte

com reciprocidade. Não podendo engendrar maior valor a uma em detrimento da

outra. A arte moderna aponta para a primitiva, legitimando status de “autenticidade”

artística, ao passo que esta última oferece seu poder transcendente, mágico e livre

para a primeira, resolvendo sua crise estética da virada do século: A Arte Primitiva tem o seu status elevado ao ser mostrada no contexto da Arte Moderna; o procedimento contrário (ou seja, uma mostra que apresentasse Arte Moderna num museu antropológico) não teria o mesmo efeito. A Arte Moderna reclama os títulos de autenticidade e o status de obra-prima, e boa parte da admiração popular pela Arte Primitiva baseia-se em associações a características que atraíram nosso interesse pela primeira vez através da obra de artistas Ocidentais do século XX. (PRICE, 2000, p. 138-139)

Aqui está um dos maiores problemas desse tema. O paradoxo do discurso.

Ao mesmo tempo que havia um reconhecimento da “arte primitiva”, existia um

enquadramento dessa arte em uma cadeia de conotações pejorativas implícitas

nessa denominação. Uma espécie de exaltação da inferioridade, que prefiro chamar

de falso elogio. A exemplo de um levantamento do corpus de proposições38

consideradas verdadeiras que definem atributos de pobreza ao artista. Na

declaração de Clarival do Prado Valladares (1968), quando comenta a postura dos

consumidores de pinturas feitas por autodidatas, é notável a indicação das

proposições legitimadoras dessa categoria:

... E este último[o consumidor], muitas vezes requer do “primitivo” ser homem de cor, preto, mulato ou índio, procedente da pobreza afim de que a obra seja autêntica pela origem. Isto não corresponde à generalidade, mas uma das características da elite mandatária, em que os participantes procuram acrescentar, a si mesmos, uma aparência intelectual. (VALLADARES, 1968) [grifo nosso]

Havia a necessidade de que essas pinturas obtivessem o extrato de pobreza

e miséria, sem a qual perderia seu “valor” artístico, sua “autenticidade”. A relação de

dominação é clara no tratamento dissimulado dos intelectuais, inconsciente ou não.

Mas, para outros eruditos, elas bastavam-se pelas suas qualidades plásticas,

composicionais e estruturais, sem precisar de associação com o atrasado e

ausência de progresso e evolução. Existe um paradoxo no emprego do termo

primitivo, ao mesmo tempo que identificamos implicitamente um sentimento de

                                                                                                               38  Princípio da disciplina de Michel Foucault, defendido em A Ordem do Discurso. Era necessário um corpus de proposições tidas por verdadeiras para pertencer a determinada “disciplina”.  

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desdém e subestimação, sua conotação pelos modernos é de liberdade e pureza.

Então, por que classificar como primitivo uma arte recheada de propostas “novas”,

que balizou a produção modernista durante muito tempo, já que a expressão tem

sérios problemas conceituais de origem ambígua? Seria justo classificar como

primitivo o artista que é o foco deste trabalho, João Alves?

  3.4 UMA NOVA PROPOSTA TERMINOLÓGICA

O que há de grande, no homem, é ser ponte, e não meta: o que pode amar-se, no homem é ser uma transição e um ocaso.

Friedrich Nietzsche

Historicamente, no quadro de referência europeu, Gill Perry (1998) aponta

para uma variedade de pressupostos e preconceitos culturais, que colaborou para o

entendimento acerca do primitivo, no final do século XIX.

Para a maioria do público burguês dessa época a palavra significava povos e cultura atrasados e incivilizados. Numa época em que os franceses, como os britânicos e os alemães, estendiam suas conquistas coloniais na África e nos mares do Sul, e criavam museus etnográficos e várias formas de estudo antropológico institucionalizado, os artefatos dos povos colonizados eram vistos amplamente como prova de sua natureza incivilizada “bárbara”, de sua falta de “progresso”cultural. Essa visão era reforçada pela crescente popularidade das teorias pseudodarwinista da evolução cultural. [...] Ao mesmo tempo, visões mais positivas da pureza e bondade essencial da vida “primitiva”, em contraste com a decadência das sociedades ocidentais supercivilizadas, estavam ganhando espaço na cultura européia. (PERRY, 1998, p.5)

Novamente o paradoxo é apresentado, atribuindo um sentido dúbio ao termo.

Havia uma relação que pode ser facilmente considerada como de poder e

dominação pelo método foucaultiano, o que gera uma tensão social de dependência

recíproca. Stuart Hall chama de padrão recorrente do comportamento social, em que

o “de cima” tenta rejeitar o que vem “de baixo”, gerando uma teia de dependência

entre ambos. O primeiro acaba por incluir simbolicamente o segundo, como

“constituinte primário de sua própria vida de fantasia”. Para alguns estudiosos do

assunto, esse padrão é de total relevância na formação da sociedade. Com isso,

como Hall diz, “o resultado é uma fusão móvel e conflitiva de poder, medo e desejo,

na construção da subjetividade: uma dependência psicológica de precisamente

aqueles outros que estão sendo rigorosamente impedidos e excluídos no nível de

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vida social”. O autor conclui com uma frase que parece ser a síntese de tudo isso: “É

por essa razão que o que é socialmente periférico é simbolicamente central”. (HALL

apud D’ AVILA, 2009, p. 32)

Acerca da utilização do pensamento foucaultiano, é Gill Perry (1998) quem

propõe uma análise sobre esse enfoque, já que o tema carrega em si significados

construídos histórica e socialmente e parece indicar as referidas relações de

dominação social. Assim, à luz da teoria do discurso de Michel Foucault, Perry

aborda a questão de poder sobre o primitivo. Aponta para uma rede de interesses,

ou discursos, “sociológicos, ideológicos, estéticos, científicos, antropológicos,

políticos e legais que são introduzidos numa cultura e a determinam” (PERRY, 1998,

p.4). Para Foucault, havia uma relação de poder quando, por exemplo, o homem

ocidental (intelectual, crítico ou artista) analisava, ensinava, pintava ou reproduzia o

que se entende por primitivo. Estaria por detrás dessa atitude uma maneira de

dominação, instaurando uma espécie de autoridade sobre tal arte.

Com isso, o uso do termo parece reforçar o entendimento de dominação

proveniente da relação de poder. Gill Perry (1998), embasado em Foucault, ele

expande a problemática do discurso para outros termos como arte negra e arte

tribal, observando significados coletivamente comungados, frutos de construtos

sociais em torno destas expressões: Usar o termo é fazer implicitamente um juízo de valor, mesmo que ele possa assumir diferentes disfarces. Podem-se fazer críticas semelhantes dos termos “I’art nègre”(“arte negra”) e arte “tribal”. Enquanto o termo “I’art nègre” pressupõe uma categoria racial ampla, e é diferente a culturas dentro da categoria, “tribal”envolve o construto eurocêntrico da tribo incivilizada, o oposto ou o “outro”da sociedade ocidental. (PERRY, 1998, p. 5)

Com essa explanação, pretendo sugerir que repensemos ou ressignifiquemos

aquilo que é produzido sob o rótulo de arte primitiva, seja ela africana, sul-

americana, oceânica, oriental, não ocidental, de sociedades à margem da civilização

europeia, bem como pinturas de naïf, de crianças e doentes mentais, de aficionados,

ou o que for, é preciso que o discurso seja revisto. Não posso endossar uma

expressão que reforce o que tento defender em todo o escopo do atual trabalho. A

ideia de liberdade plástica, política, econômica e étnica da obra de João Alves,

assim como de muitos pintores autodidatas dos dias de hoje, que merecem

destaque na historiografia da arte e o mínimo de respeito e seriedade daquelas

autoridades do mundo da arte que se arvoram em comentar ou divagar sobre o

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assunto. O termo, como vimos, por melhor intenção que lhe seja empregada,

continua a levar consigo um discurso de subestimação.

A abordagem da antropóloga Sally Price (2000), no sentido de desconstrução

da ideia de arte primitiva como atrasada, carente de melhoramentos plásticos,

desprovida de técnicas adequadas para a produção, identifica essa ambivalência

conceitual. Em seu livro Arte primitiva em centros civilizados, a autora cita um

exemplo do paradoxo do ideário moderno de valoração da arte primitiva, mas que

ainda mantém disfarçadamente uma conotação de falta de desenvolvimento técnico:

Ao mesmo tempo, a maioria das análises contemporâneas situa o lado “sombrio” da imagem da Arte Primitiva dentro do contexto da admiração do critico pelos talentos do Homem Primitivo. A intenção expressa não é depreciar, e sim contribuir para uma melhor apreciação. (PRICE, 2000, p. 67)

Hoje em dia, o termo primitivo já caiu em desuso devido às diversas

discussões que vêm problematizando sistematicamente o tema, no âmbito

etnológico, antropológico e artístico. Precisei fazer todo este discurso sobre o tema

porque a obra de João Alves, objeto desta pesquisa, estava enquadrada nesse

rótulo. Agora que foi construída uma linha histórica sobre o assunto, posso dizer

que, se precisamos de fato classificar a obra de João, então que não seja mais com

uma expressão tão antagônica ao seu trabalho e que não engendre inferioridade e

subestime seu fazer artístico.

Proponho fazer a substituição do termo arte primitiva por um que não

represente tamanha multireferecialidade com sentidos tão duvidosos e

preconceituosos. Arthur Ramos chega a chamar o termo de “etiqueta sem-razão”

que só remete à inferioridade cultural e nada mais. Quando os estudiosos se debruçaram sobre os problemas da arte africana, desvendada aos seus olhos deslumbrados, logo verificaram a sem-razão dessa etiqueta de arte primitiva, significando inferioridade cultural. A diferença entre essa arte e as obras tradicionais da arte européia está nos motivos de sua concepção, ou na dependência do artista, da vida tribal de que ele é parte integrante”. (RAMOS, 2010, p.247)

Em seu trabalho Criação liminar na arte do povo: a presença do negro (2010),

publicado no primeiro volume do livro A mão afro-brasileira, Lélia Coelho Frota ,

abordando o papel do afro-brasileiro nas artes visuais, enfatiza a importância e

necessidade de não subestimar a criação visual de artistas de descendência

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africana, abolindo os termos “pitoresco”, exótico”, e “ingênuo”. Expressões que

traduzem um caráter de dominação por detrás do discurso de primitivo:

Assim procedendo, fica clara a nossa intenção de desfolclorizar o assunto, afastando do trabalho do artista aqui focalizados qualquer conotação de “pitoresco”, de “exótico”, de “ingênuo”. É igualmente prioritário, para nós, inserir na história sua produção como continuum que não denota evolução do mais “rústico” para o mais “bem-feito”, ou seja, através de um “aperfeiçoamento” da perspectiva e do desenho e do volume segundo os cânones vigentes na cultura oficial, acadêmica ou de vanguarda. Julgo a produção de arte, que é matéria deste capítulo, contemporânea à época em que foi criada, possuindo idêntica fruição estética e domínio formal aos dos artistas de norma erudita do nosso tempo.[...] É nesse quadro amplo, portanto, que situaremos historicamente a criação dos artistas aqui focalizados, frequentemente denominados “pimitivos” e que, hoje, preferimos chamar de liminares. (FROTA, 2010, p.310)

Para Lélia, o termo primitivo é inadequado e preconceituoso, dificulta a

reafirmação do negro em uma sociedade desigual. A autora propõe um termo em

substituição: Liminar. “Do latin, liminaris, -e, relativo à soleira da porta, inicial) s.m.

Sinônimo erudito de limiar, ou seja, o mesmo que soleira da porta, patamar. Fig.

Entrada; começo”. A ideia aqui é de passar o sentido de estar começando algo,

iniciando, estar entre, fazer uma ponte. Deixa de lado a ideia implícita de “cima” e

“embaixo”, de classes antagônicas de poder.

Com isso, a arte produzida por autodidatas, sem formação acadêmica,

geralmente vindos de uma camada desfavorecida economicamente da sociedade, é

Liminar e não primitiva, faz uma espécie de ligação entre a cultura na qual o artista

foi formado com a dos consumidores de suas obras. A ideia aqui é valorizar essas

obras conceitualmente, já que plasticamente elas são perfeitamente reconhecidas,

dando uma classificação um pouco mais justa, que reflete sua importância na arte,

na cultura e na sociedade brasileira. Também pretendo renunciar à sedução da

conformação de um termo eurocêntrico e contraditório, e quem sabe, adotar um

novo. Um termo brasileiro, se assim posso classificar, longe das categorias

ocidentais que dominaram grande parte dos nossos conceitos sobre arte.

Quando Lélia Frota (2010) define esses artistas como liminares, ela reivindica

uma sobre-estima às obras destacadas preconceituosamente de primitivas:

Migrantes, em sua quase totalidade, de seus locais de nascimento na ambiência rural, e sofrendo o impacto dos meios de comunicação de massa, esses indivíduos revelam uma representação simbólica ainda mais individualizada, comparável à construção de um “estilo” na norma erudita. Sua produção destina-se, agora, à clientela de alto poder aquisitivo. (FROTA, 2010, p. 313)

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Frota também explica a nova proposta terminológica e diz que “Liminares –

isto é, no limiar – entre a cultura em que se formaram e a que consome sua arte, a

leitura de suas criações, exatamente por se encontrarem entre, é acessível tanto à

norma popular como à erudita”. Praticamente faz uma ponte entre esses dois

universos culturais. Ela se afasta da incoerência modernista de ambiguidade

conceitual, que opta pelo termo primitivo, e sugere uma proposta que tenta mostrar

certa congruência entre termo e discurso apresentados:

Longe de constituírem fenômenos isolados, denominados geralmente “primitivos” e “ingênuos”, esses artistas exprimem, do mesmo modo e no mesmo nível dos eruditos, a condição de vastíssimo contingente de população brasileira envolvida no referido processo de mudança. Sua produção é expoente da situação desses grupos sociais, assim como a obra dos artistas eruditos reflete a consciência e o inconsciente de seu meio, sem que com isso se descarte dela a presença do arquetípico. Participam esses liminares do povo, portanto, no mesmo pé de igualdade, do mesmo momento histórico a que apresentam uma contribuição de idêntica relevância”. (FROTA, 2010, p. 313)

O final desta citação traduz meu interesse na proposta de Lélia Coelho Frota.

Esses artistas, agora denominados por Liminares, encontram-se na história da arte

“no mesmo pé de igualdade, do mesmo momento histórico a que apresentam uma

contribuição de idêntica relevância”. A chamada arte moderna brasileira não seria a

mesma sem o papel estético e plástico desse gênero artístico da pintura. Aqui na

Bahia, de contra partida, o Modernismo baiano teria outra configuração visual sem a

presença desses trabalhos. Se a ideia é mesmo classificar, apelo para que a pintura

de João Alves seja considerada então como Liminar pela coerência conceitual, caso

contrário, não necessite de uma categorização, que seja apenas e simplesmente a

pintura de João Alves, o artista do Pelourinho, ou como bem intitulou Jorge Amado:

o pintor da cidade. Isso basta para expressar a força, a qualidade e a beleza sem

rótulos da obra de um artista baiano e verdadeiro, que exaltou a Bahia.

 

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4 A CRÍTICA E A ANÁLISE DA OBRA DE JOÃO ALVES

4.1 A CRÍTICA DE ARTE NOS ANOS 1950 E 1960 NA BAHIA

A Bahia de 1962, que possui um cineasta como Glauber Rocha (prêmio internacional), um colunista como Noêmio Spínola, poeta como Florisvaldo Matos, um gravurista como Calazans Neto, um compositor como Batatinha, não dispõe de crítica de arte. Jovens de real valor perdem-se por falta de alguém mais experiente que lhes indique o caminho a seguir. (Alberto Silva – Suplemento do Diário de Notícias - SDN, 22.7.1962)

Os textos críticos sobre Arte, encontrados no período em que pesquisei –

entre 1950 e 1970 – na Bahia, época de grande produção para João Alves, mostram

a presença de intelectuais, literatos, médicos, doutores, historiadores de arte,

jornalistas, mecenas, etnógrafos. Os chamados “eruditos” faziam parte do quadro

geral de autoridades gabaritadas a emitir julgamento de valores estéticos e artísticos

sobre obras de arte apresentadas para um público seleto através de exposições em

museus, salões, bienais, análises em jornais, revistas especializadas, livros etc. A

exemplo de personalidades como Otto Maria Carpeaux, Eugênio Gomes, José

Olympio, Olívio Montenegro, José e Clarival Valladares, Gilberto Freyre, Jorge

Amado, Hamilton Correia, Assis Brasil, entre outros, existia uma confraria de

intelectuais antenada no desenvolvimento artístico, científico e filosófico europeu.

Contudo, uma questão de bastante relevância chama-me a atenção em tais

textos: por que o termo primitivo na arte ainda é insistentemente utilizado, uma vez

que no âmbito científico já era por demais contestado? Desde o início do século XX,

a perspectiva evolucionista já fora rejeitada, através de teorias culturais e

antropológicas, mas os críticos de arte baianos continuavam a usar o termo que

sustenta essa ideia, conforme foi detalhado no capítulo anterior.

Outro ponto a observar, o qual me aprofundarei um pouco mais, é quando,

em leituras de jornais da época, é possível notar a falta de conteúdo filosófico em

alguns textos, o que resultava numa provável crítica de arte (cinema, música teatro,

artes plásticas e literatura) de caráter amador e menos técnico e teórico. Esta

suspeita se dá quando encontro um texto, datado de 28 de janeiro de 1962, no qual

Sylvio Lamenha Lins já exigia um embasamento teórico-filosófico para a crítica

literária na Bahia, na matéria Da crítica & da pseudo-crítica, publicada no

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Suplemento de cultura do Diário de Notícias (SDN), na página 2 (ANEXO E -

segunda parte). Com mesmo rigor crítico, o colunista do SDN, Alberto Silva, publica

também, no Suplemento, no dia 22 de julho daquele mesmo ano, um texto com o

seguinte título: A inexistência de crítica de arte na Bahia (ANEXO E). Mais tarde,

Romano Galeffi (1972), em artigo publicado na revista de cultura Vozes, em

novembro de 1970, observa que: a crítica de arte é aqui [Bahia] exercida, via de regra, por jornalistas, literatos, professores de arte, historiadores da arte e, raramente, por estetólogos, se bem que, em virtude de uma progressiva penetração da Estética no ensino básico universitário, sempre mais concretamente se compreenda a necessidade de uma profunda formação histórico-filosófica, e não somente artística, para o reto exercício do juízo crítico. (GALEFFI apud COELHO, 1972, p.224) Grifo meu.

Galeffi(1972) pontuou sua preocupação em relação ao conhecimento estético

e sugeriu maior atenção para as tendências filosóficas aplicadas à crítica de arte.

Para Romano Galeffi, não contávamos com estetólogos na discussão e publicação

de críticas de arte na Bahia, mas podemos perceber na escrita de muitos autores

baianos a penetração de certos olhares e juízos estéticos, que faziam eco com o

que se produzia na esfera filosófica39 da arte, na Europa. Duas correntes eram

bastante discutidas, na época, e filiavam-se ideologicamente, de maneira a reforçar

a estética modernista: o Formalismo e o Expressionismo, na estética40.

Essas teorias eram, corriqueiramente, presentes nos textos de análise crítica

da primeira metade do século XX, no Brasil. Portanto, seria ingênuo pensar que os

autores brasileiros não tivessem acesso a tais fontes, tão em voga no universo

artístico daquele período, que levantava questões pontuais sobre os novos critérios

de interpretação artística. Voltando então à Bahia, podemos notar alguns desses

traços teóricos em publicações de José Valladares e seu irmão Clarival do Prado

Valladares, para citar apenas dois exemplos de verdadeiros professores de estética

                                                                                                               39   Um aprofundamento maior acerca das teorias estéticas que estudam a natureza da arte é encontrado no livro Filosofia da Arte, de Noël Carroll, 2010.  40   O Formalismo de Clive Bell e o Expressionismo de Robin Collingwood foram teorias que se empenharam em buscar condições necessária e suficiente à obra de arte. A teoria formalista surgiu da necessidade de novos critérios para a recém-chegada Arte Moderna e suas discussões. Enfocava no que Clive Bell chamava de forma significante - uma combinação de elementos (cores, formas etc.) capaz de provocar a emoção estética. Essa valorização da forma se dava em detrimento ao conteúdo (contexto histórico, político, sociocultural do artista). A teoria Expressionista de Collingwood, sem confundir com os movimentos expressionistas da arte moderna, aproxima-se mais de algumas críticas brasileiras pelo caráter inclusivo na valoração do artista e seu processo de criação. Para Collingwood, a arte significa expressão de emoção, e a obra é algo mental, que está completa, antes de mais nada, na mente do artista. Portanto é relevante conhecer o autor da obra e sua formação intelectual. (CARROLL, 2010)  

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e interpretação de obra de arte, os quais eram dos que mais escreviam sobre os

trabalhos de João Alves. Clarival, por exemplo, tem um texto, publicado no

Suplemento Cultural do Diário de Notícias de 24 de dezembro de 1961, que sugere

uma orientação metodológica para a crítica de arte de determinadas pinturas.

(Figura 24) O texto tem o seguinte título: Critério para a crítica da pintura abstrata, o

qual dá caminhos para a análise “adequada” de tal gênero artístico. Ver ANEXO E -

texto completo.

Figura 24 - “Diário de Notícias-SDN”. Salvador. 24 de dezembro de 1961. Páginas 1 e 4. Biblioteca Pública do Estado da Bahia

Dentre os critérios que o autor relaciona, está uma lista de recomendações

prévias para a interpretação, que parecem estar em sintonia com algumas teorias

estéticas: a) conhecer o maior número de trabalhos do artista; b) distinguir seu

período de formação do seu período de realização; c) verificar sua originalidade,

porventura manifesta numa constante da invenção; d) examinar o domínio de sua

problemática; e) analisar a coerência de sua temática. Outra matéria, também de

Clarival do Prado Valladares, agora falando das tendências estéticas nas artes

plásticas, como o formalismo e o expressionismo, é a que tem como título: Uma nota

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sentimental sôbre arte moderna, publicado no 3º Caderno, p.5 do Diário de Notícias

de 6 de janeiro de 1960, (ANEXO E) em homenagem ao irmão José Valladares,

jornalista e professor de estética, falecido no final do ano anterior. Assim como José,

Clarival Valladares foi considerado um crítico de arte de respeito, tanto que, antes

mesmo de deixar a Bahia para morar no Rio de Janeiro, já era lamentada sua

partida pelo colunista Alberto Silva, quando escreveu dura crítica à falta de

especialistas em análise de artes - teatro, arquitetura, artes plásticas, cinema, entre

outras (texto citado no início do capítulo). Na ocasião, Silva sugeria que a crítica de

arte baiana estava comprometida com apadrinhamentos e favorecimentos a

amizades particulares, em detrimento aos juízos de valores estéticos e artísticos.

Com esta mesma matéria, volto à questão que abriu o atual capítulo sobre a

falta de especialização filosófica na crítica de arte no Estado. O texto, já citado no

início, foi publicado com o seguinte título: A inexistência de crítica de arte na Bahia

(ANEXO E). Para o autor Alberto Silva, eram poucos os que se debruçavam sobre

bases filosóficas para executar uma “reta” crítica de arte, levando a análise, muitas

vezes, para o campo romantizado do fazer artístico sem consistência estética e

conteudista.

O que destaco com isso é que, tanto a presença como a ausência de

métodos analíticos, seguindo tendências filosóficas europeias, foi relevante para a

formação da crítica baiana de arte. Tanto que, por outro lado, segundo Walter

Mariano (2003), em seu artigo Panorama das Artes Plásticas na Imprensa Baiana

entre 1950 e 1970, na primeira edição da revista de arte Ohun, na Bahia, havia

discussões, da parte de alguns intelectuais interessados em questões culturais,

sociologia e artes e sobre o mais variado leque de assuntos afins: Aliado a um estilo de vida provinciano, Salvador possuía um pequeno, mas intenso, circuito intelectual que reverberava as discussões culturais então em foco em outros centros culturais. Se partirmos da premissa de que a obra de arte se realiza no diálogo com o espectador, poderemos notar um burburinho audível nas páginas culturais dessa imprensa baiana da época, que era composto principalmente pelas discussões dos intelectuais nas mesas de bar e que serviam de pano de fundo para os artistas do período. (MARIANO, 2003, p.5)

A declaração da diretora do Museu de Arte da Bahia - MAB, Sylvia Athayde, à

Tribuna da Bahia, na série de reportagem em comemoração aos 40 anos do jornal,

em 2009, faz eco com o parecer de Walter Mariano:

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Vale a pena lembrar a importância da crítica de arte, como incentivadora à produção artística e a contribuição de José Valladares, Wilson Rocha, Romano Galeffi, Matilde Matos, Antonio Celestino e Odorico Tavares, na sua coluna “Rosa dos Ventos”. De grande importância foi o papel exercido pelas galerias, na afirmação de um mercado de arte, e no surgimento de muitos artistas. A primeira foi a Oxumaré, criada na década anterior, por Carlos Eduardo da Rocha, misto de “marchand” e crítico de arte. Em seguida, a “Bazarte” – ponto de encontro, e atelier de muitos artistas iniciantes, incentivados pelo seu proprietário conhecido como “seu Castro” (José Marques Castro); a Galeria Manuel Querino, a do Instituto Cultural Brasil Alemanha – ICBA, e a Galeria Convivium, dirigida por Juarez Paraíso e pela jovem artista Liana Bloisi. Logo a seguir, em 1970, surgiu a Galeria Canizares como uma extensão da Escola de Belas Artes. (ATHAYDE, 2009)

A diretora do MAB toca em um ponto por demais importante para o fomento

da arte moderna na Bahia; o incentivo e a agitação cultural das diversas galerias de

arte, conforme listou.

Apesar das teorias da arte, as citadas e as não citadas neste texto, e seu

grau de questionabilidade e suas objeções, esta dissertação enfoca a influência, ou

a ausência, de certos conceitos estéticos usados na crítica de arte na Bahia, na

primeira metade do século XX, que serviram de base para a compreensão da obra

de João Alves. Em suma, me atenho a expor, de maneira restrita, as críticas feitas

apenas ao pintor em questão: João Alves.

Para tanto, vale olhar para outro tipo de temática, que estava em voga nos

centros culturais na Bahia, no período fecundo de João Alves, a saber, a

preocupação com o papel de mudança e transformação do país através das artes.

Antonio Risério destaca certo compromisso de intelectuais com a instauração de

ideias inovadoras e universais, ao mesmo tempo, contextualizadas com a realidade

provinciana de Salvador:

Derrotar a província na própria província parece ter sido, de fato, a palavra-de-ordem geral, atravessando gerações e as inevitáveis diferenças e singularidades dos agentes transformadores. Numa fórmula concisa, a província se pensou planetária: informações de – e para – todos os lugares. Este é o tempo em que a vida baiana está marcada pelas idéias e pela ação de Koellreutter, Lina Bo Bardi, Yanka Rudzka, Ernst Widmer, Martim Gonçalves, Carybé, Agostinho da Silva, Mário Cravo, Nelson Rossi, Machado Neto, Milton Santos, Walter da Silveira, Pierre Verger, Clarival Valladares, Diógenes Rebouças, Vivaldo da Costa Lima, Anton Walter Smetak. Mais mediata, pela distância geográfica, mas nem por isso menos intensamente, do ponto de vista de seu influxo, por Jorge Amado, Dorival Caymmi, João Gilberto. E este é também o tempo em que principia a luzir a constelação de Glauber Rocha, Waly Salomão, Caetano Veloso, Carlos Nelson Coutinho, Duda Machado, João Ubaldo Ribeiro, Rogério Duarte, Roberto Pinho, José Carlos Capinan, Gilberto Gil. (RISÉRIO, 1995, p.15)

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É importante destacar também que a formação da Universidade Federal da

Bahia, em 1946, sob o comando do então Reitor Edgard Santos, contribuiu com

essas discussões e motivações culturais em Salvador. Risério aborda em seu livro

Avant-garde na Bahia, de 1995, que a Universidade propiciou uma aproximação da

cultura boêmia com a universitária, onde, como já mencionado acima, intelectuais

encontravam-se em bares para conversas “etílicas” sobre estética, ciências sociais e

artes: De uma parte, aconteceu na Bahia, nos fifties baianos, algo que hoje em dia julgaríamos impossível, ou mesmo impensável: o entrelaçamento da cultura boêmia e da cultura universitária. Raros são os que se referem ao período em foco sem mencionar, conjuntamente, coisas como o Anjo Azul, reduto estético-etílico-intelectual da boemia algo existencialista de então. [...] A inexistência de um cordon sanitaire entre o campus e a praça, a escola e a rua, a boate e o gabinete ou o ateliê e a praia, enriqueceu e vitalizou o circuito diário dos signos. Em resumo, nenhum apartheid simbólico atravancava a troca de experiências e a transfusão de discursos para a fúria das sentinelas pré-mentais do reacionarismo, tão típicas do provincianismo da elite brancomestiça baiana. (RISÉRIO, 1995, p.75)

Sylivia Athayde também cita o “Anjo Azul”, um bar – onde se reuniam

intelectuais – que, ao mesmo tempo, era galeria de arte: “Suas salas eram

decoradas com painéis de Carlos Bastos e no terraço aberto exibia escultura de

Mario Cravo Júnior” (ATHAYDE, 2009).

Dentro dessas discussões, a valorização e o respeito pela arte produzida pelo

povo tomaram espaço considerável, despertando a atenção para o incentivo às

culturas populares e suas (re)interpretações por parte dos artistas de formação

oficial. Isto foi importante para oferecer maior cuidado, sob o prisma acadêmico, na

observação da obra de artistas autodidatas, como João Alves.

Resumidamente, precisei caminhar até aqui para pontuar como funcionava o

sistema de análise de arte daquela época, no que identifico alguns fatores que

balizaram e sustentaram o exercício da crítica de arte em meados do século XX, na

Bahia: a influência (bem como a ausência) de teorias estéticas; as ideias baianas de

mudança, rompimento e transformação sociocultural pelas artes; e a fundação da

Universidade Federal da Bahia no fomento às discussões culturais no Estado. Tudo

isso era bem divulgado através da grande imprensa baiana, que contava com jornais

matutinos e vespertinos, sobretudo os pertencentes aos Diários Associados, e

representava uma forte formadora de opinião em Salvador. Dentre os críticos de arte

que se incumbiram de analisar a obra de João Alves, destaco José Valladares, seu

irmão Clarival do Prado Valladares e o banqueiro Antonio Celestino, os três com

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certas lembranças de teorias estéticas em seus textos, sendo o primeiro, inclusive,

professor de Estética. Trago também textos de Renot, marchand e colunista do

Jornal do Estado, e do romancista Jorge Amado, amigo, compadre e incentivador de

João Alves.

Destarte, segue a partir daqui, análise de alguns textos críticos publicados em

jornais, revistas, catálogos e livros escritos por diversos autores sobre João Alves,

em meados do século XX, que serviram de referência discursiva para a divulgação e

valorização da obra do artista da cidade. Este item será dividido em duas partes:

João Alves na imprensa e nos livros e João Alves na literatura amadiana.

  4.2 JOÃO ALVES NA IMPRENSA E NOS LIVROS

Nestas breves linhas vamos falar de alguns dêsses artistas, dos que lá nasceram ou se deixaram atrair pelo feitiço local e estão fazendo de Salvador um dos maiores centros de artes plásticas do País. Muitos dêles já são nomes nacionais e até internacionais, como os pintores Jenner Augusto, Caribé, Gernaro de Carvalho ... João Alves, Willys, Manuel do Bonfim, Ekenberg, Adelson do Prado... (Pedro Muniz – DN, 13.6.1968)

Nas décadas de 1950 e 1960, como já mencionei, houve uma efervescência

cultural na capital baiana, onde poetas, escritores, intelectuais e artistas

encontraram terreno fecundo para o livre exercer de pensamentos e ideias

inovadores com a tônica na superação da tradição. Sem dúvida, a mídia impressa

teve um papel fundamental na formação de novas mentalidades e opiniões vigentes

da época. Destaco o Diário de Notícias (DN) e o Jornal do Estado da Bahia (JB),

jornais pertencentes àquele que, ao que parece, foi o maior conglomerado de

empresas de comunicação da America Latina, os Diários Associados, o qual era

comandado pelo magnata jornalista, empresário e mecenas Assis Chateaubriand

(1892-1968). Sendo então um jornal ramificado em uma cadeia nacional de jornais.

O DN e o JB possuíam opiniões e textos de intelectuais de todo o país,

enriquecendo seu teor informativo crítico e garantindo respeitabilidade ao veículo de

comunicação. Na Bahia, o DN foi dirigido por Odorico Tavares, desde 1942,

representante de Chateaubriand no Estado. Enfatizo este jornal pela criação do

Suplemento Cultural na década de 1950, publicado sempre aos domingos, como um

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caderno anexo. O suplemento de cultura era composto de artigos, críticas de

cinema, artes plásticas, literatura, música, dentre outras expressões artísticas.

Também eram publicados poemas de Carlos Drummond de Andrade, Vinicius de

Morais, Cecília Meirelles e João Cabral de Melo Neto (MARIANO, 2003).

O caderno de cultura dominical ganha um tratamento diferenciado na década

de 1960. Quando aumenta o número de páginas, é impresso em duas cores e passa

a se chamar Suplemento Artes Letras do Diário de Notícias (SDN), refletindo certo

grau de importância no jornal DN.

Neste caderno, ressalto a participação de intelectuais importantes na crítica

da obra de João Alves, como José Valladares, Odorico Tavares, Clarival do Prado

Valladares e Jorge Amado. Utilizo aqui a indexação do Suplemento Dominical do

Diário de Notícias : 1956-1971 de Benedito Veiga, publicado em 2003, além da

pesquisa direta realizada nos arquivos de jornais, localizados na Biblioteca Pública

do Estado da Bahia, no bairro dos Barris, Salvador.

Verificamos abaixo duas matérias publicadas no SDN e DN sobre João:

Figura 25 - SDN. Salvador. 20 de dezembro de 1964. Biblioteca Pública do Estado da Bahia

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Figura 26 - DN. Salvador. 13 de junho de 1968. Arquivo de Sante Scaldaferri

Já no jornal do Estado da Bahia, havia uma coluna social assinada por Renot,

onde o autor publicava notas diversas do que estava acontecendo no circuito social

e artístico da cidade. Reinaldo Eliomar de Freitas Marques da Silva, conhecido como

Renot, era baiano e ficou popular por negociar obras de artes na Bahia. Além de

assinar a referida coluna, tinha uma galeria na Rua Carlos Gomes, bastante

frequentada por colecionadores artistas e turistas, à qual batizou de Querino, em

homenagem ao primeiro historiador de arte que tivemos – Manuel Querino. Renot

comprava telas de diversos artistas plásticos, mas era com os artistas autodidatas

que o marchand mais investia e lucrava, pois, apesar de comprar as obras por valor

reduzido, tinha retorno maior e imediato. Em entrevista concedida para esta

pesquisa, Renot declarou ter investido, certa ocasião, em mais de duzentas telas de

João Alves de uma só vez e as vendeu, também de uma só vez, para João Condé e

Abreu Sodré, este último era na época o governador de São Paulo, quando estes

visitaram a Bahia a convite de Odorico Tavares:

“Eu comprei muito, mais de 200 João Alves eu comprei, um dia apareceu João Condé e Abreu Sodré, que era governador de São Paulo, na Bahia e aí Odorico Tavares falou: acompanha o João (Condé) e eu fui sair com eles, fomos a minha galeria, eu tinha uma galeria aberta na Carlos Gomes e eles compraram todos, compraram os duzentos todos”. (RENOT, 2011)41

No capítulo 2 desta dissertação, quando destaco a condição social de João

Alves, menciono que o referido mecenas hospedou o artista na casa de seu

funcionário, Sr. Carlos, segundo depoimento de Celso Guedes (2012), para produzir

quadros especialmente para sua galeria.                                                                                                                41 Entrevista realizada em 26 de agosto de 2011, a reprodução acima segue o depoimento oral.

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Em anúncio de abertura de sua galeria, Renot fez questão de incluir e

destacar João Alves na lista de artistas de sua coleção como forma de

credenciamento e legitimação de seu espaço cultural: A Galeria de Arte Manoel Querino, no Edifício Veirik (Av. Sete, 137, Loja 4) deverá inaugurar-se em grande estilo por todo o próximo mês de julho, abrindo as suas portas já com trabalhos de envergadura de alguns dos melhores artistas plásticos baianos, entre os quais: Carybé, Mário Cravo, Calazans Neto, Carlos Bastos, João Alves (RENOT, Diário de Notícias, 2 jul. 1962, p. 4).

Em 1968, no lançamento da II Bienal Nacional de Artes Plásticas da Bahia, o

colunista foi visitar o evento e publicou, no dia seguinte, a nota abaixo sobre João:

Figura 27 - Jornal Estado da Bahia. Salvador. 21 de dezembro de 1968, p. 5. Coluna Notícias do Renot. Biblioteca Pública do Estado da Bahia.

O texto do recorte acima, no jornal do Estado, Renot relata em sua coluna, a

emoção de João Alves, ao ver seu nome na lista dos pintores que integravam a

mostra da Bienal, publicada na revista GAM, importante e respeitado periódico

especializado em artes, no nº 17 de 1968, em uma edição especial intitulada II

Bienal Nacional de Artes Plásticas. O fac-símile do jornal encontra-se no Capítulo 2

– Figura 17, página 62, com as cinco telas expostas do artista.

No mesmo período da II Bienal, Renot lança sua nova Galeria no lugar da

Querino – a galeria Renot, na Avenida Sete de Setembro. E, a exemplo do primeiro

lançamento, há seis anos, o marchand novamente cita João Alves como integrante

de seu acervo, em anúncio publicado na revista carioca de artes GAM. (Figura 28)

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Figura 28 - Revista GAM. Nº 17, dezembro de 1968. Biblioteca da Escola de Belas Artes da UFBA

No final do século passado e início deste, duas exposições póstumas foram

realizadas e merecem destaque. Na primeira, especificamente em 1º de dezembro

do ano de 1994, o Museu de Arte Moderna da Bahia (MAM/BA) promove mostra que

remonta ao período áureo da arte moderna na Bahia. Em homenagem às duas

exposições de 1944, citadas no capítulo anterior, que marcaram a chegada do

Modernismo no Estado, foi promovida a referida exposição com o título: O

Modernismo na Bahia, que trouxe a atmosfera da época. Foi também impresso um

tabloide contendo um resgate histórico do momento de efervescência cultural de

meados do século. A mostra também abriu o 1º Salão MAM-BA de Artes Plásticas,

no Teatro Castro Alves, sob o Decreto nº 3.781 de 02 de dezembro de 1994 da

Bahia. A exposição que teve a curadoria da professora Sofia Olszewski Filha, e

direção do MAM/BA, de Heitor Reis, contou com obras de meados do século, dentre

as quais, uma tela de João Alves: “Igreja da Piedade”(Figura 29):

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Figura 29 - O Modernismo na Bahia. Tablóide da exposição, 1994 (recorte da lista de expositores de mostra comemorativa). Biblioteca da Escola de Belas Artes da UFBA

Na outra exposição, trinta e cinco anos após a morte de João Alves, o MAB -

Museu de Arte da Bahia, sob a direção de Syvia Athayde, homenageia João Alves

com uma exposição realizada no dia 12 de dezembro de 2005. A mostra expôs

pinturas de João Alves, cujos temas eram as igrejas de Salvador. O evento foi

divulgado no jornal A Tarde, com texto de Justino Marinho e César Romero (Figuras

30 e 31).

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Figura 30 – Texto de Justino Marinho e César Romero sobre a exposição no MAB. Jornal A Tarde. Salvador. Dezembro de 2005. Artes Plásticas. Arquivo do MAB

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Figura 31 - Jornal A Tarde. Salvador. 12 de dezembro de 2005. Artes Plásticas. Arquivo do MAB

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Quanto à questão de João Alves nos livros, destaco, de início, o livro de José

Valladares, de título questionável, Artes Maiores e Menores, publicado pela UFBA,

em 1957. A obra reúne uma seleção de crônicas sobre as artes e questões de juízo

de valor e gosto, e nela é feita uma referência a João Alves como um criador oriundo

do povo, cuja obra traz qualidades artísticas relevantes.

Com uma crítica de arte pautada no juízo de valor, o autor não reputa o

considerado “mau gosto” baiano à falta de cultura europeia, nem americana (culturas

vistas como modelo de bom gosto). Ele exalta a produção do homem humilde,

historicamente, com valores plásticos “altos”, e, nessa relação, cita o pintor João

Alves como exemplo: Ao invés do que se poderá presumir à primeira vista, nenhuma culpa cabe à falta de cultura européia (ou americana) do nosso povo. Digamos, desde já e com a necessária ênfase: seja no passado, seja no presente, tudo que tem saído das mãos do povo baiano, o povo humilde propriamente dito, revela uma instinto plástico de boa categoria, tanto na forma como na côr, tanto na composição como na expressão. Desde as casas populares aos objetos de culto religioso ou de adôrno pessoal, desde os utensílios que se encontram nas feiras e mercados às criações de um João Alves ou Rafael, no terreno da pintura. (VALLADARES, 1957, p. 112)

Ao explicar o chamado “mau gosto” encontrado em Salvador, no ensaio, O

mau gôsto nas ruas da cidade, publicado em 16 de maio de 1954, José Valladares

critica, por exemplo, o traçado das ruas da capital baiana que destruiu árvores

centenárias a troco de progresso e de uma arquitetura que, para ele, era de “gôsto

inferior”. Em outro trecho do livro, ao analisar o IV Salão Baiano de Belas Artes,

1954, promovido pelo então governador da Bahia, Antônio Balbino, José Valladares

chama a atenção para a obra de João como uma das poucas obras baianas

expostas no evento que o surpreendera. A crônica tem como título O Quarto Salão e

fora publicada entre 5 e 9 de dezembro daquele mesmo ano: Treze artistas da Bahia contribuíram para a secção de pintura. Representam vinte por cento dos expositores da secção. Mencionarei apenas dois, ou seja, exclusivamente aqueles que a mim surpreenderam. Penso que os demais se conservam no que eram, ou estão abaixo do que já foram, ou então desconheço seus trabalhos anteriores, como acontece com Radamés Pêra, recém-chegado. Os dois expositores baianos que me dão o que pensar no presente salão são, em primeiro lugar, João Alves Oliveira da Silva, o conhecido João Alves, de profissão engraxate, e que compareceu com dois pequenos quadros, “Mangue” e “Igreja de São Lourenço”, dois frutos de sua vocação instintiva para pintar, sendo “Mangue” uma de suas melhores obras até hoje. O outro é Didácio Ribeiro Lima... (VALLADARES, 1957, p.161, 162)

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A análise de José Valladares destaca a inventividade de João Alves e

constata, em suas duas telas apresentadas no Salão, que o artista não vem se

repetindo em seu fazer plástico, como alguns pintores, em sua avaliação.

Mas, além dessa valiosíssima publicação de José Valladares, há dois livros

que foram lançados com críticas substanciais sobre João Alves: um, em 1962, de

Clarival do Prado Valladares – Paisagem Rediviva, numa aproximação da teoria

formalista de arte; dez anos depois, após a morte do artista, foi publicado por

António Celestino Gente da Terra, desta vez, um exemplo baiano da crítica

expressionista. Sobre esses dois livros me debruçarei, ainda que de modo breve,

por serem textos de tamanhos razoavelmente curtos, mas que contribuíram para

uma melhor compreensão da dimensão e da importância da obra de João Alves

para o circuito artístico baiano.

  4.2.1 Paisagem Rediviva

O livro Paisagem Rediviva é uma coletânea de crônicas e críticas de arte

sobre diversos artistas e exposições acompanhados pelo médico, escritor, professor,

poeta, pesquisador e crítico baiano Clarival do Prado Valladares (1918-1983). Irmão

do já citado professor e crítico José Valladares, Clarival chegou, em 1962, a ser

chamado pela Congregação para lecionar História da Arte na Escola de Belas Artes

e na Escola de Teatro da Universidade da Bahia, por sua forte ligação com as artes.

Mas se mudou definitivamente, no ano seguinte, para o Rio de Janeiro.

O texto sobre João Alves contido nesse livro é o mesmo publicado no DN dos

dias 2 e 3 de abril de 1961, ano anterior ao lançamento da obra Paisagem Rediviva.

Trata-se de um ensaio crítico sobre uma exposição do MAM-BA (Museu de Artes

Modernas da Bahia) de dois artistas autodidatas e não acadêmicos, o paulista

Agostinho Baptista de Freitas e o baiano João Alves, que Clarival preferiu chamá-los

de primitivos - tema trabalhado no capítulo anterior, onde foi observado o desuso do

termo por sua inadequação, e, apesar da expressão ter sido recorrente naquela

época, sugere uma relação de poder quando emprega ao rotulado uma qualidade

que o subestima. O emprego do termo “primitivo” no texto abaixo, reforça o que fora

discutido acerca da influência europeia sobre o pensamento moderno nas artes

ocidentais, proliferando o entendimento equivocado e preconceituoso do gênero

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artístico estudado. Portanto, como o texto será aqui reproduzido na íntegra, vale

lembrar que o termo primitivo não é adequado na categorização desses artistas que,

geralmente, vêm do “povo” e sem formação oficial, acadêmica e artística. Segue o

referido texto, como fora publicado nas páginas 229 a 236 do livro do doutor

Valladares (ver o ANEXO F, o jornal DN):

CONFRONTO DE DOIS PRIMITIVOS Foi excelente a iniciativa do Museu de Arte Moderna da Bahia em expor o pintor primitivo paulista Agostinho Baptista de Freitas (eletricista) ao lado do pintor primitivo baiano João Alves (engraxate) da Sé. O propósito não é o de comparar duas técnicas, duas qualidades, duas atitudes. A intenção é revelar como pintores primitivos interpretam seu ambiente e, doutro modo, como as qualidades de cada ambiente se projetam e se expressam através de seus intérpretes imunes de academismo e de esnobismo. Desta maneira podemos ver nos numerosos quadros de Agostinho como as qualidades da massa urbana de São Paulo se traduzem para a consagração do trabalho pictórico de seu artista ingênuo e, pela mesma razão, como os traços da cidade do Salvador e de seus arredores chegam à composição de nosso êmulo. Sendo o artista primitivo desprovido de maiores preocupações da problemática, sua obra interessa especialmente por seu conteúdo temático. Utiliza os meios de desenhar e pintar nas soluções mais simples, mais fáceis, e empreende todos os caminhos que possam levá-lo à realidade poética da representação. Nenhum dos problemas que afligem o artista erudito, aquele... [...] Quanto ao primitivo baiano João Alves, o engraxate da Sé, suas características se situam em território estético diferente. João é mais que primitivo. É primário. É rude. É, ètnicamente, puro. A pintura que faz, sem uniformidade de produção, sem constância das qualidades que atinge nem do impróprio em que oscila, não pode ser mensurada por um convencionalismo criticista e muito menos por uma codificação arbitrária. É uma pintura-milagre, no bom sentido do primeiro e do segundo têrmo. E não é exclusiva de João Alves Oliveira da Silva. Ao que tudo indica êste pintor é apenas uma manifestação da arte popular baiana, impressionantemente generalizada entre os humildes desta terra. Lembro-me do enlêvo de José Valladares e dêle citarei um trecho (página 112, Artes Maiores e Menores, 1957, Publicação da Universidade da Bahia) que a sua voz está neste assunto: “Digamos, desde já com a necessária ênfase: seja no passado, seja no presente tudo que tem saído das mãos do povo baiano, o povo humilde pròpriamente dito, revela um instinto plástico de boa categoria, tanto na forma como na côr, tanto na composição como na expressão. Desde as casas populares aos objetos de culto religioso ou de adôrno pessoal, desde os utensílios que se encontram nas feiras e mercados às criações de um João Alves ou Rafael, no terreno da pintura”. Portanto, a primeira qualidade a ser vista em João Alves é aquela apontada por José Valladares na generalidade da arte popular baiana. O que diferencia o pintor a ponto de destacá-lo do anonimato da produção artística popular e integrá-lo entre aquêles que firmam a manifestação estética brasileira mais autêntica, é – sem a menor dúvida – a sua originalidade interpretativa. *** João Alves tem, em seu ambiente, fartura de ricos motivos para a sua realização plástica. Enquanto o eletricista de São Paulo humaniza sua cidade, o engraxate baiano exalta-a. O casario que serve a João Alves quer seja o colonial de maior agrupamento, mais denso e monumental, quer seja o dos arraiais e bairros pobres, mais diluído, já é por si uma organização pictórica favorável. Mesmo assim o seu intérprete primitivo não o retrata morfològicamente. Confere-lhe novas dimensões e aparências como se estivesse a imprimir sôbre todo o conjunto as

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qualidades magnas dos principais elementos. Desta maneira foi que João Alves fêz o belo quadro da face principal de Salvador, hoje utilizado como fundo de montagem propagandística do Banco da Bahia na TV Itapoã. Neste exemplo todos os edifícios do mau-gôsto dêste século, se vestem de fisionomia barrôca e daí resulta a atmosfera romântica criada pela pintura. Uma outra característica favorável ao confronto dos dois primitivos é a que diz respeito ao modo como cada um dêles trata a luz, componente dominante de tôda composição. Agostinho trata-a com geometricidade, isto é, indica-a na forma de recorte (claro-escuro das nuvens, retângulos das janelas, feixes de holofotes, etc.) e João Alves dilui na atmosfera, plasma-a no envolvimento de todos os corpos. No casario de Agostinho, freqüentemente representado no meio-escuro num excepcional ritmo de qualidade geométrica. Por êste motivo é de se crer que o desenho do primitivo paulista seja mais detalhista, conseqüente e aparentemente mais realista. No caso do pintor baiano, uma vez que a luz envolvente dissolve a realidade figurativa, seu desenho se transforma em indicação, despoja-se da veracidade e se realiza como síntese das formas (linhas sinuosas, indicando beirais, toques rápidos indicando esquadrias, etc.). Ainda vale anotar que o desenho-síntese de João Alves é o seu poderoso recurso de configurar a boa qualidade plástica dos modelos preferidos, os sobrados e casas velhas da Bahia – como denominador comum de tôda a paisagem. Por fim desejamos também confrontar o modo como êsses dois artistas representam a figura humana. Agostinho, dominando melhor o desenho linear, no-la traz corretamente situada na perspectiva, embora sem eliminar o agradável corte de bonecos. João Alves, sem domínio do desenho, utiliza-a em livre arbitrariedade de proporção e de situação, entretanto reabilita-a por sua capacidade descritiva da atitude. Preocupa-nos, na conclusão dêste escrito, evitar a idéia de julgamento que se poderia, por equívoco desejar entre os dois primitivos. Por serem ambos artistas surgidos ao nível da cultura primária, merecem, da parte do critico, o mais verdadeiro respeito. Êles vêm do que em estética se exige com mais rigor: a autenticidade. E êles se encaminham pela senda mais desejável para a obra d’arte: a consagração do motivo. Faltam-lhes, apenas, estigmas de valorização discricionária, os quais, por tôda dimensão histórica da arte, nunca se firmaram, nunca chegaram a ser perenes. E é por causa desta razão contundente que a arte erudita vai em busca de sua flagelação, enquanto a arte primitiva, válida a todos os tempos, emerge de suas origens magísticas e assume uma simples atitude contemplativa para salvar a São Paulo e eternizar a Bahia. (VALLADARES, 1962, p.229-236).

Durante a leitura de todo o texto, como se pode ver, por mais que tente evitar

o embate com expressões pejorativas como rude, etnicamente primário, pintura

milagre e cultura primária, é inevitável, no mínimo, perguntar qual a intenção e

significado real do emprego de cada um desses termos? Em contrapartida, é de bom

tom lembrar que o termo primitivo, por exemplo, é hoje inadequado, como vimos no

capítulo anterior, mas naquela época, infelizmente, era bastante usual nas artes

plásticas. Com isso, devo admitir que apesar do desconforto classificatório, o

objetivo e limites deste capítulo é apenas apresentar relatos sobre João Alves, que,

de alguma maneira, o reconheceram como artista, valorizaram e o colocaram em

lugar de destaque no cenário das artes plásticas no Brasil.

Para tanto, vale destacar do texto, felizes colocações do doutor Clarival

Valladares sobre a obra de João. Em uma análise crítica próxima ao Formalismo de

Clive Bell, Clarival consegue observar a forma – pinceladas, luz e sombra, brilho,

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desenho linear e composição das obras estudadas. Outro destaque foi a referência

aos “ricos motivos” para a realização plástica, onde os diversos casarios coloniais

com seus valores estilísticos, os monumentos e as igrejas do Centro Histórico de

Salvador são de uma riqueza incomensurável para pautar o tema do artista. Outra

observação é quanto às “novas dimensões e aparências” que João sugere em sua

pintura, não representando a paisagem como mero registro arquitetônico de uma

época, mas dando sua colaboração interpretativa, composicional e inventiva ao

tema, e como o próprio autor salientou, o “poderoso recurso de configurar a boa

qualidade plástica dos modelos preferidos, os sobrados e casas velhas da Bahia –

como denominador comum de tôda a paisagem”. Clarival, em sua análise formalista,

também percebe a síntese das formas na pintura de João Alves, na proporção das

figuras humanas de maneira bastante pessoal, o que o autor chamou de desenho-

síntese. E considerou o discurso de “autenticidade”, comum àquela época, como

elemento presente na obra do pintor baiano.

4.2.2 Gente da Terra

O livro Gente da Terra, publicado em 1972, de autoria do povoense António

Simões Celestino da Silva, é prefaciado por Jorge Amado. O texto que se refere ao

artista encontra-se entre as páginas 103 e 107, e quase que poético, biografa o

artista João Alves, enaltecendo os valores artísticos de sua arte.

JOÃO ALVES, PINTOR POPULAR João Alves foi uma das figuras populares mais importantes de Salvador durante muito tempo. Pode-se até dizer que enquanto foi vivo. Antigo carregador das docas, o esfôrço dispendido nêsse desumano e selvagem mister de ganhar o pão de cada dia arrazou-lhe o coração. Arranjou então uma banca de engraxate, trabalho mais mole, e na porta do Palácio Arquiepiscopal da Praça da Sé ia lustrando os sapatos e as botinas numa freguesia que muitas vêzes ficava alarmada com sua cara braba de poucos amigos, seu grosso vozeirão e seus modos soltos de homem do povo. Mas poucos minutos de conversa exibiam uma risada limpa e aberta e o susto passava, João era uma boa alma e abrigava dentro de si uma inocência de criança pequena. Mas parece que o ofício, embora suave de esforço, não era rendoso bastante, João tinha uma constante avidez de dinheiro, apêrto que conservou até morrer, coisas de mulher a conquistar, rodas de amigos para beber. Enfim seu pequeno mundo tinha exigências, eis que lhe despertou o desejo de pintar, primeiro tímidos assuntos muito simples, barracas de pescadores, coisas assim, onde despontava já um colorido popular de festão de arraial, côres puras que usou até morrer, pois nunca as soube misturar, nem disso precisava sua arte ingênua e primária. E ia ousadamente pendurando seus alegres quadrinhos na porta do palácio, enquanto no seu ofício ia convencendo a freguesia dos

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seus dotes de artista pintor, “veja que beleza”, ”ninguém ainda pintou assim”, “onde é que tem igual”, “vendo barato porque do que eu gosto é de pintar”, as gargalhadas lavavam o ar e assim êle ia vivendo e vendendo. A porta sempre tinha novidades expostas, era permanente a exposição, quem passava sempre dava uma olhada ou parava para admirar essa pintura tão fresca, sem complicações, muito alegre e que fazia bem ao olhar, parecia de gente boa, quem é ruim não pode pintar dessa forma e lá estava o João para confirmar êsse juízo. Pessoas ilustres de tôdas as categorias, Sábios professores que iam dar aulas na Faculdade de Medicina, venerandos cônegos do cabido da Catedral, graves bacharéis que passavam para a Cidade Baixa apressados para pegar o Chariot, não lhe prestavam muita atenção, que é que um engraxate sabe pintar se ninguém o ensinou, que escola é essa meu Deus, isso até meu filho faz, só o povo que passava é que parava encantado, pois entendia essa rude linguagem, reconhecia as casas e os lugares que só existiam na imaginação do seu pintor, via as côres pelo mesmo prisma distorcido mas poético, nunca tivera a preocupação de saber se as casas da rua eram alinhadas, se as janelas eram assim ou assado era com os arquitetos, êle achava bonito, isso o contentava, e pronto! E um ou outro artista mais aberto, como êsse extraordinário José Valadares ou um exótico francês como Pierre Verger, que nêle repararam e souberam ver o quanto o simples artista tinha para contar à sua gente numa linguagem inédita, desprendida mas clara, rústica mas sincera, de frases pequenas mas coloridas, sem vergonha de mostrar suas distâncias sem perspectiva nem suas linhas sem geometria. Assim era o artista, assim era sua pintura. Nunca houve tanta semelhança entre o criador e a sua obra, ambos eram água da mesma fonte, ambos se completavam numa sincera ingenuidade. Depois veio a fama, essa terrível mutiladora de vocações. O simples engraxate sem compromissos com ninguém, transformou-se em profissional, João abandonou o ofício humilde e fêz-se artista, à sua moda bizarra. Um descomunal chapéu que raro tirava da cabeça, camisa desabotoada até a cintura para deixar à mostra uma corrente de ouro que segurava um grande crucifixo também de ouro, reluzentes anéis em vários dedos. João passou a viver da sua vocação de pintor e a ter que pintar obstinadamente para sustentar a sua grande família, sua e dos outros, pois seu grande coração aninhava filhos adotivos e próprios, tudo como se fôsse de sua carne e sangue. A sua condição de homem do povo a quem faltou uma base de instrução, fizeram dêle como que um poeta popular, um repentista da pintura com tôda a graça e a pureza dos artistas anônimos. Em todos os países os há e são adorados pelo povo, pois êles são a força para continuar carregando o sofrimento e a resignação. João Alves saiu dessa fornada de artistas e da sua intuição resultaram alguns quadros que são momentos alegres e garridos das ruas por onde andou, milagre da sua vida de jogral da côr. Sua obra está hoje espalhada pelo Brasil inteiro, aquecendo muito ambiente, alegrando muita parede. Sua técnica não teve fim nem princípio. E as palavras que algum crítico possa inventar a seu respeito, serão sempre vazias de sentido. Como também nunca haverá forma de se descobrir a razão porque as aves do céu, sem o saber, voam tão bonito. CELESTINO, 1972, p.103-107).

O texto de Celestino parece seguir a teoria estética Expressionista da arte,

onde a vida, o contexto histórico-social e cultural ocupa lugar de destaque na

interpretação da obra (Carroll, 2010). O valor está na biografia, no repertório do

pintor; é preciso conhecê-lo primeiro, a sua subjetividade, dar ênfase à sua vida,

pois a obra de arte está dentro do artista. Com isso, a crítica de Antonio Celestino

traz algumas características de comportamento e noções físicas de João Alves, já

pontuadas no primeiro capítulo. Ele cita, por exemplo, a “cara braba”, do tipo

desconfiado e de poucos amigos, mas lembra que a aproximação com o pintor

revela sua “boa alma”, qualidade reveladora para os que conquistam sua confiança.

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O chapéu usado pelo artista, a camisa sempre aberta e o colar de ouro à mostra

eram características fiéis do figurino de João Alves. O autor também aborda sua

condição socioeconômica, sua dificuldade em manter seu sustento e de seus

“muitos filhos”. Confirma-se aqui o papel social do artista frente à sua comunidade,

no provimento de “sua grande família”, seus inúmeros adotivos, filhos de prostitutas

da região do Maciel. É importante ressaltar a situação humilde do artista, que

encontrou nas artes um alento econômico, mas que não o tirou da pobreza. Visto

que, o mercado de arte, permitia comércio a preços modestos de obras daqueles

menos favorecidos da sociedade, provavelmente ficou a mercê das imposições de

sua clientela - colecionadores, artistas, mecenas e turistas, assunto já abordado no

primeiro capítulo sobre o mercado de arte na Bahia.

Para tanto, Celestino narra como João Alves anunciava seus quadros na

porta do Palácio Arquiepiscopal da Praça da Sé: “veja que beleza”, ”ninguém ainda

pintou assim”, “onde é que tem igual”, e ainda apelava: “vendo barato porque do que

eu gosto é de pintar”.

A homenagem póstuma é concluída poeticamente com a alusão da obra e

vida de João com as coisas mais simples da vida pela intrigante incógnita de serem,

sem explicação, tão belas.

4.3 JOÃO ALVES NA LITERATURA AMADIANA

Partindo da análise amadiana de Benedito Veiga, em seu livro Dona flor da

cidade da Bahia: ensaios sobre a memória da vida cultural baiana, de 2006,

observa-se a utilização por Jorge Amado, em seus romances, dos amigos e pessoas

do dia a dia baiano. Veiga chama de autor-perfomer esta atitude de aparecerem

pessoas físicas em tramas ficcionais na construção literária. Esse perfil era comum

nos romances de Jorge Amado e deve ser acentuado no atual trabalho, dada a

relevância do papel amadiano na vida e obra do artista João Alves. Ele é citado, ou

melhor, ele é um personagem vivo do romance Dona Flor e seus dois maridos, de

1966. O conceito de autor-performer, analisado por Benedito, é importante para

entendermos como e porque pessoas reais e ficcionais se misturavam nas histórias

do romancista:

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O autor-performer vai representar partes de sua visão do mundo; é um trabalho mais como atuante e menos como representante. Podem aparecer pessoas físicas similares às personagens; parte-se de um physique-du-rôle, não só físico como também existencial, podendo conduzir, por vezes, quase às raias do paroxismo, como nas leituras de proximidades e de reflexos, presentes nas notícias de Sylvio Lamenha (o inspirador do Silvinho Lamenha, em Dona Flor). Melhor dizendo, na performance geralmente se trabalha com persona e não com personagem, pois aquela diz respeito a algo mais universal, mais arquetípico, enquanto esta é mais referencial. Na verdade, uma persona é uma galeria de personagens. O trabalho do autor-performer é o de levantar sua persona; isto, na maior parte dos casos, se dá pela forma, de fora para dentro; é um trabalho a partir do exterior, faz com que, na maioria das vezes, as personae não sejam realistas muito embora tenham energia própria, guardem verossimilhança com um modelo. (VEIGA, 2006, p. 25)

Benedito Veiga sugere que as intenções performáticas, junto com a

efabulação da notícia, misturam as vivências existenciais com ficcionalidade, ou

seja, as personalidade existentes no mundo real são tomadas como modelo na

construção das personagens,   “emprestam nomes, traços físicos, ocupações

profissionais, às vezes modificados ou desdobrados” (VEIGA, p.26). Veiga destaca a

imprensa como principal divulgador desse “empréstimo” de pessoas reais à obra

amadiana e cita fac-simile de um jornal local, que transcreveu trecho do romance

publicado em revista paulista, onde aparece uma personalidade muito conhecida

dos baianos, o pintor João Alves: A imprensa igualmente corrobora os anseios performáticos, básicos na mistura do real com o ficcional, e necessários à construção da persona amadiana. O Estado da Bahia, de 11 de maio de 1966, registra a publicação de um capítulo de Dona Flor – “Visita à Dionísia de Oxossi” -, na revista mensal paulista Realidade de maio de 1966, “[...] com ilustração de Carybé”, e acrescenta: “No mesmo capítulo, uma das figuras mais focalizadas é o próprio pintor baiano João Alves”. O fato é fruto da publicidade, não apenas local, mas nacional, para atender a anseios de penetração no mercado da recém-inaugurada revista, em seu segundo número (VEIGA, 2006, p. 28).

Curiosamente, a referida coluna supracitada que divulgou o aparecimento de

João Alves em um dos capítulos do romance de Jorge Amado, na revista paulista

Realidade, era a de Renot, já citado neste texto.

Mais adiante, Veiga ainda reforça a importância dada aos personagens de

Jorge Amado pela razão simples de existirem no mundo real, pela manutenção de

seus nomes, características físicas e profissionais. Tanto que, muito antes do

lançamento do romance, a imprensa já buscava tais personagens para ensaios de

fotos, onde João Alves era um dos destaques.

O Estado da Bahia, em 18 de maio de 1966, na mesma coluna de Renot, avisa que continuam sendo fotografadas “[...] as principais personagens do

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romance de Jorge Amado [Dona Flor], entre elas os pintores João Alves, Jenner Augusto, Cardoso e Silva, o banqueiro Antônio Celestino e d. Norma Sampaio, que, no romance, é conselheira de D. Flor. Trata-se da referência à coleta de dados, inclusive fotografias, para a reportagem de Walter Lessa, “Os Personagens Vivos de Jorge Amado”, que seria publicada em Manchete, revista semanal carioca de circulação nacional em seu número 740, com data de 25 de junho. A notícia diz que apesar das advertências de Jorge Amado, ele transforma (ou as pessoas se querem transformar) em personagens de seu livro grande número de personalidades da vida baiana, que são retratadas com seus nomes, profissões e aspectos verdadeiros, embora em situações criadas pelo romancista, numa curiosa mescla de ficção e realidade: Os personagens vivos de Jorge Amado são todos amigos de velha data, aos quais o escritor quis pegar uma divertida peça e, ao mesmo tempo, homenagear ao longo da história de Dona Flor, que é um retrato de corpo inteiro da pequena burguesia baiana de alguns anos atrás. (VEIGA, 2006, p. 28)

O SDN, assim como toda a imprensa local, também divulgou o livro de Jorge

Amado. Destaco aqui a publicação dos dias 2 a 4 de julho de 1966 com a manchete:

Jorge coloca a Bahia e o povo no livro em que mostra Dona Flor e seus 2 maridos

(ANEXO G).

O romance Dona Flor e seus dois maridos foi divulgado como um produto

originalmente baiano, no qual a população baiana se enxergaria como em um

espelho. O próprio Jorge Amado declarou que esperava que na Bahia, ao contrário

de outros lugares, o livro não ser encarado como romance, pois o baiano estaria,

segundo o romancista, preocupado em identificar personagens e cenários na

publicação.

A seguir, alguns trechos do romance, especificamente, no capítulo Visita a

Dionísia de Oxossi, no qual, sob forte suspeita de que seu marido Vadinho tinha um

caso com a rapariga Dionísia de Oxossi, no que resultou o nascimento de uma

criança, dona Flor se vê na obrigação de conhecer tal mulher e barganhar o provável

filho do marido. Ela conta com a ajuda de dona Norma, que é madrinha de um dos

filhos-netos adotivos de João, a qual o pede ajuda. O personagem João Alves é

figura relevante na trama para levar as duas mulheres: sua comadre, dona Norma e

a desconhecida dona Flor à casa de Dionísia de Oxossi, na zona de meretrício: Como deixar a pobre Flor aventurar-se sozinha naqueles ameaçadores labirintos? - perguntou ela a Zé Sampaio; quando o marido, no assombro da notícia, ainda a tentara dissuadir. - Não sou mocinha tola, sou mulher de maior e de respeito, ninguém vai se atrever a tirar prosa comigo. - E revelava os amadurecidos planos a Zé Sampaio vencido, incapaz de resistir ao ímpeto vital da esposa: - A gente vai domingo de manhã. Vou como se fosse visitar meu afilhado, o neto de João Alves. Depois peço a João que acompanhe a gente à casa da fulana. E, João, você sabe, é mestre de capoeira... E assim o fizeram. No domingo ouviram missa na Igreja de São Francisco (Dona Flor levara uma vela enfeitada de flores, promessa para tudo correr bem), depois

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atravessaram o Terreiro e foram encontrar o negro João Alves em sua banca de engraxate, no passeio da Faculdade de Medicina. Estava cercado de crianças, e tanto o negrinho de carapinha, quanto os diversos mulatos mais escuros ou mais claros, assim como o loiro de cabelos de trigo, todos o tratavam de avô. Eram todos seus netos, aqueles meninos e os demais, soltos no dédalo de ruas entre o Terreiro de Jesus e a Baixa dos Sapateiros. O negro João Alves jamais tivera filhos nem com sua mulher nem com outras, mas arranjava madrinhas para seus netos, comida, roupas velhas e até cartas de abc. Vivia num porão ali perto, com seus resmungos, suas mandingas, sua aparente brabeza, suas má-criações, alguns dos netos, e o porão abria sobre um vale plantado de verde, de seu buraco o negro João Alves comandava as cores e a luz da Bahia. - Oxente!, quem está aí, bons olhos lhe vejam, minha comadre Dona Norma... E como vai seu Zé Sampaio? Diga a ele que vou aparecer na loja um dia desses para buscar uns sapatos pros meninos... Os moleques cercavam as duas amigas, Dona Norma viera preparada, em sua mão surgiu um saco de caramelos. João Alves soltou um assovio, alguns meninos apareceram correndo e entre eles um cafuzo de uns quatro a cinco anos. O negro acariciou-lhe a cabeça: - Peça a benção a tua madrinha, seu coisa-ruim... Dona Norma deu-lhe a benção e um níquel de dez tostões, enquanto o negro queria saber que bons ventos haviam trazido sua comadre até ali. - Pois, meu compadre, é que tenho um favor a lhe pedir, coisa de muita delicadeza. - Coisa delicada não é pra minhas mãos, sou meio rude como vosmicê bem sabe... - Quero dizer: coisa muito reservada, para ficar em segredo. - Aí está certo, que não sou linguarudo nem mexeriqueiro. Pode desatar a língua, comadre... - O compadre conhece por aqui uma tal de Dionísia? Não sei bem mas ouvi dizer que mora nessas redondezas. - E vosmicê tem algum trato com ela? - Eu propriamente não, meu compadre. É essa minha amiga que tem um assunto a ver com ela... João Alves mediu Dona Flor de alto a baixo. - Ela tem um assunto a ver com Dionísia de Oxossi? - Capaz seja a mesma... Ouço dizer que é bonitona. João Alves coçou a carapinha: - Bonitona? Me adisculpe, minha comadre, mas dobre a língua. Bonitona qualquer branca pode ser, mas mulata da competência de Dionísia tem poucas no mundo, acho que nem meia dúzia e isso escarafunchando muito... - Uma que teve filho recentemente... - Pois então é ela mesma, tá de menino novo, nem voltou ainda a trabalhar... Pela primeira vez, Dona Flor abriu a boca, querendo saber: - Em que ela se ocupa? Novamente João Alves a mediu com os olhos e com certo desprezo ante ignorância tão grande: - Pois em trabalho de meretriz, que é o ofício dela, Dona moça. Dona Norma retomou o fio da conversa: - E meu compadre se dá com ela, sabe onde ela mora? - Pois não havia de me dar, comadre? Mora aqui rente, no Maciel. - Meu compadre vai nos levar lá, minha amiga quer conversar com ela, resolver um assunto... João Alves mais uma vez considerou longamente Dona Flor, coçava a cabeça como se encontrasse tudo aquilo suspeito e duvidoso: - Por que ela não vai sozinha, comadre? Eu mostro a casa... - Meu compadre, seja cavalheiro. Vai largar duas senhoras nessas ruas, desacompanhadas? Passa um abusado, se mete com a gente... Ninguém apelava inutilmente para o cavalheirismo de João Alves: - Pois vou com vosmicês, mas lhe agaranto que ninguém ia tirar graça, aqui é tudo gente respeitosa... Levantou-se, entregou a cadeira de engraxate ao cuidado dos netos, era um negro esguio e sólido, passado dos cinqüenta, a carapinha começando a embranquecer; trazia

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um colar de orixá ao pescoço, contas vermelhas e brancas de Xangô, e apenas os olhos estriados denotavam a intimidade da cachaça. Ao pôr-se de pé, quis saber: - Minha comadre Dona Norma e que assunto é esse que a mocinha aqui - dizia mocinha numa voz de debique - quer tratar com Dió? - Nada de ruim pra ela, meu compadre... - Mesmo porque, se fosse de malvadeza, com todo respeito que lhe sou devedor, eu não ia junto, comadre... Também não adiantava porque o santo dela é forte. - Tocava o chão com a ponta dos dedos, saudando orixá: - Oké Aro Oxóssi! Não tem despacho nem ebó que faça mal a ela, o feitiço vira contra quem mandar fazer... - Quando é que você me leva a uma macumba, meu compadre? Tenho uma vontade danada de assistir a um candomblé... essa era outra curiosidade antiga de Dona Norma. Assim praticando sobre encantados e terreiros de santo, entraram pelo meretrício adentro. Por ser manhã de domingo - a farra de sábado estendendo-se pela madrugada - quase não havia movimento nas ruas. Apenas uma ou outra mulher sentada à porta ou debruçada à janela, mais para ver o dia claro do que para fretar homem. Um silêncio e um sossego, poder-se-ia dizer uma paz dominical; Dona Norma sentiu-se lograda, precisava vir em hora de azáfama. Nessa manhã sonolenta, não fazia diferença de um bairro familiar. Também a casa de Dionísia era logo no começo do Maciel, apenas haviam cruzado os limites da zona. Subiram as escadas de vacilantes degraus, um rato enorme passou por elas no escuro, em correria. Palavras e frases confundiam-se nos andares, alguém cantava modinha de tristezas com uma pequena voz. Quando atingiram o patamar do terceiro piso, o cheiro de alfazema queimada em defumadores de barro os alcançou, anunciando a existência de criança nova. Desembocaram num corredor; ao fundo, a porta do quarto da rapariga. João Alves bateu com o nó dos dedos. - Quem é? - perguntou uma voz morna e descansada. - É de paz, Dió... Sou eu, João Alves, e tem duas excelências comigo querendo falar com você. Uma eu conheço é minha comadre Norma, gente de bem, merecedora... - Pois vão entrando e desculpando o desarranjo, ainda nem tive tempo de arrumar o quarto... Entraram atrás do negro. Na peça estreita, uma cama de casal, um armário capenga, um lavatório de ferro com bacia e balde de esmalte, um urinol ao pé do leito, tudo muito asseado. Na parede, um espelho partido e uma estampa do Senhor do Bonfim com fitas bentas penduradas. Uma janela abrindo sobre os fundos do sobrado, por ela penetravam a claridade e a modinha triste. Reclinada nos travesseiros, meio coberta com um lençol, vestida com uma bata de rendas cujo decote lhe exibia os seios pejados, a mulata Dionísia de Oxóssi sorria cordial para as surpreendentes visitas. Na curva de seu braço, no calor de seu peito, o filho adormecido. Uma criança graúda, de um moreno carregado. Sob uma cadeira, um defumador queimava alfazema, perfumando peças de roupas do recém-nascido colocadas sobre a palhinha do assento. Além da cadeira, dois caixões de querosene cobertos com papel de seda faziam a vez de tamboretes. No ângulo da parede ao fundo, o peji com as armas de Oxóssi, o arco e a flecha, o erukerê, uma estampa de São Jorge a matar o dragão, uma pedra verde, fetiche talvez de Yemanjá, e um colar de contas, azul-turquesa. - Seu João - ordenou a mulata com sua voz descansada -, faça o favor, tire essas roupinhas da cadeira, ponha no armário, é pro neném mudar depois do banho. Dê a cadeira a essa moça... apontava Dona Norma, voltando-se depois para Dona Flor, a explicar-lhe num sorriso: - a senhora, que é mais moderna, vai desculpando, tem mesmo de sentar no caixão. [...] - Puxe um caixão para vosmicê também, seu João, e tome assento. - Fico mesmo de pé, Dió, assim estou bem. - Maneira certa de se conversar é na maciota e sentado, seu João, de pé e com pressa não ajuda o entendimento. O negro, porém, preferiu encostar-se à janela, voltado para a manhã cada vez mais luminosa. Um resto de canção entrava quarto adentro, vinha morrer plangente na cama de Dionísia. (AMADO, 2008. p. 139-143)

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4.4 JOÃO ALVES, O PINTOR DA CIDADE

O MESTRE JOÃO ALVES Jamais a côr de nossa cidade, mistura de seu mar, de seu céu, de seu verde bosque, de seu casario e de seu povo, jamais ela desaparecerá de todo por maior e mais violento seja o vandalismo dos prefeitos e dos proprietários dispostos a acabar com Salvador da Bahia. Jamais se perderá a lembrança dessa formosura acumulada pelo tempo e pelo homem, e de sua transparência e de seu mistério. Porque, enquanto perdurarem as telas de Mestre João Alves, a profunda verdade da Bahia – sua beleza de deslumbramento, sua magia de povo e de orixás – estará preservada para o futuro e para sempre reencontrada naquilo que o grande negro do Terreiro de Jesus pintou por adivinhação e por vida vivida, pintou por saber sem ter aprendido, um saber herdado de gerações e gerações, a contar do primeiro escravo vindo da África e aqui desembarcado. ... Vejo, sim, o pintor da cidade, de suas casas, suas ruas, sua gente miúda da festa do Bonfim e da eterna mulher-dama do Pelourinho, das noites de São João, do mágico carnaval dos afoxés, das areias sob a lua, e da côr desta cidade da Bahia, côr de João Alves, homem bom, de sofrida humanidade e generoso coração. Um homem do povo, nascido e plantado na pobreza e na grandeza das Portas do Carmo, um verdadeiro artista, um poderoso creador, um homem do povo e um mestre do povo, mestre da cidade e seu arquiteto, o pintor João Alves, um grande da Bahia (AMADO, 1964).

Jornal Diário de Notícias – SDN 20/12/1964 (grifo meu)

João Alves ficou conhecido pela sua síntese da cidade de Salvador,

sobretudo no tratamento e atenção desempenhados para com os monumentos

histórico-religiosos da capital baiana. Foi perfeitamente intitulado por Jorge Amado

como o pintor da cidade. As ruas, os casarios, as atividades cotidianas, as festas

populares, religiosas e as igrejas dão a tônica ao tema do artista.

Fazendo um passeio pela Salvador, farei um roteiro turístico às obras deste

que foi o pintor da cidade, no intuito de enaltecer e louvar a cidade que tanto

encanta pela sua riqueza natural e artística de suas formas e simbologias perenes

em cada esquina, viela, ladeira ou calçadão de seu Centro Histórico, considerado

também patrimônio cultural da humanidade.

4.4.1 As igrejas de João

Então, “por onde começar?”. Esta foi a pergunta de Odorico Tavares, quando

escreveu o livro Bahia: imagens da terra e do povo, de 1985, na epígrafe As Igrejas,

na qual sugere um roteiro para o visitante de onde começar sua exploração turística

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das incontáveis igrejas de Salvador. É seguindo este roteiro que devo apresentar as

igrejas acompanhadas das interpretações plásticas de João Alves, em sua série

Igrejas da cidade. Segue, assim, o itinerário de Tavares:

Por onde começar? E aí vai um ligeiro roteiro, um tanto pessoal, roteiro de um repórter nem sempre conduzido pela mão da fé. Não faz mal que esteja distante, mas que se comece o itinerário das igrejas da Bahia, pela do Bonfim. O samba recomenda ir ao Bonfim; que se vá. É o que há de maior como expressão de devoção popular. Está a basílica lá no alto da colina, o panorama da cidade aos seus pés, o pátio amplo, as palmeiras imperiais... É um recanto cem por cento baiano (TAVARES, 1985, p.59).

 Figura 32 - João Alves Igreja do Bonfim Pintura óleo s/ tela 51,5 X 74,5 cm, 1961 Museu Afro Brasil – Foto: Márcio S. Lima

De início, o convite é para a Cidade Baixa, onde está o templo católico de

maior devoção popular: a Igreja do Nosso Senhor do Bonfim. João, ao seu estilo,

pintou o monumento histórico-religioso com sua paleta reduzida, porém com efeitos

tonais variados (figura 32). Provavelmente, pela sugestão de uma multidão subindo

a colina, a pintura, de 1961, marca a festa da Lavagem do Bonfim, quando o profano

e sagrado misturam-se como uma resposta social às desigualdades e diferenças. A

festa é celebrada com uma caminhada da Igreja de Nossa Senhora da Conceição da

Praia até a colina sagrada, com carroças puxadas por animais, cortejo popular,

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cavalos, alegorias e baianas, com as conhecidas águas de cheiro. Talvez por se

tratar de uma festa popular, além de religiosa, João Alves contemple a pintura com a

presença humana, o que era pouco comum em suas telas que representavam

igrejas. [...] Deixando o Bonfim que se vá ao Montesserrate. É perto e a paisagem é bela por todo o curto trajeto. Ao longe a cidade, o porto, o casario. Na ponta do Montesserrate, a igrejinha sobre as pedras numa intimidade com o mar, como afluindo das águas tranqüilas da baía. (TAVARES, 1985)

Figura 33 - João Alves Igreja de Monte Serrat Pintura óleo s/ tela, 58 x 67,3 cm, 1954 Museu de Arte da Bahia – Foto: Márcio S. Lima

Assim como todas as pinturas de João, até aqui apresentadas, a Igreja de

Monte Serrat foi também representada com certa inventividade do artista, que

adicionou um frontão com volutas, diferente do original (figura 33). Na verdade, a

pintura de João é mais que uma mera representação, é uma interpretação da visão

de mundo do artista. A disposição de bancos na frente do templo foi outra invenção

composicional do artista, e o sombreamento discreto outra marca peculiar da pintura

de João Alves. Como sempre, noto que a paleta do artista, utilizada nas

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composições e representações dos monumentos religiosos, é bastante reduzida. A

execução de sua pintura é limitada a poucas cores. Tons azuis acinzentados para o

céu, verdes para as portas e amarelos pardos para as paredes demonstram um

excesso de sobriedade e um distanciamento praticamente sacro da representação

de igrejas. Quando se tratava de Igrejas, João Alves as pintava com seus tons azuis,

verdes e acinzentados, apesar de seguir o princípio da verossimilhança, as pinturas

obtinham uma camada cromática similar em quase todas as telas. [...] Ao sair do Montesserrate, encontra-se logo adiante a Igreja da Boa Viagem. É uma beleza a sua pequena fachada, em azulejo português com as armas de ultramar...Tanto a Ermida de Montesserrate, quanto a da Boa Viagem, são de freqüência de homens do mar. E se o saveiro passa na redondeza, a prece foi feita, a saudação reverente à Virgem nas suas ermidas. A festa de Nosso Senhor dos Navegantes tem início e fim, exatamente, no pátio da Igreja da Boa Viagem. (TAVARES, 1985)

Figura 34 - João Alves Igreja da Boa Viagem Pintura óleo s/ tela, 49,5 x 58,5 cm, 1954 Museu de Arte da Bahia – Foto: Matheus Brito Silva

A pintura da igreja da Boa Viagem (figura 34) segue o mesmo padrão plástico

daquela de Monte Serrat. Ambas de 1954, têm um tratamento econômico na paleta

de cor, sem a presença humana, como se fosse feita apenas para apreciação,

respeitando seu papel e caráter divinos de distanciamento, aumentando ainda mais

seu teor simbólico. O que nos faz pensar no porquê de quando o artista pintava

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Igrejas, estas estavam quase sempre sem a presença humana, com raras exceções,

como em dias festivos, a exemplo da tela do Senhor do Bonfim acima. Qual a

intenção de João Alves em insistir no vazio quando trabalhava essa temática? Aqui,

como em outras telas que veremos a seguir, posso observar o vazio recorrente. A

igreja está sozinha, intacta, até restaurada ou em boas condições para a época,

reina absoluta no centro da pintura como em um pedestal, imaculada, pronta para

ser venerada, sem a intervenção, talvez pecadora, do ser humano. Este vazio

levanta, com certeza, algumas questões: seria uma reflexão sobre o poder da Igreja

Católica, logo da “superioridade” branca mandatária? Seria a ideia de um poder

inatingível da religião? Ou seria uma representação que necessitava distanciar-se de

uma vida pecadora humana para atingir seu caráter sacro? [...] E já que está na Cidade Baixa, que, à passagem se veja a Igreja do Pilar, com sua bonita fachada, com seus azulejos e se puder consiga ver as riquíssimas alfaias de ouro e prata. Vale a pena (TAVARES, 1985).

Figura 35 - João Alves s/ título42 Pintura óleo s/ tela, 45,5 x 60cm 1962 Coleção particular de Maria Tavares

                                                                                                               42  A tela não tem título, mas, pela aparência, leva a crer se tratar da Igreja do Pilar. Esta é uma dedução do pesquisador e não um dado científico.  

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Aqui, tenho um bom exemplo de interpretação e intervenção da pintura de

João Alves: a Igreja do Pilar (figura 35) tem apenas uma torre sineira, a qual fica ao

lado direito e não à esquerda como na pintura. A cruz sobre o frontão foi substituída

por uma espécie de estrela, e seus degraus diminuíram em relação ao original.

Constato uma concepção pessoal do artista sobre a referida igreja. João,

geralmente, modificava e sugeria o tema com sua interpretação do local, ele não

esboçava nem desenhava referenciado por alguma foto, pintava diretamente na tela,

segundo Celso Guedes (2012), por isso insisto na ideia de que sua pintura

transcendia a mera representação. Era uma interpretação com base em sua

memória e inventividade composicionais, em seu processo criativo. Em alguns

casos, a exemplo da Igreja do Pilar, as escadarias são redimensionadas, algumas

são ampliadas enquanto outras são reduzidas. [...] Mais adiante, junto ao Mercado Modelo, a Conceição da Praia. É um templo soberbo, templo dos comerciantes da Praia, como se chama o lado baixo da Cidade, templo que teve como semente a igrejinha que Tomé de Souza ajudou a construir com o seu suor e com seu trabalho, ele mesmo carregando pedra e madeira. Mas hoje, com a fachada de pedra de cantaria, a Igreja da Conceição da Praia constitui um dos maiores monumentos religiosos do Brasil (TAVARES, 1985).

Figura 36 - João Alves Igreja Nossa Senhora da Conceição da Praia Pintura óleo s/ tela, 56,5 x 57 cm, 1954 Museu de Arte da Bahia – Foto: Matheus Brito Silva

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Na tela da Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia (figura 36), a

pintura é mais azulada, porém muito mais clara e fria. Talvez, se João representasse

a festa da Conceição, a tela ganhasse cores mais intensas. Aqui a composição tem

um enquadramento frontal e conta com um imenso céu ao fundo, descartando, o

artista, a falésia de rocha da ladeira da Montanha que fica logo atrás da igreja. Mais

uma vez a intervenção e interpretação do artista. Uma pintura sintética e objetiva.

Outra observação que não posso deixar de fazer é que todas as pinturas

encontradas de João Alves com a temática Igreja são representadas com as portas

cerradas. Surgem mais algumas perguntas: os portais fechados indicariam uma

restrição? Ou seriam indícios de impessoalidade dos templos eclesiásticos? Ou,

quem sabe, uma sugestão quanto ao acesso aos ambientes elitizados e sagrados,

por vezes, negado ao povo de baixa renda? [...] Mas é na Igreja de São Francisco que o visitante ficará atordoado. Entrando no Terreiro, estão a Catedral, a Igreja de São Pedro dos Clérigos, de São Domingos e logo em frente São Francisco e a Ordem Terceira de São Francisco...Pois se vá primeiro ao São Francisco, que se olhe seu pátio belíssimo, mais parecendo cenografia, sua fachada austera dominando majestosa, dominando a praça, torres se levantando para os céus. E logo à entrada, penetrando por todos os recantos, o esplendor áureo do barroco sobre as paredes, subindo por colunas...(TAVARES, 1985)

Figura 37 - João Alves Igreja de São Francisco de Assis Pintura óleo s/ tela, 52 X 66,7 cm, 1959 Museu Afro Brasil – Foto: Márcio S. Lima

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A Igreja de São Francisco (figura 37) foi pintada com a presença de pessoas

transitando à sua frente, tabuleiro, autoridades eclesiástica e policial. Uma

população na sua maioria negra. Curiosamente, assim como na primeira tela acima,

da Igreja de Nosso Senhor do Bonfim, com a presença de pessoas na composição,

a atmosfera parece mudar. Há movimento e dinamismo, a pintura parece fugir da

representação estática da maioria das outras telas com mesmo tema. [...] já a beleza da Catedral é severa – pois saindo do São Francisco, que se vá a Cátedra, deixe a Ordem Terceira para depois – com sua fachada dominando o Terreiro de Jesus, fachada que é o ponto alto da praça. A Catedral, a igreja dos jesuítas! (TAVARES, 1985)

A Catedral Basílica (figura 38) foi pintada com uma grande escadaria à frente,

algo inexistente no templo do Terreiro de Jesus, Pelourinho. A pintura, de 1954,

deixou a Catedral um pouco mais acima do nível do piso e do calçadão, elevou sua

estrutura. Em seu entorno, há construções também criadas pelo artista.

Figura 38 - João Alves Catedral Basílica Pintura óleo s/ tela, 49,5 x 59 cm, 1954 Museu de Arte da Bahia – Foto: Matheus Brito Silva

[...] “A fachada da Igreja da Ordem Terceira de São Francisco da Bahia não tem similar no Brasil. É o exemplo número um do estilo plateresco, de que são modelos perfeitos a Universidade de Salamanca, a Igreja de São Gregório, de Valladoli”, diz o cronista e o visitante terá de concordar, olhando a pedra talhada, santos, anjos, índios, armas, volutas, ornatos, colunas, formando

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um conjunto sem paralelo no Brasil. Pois esta pedra esculpida, que é a fachada da Ordem Terceira, esteve por muitos anos escondida sob camadas sucessivas de cal, de tal modo que se tornou inteiramente lisa; já neste século, é que se verificou a riqueza que se ocultava e limpeza cuidadosa levantou aos olhos de gerações que a desconheciam a fachada da igreja construída em 1703, de acordo com planta de mestre Gabriel Ribeiro. (TAVARES, 1985)

A pintura da Igreja da Ordem Terceira de São Francisco (figura 39), de 1954,

traduz a riqueza de elementos através de pinceladas econômicas, curtas e sem

muito detalhes. Um paradoxo que, na habilidade do artista, se resolve à sua maneira

peculiar de pintar, que dá conta do recado, e não compromete sua suntuosidade e

profusão compositiva.

Figura 39 - João Alves Ordem Terceira de São Francisco Pintura óleo s/ tela, 52,4 x 65,6 cm, 1954 Museu de Arte da Bahia – Foto: Matheus Brito Silva

[...] No Terreiro, ainda estão as Igrejas de São Domingos e a de São Pedro dos Clérigos, quase sempre fechadas...Descendo o Pelourinho, encontrará a Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos. É a igreja dos pretos, coroando o mais belo conjunto arquitetônico do Brasil, completado pelas torres das Igrejas do Passo, de Nossa Senhora do Carmo, de Santo Antônio de Além do Carmo. (TAVARES, 1985)

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Figura 40 - João Alves São Pedro dos Clérigos Pintura óleo s/ tela, 58 X 48 cm, 1954 Museu de Arte Moderna da Bahia – MAM – Foto: Márcio S. Lima

Figura 41 - João Alves Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos Pintura óleo s/ tela, 38 X 54 cm, 1954 Museu de Arte da Bahia – Foto: Matheus Brito Silva

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Figura 42 - João Alves Igreja SS Sacramento do Passo Pintura óleo s/ tela, 66 X 51,5 cm Museu de Arte Moderna da Bahia – MAM – Foto: Márcio S. Lima

As telas acima das igrejas de São Pedro dos Clérigos, 1954 (figura 40),

Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, do mesmo ano (figura 41), e SS Sacramento

do Passo, sem data (figura 42), são coerentes com a produção do artista, até aqui

estudada. É bom salientar que, apesar da economia tonal, as cores de João Alves

não são totalmente chapadas como nas pinturas conhecidas por naïf. Há sugestões

de luz, sombras e planos, no escurecimento e clareamento dos tons empregados.

[...] Tem outros templos... a Igreja da Graça, onde estão os restos mortais de Catarina Paraguaçu, um dos primeiros templos do Brasil; Santo Antônio da Barra, dominando de sua colina... (TAVARES, 1985)

Outro exemplo de interferência na composição estrutural da tela é a Igreja de

Santo Antonio da Barra (figura 43), onde João Alves colocou uma escadaria bem à

frente da fachada do templo e recuou o nicho com a imagem para a esquerda. A

igreja, segundo Cid Teixeira, construída em homenagem a Santo Antônio de Argüim,

padroeiro dos negreiros, foi feita por senhores do tráfico de escravos para louvor ao

referido santo (TEIXEIRA, 2012).

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Figura 43 - João Alves Igreja Santo Antonio da Barra Pintura óleo s/ tela, 51 x 64,2 cm, 1954 Museu de Arte da Bahia – Foto: Matheus Brito Silva

Infelizmente, por motivo óbvio, no roteiro de Odorico Tavares, não se

encontra a Igreja da Sé. O antigo templo fora destruído em 1933, para um projeto de

“progresso” e “modernidade” da cidade, onde foram construídos os trilhos dos

bondes da Companhia Linhas Circular de Carris da Bahia, no governo do interventor

federal de Getúlio Vargas, Juracy Magalhães. A companhia financiou a demolição,

pelo interesse de modificar o trânsito de seus bondes no Centro. A Antiga Sé tinha

sua fachada voltada para a Baia de todos os santos e ocupava um considerável

espaço. Sob protestos, a demolição foi realizada e hoje, onde se encontrava a

referida Sé, tem uma escultura em sua homenagem, chamada Cruz Caída de Mario

Cravo Jr. Neste período, João Alves já morava no Pelourinho e deve ter

acompanhado todo esse conflito e, mais tarde, pinta uma das mais belas

construções eclesiásticas coloniais da Bahia (figura 44). É com essa pintura que

finalizo a análise das pinturas de João Alves, sob o tema Igrejas. Vejamos agora as

telas dos casarios, outra temática bastante recorrente de João, o pintor da cidade.

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Figura 44 - João Alves Antiga Sé Pintura óleo s/ tela, 52,5 x 58,7 cm, sem data Museu Afro Brasil – Foto: Márcio S. Lima

  4.4.2 Os casarios de João

Neste mesmo entendimento, referente ao descaso das autoridades políticas

competentes para com o patrimônio cultural da cidade, bem como às questões

socioeconômicas da população que habitava o Pelourinho em meados do século

XX, dou início à abordagem dos casarios representados e interpretados por João

Alves. A memória arquitetônica, social, as condições econômicas dos moradores de

um espaço urbano estão presentes e latentes nas telas do artista. Seu espaço, o

Pelourinho das décadas de 1940, 1950 e 1960, remonta conflitos, pobreza,

humilhações e lutas por sobrevivência em uma época de escassa intervenção

pública, que pudesse minimizar tais problemas sociais. Tudo isso e mais um pouco é

encontrado na pintura de João Alves, artista que morou, trabalhou e viveu a dura

realidade de seu tempo, o qual retrata de maneira fidedigna a realidade de seu povo.

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O espaço urbano pode ser suporte de memórias diferentes, cenários contrastados, múltiplos, convergentes. Os discursos, escritos ou falados, envolvem um bairro, uma cidade e lhe conferem identidade, uma imagem cultural em movimento constante feito de pequenas subversões. (BRESCIANI, 1992, p.165)

O espaço urbano escolhido pelo artista foi o Centro Histórico de Salvador,

mais especificamente o Pelourinho, do qual extraiu imagens de casarios coloniais do

estilo barroco português, de rica temática visual, com uma habitação proletária, em

sua grande maioria negra de precária condição financeira.

Na pintura abaixo (figura 45), de 1965, observo algumas variações não

encontradas na maioria das telas de João Alves. As linhas de contorno aparecem

mais definidas, inclusive nos telhados e detalhes arquitetônicos. O tratamento das

figuras humanas obtém mais precisão de detalhes, pouco comum nas outras

pinturas.

Figura 45 - João Alves Casario Pintura óleo s/ tela, dimensão não informada, 1965 Museu Afro Brasil – Foto: Márcio S. Lima

Já na tela da figura 46, mesmo sendo posterior (data de 1969), o tratamento

parece retornar à coerência pictórica das demais obras do artista.

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Figura 46 - João Alves Casario Pintura óleo s/ tela, 45,5 x 37,5 cm, 1969 Coleção pessoal Marcelo Delame – Foto: Márcio S. Lima

Figura 47 - João Alves Casario Pintura óleo s/ tela, 39,5 x 47,5 cm, sem data Museu Afro Brasil – Foto: Márcio S. Lima

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A maior parte dos casarões do Pelourinho data dos séculos XVIII e XIX,

período que acolheu a elite agroexportadora da Bahia. Como vimos no capítulo 2,

esta elite dominante da Bahia desloca-se progressivamente para os bairro da Vitória,

Graça e Canela, no século XX. “Novos cenários urbanos foram projetados como

resultado de desdobramentos sócio-econômicos que efetivamente alteraram a

paisagem da cidade”(PINHO, 1996, 42).

Esses casarões passam a ser habitados pela população carente do estado,

muitos chegavam da zona rural da Bahia, na busca por emprego, somados com

negros livres (pós Abolição) e imigrantes pobres, formando um contingente de

proletários que beirava a miserabilidade. O Centro Histórico de Salvador,

gradativamente, passa por uma campanha de depreciação pela elite e imprensa

soteropolitanas que, amedrontada pelo estado social do Pelourinho, marginalizava e

segregava o local. Em depoimento de Sr. Clarindo da Silva, proprietário da famosa

Cantina da Lua, no Terreiro de Jesus, na dissertação de Augusto Oliveira (2002), o

Pelourinho é lembrado, apesar de sua degradação, como um ambiente também

familiar, a despeito da difamação sistematizada pela mídia impressa: “Só que a degradação maior ela aconteceu nas oito ruas que chamavam Maciel/ Pelourinho porque é onde o nível de pobreza chegou a tal ponto que as pessoas sempre colocavam que no Maciel/Pelourinho só tinha prostituição e marginalidade, o que, de certa forma, não era verdade, nós tínhamos famílias, uma boa quantidade de famílias que as pessoas trabalhavam, eram vendedores ambulantes, eram sucateiros, e quem tinha um bom ordenado tinha uma média de um ou dois salários mínimo. Então, o que existia no Pelourinho na realidade, predominantemente era uma pobreza infinita, houve um empobrecimento...” (CLARINDO apud OLIVEIRA, 2002, p. 138)

Seu Clarindo também relembra com saudosismo o Centro de Salvador, na

década de 1950, quando havia forte movimentação da sociedade baiana em âmbito

cultural, educacional e comercial: “Na década de cinqüenta, aí tinha o Palácio do Governo, o Palácio Rio Branco, onde o governo despachava, tinha a Biblioteca Central, tinha a Câmara de Vereadores, tinha a Assembléia Legislativa, tinha a sede do Baneb, tinha a Academia de Letras, tinha a Faculdade de Medicina em pleno funcionamento, tinha o Instituto Médico Legal em pleno funcionamento, o Liceu de Artes e Ofícios, que esse horário parecia que era um formigueiro, que a gente via inúmeras crianças do Liceu andando, tinha o escritório do major Cosme de Farias, e as Irmandades com toda a sua força, o cinema Liceu, tinha o cinema funcionando assim com toda a sua força, depois surgiu o cine Tupi, quer dizer, o Centro da cidade, a Baixa dos Sapateiros mesmo, o Taboão, o Plano Inclinado Pilar, subindo e descendo, o Charriot do Taboão funcionando, quer dizer, isso aqui, a própria parte baixa da cidade, a parte comercial da cidade era realmente uma coisa que

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dava gosto você viver e vivenciar o Centro Histórico” (Clarindo apud Oliveira, 2002, p.130).

Os andaimes, reformas e ajustes nas estruturas eram corriqueiros no cenário

urbano do Pelourinho. João Alves pintava o que costumava presenciar naquele

espaço. Em suas telas, abordou algumas vezes a cooperação em forma de mutirão

para essas intervenções (figuras 47 e 48). Sem condições técnicas, financeiras e

culturais de seus moradores para a recuperação dos monumentos, era cada vez

mais necessária uma intervenção política para conservação e preservação de um

dos mais importantes conjuntos arquitetônicos históricos do Brasil que se

degradava. Considerações quanto ao cuidado com seus habitantes foram pontuadas

pela UNESCO no intuito de preservar a vida social, comercial e familiar do local.

Para o arquiteto Michel Parent, qualquer plano de restauração deveria contemplar a

preservação dos moradores e evitar a ação repressiva da polícia no trato com

aquelas pessoas já tão marginalizadas. (ZANIRATO, 2007, p.40)

Figura 48 - João Alves Reforma no Pelourinho Pintura óleo s/ tela, 46x37cm Coleção particular Sante Scaldaferri – Foto: Márcio S. Lima

Apesar das recomendações de Michel Parent e das cartas e normas

internacionais a respeito da restauração em centros históricos, a ação do governo de

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Antônio Carlos Magalhães no Pelourinho foi, gradualmente, desenvolvendo-se na

direção oposta. Entre promessas de retorno à área e pagamento de indenizações

aos moradores, no início da década de 1990, procedeu-se a desocupação para que

a restauração fosse empreendida. (ZANIRATO, 2007, p.40)

O Pelourinho, com a desocupação, pareceu ter se tornado uma cidade

cenográfica desabitada, um cenário para turista. Passou de centro residencial para

comercial. Esses dados são importantes para a atual pesquisa, porque procuram

justificar a ausência de contemporâneos de João Alves, que conviveram com o

artista no local estudado. Muitos já morreram, é verdade, mas, com a desocupação

de famílias inteiras do Pelourinho, tornou-se muito mais difícil a localização de tais

depoentes que certamente falariam sobre sua obra e contribuiriam para a presente

pesquisa. Quem sabe o próprio João Alves, caso estivesse vivo, no período da

“revitalização” do Pelourinho, não seria também convidado a se retirar do lugar que

lhe deu uma riqueza inigualável de motivos plásticos para sua arte?

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CONSIDERAÇÕES

A proposta da atual pesquisa foi apresentar o pintor João Alves Oliveira da

Silva e sua obra. Iniciei com a análise de uma das pinturas do artista, sem

contextualizá-la. A escolha por começar por um quadro, antes mesmo de historiá-lo,

deu-me liberdade para levantar algumas questões que conduziriam às relações

dialógicas entre a pintura de João Alves e o movimento modernista baiano,

estendendo a discussão para além do campo formal, ao evidenciar, no final da

análise, questões sobre sua condição étnica, social e econômica, visto que, o pintor

era afro-brasileiro e pobre. A maneira de pintar do artista, os materiais utilizados, seu

processo criativo, sua contribuição, influência e inserção no circuito de arte, através

da participação em eventos, exposições e bienais de sua época, mostraram a

relevância de sua obra para a cultura e para a história da arte baianas.

A pesquisa valeu-se da tradição oral para a coleta de dados biográficos do

artista e de alguns escritos apresentados no decorrer do texto. Houve dificuldade

devido à escassez de informação resultante de dois fatores decisivos: primeiro, o

artista tinha 42 anos de falecido, sem registro familiar e com poucos depoentes que

conviveram com ele, capazes de oferecer dados consistentes de caráter científico.

Concluí que a desocupação, ou expulsão de famílias do Pelourinho, na década de

1990, fora decisiva para ausência de contemporâneos do pintor, no Centro Histórico

de Salvador. O segundo fator diz respeito aos depoimentos de artistas, escritores,

professores de arte e amigos, os quais são repetitivos em seu teor descritivo. Desta

maneira, fiz um breve histórico sobre João Alves, com o cruzamento de todos os

dados coletados por meio de entrevistas, conversas informais, textos de livros e

jornais, mesmo sem a riqueza de detalhes esperada, porém com coerência e síntese

de acontecimentos pontuais da vida do artista autodidata. Detive-me, basicamente,

em sua obra. Destarte, ainda tem muito a se pesquisar sobre o referido artista, mas

acredito ter contribuído para o “resgate” de sua biografia, de maneira sistematizada

a partir da organização de depoimentos e escritos espalhados pelo Brasil.

Ainda no segundo capítulo, delimitei o espaço da pesquisa: o Pelourinho; o

período: décadas de 1940, 1950 e 1960; e o gênero artístico: a pintura que resultou

de sua formação autodidata. Este último ganhou especial destaque no terceiro

capítulo, quando abordei a questão do rótulo classificatório usado naquela época

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para denominar a pintura produzida por pessoas que não tiveram uma formação

oficial ou acadêmica em arte: o termo “primitivo”.

Com o objetivo de suprir uma lacuna na historiografia da arte baiana, abri no

capítulo 3 a discussão sobre o termo “primitivo”. Porém, antes, como uma introdução

ao assunto proposto, iniciei pela abordagem da chegada do pensamento modernista

no Brasil e na Bahia, seu contexto cultural e político, sua proposta de interação com

a arte popular e o cruzamento desse movimento com a pintura autodidata. Aqui, não

tive a pretensão de esgotar o assunto, muito pelo contrário, tive a intenção de

alargar e contribuir com a discussão sobre a arte autodidata, sua relevância,

importância e valor no universo da arte, deixando de lado o preconceito e o

desrespeito, comuns naquela época, para com este gênero da pintura. Destaquei e

analisei parte da rica obra de um de seus mais nobres representantes na Bahia, o

ex-engraxate João Alves. Tenho total consciência de que todo este trabalho ainda é

pouco para tratar de tamanha autoridade artística, expressiva e representativa da

cultura popular baiana, que teve papel importante para a discussão sobre arte,

sobretudo em um período de enorme efervescência cultural em Salvador, meados

do século XX, época áurea do Modernismo baiano.

Explorei, nesta pesquisa, as relações dialógicas entre a pintura então

chamada “primitiva” e o Modernismo baiano. Essas relações estavam presentes

desde a proposta de um rompimento com as normas oficiais acadêmicas de

representação, perpassando por questões socioeconômicas, até a busca por uma

identidade cultural de bases populares e autóctones, que marcasse um novo olhar

sobre a produção de artes plásticas na Bahia.

Foi importante a problematização sobre o termo “primitivo”, que, apesar de ter

uma questionada aceitação no meio artístico da época, denotava um sentido de

subestimação, de um pensamento dominante sobre o “dominado” ou subalterno,

explicitando uma relação de poder. Era importante desvincular a arte de João Alves

do contestável termo evolucionista, “primitivo”, e este era um dos objetivos a serem

alcançados.

Foi preciso envidar esforços para destacar a singularidade de João Alves,

com sua linguagem própria e específica, suas referências culturais e pessoais,

enfatizando a incoerência e a insuficiência das classificações formatadas pela

história da arte. Ao mesmo tempo, foi preciso desmitificar e escapar da visão

redutora e essencialista de considerá-la nos termos do exotismo, pureza e

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ingenuidade. Para tanto, fiz um levantamento histórico do emprego do termo

“primitivo” na arte, em um resumo cronológico linear, mantendo os argumentos

compreendidos e aceitos por cada época, até chegar nos dias atuais. Assim, a

pesquisa contribuiu com a História da Arte, quando pontuou o entendimento do

“primitivo” nas artes plásticas de maneira sistemática, e desconstruiu o conceito

eurocêntrico de seu emprego no universo artístico. Finalizei apresentando uma

sugestão terminológica de Lélia Coelho Frota, que tentou fugir de reducionismos,

quando classificou o gênero da pintura autodidata como Liminar, ou seja, um estilo

artístico que se localiza em uma zona fronteiriça, capaz de transitar entre as

estéticas populares e das elites, atuando de maneira intercultural ou híbrida. Apesar

de achá-la mais coerente, não a defendi como nova proposta terminológica.

Apresentei como opção, apenas no caso de uma classificação da obra de João

Alves ser indispensável.

Tenho consciência de que esse assunto ainda tem muito o que ser

pesquisado. Como disse, com o tempo limitado oferecido para a construção da

dissertação de mestrado, foi muito difícil abarcar e discutir com maior profundidade

em outras direções do saber. Somente sobre o termo “primitivo”, por exemplo, que

poderei me debruçar em outra oportunidade, relacionado-o com a teoria do

Evolucionismo Cultural do século XIX, é possível entender melhor de onde veio o

discurso do “primitivo” e sua utilização no universo da arte, a partir de uma

abordagem voltada à história das correntes da Antropologia e das Ciências Sociais.

E ver que mais tarde, logo no início do século XX, a perspectiva evolucionista fora

rejeitada através do surgimento de outras teorias. O curioso e instigante para uma

nova investigação, é perguntar: por que, apesar dessas teorias colocarem em

cheque o pensamento evolucionista desde o começo do século passado, o termo

“primitivo” ainda era bastante usual na arte e na época de João Alves?

No capítulo 4, detive-me na crítica e análise de algumas obras de João Alves.

Embora a crítica de arte dos dias atuais apontem para novos critérios de leitura e

interpretação, como proposto por Arthur Danto, Hans Belthing, Leo Steinberg, Noël

Carroll, Rosalind Krauss, dentre outros, destaquei na pesquisa os pensamentos

vigentes da época, pautados nas teorias do Formalismo, de Clive Bell, e do

Expressionismo, de Robin Collingwood, e como essas teorias foram assimiladas e

reproduzidas na Bahia.

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Para organizar os textos críticos dedicados ao trabalho de João Alves, os

dividi em dois blocos de abordagem: jornais impressos da Grande Imprensa e livros;

e a literatura amadiana. Críticos de arte como José Valladares, Clarival do Prado

Valladares e Antônio Celestino, bem como o colunista Renot e o romancista Jorge

Amado, fizeram parte desta contribuição na análise da obra aqui estudada.

Finalizei a pesquisa com o estudo de algumas telas de João Alves

classificadas pelos temas: as Igrejas e os Casarios. Na análise, podemos identificar

muitos dos aspectos levantados no escopo deste trabalho. Do ponto de vista formal,

chamei a atenção para as pinceladas, borrões, paleta econômica de cores,

expressividade e espontaneidade singular. No quesito social, mostrei a interpretação

pessoal de mundo do artista. Através de telas de tamanho discreto, pude detectar

uma Bahia com diferenças sociais, belezas naturais, cores sóbrias, uma arquitetura

característica que remetia a um período colonial e um povo, que, apesar de pobre e

desassistido pelos seus governantes, trabalhava e lutava para sobreviver.

Esta parte da pesquisa é de tamanha relevância, pois apresenta obras do

artista, que fazem jus ao título amadiano: O Pintor da Cidade. Seguindo roteiro

proposto por Odorico Tavares, pude “passear” pela cidade de Salvador, através das

pinturas de João Alves, visitando cada igreja e mergulhando na rica interpretação

dos monumentos religiosos. O “vazio”, as portas fechadas, a imponência e a

sobriedade plástica foram algumas das impressões deixadas pelas obras com a

temática Igreja. Já as pinturas dos casarios e sobrados do Pelourinho foram

preciosas para conhecer a realidade dos moradores do Centro Histórico da Cidade

do Salvador. Incêndios, reformas, descaso das autoridades, trabalho e solidariedade

marcaram o cotidiano de seus habitantes. Todas essas obras atestam que, de fato,

João Alves pintava o que via. E acertadamente, reforçam o título de Pintor da

Cidade, postado por Jorge Amado. Enfim, acredito ter alcançado o objetivo de,

primeiro elaborar a biografia de maneira mais cuidadosa do pintor João Alves, que

fugisse dos parcos dados repetitivos sobre o mesmo; e segundo, organizar

sistematicamente uma pequena parte de sua obra que está dispersa pelo mundo.

Falar sobre João Alves não foi apenas tratar de um “resgate” de algo

esquecido no passado, mas, muito além disso, foi reclamar uma prestação de

contas, uma liquidação de uma pequena parte do débito que a História da Arte tem

com aqueles, subestimadamente, conhecidos por primitivos, que indiretamente,

contribuíram para a construção da arte que hoje chamamos de contemporânea.

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