joão c.v. sampaio - o ensino da Álgebra elementar através de sua história

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Equac » ~ oes do primeiro, segundo e terceiro graus 1 UNIVERSIDADE FEDERAL DE S ~ AO CARLOS CENTRO DE CI ^ ENCIAS EXATAS E DE TECNOLOGIA DEPARTAMENTO DE MATEM ATICA O ENSINO DA ALGEBRA ELEMENTAR ATRAV ES DE SUA HIST ORIA Prof. Jo~ ao C.V. Sampaio. [email protected] 1 EQUAC » ~ OES DO PRIMEIRO GRAU As equa» c~ oes do 1 o grau n~ao tem uma hist¶ oria propriamente dita. A simbologia moderna com que s~ ao escritas s¶o come» cou a surgir no s¶ eculo 18. Do ponto de vista elementar, equa»c~ oes s~ ao problemas do seguinte tipo: Determine certos valores desconhecidos, sabendo que quando ess- es valores s~ao manipulados algebricamente, de uma certa maneira, s~ ao obtidos certos valores dados. As primeiras equa»c~ oes na forma escrita surgiram no antigo Egito 3000 anos a.C. EQUAC » ~ OES DO 1 o GRAU NO EGITO ANTIGO A maior parte da matem¶ atica eg¶ ³pcia antiga, ou seja, do 3 o mil^ enio antes do in¶ ³cio da era crist~ a, encontrada em alguns poucos papiros fa- mosos, consiste de um comp^ endio de t¶ abelas e algoritmos aritm¶ eticos, visando a resolu»c~ ao de problemas ¶ uteistaiscomo problemas demedi»c~ao de ¯guras geom¶ etricas. Num desses papiros, o Papiro de Rhind, encontramos as primeiras equa»c~ oes do primeiro grau, na forma de problemas "aha". Aha signi¯- cava quantidade. Tais problemas referem-se µ adetermina»c~ ao de quanti- dades desconhecidas. PROBLEMAS aha DO PAPIRO RHIND 1. (Problema 24) Uma quantidade e seu s¶ etimo, somadas juntas, d~ao 19. Qual ¶ ea quantidade? 2. (Problema 25) Uma quantidade e sua metade, somadas juntas, resultam 16. Qual e a quantidade? 3. (Problema 26) Uma quantidade e 2=3 dela s~ao somadas. Subtraindo-se, desta soma, 1=3 dela, restam 10. Qual ¶ e a quantidade?

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Page 1: João C.V. Sampaio - O Ensino da Álgebra Elementar Através de sua História

Equac»~oes do primeiro, segundo e terceiro graus 1

UNIVERSIDADE FEDERAL DE S~AO CARLOS

CENTRO DE CIENCIAS EXATAS E DE TECNOLOGIA

DEPARTAMENTO DE MATEM¶ATICA

O ENSINO DA ¶ALGEBRA ELEMENTARATRAV¶ES DE SUA HIST¶ORIA

Prof. Jo~ao C.V. Sampaio. [email protected]

1 EQUAC» ~OES DO PRIMEIRO GRAU

As equa»c~oes do 1o grau n~ao tem uma hist¶oria propriamente dita. Asimbologia moderna com que s~ao escritas s¶o come»cou a surgir no s¶eculo

18. Do ponto de vista elementar, equa»c~oes s~ao problemas do seguintetipo: Determine certos valores desconhecidos, sabendo que quando ess-

es valores s~ao manipulados algebricamente, de uma certa maneira, s~aoobtidos certos valores dados. As primeiras equa»c~oes na forma escrita

surgiram no antigo Egito 3000 anos a.C.

EQUAC» ~OES DO 1o GRAU NO EGITO ANTIGO

A maior parte da matem¶atica eg¶³pcia antiga, ou seja, do 3o milenioantes do in¶³cio da era crist~a, encontrada em alguns poucos papiros fa-

mosos, consiste de um compendio de t¶abelas e algoritmos aritm¶eticos,visando a resolu»c~ao de problemas ¶uteis tais como problemas de medi»c~ao

de ¯guras geom¶etricas.

Num desses papiros, o Papiro de Rhind, encontramos as primeiras

equa»c~oes do primeiro grau, na forma de problemas "aha". Aha signi¯-cava quantidade. Tais problemas referem-se µa determina»c~ao de quanti-dades desconhecidas.

PROBLEMAS aha DO PAPIRO RHIND

1. (Problema 24) Uma quantidade e seu s¶etimo, somadas juntas, d~ao 19. Qual ¶e aquantidade?

2. (Problema 25) Uma quantidade e sua metade, somadas juntas, resultam 16. Qual¶e a quantidade?

3. (Problema 26) Uma quantidade e 2=3 dela s~ao somadas. Subtraindo-se, destasoma, 1=3 dela, restam 10. Qual ¶e a quantidade?

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2 Jo~ao Carlos V. Sampaio { DM-UFSCar

Note que as equa»c~oes do 1o grau correspondentes aos tres problemas acima s~ao,respectivamente (con¯ra),

x+x

7= 19; x+

x

2= 16; (x+

2

3¢ x)¡ 1

3(x+

2

3¢ x) = 10

O m¶etodo da falsa posi»c~ao

Para problemas desse tipo, isto ¶e, para problemas que se reduzem, ap¶os simpli¯-ca»c~oes, a uma equa»c~ao da forma a ¢ x = b, os eg¶³pcios empregavam o m¶etodo da falsaposi»c~ao, exempli¯cado como segue, na resolu»c~ao do problema 1.

Resolu»c~ao do problema 1 Escolhemos, ao acaso, uma quantidade inteira divis¶³vel

por 7, digamos 7. Um s¶etimo de 7 ¶e 1. Somando 7 a 1

7de 7 obtemos 8. Agora

empregamos uma regra de tres simples:

quantidade resultado7 8x 19

Portanto,

7

x=8

19) 8x = 7 ¢ 19) 8x = 133) x =

133

8:.: x = 16

5

6

Observa»c~ao: 16 56signi¯ca 16 inteiros e cinco sextos, isto ¶e, 16 5

6= 16 + 5

6

Quest~oes complementares

1. Resolva os problemas 2 e 3 acima, utilizando o m¶etodo da falsa posi»c~ao. Resolva-os tamb¶em pelos m¶etodos alg¶ebricos usuais.

2. Porque o m¶etodo da falsa posi»c~ao funciona na resolu»c~ao dos problemas acima?Ele funciona para quaisquer equa»c~oes do 1o grau?

3. Quest~ao para discuss~ao: Voce acha que tais problemas, juntamente com o m¶etododa falsa posi»c~ao, constituem material adequado numa introdu»c~ao µas equa»c~oes doprimeiro grau?

O BANHO DE ARQUIMEDES

Arquimedes de Siracusa foi um grande f¶³sico e matem¶atico grego dos¶eculo 3 a.C., pesquisador da \Universidade" de Alexandria, em Alexan-

dria, cidade do antigo Egito fundada por Alexandre o Grande µas margensdo Rio Nilo. Nesse mesmo lugar, nessa mesma Universidade, meio s¶eculo

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Equac»~oes do primeiro, segundo e terceiro graus 3

antes, Euclides escrevera o primeiro livro de matem¶atica sistematica-mente organizado da hist¶oria, Os Elementos, constitu¶³do de 13 Livros,

os quais hoje s~ao chamados os 13 Cap¶³tulos dos Elementos.

Conta uma lenda que o rei Hier~ao de Alexandria suspeitava que sua

coroa n~ao teria sido feita de ouro puro, mas sim de uma mistura (liga) deouro e prata, e incumbiu Arquimedes de calcular as quantidades dessesmetais empregadas na confec»c~ao da coroa. Arquimedes descobriu um

meio de fazer isso enquanto se banhava. Celebrando a descoberta, saiuµas ruas gritando Eureka! (Descobri!), tendo no entanto se esquecido de

vestir-se ao sair.

Arquimedes deduziu v¶arias rela»c~oes m¶etricas de c¶³rculos e esferas. Arquimedes foio primeiro matem¶atico a deduzir que a ¶area do c¶³rculo de raio r ¶e dada por A = ¼r2.Deduziu tamb¶em a seguinte aproxima»c~ao para o n¶umero ¼: 310

71< ¼ < 31

7. Deduziu

ainde que a ¶area da superf¶³cie da esfera de raio r ¶e dada por S = 4¼r2, enquanto queo volume da esfera ¶e dado por V = 4

3¼r3.

PROBLEMAS ELEMENTARES

DE BALANCEAMENTO DE MISTURAS

Veremos agora que, al¶em de algumas considera»c~oes f¶³sicas elementares, as ferramen-tas necess¶arias para a resolu»c~ao do problema da coroa do rei Hier~ao s~ao equa»c~oes do1o grau!

Al¶em disso, veremos que o procedimento matem¶atico utilizado na resolu»c~ao desseproblema aplica-se a outros problemas an¶alogos, aos quais chamare-mos problemas debalanceamento de misturas.

Como exemplos de problemas de balanceamento de misturas, apresentamos os doisseguintes:

1. Um t¶ecnico de laborat¶orio tem duas solu»c~oes de ¶acido sulf¶urico (solu»c~ao ¶acida= ¶agua destilada + ¶acido). A primeira ¶e 30% ¶acida e a segunda ¶e 70% ¶acida.Quantos mililitros de cada ele dever¶a usar para obter 200m` de uma solu»c~ao 60%¶acida?

2. Que volume de ¶alcool deve ser adicionado a 600 litros de uma solu»c~ao 15% al-co¶olica (solu»c~ao alco¶olica = ¶alcool + ¶agua) de modo que a solu»c~ao resultante seja25% alco¶olica?

Veremos agora como equa»c~oes do 1o grau podem ser empregadas na resolu»c~ao dosdois problemas acima.

Resolu»c~ao do problema 1 Ser~ao utilizados xm` da solu»c~ao 30% ¶acida e ym` da

solu»c~ao 70% ¶acida. A solu»c~ao resultante ser¶a de 200m` e 60% ¶acida.

Sendo assim, xm`+ym` = 200m`. Comparando-se por¶em as quantidades de ¶acidosulf¶urico, temos agora:

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4 Jo~ao Carlos V. Sampaio { DM-UFSCar

30%dexm`+ 70%de ym` = 60%de 200m`

Temos ent~ao o sistema linear de duas equa»c~oes em duas inc¶ognitas

½x + y = 20030

100x + 70

100y = 60

100¢ 200

Tudo se reduz a uma equa»c~ao do 1o grau quando substitu¶³mos y = 200 ¡ x nasegunda equa»c~ao, obtendo ent~ao:

3

10x+

7

10(200¡ x) = 6

10¢ 200

Da¶³ pra frente, as coisas se simpli¯cam:

3x+ 7(200¡ x) = 6 ¢ 200) ¡4x+ 1400 = 1200) 4x = 200) x = 50

Como y = 200¡ x, obtemos tamb¶em y = 200¡ 50 = 150.Assim, s~ao necess¶arios 50m` da solu»c~ao 30% ¶acida e 150m` da solu»c~ao 70% ¶acida

para se obter 200m` de uma solu»c~ao 60% ¶acida.

Resolu»c~ao do problema 2 A adi»c~ao de mais ¶alcool aumenta, na solu»c~ao, a quan-tidade de ¶alcool, mas deixa inalterada a quantidade de ¶agua, de onde deduzimos umaequa»c~ao do 1o grau que nos dar¶a solu»c~ao do problema:

A quantidade de ¶agua presente na solu»c~ao alco¶olica ¶e, conforme o enunciado doproblema, 85% de 600 litros, ou seja, 85

100¢ 600 = 85 ¢ 6 = 510 litros.

Ap¶os a adi»c~ao de x litros de ¶alcool, a solu»c~ao alco¶olica ter¶a volume de 600 + xlitros e concentra»c~ao de ¶alcool da ordem de 25%. A ¶agua permanecer¶a a mesma emquantidade, tendo agora por¶em concentra»c~ao da ordem de 75%, de onde deduzimos:

75

100(600 + x) = 510

ou seja

3

4(600 + x) = 510) 600 + x =

4 ¢ 5103

) 600 + x = 680) x = 680¡ 600 :.: x = 80

Portanto, ser¶a necess¶ario adicionar 80 litros de ¶alcool aos 600 ` da solu»c~ao 15%alco¶olica para que ela se torne 25% alco¶olica.

SOLUC» ~AO DO PROBLEMA DE ARQUIMEDES

A densidade de um corpo material n~ao oco (um prato de porcelana, uma bola demetal, uma placa de isopor, etc.) ¶e a raz~ao entre sua massa e seu volume. Por exemplo,a densidade do mel ¶e de 1300 g por litro, ou seja, 1300 g=1000 cm3 = 1; 3 g=cm3.

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Equac»~oes do primeiro, segundo e terceiro graus 5

Assim a densidade de um corpo met¶alico ¶e ent~ao calculada pela f¶ormula

densidade =massa

volume

Desta rela»c~ao, deduzimos que, uma vez conhecida a densidade do corpo, seu volume¶e dado pela raz~ao

volume =massa

densidade

Por exemplo, o volume de 1 kg de mel ¶e dado por

volume =massa

densidade=

1kg

1; 3 kg=`¼ 769m`

A massa de um corpo ¶e uma quantidade calcul¶avel por compara»c~ao com outramassa. Para calcul¶a-la, basta que tenhamos µa m~ao uma balan»ca de dois pratos e v¶ariospesos de metal. Este procedimento do c¶alculo da massa j¶a foi muito utilizado nasmercearias.

J¶a o volume do corpo, desde que n~ao seja esponjoso, pode ser determinado porimers~ao deste corpo num tanque de ¶agua. Imergindo um corpo met¶alico num tanquede ¶agua, a varia»c~ao da altura do n¶³vel da ¶agua nos d¶a o volume do corpo mergulhado.

Suponha ent~ao que voce tem um coroa de m gramas de uma liga de ouro e prata.Suponha que voce deseja determinar a quantidade x de gramas de ouro e a quantidadey de gramas de prata presentes nessa liga de metal. Ent~ao x+ y = m. Por outro lado,o volume de ouro presente na coroa ¶e dado pela raz~ao

volume do ouro =massa do ouro

densidade do ouro

Nesse caso, sendo a densidade do ouro previamente conhecida (sabe-se que ela ¶e19; 3 g=cm3 = 19 300 kg=`) teremos que

volume do ouro =x

19; 3cm3

Analogamente, como a densidade da prata ¶e 10; 5 g=cm3 = 10 500 kg=`, teremos

volume da prata =y

10; 5cm3

A soma dos volumes do ouro e da prata presentes na coroa ¶e o volume da coroa, ouseja

x

19; 3cm3 +

y

10; 5cm3 = volume da coroa

Chegamos ent~ao a um sistema linear de duas equa»c~oes em duas inc¶ognitas½x + y = mx19;3

+ y

10;5= v

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6 Jo~ao Carlos V. Sampaio { DM-UFSCar

onde m ¶e a massa da coroa (em gramas) e v ¶e o seu volume (em cent¶³metros c¶ubicos).

Um problema de ilustra»c~ao

A densidade do ouro ¶e 19; 3 g=cm3 e a da prata ¶e 10; 5 g=cm3. Suponha que a coroado Rei Hier~ao, feita de uma liga de ouro e prata, tenha massa de 4 200 g (ser¶a que acabe»ca do rei agÄuenta?) e volume de 268 cm3. Quais s~ao as quantidades de ouro eprata presentes na coroa?

Solu»c~ao Segundo as equa»c~oes que deduzimos acima, sendo x e y as respectivas quan-tidades (em gramas) de ouro e prata presentes na coroa, teremos½

x + y = 4 200x19;3

+ y

10;5= 268

Teremos ent~ao que, como y = 4 200¡ x,x

19; 3+4 200¡ x10; 5

= 268

A ¶ultima equa»c~ao nos d¶a a equa»c~ao do 1o grau simpli¯cada ¡8;8202;65

x + 400 = 268 eent~ao x = 3039; 75 g e y = 1160; 25 g. Veri¯que os c¶alculos. Uma calculadora ajudar¶amuito, mas ¶e dispens¶avel neste exemplo escolhido.

Problemas complementares

1. Duas toneladas de uma liga met¶alica contem 15% de estanho. Que quantidadede estanho deve ser adicionada a essa liga de modo a aumentar a concentra»c~aode estanho a 20%? Resposta: 125 kg.

2. (Este problema requer o uso de uma calculadora eletronica). A densidade doouro ¶e de 19; 3 g=cm3 e a do cobre ¶e de 8; 9 g=cm3. Uma liga de ouro e cobretem 6 cm3 e 95 g. Quais s~ao as quantidades de ouro e cobre presentes na liga?Resposta: 77; 2 g de ouro e 17; 8 g de cobre.

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Equac»~oes do primeiro, segundo e terceiro graus 7

2 EQUAC» ~OES DO SEGUNDO GRAU

DA ANTIGA BABILONIA AT¶E DIOFANTO

Os antigos babilonios (ou babilonicos) (c. 1800 a.C.), habitantes do sulda antiga Mesopotamia (parte do atual Iraque), j¶a resolviam o problema

de encontrar dois n¶umeros x e y cuja soma ¶e p e cujo produto ¶e q.O m¶etodo empregado pelos babilonios, traduzido para nossas nota»c~oes

modernas, ¶e basicamente o seguinte:

A priori, x e y s~ao representados na forma

x =p

2+ a e y =

p

2¡ a

dado que x+ y = p.

Tem-se ent~ao

xy = (p

2+ a)(

p

2¡ a) = p2

4¡ a2 = q

de onde

a2 =p2

4¡ q = p

2 ¡ 4q4

Daqui, se deduz

a =

rp2 ¡ 4q4

(os n¶umeros negativos ainda n~ao haviam sido inventados).

Assim, x e y acabam sendo expressos como

x =p

2+

rp2 ¡ 4q4

e y =p

2¡rp2 ¡ 4q4

Cerca de dois milenios depois (em torno do ano 250 da era crist~a),

este mesmo m¶etodo aparece no tratado Arithmetica do grego Diofanto,um conjunto de 13 livros sobre solu»c~oes racionais de equa»c~oes alg¶ebricas.

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8 Jo~ao Carlos V. Sampaio { DM-UFSCar

Diofanto ¶e considerado o pai da ¶algebra no sentido de ter sido oprimeiro a empregar nota»c~oes simb¶olicas para express~oes alg¶ebricas. Su-

as nota»c~oes por¶em eram bem diferentes das empregadas hoje. Os trata-dos de matem¶atica dos precursores de Diofanto eram escritos no estiloret¶orico, isto ¶e, sem nenhum emprego de s¶³mbolos.

EQUAC» ~OES DO SEGUNDO GRAU DOS BABILONIOS A DIOFANTO

Como exemplos dos primeiros problemas de equa»c~oes do segundo grau, encontradosnas t¶abuas de argila dos antigos babilonios, bem como no livro Arithmetica de Diofanto,resolvidos pelo m¶etodo acima descrito, temos os seguintes:

1. (Babilonios, 1800 a.C.) Encontre dois n¶umeros cuja soma ¶e 14 e cujo produto ¶e45.

2. (Diofanto, em Arithmetica) Encontre dois n¶umeros cuja soma ¶e 20 e cuja somade seus quadrados ¶e 208.

Resolu»c~ao do problema 1 S~ao procurados dois n¶umeros x e y satisfazendo

x+ y = 14 e x ¢ y = 45

Segundo o m¶etodo acima descrito, fazemos

x = 7¡ a e y = 7 + a

Teremos ent~ao que a equa»c~ao xy = 45 torna-se (7 ¡ a)(7 + a) = 45, ou seja,72 ¡ a2 = 45, de onde a2 = 4, e portanto a = §2.Os babilonios, bem como Diofanto, consideravam apenas a solu»c~ao positiva a = 2.Historicamente, o conceito de n¶umero negativo parece ter surgido no s¶eculo 7, numtratado do astronomo hindu Bramagupta.

Assim sendo, tomando a = 2, teremos x = 5 e y = 9. Se tomarmos a = ¡2, teremosx = 9 e y = 5. Portanto os n¶umeros procurados s~ao 5 e 9.

Resolu»c~ao do problema 2 S~ao procurados dois n¶umeros satisfazendo

x+ y = 20 e x2 + y2 = 208

Novamente, assumimos, com base na soma dada dos n¶umeros procurados,

x = 10¡ a e y = 10 + a

A equa»c~ao x2 + y2 torma-se ent~ao

(10¡ a)2 + (10 + a)2 = 208ou seja

(100¡ 20a+ a2) + (100 + 20a+ a2) = 208

Page 9: João C.V. Sampaio - O Ensino da Álgebra Elementar Através de sua História

Equac»~oes do primeiro, segundo e terceiro graus 9

de onde200 + 2a2 = 208) 2a2 = 8) a2 = 4 :

.: a = §2

Voltamos a lembrar que somente a solu»c~ao positiva a = 2 era admitida.

Assim sendo, os n¶umeros procurados s~ao 10¡ 2 = 8 e 10 + 2 = 12.

Problemas Complementares

1. (Outro problema do Arithmetica de Diofanto) Encontre dois n¶umeros cuja soma¶e 10 e cuja soma de seus cubos ¶e 370. Resposta: 3 e 7.

2. Encontre dois n¶umeros cujo produto ¶e 24 e cuja soma dos cubos ¶e 280. Resposta:4 e 6.

3. Explique porque, se x+ y = p, existir¶a sempre um n¶umero a tal que

x =p

2+ a e y =

p

2¡ a:

4. Considere o problema dos babilonios de encontrar dois n¶umeros cuja soma ¶e 14 ecujo produto ¶e 45. Que outros m¶etodos podem ser empregados em sua resolu»c~ao?Que vantagens e desvantagens apresentam estes m¶etodos em rela»c~ao ao m¶etodoexposto nos exemplos acima?

5. (Diofanto) Encontre dois n¶umeros x e y satisfazendo

x¡ y = 10 e x3 ¡ y3 = 2170[M¶etodo de Diofanto: se a diferen»ca x¡ y = p ¶e dada, escrevemos

x = a+p

2e y = a¡ p

2

Compare-o com o caso em que a soma x+ y ¶e dada.] Resposta: x = 13, y = 3

6. (Diofanto) Encontre dois n¶umeros x y y satisfazendo

x¡ y = 4 e x3 + y3 = 28(x+ y)

Resposta: x = 6 e y = 2; ou x = 2 e y = ¡2; ou x = ¡2 e y = ¡6. Diofantobuscava somente solu»c~oes n~ao negativas.

7. Resolva a equa»c~ao x2¡6x = 27. [M¶etodo babilonico: Escreva a equa»c~ao na formax ¢ (x¡ 6) = 27. Fa»ca x¡ 6 = y. O problema ent~ao consiste em determinar x (ey, embora s¶o estejamos buscando valores de x) satisfazendo

x¡ y = 6 e xy = 27:]

Resposta: x1 = 9, x2 = ¡38. Resolva a equa»c~ao x2 + 6x = 16 pelo m¶etodo babilonico descrito no exerc¶³cioanterior. Resposta: x1 = 2, x2 = ¡8

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10 Jo~ao Carlos V. Sampaio { DM-UFSCar

AL-KHWARIZMI

O primeiro tratado a abordar sistematicamente as equa»c~oes do 2o

grau e suas solu»c~oes foi Os Elementos de Euclides (s¶ec. 3 a.C.). Em Os

Elementos, Euclides nos d¶a solu»c~oes geom¶etricas da equa»c~ao do segundograu. Os m¶etodos geom¶etricos ali encontrados, embora interessantes,

n~ao s~ao pr¶aticos.

No in¶³cio do s¶eculo 9, o Califa Al Mamum, recebeu atrav¶es de um

sonho, no qual teria sido visitado pelo imortal Arist¶oteles, a instru»c~aode fundar um centro de pesquisa e divulga»c~ao cient¶³¯ca. Tal institui»c~ao,

a Casa de Sabedoria, foi fundada em Bagd¶a, hoje capital do Iraque,µas margens do Rio Tigre. L¶a, a convite do Califa, estabeleceu-se Al-Khwarizmi, juntamente com outros ¯l¶osofos e matem¶aticos do mundo

¶arabe.

A pedido do Califa, Al-Khwarizmi escreveu um tratado popular sobre

a ciencia das equa»c~oes, chamado Hisab al-jabr wa'l muqabalah, ou seja,o Livro da Restaura»c~ao e Balanceamento.

Al-Khwarizmi introduziu simpli¯ca»c~oes que popularizaram, ou me-lhor, simpli¯caram a ¶algebra das equa»c~oes do 2o grau. Seu m¶etodo de

resolu»c~ao da equa»c~ao do 2o grau ¶e inspirado na interpreta»c~ao de n¶umerospor segmentos, introduzida por Euclides. Al-Khwarizmi tamb¶em popula-

rizou o sistema de representa»c~ao decimal posicional dos n¶umeros inteiros,criado pelos hindus, hoje de uso corrente.

De Al-Khwarizmi derivam-se as palavras algarismo e algoritmo, am-bas latiniza»c~oes de Al-Khwarizmi. Do termo al-jabr, que signi¯ca restau-ra»c~ao, deriva-se a palavra ¶algebra ! O termo al-muqabalah, que signi¯ca

oposi»c~ao ou balanceamento, ¶e o que hoje entendemos como cancelamen-to.

Por exemplo, dada a equa»c~ao

x2 + 3x¡ 2 = 3x+ 4

a al-jabr nos d¶a

x2 + 3x = 3x+ 4 + 2

enquanto que a muqabalah cancela o termo 3x, nos dando

x2 = 6

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Equac»~oes do primeiro, segundo e terceiro graus 11

No seu trabalho, Al-Khwarizmi apresenta dois m¶etodos geom¶etricosde solu»c~ao da equa»c~ao do 2o grau. Al-Khwarizmi n~ao fazia uso de no-

ta»c~oes simb¶olicas em seu tratado. Suas equa»c~oes s~ao escritas no estiloret¶orico, isto ¶e, sem o emprego de s¶³mbolos.

RESOLUC» ~AO DA EQUAC» ~AO DO 2o GRAU PELOS M¶ETODOS DE AL-

KHWARIZMI

Para exempli¯car seus dois m¶etodos, buscaremos a solu»c~ao da equa»c~ao do 2o grau

x2 + 10x = 39

Esta equa»c~ao ¶e realmente encontrada no trabalho de Al-Khwarizmi.

Solu»c~ao da equa»c~ao x2 + 10x = 39 pelo 1o m¶etodo de Al-Khwarizmi

Primeiramente, a equa»c~ao ¶e escrita na forma

x2 + 4 ¢ 104¢ x = 39; ou seja, x2 + 4 ¢ 5

2¢ x = 39

Figura 1. Na parte superior, a equa»c~ao x2+5x = 39 ¶e interpretada geometricamente. Naparte inferior, o completamento do quadrado ¶e realizado, resultando na equa»c~ao equiva-lente x2 + 4 ¢ 5

2x+ 4 ¢ (5

2)2 = 39 + 4 ¢ (5

2)2

Interpretando geometricamente o lado esquerdo desta equa»c~ao, como na ¯gura 1,temos a soma das ¶areas de um quadrado de lado x e de quatro retangulos de lados 5=2e x totalizando 39 unidades de ¶area.

Completando ent~ao essa soma de ¶areas com a ¶area de quatro quadrados de lados5=2, cada um de ¶area 25=4, obt¶em-se a ¶area de um quadrado de lado x+2 ¢ (5

2) = x+5,

medindo ent~ao 39 + 4 ¢ (254) = 39 + 25 = 64 unidades de ¶area. Algebricamente,

x2 + 4 ¢µ5

2

¶x+ 4 ¢

µ5

2

¶2= 39 + 4 ¢

µ5

2

¶2

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12 Jo~ao Carlos V. Sampaio { DM-UFSCar

ou seja,(x+ 5)2 = 39 + 25 = 64

de onde, ent~ao, Al-Khwarizmi deduz que

x+ 5 =p64 = 8

Chega-se ent~ao µa solu»c~ao x = 8 ¡ 5 = 3. Para Al-Khwarizmi por¶em, quantidadesnegativas careciam de sentido. No seu m¶etodo, a solu»c~ao x = ¡8¡ 5 = ¡13 n~ao vemµa tona. Ao resolvermos equa»c~oes do 2o grau n¶os podemos, no entanto, usar o m¶etodogeom¶etrico de Al-Khwarizmi como um guia no completamento de quadrados e, ao ¯nal,\esquece-lo", deduzindo tamb¶em eventuais solu»c~oes negativas da equa»c~ao.

Solu»c~ao da equa»c~ao x2 + 10x = 39 pelo 2o m¶etodo de Al-Khwarizmi

Neste m¶etodo mais simples, a equa»c~ao ¶e escrita na forma

x2 + 5x+ 5x = 39

Figura 2. Na parte superior, a equa»c~ao x2+5x = 39 ¶e interpretada geometricamente. Naparte inferior, o completamento do quadrado ¶e realizado, resultando na equa»c~ao equiva-lente x2 + 5x+ 5x+ 52 = 39 + 52

Interpretando geometricamente o lado esquerdo desta equa»c~ao, como na ¯gura 2,temos agora a soma das ¶areas de um quadrado de lado x e de dois retangulos de lados5 e x totalizando 39 unidades de ¶area. Completando ent~ao essa soma de ¶areas com a¶area de um quadrado de lado 5, portanto de ¶area 25, obt¶em-se a ¶area de um quadradode lado x+ 5, medindo ent~ao 39 + 25 = 64 unidades de ¶area. Algebricamente,

x2 + 5x+ 5x+ 52 = 39 + 52

de onde, ent~ao,(x+ 5)2 = 39 + 25 = 64

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Equac»~oes do primeiro, segundo e terceiro graus 13

Mas e se tivermos que tratar da equa»c~ao x2 ¡ 5x = 39? Como interpretar geometri-camente o completamento de quadrados, se agora estamos subtraindo dois retangulosde lados 5 e x?O melhor, neste caso, ¶e fazer uma substitui»c~ao x = ¡u, de onde x2 = u2. A equa»c~aoent~ao se torna u2+8u = 33. Aplicando ent~ao o m¶etodo geom¶etrico de Al-Khwarizmi,chegaremos µas solu»c~oes u1 = 3 e u2 = ¡11, de onde obtemos x1 = ¡3 e x2 = 11.

Problemas complementares

1. (Al-Khwarizmi) Encontre o lado de um quadrado inscrito num triangulo de lados10, 10 e 12. Resposta: O quadrado tem lado de comprimento 4;8.

2. (Al-Khwarizmi) Resolva as seguintes equa»c~oes :

(a) 50 + x2 = 29 + 10x. Resposta: x1 = 7; x2 = 3.

(b) x2 = 40x¡ 4x2. Resposta: x1 = 8; x2 = 03. Resolva as seguintes equa»c~oes

(a) x2 ¡ 16x+ 80 = 0. Resposta: A equa»c~ao n~ao tem solu»c~ao (real).(b) x2 ¡ 12x = 28. Resposta: x1 = 14; x2 = ¡2

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14 Jo~ao Carlos V. Sampaio { DM-UFSCar

3 EQUAC» ~OES DO TERCEIRO GRAU

ARQUIMEDES, NOVAMENTE

Num tratado sobre esferas e cilindros, Arquimedes estudou o seguinteproblema:

Cortar uma esfera por um plano de modo que uma das partes resul-tantes tenha o dobro do volume da outra parte.

Isto deu origem a uma das primeiras equa»c~oes do 3o grau da hist¶oria:

Se o plano que corta a esfera de raio r ¶e visto de per¯l, como na¯gura, ent~ao o volume do segmento esf¶erico de altura h ¶e dado por

V = 1

3¼h2(3r ¡ h). Sendo h

r= y, se o segmento inferior da esfera tem o

dobro do volume do superior, ent~ao

y3 ¡ 3y2 = ¡43

Fazendo-se y = x+ 1, obtemos a c¶ubica na forma reduzida

x3 ¡ 3x¡ 23= 0

A BUSCA DA F¶ORMULA GERAL DA C¶UBICA

Por muitos s¶eculos, desde o per¶³odo ¶aureo da Gr¶ecia antiga, matem¶a-ticos tentaram em v~ao deduzir um m¶etodo geral de solu»c~ao da equa»c~ao

do 3o grau ou equa»c~ao c¶ubica

ax3 + bx2 + cx+ d = 0

Page 15: João C.V. Sampaio - O Ensino da Álgebra Elementar Através de sua História

Equac»~oes do primeiro, segundo e terceiro graus 15

Procurava-se uma f¶ormula geral da solu»c~ao da c¶ubica, isto ¶e, umaf¶ormula que desse suas solu»c~oes como express~oes alg¶ebricas envolvendo

os coe¯cientes a; b; c e d.

A conhecida f¶ormula de Bhaskara, creditada assim ao matem¶atico

hindu Bhaskara, do s¶eculo 12, nos d¶a as soluc~oes da equa»c~ao quadr¶aticaax2 + bx + c = 0, como express~oes alg¶ebricas dos coe¯cientes a; b e c, asaber

x =¡b§pb2 ¡ 4ac

2a

DEL FERRO, TARTAGLIA E CARDANO. UMA TRAGI-

COM¶EDIA DE DISPUTAS, CONQUISTAS E DECEPC» ~OES

O primeiro matem¶atico a desenvolver um m¶etodo para resolver e-

qua»c~oes c¶ubicas da forma

x3 + ax+ b = 0

foi Scipione del Ferro, professor da Universidade de Bolonha, It¶alia,na passagem do s¶eculo 15 ao s¶eculo 16. Antes de morrer, revelou seu

m¶etodo, que mantivera em segredo, a Antonio Fiore.

Nicollo Tartaglia nasceu em Brescia, It¶alia, em 1499. Conta-se que

era t~ao pobre quando crian»ca que estudava matem¶atica escrevendo nasl¶apides de um cemit¶erio. Em 1535 foi desa¯ado por Antonio Fiore auma competi»c~ao matem¶atica. Na ¶epoca, disputas academicas eram co-

muns, muitas vezes premiando o ganhador com o emprego do perdedor.Tartaglia sabia resolver as equa»c~oes c¶ubicas de del Ferro, mas tinha des-

coberto tamb¶em um m¶etodo para resolver c¶ubicas da forma

x3 + ax2 + b = 0

De posse deste conhecimento, foi o vencedor na competi»c~ao.

Os ¶ultimos anos de Tartaglia foram amargurados por uma briga com

Girolamo Cardano (1501{1576), um matem¶atico italiano que, al¶em dem¶edico famoso em Mil~ao, foi tamb¶em astronomo. Cardano ¶e tido como

o fundador da teoria das probabilidades, a qual estudou por interessespessoais (jogatina). Em 1570, Cardano foi preso por heresia, por ter

escrito um hor¶oscopo de Jesus Cristo.

Em 1539, em sua casa em Mil~ao, Cardano persuadiu Tartaglia a

contar-lhe seu m¶etodo secreto de solu»c~ao das c¶ubicas, sob o juramen-to de jamais divulg¶a-lo. Alguns anos mais tarde, por¶em, Cardano soube

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16 Jo~ao Carlos V. Sampaio { DM-UFSCar

que parte do m¶etodo constava de uma publica»c~ao p¶ostuma de del Ferro.Resolveu ent~ao publicar um estudo completo das equa»c~oes c¶ubicas em

seu tratado Ars Magna (1545), um trabalho que superou todos os livrosde ¶algebra publicados at¶e ent~ao.

Em Ars Magna, Cardano exp~oe um m¶etodo para resolver a equa»c~aoc¶ubica baseado em argumentos geom¶etricos. L¶a tamb¶em exp~oe a solu»c~aogeral da equa»c~ao qu¶artica ou equa»c~ao do quarto grau

ax4 + bx3 + cx2 + dx+ e = 0

descoberta por Ludovico Ferrari (1522{1565), discipulo de Cardano, queparece ter superado o mestre na ¶algebra das equa»c~oes polinomiais.

Em 1548, Tartaglia desa¯ou Cardano para uma competi»c~ao matem¶a-tica, a ser realizada em Mil~ao. Cardano n~ao compareceu, tendo enviado

Ferrari para represent¶a-lo. Parece que Ferrari venceu a disputa, o quecausou a Tartaglia desemprego e morte na pobreza nove anos mais tarde.

A F¶ORMULA DE CARDANO PARA A EQUAC» ~AO C¶UBICA

O m¶etodo de Cardano para resolver equa»c~oes c¶ubicas, ligeiramente modi¯cado emrela»c~ao ao m¶etodo historicamente original, ¶e essencialmente o seguinte:

Consideremos a equa»c~ao c¶ubica

z3 + az2 + bz + c = 0

A substitui»c~ao

z = x¡ a3

transforma a equa»c~ao dada numa equa»c~ao c¶ubica na forma reduzida, isto ¶e, umaequa»c~ao c¶ubica sem o termo de 2o grau:

x3 + px+ q = 0

Cardano ent~ao \tenta" obter uma soluc~ao na forma

x = u+ v

Ele nota que(u+ v)3 = u3 + 3u2v + 3uv2 + v3

ou seja,(u+ v)3 ¡ 3uv(u+ v)¡ (u3 + v3) = 0

Tendo em conta esta ¶ultima identidade, Cardano observa que para que x = u + vseja solu»c~ao da c¶ubica x3 + px+ q = 0, ¶e su¯ciente encontrar u e v satisfazendo

3uv = ¡p e u3 + v3 = ¡q

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Equac»~oes do primeiro, segundo e terceiro graus 17

ou seja,

u3v3 = ¡p3

27e u3 + v3 = ¡q

Ao estilo de Diofanto, fazendo ent~ao

u3 = ¡q2+ ® e v3 = ¡q

2¡ ®

teremos

u3v3 =³q2

´2¡ ®2 = q2

4¡ ®2 = ¡p

3

27) ®2 =

q2

4+p3

27

Se q2

4+ p3

27¸ 0, deduzimos ent~ao

® = §rq2

4+p3

27= §

pD

onde D = q2

4+ p3

27¶e o assim chamado discriminante da c¶ubica reduzida x3+px+ q = 0.

Finalmente, assumindo que D ¸ 0, teremos, para ® =pD,

u3 = ¡q2+pD e v3 = ¡q

2¡pD

e entao

x = u+ v = 3

r¡q2+pD + 3

r¡q2¡pD

ou seja

x =3

s¡q2+

rq2

4+p3

27+

3

s¡q2¡rq2

4+p3

27

O mesmo resultado ¶e obtido quando consideramos ® = ¡pD (veri¯que), assumindo

que a ra¶³zes c¶ubicas calculadas s~ao as ra¶³zes c¶ubicas reais de n¶umeros reais.

Se o discriminante D ¶e negativo, o uso da f¶ormula de Cardano requer um c¶alculocuidadoso de ra¶³zes c¶ubicas complexas de n¶umeros complexos. Cardano simplesmentea¯rmava que, no caso em que D < 0, sua f¶ormula n~ao se aplicava. µA ¶epoca deCardano, os n¶umeros complexos n~ao haviam sido inventados. A f¶ormula de Cardanopor¶em, foi a genese dos n¶umeros complexos, conforme explicaremos a seguir.

Problemas complementares

1. Deduza as equa»c~oes c¶ubicas correspondentes ao problema geom¶etrico de Ar-quimedes, dadas µa p¶agina 14.

2. Veri¯que que a c¶ubica reduzida, correspondente ao problema de Arquimedes, temdiscriminante D negativo.

3. Aplique a f¶ormula de Cardano para encontrar uma solu»c~ao de cada uma dasc¶ubicas dadas abaixo.

(a) (Cardano) x3 + 6x¡ 20 = 0. Resposta: x = 3

p10 + 6

p3 +

3

p10¡ 6p3

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18 Jo~ao Carlos V. Sampaio { DM-UFSCar

(b) x3 + 6x+ 2 = 0. Resposta: x = 3p2¡ 3

p4

(c) x3 ¡ 3x+ 2 = 0. Resposta: x = ¡24. Encontre as solu»c~oes das c¶ubicas

(a) (Cardano) x3 + 10x = 6x2 + 4. Resposta: 2 e 2§p2(b) x3 ¡ 12x2 + 26x¡ 12 = 0. Resposta: 2 e 5§p19

BOMBELLI, CRIADOR DOS N¶UMEROS COMPLEXOS

O primeiro algebrista a formular regras elementares das opera»c~oes dosn¶umeros complexos foi o engenheiro hidr¶aulico italiano Rafael Bombelli,

em seu tratado L'Algebra (1572), quase trinta anos depois da publica»c~aode Ars Magna por Cardano.

Bombelli notou que a equa»c~ao x3¡ 15x¡ 4 = 0 tem uma solu»c~ao realpositiva, a saber x = 4. Notou tamb¶em que as demais solu»c~oes dessa

equa»c~ao, ¡2§p3, s~ao tamb¶em reais, sendo elas as ra¶³zes do polinomiodo 2o grau x2+4x+1, obtido como quociente da divis~ao de x3¡ 15x¡4por x¡ 4.No entanto, notou Bombelli, a f¶ormula de Cardano n~ao se aplica µa

c¶ubica em quest~ao, pois nesse caso D = q2

4+ p3

27= ¡121 < 0. Um

not¶avel paradoxo surgiu ent~ao: a c¶ubica x3 ¡ 15x¡ 4 = 0 tem suas tresra¶³zes reais e, no entanto, a formula de Cardano, quando a ela aplicada,

produzia uma express~ao num¶erica que carecia de sentido:

x =3

q2 +

p¡121 + 3

q2¡p¡121

Por conta disso, Bombelli pos-se a estudar essa nova esp¶ecie de n¶u-

meros, mais tarde denominados n¶umeros complexos.

Com a f¶ormula de Cardano, todo cuidado ¶e pouco!

Mesmo quando D > 0, a f¶ormula de Cardano mostra-se pouco pr¶atica, pois podeocultar solu»c~oes racionais de uma c¶ubica sob a aparencia de express~oes que parecemirracionais.

Por exemplo, a c¶ubica x3 + 3x ¡ 4 = 0 tem x = 1 como solu»c~ao. Dividindo-sex3+3x¡ 4 por x¡ 1, obtemos x2+ x+4, que tem como ra¶³zes os n¶umeros complexos(¡1§p15i)=2, as outras duas soluc~oes da c¶ubica dada.No entanto, a aplica»c~ao da f¶ormula de Cardano a essa c¶ubica nos d¶a a solu»c~ao real

x =3

q2 +

p5 +

3

q2¡

p5

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Equac»~oes do primeiro, segundo e terceiro graus 19

que ¶e, na verdade x = 1.

FRANC»OIS VIµETE CRIA UM M¶ETODO ALTERNATIVO

PARA O CASO INDESEJ¶AVEL DA F¶ORMULA DE CAR-

DANO

Fran»cois Viµete (1540{1603) foi um advogado frances, membro do par-lamento, com grande voca»c~ao matem¶atica. Em seu tratado In artem

analyticem Isagoge, Viµete aplica ¶algebra ao estudo de geometria, quandoat¶e ent~ao, a pr¶atica tinha sido sempre a de aplicar geometria µa ¶algebra.

Durante uma guerra contra a Espanha, Viµete serviu ao rei francesHenri IV, decifrando o c¶odigo usado pelos espanh¶ois em suas correspon-

dencias militares.

Usando trigonometria, ¶area da matem¶atica elementar onde descobriu

muitas de suas conhecidas rela»c~oes, Viµete desenvolveu um m¶etodo paracalcular as tres ra¶³zes reais da c¶ubica x3 + px + q = 0 no caso em quea f¶ormula de Cardano \falha," isto ¶e, no caso em que o discriminante

D = q2

4+ p3

27¶e negativo.

O m¶etodo de Viµete

Consideremos a equa»c~ao c¶ubica

x3 + px+ q = 0

onde suporemos que os coe¯cientes p e q s~ao n¶umeros reais n~ao nulos.

No seu m¶etodo, Viµete tenta buscar uma solu»c~ao real para essa c¶ubica, escrevendo-ana forma

x = k cos µ; com k > 0

Note que o caso k = 0 ocorre quando x = 0 ¶e uma solu»c~ao da c¶ubica. Nesse caso, q = 0e as outras duas ra¶³zes s~ao as solu»c~oes complexas da equa»c~ao x2 = ¡p.Usando a rela»c~ao trigonom¶etrica

cos 3µ = 4 cos3 µ ¡ 3 cos µtemos entao

4 cos3 µ ¡ 3 cos µ ¡ cos 3µ = 0

A substitui»c~ao de x = k cos µ na c¶ubica x3 + px+ q = 0 nos d¶a

k3 cos3 µ + pk cos µ + q = 0

express~ao que, multiplicada por 4=k3 em ambos os lados, passa a ser

4 cos3 µ +4p

k2cos µ +

4q

k3= 0

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20 Jo~ao Carlos V. Sampaio { DM-UFSCar

Comparando esta ¶ultima equa»c~ao com a identidade trigonom¶etrica

4 cos3 µ ¡ 3 cos µ ¡ cos 3µ = 0

Viµete ent~ao observa que x = k cos µ ser¶a solu»c~ao da c¶ubica dada desde que se tenha

4p

k2= ¡3 e ¡ cos 3µ = 4q

k3

ou, equivalentemente,

k2 = ¡4p3e cos 3µ = ¡4q

k3

Estas duas ¶ultimas equa»c~oes (em k e µ) ter~ao solu»c~ao se, e somente se, tivermos

p < 0 e¯4qk3

¯· 1

ou, equivalentemente

p < 0 e16q2

k6· 1

Como k2 = ¡4p

3, esta ¶ultima condi»c~ao equivale a

D =q2

4+p3

27· 0

(note que, sendo q6= 0, ent~ao D · 0) p < 0)

Sendo ent~ao D · 0, o m¶etodo de Viµete nos d¶a tres solu»c~oes reais da c¶ubica:

Primeiramente calculamos k =q¡4p

3e ent~ao procuramos os tres valores de µ,

compreendidos entre 0 e 360± satisfazendo cos 3µ = ¡ 4q

k3. Sendo eles µ1; µ2 e µ3, teremos

as tres solu»c~oes da c¶ubicas dadas por x1 = k cos µ1, x2 = k cos µ2 e x3 = k cos µ3.

No c¶alculo dos tres valores de µ, podemos tomar

µ1 =1

3arc cos

µ¡4qk3

¶e ent~ao

µ2 = µ1 + 120± e µ3 = µ1 + 240

±

Problema Utilizando uma calculadora (computando angulos em graus), calcule asra¶³zes de x3 ¡ 15x ¡ 4 = 0 (a equa»c~ao estudada por Bombelli) pelo m¶etodo de Viµete.Voce obter¶a r = 2

p5 e cos 3µ = 2

5p5, de onde um dos valores de µ ¶e dado por µ1 =

1

3arccos

³2

5p5

´. Tome ent~ao µ2 = µ1 + 120

±, µ3 = µ1 + 240±. Correspondentemente,

teremos x1 = 4, e as aproxima»c~oes x2 = ¡0; 268 e x3 = ¡3; 732

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Equac»~oes do primeiro, segundo e terceiro graus 21

EQUAC» ~OES DO 4o GRAU E AL¶EM. ALGUMAS POUCAS

PALAVRAS.

Por ora n~ao trataremos das equa»c~oes do 4o grau. A f¶ormula de Lu-

dovico Ferrari, publicada por Cardano em Ars Magna, exprime algebri-camente as solu»c~oes da equa»c~ao qu¶artica

x4 + ax3 + bx2 + cx+ d = 0

em termos dos coe¯cientes a; b; c e d, utilizando somente as quatro ope-

ra»c~oes aritm¶eticas elementares e extra»c~ao de ra¶³zes. Uma solu»c~ao dessetipo ¶e chamada solu»c~ao por radicais.

Nos 250 anos que se seguiram, todos os esfor»cos para resolver aequa»c~ao geral de 5o grau falharam. Em 1786, E.S. Bring mostrou que a

equa»c~ao geral do 5o grau pode ser reduzida, por transforma»c~oes alg¶ebri-cas, µa equa»c~ao x5 ¡ x ¡ A = 0. Embora uma tal redu»c~ao parecesse umgrande passo em dire»c~ao µa solu»c~ao geral da equa»c~ao qu¶³ntica por radi-cais, Paolo Ru±ni mostrou, em 1799, que uma solu»c~ao geral da equa»c~aoqu¶³ntica por radicais era imposs¶³vel. A demonstra»c~ao desse fato, feita

por Ru±ni, foi considerada insatisfat¶oria µa ¶epoca. Entretanto, em 1826,Niels Abel publicou uma prova satisfat¶oria desse fato, fato repetido com

a teoria mais geral ulteriormente desenvolvida por Evariste Galois, em1831.

O Teorema Fundamental da ¶Algebra

Os n¶umeros complexos foram criados para suprir solu»c~oes de equa»c~oes

polinomiais. Mas h¶a alguma equa»c~ao polinomial de coe¯cientes reais oucomplexos que n~ao possui nenhuma solu»c~ao complexa? A resposta ¶e n~ao,

sendo enunciada pelo Teorema Fundamental da ¶Algebra:

Toda equa»c~ao polinomial de grau ¸ 1, com coe¯cientes reais ou com-

plexos, possui uma solu»c~ao complexa.

Esse teorema foi enunciado, sem demonstra»c~ao, por Albert Girard

em 1629. Os matem¶aticos Jean D'Alembert, em 1746, e Carl FriedrichGauss, em 1799, publicaram demonstra»c~oes desse teorema.

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22 Jo~ao Carlos V. Sampaio { DM-UFSCar

As referencias utilizadas para a confec»c~ao do presente texto s~ao as seguintes:

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3. Bunt, L.N.H. et aliiThe Historical Roots of Elementary MathematicsDover, New York, 1988.

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7. Stillwell, J.Mathematics and Its HistorySpringer-Verlag, New York, 1989.

8. van der Waerden, B.L.Geometry and Algebra in Ancient CivilizationsSpringer-Verlag, New York, 1983

9. van der Waerden, B.L.A History of AlgebraSpringer-Verlag, New York, 1985