j.molil jornal do morhãn · 2013-02-02 · o dia do hanseniano hanseniano tem consa-a si um dia de...

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j.MOlil Jornal do Morhãn Órgão de divulgação interna do Movimento de Reintegração do Hanseniano. Ano I. N? 0 - If trimestre de 1982 Mais um passo na luta pela aceitação total do hanseniano Contágio jdMMl Brizola disse que o governo "nio é leproso" e, ssslm. que suas propostas políticas devem ser anali- sadas pela Oposição, Brizola comete uma terrível Injus- tiça com os hansenianos. não pela com- paração, mas pelo fato de estar cien- tificamente provado que a moléstia não è transmissível pelo simples con- tato. Talvez fosse melhor dizer, por exem- plo, que o governo não é chiclete capaz de provocar a aderência com os mais estranhos objetos. iBuffalo Police Commissioner Offers Drastic ^\éu^//jf^O ISOLATE DRUG ADDICTS LIKÍW7 LEPERUg^URB CRIME lebbrosi camminano tra noi sfíxJí^ (Ps ^O Leproso* alamiam Formiga sps Leprosos nas ruas da cidade! ra Anti-educação em "lept permanente, poderosa, invencível Na página 5 transcrevemos •uma matéria escrita por um dos mais competentes e reco- nhecidos dermatologistas do país, dr. Abraão Rotberg, on- de o ilustre hansenologista ex- plica seu posicionamento con- tra o estigma ligado à lepra. Para o médico, todo o gover- no que promover campanhas de reintegração utilizando-se do termo pejorativo estará jo- gando dinheiro fora. Ainda nesta página, um ar- tigo sobre a situação da en- demia no Brasil. Saiba o que é a doença Se nem nas escolas de me- dicina a hanseníase é ensinada a contento, o que esperar da população, que nem sempre tem acesso à informações ge- rais? Foi pensando nisso que publicamos, na página 4, uma matéria onde, didaticamente, se mostra como reconhecer doenças, como se cura e co- mo as mutilações são evitd- veis. O dia do hanseniano O hanseniano tem consa- grado a si um dia de reconhe- cimento mundial, quando a problemática que envolve sua existência é lembrada por en- tidades filantrópicas e por ra- ras instituições médicas e sa- nitárias. Esta data é 29 de ja- neiro. Na página 10, mostramos a repercussão desse dia na im- prensa brasileira. Morhan se organiza O Morhan, apesar de ter apenas poucos meses de vida, se organizou cinco núcleos espalhados pelo Brasil, visitou dezenas de cidades onde divul- gou sua plataforma de ação e começa a colher resultados práticos. Na página 2, um re- latório sobre as atividades desses núcleos e informações gerais sobre o movimento. Veja editorial na pág. 3 Por detrás da injúria um escritor de respeito Rerre Sastre é um paraiba- no que passou mais de 40 dos seus 60 anos de vida dentro de colônias. Enfrentou com galhardia o preconceito que todo o hanseniano tem con- tra si. Não se deixou abater e contra todas as dificuldades físicas e financeiras editou dois livros que são um pun- gente retrato deste contingen- te de pessoas que, sem dúvi- da, são a comunidade mais se- gredada em todo o mundo. Ilhados (que conta a vida dos pacientes isolados do mundo) e Um Caso de seis mil anos (biografia) percor- rem o universo à parte dos hansenianos e mostram que por detrás das injúrias da so- ciedade existem seres huma- nos dignos de respeito, com- preensão e igualdade social. Nas páginas 5, 6 e 7 publi- camos uma extensa entrevista com o escritor, que conta em detalhes toda a sua atribulada vida literária e traça, com sin- gular clareza, um panorama da vida nos sanatórios nas úl- timas décadas. UMA VOZ NA AMAZÔNIA O padre italiano Humberto Guidotti, que atua na Amazô- nia seis anos, tendo, por is- so, um íntimo contato com as populações cartentes daquela paupérrima região brasileira, enviou uma carta a todas as diocesses brasileiras concla- mando a seus companheiros de sacerdócio a iniciarem uma luta contra o lepro-estigma. A íntegra desta carta está na página 9. Prejuízos da "caridade" Muitas pessoas de espírito caritativo que se mobilizam todos os anos para ajudar os hansenianos com coletas de fundos financeiros e gêneros diversos não percebem que, ao utilizarem-se de uma ter- minologia estigmatizante,mais prejudica do que colabora. Di- fundindo preconceitos estas pessoas tomam ainda mais difícil a luta pela reintegração total do hanseniano na socie- dade. Este é o tema da matéria "Não â ajuda sem compro- misso", que está na página 11. "A maior causa do preconceito é a mutilação n9o a palavra lepra." Thomas Frist, sociólogo

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Page 1: j.MOlil Jornal do Morhãn · 2013-02-02 · O dia do hanseniano hanseniano tem consa-a si um dia de reconhe-cimento mundial, quando a problemática que envolve sua existência é

j.MOlil

Jornal do Morhãn Órgão de divulgação interna do Movimento de Reintegração do Hanseniano. Ano I. N? 0 - If trimestre de 1982

Mais um passo na luta pela aceitação total do hanseniano

Contágio jdMMl Brizola disse que o governo

"nio é leproso" e, ssslm. que suas propostas políticas devem ser anali- sadas pela Oposição,

Brizola comete uma terrível Injus- tiça com os hansenianos. não pela com- paração, mas pelo fato de Já estar cien- tificamente provado que a moléstia não è transmissível pelo simples con- tato.

Talvez fosse melhor dizer, por exem- plo, que o governo não é chiclete capaz de provocar a aderência com os mais estranhos objetos.

iBuffalo Police Commissioner Offers Drastic ^\éu^//jf^O

ISOLATE DRUG ADDICTS LIKÍW7 LEPERUg^URB CRIME

lebbrosi camminano

tra noi

sfíxJí^

(Ps ^O

Leproso* alamiam Formiga

sps

Leprosos nas ruas da cidade!

ra Anti-educação em "lept permanente, poderosa, invencível

Na página 5 transcrevemos •uma matéria escrita por um dos mais competentes e reco- nhecidos dermatologistas do país, dr. Abraão Rotberg, on- de o ilustre hansenologista ex-

plica seu posicionamento con- tra o estigma ligado à lepra. Para o médico, todo o gover- no que promover campanhas de reintegração utilizando-se do termo pejorativo estará jo-

gando dinheiro fora.

Ainda nesta página, um ar- tigo sobre a situação da en- demia no Brasil.

Saiba o que é a doença

Se nem nas escolas de me- dicina a hanseníase é ensinada a contento, o que esperar da população, que nem sempre tem acesso à informações ge- rais?

Foi pensando nisso que publicamos, na página 4, uma matéria onde, didaticamente, se mostra como reconhecer doenças, como se cura e co- mo as mutilações são evitd- veis.

O dia do hanseniano

O hanseniano tem consa- grado a si um dia de reconhe- cimento mundial, quando a problemática que envolve sua existência é lembrada por en- tidades filantrópicas e por ra- ras instituições médicas e sa- nitárias. Esta data é 29 de ja- neiro.

Na página 10, mostramos a repercussão desse dia na im- prensa brasileira.

Morhan se organiza O Morhan, apesar de ter

apenas poucos meses de vida,

já se organizou cinco núcleos espalhados pelo Brasil, visitou

dezenas de cidades onde divul- gou sua plataforma de ação e

já começa a colher resultados práticos. Na página 2, um re-

latório sobre as atividades desses núcleos e informações

gerais sobre o movimento.

Veja editorial na pág. 3

Por detrás da injúria um escritor de respeito

Rerre Sastre é um paraiba- no que passou mais de 40 dos seus 60 anos de vida dentro de colônias. Enfrentou com galhardia o preconceito que todo o hanseniano tem con- tra si. Não se deixou abater e contra todas as dificuldades físicas e financeiras editou dois livros que são um pun- gente retrato deste contingen- te de pessoas que, sem dúvi- da, são a comunidade mais se- gredada em todo o mundo.

Ilhados (que conta a vida dos pacientes isolados do mundo) e Um Caso de seis mil anos (biografia) percor- rem o universo à parte dos hansenianos e mostram que por detrás das injúrias da so- ciedade existem seres huma- nos dignos de respeito, com-

preensão e igualdade social. Nas páginas 5, 6 e 7 publi-

camos uma extensa entrevista com o escritor, que conta em detalhes toda a sua atribulada vida literária e traça, com sin- gular clareza, um panorama da vida nos sanatórios nas úl- timas décadas. UMA VOZ NA AMAZÔNIA

O padre italiano Humberto Guidotti, que atua na Amazô- nia há seis anos, tendo, por is- so, um íntimo contato com as populações cartentes daquela paupérrima região brasileira, enviou uma carta a todas as diocesses brasileiras concla- mando a seus companheiros de sacerdócio a iniciarem uma luta contra o lepro-estigma. A íntegra desta carta está na página 9.

Prejuízos da "caridade" Muitas pessoas de espírito

caritativo que se mobilizam todos os anos para ajudar os hansenianos com coletas de fundos financeiros e gêneros diversos não percebem que, ao utilizarem-se de uma ter- minologia estigmatizante,mais prejudica do que colabora. Di-

fundindo preconceitos estas pessoas tomam ainda mais difícil a luta pela reintegração total do hanseniano na socie- dade.

Este é o tema da matéria "Não â ajuda sem compro- misso", que está na página 11.

"A maior causa do preconceito é a mutilação n9o a palavra lepra."

Thomas Frist, sociólogo

Page 2: j.MOlil Jornal do Morhãn · 2013-02-02 · O dia do hanseniano hanseniano tem consa-a si um dia de reconhe-cimento mundial, quando a problemática que envolve sua existência é

CjOJÚÃ)).. Correspondêcia para Maria Francisco Piotto, rua Osvaldo de Andrade, 76, Jordanópolis, 09700 - São Bernardo do Campo - SP.

<< em Vila Nova não há preconceito . y *

Notícias dos Núcleos

| Vila Nova, 11 de março de 1982 o Ilmo.Sr. o Dr. Ruben Alcântara Bonfim

■D

"Só agora tivemos tempo para ■° vos dizer alguma coisa sobre Vi-

la Nova, bairro que V.Sa. visitou à noite, nao tendo, assim, opor- tunidade para conhecê-lo. Vila Nova é uma comunidade, como tantas no Estado mais pobre da Federaçío, muito carente e que luta com sérias dificuldades para sobreviver. É uma comunidade sadia, como qualquer outra de São Luiz, capital do Estado. O fato de residirem aqui 400 egres- sos da Colônia do Bonfim nüb significa que seja um "gueto de hansenianos", pois esse número não representa nem 20% de sua população, que é de 2200 habi- tantes, incluindo 700 crianças. Não podemos precisar onde es- tão todos os 1500 egressos que já deixaram aquele nosocômio desde 1952, mas sabemos que estão em outros bairros da ci- dade, no Interior e até fora do Estado. Digamos que no vizi- nho Bairro do Anjo da Guarda morassem algumas centenas de- les, não seria um absurdo dizer- se que aquela grande comunida- de seria,um gueto formado por hansenianos? Vila Nova não é o lugar obrigatório de fixação

dos que saem do Hospital do Bonfim, nem ficará aqui por medo da sociedade que, por sua vez, já não lhes impOem maiores dificuldades em seu seio, confome temos constatado por experiência própria, viven- do na comunidade sadia desde que deixei a Colônia, em 1952.

"Os conselhos que V.Sa. deu no tocante ao tratamento e rea- bilitação dos hansenianos, esta- mos observando na medida do possível. Só não podemos 'ca- pacitar para o trabalho' aqueles que já saíram irreversivelmente mutilados; mas aqueles que têm condições físicas vão ingressando nas faculdades e encontrando trabalho em várias atividades, até mesmo como funcionários públi- cos.

"Quanto aos 88% de hanse- nianos que não foram indentifi- cados através de exames ou con- tatos domiciliares, como saber se eles existem se não foram iden- tificados? Pode-se dizer que al- guém é doente só por vê-lo pas- sar nas ruas? Portanto, achamos que esses dados, embora sejam da Organização Mundial de Saú- de, com certeza estão exagera- dos. Sabemos que no interior do Estado não está sendo feito o controle da doença devidamente, mas aqui em Vüa Nova, como

Não creio que você tenha razão .

"Caríssimo Samuel, "sinto que minha caracteri-

zação da Vila Nova como um gueto de hansenianos tenha me- lindrado você. Não tive esta inte- ção e usei o termo na entrevista ao Imparcial, de 29/12/81, no sentido vernacular de 'bairro on- de são confinados minorias por imposições sociais'. Não imagino o que você pensa sobre guetos. Esta concentração de doentes, mesmo de 20%, já traduz este significado.

"Não creio, apesar da minha pouca experiência com o pro- blema, que você tenha razão ao afirmar ao mesmo jornal, em 05/03/82, que a sociedade mara- nhense já não oferece maiores obstáculos à integração dessas pessoas ao seu convívio.

."No dia da amistosa acolhida na Vila Nova, passeava pelas ruas da belíssima cidade fundada por Daniel de La Touche, em compa- nhia de Flávio, quando maravi- lhados pela baía, onde destaca-se a ponta onde está localizada a Colônia do Bonfim, fomos abor- dados por um transeunte, operá- rio na aparência. O cidadão per- guntou-nos: 'Vocês sabem o que é aquilo/"ylwíes de responder- mos, adiantou: 'É o lugar dos le- prosos, aquela gente de orelhas grandes ... os braços caem aos pedaços . . .' é horrível. . . não vão até lá.' Senti o constrangi-

mento do nosso amigo Flávio que receou estender a mão para despedir-se de tão inesperada aparição, certamente para não constrangê-la e por não saber se haveria alguma reação intempes- tiva (explica-se: Flávio tem de- formidade).

"Você nos fala da comunida- de sadia, em oposição talvez ao doente. Não é uma atitude de quem está confinado?

"A ocupação das áreas em torno das antigas colônias, atuais hospitais de dermatologia sanitá- ria, não foi realizada porque a população estava conscientizada do problema. Como os sanató- rios se localizam nas periferias das cidades foi nesta direção que se efetivou a ocupação do solo, onde os terrenos são mais bara- tos.

"Sua dúvida sobre os dados do Minsitério da Saúde relativos à 1980, de que 88% dos pacien- tes registrados neste ano (14 mil ao todo) não o foram através de exames de comunicantes, pode ser esclarecida com a leitura do artigo A situação da Endemia no Brasil (página 5).

"Contamos com você para o desenvolvimento do MORHAN. Da discussão sincera nasce a luz.

"Um abraço fraternal,

Dr. José Ruben Alcântara Bonfim"

vos disse na ocasião, a coisa é bem diferente. Não existe mais nenhum preconceito por parte da população sadia em relação aos egressos e seus familiares. Também nossas autoridades sani- tárias já não dificultam o seu aces- so em Hospitais da Cidade ou noutras repartições públicas, pois já temos conseguido internar al- guns para tratamento e cirurgia. A Vila conta com assistência mé- dica diária nos setores de pedia- tria, dermatologia, clínica geral e serviço social. Ainda este ano te- remos funcionando o serviço de prevenção de incapaddades, pois já praticamos fisioterapia através de um médico e um enfermeiro que estagiaram em Bauru. Toda a população do bairro é exami- nada periodicamente e as crian- ças duas vezes por ano, além de receberem uma merenda rica em proteínas e vitaminas durante as aulas. Porventura, tudo isto não são avanços que temos dado nes- te campo?

"Sabemos que V.Sa. tem a melhor das intenções em alertar as autoridades e o povo sobre co- mo se deve tratar a hansenía- se, por isso esperamos com todo o prazer que se renove entre nós a visita de tão ilustre sanitarista.

"Atenciosamente, Samuel Go- mes".

"Mea culpa"

"Amigos, cabe aqui um pedi- do de perdão. Nesses nove meses de andanças pelo país divulgan- do o Morhan confesso que dei informações imprecisas e precipi- tadas. Só agora é que me consci- entize! totalmente da necessida- de da abolição da palavra lepra. Muitas vezes deixei material on- de o problema da hanseníase era tratado sob a terminologia estig- matizante.

"Evidente que um reduzido número de matérias sensadona- listas tiveram o livre arbítrio dos jornais. Fica a experiênda de que se bem trabalhada a impresa pode ser um poderoso aliado.

"Prometo contudo ser mais prudente, dar as informações só depois de ter certeza e lutar ca- da vez mais para a extinção do estigma.

"Quanto ao fato de viajar so- zinho é que só agora consegui passagens também para os ou- tros, já que anda de carona.

"Contudo, pela graça, algo foi feito. Um abraço espedal aos ir- mãos cegos e acamados.

"André Luiz de Paula, rela- ções públicas do Morhan".

Qualquer organização de dimensão nadonal atuante neces- sita desmembrar-se em diversas sub-sedes ou filiais para que seu tra- balho ou mensagem realmente atinja a todos os brasileiros.

Os núcleos do Morhan fundonam como filiais da sede do Mo- vimento. Um núcleo se constitui em qualquer ddade do Brasil onde existam pessoas interessadas em desenvolver o programa do Morhan, ou seja, a conscientização dos hansenianos, sua família e a comuni- dade, sobre as caraderísticas da doença, seu controle e a lutar pelo desapaiedmento do preconceito existente contra o doente, reinte- grando-o assim á sociedade.

O Morhan já conta com núcleos estruturados e atuantes nas ddades de São Bernardo do Campo (ABC, São Paulo), Bauru (SP), Redfe (PE), Nova Iguaçu (RJ) e Caxias (RJ). Já foram feitas visitas, palestras de divulgação e já foi enviado material de divulgação para as ddades de Anápolis e Goiânia (GO), São Luiz (MA), Manaus (AM), Belém (PA), João Pessoa (PB), Petrópolis e Itaboraí (RJ), Três Cora- ções (MG), Vitória (ES), Rio Branco (AC), Guarulhos, Mogi das Cru- zes (SP), e nos bairros de Santo Amaro, Lapa, Pinheiros e Freguesia do Ó (município de São Paulo).

Todas as informações necessárias para que um núcleo possa ser formado, podem ser obtidas na sede provisória do Morhan bastando enviar correspondênda para Maria Francisca Piotto, rua Osvaldo de Andrade, 76, Jordanópolis. 09700 - São Bernardo do Campo - SP. Telefone: (011) 458-8395.

NÚCLEO DE SÃO BERNARDO DO CAMPO (Maria Francisca Piotto, Rua Osvaldo de Andrade, 76, Jordanópolis, 09700, SBC - SP). Este núcleo promove, no último sábado de cada mês, reuniões perió- dicas. O horário dessas reuniões, onde se discute as programações a serem levadas na região do ABC, é sempre às 14 horas. Por proble- mas de acomodação elas são realizadas no Centro de Saúde de São Ber- nardo do Campo (av. Armando ftalo Setti, 402, próximo ao Paço Municipal).

NÚCLEO DE SANTO AMARO - município de São Paulo (endereço provisório: Centro de Saúde de Santo Amaro. Rua Adolfo Pinheiro, 122CEP:04734-SP). A semelhança do que acontece em São Bernardo, este núcleo do Morhan promove suas reuniões periódicas em todo 3? sábado de ca- da mês, sempre às 14 horas, no endereço acima citado.

NÚCLEO DE NOVA IGUAÇU - RJ (Dr. Paulo de Almeida Amaral, rua Aimorés, n? 8, Moquetá - Centro de formação de líderes da Dio- cese de Nova Iguaçu, CEP: 26000 - Nova Iguaçu - RJ) O relações-públicas do Morhan, André Luiz de Paula, proferirá pales- tra no endereço adma no próximo dia 6 de abril, às 9 horas da ma- nhã. Como tema, os problemas psico-sodais que envolvem o doente hanseniano. A entrada é franca.

NÚCLEO DE CAXIAS - RJ ( Dra. Maria Leide, rua das Laranjeiras, 314/507B, Laranjeiras, CEP: 20000 - RJ, endereço provisório, tele- fone: (021) 285-0136). Em entrevista ao Jornal O Fluminense, a doutora e professora de Dermatologia da UFRJ e chefe do Serviço de Tratamento de Hanse- níase do CS. de Duque de Caxias, Dra. Maria Leide Vand Del-Rey de OUveira, denundou o alto índice de hanseníase na Baixada Flumi- nense e apontou a miséria, a desnutrição e a falta de saneamento bá- sico como as prindpais causas do problema que, segundo a médica, já atinge mais de duas mil pessoas (registradas), somente em Caxias.

NÚCLEO DE BAURU - SP (Hospital Lauro de Souza Lima. CEP: 17100 - Bauru - SP. Caixa Postal 62). Padentes do hospital Lauro de Souza Lima estão realizando estudos para a produção de uma estória em quadrinhos que, concluída, será publicada pelo Jornal do Morhan. O vilão da estória chama-se Capi- tão MH ( Mal de Hansen).

NÚCLEO DE RECIFE (Cláudio José dos Santos, rua do Campo, 52, Mirueira Paulista, Pernambuco. CEP: 53400). Um dos primeiros a ser estruturado, o Núcleo de Recife editou um jornal mimeografado (Morhan Jornal), dirigido por Pierre Sastre (ver entrevista nas páginas 6, 7 e 8).

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EDITORIAL

O paciente, família e comunidade

pela reintegração Após meses de contatos em vários Estados do país e intensa di-

vulgação pela imprensa de sua criação, o MORHAN concretiza um de seus objetivos, previsto em estatuto: "Divulgar materiais didáticos, informativos aos profissionais de saúde em geral e à população, ver- sando sobre a hanseníase e seu controle".

Objetivo que não é um fim em si mesmo, o JORNAL DO MORHAN pretende com seu sério trabalho de informação cientifica trazer para a luta pela reintegração do hanseniano o próprio pacien- te, imerso em um universo hostil decorrente da ignorância com rela- ção ã sua doença; pretende juntar-se aos pouquíssimos médicos e profissionais de saúde envolvidos com a educação sanitária e o con- trole da hanseníase, oferecendo-lhes a mais importante colaboração: a palavra do doente; pretende produzir um diálogo entre o paciente e sua família e os profissionais de saúde, tentando dar um paradeiro à desagregação familiar, muito freqüente, mais lesiva psicologicamen- te ao hanseniano do que as lesões físicas; pretende fazer chegar à to- da a sociedade brasileira notícias corretas sobre este grande problema sanitário, e mais do que isso, social.

Esperamos que nosso esforço resulte num amplo debate, ao fi- nal do qual surgirão novos relacionamentos sociais onde o medo, o pânico, a infâmia e a opressão de que são vítimas milhões de brasilei- ros, doentes ou não, dê lugar à compreensão de que a hanseníase é uma doença como outra qualquer.

O JORNAL DO MORHAN vem dar continuidade ao magnífico trabalho conjunto de pacientes e profissionais de saúde realizado atra- vés de 3 jornais nacionais editados em Pernambuco (O Momento), Rio de Janeiro (Damião) e São Paulo (Tópicos), que circularam na década de 50.

Não pretendemos ser o único canal de expressão dos segmen- tos sociais que lutam contra o estigma ligado à doença. Sabemos da extrema dedicação de algumas autoridades de saúde e entidades civis e especialmente religiosas. Queremos um intercâmbio aberto pois só a união de esforços propiciará conquistas.

Queremos nos juntar àqueles que tem dado uma magnífica li- ção combatendo todos os meios de desinformações de massa (na ex- pressão do prof. Abraão Rotberg), que não cumprem sua função so- cial de informar a sociedade. Ao contrário, contribuem para a perpe- tuação do mais destruidor dos preconceitos.

DESATIVAÇÃO DAS COLÔNIAS

O ponto de vista do desprezado A desativação das antigas colônias

tem sido objeto de discusão mas os pacientes nSo têm sido ouvidos a res- peito das propostas governamentais e que agora correm o risco de ser larga- dos á própria sorte, sem ter para onde ir, como se sustentar e enfrentar o es- tigma que o marca frente à sociedade.

Muitas idéias a respeito das desa- tivações já começam a surgir: Aurélio Bezerra, na Folha de Itaboraf de 11/02/82 propOe que sejam legiti- madas em favor dos internos e egres- sos as propriedades já construídas ou que venham a ser constru fdas. Outras correntes de pensamento defendem a idéia de que a população deve ser amplamente conscientizada antes pa- ra receber o egresso sem estigmatizá- lo. Alguns pretendem a utilização so- cial dessas áreas para os carentes, han- senianos ou não. Está aberto o deba- te.

No princípio era o caos, de- pois ficou pior. Estou falando das colônias de hansenianos e de sua desativação e do que sobrou de tudo isso.

Fui internado durante deze- nove anos em duas delas (três em uma e 16 em outra). Visitei algu- mas e convivi com pessoas que viveram internadas em muitas outras. Constatei que a vida em tais colônias e o que estava acon- tecendo com elas — com raras exceções - é a mesma coisa, tu- do igual.

Antes das desativações que começaram a ocorrer na segunda metade da década passada, era o caos. O caos da dignidade huma- na das pessoas que nelas viviam.

Sempre localizados a quilôme- tros de distância da cidade mais próxima, como se fosse um de- pósito de coisa nojenta e perigo- sa (para muitos o era), as colônias eram símbolo maior — e ainda o sío — do preconceito da discri- minação, da política errada do controle da hanseníase.

Vitória do Morhan: hanseniano é aceito como deficiente

A Coalizão Nacional de Enti- dades de Pessoas Deficientes, composta ao término do I Con- gresso Nacional de Pessoas De- ficientes, realizado em Recife em outubro de 1981, é formada por oito membros, oriundos das mais diferentes partes do país, sendo que dois são deficientes auditi- vos, dois visuais, dois paraplégi- cos e dois hansenianos. Os repre- sentantes dos hansenianos são do Morhan: Francisco Augusto Viei- ra Nunes (Bacurau) e Maria Lui- za Catenacci.

A inclusão de dois hansenia- nos nesta Coalizão foi uma vitó- ria dos hansenianos. Existia uma certa incompreensão e resistên- cia com relação aos hansenianos participantes do Congresso, já que para os congressistas em ge- ral os hansenianos não eram de- ficientes; para eles, a doença era geradora de deficiência, além de um medo, por parte dos demais membros, de um possível contá- gio.

Os integrantes do Morhan ar- gumentaram que pelo simples fa-

to de ser discriminado, o hanse- niano era um deficiente, pois so- fre "deficiência moral e psicoló- gica" perante o julgamento pre- conceituoso da sociedade. Outra argumentação: em muitos hanse- nianos a deficiência física não é aparente porque ela precisa ser pesquisada para ser conhecida (como, por exemplo, anestesia permanente em certas partes do corpo). Segundo uma estimati- va aproximada, cerca de 30% dos hansenianos do Brasil são porta- dores de incapacidades de mode- radas a graves.

A Coalizão Nacional de Enti- dades de Pessoas Deficientes, fun- dada em pleno Ano Internacio- nal da Pessoa Deficiente (1981), tem por objetivo manter coor- denados todos os movimentos que tenham por preocupação as dificuldades enfrentadas pelas pessoas deficientes hoje no Bra- sil, manter um intercâmbio entre os mais diversos movimentos e colaborar para a difusão cada vez maior do conceito de que todos

e que por isso devem ter as mes- mas oportunidades desfrutadas por toda a sociedade.

MDPD Outra vitória dos hansenianos

nessa luta por sua reintegração na sociedade foi obtida no Colóquio Internacional sobre a Humanida- de e Integridade das Pessoas De- ficientes, que aconteceu em São Bernardo do Campo (SP), entre 22 e 30 de novembro de 1981, promovido pelo Conselho Mun- dial de Igrejas e F.C.D. (Frater- nidade Cristã de Doentes e De- ficientes).

Neste Colóquio duas foram as conquistas: primeiro, a aceitação da palavra hanseníase em lugar das caracterizações estigmatizan- tes e, em segundo, a aceitação de que o hanseniano é pessoa defici- ente e merecedora de serviços de reabilitação.

E ainda: o Morhan faz parte do Movimento pelos Direitos de Pessoas Deficientes (MDPD), através de Francisco Augusto Vieira Nunes (Bacurau), que faz

os deficientes são pessoas normais | parte da coordenação.

Quando um hanseniano entra- va para uma colônia, deixava pa- ra trás tudo o que constituía sua vida até então: trabalho, amigos, família. Quantas famílias foram destroçadas nos portões de tais colônias? Quantas visitas de es- posos, filhos, irmãos foram ra- reando, rareando, até acabarem de vez? Quantas visitas espera- das que nunca vieram! Quantas cartas enviadas com endereços trocados, de pacientes para fa- miliares, para que não soubessem onde ele estava? ... Entrar para uma colônia era assumir por com- pleto a identidade de leproso, identidade essa que muito dificil- mente iria se tirar depois. E quem é que tinha coragem de assumir o parentesco com um leproso? A amizade com um leproso?

Dentro das colônias o hanse- niano vivia sempre sob rigorosos regimentos internos que contro- lavam sua vida nos detalhes mais íntimos, como namorar, por exemplo, ou visitar amigos (fui preso uma vez porque visitei um amigo ou qual tinha sido proibi- do visitar).

Esses regimentos poderiam ser mais ou menos rigorosos depen- dendo muito da "bondade" ou "ruindade" do Diretor da Colô- nia.

Tudo isso, porém, era apenas o caos. Apesar de ter sua vida destroçada, sua personalidade modificada, o hanseniano não passava fome e tinha onde morar dentro das colônias. Também ti- nha novos amigos e até mesmo conseguia formar outra família. Aos poucos ele ali arrumava sua vida. Os anos iam passando e ele ia se adaptando â nova vida. Cri- ava raízes mesmo, alguns deles conseguiam mesmo viver feüzes.

De repente, sem aviso prévio, sem que os hansenianos fossem consultados - ERA A VEDA DELES QUE ESTAVA EM JO- GO — os "homens" descobriram que tinham errado e resolveram — sempre "eles" resolvendo — sem nos consultar, o que fazer com nossas vidas: a ordem era desativar as colônias.

Surgiu o medo, o pânico en- tre os internados "Como vou vi- ver lá fora se o pessoal tem me- do da gente? Eu não tenho pa- ra onde ir, não tenho casa, não tenho família... E o que é que eu vou comer se não tenho re- cursos, não tenho emprego?" Era o que se ouvia.

"Aqui não é hotel, não é a ca- sa de vocês", dizia um diretor numa reunião onde procurava

convencer alguns a saírem da co- lônia. Que não era hotel estáva- mos cansados de saber. Os hotéis não aceitavam — e muitos ainda não aceitam — hansenianos. Mas, e nossa casa? Por quê? Aquelas casas não tinham sido feitas para nós? Não tinham sido em nosso nome que adquiriram fundos pa- ra cosntruí-las E as casas que ti- nham sido feitas por nós mes- mos?

Não havia argumentos que va- lessem. Os "homens" estavam dispostos a "reparar" o erro que haviam cometido. Tínhamos que dar o fora, pagar o pato.

Não houve uma preparação psicológica do paciente para en- frentar, novamente, após dez, vinte, trinta anos de internamen- to, a sociedade hostil. Não houve tuna conscientização da socieda- de para recebê-los de volta. Não houve uma preocupação com a nossa sobrevivência após a alta.

Era mais um erro que estavam cometendo — não por destiva- rem as colônias, mas pelo modo como o fizeram — e mais uma vez fomos nós que pagamos, es- tamos pagando, pelos erros dos que teimosamente ou orgulhosa- mente não nos dão satisfações quando resolvem — "eles" sem- pre resolvem — interferir em nos- sas vidas.

Para sobreviver, os hansenia- nos que foram pressionados para desocuparem as colônias forma- ram as famosas vilas ao lado de seus antigos lares. A vida numa vila têm pouca diferença da vi- da na colônia. Na vila o hanse- niano têm liberdade para ir on- de quiser, fazer o que quiser... Não vive sobre o famoso regi- mento. Isso é bom. Mas as vilas não têm a infraestrutura das an- tigas colônias. As moradias, com raras excessões, são precárias e os recursos financeiros dos han- senianos são poucos e, por isso, a comida é insuficiente. E o pior, o irônico de tudo isso: as vilas herdaram o estigma das colônias que foram desativadas justamen- te para acabar com o tal estigma. E agora? Como acabar com as vi- las? Como acabar com o estig- ma?

"Senhores" que sempre deci- diram sobre nossas vidas, sem ter a humildade de nos consultar, não está na hora de reconhecer que talvez valha a pena nos ouvir um pouco? Talvez juntos ache- mos alguma solução.

Francisco Augusto Vieira Nunes (Bacurau)

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Jornal do Morhan JORNAL DO MORHAN é uma publicação trimestral interna do Movi- mento de Reintegração do Hanseniano. Coordenador Nacional - Francisco Augusto Vieira Nunes (Bacurau) Vice-coordenadora - Maria Luíza Cate- nacci; Secretária Geral - Natividade Rubio Fernandes; Tesoureira (ieral - Maria Francisca Piotto; Secretário de Comunicação - André Luiz de Paula. Assessoria da Coordenação - Dr. José Ruben Alcântara Bonfim e dr. Davi Humel (médicos), Irany Cruz Rodrigues (assistente social), Paulo Amaral (advogado). Sede provisória do Morhan: rua Osvaldo de Andrade, 76, Jor- danópolis, 09700 São Bernardo do Campo - SP, telefone (011) 458-8395. Jornalista responsável - Marco Piquini (MT -SP 12615). Composto e im- presso nas oficinas do setor grafico e reprográfico do Instituto Metodista de Ensino Superior de São Bernardo do Campo. Este jornal só foi concreti- zado devido à colaboração do CERPHA, na pessoa do dr. Jorge de Oliveira Macedo e da ajuda do Instituto Metodista de Ensino Superior, na pessoa do reverendo B. P. Bittencourt, rev. Antônio Olímpio SantWna, rev. Ronaldo Sathler Rosa e Otoniel Ribeiro. Agradecimentos especiais: Vera Luzia Ver- bisck Bombonatti, pela mediação e simpatia, e a todos dá gráfica, pela pa- ciência e colaboração.

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" Artigo redigido por Natividade ~ Rubio Fernandes, Maria Frandsca *: Piotto, André Luiz de Paula e José 6" Ruben Alcântara Bonfim to

5 A hanseniase é conhecida co- EMal de Hansen, Mal de Lázaro, ^ lepra, mal da pele, doença do c sangue, macutema, doença ruim,

■2, morféia. Ela, porém, é uma do- ença predominantemente da pele e nervos periféricos, nunca afe- tando o cérebro. Pode afetar as vísceras e é provocada por um bacilo (micróbio em forma de bastão), descoberto em 1873 por Armauer Hansen, médico norue- guês, daí o nome científico han- seniase.

A "lepra bíblica" é qualquer doença da pele, da casa ou rou- pa, não sendo maldiçío ou casti- go de Deus, provavelmente nada tendo com a doença provocada pelo bacilo de Hansen, sendo um termo, por isso, pejorativo, liga- do a conceitos errôneos.

A interpretação ao pé-da-letra dos textos sagrados levou à muita confusão, tanto que na Idade Mé- dia eram celebradas missas de de- funto para os portadores da doen- ça (vivos). Daí para frente, deve- riam viver afastados da sociedade. Eram os "mortos-vivos". Alguns reis queimavam-nos assim como a seus pertences. Eduardo I, rei inglês (1272-1307), enterrava-os vivos! Foi a Igreja Católica, entre- tanto, a primeira instituição a tra- tá-los em regime de intemato, mais precisamente os monges be- neditinos.

COLÓNIAS-PRISÃO No Brasil, os doentes viviam

em bandos, longe das cidades, mendigando o seu sustento até que, na década de 20, começa- ram a ser caçados pela saúde pú- blica desde que recusassem a in- ternação compulsória em lepro- sdrio-prisão, com poucas possibi- lidades de retomo ao aconchego do lar, devido à reduzida proba- bilidade de cura. Por isso mesmo ocorreram suicídios, sendo o medo e a rejeição duas forças do- minantes na vida de quase todos os hansenianos. Não é de estra- nhar que certo número deles apresentem pertubações de per- sonalidade ou mesmo doenças mentais. Este trauma também nos atinge ainda hoje e podemos perceber isto facilmente pela len- da na qual Jesus teria dito a Pe- dro que se levantasse de uma de- terminada pedra porque há mui- to tempo ali havia se sentado um "leproso".

Hoje, embora se verifique a cura após tratamento adequado e a doença esteja em extinção nos países desenvolvidos, ela é altamente endêmica entre nós. O Brasil tem 60% dos casos do con- tinente americano, apresentando o Rio de Janeiro mais de mil ca- sos, Minas mais de dois mil, São Paulo mais de dois e 500 e o país mais de 14 mil casos registrados anualmente. Calcula-se que para cada caso conhecido haja um desconhecido. Devemos andar pela casa dos 400 mil, sendo 200 mil registrados.

Hanseniase: o que é, como diagnosticar, como medicar, como prevenir e erradicar

A hanseniase tem cura. O doente em tratamento regular deixa de contagiar. Todos nós provavelmente entramos em contato com o bacilo. As mutilações

são evitaveis. O problema não é contrair a doença e sim deixar que ela evolua.

DESINFORMAÇÃO E MEDO Há uma intensa desinforma-

ção e medo medieval em relação ao contágio. Nosso povo não sa- be que a maioria das pessoas de- senvolvem resistência ao bacilo, eliminado pelas vias respiratórias, através da fala, tosse, etc, dos doentes portadores de formas contagiantes ainda não tratados. Depois de três a cinco meses de tratamento regular com sulfona, encurtado para cinco semanas com o esquema combinado de ri- fampicina e sulfona, o paciente não mais contagia.

A doença tem início por par- tes dormentes (anestesiadas), com ou sem manchas; depois po- dem ocorrer formigamentos, cãi- bras e até dores nas extremida- des. As manchas são pálidas ou esbranquiçadas ou avermelhadas, com sensibilidade diminuída ao calor, dor e tato. Encostando-se um tubo com água fria e outro com água quente na região afe- tada, o protador não perceberá a diferença de temperatura. Às ve- zes não sentirá nem mesmo a pi- cada de um alfinete ou roçar de um pedaço de algodão, deixando algumas vezes cair coisas com fa- cilidade das mãos e ficando com partes da pele que não suam e por isso mesmo não pegam pó. Estes sintomas e sinais não se ve- rificam imediatamente após o contágio. Como em muitas doen- ças infecciosas, o bacilo entra no corpo, o organismo controla esta infecção e nada acontece.

LENTA EVOLUÇÃO Em algumas pessoas que têm

pouca ou nenhuma resiténcia, es- ta infecção transforma-se em do- ença. Mesmo assim esta mudança tem início de três a cinco anos depois do contágio. A evolução da doença é lenta e freqüente- mente o doente apresenta apenas uma simples mancha dormente durante muitos meses. É raro en- contrar crianças de menos de dnco anos com sinais de hanse- niase e ninguém nasce doente.

Os nervos mais atacados são os do braço, da perna e do pes- coço. Estes nervos tomam-se es- pessados (grossos), doloridos, com sensações de formigamento e fisgadas constantes. Aparecem, às vezes, caroços ou inchaçOes acima do cotovelo, nas mãos, face e orelhas (numa fase poste- rior). Em fase adiantada pode haver, ainda, entupimento e cor- rimento do nariz, às vezes com um pouco de sangue.

MAIORIA É RESISTENTE Todos, provavelmente, en-

tram em contato com doentes contagiantes e não controlados em bares, cinemas, coletivos, no trabalho, no relacionamento so- cial em geral, podendo contrair a infecçãb; mas na imensa maio- ria das vezes, segundo estudos científicos, não há, repetimos, desenvolvimento da doença. Não se tem certeza completa dos fa- tores que contribuem para o surgimento da doença. Sabe-se, entretanto, que as péssimas con- dições de vida e higiene, encon- tradas na nossa população e a possibilidade da falta de resistên- cia em algumas pessoas, são con- dicionantes poderosos para a di- fusão da doença. Por outro lado, há muitos anos, se tem conheci- mento que a probabilidade de adoecer é muito maior no ambi- ente familiar, onde existem doen tes contagiantes, do que fora do domicilio. A título de ilustração lembramos que 145 cientistas se autoinocularam com bacilos sem conseguir contrair a doença. Em toda a existência de inúmeros sa- natórios para tratamento da han- seniase nenhum dos funcionários adoeceu (resistentes ou não à do- ença, mesmo em contato íntimo com pacientes).

VÃRIOS ESTÃGIOS Segundo Leiker, o grau de re-

sistência entre os pacientes varia e se reflete nos sinais visíveis da doença. Os pacientes com algu- ma resistência mostram uma ou poucas lesões, pequenas, muito bem definidas, pouco pigmenta- das (pálidas), como sinais de atro- fia na parte central, uma borda papular (alto relevo) e notável perda de sensibüidade nas lesões. O número de bacilos é tão peque- no que os exames de lâmina fei- tos com material tirado das le- sões (esfregaços) são negativos. Estes casos sao denominados tu- berculóides, por assemelharem-se às alterações vistas ao microscó- pio da tuberculose.

Os pacientes com pequena ou nehuma resistência mostram mui- tas lesões, que são geralmente grandes, sem muita alteração na cor da pele, muito mal definidos, e com pequena perda da sensibi- lidade. Com a evolução surgem lesões elevadas, módulos (caro- ços) e placas e infiltrações exten- sas na pele. Os esfregaços são fortemente positivos. Estes casos são denominados virchowianos, em homenagem a Rudolph Vir-

chow, médico alemão do século passado. Entre esses dois grupos polares há um conjunto de for- mas intermediárias, que mostram sinais dos dois grupos. São os dimorfos.

Freqüentemente em casos ini- ciais de hanseniase os sinais não estão bem definidos; pequenas manchas, levemente esbranquiça- das, mal definidas, sem mudan- ças na superfície (não há secura nem perda de transpiração, nem perda de pelos) e com muito pe- quena perda de sensibüidade. Os esfregaços são negativos. Estes casos iniciais, pouco característi- cos, são denominados indetermi- nados; se não forem tratados po- dem desenvolver-se para o lado tuberculóide como virchowiano. Os tuberculóides e indetermina- dos não são contagiantes. Os vir- chowianos e os dimorfos (na ve- lha terminologia preconceituosa chamados lepromatosos e mis- tos) se nao estiverem tomando medicamentos são contagiantes.

TRATAMENTO PROLONGADO

A hanseniase tem cura mas o tratamento é prolongado nos ca- sos inicialmente contagiantes. O doente que abandona o trata- mento pode piorar ou recair, podendo voltar a ser contagian- te. Muitos pacientes tuberculói- des, virchowianos e dimorfos, apresentam lesões nos nervos, já referidos, que produzem aleijões e deformidades.

REFORMA ECONÔMICA Para melhorar a resistência

seria necessário também uma re- forma econômica que possibili- tasse ao povo melhor alimenta- ção (carne, soja, peixe, ovos, ver- duras, leite, legumes e frutas), água tratada, esgotos, água enca- nada para banhos diários, roupas limpas, além de habitações higi- ênicas. O govemo não faz isso; se procurasse fazê-lo e se aconte- cessem casos de hanseniase, estes não evoluiriam para formas mu- tilantes, desde que fossem aplica- das técnicas simples de preven- ção de incapacidades. O que no- tamos é um enorme número de mutilados, uma vez que não fa- zemos quase nada de preventivo. Não é de espantar que dos doen- tes registrados em São Paulo 92,21% tenham no máximo o curso primário (dados oficiais da Secretaria de Saúde do Es- tado de São Paulo). São for- mados poucos agentes de saú- de para conscientizar o doente

e a família sobre a extensão do problema. E os que existem, não são capacitados o suficien- te para dar preparo psicológico, buscar novos casos, proporcio- nar orientação de reabüitaçâò física, etc. Já que o govemo ain- da pouco faz, alertamos para a necessidade de agentes voluntá- rios, pois existem muitas pessoas capazes e com disponibilidade de tempo para ajudar e que não o fazem também pela falta de es- clarecimentos.

OBSTÃCULO DA IGNORÂNCIA

Lembramos que o maior obs- táculo encontrado na luta pelo controle da hanseniase é a igno- rância acerca de sua realidade. A hanseniase deve ser tratada como outra doença qualquer.

O ensino de hansenologia de- veria ser ministrado em todos os colégios de todos os níveis e, no entanto, é marginalizado até nas faculdades de medicina e enfer- magem. É deplorável o desco- nhecimento da hanseniase por parte de médicos.

Um outro aspecto do proble- ma, é que alguns doentes, devido à má orientação e por não verem melhora aparente abandonam o tratamento. Quando voltam a se tratar estão em estágio avançado. A tomada irregular dos medica- mentos conduz à resistência me- dicamentosa e, portanto, à elimi- nação de bacilos resistentes, situ- ação pouco identificada pelos médicos. Muitas vezes os pacien- tes abandonam o tratamento de- vido a "estranhas" ocorrências, esse fenômeno é conhecido co- mo reação hansênica. São acon- tecimentos naturais e suportáveis desde que os pacientes estejam orientados adequadamente e tra- tados com medicações auxiliares.

DIAGNÓSTICO PRECOSE Evidentemente, todas as uni-

dades de saúde deveriam ter to- dos os medicamentos indispen- sáveis ao tratamento.

Sabemos que em muitas par- tes do País não existe rifampici- na, por exemplo, utilizada no tratamento inicial de doentes de forma contagiante ou em casos de resistência às sulfonas.

Diagnosticar hanseniase corre- tamente e num estado inicial po- de poupar ao paciente incapaci- dades físicas e problemas psico- lógicos que duram a vida toda

Outra coisa que precisa ser lembrada com insistência: o fato do doente estar aleijado não sig- nifica que esteja contagiante. Pe- lo contrário, freqüentemente nes- tes doentes já não se encontram bacilos. Por outro lado, doentes não tratados, com sinais muito menos evidentes da doença, são muito mais contagiosos do que a maioria dos doentes com grandes deformidades.

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A situação da hanseníase no Brasil o 3 a.

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Dr. José Ruben Alcântara Bonfim e Di. Davi llumel

Muita gente pergunta, pacien- tes e seus familiares, e até mes- mo médicos, se a hanseníase é freqüente em nosso país, se exis- tem muitos doentes, onde o pro- blema é maior. Para compreen- der a situação é necessário ter al- gumas noções sobre os índices ou taxas que definem a freqüên- cia de uma doença qualquer. (A prevalência de uma doença é a proporção de uma população de- finida efetada em dado momen- to: ela é comumente expressa através de uma percentagem. A incidência é a taxa que define os novos casos detectados na popu- lação e se exprime também co- mo uma percentagem em um ano. No caso da hanseníase a in- cidência tem um significado par- ticular em relação a de outras doenças, porque os médicos não estão descobrindo os doentes no momento que surgem e sim, na maioria das vezes, quando os pa- cientes têm anos de duração da enfermidade.)

Quando se afirma que a taxa de prevalência da hanseníase na Amazônia é de 3 por mil habi- tantes, está-se dizendo que exis- tem 3 doentes conhecidos em cada^ mil pessoas de toda a regi- ão. E claro que o número de do- entes é maior porque muitos não foram diagnosticados, ou porque não puderam ir à um serviço de saúde (hospital, centro de saúde) ou porque o médico, por desco- nhecer a doença, não a reconhe- ce. Aliás, esta situação é muito comum.

Afirma-se que a incidência da hanseníase no Estado de São Pau- lo é de 1 por 10 mil, isso porque em 1981 foram diagnosticados 2500 doentes (a população do Estado é de aproximadamente 25 milhões de habitantes).

No Brasil a prevalência de han- seníase é variável, sendo alta na Amazônia (Acre, Amazonas, Pa- rá, Maranhão, Roraima, Amapá), mais de 3 por mil, e baixa no Nordeste (menos de um por mil habitantes). Como a população da Amazônia é menor que a do Nordeste, o número de afetados na Amazônia é proporcionalmen- te maior. No Sudeste do país (Minas, Rio de Janeiro, Espírito Santo e São Paulo), a prevalência é média (quase dois por mil), on- de encontramos mais da metade dos pacientes de todo o país não só devido às pessoas que adoece- ram ali, mas por causa das migra- ções. O paciente contraiu a in- fecção no Nordeste, por exem- plo, ou veio de lá já doente.

Em 1980, segundo relatório da Divisão Nacional de Derma- tologia Sanitária do Ministério da Saúde, divulgado pelo doutor Aguinaldo Gonçalves, seu dire- tor, os percentuais das popula- ções geral e doente eram: (Ver tabela).

Segundo este estudo, o núme- ro total de doentes registrados em 1980 era de 180008, dos quais 54,0% das formas contagi- antes (virchowianos e dimorfos), 23,4% do grupo indeterminado e 22,6% de forma tuberculóide. O relatório comenta: "Devido à de- ficiência na coleta de dados, pre- sume-se haver grande número de doentes desconhecidos pelo ór- gãos oficiais. Estimativa apresen- tada pela Organização Mundial de Saúde calcula em 75% o total desses casos em áreas endêmicas e medianamente trabalhados. Is- so elevaria o total de casos em registro ativo no Brasil para 315000 doentes com uma taxa de prevalência de 2,62 por mil habitantes".

Portanto, existem quase 3 do- entes em cada mil brasileiros portadores de uma enfermidade curável, de contágio rapidamen- te controlável, que se diagnosti- cada e tratada o mais cedo possí- vel não leva a deformidades e mutilações!

No entanto, a doença conti- nua aumentando. Se em 1974, 7500 pacientes eram descobertos

1 Brasil - prevalência de casos de hanseníase por 1000 habitantes das 1 unidades da Federação.Situação em 31/12/1980 (Divisão Nacional de Dermatologia Sanitária - MS).

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por ano, hoje são quase 15000, com mais da metade em formas contagiantes, e quase sempre com muitos anos de doença. Além disso, somente 10% dos doentes foram encontrados entre conviventes de doentes virchovi- anos e dimorfos. Como o risco de adoecer é maior entre estes conviventes, conclui-se que o controle está inteiramente insa- tisfatório e o atendimento precá- rioPor isso tudo e pela existência de preconceitos e discriminações é que a hanseníase é um impor- tantíssimo problema sanitário no país.

Como afirma o ministro Wal- dyr Arcoverde, da Saúde, ao considerar os obstáculos para o controle, "o mais dramático não chega a ser, entretanto, as possí- veis dificuldades de tratamen- to ..., mas o problema cultu- ral... O abrandamento da re- jeição social permitirá que o do- ente e convivente venham pro- curar espontaneamente os ser- viços básicos de saúde, dos quais se ocultam hoje tão ativamente quanto nos tempos do isolamen- to compulsório".

Coordenadorías Percentagem da Percentagem da de Saúde População Geral População Doente

Amazônia 07,9 17,6 Nordeste 25,9 07,3 Sudeste 43,5 51,8

Sul 15,9 13,4 Centro-Oeste 06,8 09,9

"O hanseniano não deve ser tratado como coitado, nem deve

ser deixado de lado, ser recusado." (Anita Bianchi, paciente do

Hospital Santo Ângelo — Mogi das Cruzes — São Paulo)

Conscientização, base da prevenção Abraão Rotberg é um dos pio-

neiros na luta pela reintegração do hanseniano brasileiro. Profes- sor de medicina, dermatologista consagrado mundialmente, lide- ra no campo científico o movi- mento contra o estigma ligado à lepra. Este trecho abaixo foi ex- traído de um livreto intitulado "Noções de Hansenologia", edi- tado pela Fundação Paulista con- tra a Hanseníase (1977) e sinte- tiza o pensamento de uma prolí- fica atividade do autor em rela- ção aos aspectos psico-sociais da doença.

A medida básica de qualquer programa preventivo racional é ... eliminar a corrente psico- social da lepra (e equivalentes em todas as línguas). Isto por si só já constitui medida preventiva importante do grave problema psico-social da doença e resolve as dificuldades da grande maioria dos doentes. Além dissso é con- dição sine qua non para a aplica- ção das demais atividades médi- co-profiláticas.

Todos os países endêmicos em desenvolvimento que tenta- rem educar e esclarecer o públi- co com o termo lepra estarão

simplesmente esgotando seus já esgotados cofres e sobrecarregan- do seu pessoal com tarefa ... im- possível: a de vencer a educação milenar, poderosa e permanente, veiculada por todos os meios de desinformação de massa. ..

Adotada a terminologia han- seníase ou Doença de Hansen, pode-se começar a educação de saúde, até hoje impraticável, e tudo o que dela decorre.

A educação sanitária... é a base de todas as medidas de pre- venção da hanseníase ... É a educação que vai convencer o doente de que ele é igual aos ou- tros; à sociedade, de que ele deve ser recebido como homem como outro qualquer e, ao empregador, de que ele só poderá sofrer res- trições por deficiências físicas ir- reparáveis ou certeza de consti- tuir fonte de infecção ...

O tratamento da hanseníase tem três finalidades: a) fazer re- gredir as lesões existentes ou, pelo menos, impedir a evolução das fases mais graves; b) impedir que os doentes em fase inicial, não bacilíferos, progridam para os tipos bacilíferos e contagian-

tes; e c) reduzir ou eliminar a in- fecciosidade dos já bacilíferos.

Para examinar e tratar os do- entes e conviventes é preciso que estes compareçam em massa aos serviços de saúde, totalmente li- berados da vergonha e do temor da degradação social.

Como a hanseníase se propa- ga especialmente no agrupamen- to familiar, é lógico concentrar- se a atenção nos conviventes do doente bacilífero ... A notifica- ção pela classe médica às autori- dades sanitárias é atividade que tem resultado em grande núme- ro de enfermos conhecidos. Fa- zem-se, às vezes exames de cole- tividades escolares, militares, etc. Este processo é lento, dispendio- so e pouco rendoso, mas pode ser útü em áreas altamente ende- mizadas.

Todas as atividades terapêuti- cas e preventivas devem ser inte- gradas com as de saúde pública geral, incluídas em seus progra- mas administrativos e exercidas em unidades sanitárias polivalen- tes, bem como nos hospitais e ambulatórios gerais e das esco- las médicas. Serviços móveis po-

livalentes cuidarão de doentes e conviventes de áreas afastadas.

A pesquisa científica, o ensi- no e o treinamento pessoal em todas as atividades médicas e pa- ramédicas relativas à hanseníase sao essenciais. Em país endêmico não se deve tolerar que o ensino da hansenologia em qualquer das disciplinas básicas ou clínico ci- rúrgicas tenha carga horária infe- rior à dedicada a doenças pouco comuns. Convênios entre escolas médicas e serviços de saúde são estabelecidos com essa finalida- de.

OS DEZ INIMIGOS DA PRE- VENÇÃO DA HANSENÍASE

1 — O antieducatico infamante pejorativo lepra; 2-0 sensacio- nalismo desenfreado; 3 — O se- gregacionismo latente; 4 — O in- tegracionismo hesitante; 5 — A caridade estigmatizante e desori- entada; 6 — 0 amadorismo soci- al; 7 — A educação sanitária de- satenta; 8-0 ensino deficiente; 9 — A legislação desatualizada; 10 — A escassez de pessoal trei- nado.

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Sastre: uma existência contra preconceitos a. o 3 o

ENTREVISTA COM PIERRE SASTRE

Conheci Pierre Sastre num desses dias de calor insuportável entremeado de aguaceiros, no Grande Recife, no mês de janeiro. Era a primeira vez que ia à Colônia Mirueira, como era chamada nos meus tempos de estudante de Medicina e é assim que até hoje o po- vo a denomina. Quando o ílhados foi lançado (1971), de nada soube- mos, como também não recebemos nos bancos acadêmicos pelo me- nos a informação deste desafio para todo médico que é o controle da hanseniase.

Dez anos depois tive o prazer de conhecer aquela pessoa extra- ordinária de que André de Paula falava.

Abstraído das deformidades e deficiência visual completa, co- mo se o sofrimento e a incapacidade não existissem, Pierre Sastre deu-nos uma visão de vida, o testemunho de uma existência dedicada à conscientização sobre a hanseniase, a doença que luta contra o pre- conceito.

Provavelmente Pierre fez pelo doente de Hansen, apesar do desconhecimento de seus livros, muito mais do que muitos dos novos professores de Medicina ou médicos dos ambulatórios e hospitais. Não é demais falar de seu trabalho, sobretudo porque tem sido reali- zado com a mais profunda compreensão de amor ao homem.

(José Ruben de Alcântara Bonfim) Participou também da entrevista

Cláudio José dos Santos, ledor do entrevistado.

Pergunta - Em seu último livro, Um caso de seis mil anos, publi- cado recentemente em Recife, você fez uma denúncia que ao mesmo tempo é um apelo: quan- do o hanseniano poderá viver na verdadeira acepção da palavra, sem restrições condenáveis e li- mitações opressivas?

Resposta - As respostas deveri- am vir daqueles a quem eu diri- jo a pergunta. Mas eu pretendo, justamente, acelerar esta campa- nha extraordinária que surge em todo o mundo em favor da rein- tegração do hanseniano, desper- tar as mentalidades obstinadas, especialmente de médicos e au- toridades que dão as costas aos nossos problemas, sabendo que nossos problemas vêm de milê- nios e que hoje poderiam ser bem menores se recebêssemos a colaboração deles. Aí está esse meu interrogatório num tom meio acusador: a resposta deve- ria vir da sociedade.

P - A sociedade pode participar da aceleração deste processo e muitas pessoas de boa vontade, mesmo com preconceitos (que seriam derrubados com esclare- cimentos), gostariam de parti- cipar do mesmo. Como esse pro- cesso poderia ser agilizado ? R - Esse processo deveria ser agilizado através dos poderes pú- blicos que hoje, no meu ponto de vista, deixaram de se interes- sar pelo problema. Ao contrário do que aconteceu quando da descoberta dos remédios eficazes que iniciaram uma nova era para os hansenianos, quando então as campanhas de reintegração par- tiam de homens públicos, médi-

cos e autoridades, hoje essas cam- panhas foram relegadas à um se- gundo plano. Daí a multiplica- ção de agremiações e de órgãos criados pelos próprios doentes do Brasil e eu acho que esta mo- tivação deve ir para a frente mes- mo assim.

P - Quer dizer que as autorida- des sanitárias, médicas e públicas deveriam se incorporar a esse es- forço coletivo que tem partido dos doentes? ^ - Eu entendo que existe co- mo que um desamparo pois as autoridades sanitárias cuidam no momento apenas do problema médico. Quanto aos problemas sociais e morais do hanseniano, entre eles a desativação dos hos- pitais colônias, não se cuida mui- to bem disso. O problema social e moral ainda persiste, não com aquela intensidade, aquele hor- ror, temos que reconhecer isso. Tudo isso se resume numa só pa- lavra: reintegração. O simples fa- to de dar alta aos doentes e fe- char as portas dos hospitais não quer dizer que o hanseniano es- teja apto a viver normalmente. O desajustamento continua e, como já disse, o amparo das autorida- des aos doentes em todo o mun- do contribuiria muito para a re- integração do doente.

P - Essa responsabilidade de conscientização não seria da po- pulação em geral? Não deveria ser distribuída com as institui- ções que compõem a sociedade, por exemplo a Igreja, aos parti- dos políticos e outras institui- ções sociais? Que papel essas ins- tituições poderiam ter ao lado das autoridades sanitárias?

R - O papel seria relevante, daí a minha queixa anterior. Imagi- ne o resultado positivo que a Igreja nos ofereceria se partici- passe do movimento de reinte- gração do hanseniano, que exis- te espalhado em todo o Brasil. Uma de nossas intenções é suge- rir uma pastoral â Igreja em fa- vor dessa reintegração. Essas ins- tituições serviriam como nosso reforço de retaguarda.

P - Num dos capítulos de seu úl- timo livro você fala, num tom comovente, da necessidade dos doentes que ainda permanecem nos asilos-colõnias remanescen- tes têm do carinho que seus se- melhantes possam dar através de visitas periódicas. Existem ainda restrições para que os doentes que têm deformações recebam essas visitas? /? - Eu falo dando o meu próprio testemunho. As visitas que eu re- cebo devido ao meu estado de invalidez, as visitas de meus ami- gos, os relacionamentos que fiz no sanatório Padre Antônio Ma- noel, em que vivo internado, sig- nificam para mim uma motiva- ção de vida. Eu tenho duas gran- des motivações de vida: escrever e receber visitas de amigos. Por isso eu entendo a necessidade dessas visitas e apelo que elas se sucedem a todos os doentes ce- gos e acamados, a todos eles. Ali- ás,o Sanatório Padre Antônio Ma- noel, onde me encontro interna- do, é um hospital aberto, sem muros e o diretor, Dr. Adair Fer- reira, acabou de vez com as res- trições de visitas. Nós temos visi- tas a qualquer dia, qualquer ho- ra. Isso tem facilitado, inclusive, a campanha que nós temos sem- pre promovido, porque as pes- soas que visitam o sanatório pela primeira vez desmancham por completo a impressão que tinham anteriormente. Transformam-se em propagandistas, uma espécie de camelôs que nós arranjamos. Eles fazem a divulgação lá fora do que é realmente o sanatório, do que são os doentes e isso aju- da muito nessa campanha de reintegração. Quanto ao ponto de vista consolativo das visitas, isso vale muito para o doente in- ternado em estado de invalidez .ou semi-invalidez. É onde eles encontram conforto, motivação de vida, como é o meu caso. En- contram esperança, alheamento de seus problemas e encontram, afinal de contas, assim como uma semelhança do verdadeiro modo de viver.

P - A descoberta das proprieda- des terapêuticas da sulfona foi o começo de uma nova fase da luta pelo controle da hanseniase. Pa- rece que na época, na década de 50, houve uma euforia em rela- ção às altas. Você fala no seu livro sobre os doentes que passaram a

receber alta sem nenhum tipo de orientação. Como você imagina que um paciente em condições de receber alta deveria ser orien- tado e o que tem sido feito no sentido de orientação do doente que passa periodicamente no hospital? R - Acho que atualmente não se faz nada. Não sei se enstou sen- do exagerado na minha expres- são. Simplesmente Umitam-se a dar alta ao doente, falam em prosseguimento do tratamento em ambulatório ... O doente sai do sanatório e se filia ao Centro de Saúde e lá não encontra trata- mento adequado e volta aos hospitais para os seus curativos. Qual é então essa aparelhagem ou esse equipamento de assistên- cia à prestar ao engresso, esse tão decantado tratamento ambulató- rial? Eu não sei. O tratamento de emergência ou assistência médica tem de ser feito em hospital co- mum, com mil e um sacrifícios. Os egressos então procuram o sa- natório, encontrando no ambula- tório senão a mínima assistência. Um doente que tenha uma úlce- ra avantajada nas pernas não po- de fazer um tratamento adequa- do ou humano nestas condições. Voltam pro sanatório. Aqui no Padre Antônio Manoel existe um dispensário que eu acho que foi criado justamente devido às pes- soas que aqui vêm fazer curati-

"... antigamente as campanhas de reintegração

partiam de autoridades médicas e sanitárias.

Hoje, estas campanhas estão relegadas a um segundo plano..."

vos. Acho que é o dispensário onde se encontram filiados o maior número de egressos. Quan- to à questão das altas em massa que ocorreram nas décadas de 40, 50 e 60, elas desencadearam muita empolgação entre os do- entes.

P— Houve, em alguma época, aqui no hospital, aplicação de medidas educativas, de orienta- ção permanente aos doentes que aqui se encontravam internados visando a sua preparação, o seu esclarecimento em relação á pró- pria doença? R - Para falar sinceramente hou- ve algumas tentativas por parte de elementos da assistência so- cial. Uma preparação efetiva, sé- ria, não houve.

P- Quer dizer que o doente passava anos num sanatório e saía para enfrentar a realidade sem nenhum preparo? Será que muitos voltaram porque não ti- nham consciência das dificulda- des que enfrentariam?

R - Muitos encararam as altas como um meio de libertação e levados pela empolgação pouco tempo permaneceram lá fora, justamente por não estarem pre- parados para enfrentar a vida da qual estavam desajustados e por- que não havia um amparo social efetivo. Nunca existiu amparo. Já disse que hoje os movimentos estão partindo de hansenianos e ex-hansenianos. Parece que des- pertaram, daí a multiplicação das Campanhas, que procuram justamente esta assistência, estão forçando a barra e eu creio que algum resultado positivo já co- meça a aparecer. Quando eu fui internado em 1941 o doente não podia sequer encostar-se na se- cretaria do hospital. Na colônia Getúlio Vargas, na Paraíba, exis- tiam caminhos para os doentes considerados sadios separados dos demais doentes. Hoje em dia, nas secretarias que antes víamos como cidadelas inatingíveis, existem doentes egressos traba- lhando. Muita coisa já foi reali- zada. Eu escrevo para forçar es- se tipo de avanço. Creio que num futuro próximo o hanse- niano viverá sua vida normal, vi- vendo como se nada tivesse acon- tecido.

P - Você poderia dizer prú gen- te suas trajetórias nos hanseno- cômios do nordeste e como sur- giu esse seu interesse pela litera- tura? R - Desde a minha pré-adoles- cência eu sentia atração pelas le- tras, esses sinais alfabéticos, na expressão de Carlos Drummond de Andrade. Fui obrigado a me internar em 1941, com 18-19 anos. Já tinha alguns poemas de amor que eu escrevia escondido. Como eu digo na primeira parte de meu livro, Um caso de seis mil anos, achei aquela interna- ção obrigatória uma coisa anor- mal. Senti então a necessidade de registrar tudo aquilo. Com muitas dificuldades, pois falta- va-me talento, comecei a fazer um simples jornalzinho dentro da colônia, um jornal humorísti- co. Depois fiz um jornal sério e como eu reagia contra aquele re- gime relugamentar, um regime um tanto siberiano, fui expulso da colônia Getúlio Vargas. No fi- chário consta que eu fui transfe- rido para outro sanatório. Fui expulso mesmo. O diretor de lá, na época, o dr. Alberto Carta- cho, deu-me 48 horas para reti- rar-me da colônia somente por- que havia me insurgido contra certas normas. Vim então para a colônia Mirueira em Pernambu- co. Aqui encontrei um trabalho de ativação maior. Encontrei o dr. Francisco Medeiros Dantas, um daqueles médicos leprologis- tas que se preocupavam mais com o lado moral e social do do- ente. Ele deixava a situação clí-

"Deve-se procurar n9o mostrar fotografias de virchowianos nem de deformidades em do- entes com graves lesOes neurológicas, pois des- se modo pode-se aumentai o temor á 'lepra' e aumentai o preconceito milenar contra a do- ença."

(Organização Mundial de Saúde - OMS)

As mutilações s3o inteiramente evitáveis. Isso ocorre no Brasil. Qual a nossa responsabilidade? E deixando de mostrai as tragédias que

evitaremos o problema?

O homem, o escritor

Piene Sastre (pseudônimo de Pedro Sor- rentino) é o autor de ílhados, Um Caso de Seis MU Anos e Os Egressos (ainda inédito). Parai- bano de 60 anos, descende de uma das trinta famílias italianas que se fixaram em Joio Pes- soa em fins do século XIX.

Portador da doença de Hansen desde os sete anos (foi internado aos 17), jamais dei- xou-se abatei pelo estigma, que o enclausurou e fechou-lhe as portas da vida normal. Peregri- nando por sanatórios, fundou grêmios literá- rios, escreveu jornais, editou revistas e livros, sempre abordando a problemática específica do hanseniano.

Foi o redator-chefe de um dos mais im- portantes jornais da luta pela reintegração do hanseniano, O Momento, que circulou na dé- cada de 50 no Nordeste.

Os ílhados. sua primeira obra, atingiu duas ediçOes. E um comovente relato que mostra a vida dos doentes, dentro dos sanató- rios, afastados da sociedade, "ilhados do mun- do". Um Caso de Seis Mil Anos, discreta auto- biografia, é um trabalho de líder, narrando com extraordinária vivacidade os fatos repre- sentativos de toda a triste realidade da doença que se constitui no maior fenômeno psico-so- cial-somático do século, segundo o professor Abrafo Rotberg. Os Engressos traía da vida do doente ao deixar hospital especializado quando seus problemas aumentam. (Todos os livros de Pierre Sastre serão reeditados pelo Morhan.)

Segundo Carlos Eduardo Carvalho San- tos, dirigente da AESPAM (Associação dos Egressos do Sanatório Padre Jo9o Manoel), "imbatível revela-se o homem-escritor, por- que vendo com os olhos da alma transmite nas páginas um leque admirável de amor á vida, de esforço e capacidade de resistência ao mal físico".

nica do doente por conta do cor- po médico do sanatório. Esse médico teve a idéia de criar um grêmio cultural. Achei aquilo muito bom porque eu ia dar va- zão ao que eu sentia, ao que eu aumentava: o sonho de publicar um livro e jogar para o papel tu- do o que eu já vinha fazendo em jornais, dos trabalhos de outros companheiros do Rio (revista Damiãoj, São Paulo (revista Tó- picos), Santa Catarina, Paraná. Achei que era uma boa oportuni- dade e procurei o dr. Dantas e disse que tinha vontade de publi- car um livro. Ele não largou mais de mim e por causa dele, e por causa da minha vontade de escre- ver, escrevi meu primeiro livro, Ilhados. Assim fiz Um caso de seis mil anos. Fiz também Egres- sos, ainda inédito. Se Deus me der tempo ... eu sei que a bata- lha é longa, mais estamos mais perto do final do que antiga- mente.

P- O que seria esse problema moral do hanseniano? Não se- ria uma situação criada pela soci- edade, com a rejeição que ela faz aos doentes em virtude dos pre- conceitos históricos? R- O problema é moral. Eu con- sidero importante na recupera- ção do hanseniano esse entendi- mento do público devido à indi- vidualidade do doente. Geral- mente lhe negam virtudes, dotes de caráter, de inteligência. Quan- do eu publiquei Ilhados, um fun- cionário da Imprensa Universitá- ria, onde o livro foi impresso, se negava a acreditar que aquele li- vro havia sido feito por um han- seniano. Ele me negava o dote da inteligência, de capacidade e atri- buía a autoria do livro ao dr. Dantas, que foi quem procurou a Imprensa Universitária para a pu- blicação. Isto é uma questão mo- ral que deve ser levada em consi- deração. Muita gente julga o han- seniano um canalha, um patife, um elemento sem qualidade mo- rais.

P- Qual seria a raiz desse pro- blema? R - Pelo que eu alcanço, vem justamente desse conceito, dessa concepção antiga, milenar, de que a pessoa portadora do mal de Hansen não valia nada ... o indivíduo hanseniano tinha até de assistir a própria missa fúne- bre! Existem erros até de ordem religiosa e tudo isso contribui. É um problema psicológico que criou cimento na mentalidade do povo até chegar a este ponto. Existe gente dita bem conceitua- da que me considera um descon- ceituado porque eu sou um por- tador da doença de Hansen.

P - Essas pessoas chegam a ne- gar a possibilidade de que o han-

seniano seja um ser humano? R - Sim, e é por isso que esse problema deve fazer parte dessa campanha. Essa negação da indi- vidualidade do doente, coisa que eu senti muitas e muitas vezes, dói muito. Sabe, dói mais do que os padecimentos que eu já passei em relação ao meu desgaste físi- co.

P - Sabemos que existem hanse- nologistas e autoridades médicas que falam, inclusive, que a pala- vra lepra ou leproso são termos carregados de preconceitos de re- jeição social, que são termos de- sintegradores da personalidade.

"... recebendo visitas os doentes encontram conforto, motivação de

vida, esperança ... encontram uma semelhança

com o verdadeiro modo de viver ..."

R - Vou lhe dar a maior prova desta faceta do problema. Exis- tem pessoas que não têm receio em relação a doença, mas não têm a menor consideração com a pessoa do hanseniano. O que é isso se não uma questão moral? Que juízo estão fazendo de nós? A princípio não negam o conta- to com o doente, não têm medo da doença, mas não têm conside- ração com a pessoa à sua frente. Isso é a desvalorização do indi- víduo. Conheço pessoas que não têm o menor receio da minha pessoa mas que não têm a míni- ma consideração comigo.Por uma questão de brio, uma questão de repúdio, eu procuro evitar mais a ele do que se ele me evi- tasse. É como se eu não existis- se para estas pessoas que me ne- gam estas qualidades todas. P- Como você sente o esforço que parece estar existindo, pelo menos um interesse maior nas faculdades, entre as autoridades governamentais, em relação ao problema? Não seria mais lógico que as autoridades criassem ca- nais de participação para os pró- prios doentes, para que estes di- gam com suas próprias palavras e experiência sobre o problema? /? - Eu acho que não há essa convocação do doente por parte das autoridades ... não quero ge- neralizar porque toda generalida- de é criminosa, mas eu acho que a maioria não tem interesse em convidar o doente para este tra- balho conjunto por medo do hanseniano botar a boca no trom- bone. Vou dar um exemplo dis- so: sempre que os internados do sanatório Padre Antônio Manoel faziam alguma reclamação ou denúncia um ex-secretário da saú- de aqui de Pernambuco ia às TVs e rádios dizer que o doente re- clamava por ser um eterno insa-

tisfeito, que aquilo era conse- qüência da própria doença. Ia levando o povo, inclusive a im- presa, na conversa.

P - Esta autoridade sanitária a que você se refere chegou algu- ma vez a tomar alguma medida punitiva contra os pacientes que não concordavam com o trata- mento que estava sendo dispen- sado? R - Através do diretor, sim. Aqueles tidos como insatisfeitos, aqueles que falavam e soUcita- vam alguma coisa tinham como punição a rua, eram postos auto- maticamente para fora do sana- tório.

P- Você tem noticias de que este tipo de problemas tenha ocorrido fora do Estado de Per- nambuco? R - Por informações eu tenho sabido que esses diretores, a quem eu chamo de diretores da pré-história das colônias, que se julgavam donos não só dos hos- pitais mas também dos habitan- tes, esses diretores chegaram ao cúmulo de arbitrar os próprios casamentos: fulano devia casar com sicrana e beltrana com fu- lano. Sim, têm diretores que ainda fazem isso.

P- Você tem informação ou vivenciou outros tipos de me- didas coercitivas? R - Muitos exemplos, muitos casos. Não aqui no hospital on- de estou atualmente internado, porque eu volto a dizer, o ho- mem, o médico que o dirige é um indivíduo de hombridade. Mas eu já fui dirigido por um ho- mem num hospital que teve um caso: uma mulher brigou com outra, coisa leve, e ele mandou prender a doente. O marido, também internado, foi pedir pa- ra ele soltar à mulher e prendê-lo no lugar dela, pois ela fazia tudo

"... fiz um jornal e reagia contra aquela

situação regulamentar. Aí fui expulso da colônia

Getúlio Vargas. Na ficha está escrito que fui transferido ..."

prá ele, já que a doença tinha si- do mais rigorosa com ele. O dire- tor disse: "Você quer ir preso também? Então vai, só que em cela separada porque se fosse junto até que seria bom". Esse diretor teve um grande prêmio: quando ele morreu a família dele foi à colônia Getúlio Vargas fa- zer uma espécie de catequese de convocação dos doentes para apelarem ao governador para se substituir o nome da colônia pe- lo nome do ex-diretor. Os doen-

tes se negaram a fazer isso.

P - Teriam acontecido mais fa- ' tos que demonstrassem esse clima coercitivo, anti-democrático, vio- lento mesmo? /? - Eu não precisaria ir longe para responder. Vamos lembrar de casos em que eu fui testemu- nha. Nesse regime que eu chamo de siberiano, na colônia Getúlio Vargas, nós éramos obrigados a nos recolhermos às 21h e nem o rádio podíamos ligar. Outras aberrações: a religião espírita não podia ser praticada dentro da colônia, pois era considerada arte do diabo. Só os católicos e os protestantes tinham acesso à religião. Outro caso: no primeiro colóquio amoroso do qual resul- tou em gravidez de uma interna- da, em 1942, o doente pai foi preso e devido às coerções do di- retor teve de desertar .A própria mãe, depois de nascida a criança, teve de ir embora, pois não era bem vista pelo diretor, em 1943.

P- De qualquer forma, a trans- ferência para a Mirueira foi bené- fica para você?

R-\Á encontrei inclusive o amor.

P- Até que época você esteve na colônia Getúlio Vargas? /? - Até 1951, quando fui ex- pulso. P - Nesses 10 anos de aflições e sofrimentos de opressões que vo- cê viveu na Paraíba você sentiu alguma vez a necessidade defurgir e nunca mais por os pés numa colônia? R - Fugir para onde? Ir para onde se minha família não me aceita. Ela me ajuda, me favore- ce mas não quer me ver perto de- les nem de parentes. Eu já tinha fugido do mundo exterior para o mundo interior da colônia. Mas eu pensava em me transferir para outra colônia, ficava aumentan- do a esperança de que um dia as coisas melhorariam, que mudasse a direção. Eu ia me agüentando.

P- Na década de 50, quando você começou a escrever aos jor- nais, esse trabalho teve alguma ressonância em outras colônias? R - Houve. Naquela época de empolgação da sulfona havia um verdadeiro alvoroço nas colônias de todo o Brasil, eram raras as que não tinham seu jornal. Man- tínhamos como que um inter- câmbio cultural. Geralmente pre- gava-se a cura mas nós ainda não enxergávamos as conseqüências dessa cura, que era a volta aos hospitais. Na Colônia do Prata, no Pará, chegou a ser editada uma revista. Existiam facilidades extraordinárias. Mantinhamos aqui, com o apoio da delegacia

(continua na página seguinte)

oo IO

Page 7: j.MOlil Jornal do Morhãn · 2013-02-02 · O dia do hanseniano hanseniano tem consa-a si um dia de reconhe-cimento mundial, quando a problemática que envolve sua existência é

Sastre: uma existência. regional de saúde o jornal O Mo- mento, que foi considerado ao

• lado de outras publicações de su- ma importância nessa campanha de reabilitação do hanseniano. Existia uma incentivaçâb por parte das autoridades competen- tes. Hoje em dia naò existe isso.

' Vocês talvez sejam testemunhas da ignorância existente no seio médico a respeito dos meus dois livros. Quer dizer, se eu cometer qualquer coisa digna de punição eu a recebo, mas se eu publico um livro, pratico uma coisa que necessita de amparo, onde está essa acolhida? Ela vem da inicia- tiva privada, através de amigos. Eu fiz meu livro Um caso de seis mil anos graças ao apoio de um grupo de amigos moradores no distrito ao qual eu pertencia, na Mirueira, que aos domingos sai- am pelos subúrbios recolhendo de porta em porta contribuições em dinheiro. O mais importante nâb eram as quantias, mas a di- vulgação que faziam do livro. Até que conseguimos o sufici- ente para custear os gastos de material de impressão, que foi custeada pela Edição Pirata, do Recife, sob a direção do escritor Jaci Bezerra.

P- Até quando durou esta in- quietação intelectual nas colô- nias e porque acabou? R — Essa apatia foi se estabele- cendo à proporção em que os egressos começaram a voltar aos Sanatórios e à medida em que aquelas pessoas espalhadas pelo Brasil, verdadeiros bandeirantes sanitários que ajudavam na cam- panha dos hansenianos, foram desaparecendo, morrendo ou se aposentando. Eu não sei muito bem, mas talvez também porque a coisa tomou-se rotineira, uma coisa gasta.

P- Você poderia precisar em que época esse alvoroço arrefe- ceu? R - Pelo que eu me lembro a partir do final da década de 60. Outra coisa importante neste tó- pico: os doentes, os internados, depois de adaptados ao intema- mento, formavam uma comuni- dade entusiasta. Nós à semelhan- ça dos holandeses, fazíamos força para construir o próprio mundo onde tínhamos de viver. Quando eu vim para este sanatório, hoje chamado Padre Antônio Manoel, a colônia era chamada de mini- cidade. Tínhamos uma federação esportiva com três times de fute- bol, campeonatos, um jornal, um serviço de alto-falantes que fun- cionava como uma estação de rá- dio, com programas culturais. Tí- nhamos um grêmio cultural, uma espécie de academia de letras, com patronos, etc. Por isso que hoje em dia existe um saudosis- mo por parte dos doentes.

P- Os acontecimentos externos tinham repercussão aqui dentro? Por exemplo, as movimentações políticas dos anos 60.

R - A chamada influência polí- tica não houve, pelo menos aqui pelas minhas bandas. O direito do voto dos doentes veio tarde, só em 1958, e aí os doentes co- meçaram a receber visitas de po- líticos, alguns desses políticos queriam inclusive formar no sa- natório seu curral eleitoral.

P - Apesar de em Pernambuco ter existido uma forte eferves- cência política, não houve refle- xos nem mesmo em 1964? R - Não houve. A Secretaria da Saúde, através da direção do sa- natório, impunha restrições. Os políticos que nos visitavam fa- ziam seus discursos ladeados por

... eu pensava em me transferir para outra

colônia ... queria que as coisas melhorassem. Eu ia me

agüentando. Mas, na Mirueira, encontrei inclusive

o amor...

administradores, como que vigia- dos. Não podiam fazer comícios semelhantes aos que faziam fora do sanatório. Era um comporta- mento bitolado, éramos apenas um mercado de votos. A não ser aqueles doentes que acompanha- vam as notícias de fora, ninguém tinha oportunidade para um co- nhecimento mais profundo.

P - Não havia discussão em ter- mos de programas partidários? R — Não, não havia.

P — Havia censura, naturalmen- te? R - Havia censura.

P - Até 1961, mais ou menos, havia por parte do Ministério de Saúde um emprego de verbas pa- ra os programas de hanseníase, para atendimentos, manutenção das colônias, etc. Depois houve uma queda constante até essa quantia ser diminuída em muito das reais necessidades. Não houve um reflexo dentro das colônias? R - Houve influência, natural- mente. Chegamos a ver casos como o de doentes que não que- riam deixar o sanatório nem na base do guindaste e ao verem o descaso com a manutenção dos sanatório, passaram por vontade própria a sair para fora, sem ter para onde ir.

P — Isso não seria deliberado, ou seja, criar dificuldades de manu- tenção das colônias para que elas fossem desativadas? R - Realmente dá esta impres- são, que esse esvaziamento se de- ve mais por uma questão de or- dem econômica. Não podemos afirmar que essas restrições de verbas se devem ao fato de que quase todos os internados hoje em dia recebam benefícios de INPS e ao estímulo de outros es- tados atraindo os internados a

deixarem o sanatório. Bom, tu- do leva a crer que a desativação se deva a ordens de caráter eco- nômico. O esvaziamento das co- lônias resultará em superávita aos cofres públicos, por que vai se reduzindo o número de servi- dores e outras despesas.

P - As medidas de amparo so- cial através do INPS que o do- ente passou a receber agilizou esse processo de destivação das colônias. Como explicar a exis- tência de numerosos egressos e suas famílias vivendo em tomo das colônias? R - Esse fenômeno de morar ao lado das colônias é antiguíssimo, não data dos benefícios do INPS. Uma vez eu fiz uma expressão: o doente é como um musgo agarra- do na parede. Ele sai da colônia e quer ficar próximo dela. Ele acha que com a desativação não poderá viver plenamente. Fica próximo da colônia por medo de enfrentar a hostilidade que há lá fora. Cria-se então o meio termo e permanece ao redor da colônia. Poucos, entretanto, são os que permanecem aqui em Pernambu- co. O preço dos terrenos ao re- dor da colônia são extraordiná- rios, superior ao de muitos su- búrbios ligados diretamente à Recife.

P — Como é que se explica isso? Não seria de se esperar uma va- lorização econômica menor de- vido ao preconceito?

R - Não. O aumento demográ- fico é grande e a procura de ca- sas próprias não é feito somente por parte do hanseniano. Muitos dos egressos que vivem nas cerca- nias desse sanatório têm suas ca- sas em situação precaríssima e com os parcos recursos que têm não podem viver dignamente. Preferem agarrar-se à parede co- mo musgos. Quando vim para cá o sanatório era cercado por ma- ta, uma casinha aqui, outra ali, com gente com pretensão de ser bicho. Tenho muito orgulho de dizer que os hansenianos con- tribuíram muito para o desen- volvimento do distrito de Miru- eira, quando começaram a tra- zer famílias para morarem nas cercanias do sanatório.

P - O que deveria ser feito em relação aos terrenos, prédios e equipamentos das colônias, qual o destino que isso tudo deveria ter? R -E\x tenho uma opinião for- mada neste sentido, que pode até chocar muitos pontos de vis- ta. Eu acho que se deveria conce- der habitação para os egressos dentro do próprio local de trata- mento. Por que não? Há egressos que lutam desesperadamente por moradia e eu vejo por aí aparta- mentos desocupados que pode- riam ser entregues aos egressos.

P- Mas isso não estaria em con- flito com as idéias que você mes-

mo defende, de que as colônias devem desaparecer? R -È como eu disse, choca com muitos pontos de vista meus e de outras pessoas. Mas enquanto não houver a desativação com- pleta dos sanatórios que mal há em ceder esses apartamentos em caráter de emergência?

P - Não se poderia utilizar todo esse material, esses prédios, que atualmente estão sem nenhuma utilização para uma finalidade coletiva? R - Poderia e essa é uma das idé- ias de planejamento que andam por aí. Aproveitar os pavilhões e as enfermarias para o recebi- mento dos doentes de enfermi- dades dermatológicas em geral.

P - Aqui na colônia existem asi- lados que vivem em pavilhões em forma coletiva ou a maioria têm sua casa própria? R -Os casais vivem em suas pró- prias casas ou apartamentos e muitas dessas casas destinadas a casais estão desocupadas e exis- tem enfermarias onde são reco- lhidos aqueles doentes de acor- do com o estágio de sua doença.

"... os egressos ficam próximos da colônia por

medo de hostilidade. Cria-se então, um meio termo. Os doentes preferem agarar-se ás paredes como musgo ..."

P - Durante sua fecunda ativida- de literária você teve a oportuni- dade de fazer alguma explanação ou palestra e sensibilizar alguns setores sociais que poderiam in- teressar-se em participar de um movimento de reintegração?

R - Não. Às vezes aparecem por aqui jornalistas da imprensa fa- lada e televisada, fazendo repor- tagens e pedindo muitas de mi-

nhas opiniões, as quais eu res- pondo sempre dentro daquela pragmática pela qual eu venho lutando.

P- Desde que você começou a se manifestar, você conheceu al- gum médico, especificamente aqui de Pernambuco, que tenha questionado as injunções e as di- ficuldades e o clima opressivo pelo qual se passou toda uma época, quer dizer, você teve a oportunidade de tomar conheci- mento de algum trabalho ou pro- nunciamento que tenha se posto ao lado dos pacientes no seu di- reito de manifestação, como eles encaravam seus problemas de hanseníase, etc? R — Pode até ter existido alguns, eu não duvido, mas de um eu posso falar: dr. Francisco Medei- ros Dantas, falecido em 1971. Sempre se punha ao lado do han- seniano, entrando em conflito com seus próprios colegas e au- toridades sanitárias, brigando com pessoas que teimavam em manter a rejeição ao hanseniano. Ele sempre nos dava o direito de expressão. Eu posso contar um caso de uma hanseniana que tinha sido beneficiada, o nome dela é Ivone, que saiu do sanató- rio e arrumou ocupação de do- méstica. Os patrões dela vieram a saber depois que ela havia sido internada num hansenocômio e ela foi despedida. Ela, como to- dos nós quando tínhamos um problema, procurou o dr. Dantas. Ele pôs a mulher no seu jipe e conversou com a patroa dela (is- so na década de 60). Disse que estava apto à fazer um exame, levar a ex-paciente à uma junta médica e provar para a patroa que ela era sadia. Infelizmente foi impossível a recolocação da mulher porque a própria ex-pa- ciente se recusou, e com razão. O dr. Medeiros Dantas, a quem eu chamava de meu pai intelec- tual, atritou-se mulas vezes com colegas, não era bem visto, trata- vam a ele com um subversivo. Na minha opinião, foi um homem extraordinário.

Não estamos sozinhos A Sociedade Espírita Caravana da Fraternidade Jesus Gonçal-

ves concluiu, em fevereiro último, um ciclo de 18 palestras em Aná- polis, Brasília e Goiânia, realizadas em centros espíritas, lojas maçô- nicas e clubes sociais, abordando os problemas psico-sociais enfrenta- dos pelo hanseniano frente à sociedade preconceituosa. Nesta opor- tunidade os dirigentes da Caravana concederam diversas entrevistas na TV Tocantins (Anápolis) e na TV Brasília, onde lançaram a Cam- panha do Ano Internacional do Hanseniano.

Além disso, o deputado Freitas Nobre (PMDB-SP) manterá contatos na ONU sobre este projeto, já apresentado na Câmara Fe- deral.

A Caravana Espírita Fraternidade Jesus Gonçalves edita um jornal chamado O Caravaneiro, e atua, principalmente, no Brasil Central, Minas Gerais, Paraná e São Paulo.

CAMPANHA DE INTEGRAÇÃO SOCIAL Representantes da AESPAN - Associação dos Egressos do Sanatório

Padre Antônio Manoel: estão desenvolvendo uma campanha em todo o país com o objetivo de esclarecer permanentemente o opinião pública sobre o estigma da "lepra" e atacar a problemática da hanseníase, dentro do espírito das norms governamentais.

Saudámos a iniciativa e esperamos progredir juntos nesta árdua luta.

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COMBATE AO LEPRO-ESTIGMA

LEPRA,PALAVRA INCURÁVEL Esta é a carta enviada no Natal de 1980 a todas as dioceses

do Brasil pelo padre italiano Humberto Guidotti, que trabalha junto aos hansenianos do Amazonas há mais de seis anos. Ele

propõe que nas novas traduções da Bíblia para a língua portuguesa a palavra lepra seja substituída, para que se inicie a luta

contra o preconceito. A Igreja, para ele, tem uma parcela de culpa pelo estigma da "doença mais marcada do mundo".

Caríssimo, das e rejeitadas apareceu no mun- ção, de castigo de Deus

sou um padre italiano que há seis anos trabalha no Amazonas. A finalidade desta carta é para convidá-lo a entrar na luta em fa- vor dos 15 — 20 milhões de lepro- sos existentes hoje no mundo.

O motivo mais específico des- ta minha é para submeter à sua sensibilidade humana e compe- tência bíblica umas reflexões que visam abolir a palavra lepra e leproso das traduções futuras da Bíblia em língua portuguesa. As motivações por mim apresenta- das serfo de tipo psicológico e sobretudo social, deixando à sua específica competência dizer se existem razões exegéticas que justifiquem a mudança na tradu- çío.

A palavra lepra nao tem mais hoje sentido médico e basta. Ela adquiriu conotações sòcio-cultu- rais negativas e estigmatizantes. O uso desta palavra referido a se- res humanos é ofensivo e deveria ser banida do nosso vocabulário. A Bíblia continua usando esta palavra. A Bíblia, por isso, é res- ponsável pelo perpetuar-se do es- tigma da lepra, grave tanto quan- to a doença, aliás, responsável, conforme tantos médicos, pela falência de toda e qualquer cam- panha dé prevenção. Só uns exemplos:

"A lepra nao é muito infeccio- sa e pode ser tratada eficazmente por dapsona e outras drogas. Sua presença (no Canadá) é causa de certa inquietação, sem dúvida baseada, principalmente, em re- ferências bíblicas" (Harding Le Riche: "New migration pattem increases incidence in Canada of diseases common in tropical áreas", J. Can. Med. Ass. 109, 546-548, 1973.)

Uma assistente social, J. M. Kerr, publicou em 1973 um arti- go sobre "Fatores sociais que atuam contra o controle eficien- te da lepra no interior de Papua- Nova-Gruiné". A autora diz:

"Influências ocidentais con- seguiram mudar muito o concei- to tradicional de lepra, que nao tinha conotações de condenação e ostracismo enquanto o pacien- te tivesse condições de cumprir suas obrigações para com a so- ciedade. O conceito bíblico de lepra como 'repugnante' e a igno- rância de muitos europeus quan- to à natureza da doença contri- buiram para aumentar o estigma da lepra que existe em numero- sos países e agora também na Nova Guiné-Papua".

A assistente social Kerr nao diz quantos Papuas converteram- se ao cristianismo, mas é claro que o problema psico-social da lepra começou a exercer uma ação prejudicial sobre a popula- ção e que um novo grupo de do- entes e de famílias estigmatiza-

das e rejeitadas apareceu no mun- do. Graças também à Bíblia! A evangelização produziu uma má informação sobre a doença e es- tigmatizou suas vítimas e seus familiares. Será tudo isto de acor- do com os ensinamentos de Cris- to? Será que foi deveras uma 'boa nova' este evangelho?

É para evitar que estas erradas informações médicas, dadas atra- vés da evangelização, continuem estigmatizando seres humanos inocentes que devemos estimu- lar a Igreja Católica a estudar

ser le- proso quer dizer pertencer a uma categoria de pessoas que devem ser evitadas, que não devem ser tocadas, que devem ser incomu- nicáveis e internadas; pessoas que antigamente se queimavam, se matavam, se marcavam. Quem está disposto a ser e ouvir dizer de si mesmo tudo isso? O bacilo de Hansen só faz atacar os ner- vos e a pele e tomar um homem hanseniano, assim como o bacilo de Koch ataca os pulmões e faz uma pessoa se tornar tubercu- losa, mas somos nós, os sãos, que

"... a única saída é eliminar o elemento essencial de ligação entre a

doença e o estigma, que é o termo "lepra" e seus derivados..."

com mais atenção o problema para chegar a abolir a palavra le- pra e substituíla por termos mais adequados ao significado de 'tsará áth' (palavra hebraica) e sobretudo nao estigmatizantes. Digo Igreja Católica porque as igrejas protestantes já começa- ram este trabalho de tradução não estigmatizante e, porque não, talvez, mais correta. A The New English Bible substituiu todas as palavras lepra, seja no AT como no NT, por perífrases e notas explicativas. Pode-se conferir. Será que não se pode fazer algu- ma coisa também no Brasil? Eu não entendo de Bíblia, também pouco sou expert em traduções bíblicas, mas se esta palavra le- pra é considerada por todos ho- je como estigmatizante e ofensi- va, aliás, se além de ser infaman- te é também não científica, por- que pode se referir a estados não médicos (ex. mofo das paredes e da roupa, cf. Lev. 14,55). A Igre- ja Católica, tão atenta hoje aos desrespeitos aos direitos huma- nos, tem o dever de fazer algu- ma coisa para mudar esta pala- vra e defender assim os direitos humanos de inocentes vítimas das palavras bíblicas lepra e le- proso.

Não entendo nem de Bíblia nem de traduções, mas aqui onde vivo, lepra não é uma palavra num dicionário, mas uma trágica realidade vivida na pele e sobre- tudo no espírito de inocentes cri- aturas. Aqui dá para ver o efeito ostracizante da palavra lepra.

É preciso se convencer de uma vez por todas que ser lepro- so é muito mais do que ser doen- te na pele. Ser leproso quer dizer ostracismo, nojo, medo, vergo- nha, contágio; quer dizer sentir pesar nos ombros o peso de sé- culos de infâmia, de lendas ne- gras, de superstições, de maldi-

com o uso da palavra lepra faze- mos de um homem um leproso!

"Lepra não é uma doença transmitida por bacilo, é doença transmitida por palavra". ("Le- pra é uma palavra, nao é uma moléstia. Nunca acreditarão que lepra se cura. Palavra não se cu- ra", Graham Grene in Um caso liquidado", ed. Civilização Brasi- leira.)

Porque é esta palavra que faz a doença descer da pele até o mais profundo da pessoa, destru- indo o seu ser psicológico e seu ser social. Esta palavra tem uma eficácia enorme, ela opera aquilo que diz. Quando o médico diz: "tu és leproso", o doente não é

mais o homem que era antes, toma-se outra pessoa, aquela pessoa maldita, evitada, segrega- da, estigmatizada desde séculos. Esta destruição psico-social é

Saindo então Satanás da presença do Senhor, feriu Jó com uma úlce- ra maligna desde a planta dos pés até o alto da cabeça. EJó apanhou um caco para raspar-se enquanto se sentava sobreum monte de cinzas (Livro deJó, capítulo 2, versículos 7 e 8).

A interpretação errônea do texto bíblico criou o estigma. Como se observa no texto bíblico, "lepra" tinha significado totalmente dife- rente do que é a hanseníase. A coceira de Jó nSo é um sintoma da doença que aflige milhões de seres humanos.

trolável. É contra este seríssimo problema cultural, hoje reforça- do por todos os meios de comu- nicação, que devemos lutar. Es- tamos conscientes ser esta uma luta desigual e de antemío perdi- da. Ninguém pode eliminar o fa- tor cultural, ninguém pode can- celar a história. A única saída é eliminar o elemento essencial de ligação entre a doença e o estig- ma, o elo que liga a doença ao seu background cultural de infância e ostracismo, que é o termo le- pra e seus derivados: "o mais ne- gativo dos termos médicos", "desintegrador da personalidade do paciente", "rótulo que pene- tra precocemente na mente in- fantil e impede qualquer esclare- cimento futuro", "trauma e so- frimento psíquicos continuados, que impedem a reabilitação so- cial do doente", conforme resul- tado de sérios e extensos inquéri- tos.

De acordo com princípios ele- mentares de psicologia de massa

"... lepra" não é uma palavra num dicionário, mas uma trágica

realidade vivida na pele e sobretudo no espírito de inocentes criaturas . .. ?i

muito mais séria e grave do que a destruição do corpo, aliás — e aqui está o ceme do problema sanitário, ela é o maior entrave a toda e qualquer ação preventiva. Esta é a única doença existente no mundo onde o doente não vai ao médico; para não ser chama- do e se tomar leproso, contrari- ando as mais lógicas e tradicio- nais leis da medicina, ele foge, se

esconde, troca sua identidade, tornando-se assim foco perigoso de infecçío, perigoso porque desconhecido e por isso não con-

e imitando todos os demais cam- pos da atividade humana, a pri- meira medida é substituir o ofen- sivo e pejorativo termo lepra por uma terminologia sadia, positiva, cientifica, "fria", como hanse- níase, mal de hansen ou seme- lhantes.

O mundo médico achou por bem, nos últimos tempos, intro- duzir mudança de nomenclatura em outras doenças: cegos, sur- dos, mudos, inválidos, até doen- ças venéreas nao se chamam mais assim, mas receberam nomes me-

nos ofensivos e mais respeitosos. Porque os leprosos devem con- tinuar a se chamar leprosos? Ou ainda nao chegou a hora dos di- reitos humanos para estes do- entes?

É preciso reconhecer, é ver- dade, que o aspecto bíblico do problema tem que levar em con- ta elementos particulares e típi- cos do texto bíblico; mesmo as- sim, a Igreja tem a obrigação de fazer alguma coisa porque ela também, de qualquer maneira, é responsável pelo estigma psico- social da lepra através da difusão da Bíblia.

Caríssimo, com a sua sensibi- lidade para os problemas das mi- norias esquecidas e marginaliza- das, você encontrará certamente meios aptos para concretizar este nosso apelo. Não é uma batalha nominalista esta; trata-se de com- bater um preconceito. E é mais fácil quebrar um átomo do que um preconceito, dizia Einstein. Não é uma batalha a curto pra- zo, é verdade, mas quem sabe, depois de cinqüenta ou cem anos de evangelização sem lepra vão nascer crianças sem preconcei- tos, sem este "rótulo que pene- tra precocemente na mente in- fantil e impede qualquer esclare- cimento futuro". Cinqüenta, cem anos sao muitos?

Para os leprosos não. Faz mi- lênios que estão esperando. Está na hora de começar. Começar a não ter compaixão dos leprosos e sim a indignar-se, como Jesus, contra a legislação estigmatizan- te e quem a defende.

Fico â sua disposição para qualquer esclarecimento ou en- vio de material. Obrigado por tu- do aquilo que o senhor puder fa- zer. Um abraço fraterno. Conto com suas orações.

Padre Humberto Guidotti Cx. Postal 1058

69.000 Manaus (AM

(Natal de 1980)

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CM 00

29 de janeiro: dia universal do hanseniano. Quem se lembrou disso?

| O dia 29 de janeiro foi consa- o grado mundialmente como o dia õ universal do hanseniano. Como o normalmente acontece com to- ^ das as datas específicas, várias

atividades foram programadas para que o assunto em questão ganhasse maior dimensão.

A hanseníase, devido ao pre- conceito, é considerada assunto desagradável, daqueles que não devem ser comentados na hora do almoço nas casas das melho- res famílias. Esta predisposição contra a problemática da hanse- níase concorre para que o assun- to, quando ele mais necessita ser comentado, passe por brancas nuvens.

No último dia 29 de janeiro, não fosse o abnegado esforço de combatentes a este preconceito idiota, isto teria acontecido.

REPERCUSSÕES NA IMPRENSA

Em Mirueira, bairro de Pau- lista, no Grande Recife, no sa- natório Padre Antônio Manoel, os hansenianos organizaram uma comemoração para a qual convi- daram o arcebispo de Olinda e Recife, dom Hélder Câmara. Neste dia também foi lançado o primeiro número do Morhan Jor- nal, feito .pelos integrantes do núcleo do Morhan em Mirueira, dirigido por Pierre Sastre.

Ainda em Recife, no dia 29 de janeiro, o jornal Diário de Pernambuco publicou uma en- trevista com o assessor da Coor- denadoria Nacional do Morhan, Dr. José Ruben Alcântara Bon- fim (médico sanitarista de São Paulo), na qual este denunciou ao público que a doença é cau- sada principalmente pelas pés- simas condições sociais em que vive a maior parte da população brasileira, principalmente nas regiões Norte e Nordeste do país. Disse ainda, na condição de es- pecialista no assunto, que a do- ença é curável e evitável e que os serviços de saúde mantidos pelo governo nos Estados da Nação são deficientes no trata- mento ao hanseniano.

Em artigo assinado no Cor- reio da Lavoura (de Nova Igua- çu, RJ), no dia 23 de janeiro, o dr. Paulo Amaral, presidente da Comissão Pontifícia de Justiça e Paz e Advogado da Diocese de Nova Iguaçu, criticou o compor- tamento infantil daqueles que se deixam levar pelo infundado pre- conceito que cerca a doença. Anunciou a fundação do núcleo do Morhan naquela cidade, do qual participaram Wilson Antu- nes Pereira, presidente da Asso- ciação Amigos de Bairro do Gran- de Rio, Aracy Ferreira, da mes- ma associação, André de Luiz de

CERPHA promove debate em Bauru

A Comissão Evangélica de Reabilitação de Pacientes de Hanse- níase — CERPHA — está promovendo o I Encontro Nacional de En- tidades que trabalham no Campo da Hanseníase, a ser realizado em Bauru entre os dias 31 de março e 2 de abril próximos.

Este encontro pretende discutir os diversos programas existen- tes hoje no Brasil voltados para a reintegração do üanseniano, procu rando incentivar o intercâmbio de novos conhecimentos.

LIVROS EDITADOS

O CERPHA é a entidade não governamental que mais tem con- tribuído para a difusão científica atualizada sobre hanseníase. A en- tidade já publicou diversos livros sobre a problemática específica do hanseniano, entre os quais se destacam: Lepra, uma interpretação atual (Dr. Oliver W. Hasselblad, em 4? Edição); Memorando sobre o controle da Hanseníase (Dr. Stanley G. Brovmt);Educação Sanitária na Profilaxia da Hanseníase (P.J. Neviüe); Manual de Hanseníase pa- ra pessoal de Campo (W. Felton Ross), muito recomendável; o mag- nífico Manual de calçados para programas de controle de Hanseníase (P. J. Neville); A Organização Mundial de Saúde e a Hanseníase - 5? Relatório do Comitê Técnico em Hanseníase (os três últimos livros aqui citados são técnicos), além do utilíssimo folheto A Proteção dos Pés, da Dra. Grace Warren.

O CERPHA envia a todos os interessados em aprofundar seus estudos sobre hanseníase exemplares dessas publicações, gratuitamen- te. Escreva para o CERPHA: rua Conde de Bonfim, 232/703 - Tiju- ca - Rio de Janeiro. CEP 20.000 - RJ. Caixa Postal 24046.

Paula, e o bispo diocesano dom Adriano Hypólito. Ao final da matéria conclama a todos os leitores a um exame de consci- ência para a eliminação da injus- tiça social produzida pelo pre- conceito.

A Província do Pará, em sua edição de 23 de janeiro, deplo- rou a falta de campanhas em da- ta tão propícia e ainda disse que "apesar de sua alta incidência en- tre nós não se tem conhecimento de nehuma campanha oficial de alerta e orientação à população", descaso este observado por parte de todos os governos estaduais.

PAPA JOÃO PAULO II

Outra publicação que lem- brou o Dia do Hanseniano foi o boletim semanal da CNBB, em sua edição de 15 de janeiro. In- formou sobre a realização do I Encontro do Morhan, realizado em Bauru, no ano passado, e des- tacou uma das principais conclu- sões desse encontro: "Promover campanhas de esclarecimento e conscientização do doente, da família e da comunidade, através dos meios de comunicação so- cial".

Além disso, reproduziu parte do discurso proferido pelo Papa João Paulo II, quando de sua vi- sita aos hansenianos de Maritu- ba. Em Belém do Pará, em 8 de julho de 1980: "Não vos isoleis

por motivo de vossa enfermida- de. Todos aqueles que com dedi- cação, amor e competência se in- teressam por vós, talvez até con- sagrando-vos todo o seu talento, tempo e energia, insistem que nada é melhor do que sentir-vos profundamente inseridos na co- munidade dos outros irmãos e não cortados dela. A esses irmãos nós dizemos com a força da con- vicção: procurai conhecer vossos irmãos hansenianos, ficai próxi- mos à eles, acolhei-os, colaborai com eles, acolhei e procurai sua colaboração. Mas a vós devemos dizer: não recuseis por qualquer motivo inserir-vos no ambiente que vos circunda e que se abre a vós. Senti-vos membros em maior plenitude possível da comunidade humana que cada vez mais toma consciência de que precisa de vós como precisa de cada um de seus membros".

O jornal Leste - 1, da CNBB, anunciou que os membros do Morhan organizaram palestras em todas as missas dominicais das igrejas periféricas aos hospi- tais de Curupaití — Jacarepaguá — RJ, em edição no domingo an- terior ao dia 29.

O jornal O Estado de São Paulo, no dia 28 de janeiro, deu uma pequena nota informativa sobre o dia mundial do hansenia- no, anunciando a realização de missas nas igrejas que cercam o

Hospital Sanatório Tavares de Macedo, no município de Itabo- raí, no Rio. Nestas missas os re- presentantes do Morhan profe- riram outras palestras informa- tivas. Na mesma nota, o relaçóes públicas do Morhan, André Luiz de Paula afirmou: "Jesus poderia ter curado o portador da molés- tia de pele sem tocá-lo. Mas fez questão de colocar a mão sobre ele para mostrar que ninguém deve afastar-se de seu semelhan- te, mesmo quando acometido por moléstias desse tipo".

Outra manifestação registrada pela impresa foi na matéria assi- nada pela professora Sandra Ca- valcanti, no jornal Ultima Hora, do Rio, no dia 29 de janeiro, sob o título de "Dia Mundial do Hanseniano", onde esclarece aos leitores as características da do- ença, destacando que a mesma é curável e, principalmente, evitá- vel.

TODOS OS DIAS DO ANO O Morhan espera que no pró-

ximo ano o dia mundial do han- seniano seja mais comemorado. Espera que as pessaos façam um exame de consciência e se inte- grem na luta pela reintegração do hanseniano na sociedade. Es- pera, acima de tudo, que o han- seniano possa ser lembrado com humanidade e sem preconceitos todos os dias do ano.

SORRI - ao lado do incapacitado A Sociedade para a Reabilita-

ção e Reintegração do Incapaci- tado - SORRI - é uma entida- de de bem comum, sem fins lu- crativos. Fundada em Bauru em 1976, oferece serviços de reabili- tação e pessoas com incapacida- des físicas, mentais, psicológicas e sociais.

Trabalhando em colaboração com a equipe de reabilitação mé- dica do Hospital Lauro de Souza Lima, presta aos clientes incapa- citados serviços de avaliação mé- dica, fisioterapia e aparelhos or- topédicos, além de treinar pro- fissionais para o trabalho de rea- bilitação médica.

A finalidade principal da Sor- ri é oferecer aos reabilitandos a experiência necessária para a co- locação em empregos competiti- vos, oferecendo gratuitamente avaliação profissional, treina- mento em diversas atividades in- dustriais e comerciais, avaliado mensalmente até sua colocação num emprego integrado.

SORRI Como parte de seu programa

de ajuda, a Sorri oferece gratui- tamente refeições, seguros, trans- porte, bolsas de estudo, alfabeti- zação, aulas de higiene, trata- mento dentário e aparelhos orto- pédicos, ajuda jurídica e de habi- tação.

A Sorri colabora com outros grupos interessados na diminui- ção dos obstáculos físicos, psi- cológicos e sociais que separam o incapacitado de uma vida útil na sociedade. Um exemplo de tal colaboração é a participação da Sorri junto às secretarias de Saú-

de e de Promoção Social do Es- tado de São Paulo, no Projeto para a Reabilitação do Hansenia- no em Bauru, além de oferecer treinamento profissional para hansenianos que, até então, por motivos já explicados, não eram reconhecidos como deficientes.

A renda proveniente da venda dos produtos confeccionados na fábrica de calçados e oficina de sub-contratos da Sorri custeia aproximadamente 50% de suas despesas. O restante é coberto por doações de entidades nacio- nais e internacionais e por con- tribuições de voluntários e só- cios.

A Sorri concluiu recentemen- te a construção de sua sede pró- pria com capacidade para o atendimento de 90 clientes.

Caso seja do seu interesse par- ticipar desse empreendimento humanitário, entre em contato com SORRI: rua Bolívia, 663, 17100 - Bauru, São Paulo. Fo- ne: (0142) 23-7355.

"A desagregação familiar, muito freqüente, é mais lesiva, psicolo- gicamente, do que lesões físicas."

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Não à ajuda sem compromisso a o 3 o

Francisco Augusto Vieira Nunes (Bacurau)

Dizer que nós, hansenianos, não precisamos de ajuda mate- rial e financeira seria faltar com a verdade. A miséria que milha- res de companheiros hansenia- nos vivem nesse momento em vá- rios pontos do país grita contra tal afirmação. Entretanto, é pre- ciso esclarecer que ajuda é dife- rente de esmola, que promoção humana nSo quer dizer patema- lismo. Resolver os problemas imediatos dos hansenianos, co- mo dar roupa nova e calçados e até mesmo dinheiro, sem que is- so faça parte de um programa de reintegração social no qual figu- ra a habilitação ou reabilitação profissional, seguida de encami- nhamento para emprego, é dei- xá-lo na dependência da próxi- ma dádiva. E assim, convencio- ná-lo a ser um eterno pedinte ou a esperar sempre que alguém re- solva suas carências.

A falsa filantropia tende sem- pre a dar o peixe e nunca o cani- ço, contribuindo, assim, para o completo esmagamento da per- sonalidade do hanseniano, já profundamente abalada pelos preconceitos e discriminações as mais diversas.

Estamos cansados de "Pais de Hansenianos", de "Protetores de Hansenianos", de "Defenso- res de Hansenianos", que vivem, antes de tudo, satisfazendo seu próprio ego e, com muita fre- qüência, seus próprios interes- ses. Estamos cansados de ser bodes expiatórios de cons- ciências pesadas. Também não nos interessa a "boa vontade" se essa "boa vontade" vai nos cau- sar danos iguais aos causados pe- lo descaso, pela negligência, pe- la irresponsabilidade, pela má vontade.

Estamos carentes, isso sim, de pessoas conscientes de sua res- ponsabilidade diante do quadro social que vivemos. Precisamos de pessoas que nos ajudem a sair do buraco em que nos coloca- ram, nSO de pessoas que joguem mantimentos e até mesmo sorri-

Exemplo de dedicação

Em Paricatuba, situada há alguns quilômetros acima de Manaus, ás margens do Rio Negro, onde vivem 200 pessoas, em sua maioria hanse- nianos egressos da antiga colônia que existia no local, encontramos um exemplo marcante de espirito altruís- tico.

Para um lugar onde devido à pre- conceitos, nenhuma professora acei- tava ir para lecionar deslocou-se a pa- ranaense Solange, que vive junto à co- munidade prestando serviços como professora.

Esta mulher e seu exemplo valem mais do que "dedicações" em dinhei- ro.

Somente a educação e a conscien- tização libertarão o hanseniano.

sos bondosos para dentro do bu- raco a fim de nos manterem vi- vos; queremos mais que isso, queremos viver.

Carecemos de ajuda. De mãos que se estendam até nós e que "nos puxem para cima" porque a subida é difícil e sozinhos não conseguiremos realizá-la.

Carecemos de sua mão, de sua ajuda. Somos um Movimento que ainda não tem nenhum su- porte financeiro, nem mesmo pa- ra arcar com as despesas de cor- reio. Todo o nosso trabalho, in- clusive este jornal, tem sido fru- to de um grande esforço dos membros do Morhan, que tem custeado despesas do Movimento

com recursos do próprio bolso. Nós não temos condições dej continuar arcando sozinhos corri tais despesas, mesmo sacrifican- do nosso orçamento pessoal e familiar.

Estamos precisando com ur- gência, para desenvolver nossos trabalhos, de material de escritó-

rio—tal como máquina de escre- ver, papel, etc — e de um peque- no fundo que garanta a manu- tenção de nossa correspondên- cia, do deslocamento de voluntá- rios para trabalhos diversos, etc.

Contamos com você. Uma as- sinatura do Jornal do Morhan e uma contribuição, por pequena que seja, serão bem recebidas.

S

Desobrigação e "caridade" mantêm o estigma Muitas pessoas de esp frito ca-

ritativo, que se sentem sensibili- zadas pelos problemas dos han- senianos, prestam, à sua maneira, um auxilio que apesar de imbuí- do das mais puras intenções é feito de maneira equivocada e inóqua.

Tratam-se dos donativos, das contribuições em dinheiro, em mantimentos e em materiais di- versos aos doentes necessitados. Entidades religiosas e civis arre- cadam todos os anos grande quantidade de gêneros de toda a espécie para mandar aos sana- tórios. Porém, isso tudo de pou- co adianta: melhora a situação imediata do doente, mas toma-o dependente do auxilio externo sistemático.

Como todos sabem, a palavra lepra e o adjetivo leproso trazem em si um forte componente pe- jorativo que arrasa a vida do do- ente a ponto de inutilizá-lo fren- te à sociedade. E é explorando exatamente este "lado ruim", buscando causar pena, sensibi- lizar a sociedade, que estas pes- soas esforçadas promovem suas campanhas. Levam à muita gente os problemas dos hansenianos mas, ao mesmo tempo, levam à um número muito maior de pes- soas o milenar preconceito que envolve a doença. Este último efeito, mais forte, acaba por anu- lar todos os beneficios que os donativos poderiam trazer aos doentes, uma vez que, espalhan- do o preconceito, cada vez mais será dificultado para os hansenia- nos a- possibilidade de uma vida normal.

Estes abnegados que lutam (equivocadamente, repetimos) para ajudar o paciente, também são vitimas de um golpe, conhe- cido como bate-gato, praticado por doentes, ex-doentes e não- doentes, pessoas geralmente com boa situação financeira que cri- am uma verdadeira "indústria", ludibriando a boa fé do públi- co, aproveitando-se da desin- formação popular. Processo exis- tente em todo o Brasil, principal- mente em Minas Gerais, consiste no envio regular de cartas apela- tivas à caridade alheia exploran- do a mística e o estigma da do- ença como agente sensibilizador.

O próprio doente, sem o per- ceber, procurando a solução ime- diata para seus problemas, não

Colônia São' Francisco do Assis. C^s._./,/~T L.ÍJ. '

Exrno (a) Sr. (;<) ^...J

Respeitosas Sauduções.

Qunm )he oscreve esta é um pobre doente de leprn, Inter- nado nesta Coiónia de hansenianos. £em parentes que poss--i ajudar em rainhas necessidades. Como se já não bastasse viver r.c;ta coiónia, isolado da sociedade, sou urna pessoa deficiente física, pois tenho uma perna amputada. Eis o motivo pelo qual creio eu muito justo, solicitar a V. S. uma ação entre partntes e amigos, afim de angariar uma ajuda póra que eu possa colocar uma «Perna Mecânica' que custa 45.000,00 e não tenho condições financeiras para fazer um gasto deste porte, e alem disso eu tenho que ir para uma capital, porque aqui onde vivo não tem recurso para o meu proljiema.

Coloco o meu problema em vossas mãos na esperança de vé-lo resolvido na medida do possível. Eu .creio em Deus que conseguirei colocar esta perna mecânicr:, porque ncredito nas pes- soas bondosas e caridosas, apesar de tantos conflilos e divergências deste mundo de hoje que vivemos.

Mal de nós doentes isolados da sociedade aleijados sem podermos trabalharmos e sem sermos olhados como deveria pelas autoridades competentes desíe nosso Brasil, se não fosse as criaturas bondosas lá de fora. Com elevado apreço apresento-lhe meus agradecimentos antecipados a V. S., Exma; família e amigos.

A humilde pessoa doente e deficiente física agradece: Nome e endereço: .

ANTÔNIO NAILTON RIBEIRO DE SOUZA £y

COLÔNIA SAO FRANCISCO DE ASSIS

CEP 38.900 BAMBUI - MINAS GERAIS

Se caso for atendido cm minha solicitação peço que envie sua colaboração através de «Vale' Postal Nacional» por intermédio do correio, ou através de ordem de pagamento por intermédio do Banco do Brasil S. A., Agência da cidade de Bambui Minas Gerais, cm nome e endereço do doente acima mencionado

Centenas de milhares destas cartas, impressas ou manuscristas, chegam a todos os recantos do País, através de endereços obtidos em listas telefônicas. Um dos mais eficientes meios de propagação do preconceito!

nota que, divuldando ainda mais o preconceito toma mais dificil sua reintegração na sociedade.

"Tocados", os destinatários destas cartas-apelo, certos de que cumprem com uma boa-açãb, en- viam o dinheiro prometido.

No entanto, sua contribuição seria ainda maior se sua preocu- pação imediata fosse a busca de informações corretas sobre a do- ença, seu controle e combates- sem o estigma, através de uma ação conscientizadora.

Sabemos que as medidas edu- cativas preconizadas pela Orga- nização Mundial de Saúde, como "o público em geral deve ser in- formado sobre a causa, os sinto- mas iniciais, e o tratamento da doença", "a educação sanitária deve atingir todos os setores da população, especialmente os es- tudantes, desde a escola primá- ria até a universidade de modo que as novas gerações fiquem melhor preparadas para elimi- nar o estigma ligado a doença", "fazer compreender a todas as pessoas que devem consul- tar um médico tão logo come- ce a aparecer uma lesão suspeita" e, finalmente, "conferências pú- blicas, artigos e periódicos pro- gramas radiofônicos, cartazes, folhetos, meios audio-vi- suais. . . ", são medidas que le- vam a um caminho efetivo para enfrentarmos o problema.

Muito mais importante do que a arrecadação dos donativos é a conscientização, e o "instru- mento mais convincente é a demonstração da eficácia do tra- tamento pelos próprios doentes."

Assineo jornal doMorhan Participe de um movimento nacional que luta contra proconceitos medievais. Ajudar no controle de Hanseniase é melhorar a saúde dos brasileiros. Para isto, remeta este cupão para o endereço abaixo, anexando um cheque nominal em favor do Movimento de Reintegração do Hanseniano (MORHAN), no valor de Cr$ 500,00 (quinhentos cruzeiros) pela assinatura anual, ou um mínimo de Cr$ 2.000,00 (dois mil Cruzeiros) pela assina- tura de contribuição.

Nome...

Endereço. .Cidade Est.

Profissão Telefone

Assinatura anual (quatro ediçóes) Cr$ 500,00 Assinatura a título de contribuição: mínima de Cr$ 2.000,00

MORHAN - Rua Osvaldo de Andrade, 76, Jordanópolis. 09700 - São Bernardo do Campo - São Paulo

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Jornal do Morhan

Pela total reabilitação social do hanseniano

Amigos, gostaria de não ter a necessidade de es- tar aqui para falar dos nossos problemas, para colocar reivindicações, para bater em teclas já tão gastas por nós. Eu queria ter a felicidade de estar aqui só para fa- lar de minha alegria por estar no meio de pessoas tão cheias de fé, de otimismo, de confiança, na vida.

Todavia, é nosso dever falar de tristezas, quan- do nossa vontade é falar de alegrias, porque a nossa realidade é triste.

É triste ter de falar que em nosso País, segundo estimativas de especialistas, existem meio milhão de pessoas portadoras de hanseníase — doença que não tratada em tempo hábil predispõe o nosso corpo a mutilações, seqüelas e deformações que vão desde o atrofiamento de membros à cegueira, da reabsorção óssea à transfiguração de um rosto humano numa más- cara dantesca.

É triste ter de falar que, num cálculo otimista, a metade desse meio milhão de pessoas amargam, nesse momento, toda a carga de infortúnios advindos das deformidades e deficiências que falei há pouco. O pre- conceito, a vontade de ver, de trabalhar, de se apre- sentar em público, o desgosto de se olhar no espelho, o medo de humilhações que podem vir de um olhar, de um gesto, de uma palavra, saò coisas que estão contidas na carga mencionada.

É triste ter de falar que, a permanecer a moro- sidade e a deficiência com que é desenvolvida a polí- tica de controle de hanseníase em nosso País, teremos que continuar presenciando a permanência e o agrava- mento desta problemática, que faz surgir, a cada ano, um número considerável de deficientes. É verdade

Discurso pronunciado no I Congresso de Pessoas Deficientes, realizado entre 26/30 de outubro de

1981, em Recife, Pernambuco, de autoria de Francisco Augusto Vieira Nunes ("Bacurau"), coordenador nacional

do Movimento de Reintegração do Hanseniano.

que existem algumas pessoas que estão dedicando suas vidas na busca de soluções para este problema. São atitudes altamente louváveis, mas são como pequeni- nas fontes num imenso deserto, cujas gotas de vida são desejadas, disputadas e sonhadas por uma multi- dão sedenta.

O nosso tema central é A Realidade das Pessoas Deficientes no Brasil, Hoje. Eu seria pretencioso, e com certeza fugiria do real, se abordasse realidades vi- vidas e sentidas por outras pessoas. Por isso me pren- do a uma área específica, a que vivo e sinto.

Voltando à nossa realidade, asseguro: apesar do preconceito ter diminuído nestes últimos tempos, o hanseniano ainda é tratado com repúdio, até mesmo entre pessoas que comungam conosco problemas iguais.

Carecemos de Centros de Reabilitação e Escolas Profissionalizantes em número suficiente para atender à demanda.

Os postos de saúde não estão equipados, nem pessoal nem materialmente para atender os portado- res de hanseníase. Esta carência é uma das principais causas do diagnóstico tardio da doença e, em conse- qüência, do aumento do número de pessoas deficien- tes.

A grande maioria dos remanescentes dos Asilos Colônia, que são dezenas e dezenas de milhares, estão vivendo em condições precaríssimas, sem moradias e tendo como única fonte de renda uma pensão inferior ao salário mínimo. Muitos sequer tem tal fonte.

Para obter certos tratamentos especiaUzados, como cirurgia reparadora, por exemplo, ou para obter sapatos ortopédicos e próteses, o hanseniano é obriga-

do a viajar milhares de quilômetros com altíssimo des- gaste físico e financeiro.

Com os longos anos que passaram nos Asilos Colônia, milhares de hansenianos perderam suas famí- lias ou outro ponto de referência fora de tais colônias. Por isso, permanecem nos hospitais desses asilos, des- personalizados, sem acreditarem mais na sua reinte- gração social, sem terem mais nenhuma perspectiva para o futuro. Tomaram-se inteiramente dependentes da cama e da comida do hospital, da amizade e do ca- lor humano de seus funcionários. Seus comportamen- tos infantis, caracterizados pela ânsia de afeto e aten- ção umas vezes, por revolta e exigência por pequeni- nas coisas em outras, é a triste imagem do saldo do internamento compulsório e da mudança brusca sem preparo psicológico do paciente, e sem a conscienti- zação do povo. Esta é a triste imagem da política do controle da hanseníase.

Por falar em internamento compulsório, gosta- ria de pedir aos poderes públicos que dispensassem à reintegração do hanseniano o mesmo interesse e os mesmos recursos financeiros que dispensaram em tais internamentos, quando construíram verdadeiras cida- des e gastaram verdadeiras fortunas para a manuten- ção das mesmas. Gostaria de pedir também que, quan- do fossem dar diretrizes às nossas vidas, como fizeram ao fechar as colônias - que já fecharam tarde -, te- nham a humildade de nos consultar, conferindo-nos assim um direito que nos é devido e o respeito que se deve a toda criatura humana quando interferimos em seu destino.