jesus perante o divórcio e a família

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    Jesus perante o divrcio

    e a famlia

    Jos Carlos Carvalho*

    Introduo

    A busca do Jesus histrico no pode nunca ser dissociada da f no Cristoda f. Esta premissa absolutamente decisiva para ler e interpretar os evange-lhos. Tentar saber o que Jesus pensava sobre o divrcio e sobre a famlia temde ter isto em conta para que a f no Cristo seja o mais fiel possvel a partir dafidelidade ao prprio Jesus histrico. Mas no Cristo da f que chegamos aoJesus histrico. Este um exerccio que a f faz para mais e melhor crer Jesus,para mais e melhor crer o Cristo de Deus, pois a f no Cristo no se reduz ao

    que podemos ou conseguimos saber sobre o Jesus histrico. Para tal, neces-srio saber tanto quanto possvel o que que o Jesus histrico pensava sobreestes temas, o que disse e como se posicionou. Trata-se, portanto, de um exer-ccio de fidelidade da prpria f e no apenas de simples curiosidade hist-rica, historicista melhor dito. Para melhor crer o Cristo, necessrio conhecero melhor possvel, tanto quanto os textos e o contexto o permitem, Jesus na suahistria, no seu contexto, no seio da tradio judaica do sculo primeiro daqual faz parte. Apesar de tudo, os testemunhos evanglicos e de Paulo no douma resposta taxativa em forma de receiturio moralista ad eternum. sobre

    esta fronteira to tnue que nos colocamos no maior exerccio de fidelidade

    *Faculdade de Teologia da Universidade Catlica Portuguesa Porto.

    }1.24

    Humanstica e Teologia. 33:2 (2012) 359-377

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    histrica e de hermenutica das passagens evanglicas e da tradio paulina.Importa, ento, comear pelo contexto.

    1. O contexto

    Sobre estes temas Jesus herdou e cresceu num judasmo no homog-neo, pois desde o perodo patriarcal que o divrcio estava banalizado, masnem todos o banalizavam. Na verdade, o judasmo em que Jesus vive plural,como ainda hoje. Por outro lado, Israel assistiu a uma evoluo moral e jur-dica nestas questes ao longo da prpria histria da revelao bblica. Nose pode esquecer que desde Abrao a poligamia e o divrcio eram toleradoscomo prticas comuns da poca e daqueles povos, e no tempo de Jesus noimprio romano era tolerada a poliandria., mas foi-se impondo gradualmentea monogamia. Desde o perodo patriarcal que a mulher em Israel via vedadoo acesso ao direito de propriedade, reservado s para eles. Alm disso, elas,no tendo direito propriedade, tambm no tinham direito a aprender a ler,s eles que sabiam ler no mundo judaico do Antigo Testamento. Ora, Jesusencontra este mundo. Nesse mundo, na celebrao dosder, a mulher podiainiciar oshabat, no era obrigada a ir sinagoga e no estava impedida de o

    fazer. Durante osdera mulher no presidia; ouvia e rezava com as crianas.No tinha acesso leitura pblica da torah na sinagoga. Estava completa-mente merc dos caprichos do marido em matria de divrcio. Como qual-quer mulher do povo judeu, ao acordar de manh Maria rezava memria aorao de bno (bendito sejas Senhor que me criaste pela tua vontade) ouum dos salmos dohallelda manh (cf. Sl 144-150). NoshabbatMaria acendeas velas e proclama a bno como todas as mes de famlia: bendito sejaisSenhor que nos permitistes acender as luzes (cf.Ber3,3-4). luz das nossasdemocracias modernas isto no chega, mas no podemos pedir cultura emque Jesus nasceu que vivesse j no regime jurdico que temos hoje, apesar de,quando comparada com as culturas vizinhas, representar j grandes diferen-as pela deferncia e lugar concedido s mes e s mulheres. No entanto, amarca patriarcalista no ilude todas as dificuldades em matria to candentequanto a do divrcio.

    2. O vocabulrio familiar

    No Antigo Testamento existem sobretudo trs termos para nomear outrostantos modelos de famlia: a tribo (sebet), o cl (mishpahah) e a famlia

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    (bet-ab). Este o vocabulrio que Jesus conhece e que usa. Estes termosentram em Israel na construo da identidade, do nome. Assim, Akhan filhode Karmi um patronmico; ele recebe o nome do seu pai, que por sua vez

    filho de Zabdi [av e chefe da sua bet-ab], filho de Zerah (nome da suamish-pahahda tribo de Jud: cf. Jos 7,16-18). A patronomia foi um procedimentomuito comum em todas as comunidades humanas para distinguir um indivduodentro de seu grupo, no qual havia inmeras pessoas com o mesmo prenome(ou nome de batismo). Deste modo, Tiago filho de Zebedeu passou paraTiago de Zebedeu, e depois suprimiu-se a partcula de e ficou simples-mente Tiago Zebedeu. Daqui surgiram muitos sobrenomes ou segundosnomes a partir do nome do pai como forma de manter a linhagem e o patri-mnio. O mesmo aconteceu no portugus (por exemplo, Gonalves o filhode Gonalo). Este um procedimento comum no Antigo Testamento.

    O conceito mishpahah significa sobretudo o cl. Poderia incluir um con-junto de famlias (bet-ab) reunidas num cl com relaes exogmicas, massobretudo uma famlia alargada em que as relaes eram sobretudo endog-micas para preservar o patrimnio e a posse das terras (cf. Num 36,1-12).Mishpahahfica entre a grande tribo (sebet) e a pequena unidade famlia(bet-ab).

    A sebet foi a primeira grande organizao de Israel, e foi consubstan-

    ciada nas doze tribos cujo nome era o do pai, sendo cada sebet conhecidaa partir do nome de cada um dos filhos do pai/patriarca Jacob. As listas deNum 1; 26 mostram que so os filhos e os netos que do os nomes s parcelasdas tribos, s mishpaht. Uma sebet teria cerca de sessenta mishpaht(cl). Ao entrar na Terra Prometida em Jos 13,15, as tribos receberam terrasconforme o nmero dos respetivos cls, pelo que o que ajuda a constituir ou areconhecer uma famlia (bet-ab) a suaidentidade territorial.

    O bet-ab inclua o dono da casa, a(s) sua(s) esposa(s) e os restantesmembros da famlia. Como a idade nbil e de matrimnio era muito anteci-pada, era muito fcil que um bet-abpresidisse a uma famlia com trs gera-es (e at quatro). Abet-abem Israel erapatrilineare patrilocal(a descen-dncia era reconhecida pela descendncia masculina e a noiva deixava a casado seu pai para ir passar a viver na casa do seu futuro marido). Se elas notinham direito propriedade e se iam para casa do seu futuro marido, quandoa famlia no tinha filhos vares corria o srio risco de desaparecer, pois perdiaa linhagem. A lei do levirato (cf. Dt 25,5-10) permitia que o cunhado (levir) des-posasse a viva para permitir que ela voltasse a dar descendncia famlia,

    tornando-se assim um goel, um libertador. Abet-abera tambm a unidademnima econmica em Israel. Em termos jurdicos, o pai de famlia (o ab queera o chefe da casa [bet]) tinha competncia em alguns assuntos para alm

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    das autoridades civis: nos casos de divrcio, matrimnio, servos, disciplina(cf. Ex 21,20). O pai tinha a obrigao de ser um veculo de transmisso devalores fundamentais e de garantir a continuidade da f, da histria, da lei e

    das tradies (cf. Dt 7,6). As filhas eram consideradas propriedade do pai,mas deixavam de o ser depois do casamento. Os casamentos eram muitasvezes arranjados pelos pais de umamishpahahou de umabet-abpara manteras amizades e as propriedades. Nessa altura os pais tratavam do mohar (odote). O pai tinha tambm uma patria potestas sobre os filhos, mas a lei deDt 21,19 limitava este poder, obrigando a apresent-lo aos pais mais velhos docl, aos outros membros mais velhos do conselho. Mas Israel protegia a vidapr-natal, pois, quando algum matava uma dessas vidas, tinha de dar ao paiuma compensao (Ex 21,22).

    Apesar destas relaes desequilibradas, elas eram equilibradas pelodever de fidelidade e pela tradio genesaca, origem (e no comeo) para oqual remeter Jesus. A sua situao histrica molda a nossa histria e as nossasfamlias, inspirando-as com alguns princpios gerais orientadores. Todavia, apropsito das nossas famlias, chamamos a ateno para alguns dados fun-damentais e distintivos. Assim, a fidelidade conjugal, o amor e o respeito pelavida no so por si mesmos valores apenas cristos e no so suficientes parafundamentar uma moral familiar plena1. Com efeito, cristos e no cristos

    esto unidos no desejo de desenvolver a famlia enquanto tal. No se diferen-ciam tanto pela materialidade dos atos, mas pelosentidoque do e noNomede quem o fazem. em nome deste Nomeque se instaura uma tica familiarna Escritura2, a qual pode ser resumida nos seguintes princpios, inspiradospor sua vez no Declogo e na tradio do livro do Gnesis. Por ser Palavrade Deus, Jesus obedece-lhe, vive-a, interpreta-a, aplica-a, segue-a, no podedesdizer a Palavra do Deus de Israel, porque essa Palavra luz para os nossoscaminhos (cf. Sl 1,1-4). Esta experincia molda o prprio Jesus histrico e jna sua prpria histria experimenta a famlia e prope-lhe um horizonte e umconjunto de princpios orientadores que a ajudam a tornar-se cone da famliatriunitria de Deus, tentando ser espelho (apenas isso) da mesma. Neste sen-tido, Jesus historicamente ensina:

    a) uma radical (no absoluta) relativizao da famlia, pois o que querao seu pai ou sua me mais do que a mim no digno de mim (Mt10,37);

    1Cf. Campanini,Famlia. In F. Compagnoni, G. Piana, Salvatore Privitera, Marciano Vidal (eds.),Nuevo Diccionario de Teologia Moral, Madrid, Paulinas 1992, 752.2Cf. Campanini,Famlia, 753.

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    b) igualdade estrutural entre o esposo e a esposa, entre marido e mulher(Gal 3,28);

    c) regras de comportamento para pais e para filhos que a todos com-

    prometem e nas quais todos se comprometem, como sejam a fideli-dade, o respeito, o amor mtuo;

    d) educao na f atravs, em primeiro lugar, do testemunho de f porparte dos prprios pais3.

    Neste contexto, Jesus vai viver a experincia alegre das Bodas de Canaanem Jo 2,1-12. Esta festa mostra que Jesus gosta da famlia e v como boa not-cia uma nova famlia. Este matrimnio judaico acontece em circunstnciasespeciais notadas pelo evangelista celebrado messianicamente ao terceirodia (cf. Os 6,2), o que evoca aqui o (incio do) grande sinal que Jesus e oseu casamento com a humanidade, iniciado por seu turno na encarnao noventre de Maria. Segundo a tradio judaica, uma boda era uma festa quedurava sete dias (cf. Jz 14,17) ou trs em caso de uma viva. Em Jz 13,10 opai de Sanso vai pedir a mo da filisteia de Timna e por causa disto Sansod um banquete (mishteh) durante sete dias. O pai o soshebin (o mestrede cerimnias). No banquete de Canaan estava presente a me de Jesus,como tambm estar junto cruz. No mundo rabe ainda hoje uma honra ser

    apresentado como filho da me. Aqui o evangelista no pronuncia o nome deMaria porque a ateno recai sobre Jesus. Por isso, no quarto evangelho Marianunca citada pelo nome mas pela funo que exerce e pelo lugar cimeiro deprottipo de discpula que ocupa.

    Apesar de tudo, na narrativa de Joo Maria quem comea por fazerdesoshebinah(maestrina da cerimnia). Faltou o vinho a certa altura. Mariadiz para fazer o que Ele disser, porque espera uma soluo. A prpria Mariano via ainda claro a referncia plenitude da hora de Jesus, que dita porJoo pela presena do dom messinico do vinho, esse elemento to comume importante na vida quotidiana e na histria de Israel, como j refere, porexemplo, Jl 2,24 (As eiras encher-se-o de trigo, e os lagares transbordarode vinho e de leo), no perodo ps-exlico, ou Am 9,13-14 (dias viro, dizo Senhor, em que o que lavra segue logo ao que ceifa, e o que pisa as uvassegue logo ao que lana a semente; os montes destilaro mosto, e todos osouteiros se derretero; mudarei a sorte do meu povo de Israel; reedificaro ascidades assoladas e nelas habitaro, plantaro vinhas e bebero o seu vinho,faro pomares e lhes comero o fruto), antes do exlio da Assria, no norte na

    Samaria. O vinho um dos sinais da recriao, e j est presente pela primeira

    3Cf. Campanini,Famlia, 755.

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    vez no ciclo da criao com No em Gen 9,20 (No foi o primeiro a plantaruma vinha). O vinho um dos sinais do cumprimento da promessa que osexploradores espies encontram quando avistam a terra prometida em Num

    13,23 (Depois vieram at ao vale de Eshcol, cortaram um ramo de vide comum cacho de uvas, o qual trouxeram numa vara, como tambm roms e figos).Faz por isso parte da vida da famlia.

    Estavam ali seis talhas, cada uma com duas ou trs medidas. Se tivermosem conta que cada medida igual a dez gales, e que cada galo (ingls)corresponde mais ou menos a quatro litros e meio, isso significa que cadatalha levaria entre noventa e cento e trinta e cinco litros de gua. Esta grandequantidade indica no apenas uma grande festa mas tambm a sobreabun-dncia da alegria. Diante de tanta quantidade, Maria, amulher(aqui figurada Igreja), quem conduz at Cristo na funo desoshebinah, de maestrina dacerimnia, de amiga dos esposos e dos convivas. Paulo ver bem esta funomaterna de Maria e da Igreja na ltima parte da segunda carta aos Corntiosem 2 Cor 11,2 (zlo gr ums theou zl, hermosmn gr ums en andr par-thnon agnn parastsai t Christ [... prometi-vos a um homem como virgempura a Cristo]). Estamos diante de uma relao livre. A fase da dependnciagnstica4do ieros gamos est hoje ultrapassada para interpretar estas passa-gens5. Jesus vive em Canaan a experincia feliz da dana, da alegria, do conv-

    vio, da graa que poder aproveitar esses momentos quando os irmos estotodos juntos (cf. Sl 133,1) volta da mesa de Deus e da nova famlia de Deus.

    3. A liturgia matrimonial

    A cerimnia principal era a do ingresso da esposa na casa do esposo,do noivo. Era o soshebin, o amigo do esposo, que tinha a misso de levar aesposa a casa de noivo. Somente quando a noiva l entrava que se consi-deravam casados. Na tradio judaica Moiss o grandesoshebin, que pormeio da aliana apresentou o povo a Deus. Para os rabinos, Deus foi ososhe-binque apresentou Ado a Eva (bEruv18;Ber61). Esta figura Joo Baptistano IV Evangelho o amigo do esposo (Jo 3,29): o que tem a noiva o noivo; oamigo do noivo, que est presente e o ouve, muito se regozija por causa da vozdo noivo, pois esta alegria j est completa em mim. Maria tambm soshe-binna medida em que apresenta a Cristo, leva at Cristo, faz nascer o Cristo,

    4 Cf. Joachim Jeremias, numph, TWNT IV (1942) 1091-1099; P. Pokorny, Epheserbrief undgnostische Mysterien, ZNW 53 (1962) 160-194.5Cf. Os 1-3; 2,21.22; Is 54 4; 62,5; Jer 2,2; 4,1; 51,5; Ez 16; 32, tgCant 6,8.

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    tambm d Cristo, e ensina onde deve estar o verdadeiro discpulo: fazei tudoo que Ele vos disser.

    Cristo que acaba por ser nas deutero-paulinas ososhebinque apresenta

    a esposa e a prepara para Si mesmo (cf. Ef 5,32; Col 1,12-20). Assim sendo,Joo Baptista est para Jesus na nova aliana como Moiss estava para Israelna antiga aliana. Tal como Moiss tambm Joo Batista vem do deserto. Noincio do evangelho de Mateus (Mt 2,13; 4,1) tambm Jesus vem do deserto, ososhebinque vai levar o povo at Deus.

    Esta palavra soshebin no existe na Escritura, mas a raiz partilhadapor outras culturas do Oriente antigo. Na Babilnia encontramos o susapnu,que no primeiro imprio babilnico (sculo XVIII a. C.) tinha o ius primaenoctis. Com o passar do tempo isso foi abandonado. Passou a ser o amigontimo do esposo que o assistia no dia do casamento, uma espcie de padri-nho. No cdigo de Hammurabi (161), por volta de 1778 a. C., encontramosj a proibio ao amigo do esposo para desposar a prometida, a mulher doamigo (o esposo) no caso de ter contribudo pela via da difamao para queo casamento se realizasse. Esta mesma proibio encontramo-la no cdigosumrio de Lipit-Istar. uma figura relevante nos costumes mesopotmicos.Por isso, esta figura foi absorvida e integrada na cultura judaica. O que faz ososhebin? Ele surge com uma grande responsabilidade jurdica, pois antes

    do casamento o noivo deveria pagar uma quantia (um dote) famlia da noivapara recompensar esta por perder um elemento da mo-de-obra da famlia. Ososhebinvelava por todo o processo e tambm pelo casal durante este tempo.S em Tobias e com Sanso h uma aluso, uma referncia indireta a estafigura, pois o pai de Sanso vai tratar com a famlia da filisteia e Tobit (o pai deTobias) faz desoshebinpara o filho em Tob 8,19.

    De acordo com a Mishnah, ososhebintinha algumas tarefas importantespara que os esponsais corressem bem e se consumassem. Assim, poderia:testemunhar ele mesmo a virgindade da esposa e velar para que na noite denpcias tudo decorresse bem, garantindo a alegria e o conforto do casal; tinhade oferecer uma grande prenda de casamento; tinha de estar presente antesda festa e durante os sete dias da festa; estava at isento de fazer as oraesdurante esses dias, exceto o shem; apesar de no ser formalmente ilegal,o talmude acusa o soshebinde grande gravidade caso ele fique com a pro-metida, caso se envolva com a esposa do amigo (Gittin57); talvez 2 Cor 11,2indique que lhe competia tambm ajudar a procurar uma noiva.

    Por outro lado, sabemos que o ritual matrimonial judaico tinha trs partes:

    cortejo nupcial do noivo at casa da noiva para a ir buscar, ou esti-pulao de um ponto a meio do trajeto para a ir buscar; neste trajeto

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    o noivo era acompanhado pelos seus amigos e pelo soshebin, e anoiva trazia as suas damas de companhia;

    o segundo momento era o banquete propriamente dito nonymphon,

    a cmara nupcial preparada para a cerimnia (cf. Tob 6,14.17; Mt22,10) durava sete dias;

    o terceiro momento era a consumao do casamento na primeiranoite desses sete dias nahuppah(o leito nupcial propriamente dito).

    Ento, o que faz o amigo do esposo de Jo 3,29? Onde est? Existem vriashipteses6:

    depois de levar o esposo esposa (que o espera na cmara nupcial),o soshebin fica de fora da porta a ouvir a voz jubilosa do esposoquando descobre que ela virgem (mas esta uma tese bastantefrgil, porque no h nada disto no Antigo Testamento);

    poder estar na casa do futuro casal espera do esposo que vemno cortejo nupcial acompanhado por outros amigos e familiares quevm entreg-lo aososhebin;

    no caso de Jo 3,29 pode ser que este amigo do esposo que ouve a vozdo esposo seja essesoshebinque ouve o esposo rezar a orao das

    sete bnos (bKetuv7b8)) com a qual se d por concludo todo oprocesso matrimonial, antes de entrar nahuppah(o tlamo nupcial);esta ltima hiptese hoje a mais defendida.

    Este o contexto da celebrao do matrimnio que Jesus conhece.

    4. O Jesus da histria entre a (dis)soluo da lei e do amor

    Esta experincia feliz das bodas de Canaan ela mesma lei e torna-selei j desde o Sinai e desde as origens do Gnesis. Mas ela confronta-se comleis que desmontam esta experincia de amor, que divorciam esta experin-cia. Se por um lado a lei escrita (torah she biktav) de Moiss indica o amor ea fidelidade, proibindo no sexto mandamento a violao do amor verdadeiroe fiel, outras leis ao longo da histria de Israel (como Dt 24,1-4) vo tornar-selei de dissoluo do amor de um modo fcil e arbitrrio. neste contexto queJesus ter de manter-se fiel lei de Deus e ao desejo normal e humano de

    6Cf. Lorenzo Infante,Lamico dello sposo: figura del ministero di Giovanni Baptista nel Vangelo diGiovanni, Roma, Pontificia Universitas Gregoriana 1984, 108-109.

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    amar. Mas sero estas duas instncias, estes dois desejos (o de amar e o deordenar o amor), inconciliveis? Ser que a lei dos fariseus dissolve o amorfiel, no faz caso do sexto mandamento? Ou ser que o amor humano pede

    pura e simplesmente que no se imponha qualquer regra ao corao? Ora, necessrio ver o que nos dizem os textos bblicos e o que diz Jesus. Istoobriga a colocar Jesus entre a lei e o amor, entre a lei que dissolve o amor (nalei dos fariseus) ou que simplesmente a lei escrita no Sinai por Moiss e oamor que recusa qualquer lei, qualquer norma. Neste confronto posiciona-seJesus, entre a lei de Deus e a lei dos homens, entre o amor de Deus e o amordos homens.

    Colocar Jesus entre a lei e o amor, entre a lei de Deus e a lei dos homens,entre o amor de Deus e o amor dos homens,no pretende distanciar Jesus nemde Um nem dos outros, nem da lei de Deus nem da lei dos homens, nem dalei nem do amor, to-somente recolocar Jesus na hebraicidade da provnciada Judeia do primeiro sculo e por a no o reduzir a algum cuja mensagemseria apenas um sentimento sem qualquer relevncia poltica nem incidnciasocial, mas tambm despreocupado da recetividade ou recusa social da suamensagem. Deste modo, pretende-se que a f, ao fazer este exerccio, nos busque cada vez mais o Jesus histrico o melhor que se consegue comotambm saia incrementada e ela mesma mais fiel deste exerccio, no fundo o

    prprio objetivo da exegese bblica. A f visa com este simples exerccio, nsito sua prpria natureza, apenas ser mais fiel. Neste breve percurso servimo--nos de perto das reflexes mais recentes de John Paul Meier, o quarto tomodo JesusJudeu marginal, onde mostra que Jesus no reduz o reino purainterioridade.

    5. Jesus judeu da torahcomo lei moral ou tica

    Se Jesus tivesse apenas pregado uma reflexo sobre a morte ou sobre avida, sobre uma salvao sobre a condio humana, no teriam existido tantashistrias, pois os fariseus e os restantes judeus pregavam isso mesmo. Jesusno teria consequncias se apenas tivesse feito teologia. No outro extremo,tambm no encontraria tanto sucesso nem tantos seguidores se s anun-ciasse uma tica. Muitos outros na Judeia do primeiro sculo faziam o mesmo.Mas antes de pregar, Jesus vive o que ensina, d corpo mensagem do reino,isto , encarna. Jesus foi, por isso, condenado porque ao encarnar protestou

    contra ostatus quo. Questionou as trs instituies fundamentais do judasmoda poca, no porque as contestasse, mas porque desmontou a interpretaoque os fariseus fizeram sobre o sbado, o templo e a lei. Como compreender

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    a atitude de Jesus no que toca ltima, sobretudo? Esta questo sumamentedecisiva para enquadrar Jesus face lei do divrcio e face ao prprio sextomandamento que o probe. Se mandamento da lei de Deus, para obedecer,

    porque caminho para o amor, no para impedir o amor. Porque nem todos osseus contemporneos assim o entendem, Jesus vai entrar em controvrsia noa propsito da lei enquanto tal, mas com a lei a propsito de vrias questescandentes, numa cultura em que de maneira contrria nossa a lei (a torah) entendida como fazendo parte da vida, em que o culto no para separarda vida, em que a lei no para separar privadamente da moral, uma culturaem que a liturgia parte integrante e normal da sociedade, em que a ticano para separar do direito nem da moral (como fez e faz a modernidade).Tal acontece numa Judeia do sculo primeiro em que a categoria de torah difusa, no tem um mesmo significado. A torah, at cannica do ponto devista material do texto bblico do Antigo Testamento, no a mesma para ossamaritanos, para Qumran, para o judasmo grego da dispora de Alexandria.Nesta relao, Jesus no destri nem anula a lei de Deus, no o pode fazer,pois Palavra de Deus a Israel, revelao do Deus dos patriarcas e dos profe-tas. Esta investigao jogada na tenso normal entre a nossa f em Cristo eaquilo que possvel reconstruir de modo muito parcelar sobre o que na his-tria da Galileia do primeiro sculo Jesus disse ou fez. Jesus acolhe, obedece

    e interpreta a torahna sua vida, para a sua vida. O que Jesus nunca faz nempode fazer negar a lei, a torah, que diz no sexto mandamento para no come-ter adultrio e no quarto manda honrar o pai e a me (mantendo uma famliaalargada, que continua a ter no seu seio os mais velhos mesmo quando issocusta). Mesmo que a Palavra de Deus dos Dez Mandamentos esteja formuladano futuro gnmico imperatival antecedido da partcula de negao, Jesus estcomo ns diante de uma exortao ( o que querem dizer as proibies dosDez Mandamentos). Estamos, portanto, diante de um desafio moral, e por isso,ou mesmo apesar disso, formulado de uma maneira vinculante e empenhativa.No mais do que isso.

    Assim, a lei que Jesus vive a de um viveiro onde gerado o amor. Esteviveiro ser uma semente, um sinal diferente dos outros sinais. J na Judeiado primeiro sculo, o judasmo permitia, no viveiros de (no) proximidadee de (no) comunho, mas relacionamentos plurais e ocasionais. Jesus tentaconstruir uma famlia com os seus discpulos e connosco. O ensinamento que a torah (etimologicamente significa isso mesmo, um ensinamento) indicaprecisamente isso, a isso chama, chama ao melhor para ns e por ela e com

    ela Jesus chama ao que melhor para ns. Para isso (para construir uma fam-lia na fidelidade) preciso muito tempo e muita dedicao, preciso um olharconcreto como o olhar do nosso Deus, preciso muita proximidade. Por

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    ser uma famlia diferente, a famlia de Jesus olhada. Se a famlia de Jesusfosse igual s outras, no teria cativado nem seduzido. O mesmo se passacom as nossas famlias e com a famlia grande que a Igreja, lugares do amor

    concreto, orientado, ordenado, dedicado, dirigido, prximo, realmente perto,aproximado. Uma construo deste gnero exige muito tempo, uma famliaassim demora uma vida inteira a construir. Mas so estas que continuam aindaa causar admirao. Se forem iguais s outras no surpreendem nem pro-vocam admirao, pois so iguais, logo no diferentes, comuns, sem nadainteressante. Por isso que Jesus radical no ensinamento do amor indissol-vel, sem solues que o dissolvam, e por isso que Jesus repudia o repdio,pois essa a lei de Deus desde os Gnesis e desde Moiss no sexto man-damento. O judasmo oferecia j dissolventes para o amor, no repudiava osrepudiadores. Ora, esse no o projeto original de Gen 2,24, como recorda eensina Jesus, limitando-se a ensinar o que diz a Palavra de Deus desde as ori-gens. Com esta lei, com estas regras de vida, Jesus deseja o melhor da nossacondio humana, chama-nos ao melhor de ns mesmos, apresentando-nos amedida alta, mas no inalcanvel.

    No que toca ao libelo de divrcio (sepher keritut), este passou de umasimples formalidade prtica ao estatuto propriamente dito de lei de Moiss(cf. Mc 10,3; Mt 5,31-32)7, como o mostra Dt 24,1-4. Jesus radical na crtica

    contra o divrcio (cf. Mc 10,11 // Lc 16,18): ele repudia radicalmente o repdiojudaico farisaico. Esta crtica do Jesus histrico suportada pela aplicaoaos textos dos critrios exegticos histrico-crticos da descontinuidade, daatestao mltipla e do embarao (cf. Mt 19,1-9). Isto significa que, ao lermosos evangelhos, vemos que concretamente Jesus pe-se em descontinuidadecom a prtica cultural judaica instalada e difundida sobre o divrcio. Por outrolado, existe uma atestao mltipla que atravessa os evangelhos sinpticosque relatam um Jesus que repudia radicalmente os que repudiam as suasmulheres. Finalmente, o critrio do embarao recorda-nos que a postura deJesus causou-lhe embarao, causava-lhe dificuldade, causou embarao aosseus prprios discpulos e causou embarao prpria Igreja ps-pascal, aoanunciar esta crtica radical de Jesus quer cultura judaica quer ao mundogreco-romano onde o divrcio estava banalizado. Ora, se esta crtica radical deJesus ao divrcio foi mantida nos textos evanglicos apesar de todas estas difi-culdades, isto assegura-nos que estamos diante de uma prtica e de um ensi-namento que remonta ao prprio Jesus histrico. No entanto, isto no resolvetodas as questes que continuamos a colocar a Jesus, na sua histria, podendo

    7Cf. R. J. Zwi Werblowsky Geoffrey Wigoder, The Oxford Dictionary of Jewish Religion, Oxford1997, 204.

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    apenas faz-lo colocando as questes ao texto e ao contexto. Este esforo derigor pretende iluminar a f para ser mais fiel sempre a Cristo a partir do Jesushistrico. Tal nunca pode pretender justificar por si uma prtica ou problem-

    tica social nossa atual, ou uma prtica pastoral.

    6. Jesus e o divrcio

    O divrcio era comum no Oriente antigo, no era exclusivo de Israel.Alm disso, era algo privado, que acontecia na famlia ou entre famlias, nohavendo uma instituio pblica que decidisse sobre o assunto, pois a torahera aplicada internamente, bastava8. Mas Gen 2,24, o texto da origem para aqual Jesus remete, no diz isso: o homem deixar seu pai e sua me, unir--se- a sua esposa e sero os dois uma s carne. Com isto Israel sabe que,para que se possa considerar que existe um casamento, necessrio que eleseja consumado, que os esposos se unam, no suficiente s o desejo ou ainteno; em Israel no existem casamentos espirituais nem por procurao,mas na carne. Por isso, Israel sabe que Deus desposou o seu povo porqueinterveio concretamente na carne do seu povo, vivendo em conjunto com opovo e acompanhando-o.

    Por outro lado, se o objetivo a unio do marido esposa, ento essapassa a ser a razo de ser da unio o lao de amor entre os esposos. Porum lado legitima a unio corporal como fazendo parte do matrimnio, maspor outro lado tambm a relativiza colocando em primeiro lugar o desejo dosesposos de construrem uma relao em comum, entendendo este desejo noapenas como a inteno de unio de ideias ( mais do que isso). Isto significaque os Gnesis do prioridade ao casal sobre a famlia9; o casamento passa adefinir-se pela unio do casal e no pela descendncia ou pela tradio fami-liar. O critrio passa a ser a experincia exodal do marido que vai ter com afutura esposa para se unir e ficar a viver com ela. Este o projeto de Deus quenem sempre foi respeitado ao longo da histria. Os Gnesis insistem assimna desfamiliarizao do casamento para insistir na liberdade dos esposos,e os Gnesis tambm insistem na dessexualizao do casamento10. Esta aherana de Jesus e de Paulo, e tambm a nossa.

    8Cf. John Paul Meier, Un certain juif Jsus. Les donnes de lhistoire IV, La Loi et lamour, [LeDiv],Paris 2009, 58.9 Cf. Charles Bonnet, De lamour crateur lamour sauveur. In Louis-Marie Chauvet (dir.),Le Sacrement du mariage entre hier et demain, [= Vivre, Croire, Clbrer], Paris, editions deLAtelier / Ouvrires 2003, 203.10Cf. Charles Bonnet,De lamour crateur lamour sauveur, 205.

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    Ao tempo de Jesus, alguns ensinamentos e comentrios da torahoral (shebe-alp) tinham-se tornado lei, tinham adquirido um estatuto igual ao da leiescrita (torah she biktav) de Moiss. Isso atingiu a maneira de lidar com o

    divrcio em Israel. A prtica ps-exlica continuou a secundarizar a Palavra deDeus a Moiss no sexto mandamento e a palavra da torahem Gen 2,24. Isto fezcom que o texto que passou a orientar a prtica de Israel no que diz respeito dissoluo do casamento fosse o texto de Dt 24,1-4, o qual apresenta trscondies na primeira parte (prtese) e uma concluso (apdose):

    1Se [prtese] um homem tomar uma mulher e a desposar, se depois

    ela deixar de lhe agradar por ter descoberto nela algo de vergonhoso (erwat

    dabar), escrever-lhe- um documento de divrcio (sepher keritut), entreg-lo-

    - em mo e despedi-la- de sua casa.2 Se ela, tendo sado de sua casa, for desposar outro homem 3 e se este

    ltimo tambm a desprezar, escrever-lhe- um documento de divrcio (sepher

    keritut), entreg-lo- na mo e despedi-la- da sua casa; ou se o segundo

    marido vier a falecer, ento [apdose]4 o primeiro que a tinha repudiado j no poder despos-la, voltando a

    receb-la como mulher, porque considerada impura. Isso seria uma abomi-

    nao aos olhos do Senhor, e no deves fazer pecar a terra que o Senhor, teu

    Deus, te h de dar em herana.

    Alm desta passagem, o divrcio s tratado no Pentateuco em Dt 22,13--19.28-29; Lv 21,7.13-14. Aqui em Dt 24,1-4 pretende-se limitar o poder discri-cionrio e sem limites do marido, ainda que seja num caso muito particular11, eno se institui o divrcio enquanto tal12. Mas erwat dabar (a nudez de algumacoisa) acaba por fazer ver que a mulher no era mandada embora por razesde imoralidade. um conceito demasiado amplo: bastava uma incapaci-dade em alguma coisa, bastava ficar a descoberto alguma incapacidade eisso era razo suficiente. O targum Onqelosde Dt 24,1 interpreta este erwatdabar como uma byrt (transgresso) sem a especificar; a verso targmicaNeofiti de Dt 24,1 fala em ryb (nudez), enquanto o targum Pseudo Jonathanacrescenta que numa situao destas os filhos no so uma abominao13.Isto mostra que a tradio targmica e tanaatica em Israel tem grandes dificul-dades na interpretao do alcance da ambgua expresso erwat dabar de Dt

    11 Cf. John Paul Meier, Un certain juif Jsus. Les donnes de lhistoire IV, La Loi et lamour,[LeDiv], Paris 2009, 62.12Cf. Peter Craigie, The Book of Deuteronomy, [= NICOT], Michigan 1976, 304.13Ernest G. Clarke, Targum Pseudo-Jonathan: Deuteronomy, [= The Aramaic Bible 5B], Edinburgh1998, 66.

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    24,1. Mas Dt 24,1-4 pretende regulamentar um caso particular: um judeu nopode desposar uma mulher divorciada duas vezes por razes de (im)pureza.Apesar deste caso particular, o que o autor de Dt 24,1-4 pretendeu, sobretudo,

    foi que o divrcio no se transformasse em lei, em regra, em vez de exceo,que no se tornasse banal e indefinido14. Mas no conseguiu. Este texto man-tido em Jer 3,1.2.8 e Is 50,1 no contexto da metfora esponsal para denunciara idolatria e a traio da aliana. Por isso, no so estes textos profticos par-ticularmente incisivos ou especficos sobre esta temtica. Esd 10,11.44 (umtexto do perodo ps-exlio do cronista) at pedia aos homens judeus para sesepararem das mulheres estrangeiras para manter a pureza da terra, temticacara ao deuteronomista.

    A verso qumrnica do difcil texto de Mal 2,16 (se tu a odeias, manda-a

    embora) em 4QXII 2,4-7 aquela que acabar por se impor e difundir mais,

    e que Jesus tambm conhecer; uma viso permissivista, ainda que, obvia-

    mente, ele no a siga. No entanto, esta leitura de Qumran no a nica mesmo

    dentro da comunidade nas margens do Mar Morto. Phlon de Alexandria noDe

    specialibus legisIII.5&30-31 repete Dt 24,1-4 e as respetivas consequncias. O

    mesmo far Flvio Josepho nasAntiquitatae IudaicaeIV.8.23&253, onde mostra

    que para mandar a mulher embora qualquer razo vale15.

    poca de Jesus, o que que o judasmo tem sobre isto? Muito, muito

    pouco. De facto, na cultura patriarcal judaica o divrcio estava banalizado,assumido por via da tradio oral mas no por via da lei escrita de Moiss(como Jesus vai mostrar). Antes do tardio texto de Tob 13,7 no existe qualquerreferncia a um contrato matrimonial (sungraf) entre ambos os cnjuges, ea mulher no tinha qualquer papel no processo de divrcio (de acordo com ostextos cannicos judaicos, excetuando-se o caso da comunidade judaica sin-cretista de Elefantina no Egito no sculo V a. C. e o caso clebre de Herodadeem Mc 6,17 que abandonou o seu marido Filipe para ir para Antipas). Desdelonga data, e poca de Jesus, no judasmo fazia parte do processo de divr-cio a redao de um libelo de divrcio (bblion apostasia). Este sepherkeritut chamado sepher tyrkyn (texto de emisso/expulso) no tgPseudo--Jonathan16, um get pytryn (libelo de abertura) no tgOnqelos, e um igg-ret shybqyn (carta de demisso) pelo tg Neofiti. Ora, este o mundo queJesus encontra, e no qual at os discpulos de Jesus acham normal o divrcio,pois j assim h muito tempo (cf. Mc 10,10; Mt 19,10). Ora, neste contexto,

    14Conforme Peter Craigie, The Book of Deuteronomy, [= NICOT], Michigan 1976, 305.15 Cf. John Paul Meier, Un certain juif Jsus. Les donnes de lhistoire IV, La Loi et lamour,[LeDiv], Paris 2009, 68.16Ernest G. Clarke, Targum Pseudo-Jonathan: Deuteronomy, [= The Aramaic Bible 5B], Edinburgh1998, 65.

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    a incisividade e a crtica de Jesus so, no mnimo, desconcertantes, e pelomenos social e politicamente incorretas. Mas Jesus no se preocupa, ns que por vezes estamos ou ficamos muito preocupados com isso.

    No mundo volta da Judeia do primeiro sculo, Jesus tambm encontraum mundo plural, onde tudo relativo e as relaes matrimoniais tambm.A Grcia e as leis romanas, por exemplo, permitiam a poligenia e o divrcio.Qumran probe a primeira. CD 4,19-5,9 um texto destinado s comunidadesessnias nas margens do Mar Morto, enquanto 11QT 57,15 um texto escato-lgico sobretudo para a comunidade de Qumran. A literatura targmica maisou menos representa e segue a tradio mais farisaica como aquela que aca-bou por ser a mais vigente e comum. Essa tradio ser encontrada depois notargum Onqelos(representante da tradio targmica babilnica) e nos targu-mesPseudo JonathaneNeofiti(os representantes da tradio palestinense tar-gmica no sculo VII d.C. quando o targum Onqelosj se tinha imposto comoo mais importante e o mais difundido). Tudo isto mostra que o judasmo emque Jesus vive no tem a mesma opinio ou a mesma interpretao em todoo lado, no homogneo, sobretudo nesta matria do divrcio e do sepherkeritt. Neste contexto, o que diz Jesus? Mais uma vez, o que dizem os evan-gelhos e Paulo que disse Jesus? Jesus no vai entrar nos detalhes jurdicos oujornalsticos da legalidade ou ilegalidade, mas vai mais fundo (i)licitude.

    O primeiro a escrever Paulo em 1 Cor 7 na segunda metade dos anoscinquenta do primeiro sculo. Depois escreve Marcos, a seguir Lucas, e oltimo Mateus perto do ano oitenta. Antes de Paulo a tradio Q j tinharecolhido ensinamentos nesse sentido, e que vo passar atravs de Paulo aosevangelhos. A questo decisiva agora : o que passou? Pela via da atestaomltipla a questo decisiva ser depois: Jesus radical ou absoluto na crticaque faz ao divrcio e ao libelo de repdio? Se percorremos os testemunhosdo Novo Testamento em sentido inverso, tentando chegar o mais prximo doJesus histrico, comeamos ento com o primeiro evangelho na ordem can-nica, que aps o discurso das Bem-aventuranas na Montanha entra em dia-tribe contra os fariseus em Mt 5,31-32:

    31foi dito: aquele que repudiar a sua mulher, d-lhe o libelo de divrcio.32Eu, porm, digo: todo aquele que repudiar (se divorciar de) a sua mulher,

    exceto em caso de imoralidade (porneia), faz com que ela seja adulterada

    (poiei autn moichetnai); e aquele que casar com uma repudiada comete

    adultrio.

    O v. 31 indica que nem todos davam o libelo de divrcio (cf. Mc 10,3-11 // Lc 16,18), testemunho que est de acordo com a fonte Q (considerada

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    estabilizada entre os anos 45 e 55. O v. 31b faz com que a mulher no tenhaqualquer voz em todo este processo, e o v. 32b mostra que o adultrio queela vier a cometer por casar segunda vez no culpa dela mas do marido

    que a atira para uma situao dessas (o que compreensvel numa socie-dade patriarcal como a judaica do sculo primeiro em que as mulheres notinham o direito de propriedade). Por isso, o verbo est na passiva (moiche-tnai), pois no ela quem comete adultrio, ela levada (aos olhos da lei)a cometer adultrio. Ela vtima, fica totalmente indefesa numa sociedadepatriarcalista e v-se nessa situao obrigada a ir procurar proteo junto deum outro marido, numa segunda relao. tambm contra isto que Jesus inve-tiva, critica a demasiada leviandade com que se as repudia, deixando-as numasituao de desproteo, insustentvel17. Ora, isto conjuga-se com o privilgiopaulino de 1 Cor 7,12-16 e Mt 19,9. Paulo o primeiro a escrever depois de Q,na segunda metade do sculo primeiro. Nos extremos cronolgicos encontra-mos um testemunho comum (Paulo em 1 Cor 7,10 e Mt 19,9). No meio ficamMarcos e Lucas, que no referem a exceo da porneia. Mt 5,31-32 repe-tido e alargado em Mt 19,1-12:

    E aconteceu que, concluindo Jesus estas palavras, deixou a Galileia e

    foi para o territrio da Judeia, alm do Jordo. 2Seguiram-No muitas multides,

    e curou-as ali.3

    Vieram a Ele alguns fariseus para O experimentar e pergun-tavam: lcito ao marido repudiar a sua mulher por qualquer motivo? 4Ele

    respondeu: No tendes lido que o Criador, desde o princpio (arch), os fez

    macho e fmea 5e que disse: Por esta causa deixar o homem pai e me e

    unir-se- sua mulher, tornando-se os dois uma s carne? 6De modo que j

    no so mais dois, mas uma s carne. Portanto, o que Deus uniu (sunezeuxa)

    no o separe o Homem. 7Replicaram-lhe: Porque mandou, ento, Moiss

    dar carta de divrcio (bblion apostasiou) e repudiar? 8 Respondeu-lhes

    Jesus: Por causa da dureza do vosso corao (sklerokardia) que Moiss

    vos permitiu repudiar a vossa mulher; entretanto, no foi assim desde o prin-

    cpio (arch). 9Eu, porm, vos digo: quem repudiar a sua mulher, no sendo

    imoralidade (porneia), e casar com outra comete adultrio. 10Disseram-lhe os

    17Contra John Paul Meier, Un certain juif Jsus. Les donnes de lhistoire IV, La Loi et lamour,[LeDiv], Paris 2009, 88 para quem a exceo da porneia, por no ser usada em Marcos e emLucas, e por no aparecer verdade em 1 Cor 7,10-11, desliga o texto de Mt 19,9 da restantetradio evanglica e paulina. Mas a dvida subsiste: ser que a ausncia de uma palavra sin-nimo sem mais de estarmos perante umaipsissima verba Iesu? Por outro lado, se o prprio Pauloapresenta um ensinamento que no dele mas de Deus, como explicar ento aquilo que seriauma aparente contradio com o ensinamento do prprio Jesus a propsito do caso dos casamen-tos mistos de Corinto em que Paulo concede o famoso privilgio paulino em 1 Cor 7,15?

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    discpulos: Se essa a condio (aita) do homem com a mulher, no convm

    casar.11Jesus, porm, respondeu: Nem todos do espao a esta lgica, mas

    apenas aqueles a quem dado.

    O v. 3 mostra que por qualquer motivo se banalizava o divrcio, que eratido por normal, porque era costume isso no tempo de Jesus; tudo valia pararepudiar a mulher, o que prova que mesmo alguns at tinham dvidas se aaplicao do erwat dabar de Dt 24,1-4 poderia ser to extensiva, tendo emconta tambm que Deus desde a criao (cf. Mt 19,6) sunezeuxa o homeme a mulher (cintou-os juntamente, mostrou-os em conjunto). Isto mesmo rei-terado no v. 8 com a remisso arch. Jesus remete para a origemde Gen2,24 que nem sempre foi respeitada. Mas a investigao exegtica oscila nainterpretao a dar ao v. 9 no que diz respeito referncia porneia: serapenas um eco dos problemas que afligem a comunidade de Mateus ver-sados para o texto bblico, ou remonta ao prprio Jesus histrico? Jesus emMt 19,9 aceita que existam causas que justifiquem a dissoluo da relao,neste caso a imoralidade. Qual o sentido deste termo? A porneia nose restringe apenas ao mbito carnal. A porneia pode assumir muitas face-tas: idoltrica, comportamental, econmica18 (como evidente em Ap 18,3.9e nos profetas19), financeira, moral, se bem que Paulo concentre a semntica

    da porneia na imoralidade carnal contra o sexto mandamento (cf. 1 Cor 5,1;6,13; 7,2). No caso do privilgio paulino de 1 Cor 7,15, Paulo mantm a tradiomateana. O primeiro a escrever e o ltimo dos evangelistas a redigir deparam--se com situaes novas. 1 Cor 7,15 compagina-se com Mt 19,9 e sobretudocom Mt 19,11. Jesus remete para a origem, e no vai entrar na anlise de casosparticulares. Essa anlise j era dada pela lei da torahoral transcrita para Dt24,1-4. Isso no impede que cada caso seja confrontado com o princpio, coma norma, com a torah, com o ensinamento da lei.

    18 Ver o nosso trabalho: Jos Carlos Carvalho, Esperana e resistncia em tempos de desen-canto Estudo exegtico-teolgico da simbologia babilnica de Ap 18, [= Biblioteca Humansticae Teolgica 19], Porto, UCP 2009, 285, 323-326, 342, 470-476.19Cf. Ez 25-27; Jer 50-51. Neste sentido ver Jan Fekkes,Isaiah and prophetic traditions in the Bookof Revelation. Visionary Antecedents and their Development, [= JSNTSS 93], Sheffield 1994, 306;Daniel J. Harrington Anthony J. Saldarini, Targum Jonathan of the Former Prophets Introduction,Translation and Notes. In Martin McNamara (dir.), The Aramaic BibleX, Edinburgh 1987, 304;Ulrike Sals, Die Biographie der Hure Babylon. Studien zur Intertextualitt der Babylon-Textein der Bibel, [= FAT II.6, 2.Reihe], Tbingen 2004, 131.469; Jean-Pierre Ruiz, Ezekiel in theApocalypse: the transformation of prophetic language in Revelation16,17-19,10, [= EUS 23.376],Frankfurt am Main, Peter Lang 1989, 305.

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    Sntese

    Paulo remete para o mandamento do Senhor sobre o casamento mono-

    gmico em 1 Cor 7,10-11, ou seja, ratifica (como no podia deixar de ser) omandamento de Jesus de Mc 10,2-10; Mt 19,3-9; 5,31-32; Lc 16,18, que por suavez ratifica (como no podia deixar de ser) a lei de Deus do Antigo Testamentonaquilo a que Manzi denomina os elementos de continuidade entre a revela-o de Cristo e a revelao vetero-testamentria20.

    No episdio da mulher pecadora (cf. Lc 7,34-50) e da mulher adltera(cf. Jo 7,53-8,11) Jesus no se comporta como seria normal para um judeu,banindo quem lhe surge aos ps e se lhe colocava impuro aos olhos da her-menutica farisaica. Jesus acolhe os pecadores e as pecadoras independen-temente do respetivo pecado. Jesus distingue o pecado do pecador, distingueo erro da pessoa que erra. O que Jesus repudia o repdio na demasiadafacilidade com que era passado. Diante dos pecadores, Jesus acolhe. Comisto tudo Jesus mostra uma grande sensibilidade e sobretudo muito realismo,e por causa disto Paulo, juntamente com Mt 19,9, matiza o no radical de Jesusao divrcio21. Reconhece que nem todos conseguem dar espao ao respeitoda torah, uns porque relativizaram demasiado a lei de Deus e outros porque aabsolutizaram. A pergunta dos discpulos de Jesus , no mnimo, lgica, por-

    que eles viam a dissoluo muito fcil das relaes a tal ponto que isso oslevava a pensar que no podiam nunca confiar em ningum ou vir a ter a cer-teza em algum. Eram tantos os casos e tais as fragilidades e leviandades queat tinham medo de se casar, numa cultura como a sua em que o divrcio eracomum e na qual continuava a ser frequente a poligamia que vinha j desdeos tempos patriarcais22. O que Jesus repudia o repdio. Por outro lado, no possvel acompanhar a concluso taxativa de John Paul Meier, segundo a quala exceo de Mt 19,9 desliga-se da anterior tradio quer paulina, quer sinp-tica quer da fonte Q. Se h ligao qual esta percope permanece ligada, tradio paulina, a qual, por sua vez, tal como Jesus, remete para o esprito dalei, remete para a origem e no para o comeo de uma tradio que foi sendo

    20Cf. Franco Manzi, Mos vi ha permesso ... ma io vi dico (Mt 19,8-9). Il matrimonio nel NuovoTestamento,La Scuola Cattolica140/1 (2012) 33.21Armand Puig i Trrech classifica o no de Jesus como absoluto e no como radical: en qualse-vol cas, tant Mt como 1Co matisen el carcter absolut del no de Jess al divorci: Armand Puig iTrrech,El lloc del Jess de la histria i de la histria de Jess en lvangeli de Pau. In Idem (a curade),Pau, Fundador del Cristianisme?,[= Scripta Biblica 12], Abadia de Montserrat Tarragona2012, p. 98 nota 30.22Cf. Franco Manzi, Mos vi ha permesso ... ma io vi dico (Mt 19,8-9). Il matrimonio nel NuovoTestamento,La Scuola Cattolica140/1 (2012) 35.

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    imposta por via da tradio oral em Israel revelia da tradio escrita e devido dureza dos coraes.

    Com efeito, Jesus amou a famlia, foi amado por uma famlia, faz festa pela

    famlia, e como judeu critica a destruio da mesma. Da a sua crtica radicalao divrcio em nome da lei do Pai. Jesus no vai entrar na curiosidade jornals-tica da pergunta dos fariseus: saber se um judeu poderia casar outra vez comuma mulher divorciada j duas vezes, se era possvel uma terceira oportuni-dade. Jesus vai colocar a questo ao nvel da origem e do princpio criatural, oque no resolve o problema (e isso consideramos pastoralmente decisivo) dacasustica. Nesse sentido, Mt 19,9 no contradiz 1 Cor 7,2 nem a fonte Q con-substanciada em Mc 10,3-11 // Lc 16,18 e Mt 5,31-32. Se bem que num outrocontexto, o privilgio paulino se depara com a mesma dificuldade da comu-nidade palestinense mateana, e no nega a necessidade da observncia dafidelidade conjugal, nem nega a crtica radical de Jesus ao divrcio. Essa era aquesto que estava em causa e que foi colocada a Jesus. Nesse sentido, podeconsiderar-se que Jesus radical na crtica ao divrcio, mas no absoluto.

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