jesus cristo - história e mistério - frei joaquim carreira das neves

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JESUS CRISTO - HISTRIA E MISTRIOFrei Joaquim Carreira das NevesNDICEIntroduo ...4 1. O JUDASMO DOS TEMPOS DO PS-EXLIO ...4 1.1. O judasmo no perodo persa ...4 1.1.1. Do tempo bblico ao tempo das Escrituras Sagradas...5 1.1.2. Do tempo de Israel ao tempo de Jud ...5 1.1.3. Do tempo dos profetas ao tempo dos sacerdotes ...6 1.1.4. Do tempo do hebraico ao tempo do aramaico ...7 1.1.5. Do messianismo davdico ao novo messianismo ...7 1.2. Do tempo da profecia ao tempo da apocalptica ...11 2. OS JUDEUS E O IMPRIO GREGO...15 3. OS JUDEUS E O IMPRIO ROMANO ...18 4. A GEOGRAFIA DE ISRAEL NO TEMPO DE JESUS ... 19 5. OS GRUPOS RELIGIOSOS DE ISRAEL ... 23 5.1. Os fariseus...23 5.2. Os saduceus ...26 5.3. Os escribas ...28 6. INSTITUIES RELIGIOSAS DE ISRAEL ...30 6.1. Sbado ...30 6.2. Templo ...33 6.3. Lei ...37 7. A QUESTO SINPTICA ...41 7.1. Pai Nosso...43

7.2. Bem-aventuranas ...44 7.3. ltima Ceia ...46 7.4. Ascenso do Senhor ...48 7.5. Pregao de Joo Baptista ...51 8. O JESUS DA HISTRIA ...52 9. O JESUS DA TRADIO ...54 10. O JESUS DA REDACO ...57 11. AS DUAS FONTES ...59 12. A FONTE QUELLE (Q) ...61 13. A DOUTRINA DOS TEXTOS EVANGLICOS DA FONTE QUELLE ... 64 14. DO JESUS DA HISTRIA AO CRISTO DA F ...66 15. JESUS E OS JUDEUS ...72 16. EVANGELHOS DA INFNCIA ...76 17. JESUS E JOO BAPTISTA ...81 18. BAPTISMO DE JESUS ...83 19. TENTAES DE JESUS ...85 20. REINO DE DEUS ...87 21. MILAGRES DE JESUS E REINO DE DEUS ...96 22. PARBOLAS E REINO DE DEUS ...96 23. DISCPULOS E REINO DE DEUS ...101 24. JESUS E A IGREJA ...105 25. ENTRADA EM JERUSALM E PURIFICAO DO TEMPLO ...109 26. CEIA PASCAL ...113 27. PROCESSO DA PAIXO E CRUCIFICAO ...115 28. A RESSURREIO DE JESUS ...117 29. PARUSIA OU SEGUNDA VINDA DE JESUS CRISTO ...121 BIBLIOGRAFIA ...134

INTRODUOA pessoa de Jesus Cristo divide a histria em duas partes: antes de Cristo e depois de Cristo. Continua a ser a personagem mais importante da humanidade, mesmo para aqueles que no acreditam nele maneira dos cristos. Quem foi Jesus? O verdadeiro e nico Filho de Deus, igual a Deus e ele prprio Deus? Foi apenas um simples homem, o mais santo de todos? Foi apenas um grande revolucionrio religioso, que, por isso mesmo, determinou uma nova maneira de ver Deus e o homem, uma nova civilizao humana? A finalidade deste livro , precisamente, responder a todas estas questes, tendo em conta os estudos mais recentes dos exegetas, isto , dos especialistas na Bblia. Procuramos evitar, com raras excees, as notas de rodap, para no sobrecarregar o texto e, sobretudo, os leitores. No fim do livro, os leitores encontraro Bibliografia mais atualizada sobre cada um dos captulos. No temos a inteno de debater a pessoa de Jesus apenas atravs das variadssimas posies de historiadores e exegetas, mas sim de a apresentar luz da histria e cultura do seu tempo, segundo os dados mais recentes dos estudos histricos e bblicos, e luz da f das comunidades crists primitivas de acordo com o estudo dos evangelhos, mormente dos evangelhos sinpticos. Seguimos, em grande parte, o modelo que apresentamos no programa televisivo da Igreja Catlica Ecclesia ao longo do ano dois mil. Mas retocamos e alongamos alguns desses programas, sobretudo o primeiro sobre o mundo da geografia humana, poltica e religiosa do tempo de Jesus, e o ltimo sobre a Segunda Vinda de Cristo. No comeamos pelo tempo histrico de Jesus mas pelo tempo do ps-exlio para compreendermos melhor as linhas culturais e religiosas dos judeus que desembocaram no tempo de Jesus. Sem este estudo histrico e cultural dificilmente poderemos perceber a grandeza e a histria de Jesus, o que o torna um judeu igual aos outros e diferente dos outros.

1. O JUDASMO DOS TEMPOS DO PS-EXLIODevemos comear por compreender que o Judasmo sofreu, ao longo dos tempos, muitas evolues e modificaes, o que absolutamente normal porque se trata duma religio histrica. Por isso, a f israelita dos tempos dos patriarcas bem diferente da dos tempos de Moiss e dos profetas, e esta da dos tempos do ps-exlio. A ltima fase da religio bblica tambm chamada a fase do Segundo Templo ou do "perodo intertestamentrio", que vai desde a reconstruo do Templo de Salomo por volta de 515 a.C., uns setenta anos depois da sua destruio pelos babilnicos, at sua destruio final no ano 70 da nossa era. Neste perodo histrico h que distinguir entre o tempo do imprio persa, o tempo do imprio helnico e o tempo do imprio romano. Desde o exlio da Babilnia, no sculo VI A.C., at aos nossos dias (1948), nunca mais os judeus tiveram uma nacionalidade prpria. Por isso mesmo, h que compreender as idias gerais e fundamentais do judasmo nestes trs tempos histricos para compreendermos tambm a pessoa de Jesus.

1.1. O JUDASMO NO PERODO PERSA.Durante este "perodo intertestamentrio", que comea sob o domnio do imprio persa (559-333 a. C.) do-se muitas modificaes polticas e religiosas internas ao judasmo em comparao com os tempos antes do exlio da Babilnia. Teramos, assim, um "antigo judasmo" e um "novo judasmo", que tem como pontos fundamentais a questo de Israel como nao dependente dos trs imprios, a questo das Escrituras Sagradas, do Messianismo, da Apocalptica e dos diversos grupos sociais e religiosos que vo surgindo dentro do povo de Israel, sobretudo depois da reconquista dos Macabeus.

1.1.1. Do tempo bblico ao tempo das escrituras sagradas.O tempo do judasmo de Jesus fruto deste "novo judasmo". o tempo em

que as Escrituras Hebraicas comeam a fazer parte integrante da f judaica, incluindo, por enquanto, apenas as duas seces mais importantes das mesmas Escrituras: a Tor (a Lei ou o Pentateuco) e os Nebiim (os Profetas). A terceira parte, os chamados Ketubim (os Escritos) s aparecem um pouco mais tarde, isto , a partir do "novo judasmo". Quando o Novo Testamento se refere s Escrituras que contm o plano de Deus sobre a humanidade, a comear pela prpria pessoa de Jesus e pelos seus discpulos s tem em vista as duas primeiras seces, a Lei e os Profetas, juntando-lhes tambm os Salmos. Mas, no tempo de Jesus, estas sagradas Escrituras tambm j tinham sido objeto de interpretaes de rabinos e de escolas interpretativas, de grupos religiosos e at de tradues gregas. Tanto Jesus como as igrejas primitivas no dependiam exclusivamente do Livro, mas tambm das suas interpretaes. Basta considerarmos a interpretao apocalptica, a interpretao dos essnios ou qumranitas, a tradio de Hilel, a traduo grega dos Setenta, a escola interpretativa de fariseus e saduceus, etc. Tudo isto tem o mximo interesse porque nos leva a concluir que os hagigrafos ou autores finais das sagradas Escrituras Hebraicas tinham em vista a apresentao da Palavra de Deus de acordo com o desenvolvimento da histria. Os hagigrafos so homens sujeitos s leis da histria. O que eles escrevem so as suas tradies de f judaica, ao longo dos sculos, como catequeses fundamentais para a sua vida de f no presente e no futuro. A partir de agora aquelas Escrituras eram cnon de vida. Como escrevia um rabino judeu do sculo segundo da nossa era, o Rabbi lshmael, "as Escrituras falam atravs da linguagem humana". Neste falar de Deus "atravs da linguagem humana" junta-se Deus e a histria, a causa primeira e as causas segundas. A Palavra no cai do cu terra de qualquer maneira, mas encarnada na histria. A teologia e a histria so como que duas irms siamesas, que no podem ser separadas de qualquer maneira e feitio, e por isso que as Escrituras j incluem dentro de si mesmas a sua prpria interpretao histrica. Tambm por causa disto mesmo que os judeus consideram como importante, para no dizer sagrada, a tradio judaica que desemboca na Mishna (ca. 200 d.C.) e nos Talmudes (400-500 d.C.). Nas suas sinagogas, tanto hoje como antigamente, os judeus referem, por vezes, mais a doutrina da Mishna e dos Talmudes do que as suas sagradas

Escrituras, uma vez que tanto a Mishna como os Talmudes no so mais do que interpretaes das mesmas Escrituras aplicadas ao tempo histrico. o que acontece tambm com a doutrina dos chamados Padres da Igreja em relao aos cristos. Em concluso, as Escrituras hebraicas e crists so fruto dum dinamismo de f em que o autor principal, Deus, e Jesus Cristo, respectivamente, nos falam pela histria e seus mediadores. O Novo Testamento cristo contm a pregao de Jesus de mistura com a pregao dos responsveis das igrejas crists primitivas. Como essas igrejas sofriam a presso contrria dos judeus daquele tempo, as mesmas Escrituras crists apresentam os judeus por vezes com cores muito negativas, o que levou a uma tomada de posio, negativa e anti-semita, da parte dos cristos, ao longo dos sculos. J que os judeus no aderiram a Jesus, o mesmo Deus os teria abandonado e rejeitado para os substituir pelo novo povo de Deus. Ora Deus no abandona nem os judeus nem qualquer outro povo, pois todos os povos so de Deus. Foi a histria que levou os chefes judeus daquele tempo a rejeitarem Jesus, mas esta rejeio histrica e no divina. Ao longo do nosso estudo, veremos como esta relao de confronto entre judeus e cristos se estabeleceu a partir do prprio Jesus e se radicalizou a partir das comunidades crists primitivas. E a partir de todo este conjunto de fatores que se constituem as novas Escrituras crists do Novo Testamento.

1.1.2. Do tempo de Israel ao tempo de JudPara compreendermos melhor este "novo tempo judaico", a partir dos tempos ps-exlicos, h que ter em conta o novo paradigma histrico e geogrfico e o novo paradigma religioso motivado pelo desaparecimento dos profetas e da monarquia. Quanto ao novo paradigma histrico e geogrfico, os israelitas deixam de se chamar israelitas (os B'nai Yisrael - filhos de Israel) para se chamarem apenas Judeus, precisamente porque ficaram reduzidos ao pequeno territrio de Jud com a sua capital em Jerusalm e sua vida cultural centrada no seu Templo (cf. Ne 5, 14: "Desde o dia em que o rei me estabeleceu como

Governador da regio de Jud..."). Os samaritanos bem quiseram juntar-se aos Judeus na reconstruo do Templo, mas os responsveis judeus, Esdras e Neemias, no aceitaram semelhante ajuda por causa da religio meio judaica e meio pag dos samaritanos. E foi assim que surgiram as inimizades entre judeus e samaritanos que vamos encontrar no tempo de Jesus. Os prprios samaritanos construram o seu Templo no monte Garizim para rivalizar com o de Jerusalm. O mesmo acontece com os antigos israelitas da Galilia misturados com os colonos da antiga Babilnia e da Assria e com os novos colonos do imprio persa (cf. Esdras e Neemias). Para os persas, comandados pelo seu rei Ciro, que libertaram os judeus do jugo da Babilnia, os israelitas, quer vivessem fora de Israel, espalhados pelas 127 provncias do imprio, ou dentro de Israel, passaram a ser chamados de Judeus, isto , pessoas da terra de Jud. A palavra Israel passa, desde agora, a significar o Israel histrico do passado e o Israel de um futuro ideal e messinico.

1.1.3. Do tempo dos profetas ao tempo dos sacerdotes.Outro aspecto importante relaciona-se com os profetas. Antes do exlio, os profetas eram a alma espiritual e crtica da teocracia. Mas uma vez que deixou de haver teocracia real devido ao desaparecimento dos reis tambm desapareceram os profetas. Depois do exlio temos apenas os trs profetas Ageu, Zacarias e Malaquias ligados reconstruo do Templo e ao restabelecimento do sacerdcio e do novo estado de Jud, defendendo uma certa linha fundamentalista das tradies sobre a santidade cultual, seguindo de perto as reformas de "Esdras - o - Escriba" e Sacerdote sobre as leis do casamento apenas com judeus e sobre as leis do sbado e do Templo. Enquanto que nos profetas, antes do exlio, encontramos crticas duras dos mesmos profetas por causa das tendncias dos israelitas para os cultos pagos da fecundidade, isto , para os dolos, agora tais crticas no aparecem nos trs profetas ps-exlicos. Criticam, sim, o cinismo dos sacerdotes que passaram a representar o centro vital da prpria religio judaica, uma vez que no h mais profetas nem rei. Mesmo assim, os judeus, neste "novo judasmo" tm a mxima considerao pelo Sumo Sacerdote e tambm, pelo

menos em certa medida, pelos prprios sacerdotes, como mediadores entre Deus e o povo. Uma vez que os velhos profetas desapareceram e que apenas trs - Ageu, Zacarias e Malaquias - so referidos, e todos eles do tempo de Esdras e Neemias, o povo interroga-se, pouco a pouco, porque que isto acontece. Ao relembrarem o passado e, sobretudo, o castigo do exlio, atribuem tal castigo ao fato dos antepassados no terem ouvido a voz atenta dos seus profetas. Mas o fato histrico que Deus no enviou ao seu povo mais algum profeta maneira dos tempos bblicos. E desta maneira que surge o desejo e a nostalgia pelos tempos passados em que Deus se fazia ouvir diretamente pelos profetas, e que vai influenciar a natureza da pessoa de Jesus com o seu messianismo proftico. Mas o aparecimento das Escrituras Hebraicas implica, de certo modo, o desaparecimento dos profetas porque a Palavra de Deus est ali representada naquela Tor e naqueles profetas. Tudo o que viesse a mais seria como que aumentar as Escrituras j consignadas, lidas em hebraico, traduzidas em aramaico e explicadas pelos sacerdotes e pelos escribas. O novo povo de Jud tem as suas Escrituras, o seu novo Templo e os seus sacerdotes. O ciclo cultural e religioso ficou fechado. Os profetas so substitudos pelos sacerdotes e pelos escribas ou sbios, Deus que, outrora, falou pelos profetas, agora fala pelos sacerdotes e pelos escribas/sbios. Um ponto alto na atividade de Esdras consistiu no fato de ele ler ao povo o Livro da Lei que trouxera da Babilnia. Mas, segundo o captulo oitavo de Neemias, a leitura da Lei feita por Esdras confunde-se com a leitura da mesma Lei feita por outros responsveis, que no se limitavam apenas a ler o livro da Lei, mas tambm "explicavam o seu sentido, de modo que se pudesse compreender a leitura" (Ne: 8, 8). Este captulo oitavo de Neemias compendia numa nica aco e num nico dia a prtica sabtica e sinagogal dos Judeus que liam e interpretavam a Tor. Semelhante leitura e interpretao significa - o que de suma importncia - que as velhas tradies hebraicas sobre a Tor e, depois, sobre os profetas, se tornam Escritura, Credo e Cnon. Os tempos bblicos no foram tempos de Escritura. Os Patriarcas, Moiss, Josu, David, Salomo e os Profetas no tinham uma Bblia. Apenas viveram a histria da sua f monotesta, com altos e baixos, e

foi esta histria de f que agora se faz Bblia escrita e sagrada, lida, traduzida e interpretada, como vimos, pelos sacerdotes e pelos escribas/sbios.

1.1.4. Do tempo do hebraico ao tempo do aramaico.Como vimos, nesta interpretao da Lei intervm um novo fato, o da prpria lngua, uma vez que se passa do hebraico para o aramaico. O hebraico passa a ser a lngua sagrada dos antepassados e das Escrituras enquanto que o aramaico se torna a lngua falada, importada da Babilnia, e lngua comum daqueles povos do Prximo Mdio Oriente durante vrios sculos. O aramaico foi, portanto, a lngua comum do povo judaico durante o perodo do ps-exlio at ao tempo dos romanos. Foi, tambm, a lngua de Jesus e dos Doze Apstolos. Isto significa que os judeus liam as suas Escrituras em hebraico e traduziam-nas para aramaico. Mas tambm sabemos que as tradues implicavam a prpria interpretao, o que vem a dar nos clebres Targumes bblicos, dos quais conhecemos alguns de tempos mais tardios. Trata-se de obras em que se mistura o texto bblico com a sua traduo e respectiva interpretao, onde no faltam lendas ou contos para melhor explicitar essa interpretao.

1.1.5. Do messianismo davdico ao novo messianismo.Neste "novo judasmo" aparece tambm uma nova maneira de compreender o messianismo. As antigas idias messinicas baseavam-se na promessa de Natan feita a David sobre o presente e o futuro da sua dinastia como aparece em 2Sm 7, 12-16: "Quando chegar o fim dos teus dias e repousares com teus pais, manterei depois de ti a descendncia que nascer de ti e consolidarei o seu reino. Ele construir um templo ao meu nome, e eu firmarei para sempre o seu trono rgio. ... A tua casa e o teu reino permanecero para sempre diante de mim, e o teu trono estar firme para sempre". Aquilo que o profeta promete a David e sua dinastia que Deus nunca mais abandonar essa linha real. Por isso mesmo, esta promessa foi transformada,

pouco a pouco, diante de crises e dificuldades da "casa de David", em messianismo davdico. A palavra messias significa ungido, que em grego se diz christos ou Cristo. Tudo comeou pelos reis, os ungidos do Senhor. Eram os "alter ego" do prprio Deus, que deviam reger o seu povo segundo a vontade do mesmo Deus, com justia e com verdade, defendendo sobretudo os mais pobres: peregrinos, rfos e vivas. Diante das crises polticas e sociais, os profetas e os salmistas vo repetindo que Deus manter a sua palavra sobre este messias/ungido real da dinastia de David. Basta ler com ateno Is 7, 14; 11, 10-16; Ez 29, 21; SI 18, 51;89, 28-38; 132, 11-12; Hb 3, 13. Ns, cristos, estamos habituados a falar do Messias e do messianismo como se se tratasse duma nica realidade ou personalidade por causa da pessoa de Jesus, o Messias de Deus. Mas no judasmo da Tor e dos Profetas, como, tambm, mais tarde, no judasmo do ps-exlio, no existe qualquer "Credo" normativo sobre a figura do Messias. Tanto Jesus como a posterior cristologia que interpretaram os velhos textos bblicos referindo-os pessoa de Jesus-Messias e cristologia messinica. Os velhos textos bblicos nunca se referem, de maneira clara, vinda de um Messias. Referem, sim, a proteo de Deus, primeiramente, atravs dos reis davdicos e, mais tarde, tambm atravs de profetas e sacerdotes. Sobre a figura do profeta futuro, que Deus h de mandar, l-se em Dt 18, 15: "O Senhor, teu Deus, suscitar no meio de vs, dentre os teus irmos, um profeta como eu [Moiss]; a ele deves escutar." Como vimos, a palavra mashiah significa ungido, e era aplicada sobretudo aos reis davdicos, mas tambm se diz que o rei pago Ciro era um "ungido de Deus" (Is 45, 1). Por isso, este "velho" messianismo tinha a ver, como afirmamos, com a proteo de Deus atravs dos seus intermedirios, especialmente os reis. E quando a monarquia acaba com a conquista de Jerusalm por Nabucodonor em 583 a.C., vai surgir uma nova idia messinica volta de vrias figuras. Assim se explica que os trs profetas do ps-exlio, Ageu, Zacarias e Malaquias, no se encontrem muito vontade com este assunto uma vez que a dinastia de David tinha soobrado. Faltou, ento, Deus sua palavra sobre a proteo prometida para sempre para com a dinastia davdica? A verdade

que Zacarias mantm-se na corda bamba entre o messianismo do rei Zorobabel e o do Sumo Sacerdote Josu. Josu recebe a tiara limpa (3, 5), chamado o Grmen messinico (3, 8; 6, 915). Mas tambm se l sobre Zorobabel: "Eis a palavra do Senhor a respeito de Zorobabel: 'No pelo poder nem pela fora, mas pelo meu esprito - diz o Senhor do universo" (4, 6b). A frase est incompleta, mas a sua significao, embora sincopada, clara: "No pelo poder e pela fora, mas pelo meu esprito que Zorobabel h de governar...". Um pouco mais adiante l-se ainda em Zacarias 4, 10: "Todos ho de rejubilar, ao verem a pedra escolhida na mo de Zorobabel." Esta sobreposio messinica entre o Sumo sacerdote e o rei faz com que Zacarias classifique Josu e Zorobabel de "dois ramos de oliveira" como "os dois ungidos que assistem o Senhor de toda a terra" (4, 14). Na realidade histrica, estes textos, um tanto ou quanto confusos apenas nos dizem que estas duas figuras foram importantes e que, neste tempo, ainda subsistia a idia messinica ligada casa real de David atravs de Zorobabel. Mas a verdade que o imprio persa deixa cair Zorobabel por razes que ns desconhecemos e so os Sumos Sacerdotes que, daqui para o futuro, vo representar o prprio Deus. A teocracia passa do rei para o Sumo sacerdote. E assim que, daqui para o futuro, surgem as figuras "messinicas" do Rei e do Sumo Sacerdote como resposta aos fracassos dos tempos passados da monarquia davdica. O clebre exegeta R. E. Brown afirma - e com razo que "na histria do judasmo antes de 130 d.C. no temos qualquer prova de que um judeu vivo seja referido como o Messias, exceto Jesus de Nazar. Tambm nenhum judeu, neste perodo, aparece identificado coma figura do Filho do Homem de Daniel, exceto Jesus. Mais ainda, Flvio Josefo s emprega a palavra Christos - e apenas duas vezes -, pessoa de Jesus. Mas o livro de Zacarias no apresenta apenas as duas figuras histricas de Josu e Zorobabel como prefiguraes messinicas. Ele vai mais longe e fala dos tempos messinicos que se ho de realizar na utopia dum novo povo dirigido diretamente por Deus (Zc: 8) ou dirigido por um rei futuro diferente dos reis do passado:

Exulta de alegria, filha de Sio! Solta gritos de jbilo, filha de Jerusalm! Eis que o teu rei vem a ti; ele justo e vitorioso; vem, humilde, montando num jumentinho, filho de uma jumenta. Ele exterminar os carros de guerra da terra de Efraim e os cavalos de Jerusalm; o arco de guerra ser quebrado. Proclamar a paz para as naes. O seu imprio ir de um mar ao outro. E do rio s extremidades da terra. (Zc 9, 9-10). Todos sabemos que estes textos vo ter a mxima importncia para os cristos primitivos, quando os aplicarem ao prprio Jesus como o verdadeiro Messias de Deus. E os judeus ficaro sempre com um "sabor amargo" na boca pela no realizao das promessas messinicas, sempre em sentido amplo de libertao poltica, razo porque no entenderam o messianismo de Jesus e a sua pregao sobre o "Reino de Deus", como veremos ao longo do nosso estudo. Os chamados Salmos de Salomo, de feio farisaica e do tempo de Jesus, suspiram pelo ungido davdico, rei e soberano, que acabaria com todos os inimigos de Israel e implantaria um reino de paz e justia, a partir de Israel e se estenderia a todos os povos (SI. 18, 5). Com a descoberta dos textos de Qumran, a questo messinica recebe novas dimenses. Vamos apresentar os textos principais, seguindo de perto a obra recente de J.A. Fitzmyer sobre este assunto. 1. No chamado Manual de Disciplina (lQS) l-se em 9, 11: ... mas eles sero governados pelos primeiros regulamentos, pelos quais os homens da comunidade comearam a ser instrudos, at que venha um profeta e o Messias de Aaro e Israel. ". O contexto tem a ver com os responsveis qumranitas dos "conselhos da Lei". Estes "conselhos" tm validade at chegada do tal profeta e dos Messias de Aaro e de Israel. Aparecem, pois, trs figuras "messinicas". O profeta s pode referir-se passagem do Dt 18-, 15.18, o Messias de Aaro ou Sacerdotal passagem de Zc 6, 12-13, e o Messias de Israel s passagens j apresentadas sobre o rei davdico.

2. IQSa 2, 11-12: Esta a assemblia dos homens famosos [convocados] para a reunio do conselho da comunidade, quando [Deus] criar o Messias entre eles. Ele ficar cabea de toda a congregao de Israel e de todos os [seus] irmos, os filhos de Aaro, os sacerdotes." Neste texto s aparece um Messias ou o Messias (com o artigo definido). 3. 1QSa 2, 14-15: "Em seguida, o [Messias de Ysrael tomar [o seu lugar] ". O Messias de Israel, como j sabemos, o Messias davdico que, neste caso, se juntar assemblia da comunidade "no fim dos tempos". Este Messias davdico vem a seguir ao Messias Sacerdotal, que preside assemblia da comunidade no fim dos tempos. O Messias Sacerdotal tem sempre a primazia. 4. 1QSa 2, 20-21: "Em seguida, o Messias de Israel por a sua mo sobre o po.". Como no texto anterior, o Messias de Israel precedido pelo "Sacerdotal" (2, 19), o primeiro a abenoar o po e o vinho, at que chegue "o fim dos dias." 5. 4QpGen (4Q252) 1, 3-4: " ... e os milhares de Israel so os "estandartes" at que venha o Messias de justia, o rebento de David" Estamos diante de um pesher ou comentrio proftico sobre o livro do Gnesis 49, 10, onde se l: "O cetro no escapar a Jud, nem o basto de comando sua descendncia, at que venha aquele a quem pertence o comando." O comentador junta o Messias de justia ao rebento (tse. mah) de David e - o que importante - fala explicitamente do Messias e no apenas "daquele a quem pertence o comando." O mtodo exegtico que explicita o que no texto original apenas implcito tambm ( um mtodo recorrente em todo o Novo Testamento. A figura do rebento davdico com sentido salvfico e de messianismo abrangente aparece em Is 11, lss; Jr 23, 5; Zc 3, 8 e 6, 12. 6. Documento de Damasco (CD) 12, 23-13, 1: "So os que caminham de acordo com estes (estatutos) nos tempos finais, que so maus, at que surja o Messias de Aaro e de Israel; e eles formaro grupos de dez homens...". Uma vez mais, aparecem os dois Messias, o Sacerdotal e o davdico, agora

relacionados com o final dos tempos. O mesmo se afirma em CD 14, 18-19; 19, 10 e 19, 35-20, 1. 7. 4Q2521 2 col.II + 4: 1 porque os cus e a terra ho de ouvir o seu Messias, 2 [e tudo aquilo que] existe neles no se afastar dos preceitos dos santos. 3 Sede fortes no seu servio, vs os que procurais o Senhor! 4 Porventura no encontrareis o Senhor nisto, vs os que esperais nos vossos coraes? 5 Porque o Senhor observar os piedosos e chamar os justos pelo nome. 6 Colocar o seu esprito nos humildes, e com a sua fora renovar os fiis. 7 Ele honrar os piedosos num trono de realeza eterna, 8 libertando os prisioneiros, dando a vista aos cegos, endireitando os coxos. 9 Inclinar-me-ei para sempre sobre os que esperam, e na sua misericrdia, ele os recompensar; 10 o fruto duma boa obra no ser retardado a ningum. 11 O Senhor far aes gloriosas como nunca se viram, como disse, 12 porque curar os feridos e far reviver os mortos e proclamar a boa nova aos aflitos; 13 saciar os pobres, guiar os desviados e enriquecer os esfomeados; 14 e os instrudos ... e todos sero como santos. Neste texto, a pessoa do Messias mistura-se com a pessoa de Deus. Assim se explica o sufixo "seu": o seu Messias, isto , o Messias de Deus - os cus e a terra ho de ouvir o Messias de Deus. O importante consiste nesta esperana do cu e da terra sobre a vinda futura do Messias de Deus. O sujeito operativo de todas as benfeitorias Deus: "o Senhor observar os piedosos ... colocar o seu esprito nos humildes ... libertar os prisioneiros... dar a vista aos cegos ... enriquecer os esfomeados... O texto um pequeno "florilgio" do Si 146; Is 34, 1; 35, 5 e 61, 1. O Messias que os cus e a terra esperam um Messias profeta e no um rei. Jesus, na sinagoga de Nazar refere a sua pessoa como sendo este profeta (Lar, 4, 21: "Cumpriu-se hoje mesmo esta passagem da Escritura, que acabais de ouvir"). Em concluso, a importncia destes textos da comunidade de Qumran reside no fato deste Messias ser algum - uma pessoa - que os qumranitas

esperavam que havia de chegar um dia para libertar a comunidade e Israel. E no se trata de um Messias apenas davdico, mas tambm sacerdotal e proftico. Este Messias, como acabamos de ver no ltimo texto, vir realizar o profetizado nas Escrituras Sagradas. o mesmo acontecer com a pessoa de Jesus. A tese dos estudiosos judeus que falam da idia messinica judaica apenas em tempos do imprio romano e apenas com caractersticas poltico -religiosas, cai por terra. Os textos de Qumran so do sc. II e I a.C. e apresentam-nos a pessoa do Messias no duma maneira vaga e indefinida, mas com toda a preciso de Algum que um dia vir, da parte de Deus, trazer a paz, a liberdade e a salvao. Deixando a literatura de Qumran e passando para a formalmente apocalptca destes tempos intertestamentrios, vamos encontrar a figura do Messias nos livros de Enoc, quatro de Esdras e nos Testamentos dos Doze Patriarcas. Vejamos alguns textos. No l Enoc 48, 10 l-se: "ento Israel ser resgatado das naes do mundo e aparecer-lhes- o Messias, que os far subir a Jerusalm com grande alegria." Ainda no l Enoc 52, 4, Enoc pergunta ao anjo: "O que que so todas estas coisas que eu vi em segredo?", e o anjo responde-lhe: "Todas estas coisas que viste sero para o poder do Messias, para que seja forte e reconquiste a terra." No quarto livro de Esdras, a figura do Messias aparece juntamente com outras figuras, inclusivamente com a de Jesus, o que significa que a obra sofreu vrias camadas redacionais. Seguindo de perto a 5 edio de A. Diez Macho , apresentaremos os principais contedos mesinicos da obra de 4Esdras. Em 4 Esdras 7, 26ss, o anjo "Uriel volta a recordar os signos finais, as atribulaes da poca messinica (ou "as dores de parto do Messias", habl masiah), entre as quais "revelabitur filius meus Jesus" ("o meu filho Jesus ser revelado") (7, 28). Jesus uma interpolao crist evidente; mas filius meus ("o meu filho") pode pertencer ao texto judaico, uma vez que o Messias era considerado "filho de Deus" segundo o SI 2, 7. O reino messinico durar quatrocentos anos, depois dos quais o Cristo e todos os homens morrero e toda a terra voltar ao silncio primordial durante sete dias, depois dos quais ter lugar o juzo final e o Altssimo

julgar segundo as obras de cada um (7, 28-35), e sero poucos os que se salvam (7, 47.60.61), pois os melhores sero sempre menos em quantidade que os piores (7, 51-58) ,6 . No 4Esdras 11, 1-12, 51, volta a aparecer a mesma idia sobre "um resto de Israel para gozar o tempo messinico at que chegue o dia do juzo final,7. "O ensino primordial da viso a promessa de vitria que obter o Messias sobre a guia romana e a promessa de que um resto de israelitas ser salvo para participar no reino messinico at que venha o juzo final". Os textos intertestamentrios e, em parte, apocalpticos, de Qumran, Enoc, Testamentos dos Doze Patriarcas e 4 de Esdras, sobre a figura do Messias, s demonstram o mal-estar poltico, religioso e social destes tempos e a resposta messinica para a situao. O povo esperava que Deus interviesse, atravs do seu Ungido - que tanto apelidado de Messias davdico e sacerdotal como de Eleito, Justo e Filho do Homem -, para acabar com os maus e salvar o resto de Israel, isto , os seus eleitos, que passariam a governar este mundo na paz e na justia. A variedade de figuras e de modos messinicos tem a ver com este estado social. Como vimos - e bom repeti-lo , no l Enoc 48, 10, a pessoa do Ungido aparece juntamente com a do "Senhor dos espritos" ('Eles negaram o Senhor dos espritos e o seu Ungido"), mas em l QSam 2, 12 falase de Deus e do Messias gerado por Deus, e em 40246, os fiis qumranitas apelam ao "Filho de Deus" e ao "Filho do Altssimo. Nos evangelhos sinpticos, a figura do "Filho do Homem" a mais usada - e apenas por Jesus - para simbolizar o Messias dojuzo e da salvao. Mas esta personagem tambm aparece com sentido messinico no 1Enoc 48, 10 e 52, 4. Concluindo, este ambiente de esperanas messinicas, que, aqui e alm, se confundem com as escatolgicas e apocalpticas, desagam na pessoa de Jesus e das comunidades crists primitivas e concentram as vrias manifestaes messinicas antigas e recentes na nica pessoa de Jesus e na comunidade messinica e escatolgica dos cristos. Tanto Jesus, como, sobretudo, os cristos, acreditavam que aqueles tempos seriam os finais - os escatolgicos e, para muitos, os apocalpticos. E diante desta variedade e ambiguidade de doutrinas messinicas, no admira que Jesus as tratasse de maneira aberta e franca, atravs de vrios registros pessoais, e que os

responsveis judeus bem como os seus discpulos e o pblico em geral o interpretassem tambm de diferentes modos e maneiras (1).

1.2. DO TEMPO DA PROFECIA AO TEMPO DA APOCALPTICA.Na literatura e cultura atuais, a palavra apocalipse simboliza tempos de caos, de destruio e de fim de mundo. Fala-se das profecias apocalpticas de Nostradamus sempre associadas a qualquer coisa de trgico como se apresentam filmes intitulados de apocalipse para representarem as guerras do Vietname ou a hecatombe final desta nossa humanidade. Mas o apocalipse bblico, com toda a sua literatura apocalptica, outra coisa. A palavra apocalipse significa revelao e revelao significa tirar o vu que encobre uma realidade ou uma verdade. No nosso caso bblico, a literatura apocalptica do tempo do imprio persa, helnico e romano, significa o abandono da profecia clssica para um novo tipo de profecia. A literatura apocalptica continua a literatura proftica, mas o ngulo de viso religiosa e histrica bem diferente. Fundamentalmente, os apocalpticos judeus estabelecem um corte na historicidade de Israel. Chegam a um ponto de desencanto total perante a realidade histrica (cultural, social, poltica e religiosa) em que vivem. Tratase de homens crentes em Deus mas descrentes dos homens que governam o mundo e Israel. Concluem que Israel entrou num beco sem sada poltica diante do imprio persa, grego e romano. A nica sada ser, ento, a de Deus. S Deus poder salvar Israel e restabelecer o novo Israel. Mas este novo Israel, como o novo mundo histrico, nada tem a ver com o velho mundo. O novo mundo ser comandado diretamente por Deus e no por reis e sacerdotes. Para tanto, os apocalpticos esperam com ansiedade o fim de um mundo e o comeo de outro mundo. O velho homem dar lugar ao homem novo completamente renovado na sua natureza. Como que tudo isso vai acontecer, os apocalpticos no sabem; apenas sabem, pela f, que isso vai acontecer e est para muito breve. O tempo dos reis e dos profetas pertence ao passado e o novo tempo dos Sumos Sacerdotes que governam o

pequeno estado de Jud, uma das muitas provncias do imprio persa, grego e romano, tambm j no tem qualquer sentido. O novo messianismo no ser o da mediao davdica ou sacerdotal, mas o messianismo que se confunde com a interveno divina direta, sem qualquer mediao histrica. Deus vai intervir e desvelar com essa interveno o sentido final da histria, que passa, necessariamente, pelo sentido final do novo Israel. O mundo de Deus, constitudo pelo prprio Deus e seus Anjos, vai entrar na lia final duma guerra csmico-divina que tudo transformar. S os "santos de Deus" ou os santos judeus que se salvam. Todos os demais, desde os pagos aos maus judeus sero arrasados e, ento, Deus governar o novo mundo com os seus eleitos judeus. A literatura apocalptica, neste sentido, uma literatura de militncia e de emoo. O passado histrico de Israel como o passado histrico de todas as naes levam os apocalpticos a concluir que, muito brevemente, vai terminar um ciclo histrico e nascer outro completamente diferente. No AT o livro de Daniel que melhor representa este estado de coisas: "No tempo destes reis, o Deus dos cus far aparecer um reino que jamais ser destrudo e cuja soberania nunca passar para outro povo. Esmagar e aniquilar todos os outros, enquanto ele subsistir para sempre" (Dn 2, 44). No captulo sete de Daniel, o vidente - e no gnero literrio apocalptico s temos videntes - v quatro grandes animais a sarem do grande mar, que o smbolo de toda a maldade. So eles o leo, que representa o imprio babilnico, o urso, que representa o imprio dos medos, a pantera, que representa a monarquia persa, e um quarto animal, "horroroso, aterrador, e de uma fora excepcional, com enormes dentes de ferro com os quais devorava, depois fazia em pedaos e o resto calcava-o aos ps. Era diferente dos animais anteriores, pois tinha dez chifres" (7, 7). Este ltimo animal s pode representar o imprio grego, e, muito especialmente, o rei Antoco IV Epifnio, que procurou acabar com a religio judaica, classificado, logo a seguir, desta maneira: "Quando eu contemplava os chifres, eis que surgiu do meio deles um outro chifre mais pequeno. Para dar lugar a este chifre, trs dos primeiros foram arrancados. Este chifre tinha olhos como um homem e uma boca que proferia palavras arrogantes" (7, 8). Este mesmo chifre (Antoco IV Epifnio) descrito, mais adiante, de maneira historicisante com

estas palavras: "Proferir insultos contra o Altssimo, perseguir os santos do Altssimo. Pensar em mudar os tempos sagrados e a religio. Os santos vivero sob a sua alada, apenas durante um determinado espao de tempo. Mas o julgamento continuar e tirar-lhe-o o domnio, para o suprimir e aniquilar definitivamente. A realeza, o imprio e a grandeza de todos os reinos, situados sob os cus, sero ento devolvidos ao povo dos santos do Altssimo. O seu reino eterno e todas as soberanias lhe prestaro preito de obedincia" (7, 25-27). Estes quatro animais so explicados pelo vidente (mas s depois de ter apresentado a figura do Ancio, que simboliza o prprio Deus, e a do Filho do Homem juntamente com os santos do Altssimo", que representam os detentores da nova humanidade e soberania) desta maneira: "Estes portentosos animais, que so em nmero de quatro, so quatro reis que se levantaro da terra. Os santos do Altssimo so os que ho de receber a realeza e guard-la por toda a eternidade" (7, 17-18). A velha humanidade e a velha histria em que se sucedem reis e imprios vai acabar para dar lugar soberania do Ancio e do Filho do Homem, confundindo-se este ltimo com os "santos do Altssimo". Como vemos, a literatura apocalptica, a julgar por estes textos de Daniel, muito diferente da literatura dos profetas. O que agora predomina so os smbolos. uma literatura crptica, comandada pelos visionrios que tudo vem a partir do Alto. A literatura histrica onde se mistura o drama humano do bem e do mal, a ao de Deus a premiar e a castigar, desaparece, para dar lugar ao golpe final do drama humano: agora Deus que, com os seus anjos e os seus santos, determina as regras do jogo. No h mais lugar para a liberdade humana nem para a f a dialogar com a cultura e a poltica. Na nova religio dos apocalpticos no h lugar para o pecado e desobedincia a Deus. Estabelece-se um dualismo radical entre o bem e o mal, que acaba pelo triunfo total do bem com o esmagamento tambm total dos maus judeus e de todos os pagos. No entanto, os apocalpticos tambm reconhecem que a sua doutrina no aceite pela maioria da comunidade judaica. Eles so uma minoria, uma espcie de "seita" metidos no seu "gueto" fundamentalista. Por isso, nunca do a cara de maneira clara, batizando as suas obras atravs da pseudonmia, servindo-se, para tal, do nome de figuras hericas do passado, como o caso

presente de Daniel e das figuras de Enoc, Esdras e Baruc. Estes heris dialogam com os anjos de Deus, geralmente com Miguel, Gabriel e Satan, que os conduzem a viajar pelos cus, mostrando-lhes as maravilhas de Deus como prenncios da vitria final do mesmo Deus sobre os maus da terra. A literatura clssica dos profetas no necessita destes Anjos como intermedirios, mas eles aparecem sempre na literatura apocalptica. Por isso que os videntes tm sempre vises ou sonhos esquisitos e estranhos, depois explicados pelos anjOs, mas cuja explicao aparece muitas vezes em forma de "segredo", isto , apenas para um pequeno grupo de eleitos e iniciados, e no para toda a humanidade ou para todo o Israel, como era o caso dos profetas. Como fcil de perceber, nesta literatura apocalptica no h lugar nem para a histria nem para a f. O Deus dos apocalpticos no o Emmanuel, o Deus-conosco. Deus abandona a histria e o mundo para se refugiar no seu mundo celestial com os seus anjos e os seus eleitos. Este fundamentalismo anti-histrico desencadeia ondas de oposio no seio dos judeus que anseiam pelos velhos tempos dos profetas. o que se l na afirmao do Rabbi Jonathan (sc. II d. C.) que aparece no Talmud : "...desde a destruio do Templo, a profecia foi arrancada aos profetas e dada aos loucos e s crianas" (T. Baba Batra 12b). O autor refere-se com toda a certeza aos grupos apocalpticos que surgiram depois do exlio da Babilnia. E, no primeiro livro dos Macabeus, relata-se que os judeus, quando da purificao do Templo, depois da profanao de Antoco IV Epifnio, resolveram transportar as pedras do altar profanado "para um lugar conveniente sobre a montanha do Templo, at que viesse algum profeta verdadeiro e decidisse o que se lhes devia fazer" (l Mac 4, 46). Para estes judeus, a autoridade do profeta era necessria para repor a vontade de Deus, pois era com os profetas que Deus falava e no com os apocalpticos. Muitos judeus viviam tristes pela falta de profetas no seio da sua comunidade e pelo novo judasmo dirigido pelos sacerdotes e baseado apenas na Lei e nos ritualismos derivados da Lei e da Tradio. Ainda dentro do judasmo deste tempo ps-exlico, e tambm com o fim de aclarar, mais e melhor, esta ambivalncia entre profetismo clssico e apocalptica, h que considerar o ltimo dos profetas bblicos, Malaquias, que deve ser tambm do tempo de Esdras e Neemias, conjuntamente com

Ageu e Zacarias. O mais importante deste pequeno livro reside no seu terceiro e ltimo captulo, que apresenta um autntico adeus ao profetismo clssico. Quem comanda na nova dimenso da vontade de Deus no so os profetas mas os intrpretes das Escrituras: "Eis que eu vou enviar o meu mensageiro, a fim de que ele prepare o caminho minha frente. E imediatamente entrar no seu santurio o Senhor que vs procurais e o mensageiro da aliana que vs desejais. Ei-lo que chega! - diz o Senhor do universo. Quem suportar o dia da sua chegada? Quem poder resistir, quando ele aparecer? ... E assim eles sero para o Senhor os que apresentam a oferta legtima. Ento, a oferta de Jud e de Jerusalm ser agradvel ao Senhor como nos dias antigos, como nos anos de outrora... Desde os dias dos vossos pais, afastastes-vos dos meus preceitos e no os observastes....Foi no pagamento dos dzimos e nas ofertas [que vos afastastes de mim]. ... E agora temos de chamar ditosos aos arrogantes, pois eles fazem o mal e prosperam; pem Deus prova e ficam impunes. Assim falavam uns com os outros, aqueles que temem o Senhor. Mas o Senhor ouviu atento. Na sua presena foi escrito um livro de memrias: 'Dos que temem o Senhor e prezam o seu nome.' Eles sero meus, no dia em que agir - diz o Senhor do universo.... Ento vereis de novo a diferena entre o justo e o mpio, entre quem serve a Deus e quem no O serve... pois, eis que vem um dia abrasador como uma fornalha. Todos os soberbos e todos os que cometem a iniqidade sero como a palha; este dia que vai chegar queimalos- - diz o Senhor do universo - e nada ficar deles: nem raiz, nem ramos... Calcareis os pecadores, que sero como cinza debaixo da planta de vossos ps, no dia que eu preparo - diz o Senhor do universo... Eis que vou enviarvos o profeta Elias, antes que chegue o dia do Senhor, dia grande e terrvel..."(3, 1-23). O centro teolgico deste texto consiste no tema do dia do Senhor, que aparece cinco vezes. Os judeus que s se interessam com os seus negcios e vida fcil, no acreditam na verdade desse dia abrasador e terrvel. Por isso, no cumprem com as leis e preceitos da religio estabelecida pela Tor mosaica e pelos sacerdotes, seja em relao ao Templo, seja em relao ao amor ao prximo. Mas tanto os temas do dia do Senhor como o dos preceitos eram temas recorrentes nos profetas pr-exlicos. Os judeus que quiserem

receber a retribuio divina desse dia grande e terrvel" devem obedecer aos preceitos sacerdotais: pagar os dzimos, no oprimir o operrio, a viva e o rfo, nem violar o direito do estrangeiro (v. 5 c 10). Trata-se da moral religiosa tipicamente judaica de todos os tempos, mas reforada com os preceitos sacerdotais dos tempos do ps-exlio. Embora Malaquias seja o ltimo profeta dos judeus, nada h de apocalptico no seu livro, a no ser o envio de Elias "antes que chegue o dia do Senhor para converter o corao dos pais ao dos filhos e o dos filhos ao dos pais" (v.24). Isto significa que os escritos apocalpticos no apareceram logo a seguir aos primeiros tempos depois do exlio, mas muito depois, quando as esperanas de muitos judeus comearam a enfraquecer diante da poltica dos imprios pagos que se seguiram e dominavam os judeus. A nova linha bblica dos apocalpticos tambm aparece no Novo Testamento. Basta ter em conta os apocalipses dos evangelhos sinpticos (Mc 13, 5-37; Mt 24, 4-36; Lc 21, 8-36) e o Apocalipse de Joo. H muitos exegetas, hoje em dia, que se perguntam se Jesus no teria uma conscincia apocalptica quando pregava a sua doutrina fundamental sobre o Reino de Deus ou quando se apresentava como o verdadeiro Filho do Homem, tanto mais que semelhante ttulo s se apresenta na boca do prprio Jesus. O assunto deveras importante e ser objeto do nosso estudo.

2. OS JUDEUS E O IMPRIO GREGOTudo comeou em 333 com o imprio de Alexandre Magno. O grande homem imperou apenas dez anos. Quando morreu em 323, na Babilnia, o imprio foi dividido em duas partes pelos seus generais, uma parte no Egito e outra na Sria. No Egito governou a dinastia dos LAGIDAS com a capital em Alexandria, e, na Sria, a dinastia dos SELUCIDAS com a capital em Antioquia. No Egito governaram os Ptolomeus e na Sria os Antocos. Como existia uma dspora muito grande de judeus em Alexandria e como o grego e a civilizao grega imperavam em Alexandria, os judeus, nos scs. III e II a.C., decidiram traduzir a Bblia hebraica para grego, chamada a traduo dos

Setenta. Esta traduo teve a maior importncia porque os evangelistas e os responsveis cristos das comunidades primitivas, a comear por S. Paulo, servem-se dela para provar a tese messinica de Jesus. Nunca devemos esquecer que o Novo Testamento foi todo escrito em grego. A cultura grega, que partia da lngua e se centrava na polis (cidade) tinha como infra-estruturas da mesma cultura o Conselho (a boule) da cidade, o seu Gymnasium, onde os jovens eram iniciados na mesma cultura, a Academia, onde ensinavam os filsofos e eram educados os polticos, o Stadium, onde se desenrolavam os desportos masculinos, e, finalmente, o Teatro, onde tinham lugar as representaes picas e trgicas dos grandes autores gregos. Necessariamente, esta cultura grega chocava com a cultura judaica baseada na religio de um nico Deus e no na lgica e na filosofia gregas, de mos dadas com os mitos politestas tipicamente gregos e com toda a espcie de sincretismo religioso. Foi este sincretismo da religio grega que levou os judeus a contnuas tenses e algumas guerras. Uma vez que os judeus viviam numa terra cheia de dolos temiam que o seu Deus os amaldioasse. Mas neste assunto, como em tudo o mais, havia judeus que pactuavam com a cultura grega e que viviam a sua religio sem qualquer frico ou atrito e havia outros que defendiam fanaticamente a condenao de qualquer cultura pag no meio da sua terra "santa". Para os gregos no havia qualquer problema em cultuarem os seus deuses juntamente com os deuses egpcios, mesopotmicos, persas, etc. Por isso, olhavam para a religio judaica com o seu nico Deus como se esse nico Deus fosse uma espcie de Zeus onipotente, pai de todos os deuses, sempre pronto a abenoar o seu povo. S no entendiam como que uma tal religio no tinha qualquer imagem do seu Deus. Foi esta a razo de Pompeu, ao entrar em Jerusalm e no seu Templo, julgar a religio judaica como uma religio menor e sem sentido porque no encontrou qualquer imagem no Templo. Se no havia imagem a quem que os sacerdotes ofereciam incenso e sacrifcios? E foi por causa desta atitude de Pompeu que os judeus se puseram do lado de Jlio Csar na sua luta poltica contra Pompeu. Mesmo assim, os judeus que viviam nas cidades helnicas no abdicavam dos seus direitos de cidados helnicos, mas rejeitavam os ritos civis que se

confundiam com os ritos religiosos, uma vez que direitos civis e ritos civis faziam uma s coisa, pois tudo o que era desporto, arte, festas, etc. tinha a ver com o culto aos deuses. Foi por esta razo que na guerra religiosa de 115-117 P. C., no tempo do imperador Trajano, milhares de judeus do Egito, frica do Norte, Creta e Chipre foram mortos. O mesmo se diga da guerra dos zelotes entre 66-70 d.C. Mas a camada intelectual dos judeus, mormente no Egito e na grande cidade de Alexandria, convivia em harmonia com os gregos. Basta olhar o exemplo do grande filsofo e crente judeu, Filo de Alexandria, que viveu entre 20 e 50 p. C. e tentou helenizar as Sagradas Escrituras, atravs do mtodo alegrico para conquistar as boas vontades dos intelectuais gregos. Interpretava a verdade bblica do homem como "imagem de Deus" (Gn 1, 27) explicando que a palavra imagem significava mente / entendimento / esprito, ou que as leis de Moiss se deviam entender como virtudes para o bem da polis e da sociedade (cf. Acerca da criao do mundo 69; Sobre as virtudes 119-120). O livro do Ben Sirac ou Eclesistico bem sintomtico deste ambiente e cultura. Foi escrito por volta de 200 a. C. e o seu autor era um sacerdote de Jerusalm. Viveu, portanto, nos principios do reinado dos Selucidas sobre Israel. A maneira como apresenta a vida de piedade religiosa dos judeus do seu tempo, que obedeciam s leis rituais e cultuais dos sacerdotes, das ofertas e oraes no Templo, da figura do sumo Sacerdote Simo o Justo, leva-nos a concluir que os judeus estavam habituados a esta vida de mos dadas com o helenismo, mas sem qualquer atrito e dificuldade. Havia respeito de parte a parte. A Palestina pertencia ao princpio aos Ptolomeus, mas, em 223-200 a.C., Antoco III venceu os Ptolomeus e a Palestina ficou a pertencer aos Selucidas da Sria, que tentaram helenizar pouco a pouco o povo judeu e servirem-se, de tempos a tempos, do tesouro do Templo de Jerusalm. Ficou clebre na histria a tentativa do general Heliodoro, filho de Seleuco IV, tentar saquear o tesouro do Templo de Jerusalm. Contudo, na generalidade, como acabamos de ver, existia uma certa pacificao entre judeus e helnicos. As dificuldades comearam a aparecer no reinado de Antoco IV Epifnio,

que reinou entre 175-164 a.C. A si mesmo se intitulou de Epifnio ou Epfanes, que significa, s por si, a manifestao de Deus na terra. Numa palavra, ele divinizou-se a si mesmo e queria ser tratado como uma encarnao divina. E como os judeus no podiam com semelhante megalomania, pois ia contra o monotesmo judaico, o rei determinou que a lngua aramaica fosse abolida e a grega fosse obrigatria, determinou a abolio da circunciso e a abolio da religio judaica, determinou que acabasse o culto judaico no Templo de Jerusalm e se colocasse no altar do Templo uma esttua de Zeus, esttua essa que, na tradio judaica, passa por ser a abominao da desolao (Dn 11, 31; 12, 11; Mc 13, 14). Colocou uma guarnio militar Sria numa fortaleza, chamada Akra, na cidade de Jerusalm, para poder controlar todas as manifestaes hostis dos judeus. Por tudo isto, ao epnimo Epifnio = Antoco, o divino, os judeus chamavam-lhe Epimanes Antoco, o maluco. muito possvel que a idia inicial de Antoco fosse a melhor, isto , dar um estatuto de polis cidade de Jerusalm e, com isso, criar condies de melhorar a vida dos judeus atravs do comrcio aberto com as outras polis, e estabelecer, ao mesmo tempo, a cultura grega atravs da lngua, literatura, teatro, etc. Para que tal acontecesse havia que acabar com a lngua aramaica e com a religio especfica dos judeus. Quem recusasse era morto. Semelhante estado de coisas vai suscitar a revolta da famlia dos Macabeus e originar o livro de Daniel, de tipo apocalptico, que, duma maneira crptica, utiliza figuras de reis da Babilnia do sc. VI a.C. para descrever o papel dos governantes srios, inimigos de Deus, sobretudo o papel de Antoco Epifnio. Em 167 a.C. comeou, ento, a revolta dos Macabeus, dirigida pelo patriarca Matatias, que era sacerdote, e foi continuada por um perodo de 35 anos pelos seus filhos Johanan, Eleazar, Judas, Jnatas e Simo. A certa altura, o patriarca Matatias entregou a chefia da guerrilha ao seu filho Judas, que tinha como alcunha o macabeu, que significa martelo, devido sua fora e estratgia na guerrilha contra as tropas do rei. Pouco a pouco, Judas Macabeu foi derrotando as tropas do rei Antoco, servindo-se sempre do sistema da guerrilha, e, ao mesmo tempo, desenvolvendo uma atividade diplomtica a seu favor com Roma e com Esparta. A esta familia juntou-se um grande nmero de apaniguados chamados Chasideus ou "Piedosos".

Devemos juntar tambm um fato importante que tem a ver com o descanso sabtico. Uma vez que as tropas do rei atacavam sobretudo ao sbado, Judas determinou combater tambm ao sbado para poderem salvar as suas vidas (l Mc 2, 40-41: "E disseram uns aos outros: Se todos agirmos como os nossos irmos, no combatendo contra os estrangeiros para salvarmos as nossas vidas e as nossas leis, depressa nos exterminaro da face da terra. Tomaram, pois, naquele dia, esta resoluo: Se algum nos atacar em dia de sbado, combateremos contra eles e no nos deixaremos matar a todos, como fizeram os nossos irmos, nos seus esconderijos). A poltica dos Macabeus acabou por agradar a Roma e por vencer, em 164, o rei Antoco V Eupator, seguindo-se a purificao e dedicao do Templo de Jerusalm com a respectiva festa chamada Hallukkah, que ainda hoje celebrada pelos judeus. A guarnio militar de Akra vencida em 141 e os judeus readquirem a sua liberdade poltica e religiosa, que subsiste at tomada de Jerusalm pelo romano Pompeu no ano 63 a.C. Os judeus pediram a ajuda dos romanos, que reconheceram a sua independncia, mas, mais tarde, subjugaram-nos ao seu grande imprio. Com o desaparecimento dos filhos de Matatias Macabeu terminou uma dinastia e surgiu uma nova dinastia, a dos Asmoneus. Realmente, Matatias pertencia famlia dos Asmoneus e quando a guerra acabou duas famlias disputaram o poder: a dos Asmoneus e a dos Tobades. Simo Macabeu, o nico sobrevivente dos cinco filhos de Matatias derrotou os Tobades, comeou a cunhar moeda e auto proclamou-se Sumo Sacerdote e Nasi, isto , prncipe. A vitria dos Macabeus teve conseqncias polticas e religiosas que vo determinar uma nova fase dentro do judasmo, que perdurar at ao ano 70 d. C. com a queda final de Jerusalm pelos romanos. Uma das consequncias reside no facto de Simo Macabeu se auto-proclamar rei e sumo Sacerdote, acabando, assim, com o sacerdcio sadoquita estabelecido por David. Por causa disto que surgiram os religiosos de Qumrn, para reporem o sacerdcio sadoquita no templo de Jerusalm. De igual modo, nenhum fariseu aceitava semelhante situao. Os Asmoneus permaneceram como Sumos Sacerdotes at ao tempo dos romanos, e, por isso, o sumo sacerdcio foi-se degradando cada vez mais, de tal modo que,

no tempo dos romanos, o sumo sacerdcio at era comprado aos romanos pela aristocracia das famlias sacerdotais - geralmente saduceus - conforme a lei da compra e da oferta. Herodes e, depois, os romanos detinham as vestes dos sumos sacerdotes no palcio real e os mesmos sumos sacerdotes submetiam-se s autoridades pags para receberem as suas vestes. Outra conseqncia tem a ver com o cnone das Escrituras Hebraicas. O ltimo livro sagrado o de Daniel cujo contedo de gnero apocalptico descreve os tempos difceis dos judeus na sua luta contra Antoco Epifnio. Os reis babilnicos e persas, perseguidores dos judeus, a nomeados, no so mais do que figuras retricas e crpticas para simbolizarem o rei Antoco. Joo Hircano I (134-104 a.C.), que era filho de Simo Macabeu, mandou destruir o santurio dos samaritanos no monte Garizim, o que acicatou ainda mais os velhos dios entre judeus e samaritanos. O seu filho Aristbulo (104103) recebeu o ttulo de rei e esta mistura de rei e de sumo sacerdcio vai durar 45 anos e ser causa de mal entendidos entre os polticos judeus e os religiosos judeus. Foi, a partir deste estado de coisas, que se formaram os saduceus, os fariseus e os essnios, que vamos encontrar, mais tarde, no tempo de Jesus. O rei Alexandre Janeu, que governou entre 103-76 a.C., conseguiu, atravs de vrias guerras, aumentar as suas fronteiras, mas sofreu a oposio dos "religiosos", os tais chassideus, que mandou matar aos milhares. O mesmo fez a sua mulher Salom Alexandra, entretanto viva e que governou entre 76-69. Os seus dois filhos, Hircano II e Aristbulo II, entraram na poltica da guerra familiar, suja e fratricida, que levou a uma certa anarquia, e foi por isso que apareceu Roma para impor a ordem e enviou o seu general Pompeu, que arrasou tudo o que era contra a ordem, segundo os parmetros romanos, a comear pela destruio do mosteiro de Qumran, onde viviam os monges essnios, subindo depois para Jerusalm, onde entrou triunfalmente no ano 63 a.C. Para marcar bem a sua entrada e a sujeio da Palestina a Roma, entrou tambm no Templo com as suas tropas, o que era um crime de blasfmia contra Deus e o seu Templo. A partir de ento, os romanos tomaram conta da poltica da Palestina.

3. OS JUDEUS E O IMPRIO ROMANOE foi assim que entrou em cena o rei Herodes, o Grande, filho do idumeu Antipater II. Este Antipater II comeou por ser conselheiro do rei Hircano e tornou-se procurador da Palestina devido aos bons servios de Jlio Csar. O seu filho Herodes tornou-se um poltico muito arguto e megalmano, variando de poltica segundo as circunstncias. Com o assassinato do imperador Csar, no ano 44 a.C., passou-se para os novos donos do Imprio romano jogando na balana entre Octvio e Marco Antnio. No ano 43 a.C., o pai Antipater morto por envenenamento. Em 37 a.C. torna-se rei efetivo da Judia e, mais tarde, recebe os territrios da Tracontede, Bataneia, Aurantide e Paneias. Como Herodes era apenas um meio judeu, pois descendia de Idumeus, casouse com Mariamme I, neta de Aristbulo e de Hircano II, para agradar aos judeus, mas o seu corao estava com Roma e com a cultura grega. E como era um poltico megalmano construiu grandes cidades, palcios e fortalezas, baptizando algumas delas com nomes dos imperadores romanos. Assim, reconstri Samaria, baptizando-a de Sebaste, que significa "Augusto" em honra do imperador, constri a cidade de Cesareia Martima, com o nome de Csar, para agradar a Csar, a torre "Antnia" em Jerusalm para agradar a Marco Antnio. Para poder resistir aos seus inimigos constri as fortalezas de Antipatris, de Fasaclis, do Maqueronte, esta ltima na Transjordnia, onde, mais tarde, foi martirizado S.Joo Baptista, o Herodium, perto de Belm, onde vai ser sepultado, a fortaleza de Massad, em pleno deserto de Jud, para onde fogem os ltimos resistentes zelotas aquando da tomada de Jerusalm no ano 70 d.C. pelas tropas de Tito. Constri o palcio real de Jerusalm, na parte alta da cidade, cujas runas ainda hoje se podem admirar e, sobretudo, reconstruiu o Templo de Jerusalm para agradar aos judeus, de cujos restos apenas podemos contemplar e apreciar o muro das lamentaes. Como Herodes "tinha a mania da perseguio", mandava matar todas as pessoas que pensava que lhe pudessem fazer sombra. Assim acontece, com a mulher que mais amava, Mariamme I, a tal judia, neta de Hircano II e

Aristbulo II no ano 29 a.C., com dois dos seus filhos, Alexandre e Aristbulo, e com alguns dos sobrinhos. No ano IV a. C., pressentindo a morte, manda matar o seu filho primognito Antipater e deixa o testamento a favor dos seus dois filhos Arquelau e Herodes Antipas, que eram filhos da sua mulher Malthace, samaritana, e de seu filho Filpe. E foi com este pano de fundo de mortes e crueldades, que o evangelista S. Mateus constri a histria "lendria" da matana dos inocentes, de que mais tarde iremos falar. Depois do assassinato de Jlio Csar no ano 44 a. C., o imprio romano governado por Octaviano e Marco Antnio. Octaviano vence Marco Antnio e nomeado "Augusto" no ano 27 a.C. Estabelece a pax romana e desfaz-se de todos os inimigos que queram fazer perigar semelhante paz. Foi descoberta em Halicarnasso uma inscrio onde Augusto nomeado "salvador do mundo". Em Roma foi-lhe dedicado o altar da paz, onde se comemoram todos os seus feitos e a sua poltica religiosa de homem divino. A esta cultura de divindade pag respondem os evangelhos e a f crist que s Jesus o Salvador, o Homem Divino, a Verdade final de Deus. Semelhante atitude de f vai revolucionar toda a cultura e histria ocidental depois de Constantino. 4. A GEOGRAFIA DE ISRAEL NO TEMPO DE JESUS O mapa da Palestina, no tempo de Jesus - tal como se apresenta tambm hoje em dia -, divide a terra de Jesus em duas partes bem distintas, atravs do rio Jordo. Por isso, se chamavam a Cisjordnia e a Transjordnia. Vamos apresentar alguns textos evanglicos para vermos como Jesus se movimentava tanto na Cisjordnia como na Transjordnia. Lemos por exemplo em Jo 4, 25-26: "Ento levantou-se uma discusso entre os discpulos de Joo e um judeu, acerca dos ritos de purificao. Foram ter com Joo e disseram-lhe: 'Rabi, aquele que estava contigo na margem de almJordo (Transjordnia), aquele de quem deste testemunho, est a baptizar, e toda a gente vai ter com Ele."' Ou ento em Mc 5, 1-2: "Chegaram outra margem do mar (Transjordnia), regio dos gerasenos. Logo que Jesus desceu da barca, veio ao seu encontro, sado dos tmulos, um homem possesso de um esprito maligno". Em Mc 7, 24-26: "Partindo dali, Jesus foi

para a regio de Tiro e de Sidon. Entrou numa casa e no queria que ningum o soubesse, mas no pde passar despercebido, porque logo uma mulher que tinha uma filha possessa de um esprito maligno, ouvindo falar dele, veio lanar-se a seus ps. Era pag, siro-fencia de origem, e pedia-lhe que expulsasse da filha o demnio". Em Jo 7, 33-36: "Entretanto, Jesus comeou a dizer: 'J pouco tempo vou ficar convosco, pois irei para aquele que me enviou. Haveis de procurar-me, mas no me encontrareis, e no podereis ir para o lugar onde eu estiver. Os judeus por isso disseram entre si: Para onde tenciona ele ir, que no o possamos encontrar? Tenciona ir at aos que esto dispersos entre os gregos para pregar aos gregos? Que significam estas palavras que ele disse? ...

20 Neste caso, a terra dos gregos era a chamada decpole (isto , terra das dez cidades no judaicas), que se situava no norte da Transjordnia. Foi incorporada no reino da Judeia por Alexandre Janeu. Pompeu separou-a em 63 a. C, e deu-lhe autonomia debaixo da tutela do governador da Sria, com o fim de fortalecer a cultura grega contra a cultura hebraica. Estas cidades formavam uma liga e tinham uma administrao prpria. Eram elas: Damas, Filadlfia, Chitpolis, Gadara, Hippos, Dion, Pella, Gerasa, Kenat e Abil. Estejamos agora atentos a alguns textos dos evangelhos sinpticos sobre a geografia da Cisjordnia, pois foi sobretudo a que Jesus passou a maior parte da sua vida pblica. Uma vez que os evangelhos so narrativas histricas, tambm os espaos geogrficos so, realmente, muito importantes porque determinam tanto o tempo como o espao, e atravs desse tempo e desse espao que melhor se compreendem as pessoas que os preenchem - no caso concreto a pessoa de Jesus, seus discpulos, seus amigos, o povo duma maneira geral e tambm os seus inimigos. Peguemos sobretudo no evangelho de Marcos, por se tratar do primeiro a ser escrito, aquele que apresenta a pessoa histrica de Jesus duma maneira mais pura, isto , sem as cristologias desenvolvidas de Mateus, Lucas e Joo.

Marcos comea por apresentar a geografia de Joo Baptista ligada ao seu baptismo no rio Jordo. Trata-se do rio Jordo na sua passagem pela Judeia e no pela Galileia, como se pode ler em Mc 1, 9: "Por aqueles dias, Jesus veio de Nazar da Galileia e foi baptizado por Joo no rio Jordo". O texto tambm refere a vida penitente e proftica de Joo Baptista no deserto (Mc 1, 4), e o deserto s podia significar o deserto da Judeia. o mesmo Marcos que refere as tentaes de Jesus no deserto durante quarenta dias (Mc 1, 12-13). Depois de Joo Baptista ter sido preso, Marcos fala da tal vida pblica de Jesus na Galileia, sempre volta da cidade de Cafarnaum e outras pequenas cidades e lugarejos ribeirinhos ao lago ou mar da Galileia, apenas com as seguintes excepes: uma ida a Gerasa, como j vimos (Mc 5, 1-20), onde cura o demonaco epilptico, uma outra sada sua cidade de Nazar (6, 1), onde incompreendido pelos seus concidados, que lhe dizem: "No ele o carpinteiro, o filho de Maria e irmo de Tiago, de Jos, de Judas e de Simo? E as suas irms no esto aqui entre ns?" (6, 3), uma ida a Tiro e Sdon, na vizinha Sria (7, 21), onde cura a filha duma mulher pag, como tambm j vimos, uma ida a Cesareia de Filipe, no extremo norte da Palestina (8, 27), onde Pedro faz a sua confisso de f em Jesus como Messias, mais uma ida Transjordnia, onde Jesus discute o problema do divrcio (10, 1-12), e, finalmente, a ida definitiva de Jesus para Jerusalm com esta abertura muito significativa em 10, 32: "Iam a caminho, subindo para Jerusalm, e Jesus seguia frente deles. Estavam assombrados e seguiam-no temerosos". importante que reparemos em trs afirmaes neste pequeno texto. Primeira afirmao: "subiam para Jerusalm". O facto de Jerusalm se situar a 800 metros acima do nvel do mar, faz com que quase todos os relatos usem o verbo "subir". At acontece que h alguns Salmos chamados Salmos ascendentes ou Salmos de peregrinao por narrarem a subida dos crentes judeus ao Templo de Jerusalm. Damos o exemplo do SI 24, que um cntico processional, lendo-se no versculo 3: "Quem poder subir montanha do Senhor?" e o do SI 122, 4: "Para l sobem as tribos, as tribos do Senhor". Segunda afirmao: "JesUs seguia frente deles", o que significa que Jesus o Mestre, sem medo, que toma a dianteira, enquanto os discpulos vo atrs e "temerosos", o que aparece de modo mais claro na terceira

afirmao: "Estavam assombrados e seguiam-no temerosos". Isto quer dizer que os discpulos no concordavam com a deslocao do Mestre a Jerusalm,

21 pois bem sabiam que os seus grandes in'migos se encontravam l e no percebiam como que o Mestre se ia "meter na boca do lobo". No lugar paralelo de S. Lucas, o evangelista ainda mais preciso. Lemos em Lc 9, 51: "Como estavam a chegar os dias de ser levado deste mundo, Jesus dirigiu-se resolutamente para Jerusalm". Literalmente, o texto reza assim: "Como se estivessem a cumprir os dias da sua assuno, [Jesus] endureceu o seu rosto para ir para Jerusalm". A expresso "endurecer o rosto" significa tomar uma resoluo firme. Ele tomou, portanto, a resoluo de deixar a Galileia, onde se sentia seguro e em paz, uma vez que o Sindrio judaico de Jerusalm no tinha jurisdio sobre os judeus galileus, e seguir resolutamente para Jerusalm e enfrentar o seu destino. E interessante repararmos que Lucas narra esta subida de Jesus desde a Galileia para Jerusalm ao longo de dez captulos (de 9, 51-19, 27), ao contrrio de Marcos e Mateus que usam apenas alguns versculos. O resto do evangelho continua a narrativa da subida de Jesus para Jerusalm, passando por Jeric, onde cura o cego Bartimeu (11, 46-52), por Betfag e Betnia (devia ser ao contrrio, primeiro Betnia e s depois Betfag (11, 1). Uma vez em Jerusalm, Jesus tem a sua entrada triunfal (11, 1-11), purifica o templo (11, 15-19), apresenta a parbola dos vinhateiros homicidas (12, 112), a doutrina sobre o tributo a Csar (12, 13-17), o discurso escatolgico (13), vive a ceia pascal com os discpulos e institui a Eucaristia (14, 12-25), seguindo-se depois a negao de Pedro, a orao de Jesus no Getsmani, a priso de Jesus, a apresentao de Jesus no tribunal judaico e no tribunal romano, a Paixo, a Morte no monte Glgota e a respectiva sepultura. Esta listagem em que se misturam os dados geogrficos com os dados vivenciais de Jesus com doentes, discpulos, amigos e inimigos, deveras importante, porque situam a vida de um homem - a de Jesus - numa geografia, num tempo e num espao bem conhecidos e bem comprovados.

Tudo Isto tem a ver com a verdade do Jesus da histria. uma histria que no foi Inventada, mas foi real e, para o provar, a est a geografia da Palestina do seu tempo. Continuando o nosso estudo sobre a geografia fsica e humana de Jesus, detenhamo-nos um pouco na geografia de Jesus apenas na Galileia, centrada na cidadezinha de Cafarnaum e arredores, sempre junto ao mar ou ao lago da Galileia. Marcos, depois de narrar o baptismo de Jesus e a tentao na Ju deia, escreve assim em 1, 14-15: "Depois de Joo ter sido preso, Jesus foi para a Galileia, e proclamava o evangelho de Deus, dizendo: 'Completou-se o tempo e o Reino de Deus est prximo: arrependei-vos, acreditai no Evangelho." , portanto, na Galileia e, mais precisamente, em Cafarnaum e arredores, que se vo passar "os trs" anos da vida pblica de Jesus. Vale por isso a pena estarmos atentos maneira como Marcos apresenta as deslocaes de Jesus no seu evangelho, que correspondem mais ou menos s mesmas deslocaes em Mateus e Lucas. Logo a seguir, em 1, 16, para narrar o chamamento dos primeiros quatro discpulos, escreve: "Passando ao longo do mar da Galileia vi Simo e Andr, seu irmo ... e disse-lhes: "Vinde comigo, e farei de vs pescadores de homens"'. Um pouco mais adiante, em 1, 21, escreve "Entraram em Cafarnaum... Chegando o sbado foi sinagoga de Cafarnaum e ensinava a doutrina do Reino de Deus, de modo que todos se maravilhavam pela doutrina e pelos milagres". Um pouco mais adi ante, em 1, 29, escreve: "Saindo da sinagoga, foram para a casa de Simo e Andr, onde Jesus curou a sogra de Simo Pedro." Um pouco mais adiante, escreve em 1, 35: "De madrugada, ainda escuro, levantou-se e saiu para ir orar num lugar solitrio. Mas os discpulos vieram ter com ele e disseram-lhe: Todos te procuram, ao que ele lhes respondeu: Vamos para outra parte, para as aldeias vizinhas, a fim de pregar a, pois foi para isso que eu vim". Um pouco mais adiante, em 2, 1

22

escreve o evangelista: "Dias depois, tendo Jesus voltado a Cafrnaum, ouviuse dizer que Jesus estava em casa. Curou naquela ocasio um paraltico e perdoou-lhe os pecados. Por causa disto mesmo, deu-se a primeira controvrsia porque os doutores da Lei, que estavam presentes, pensavam, l para si, que Jesus estava a blasfemar uma vez que s Deus e mais ningum que pode perdoar os pecados. Um pouco mais adiante, em 2, 13, escreve Marcos: "Jesus saiu de novo para a beira mar. Viu o publicano Levi no seu escritrio de finanas e chamou-o para seu discpulo. Mais tarde, ceou com ele e outros publicanos, de modo que surge a segunda controvrsia com os doutores da Lei que diziam: "Por que que ele come com cobradores de impostos e pecadores?", ao que Jesus responde: "Eu no vim chamar os justos mas os pecadores." Um pouco mais adiante, em 2, 23, escreve o evangelista: "Ora num dia de sbado, indo Jesus atravs das searas, os discpulos puseram-se a colher espigas e a com-las..." Os fariseus ficaram todos escandalizados, e levantou-se a terceira controvrsia por causa de colherem espigas em dia de sbado, mas Jesus, depois de um breve dilogo, termina por proclamar que ele como "Filho do Homem at do sbado senhor." Logo a seguir, em 3, 1, escreve Marcos: "Novamente entrou na sinagoga". Curou l um homem com uma mo paralizada, e levantou-se a quarta controvrsia por causa de mais uma cura em dia de sbado. Logo a seguir, em 3, 7, Marcos volta a escrever: "Jesus retirou-se para o mar com os discpulos" e curou todos os que sofriam de enfermidades. Logo a seguir, em 3, 13, escreve Marcos: "Jesus subiu a um monte" e escolheu os doze discpulos. Depois disto, continua a narrativa de Marcos em 3, 20: "Tendo Jesus chegado a casa... " O interessante de todas estas pequenas narrativas que todas esto enquadradas por um parmetro geogrfico, seja de geografia fisica, seja de geografia humana. Recordemos, uma vez mais, as afirmaes: Jesus saiu ... Jesus entrou ... Jesus entrou na sinagoga ... em casa ... Jesus subiu... Jesus voltou ... de madrugada, ainda escuro ... Jesus levantou-se ... passando ao longo do mar da Galileia. Sem este espao geogrfico e humano, Jesus nada diz e nada faz. E o que ele diz e faz novidade para os judeus. As narrativas de controvrsias tm a ver com dados doutrinais: Jesus cura doentes fsicos e psquicos, perdoa pecados, senhor do sbado, apelidado pelos demnios de

"Santo de Deus", ensina de modo totalmente diferente do dos fariseus e doutores da Lei. O importante de tudo isto - tornemos a diz-lo - que a geografia fsica e humana fazem um todo com a doutrina revolucionria de Jesus, e esta doutrina no consiste apenas em pregao acadmica volta da Lei de Moiss e tradies judaicas, como faziam os doutores da Lei, mas consiste numa aco directa sobre os doentes e numa declarao solene sobre as instituies sagradas dos judeus, sobretudo o sbado. Por tudo isto, temos que concluir que Jesus veio trazer uma outra maneira de ver as coisas. A humanidade nova a humanidade sem sofrimento, sem pecados, sem a alienao religiosa. a humanidade que tem como primazia a pessoa, a vida e o amor. O que acabamos de descrever refere-se apenas aos trs primeiros captulos de Marcos. Mas o mesmo estilo de narrao continua por todo o evangelho, e, bem assim, em Lucas e Mateus. Em Mc 4, 1 lemos: "De novo comeou a ensinar beira mar...". Em Mc 5, 35: "Naquele dia, ao entardecer...". Em Mc 5, 1: "Chegaram outra margem do mar, regio dos gerasenos...". Em Mc 5, 21: "Depois de Jesus ter atravessado, na barca, para a outra margem..." Em Mc 6, 1: "E partiu dali. Foi para a sua terra [de Nazar], e os discpulos seguiam-no." Em Mc 6, 6: "E Jesus percorria as aldeias vizinhas a ensinar...". Em Mc 6, 35: "A hora j ia muito adiantada, quando os discpulos se aproximaram e disseram..." A concluso sempre a mesma: os evangelhos so narrativas histricas em que a geografia fsica e humana fazem um todo e esto em funo da doutrina do evangelho. Jesus no um Rabbi metido dentro de casa ou metido na sinagoga a ensinar a doutrina de Moiss. Ele caminha pelas estradas poeirentas da sua terra, entra nas sinagogas, na casa das pessoas, come com justos e pecadores, passeia junto ao lago, entra no barco, passa duma margem outra, sai de manhzinha para orar em lugares solitrios. Mas

23 no viaja ou passeia simplesmente pelo prazer de viajar, nem come

simplesmente pelo prazer de estar com amigos e pecadores. Toda a geografia fisica e humana esto em funo da verdade maior que o evangelho da libertao, do perdo e do amor. Isto no significa, porm, que todas as palavras e actos de Jesus estejam devidamente assinalados num tempo e espao completamente enquadrados. Quando estendermos a "questo sinptica", dar-nos-emos conta disto mesmo. O tempo e o espao, nas narrativas evanglicas, funcionam como parmetros da vida de um homem histrico, mas no como parmetros de uma biografia. 5. OS GRUPOS RELIGIOSOS DE ISRAEL Vimos at aqui a pessoa de Jesus situado na geografia da Palestina. A partir de agora, vamos estudar a pessoa do mesmo Jesus atravs dos vrios grupos religiosos daquele tempo. Ao lermos os evangelhos deparamos continuamente com os grupos religiosos dos judeus com os quais Jesus entra em conflito. Entre eles sobressaem os fariseus, os saduceus e os escribas, mas preciso contarmos tambm com os essnios, herodianos, baptistas e zelotas. Vamos estudar sobretudo os trs primeiros grupos, por serem os mais importantes, procurando entremear a histria com alguns textos evanglicos, geralmente de confronto e polmica e, assim, pela lei dos contrastes, perceberemos melhor a pessoa de Jesus. 5.1. OS FARISEUS A nossa palavra fariseu depende do hebraico parash, que tanto significa "separar" como "explicar". A semntica que est por detrs do verbo separar tem a ver com o rigor da sua disciplina moral, geralmente volta do que era puro e impuro, e que os separava do resto do povo. Eles eram os "santos", os "separados", os "justos". Jesus responde-lhes em Mc 2, 17: "No so os que tm sade que precisam de mdico, mas sim os enfermos. Eu no vim chamar os justos, mas os pecadores". Foi devido a esta maneira de ser, que separava os fariseus do resto do povo, tornando-os uma espcie de seita, muito radical e, por vezes, fundamenta lista, que criticavam, por isso mesmo, a aristocracia judaica que se dava bem com judeus e pagos, que Joo Hircano e Alexandre

24 Janeu os perseguiram de maneira cruel, martirizando muitos deles. Esta questo dos reis Joo Hircano e Alexandre Janeu (que apresentmos no nosso primeiro captulo contra os fariseus do seu tempo s se entende no contexto histrico precedente. A partir do ano 63, com a entrada de Pompeu na Palestina e a influncia romana, os fariseus foram perdendo a sua importncia. Herodes Magno, ao princpio, no os enfrentou de maneira directa, porque eles eram amados pelo povo, e havia muitos homens e mulheres na corte de Herodes e at no seu harm que admiravam os fariseus. Mas Herodes Magno, um pouco mais tarde, obrigou-os a serem-lhe fiis e ao imperador Augusto. Perante a desobedincia de muitos deles a tal imposio (um historiador judeu do sculo 1 d. C. fala de 6.000 que se negaram a prestar semelhante fidelidade) mandou matar muitos fariseus. E foi assim que os fariseus perderam bastante da sua autoridade moral e poltica junto do povo e os saduceus aproveitaramse desta situao para subirem na considerao de Herodes e da camada mais rica dos judeus. S depois do ano 70, aps a derrocada de Jerusalm, e terminado o poder dos saduceus e dos sacerdotes, que os fariseus voltaram a dominar o mundo judaico e a salvar Israel de perder a sua identidade religiosa. Isto aconteceu sobretudo com o snodo de Jabne (ou lamnia), ao norte de Jerusalm, por volta do ano 75 d.C. Mas, no obstante todas estas peripcias histricas, devido lealdade dos fariseus para com a Lei e tradies, devido ao seu radicalismo e at fundamentalismo, os fariseus continuavam a ser amados e admirados pela gente simples e humilde. Eles tornaram-se, com o andar dos tempos, uma espcie de directores espirituais do povo simples, com as suas reunies prprias e confrarias prprias. A semntica que est por detrs do verbo "explicar", que tem como raiz hebraica o verbo parash, como vimos, relaciona-se com a explicao da Lei de Moiss e das tradies orais. Neste estudo e interpretao, os fariseus seguiam duas linhas: a halakh e a haggadah. Por "halakh", do verbo halak, que significa "caminhar", os fariseus

apresentam comentrios Lei de Moiss que tm a ver COM as disposies jurdicas ou com a jurisprudncia segundo a qual eles e todo o povo deviam viver ou encaminhar a sua vida, seja no campo da familia, do casamento, das comidas, do vesturio, dos funerais, etc. Nada da vida podia escapar a esta jurisprudncia. Por isso, elaboraram 613 regras das quais 248 eram preceitos a cumprir e 365 eram interditos a evitar com todo o rigor. Por "haggadh", que significa dito, refro, mxima, e, por extenso, lenda, narrativa, definio e determinao, os fariseus discutiam, geralmente em dilogo e controvrsia de escolas rabnicas, os fundamentos teolgicos das suas posies. Por isso serviam-se das tradies orais e das prprias histrias verdadeiras ou fictcias. Lembremos, por exemplo, a "haggadh" sobre a ressurreio, que vem em Mt 22, 23-33 e par.: "Nesse mesmo dia, os saduceus, que no acreditam na ressurreio, foram ter com Ele [Jesus] e interrogaram-no: 'Mestre, Moiss disse: Se algum homem morrer sem filhos, o seu irmo casar com a viva, para suscitar descendncia ao irmo. Ora, entre ns, havia sete irmos. O primeiro casou e morreu sem descendncia, deixando a mulher a seu irmo; sucedeu o mesmo ao segundo, depois ao terceiro, e assim at ao stimo. Depois de todos eles, morreu a mulher. Ento, na ressurreio, de qual dos sete ser ela mulher, visto que o foi de todos?' Jesus respondeu-lhes: 'Estais enganados porque desconheceis as Escrituras e o poder de Deus. Na ressurreio, nem os homens tero mulheres nem as mulheres maridos; mas sero como anjos no Cu. E, quanto ressurreio dos mortos, no lestes o que Deus disse: Eu sou o Deus de Abrao, o Deus de Isaac e o Deus de Jacob? No dos mortos, mas dos vivos que Ele Deus!"' Vejamos agora uma "haggadh" do prprio Jesus a respeito da lei sabtica, que vem em Mt 12, 1-8 (par. Mc 2, 23-28 e Lc 6, 1-5). Jesus criticado pelos fariseus por causa dos seus discpulos, com fome, apanharem espigas ao sbado e comerem os seus gros. Jesus serve-se da histria de David, que tambm sentiu fome, bem como os que o acompanhavam,

25 entrou no templo e comeu os pes da oferenda, que s os sacerdotes podiam

comer. A histria contada por Jesus sobre David bastante diferente da original que vem no lSrn 21, 2-7, at porque no caso de David no se trata do assunto sobre o sbado, mas apenas do assunto duma proibio infringida por David, tal como os seus discpulos o fizeram em relao ao sbado. Semelhante sistema de ler e interpretar as Escrituras fazia com que os fariseus formassem uma espcie de ordem religiosa laica, com o seu noviciado de algums meses para serem provados, com as suas regras de jejuns, dzimos, purezas rituais, etc. Basta ouvirmos a parbola de Jesus sobre o fariseu e o publicano no evangelho de Lc 18, 10-14: "O fariseu, de p, fazia interiormente esta orao: Deus dou-te graas por no ser como o resto dos homens, que so ladres, injustos, adlteros; nem como este cobrador de impostos. Jejuo duas vezes por semana e pago o dzimo de tudo quanto possuo"'. Os fariseus eram recrutados de todas as camadas sociais: havia artesos, sacerdotes, comerciantes, escribas, gente simples dos campos... Sem dvida que os sacerdotes, mesmo os no fariseus, faziam uma espcie de pacto secreto com eles por causa de imporem as suas leis de impureza ritual a todo o povo. Para se distinguirem de todos os demais, os fariseus caam no exibicionismo e na incoerncia, pois gostavam de dar nas vistas e de mostrar as suas boas obras, quando davam esmola, quando jejuavam e quando oravam, e precisamente esta maneira de ser que Jesus combate, pedindo aos seus discpulos que faam precisamente o contrrio. O Jesus de Mateus o que mais combate este exibicionismo e incoerncia dos fariseus (Mateus 6, 1-17 e 23, 1-33). Mas reparemos que a finalidade de Mateus catequtica e se dirige multido e aos discpulos (Mateus 5, 1-2 e 23, 1). Mateus carrega as cores da crtica contra os fariseus para que os cristos no caiam nos mesmos defeitos, mas isto no significa que os fariseus fossem assim to maus e perversos. Temos que ter em conta que quando os evangelhos foram escritos, j no havia nem saduceus, nem sacerdotes, nem qualquer outro tipo de judeus, a no ser os fariseus que combatiam ferozmente a Igreja crist nascente. Alm do mais, Flvio Josefo descreve os fariseus de maneira muito positiva na sua obra Antiguidades Judaicas XVIII, 2, terminando desta

maneira: "As cidades renderam homenagem a tantas virtudes [dos fariseus], aplicando s suas vidas o que h de mais perfeito neles tanto na prtica como na doutrina". Os fariseus perscrutavam as Escrituras Sagradas e as tradies para encontrarem a vontade de Deus em todos os pormenores da sua vida. Para tanto, tinham as suas reunies semanais em assembleias de pequenos grupos e serviam-se especialmente das ceias de sexta feira e de sbado para semelhante estudo e doutrinao. por isso que os evangelhos nos apresentam Jesus a ser convidado pelos fariseus para jantar e a maneira como Jesus se servia desses jantares para a sua prpria doutrinao. Lembremos apenas trs narrativas dos sinpticos. A primeira vem em Lc 7, 36-50 (paralelos em Mt 26, 6-13; Mc 4, 3-9; Jo 12, 1-11). A narrativa comea assim: "Um fariseu convidou Jesus para comer consigo. Jesus entrou em casa do fariseu, e ps-se mesa." Depois segue-se a cena duma mulher pecadora que unge os ps de Jesus com um perfume muito raro como sinal de amor. Jesus dialoga com o fariseu sobre aquela atitude e termina por declarar que ele mesmo tem poder para perdoar os "muitos pecados daquela mulher, porque muito amou ". A segunda narrativa vem em Lc 11, 37-53 (paralelos em Mt 23, 1-36 e Mc 12, 38-40). Como na cena anterior, tambm abre com um convite de um fariseu a Jesus para ir jantar a sua casa: "Mal Jesus tinha acabado de falar, um fariseu convidou-o para jantar em sua casa". O fariseu estranhou que Jesus no tivesse feito as suas ablues rituais antes de comear a comer, e a partir deste estado de coisas que Jesus lana o seu repto contra o farisasmo que s se interessa pelo exterior e

26 aparncias, sem ir ao interior das coisas: "Vs, os fariseus, limpais o exterior do copo e do prato, mas o vosso interior est cheio de rapina e maldade". A terceira narrativa vem em Lc 14, 1-24 (paralelos em Mt 12, 9-14; Mc 3, 16) que comea desta maneira: "Tendo entrado, a um sbado, em casa de um dos principais fariseus para comer uma refeio, todos o observavam".

Depois curou um hidrpico que se encontrava tambm ali, e foi por causa desta cura que surgiu a controvrsia uma vez que a cura acontecia em dia de sbado. Seguiu-se a posio doutrinal de Jesus sobre a maneira de fazer bem em dia de sbado e a sua diatribe contra os fariseus que s se interessam pelas aparncias e pelos primeiros lugares. Em todas estas cenas, muito vivas no contraste doutrinal entre Jesus e os fariseus, o que mais sobressai o amor de Jesus pelos pecadores e pelos doentes, que os fariseus marginalizavam por pensarem que eram uns amaldioados de Deus. Os fariseus seguiam a lei do Levtico que prescrevia a santidade: "Sede santos porque Eu [vosso Deus] sou santo" (Lc 12, 45). Simplesmente, a santidade foi transformada no cumprimento exterior de leis e regras sobre as prescries do puro e impuro ritual, obrigando-os, na lgica destes rituais, a evitarem todo o contacto com os pecadores e os doentes. Mas os fariseus eram pessoas muito mais abertas e compreensivas do que os saduceus, porque enquanto os saduceus apenas estavam ligados s Escrituras, isto , s leis escritas, os fariseus aceitavam tambm a tradio oral, embora, tantas vezes, o seu zelo fosse excessivo e pouco humano (Mt 15, 1-20). , no entanto, devido a esta abertura tradio oral que aceitavam a ressurreio e a imortalidade (Ac 23, 6-10) e as expectativas messinicas. Embora os evangelhos apresentem Jesus em diatribes constantes contra os fariseus, a verdade que eles esto ausentes nos relatos da paixo, porque o processo final contra Jesus s podia depender das autoridades que tinham o poder de julgar a favor da vida ou da morte, que era o Sindrio, formado sobretudo pelos representantes dos saduceus, dos ancios, dos doutores da Lei e, especialmente, dos sumos sacerdotes. 5.2. OS SADUCEUS A origem dos saduceus no provm da palavra saddiq, que significa "o justo", como se pensava antigamente, mas do nome Sadoc, um sacerdote que Salomo colocou frente dos sacerdotes no Templo de Jerusalm, substituindo Abiatar. No tempo de David, Sadoc e Abiatar, juntamente com outros, faziam parte dos sacerdotes da casa real de David (2 Sm 20, 26). Mas quando Salomo subiu ao trono, Abiatar no defendeu a causa de Salomo, ao contrrio de Sadoc, e Salomo, por isso mesmo, mandou eliminar os seus inimigos, de

modo que foi Sadoc que esteve na origem genealgica dos sacerdotes futuros (1Rs 2, 12.35), estabelecendo a ponte entre Aaro, sacerdote irmo de Moiss, e o actual sacerdcio. Assim se explicam as palavras da Escritura postas na boca de Deus: "Suscitarei para mim um sacerdote fiel, que proceder segundo o meu corao e a minha vontade. Hei-de edificar-lhe uma casa slida [isto , uma linhagem hereditria] e duradoira, e ele viver sempre na presena do meu ungido [isto , do meu rei]" (1 Sm 2, 35). Esta linhagem de Sadoc permaneceu at ao exlio, mas quando se deu a reconstruo do Templo de Jerusalm, depois do exlio, no ano 515 a.C., apareceram outros sacerdotes a defenderem a sua legitimidade sadocita. O profeta Ezequiel, que era sacerdote, fala dos sacerdotes do seu tempo, como verdadeiros "filhos de Sadoc" em 40, 46; 43, 19; 44, 15; 48, 13. Mas o partido dos saduceus, que aparece nos evangelhos, tem a sua origem no sculo II a.C., no tempo dos Macabeus. Apresenta-se a primeira vez quando Jnatas Macabeu, que era de familia sacerdotal, mas no sadocita, se autodenominou, ao mesmo tempo, rei e sacerdote

27 (153 a. C.; lMc 10, 20-21). Necessariamente, surgiu a contestao da verdadeira famlia dos sacerdotes sadocitas contra este estado de coisas. E foi tambm deste modo que os saduceus e os fariseus comearam a degladiar-se, de modo que os reis Asmoneus, sados do cl dos Macabeus, como j vimos, ora apoiavam mais os fariseus, ora mais os saduceus. Assim aconteceu com Alexandre Janeu depois de Joo Hircano, com a rainha Alexandra (76-67 a.C.), com Aristbulo II (67-63 a. C.) e com Herodes Magno, que tentou agradar e controlar os dois partidos consoante as suas convenincias. O grupo ou o partido dos saduceus designa, portanto, no tempo de Jesus, aqueles homens, recrutados entre a classe sacerdotal e a nobreza laica, representados no Sindrio e que, por isso mesmo, governavam o Israel poltico e religioso, sempre de mos dadas com os polticos da ocasio, primeiro com os Asmoneus, depois com Herodes e com os romanos.

Ao contrrio dos fariseus, os saduceus mantinham uma atitude mais liberal e mais laica, agarrados ao poder e ao tradicionalismo poltico e religioso, tentando dar-se bem com Asmoneus e Romanos. Por isso mesmo, s aceitavam como Escritura normativa e sagrada o Pentateuco e rejeitavam as tradies dos fariseus, que defendiam o resto das Escrituras, a ressurreio, a imortalidade e os anjos (Mt 22, 23-33. Lc 20, 27-38; Ac 4, 2; 23, 8; Flvio Josefo, Bellum Judaicum 2, 164-166;AntiquitatesJudaicae, 12, 173; 18, 12). interessante ouvirmos o texto de Flvio Josefo das Antiguidades Judaicas no cap. 18, 12: "A doutrina dos saduceus afirma que as almas se desvanecem ao mesmo tempo que os corpos, e no se preocupam em observar qualquer outra coisa que no sejam as leis [isto , o Pentateuco]. Para eles uma virtude estarem em desacordo com os mestres da sabedoria [alguns escribas do grupo dos saduceus] que eles professam. Esta doutrina penetrou apenas nalgumas pessoas, mas que so as primeiras em dignidade. No tm, por assim dizer, nenhuma funo. E que, quando chegam ao governo, apesar disso e por necessidade, concedem tudo o que diz o fariseu, para que o povo no se vire contra eles." Por aqui ficamos a saber que, para os saduceus, s os sacerdotes eram os intrpretes autnticos da Lei, opondo-se desta feita aos fariseus que eram leigos. No acreditavam na imortalidade da alma e na ressurreio, defendiam um tradicionalismo poltico e religioso, mas, na prtica, porque eram menores em relao aos fariseus e tinham menos Influncia junto do povo, cediam as suas posies a favor dos fariseus quando se tratava de agradar ao povo. Serviam-se, portanto, de dois pesos e duas medidas, conforme as convenincias. Por isso que se explica que as relaes de Jesus com os saduceus so muito menores do que as relaes com os fariseus. Se Jesus contactava directamente com o povo e no com os polticos e com as autoridades religiosas era n