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UNIVERSIDADE DO EXTREMO SUL CATARINENSE - UNESC CURSO DE ARTES VISUAIS - BACHARELADO VERIDIANA MENDES JANELAS DA MEMÓRIA CRICIÚMA 2015

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  • UNIVERSIDADE DO EXTREMO SUL CATARINENSE - UNESC

    CURSO DE ARTES VISUAIS - BACHARELADO

    VERIDIANA MENDES

    JANELAS DA MEMRIA

    CRICIMA

    2015

  • VERIDIANA MENDES

    JANELAS DA MEMRIA

    Trabalho de Concluso de Curso, apresentado para obteno do grau de Bacharel no curso de Artes Visuais da Universidade do Extremo Sul Catarinense, UNESC. Orientadora: Prof. Ma. Edite Volpato Fernandes

    CRICIMA

    2015

  • VERIDIANA MENDES

    JANELAS DA MEMRIA

    Trabalho de Concluso de Curso aprovado pela Banca Examinadora para obteno do Grau de Bacharel, no Curso de Artes Visuais da Universidade do Extremo Sul Catarinense, UNESC, com Linha de Pesquisa em Processos e Poticas: Linguagens.

    Cricima, 23 de junho de 2015.

    BANCA EXAMINADORA

    Prof. Edite Volpato Fernandes - Mestre - (UDESC) - Orientadora

    Prof. Tiago da Silva Coelho- Mestre - (UNESC)

    Prof. Marcelo Feldhaus Mestre - (UNESC)

  • Dedico este trabalho a Deus, a minha me

    Lourdes, a meu pai Vilson (in memoriam) e

    ao meu companheiro Cesar.

  • AGRADECIMENTOS

    Agradeo em primeiro lugar a Deus, por estar sempre comigo, sendo meu

    refgio e minha fortaleza em todos os momentos.

    minha me Lourdes, minha melhor amiga, meu espelho, meu orgulho,

    sempre me apoiando em todas as aventuras da minha vida. De mos dadas

    seguimos fortes, mesmo com todos os obstculos que a vida colocou em nosso

    caminho. No h palavras nem gestos suficientes para expressar tamanho amor.

    Ao meu pai Vilson (in memoriam), mesmo que no tenha sua presena

    fsica, o sinto comigo em todos os segundos. Minha memria guarda com exatido

    todos os seus movimentos, suas expresses, seu cheiro, seu toque; a saudade

    uma dor eterna, incurvel e que remdio algum alivia. Queria o ltimo abrao antes

    da partida, como um anestsico para aliviar a dor da ferida, teus olhos que me

    acalmam, deixam minha alma que chora.

    Ao meu companheiro Mrio Cesar, que h mais de cinco anos e, em

    especial neste momento, exercita a compreenso, pacincia e amor. Neste tempo

    aprendemos, crescemos e comprovamos que realmente s temos a ganhar um com

    o outro.

    minha orientadora Edite que com a doura dos seus olhos e sorriso me

    conduziu com exmia sabedoria, atravs da calma dos seus gestos e palavras.

    minha sogra Lcia, que sem medir esforos prontamente percorreu

    Urussanga comigo e me acompanhou nas entrevistas realizadas.

    minha colega, amiga e confidente Rafaela, parceira de tantas misses

    interminveis.

    minha colega Melissa, que compartilhou desesperos e inquietaes

    durante este percurso.

    Aos professores do curso que contriburam para minha formao, no

    apenas profissional, mas pessoal, cada um possui uma mgica presena que levarei

    comigo onde for.

    Urussanga, cidade onde nasci, cresci e que um dia ainda voltarei a

    morar, pela sua beleza, seu charme e seu magnetismo cultural.

    s casas mais belas e poticas, com as janelas mais convidativas e

    sinceras, feito molduras que enriquecem o olhar.

    Ao poeta passarinho Manoel de Barros, que me ensinou a carregar gua

  • na peneira e a encher vazios, sinto saudade do seu sorriso sem ao menos t-lo

    visto.

    A todos os animais que fizeram parte da minha vida, pois desde que me

    entendo por gente eles sempre estiveram comigo, sendo meus melhores amigos,

    companheiros de aventuras, segredos e peraltices, em especial, ao meu boi amigo

    Mansinho (nunca vou esquecer seu choro um dia antes de me deixar). s centenas

    de gatos que encontrei na rua e acolhi em minha casa, mesmo contra a vontade dos

    meus pais, em especial aos que me fazem companhia neste momento Nina, Chico e

    outros cinco que ainda no possuem nome; Catarina, hoje minha nica companhia

    canina de olhos midos e expresses humanas; s galinhas que hipnotizei; aos

    patos e marrecos que tentei abraar, mas sempre fugiam de mim e aos ces que

    sigo at hoje nas ruas.

    E, em especial s vozes desta pesquisa que contriburam de forma nica

    com suas histrias, opinies e emoes, so elas: Graciana de Bona, Ado Bettiol,

    Valdecir Miotello, Ivete Bez Batti Bastos Alves e Marielle Bonetti.

  • Uma lembrana diamante bruto que

    precisa ser lapidado pelo esprito. Sem o

    trabalho da reflexo e da localizao, seria

    uma imagem fugidia. O sentimento tambm

    precisa acompanh-la para que ela no seja

    uma repetio do estado antigo, mas uma

    reapario.

    Ecla Bosi

  • RESUMO

    A presente pesquisa intitulada Janelas da Memria est inserida metodologicamente na linha de Processos e Poticas: Linguagens, do curso de Artes Visuais - Bacharelado da UNESC. Trata-se de uma pesquisa em arte, com abordagem qualitativa com objetivo de desenvolver um estudo sobre as edificaes tombadas da cidade de Urussanga materializando a memria e a identidade dos moradores, tomando as janelas como elemento substancial e ento desenvolver uma produo artstica. Para tanto, apresenta a problemtica: como materializar poeticamente a memria e a identidade dos moradores de Urussanga/SC, evidenciadas em seu Patrimnio Cultural, a partir do olhar de fora para dentro das janelas das suas casas tombadas? A pesquisa trata sobre as relaes entre arte, memria, identidade e patrimnio histrico. Para tratar destas relaes, a pesquisa faz uso da reviso bibliogrfica e sustenta-se com autores que abordam a temtica do estudo, entre os quais ressalto: Zamboni (2001), Choay (2001), Bosi (2001), Cauquelin (2007), Halbwachs (2006) e Ostrower (1987). Componho a pesquisa com imagens e narrativas, resultado de entrevistas, para fortalecer o processo criativo da produo artstica envolvida neste estudo.

    Palavras-chave: Patrimnio Cultural. Memria. Janela. Arte. Identidade.

  • LISTA DE ILUSTRAES

    Figura 1 Casaro da famlia Nichele, construo de 1907 ..................................... 33

    Figura 2 Casaro da Viva Nichele, construo 1908 ........................................... 33

    Figura 3 Conjunto Arquitetnico Bez Fontana, construo 1901 ........................... 34

    Figura 4 Igreja Matriz Nossa Senhora da Conceio ............................................. 35

    Figura 5 Casaro da Famlia Boccardo, construo 1921 ..................................... 35

    Figura 6 Primeira Prefeitura Municipal, construo 1902 ....................................... 36

    Figura 7 Igreja So Gervsio e Protsio, construo 1912 .................................... 36

    Figura 8 Residncia da Famlia Bettiol,construo 1933 ....................................... 37

    Figura 9 Cantina Cadorin, construo em etapas, incio 1927 at 1944 ................ 37

    Figura 10 Estao Ferroviria Urussanga, construo 1925.................................. 38

    Figura 11 Casa Ivanir Cancellier, construo 1909 ................................................ 38

    Figura 12 Casa Iva Damian, construo, 1896 ...................................................... 39

    Figura 13 Casa da famlia de Csaro, construo 1937 ........................................ 39

    Figura 14 Casa de Fioravante Mazzucco, construo 1914................................... 40

    Figura 15 Casa da Famlia Miotello, construo 1943 ........................................... 40

    Figura 16 Casa da Famlia De Lorenzi Cancellier, construo 1907 ...................... 41

    Figura 17 Casa Rosalino Damiani, construo 1929 ............................................. 41

    Figura 18 Casa de Lucas Bez Batti: Casa de Bona Marchet, construo 1925 ..... 42

    Figura 19 Casa de Lucas Bez Batti: Casa Palcio de Lucca, construo 1896 ..... 42

    Figura 20 Casa Torquato Tasso, construo 1892 ................................................ 43

    Figura 21 Casaro da Famlia Mazzucco, construo 1912................................... 43

    Figura 22 Casa de Caetano Bez Batti, construo 1936 ........................................ 44

    Figura23 Victorio Bez Batti, construo 1925 ......................................................... 44

    Figura 24 Casa de Carmela Bez Batti, construo 1948 ........................................ 45

    Figura 25 Casa de Zeferino Brigo, construo 1944 ............................................ 45

    Figura 26 Produto Urbano, 2013 ............................................................................ 54

    Figura 27 View from the Window at Le Gras, 1826 de Joseph Nicphore Niepce,

    Col. Gernsheim, Harry Ransom Center Austin/Texas EUA .................................. 55

    Figura 28 - (des)construes #1, 2007 Fotografia e Colagem 95x98cm ................... 56

    Figura 29 - Conhecidos de Vista #22, Fotografia, 2013 150 x 100 cm ...................... 57

    Figura 30 Janela #01 - 2015 ................................................................................... 59

    Figura 31 Janela #02 - 2015 ................................................................................... 59

  • Figura 32 Janela#03 - 2015.................................................................................... 59

    Figura 32 Janela#03 - 2015.................................................................................... 59

    Figura 33 Janela #4 - 2015..................................................................................... 59

    Figura 34 Janela #05 - 2015 ................................................................................... 60

    Figura 35 Janelas da Pesquisa .............................................................................. 61

    Figura 36 Janelas da Pesquisa .............................................................................. 62

    Figura 37 Janelas da Pesquisa .............................................................................. 63

    Figura 38 Esboo 1 da disposio das fotografias, 2014. ...................................... 64

    Figura 39 Esboo 2 da disposio das fotografias, 2015 ....................................... 65

    Figura 40 Esboo 3 da disposio das fotografias, 2015. ...................................... 66

    Figura 41 - Esboo 4 da disposio das fotografias, 2015. ....................................... 67

  • LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

    EFDTC Estrada de Ferro Dona Teresa Cristina

    FCC Fundao Catarinense de Cultura

    UNESC Universidade do Extremo Sul Catarinense

    UNESCO Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a

    Cultura

    IPHAN Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional

    RS Rio Grande do Sul

    SC Santa Catarina

    SPHAN Servio do Patrimnio Histrico Artstico Nacional

  • SUMRIO

    1 ABRINDO AS JANELAS ....................................................................................... 11

    1.1 ALICERCES METODOLGICOS ....................................................................... 13

    2 PILARES DO PATRIMNIO: DO MONUMENTO AO CULTURAL ...................... 18

    2.1 PATRIMNIO NO BRASIL .................................................................................. 22

    2.2 REFLEXES SOBRE CONCEITOS DE PATRIMNIO, CULTURAL, NATURAL,

    IMATERIAL ............................................................................................................... 25

    3 URUSSANGA, PAISAGEM CULTURAL ITALIANA ............................................. 28

    3.1 JANELAS DA MEMRIA: AS CASAS ................................................................ 31

    4 MEMRIA E IDENTIDADE .................................................................................... 46

    4.1 O OLHAR PARA DENTRO DAS JANELAS: PESQUISA DE CAMPO ................ 48

    5 ARTE E ARTE CONTEMPORNEA ..................................................................... 52

    5.1 A POTICA DA JANELA ..................................................................................... 53

    5.2 PROCESSO CRIATIVO, PRODUO ARTSTICA ............................................ 58

    6 CONSIDERAES DE UMA JANELA ABERTA ................................................. 68

    REFERNCIAS ......................................................................................................... 70

    APNDICES ............................................................................................................. 74

    APNDICE A QUESTIONRIO ............................................................................. 75

    APNDICE B TERMO DE CONSENTIMENTO ..................................................... 76

    ANEXOS ................................................................................................................... 77

    ANEXO A REPORTAGEM DO JORNAL A TRIBUNA SOBRE A EXPOSIO:

    CITY ART, EDIO 15 E 16 DE JUNHO DE 2013 ................................................... 78

  • 11

    1 ABRINDO AS JANELAS

    O morar transcende a ideia de delimitao de um espao de convivncia,

    o lar mgico, a expresso de si e dos seus, capaz de estabelecer relaes de

    cumplicidade que dificilmente podero ser rompidas. Tenho um apego

    extremamente significativo e intenso pela casa onde morei, as lembranas esto

    enraizadas na memria sobre os animais que tive, objetos e amigos. O aude onde

    pescvamos e refletamos, s vezes em que esteve vazio foi palco para as mais

    ldicas brincadeiras. Como disse Manoel de Barros meu quintal maior que o

    mundo1. Estes momentos vividos em famlia esto refletidos em minha

    personalidade e nos meus atos.

    esta comunho com o morar e com o que construmos com ele, que me

    fez perceber e ter curiosidade sobre as casas ao redor da cidade de Urussanga/SC

    e sobre as famlias que ali viveram, pois so lugares vivos, repletos de sentimentos e

    significaes. Desde criana, quando passeava na Praa de Urussanga ficava

    atrada pela beleza e os mistrios que cercam as casas antigas. A imaginao e

    devaneios me transportavam para um contexto que no vivi, mas que aquelas casas

    levaram a sentir. Ficava ento perguntando: ainda existiam moradores ali? O que

    tais casas guardavam no seu interior? Sentia que se conseguisse olhar pela janela,

    poderia descobrir.

    Conforme o tempo foi passando, os questionamentos a respeito destas

    casas reformularam-se, ento no contexto da pesquisa que inicio, pergunto

    novamente: quais histrias e experincias esto impregnadas durante todos estes

    anos em suas paredes? Qual o comportamento dos seus moradores, seus

    costumes, tradies? E assim surgiu minha fascinao pelo Patrimnio Cultural, que

    sobrevive s transformaes urbanas e representa a memria coletiva. Como as

    janelas, que so para a casa o que os olhos so para o ser humano, ou seja, uma

    casa sem janelas como se fosse cega, presa em uma escurido sem memrias. A

    arte entrou na minha vida juntamente com as descobertas do olhar.

    Sempre fui muito curiosa e gostava de desenhar tudo o que descobria,

    sobre qualquer superfcie que estivesse ao meu redor. As aulas de Educao

    1 Frase do poema O apanhador de desperdcios. In: BARROS, Manoel de. O Apanhador de

    Desperdcios. Entre Culturas, 2010. Disponvel em: . Acesso em: 07/06/2015

  • 12

    Artstica2 no colgio em que estudei eram as minhas preferidas, lembro-me como se

    fosse hoje das diversas releituras dos girassis de Van Gogh3, que a professora nos

    colocava a desenhar.

    Quando criana o olhar atento, curioso e exploratrio, porm medida

    que crescemos e nos tornamos adultos, a percepo propende a ficar condicionada

    por consequncia da rotina e das aes automatizadas, neste momento aparece o

    diferencial olhar artstico, que pode permanecer como o de uma criana, um olhar

    novo, permitindo-se renovar continuamente. A partir desta renovao do olhar que

    permite refazer formas, reconstruir e materializar memrias que inicio este estudo

    para o Trabalho de Concluso de Curso do Bacharelado em Artes Visuais.

    A partir das indagaes de criana e da relao entre memria local e o

    morar, o sentido das janelas e as casas antigas, parto dos temas arte, memria e

    patrimnio cultural, procurando compreender ao longo da pesquisa: como

    materializar poeticamente a memria e a identidade dos moradores de

    Urussanga/SC, evidenciadas em seu Patrimnio Cultural, a partir do olhar de fora

    para dentro das janelas das suas casas tombadas? Para maior abrangncia da

    pesquisa faz-se relevante explorar outras questes como: Que concepes temos

    sobre patrimnio, memria e identidade cultural? Quais so as edificaes de

    Urussanga, que se constituram como patrimnio cultural local? Qual o contexto em

    que foram construdas tais casas? Que memrias esto relacionadas quelas casas

    antigas a partir do olhar de seus proprietrios, moradores, parentes ou cidados de

    Urussanga? Como percebem as janelas? Que relaes podem ser estabelecidas

    entre as casas como patrimnio cultural, memrias e identidade no intuito de

    desenvolver uma produo artstica?

    A partir destas questes, tenho como objetivo principal desenvolver uma

    pesquisa sobre algumas casas antigas da cidade de Urussanga, atravs de

    entrevistas, materializando a memria e a identidade dos moradores, a fim de

    elaborar poeticamente o olhar de fora para dentro das janelas e ento desenvolver

    uma produo artstica.

    2 Disciplina educativa cursada no ensino infantil, fundamental e mdio.

    3 Girassis, obra do pintor impressionista Vincent Van Gogh, leo sobre tela, tamanho 92,1 cm x 73

    cm, ano 1988. Fonte: UNIVERSIA BRASIL. Impressionismo: Vaso com quinze girassis, de Vincent Van Gogh. Fev, 2014. Disponvel em: . Acesso em: 07/04/2015

  • 13

    Destacam-se como objetivos especficos: aprofundar a compreenso

    terica acerca das concepes e relaes entre arte, memria e patrimnio cultural

    local; Analisar e apresentar as casas antigas tombadas do patrimnio cultural da

    cidade de Urussanga, como espaos de memria e de identidade cultural;

    Compreender as relaes intertextuais entre as casas presentes na paisagem

    urbana, e o imaginrio social; Identificar elementos e registros do passado, bem

    como os mais representativos presentes nas casas estudadas e evidenci-los de

    forma potica, atravs de uma produo artstica que pretende evidenciar as janelas.

    1.1 ALICERCES METODOLGICOS

    A presente pesquisa intitulada Janelas da Memria est inserida na linha

    de pesquisa Processos e Poticas: Linguagens, do curso de Artes Visuais

    Bacharelado da Universidade do Extremo Sul Catarinense UNESC, onde se

    encontram as concepes tericas e processos de criao contemplando as

    linguagens artsticas. Arte, linguagens e contextos dos fenmenos visuais4. Segundo

    Gil (2002, p. 17) a pesquisa definida como um

    [...] procedimento racional e sistemtico que tem como objetivo proporcionar respostas aos problemas que so propostos. A pesquisa desenvolve-se por um processo constitudo de varias fases, desde a formulao do problema at a apresentao e discusso dos resultados.

    Ao ingressar no Curso de Bacharelado em Artes Visuais, na Universidade

    do Extremo Sul Catarinense UNESC, no ano de 2011, estava certa do que me

    levara at ali, isto , meu apreo pela histria e sua temporalidade, que mesmo

    sendo transitria, marca com epgrafes o tempo e fixa fatos na memria. As aulas de

    Histria da Arte me proporcionaram estudos sobre os movimentos artsticos, seus

    componentes estticos, e como a arte caminha com a histria, interferindo nela. Ao

    longo do curso outras disciplinas, como Iconografia Cultural e Regional, Esttica e

    Processos Fotogrficos impulsionaram o intento de pesquisar sobre os temas Arte,

    Memria e Patrimnio Cultural.

    O trabalho de concluso de curso, que parte integrante do bacharelado

    em artes visuais, possui caractersticas especficas, pois envolve uma pesquisa em

    4UNESC. Resoluo n.38/2014/ Colegiado UNAHCE UNESC. 2014. Disponvel em

    Acesso em 2 jun. 2015 s 20h.

    http://www.unesc.net/portal/

  • 14

    arte e sobre a arte, porque, de acordo com Zamboni (2001, p. 6) pesquisa em arte

    o trabalho de pesquisa em criao artstica, empreendido por artistas que objetivam

    obter como produto final a obra de arte. Desta forma, requer uma escrita

    fundamentada e, de forma concomitante, o desenvolvimento de uma produo

    artstica, ou seja, quando o artista tambm se assume como pesquisador e busca,

    com essa dupla face, obter trabalhos artsticos como resultado de suas pesquisas

    (ZAMBONI , 2001, p. 6). A produo artstica resultante deste empenho dever ser

    exposta ao trmino do trabalho em uma galeria de arte, com apresentao para uma

    banca examinadora.

    Neste contexto, as pesquisas em arte e sobre arte apontam um paradoxo

    entre o objetivo e o subjetivo, pois percebemos que as atividades relacionadas ao

    conhecimento humano giram em torno de um componente lgico, racional e

    inteligvel de um lado, e de um componente intuitivo e sensvel de outro. (ZAMBONI,

    2001).

    Partindo do ponto de que a pesquisa requer um sistema metodolgico, o

    presente estudo contempla os parmetros estruturados, tendo em vista que a

    metodologia inclui as concepes tericas da abordagem, articulando-se com a

    teoria, com a realidade emprica e com os pensamentos sobre a realidade

    (MINAYO, 2009, p. 15). No entanto, quando elucidada a pesquisa em arte como

    conhecimento no mbito das artes, realizada por meio do processo de criao, ela

    assume uma postura potica, que, para Zamboni (2001) possui a existncia da fora

    intuitiva e sensvel contida em qualquer processo de trabalho.

    Esta investigao surgiu a partir do olhar nostlgico e questionador para

    as casas histricas da cidade de Urussanga, e para um elemento em particular: as

    suas janelas. A temtica deste estudo busca materializar poeticamente a memria e

    a identidade de moradores de Urussanga atravs do seu Patrimnio Cultural. Trata-

    se de uma pesquisa de natureza bsica, que objetiva gerar conhecimento e procura

    se aprofundar em um grupo social atravs da memria e sua identidade,

    relacionando e desenvolvendo o fazer artstico. tambm classificada como uma

    abordagem qualitativa, pois para Minayo (2009, p. 22) a pesquisa qualitativa

    trabalha com um universo de significados, motivos, aspiraes, crenas, valores e

    atitudes, o que corresponde a um espao mais profundo das relaes dos processos

    e dos fenmenos que no podem ser reduzidos operacionalizao de variveis.

  • 15

    Quanto aos objetivos, uma pesquisa exploratria, que proporciona

    maior familiaridade com o problema, no intuito de torn-lo mais explcito ou a

    construir hipteses (GIL, 2002, p. 41). Do ponto de vista dos procedimentos tcnicos

    a pesquisa bibliogrfica, pois desenvolvida com base em material j elaborado,

    constitudo principalmente de livros e artigos cientficos (GIL, 2002, p. 44).

    O estudo realizado na cidade de Urussanga/SC, nesta pesquisa fao a

    descrio das vinte e cinco edificaes tombadas pelo patrimnio histrico nacional.

    Destas, sero selecionadas cinco casas, as quais a pesquisa perscruta, esta seleo

    ser realizada aleatoriamente. Para investigar as memrias intrnsecas nestes cinco

    casares escolhidos, o estudo faz o uso de entrevistas com questes pr-definidas,

    elaboradas de acordo com o que a pesquisa pretende responder.

    Em primeiro momento a entrevista acontece com o prprio

    morador/proprietrio, que vivenciou o local desde a sua construo, mas caso o

    mesmo no esteja disponvel, a entrevista se d com familiares, partindo daquele

    que mais tempo residiu na casa. Estive provida com o roteiro de perguntas

    (Apndice A) e com o termo de consentimento livre e esclarecido do participante

    (Apndice B), tambm com um gravador de udio e uma cmera fotogrfica digital.

    As entrevistas possibilitam interligar memrias e narrativas, instigar o

    olhar contemplativo e reflexivo, alm de compreender o que elas entendem por

    patrimnio cultural, o que ele proporciona e representa na cidade, e da mesma

    forma, evidenciar as janelas e fomentar o significado deste elemento (janela) com

    um olhar de fora para dentro.

    O roteiro de perguntas foi elaborado a partir da inquietao a respeito do

    olhar para dentro da janela e do desejo de conhecer a histria das casas, o percurso

    da construo e seus moradores. Posteriormente so elaboradas reflexes sobre a

    relevncia e o valor do patrimnio cultural para a cidade de Urussanga, lembrando

    que muitas vezes o patrimnio tratado como empecilho ou at mesmo invisvel aos

    olhos de quem o circunda. As entrevistas esto registradas por meio de gravaes

    de udio, alguns trechos so transcritos para o presente estudo e as casas visitadas

    so registradas em fotografias.

    Esta investigao envolve uma produo artstica, sendo esta produo

    alimentada pelas narrativas de cada entrevistado. A inteno identificar a

    construo da identidade da cidade, atravs de elementos representativos e os

    realar de forma potica a partir de um elemento substancial: as janelas, que alm

  • 16

    da sua funo de entrada de ar e luz, assumem um potencial potico e significativo.

    A pesquisa apresenta seis captulos, sendo que o primeiro refere-se

    introduo: abrindo as janelas que abrange as motivaes pessoais para

    desempenhar esta investigao, bem como os alicerces metodolgicos sustentados

    com tericos como Zamboni (2001), Gil (2002) e Minayo (2009).

    No segundo captulo: pilares do patrimnio: do monumento ao cultural

    trago a etimologia da palavra patrimnio e suas concepes durante a histria, como

    ocorreu no Brasil explanando sobre seus conceitos cultural, natural e imaterial,

    contextualizando com autores como Choay (2001), Funari e Pelegrini (2009) e Abreu

    (2003).

    No terceiro captulo: Urussanga, paisagem cultural trago um resumo

    sobre a histria da cidade e da imigrao italiana, fundamentando com Baldessar

    (2005), Escaravaco (1984) e tambm reflexes sobre as edificaes tombadas da

    cidade e sobre a relao do homem com sua casa, para tanto, me apoio em

    Bachelard (1989).

    Memria e identidade o titulo do quarto captulo, no qual fao reflexes

    sobre memria individual, coletiva e identidade, dialogando com Halbwachs (2006) e

    Hall (2005). No subcaptulo o olhar para dentro das janelas: pesquisa de campo,

    apresento a pesquisa de campo onde realizei entrevistas com familiares, moradores

    e outras pessoas que possuem relao com as casas tombadas na cidade de

    Urussanga, relacionando a memria dos entrevistados com as minhas, tendo como

    referncia a autora Bosi (2001).

    No quinto captulo arte e arte contempornea, apresento uma discusso

    a respeito da arte e das linguagens artsticas das quais fao uso para elaborao da

    produo artstica, expondo conceitos apresentados por Dubois (2003) e Bosco

    Silva (2008). No subcaptulo seguinte, a potica da janela, apresento os

    significados deste elemento da arquitetura e tambm objeto de estudo da pesquisa.

    Relacionando com poticas pessoais encontro em Cauquelin (2007) e Jorge (1995)

    fundamento para abordar o assunto, tambm trago a artista Leticia Lampert como

    referncia artstica. No quinto captulo trato do processo criativo e da produo

    artstica envolvidos na pesquisa, com conceitos de Ostrower (1987) e Salles (1998).

    O ltimo captulo: consideraes de uma janela aberta apresento os

    resultados alcanados com esta pesquisa e o anseio de que as janelas, sejam das

    casas tombadas, sejam da minha ou de outras casas, estejam sempre abertas, e

  • 17

    que a luz que entrar por elas revele o cotidiano potico e corriqueiro que seduz o

    olhar.

    A janela est aberta, convido ento a olhar para dentro dela desprendido

    de conceitos e repleto de inteno.

  • 18

    2 PILARES DO PATRIMNIO: DO MONUMENTO AO CULTURAL

    A palavra patrimnio possui mltiplos significados quando inserida em

    contextos distintos, possvel classific-la como aquilo que traz consigo um valor

    agregado, podendo ser ele econmico e/ou afetivo. Neste sentido, o patrimnio

    torna-se uma concepo de pertencimento, tal como uma empresa patrimnio de

    seu proprietrio, uma casa, uma jia, um objeto de valor, tal como herana de

    famlia. O termo patrimnio foi redefinido durante alguns perodos histricos, at

    chegar sua designao atual. Segundo a etimologia da palavra patrimnio, a

    mesma composta por dois vocbulos greco-latinos pater e nomos, onde pater

    significa pai ou chefe de famlia e nomos est relacionado a um grupo social, suas

    normas de conduta e seus costumes. Em conformidade com Abreu (2003, p. 34),

    A noo de patrimnio traz em seu bojo a ideia de propriedade. Etimologicamente, traduz a concepo de herana paterna. No sentido jurdico refere-se a um complexo de bens materiais ou no, direitos, aes, posse e tudo o mais que pertena a uma pessoa ou empresa e seja suscetvel de apreciao econmica.

    Ainda sobre a origem da palavra patrimnio, Funari e Pelegrini (2009)

    reafirmam seu significado patriarcal e individual, caracterizado pela aristocracia

    romana quando

    [...] se referia, entre os antigos romanos, a tudo que pertencia ao pai, pater ou pater familias, pai de famlia. [...] A famlia compreendia tudo que estava sob domnio do senhor, inclusive a mulher e os filhos, mas tambm os escravos, os bens mveis, at mesmo os animais. Isso tudo era o patrimonium, tudo que podia ser legado por testamento, sem excetuar, portanto, as prprias pessoas. (FUNARI; PELEGRINI, 2009, p. 10)

    Neste contexto possvel entender que o patrimnio estava reservado a

    bens privados, exclusivos da aristocracia romana, pois no existia a compreenso

    de patrimnio pblico. Foi com a Igreja5 a partir da Antiguidade tardia6 e da Idade

    Mdia7 que a concepo coletiva do patrimnio passou a tomar forma, onde o culto

    aos santos e a valorizao das relquias deram s pessoas comuns um sentido de

    5No sentido de Instituio.

    6 Perodo histrico compreendido entre os sculos IV e V.

    7 Perodo histrico compreendido entre os sculos V e XV.

  • 19

    patrimnio muito prprio: [...] a valorizao tanto dos lugares e objetos como dos

    rituais coletivos (FUNARI; PELEGRINI, 2009, p. 12).

    Para abordar as construes do conceito de patrimnio durante perodos

    histricos, fundamental discutir a noo de monumento:

    O termo do latim monumentum que por sua vez deriva de monere (advertir, lembrar), aquilo que traz a lembrana de alguma coisa. A natureza afetiva do seu propsito essencial: no se trata de apresentar, de dar uma informao neutra, mas de tocar, pela emoo, uma memria viva. Neste sentido primeiro, chamar-se- monumento tudo o que for edificado por uma comunidade de indivduos para rememorar ou fazer que outras geraes de pessoas rememorem acontecimentos, sacrifcios, ritos ou crenas (CHOAY, 2001, p. 17).

    Desta forma o monumento assume a funo de lembrana e resgate de

    fatos importantes de um grupo social, e posteriormente, como completa Choay

    (2001), a essncia do monumento tem sua relao com o tempo vivido e com a

    memria, assim, o monumento se coloca como elemento de relao entre o ser

    humano e a memria individual e coletiva. Ele est associado a grupos sociais, com

    o propsito de relembrar e materializar a memria de algo significativo para os seus.

    Na mesma concepo, Camargo (2002) usa o termo monumentos intencionais,

    construdos com a inteno de perpetuar a memria de um fato, de uma pessoa, de

    um povo.

    importante tambm discernir monumento, de monumento histrico,

    como destaca A. Riegl:

    O monumento histrico no desde o princpio, desejado (ungewollte) e criado como tal; ele constitudo a posteriori pelos olhares convergentes do historiador e do amante da arte, que o selecionam na massa dos edifcios existentes, dentre os quais os monumentos representam apenas uma pequena parte. [grifo do autor] (1903 apud CHOAY, 2001, p. 25)

    Portanto, certos elementos da histria podem ser tomados como valor

    histrico e artstico sem que tenham como intuito sua construo para testemunho

    memorial ou celebrativo.

    Tomando perodos e fatos marcantes da histria da humanidade, temos o

    Renascimento8 marcado pela ruptura com o passado medieval e a redescoberta dos

    valores culturais greco-romanos, juntamente com o ideal humanista que coloca o ser

    8 Perodo histrico compreendido entre os sculos XIV e XIV.

  • 20

    humano no centro do Universo, contesta o domnio da religio e data um perodo

    demasiadamente importante para as concepes de monumento e patrimnio. Esta

    retomada aos referenciais da Antiguidade fez com que os humanistas se

    preocupassem com a catalogao e coleta de tudo que viesse dos antigos:

    moedas, inscries em pedra, vasos de cermica, estaturia em mrmore e em

    metal. Vestgios de edifcios tambm eram desenhados e estudados [...]. (FUNARI;

    PELEGRINI. 2009, p. 13).

    A prtica do colecionismo de extrema importncia para formulao

    histrica de patrimnio e, ao que se refere sua conservao, Choay (2001) esclarece

    que os eruditos europeus, ento chamados de antiquaries (antiqurios) dedicaram

    sua ateno e estudos aos monumentos e vestgios da Antiguidade com uma

    pesquisa meticulosa e paciente. Estes vestgios e monumentos confirmavam

    testemunho material dos autores gregos e romanos e era para os antiqurios de

    extrema confiabilidade quanto s informaes originais sobre os usos e costumes da

    poca, pois os antiqurios desconfiavam dos livros [...]. Para eles, o passado se

    revela de modo muito mais seguro pelos seus testemunhos involuntrios, por suas

    inscries pblicas e, sobretudo, pelo conjunto da produo da civilizao material

    (CHOAY, 2001, p. 63).

    Os testemunhos involuntrios, caracterizados por produtos materiais dos

    antigos (objetos, monumentos), defendidos pelos eruditos como superiores ao do

    discurso caracteriza uma hegemonia da imagem, da se explica o papel crescente

    da ilustrao no trabalho dos antiqurios (CHOAY, 2001, p. 77). A autora

    complementa que com a imagem era possvel realizar estudos tipogrficos e at

    cronolgicos, e medida que ela se generaliza, a exatido da representao dos

    edifcios contribui para que se complete e se firme o conceito de monumento

    histrico, que no por acaso recebe sua denominao no fim do sculo XVIII

    (CHOAY, 2001, p. 83).

    Com o Iluminismo e a filosofia de liberdade poltica, econmica, social e

    cultural h a mudanas nas colees de antiqurios e as colees privadas de

    prncipes italianos, que se tornaram pblicas, de acordo com Choay (2001, p. 85) se

    abre a novas camadas sociais: novas prticas se institucionalizam (exposies,

    vendas pblicas, edio de catlogos das grandes vendas e das colees

    particulares).

  • 21

    A definio semntica do termo patrimnio e os iniciais ideais de

    conservao tiveram introduo no final do sculo XVIII com a Revoluo Francesa

    e o advento do Estado-Nao. De acordo com Funari e Pelegrini (2009, p. 13), a

    preocupao com o patrimnio rompe as bases aristocrticas e privadas do

    colecionismo, e resulta de uma transformao profunda nas sociedades modernas,

    com o surgimento dos Estados Nacionais.

    At o sculo XVIII os estados eram religiosos e monrquicos, ou seja,

    havia os sditos de um rei e deviam fidelidade a ele, o que a exemplo da Frana,

    era um reino de direito divino, conhecida como Filha Primognita da Igreja por sua

    ligao com a hierarquia catlica (FUNARI e PELEGRINI, 2009, p. 15). Alguns

    acontecimentos, somados como a revolta do povo influenciada pelo Iluminismo, a

    crise econmica e os envolvimentos da Frana na guerra de independncia dos

    Estados Unidos e na Guerra dos Sete anos resultaram na derrota do poder absoluto

    dos reis, pondo fim ao feudalismo e ocasionando tomada do poder poltico pela

    burguesia.

    A partir destes rompimentos, se estabelecia a igualdade e a cidadania.

    Neste panorama, Funari e Pelegrini (2009, p. 16) elucidam o surgimento do Estado

    nacional a partir da inveno de um conjunto de cidados que deveriam compartilhar

    uma lngua e uma cultura, uma origem e um territrio. Neste sentido, Chuva (2005)

    esclarece que se constituiu um sentimento de pertencimento ao grupo-nao, no

    qual todos se identificariam a partir de referncias, cones ou marcas aos quais eram

    atribudos valores. De acordo com Funari e Pelegrini (2009, p. 17) assim comea a

    surgir o conceito de patrimnio que temos hoje, no mais no mbito privado ou

    religioso das tradies antigas e medievais, mas de todo um povo, com uma nica

    lngua, origem e territrio.

    A Revoluo Francesa depredou construes existentes, devido a fatores

    ideolgicos de oposio da sociedade monarquia, tudo o que pertencia e

    representava o rei deveria ser destrudo, em contrapartida com a extino da

    monarquia emergiu um sentimento de proteo do patrimnio pblico e incio de

    polticas de preservao. Foi necessrio que o patrimnio estivesse margem da

    destruio total para que a preocupao em proteger e conservar implicasse em

    medidas imediatas de interesse da sociedade e do Estado.

    Foi preciso criar uma comisso encarregada da preservao dos

    monumentos nacionais, a conservao iconogrfica abstrata dos antiqurios cedia

  • 22

    lugar a uma conservao real (CHOAY, 2001, p. 96). Mais adiante a autora ressalta

    que esta reao de defesa mais abrangente, visa a conservao, a riqueza e

    diversidade totalidade do patrimnio nacional. Aps a Revoluo Francesa, os

    monumentos tornam-se um smbolo de reconhecimento do povo francs,

    materializando a identidade nacional e fortalecendo o sentimento de

    reconhecimento.

    Outro conceito criado a partir da preocupao com o patrimnio nacional

    foi o de humanidade, e sobre isso Abreu (2003, p. 36) afirma que

    O patrimnio nacional, alm de construir uma referncia para a construo de uma identidade comum a um povo que compartilha o mesmo territrio nacional, estaria tambm referindo ao que de melhor a humanidade produziu. [...] A noo de preservao de obras de arte e bens de valor histrico e simblico nos uniria ideia de preservao de um acervo teoricamente disponvel para toda humanidade.

    A ampliao do sentido da palavra patrimnio aconteceu sculo XX, entre

    as dcadas de 60 e 80, pois at ento o patrimnio era classificado como histrico e

    material tal como, bens mveis, objetos relativos histria e objetos relativos aos

    costumes antigos, a ampliao deste conceito se estendia para o patrimnio cultural,

    patrimnio natural e imaterial, conceitos estes que veremos adiante. No final da

    Segunda Guerra Mundial, com a criao da Organizao das Naes Unidas para a

    educao, a cincia e a cultura (UNESCO) destacou-se a vertente universalista da

    noo de patrimnio da humanidade (ABREU, 2003, p. 36). Esta expanso mundial

    dos valores patrimoniais, para Choay (2001, p. 207) pode ser simbolizada pela

    Conveno relativa proteo do patrimnio mundial e cultural, adotada em 1972

    pela Assembleia Geral da UNESCO, e, ainda de acordo com a autora, esta

    conveno criava uma srie de obrigaes relativas identificao, proteo,

    conservao, valorizao e transmisso do patrimnio cultural s futuras geraes.

    2.1 PATRIMNIO NO BRASIL

    No Brasil as polticas de preservao do patrimnio tiveram incio no

    sculo XX, porm o pas passou por vrias modificaes com a chegada da famlia

    real portuguesa cidade do Rio de Janeiro no sculo XIX e de acordo com Camargo

    (2002) rompendo com hbitos coloniais e tornando a cidade, o centro na monarquia

  • 23

    e do imprio portugus, impulsionando-a para o crescimento poltico, de inovaes e

    modismos. Este processo tambm influenciou outras cidades do pas, como So

    Paulo, que passou a ser a metrpole do caf9.

    O Brasil passou por depredaes de seus monumentos para dar espao

    outra paisagem urbana, sob a influncia no mais da monarquia e sim da repblica,

    de acordo com o capitalismo industrial, tendo como objetivo imitar os pases mais

    civilizados e desenvolvidos como Frana e Inglaterra. neste contexto de

    modernizao poltico, social e cultural que apontam os indcios da preocupao

    com a preservao do patrimnio.

    O movimento modernista e a Semana de Arte Moderna de 1922

    trouxeram cena cultural brasileira outra perspectiva em relao aos valores

    estticos provenientes das vanguardas10 artsticas europeias, movimentos estes que

    buscaram a valorizao da cultura brasileira. De acordo com Torelly (2012), um

    Brasil de feio mestia e desgarrado dos padres europeus de ento, mais

    indgena, mais africano, mais caboclo e caipira, que trata que reinventar o pas, a

    partir da valorizao do passado, este antes rejeitado tornava-se smbolo do resgate

    nacional.

    Os modernistas, com uma srie de iniciativas, como o alerta destruio

    das cidades histricas, a preocupao com os bens que alegam ser pertencentes

    nao, construindo a identidade nacional e assim tendo a necessidade de preserv-

    los. Em 1924, os modernistas Mario de Andrade, Tarsila do Amaral, Oswald de

    Andrade, e o poeta surrealista Blaise Cendrars11 e outros membros da elite

    cafeicultora paulista realizaram uma viagem intitulada de Viagem da Redescoberta

    do Brasil, tendo como destino cidades de Minas Gerais, em especial Ouro Preto,

    com objetivo tratar da temtica de preservao do patrimnio histrico-cultural.

    9 A economia cafeeira o fator que desencadeou o desenvolvimento que levou a capital paulista da

    nona cidade do Brasil em 1872 at a metrpole global de hoje. A cultura do caf, introduzida no Brasil no sculo XVIII, se disseminou pelo sudeste e sul do pas, gerando enorme riqueza e recriando hbitos e costumes. SO PAULO. Roteiro O Caf e a Histria da Cidade. 2015. Disponvel em . Acesso em 07 abr 2015. 10

    Fig. Agente, grupo ou movimento intelectual, artstico ou poltico que est ou procura estar frente do seu tempo, relativamente a aes, ideias ou experincias. Disponvel em >. Acesso em: 30 mar 2015. 11

    Blaise Cendrars o pseudnimo de Frdric Sauser, nascido na Sua em 1887. Um poeta e novelista que morava em Paris quando conheceu Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade, chegando ao Brasil na dcada de 1920. Vivenciando a efervescncia cultural do modernismo. Disponvel em: . Acesso em 07 abr. 2015 s 23h.

    http://www.swissinfo.ch/por/blaise-cendrars-_o-modernista-que-descobriu-o-brasil/33925744

  • 24

    Logo a necessidade de estabelecer leis e decretos para a proteo do

    patrimnio cultural se fez necessria, pois segundo Camargo (2002), em julho de

    1933 concretizava-se a primeira medida oficial, em forma de Decreto, de

    reconhecimento do patrimnio cultural e a necessidade de sua preservao: a

    cidade de Ouro Preto foi escolhida como Monumento Nacional, devido ao fato de ser

    palco de acontecimentos histricos e de conter vrios monumentos importantes.

    Em 1936, com base em um anteprojeto de Mario de Andrade, foi criado o

    Servio do Patrimnio Histrico Artstico Nacional (SPHAN), fornecendo subsdios

    para que em novembro 1937, com o Decreto-Lei n 25 seja definido o conceito de

    patrimnio no Brasil, viabilizando os processos de tombamento. O conceito foi

    estabelecido da seguinte forma:

    O conjunto dos bens mveis e imveis existentes no pas e cuja conservao seja de interesse pblico, quer por sua vinculao a fatos memorveis da histria do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueolgico ou etnogrfico, bibliogrfico ou artstico. (BRASIL, 1937).

    Nesta perspectiva, o patrimnio ainda definido apenas como bem

    material, assim como bens mveis significam ser suscetveis de movimento prprio,

    ou de remoo por fora alheia, sem alterao da substncia ou da destinao

    econmico-social, como colees arqueolgicas, acervos museolgicos,

    documentais, bibliogrficos, arquivsticos, videogrficos, fotogrficos e

    cinematogrficos. Enquanto bens imveis so aqueles que no podem ser

    removidos, incorporados ao solo natural ou artificialmente, tal como ncleos urbanos,

    stios arqueolgicos e paisagsticos e bens individuais12. Decorrente de alteraes

    administrativas, o SPHAN sofreu mudanas, tanto denominativas quanto estruturais

    ao longo dos anos, chegando denominao atual de Instituto do Patrimnio

    Histrico e Artstico Nacional (IPHAN), responsvel por preservar os diferentes

    elementos que compem a sociedade brasileira, com a misso de:

    Promover e coordenar o processo de preservao do Patrimnio Cultural Brasileiro para fortalecer identidades, garantir o direito memria e contribuir para o desenvolvimento socioeconmico do Brasil, a responsabilidade do IPHAN implica em preservar, divulgar e fiscalizar os

    12

    BRASIL. Cdigo Civil. Lei n 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Ministrio da Justia. Disponvel em. Acesso em 08 abril, 2015, s 21h.

    http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm

  • 25

    bens culturais brasileiros, bem como assegurar a permanncia e usufruto desses bens para a atual e as futuras geraes.

    13

    O IPHAN, juntamente com estados e municpios compartilham a

    incumbncia de identificar e tombar o patrimnio cultural e artstico brasileiro. De

    acordo com Mello, o tombamento

    [...] o meio posto disposio do Poder Pblico para a efetiva tutela do patrimnio cultural e natural do Pas. por meio do tombamento que o Poder Pblico cumpre a obrigao constitucional de proteger os documentos, as obras e os locais de valor histrico ou artstico, os monumentos e paisagens naturais notveis, bem como as jazidas arqueolgicas (1986 apud CASTRO, 1991, p. 5).

    Segundo o Decreto de lei n 25/37, da Constituio Federal do Brasil de

    1937, o tombamento o instituto jurdico pelo qual se faz a proteo do patrimnio

    histrico e artstico que se efetiva quando o bem inscrito no livro do tombo. Este

    decreto prev quatro livros do tombo, nos quais devem ser feitas as inscries dos

    bens culturais. So eles: Livro do Tombo Arqueolgico, Etnogrfico e Paisagstico,

    inscritos os bens pertencentes s categorias de arte arqueolgica, etnogrfica,

    amerndia e popular; Livro do Tombo Histrico inscrito as coisas de interesse

    histrico e as obras de arte histricas; Livro do Tombo das Belas-Artes, as coisas de

    arte erudita, nacional ou estrangeira; Livro do Tombo das Artes Aplicadas, destinado

    s obras que se inclurem na categoria das artes aplicadas, nacionais ou

    estrangeiras.

    2.2 REFLEXES SOBRE CONCEITOS DE PATRIMNIO, CULTURAL, NATURAL,

    IMATERIAL

    O patrimnio pode ser entendido como um testemunho da memria e da

    identidade de um grupo social, com carter de pertencimento de um passado

    comum transmitido a geraes futuras, a memria materializada em objetos e

    aes. Para Martins (2006) o conceito de patrimnio histrico e artstico usado

    desde o sculo XIX foi sendo substitudo pelo conceito mais amplo de patrimnio

    13

    BRASIL. Instituto de Patrimnio Histrico e Artstico Nacional IPHAN. 2014. Disponvel em: . Acesso em 08 abr, 2015, s 20h.

  • 26

    cultural. O patrimnio pode ser dividido entre cultural e natural, e segundo a

    conveno da UNESCO realizada em 1972 em Paris, so considerados patrimnios

    culturais:

    Os monumentos: obras arquitetnicas, esculturas ou pinturas monumentais, objetos ou estruturas arqueolgicas, inscries, grutas e conjuntos de valor universal excepcional do ponto de vista da histria, da arte ou da cincia. Os conjuntos: grupos de construes isoladas ou reunidas, que, por sua arquitetura, unidade ou integrao paisagem, tm valor universal excepcional do ponto de vista da histria, da arte ou da cincia. Os stios: obras do homem ou obras conjugadas do homem e da natureza, bem como reas, que incluem os stios arqueolgicos, de valor universal excepcional do ponto de vista histrico, esttico, etnolgico ou antropolgico. (UNESCO, 1972)

    A UNESCO define como patrimnio natural as formaes fsicas,

    biolgicas ou geolgicas consideradas excepcionais, habitat de espcies animais e

    vegetais ameaadas e reas que tenham valor cientfico, de conservao ou

    esttico. Em sntese, Barreto (2000) explica que o patrimnio natural o conjunto de

    bens naturais produzidos, espontaneamente, pela natureza.

    Em um anteprojeto de Mario de Andrade as definies de patrimnio

    artstico nacional j envolviam elementos no-materiais, porm estas definies no

    foram integradas ao Decreto-Lei n 25/37, pois apenas a partir da dcada de 1980

    que a concepo de patrimnio passou a incorporar elementos no apenas

    materiais, sobretudo, os bens de origem popular, os seus fazeres e, bem mais

    recente, o patrimnio imaterial, como as festas, as danas, as procisses, a

    gastronomia etc. (CAMARGO, 2002, p. 91-92). Estas modificaes tambm

    ocorreram na Constituio Federal de 1988, descrito em seu artigo 216 que o

    patrimnio cultural brasileiro constitudo de bens de natureza material e imaterial,

    tomados individualmente ou e conjunto, portadores de referncia identidade,

    ao, memria dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos

    quais incluem:

    I - as formas de expresso; II - os modos de criar, fazer e viver; III - as criaes cientficas, artsticas e tecnolgicas; IV - as obras, objetos, documentos, edificaes e demais espaos destinados s manifestaes artstico-culturais; V - os conjuntos urbanos e stios de valor histrico, paisagstico, artstico, arqueolgico, paleontolgico, ecolgico e cientfico. (BRASIL, 1988)

  • 27

    A reflexo sobre os conceitos de patrimnio cultural deixa evidente que a

    cultura e a identidade de um grupo social no esto representadas apenas pela

    expresso fsica dos objetos e monumentos, elas transcendem o material e passam

    a ser representadas tambm por manifestaes intangveis da cultural popular. Nas

    palavras de Abreu e Chagas (2003), na concepo ampla de patrimnio cultural, ele

    no est mais centrado em objetos e sim numa relao da sociedade com a cultura.

  • 28

    3 URUSSANGA, PAISAGEM CULTURAL ITALIANA

    Ricordando la Ptria lontana, Nel mistero di nuova Nazion,

    Com amor scrivesti, Urussanga, Uma nuova e pi bella canzon

    14

    Segundo dados do IBGE15, Urussanga um municpio do Estado de

    Santa Catarina, a 185 km da capital Florianpolis, fundada em 26 de maio de 1878

    pelo engenheiro Joaquim Vieira Ferreira. Recebeu no final do sculo XIX inmeros

    imigrantes italianos vindos do norte da Itlia e hoje considera principal centro da

    colonizao italiana no sul do estado catarinense. Em 2014, a populao

    ultrapassou 20 mil habitantes, em uma rea de 254,869 km.

    A imigrao italiana no sul do Brasil foi muito expressiva na segunda

    metade do sculo XIX, em consequncia da desestruturao econmica e social da

    Itlia. Os imigrantes partiram principalmente da regio do Vneto, Lombardia

    (Trento), Friuli, Venezia, Guilia e Emiglia Romagna decorrente da industrializao

    que dificultou a sobrevivncia de famlias agrcolas e do programa de imigrao e

    formao de colnia pelo Governo Imperial no Brasil, para melhor desenvolvimento

    do pas. Segundo Escaravaco (1984), chefiada pelo engenheiro maranhense

    Joaquim Vieira Ferreira, em dezembro de 1976, uma Comisso Imperial amplia

    novos ncleos de colnias, tomando como ponto de partida o vale do rio das Pedras

    Grandes, afluente do rio Tubaro e no ano seguinte iniciou o levantamento e

    marcao dos lotes da rea.

    A primeira colnia fundada foi Azambuja (que hoje pertence a Pedras

    Grandes) em 1877, e em 26 de maio de 1978, instala-se de forma definitiva o ncleo

    italiano no municpio de Urussanga, carregando na bagagem a esperana de dias

    melhores em terras frteis da Amrica, posteriormente em Cricima (1880) e Nova

    Veneza (1891). Alm do assentamento das famlias na sede da colnia, tambm

    foram ocupados na Linha Rio Maior ao norte, com distncia de 3km, no Rio Maior a

    6km, Rancho dos Bugres 6 Km,So Valentim a 9km e So Pedro a leste no ncleo

    central com 5km de distncia.

    14

    Na saudade da Ptria distante, No mistrio da nova Nao, Com ternura escreveste, Urussanga, Nesta terra uma nova cano. Trecho do hino de Urussanga, autor: Mons. Agenor N. Marques. 15

    Dados do IBGE disponvel em Acesso em 13 abr, 2015, s 22h.

    http://www.cidades.ibge.gov.br/xtras/perfil.php?lang=&codmun=421900&search=santa-catarina|urussanga|infograficos:-informacoes-completashttp://www.cidades.ibge.gov.br/xtras/perfil.php?lang=&codmun=421900&search=santa-catarina|urussanga|infograficos:-informacoes-completas

  • 29

    As primeiras impresses dos imigrantes ao chegarem s terras foram to

    decepcionantes quanto as expectativas que criaram, a mata era virgem e no

    sabiam como derrubar rvores, as terras eram montanhosas e pedregosas, o que

    dificultava o cultivo, um povo que atravessou o mar transbordando sonhos e

    promessas de possuir suas prprias terras e sob suor e lgrimas plantar e colher em

    abundncia, de repente estavam de frente com um mundo desconhecido, jogados

    prpria sorte. As famlias imigrantes tinham at seis anos para saldarem os dbitos

    parcelados provncia brasileira, estes dbitos contemplavam os custos de viagem,

    utenslios domsticos, ferramentas, sementes, alimento para os primeiros meses

    (BALDESSAR, 2005, p. 59).

    A primeira medida a ser tomada era sobre a moradia, precisavam se

    abrigar dos perigos e do tempo, nas palavras de Baldin (1999, p. 74)

    Esses primeiros colonizadores desmataram, construram cabanas cobertas de folhas de rvores, prepararam a terra, semearam, alimentaram-se de aves, peixes e de frutos dos bosques, colheram, sofreram doenas e por males dos mais diversos e estranhos, suportaram o medo, o frio, o calor excessivo, a chuva, a fadiga e as tristezas.

    Devidamente instalados e cultivando as terras, comearam a produo de

    alimentos para a subsistncia, como milho, arroz, feijo, ervilha, cana-de-acar,

    batatas e trouxeram da Itlia sementes secas de hortalias, sendo que a produo

    excedente era destinada comercializao. Com o que arrecadavam compravam

    instrumentos de trabalho, vestimentas e alguns animais. No poderia faltar o

    parreiral de uva, eles faziam o prprio vinho para consumo e quem o fazia em maior

    quantidade o comercializava. Logo, conforme Baldin (1999), Urussanga, com esforo

    do trabalho dos imigrantes veio a ser um centro comercial de toda a zona de

    colonizao, superando as primeiras colnias, como Azambuja e Pedras Grandes.

    Apareceram as primeiras atafonas, moinhos, moendas, engenhos, descascadores,

    ferrarias, serrarias, fecularias, oficinas, pequenas fbricas artesanais, comrcio de

    secos e molhados.

    O vinho se tornou a principal fonte econmica para cidade, tendo seu

    auge entre as dcadas de 40 e 5016, pequenas cantinas se transformaram em

    fbricas de vinho, os primeiros ramos foram trazidos pelos imigrantes nos navios

    16

    Publicao on-line: O carvo mudou o cenrio da economia em Urussanga. Disponvel em . Acesso em 21 mai. 2015, s 6h.

  • 30

    com todo cuidado envolto em musgo mido (BALDESSAR, 2005, p. 90). Grandes

    vincolas se fixaram na cidade como a Caruso Mcdonald, esta trouxe o

    reconhecimento nacional para cidade, como a Terra do bom vinho e da cultura

    italiana, foi fundada por Giuseppe Caruso Mac Donald, responsvel por trazer a uva

    Goethe para aos agricultores17. Outras vincolas tambm importantes, como

    Loureno Cadorin e Victrio Bez Batti tambm fazem parte da consolidao do ttulo

    de Urussanga como Capital do Vinho.

    Em 1880 iniciou-se a construo da Estrada de Ferro Dona Teresa

    Cristina (EFDTC) para possibilitar o transporte do carvo, ligando Imbituba Lauro

    Mller. A partir da explorao do carvo mineral e da abertura das minas, a cidade

    comeou a se desenvolver economicamente, em outubro 1900, Urussanga j

    possua estrutura suficiente contando com escola, igreja, cemitrio e casas de

    comrcio. Foi desmembrada de Tubaro e elevada categoria de municpio, e em

    1918 foi construda a Companhia Carbonfera de Urussanga S.A. O crescimento

    econmico proporcionou cidade uma expanso comercial, a agricultura

    enfraqueceu e os colonos passaram a trabalhar nas minas de carvo, com a estrada

    de ferro, a energia eltrica chegou em 194, correio, telgrafo e telefone tambm

    passaram a existir, mesmo que funcionando de forma precria.

    A cidade iniciou um processo de urbanizao que se destacou entre as

    dcadas de 1940 e 1950, porm, a partir dos anos de 1970 que este processo

    entrou em grande escala, com as instalaes de grandes indstrias. Atualmente

    Urussanga se destaca pelo vinho e produtos coloniais, bem como na indstria

    moveleira, derivados de plsticos, cermica, vitivinicultura, fruticultura, entre

    outros18.

    Urussanga possui forte identidade italiana, no ano de 1988, o municpio

    recebeu a visita do prefeito de Erto-Casso e o secretrio do prefeito de Longarone, e

    atravs desta visita foi proposta uma parceria scio-cultural entre Urussanga e

    Longarone, intitulada Gemellaggio19. Em 1991 foi assinado em Longarone o

    17

    Publicao on-line: A fbrica do pioneirismo. Disponvel em < http://www.jvanguarda.com.br/site2012/2010/03/04/a-fabrica-do-pioneirismo/#>>. Acesso em 21 mai. 2015, s 7h. 18

    Apresentao do municpio de Urussanga. Disponvel em Acesso em 21 mai. 2015 s 10h. 19

    A palavra Gemellaggio provm do italiano gemelli que significa gmeos. O Gemellaggio um acordo selado entre cidades de naes diferentes, que facilita o acesso a informaes, troca de experincias, elaborao de projetos e cooperao econmica e cultural. Em portugus significa

    http://www.urussanga.sc.gov.br/municipio/index/codMapaItem/6330#.VWSqQs9Viko

  • 31

    documento formal pelos dois prefeitos, e em 26 de maio do ano seguinte as

    comemoraes foram em Urussanga, juntamente com o aniversrio da cidade. A

    cultura italiana tambm rememorada nas suas festas, como a Festa do vinho,

    realizada bienalmente, sendo a primeira em 1984, e o Ritorno Alle Origini, uma festa

    originada do Gemellaggio, de carter cultural, social e turstico, tendo como objetivo

    o resgate e a divulgao dos valores tnicos que moldaram a identidade da

    populao urussanguense20.

    3.1 JANELAS DA MEMRIA: AS CASAS

    Urussanga, alm de ser a terra do vinho, tambm um ncleo

    caracterizado pela importncia cultural e patrimonial, compondo um conjunto de

    vinte e cinco bens materiais tombados pela Fundao Catarinense de Cultura (FCC).

    A cidade possui um acervo arquitetnico talo-brasileiro com caractersticas

    tipicamente italianas. O guia do patrimnio cultural do sul de Santa Catarina (2010,

    p.19) define a arquitetura como testemunho perdurvel da identidade

    com suas formas e composies (a arquitetura) uma das expresses mais significativas e marcantes das regies de imigrantes. A maneira de construir a casa, de distribuir os cmodos, de arrum-la, enfeit-la; o desenho da igreja, da escola, do comercio e de tantas outras edificaes que abrigam a vida da comunidade, fazem parte da bagagem cultural trazida pelo colono do seu pas de origem.

    De modo conciso, Cauquelin (2007, p.20) define paisagem como um

    conjunto de valores ordenados em uma viso, e a exemplo de paisagem cultural21

    da imigrao italiana, as casas dispem-se na parte central da cidade, dezenove

    edificaes em torno da Praa Anita Garibaldi, juntamente com a Igreja Matriz Nossa

    Senhora da Conceio e outras seis edificaes na zona rural, uma na localidade do

    Rio Amrica Baixo e cinco no Vale do Rio Maior.

    Cidades-Irms Disponvel em Acesso em 22 mai. 2015 s 8h. 20

    Festas tpicas: XIII Ritorno Alle Origini. Disponvel em: . Acesso em 22 mai. 2015 s 10h. 21

    Paisagem cultural, segundo a portaria do Iphan n 127/2009 uma poro peculiar do territrio nacional, representativa do processo de interao do homem com o meio natural, qual a vida e a cincia humana imprimiram marcas ou atriburam valores. Disponvel em Acesso em 22 mai. 2015 s 23h.

    http://projetogemellaggio.blogspot.com.br/p/o-que-e-gemellagio.htmlhttp://projetogemellaggio.blogspot.com.br/p/o-que-e-gemellagio.htmlhttp://www.urussanga.sc.gov.br/turismo/evento/detalhe/codEvento/432http://pib.socioambiental.org/anexos/19929_20110518_092742.pdf

  • 32

    As caractersticas arquitetnicas destas casas, analisadas pelo guia do

    patrimnio cultural do sul de Santa Catarina (2010, p. 20) possui volume sbrio,

    simtrico, com propores e elementos clssicos tais como cunhais, arcos e

    cimalhas. O material vai desde a madeira at alvenarias de tijolos e pedra.

    possvel observar, mesmo no tendo conhecimento sobre arquitetura, que as

    edificaes da regio central diferenciam da regio rural: as casas do centro

    representam uma arquitetura de forma ornamental acentuada, com fachadas

    imponentes, ostentam uma imagem de palacetes e requinte, de modo distinto. Por

    outro lado, as casas no mbito rural so robustas, com finalidade mais funcional do

    que esttica, em similaridade s casas de influncia italiana, onde a cozinha

    localizada nos fundos.

    A priori estabelecemos uma relao utilitria com os objetos, assim,

    igualmente com as casas acima descritas, como elementos da cultura italiana,

    construdas para abrigar o homem do tempo, as casas so elementos vivos.

    Retratam os que a habitam como testemunhos do cotidiano, a casa o nosso

    primeiro mundo tambm o nosso canto do mundo (BACHELARD, 1989, p. 24),

    onde nele estabelecemos relaes com um espao dotado de valores e smbolos de

    personalidade. Assim como a casas dos imigrantes de Urussanga, cada uma, por

    mais arquitetonicamente semelhante com outras, possui uma identidade prpria

    proveniente desta relao entre homem e ambiente. No artigo Casa: uma potica

    da terceira pele, Maria Longhinotti Felippe cita a expresso criada pelo artista

    plstico vienense Hundertwasser22, que definiu a casa como uma terceira pele

    humana:

    Assim concebido como extenso do corpo, o espao arquitetnico carrega, tal qual o prprio corpo, a imagem da totalidade, atravs da condio natural de microcosmo particular, e porque no dizer, modelo reduzido de nosso Universo. (FELLIPE, 2010, p. 300)

    Nesta perspectiva, de que a casa o nosso pequeno Universo, sigo com

    reflexes a respeito do que constitudo neste universo, habit-lo, no apenas no

    22

    Friedrich Stowasser mais conhecido como Friedrich Hundertwasser (1928-2000) foi um pintor, arquiteto, ecologista e ativista poltico. Sua trajetria foi marcada por uma intensa atividade pictrica, realizaes no campo da arquitetura com construes, manifestos anti-racionalistas e aes histricas em defesa de uma viso naturalista do ambiente. Para Hundertwasser o homem possui cinco peles: a sua epiderme natural, o seu vesturio, a sua casa, o meio ambiente onde vive e, a ltima, a pele planetria ou crosta terrestre onde todos vivemos .Disponvel em Acesso em 23 mai. 2015 s 8h.

    http://www.cronologiadourbanismo.ufba.br/biografia.php?idVerbete=41&idBiografia=52

  • 33

    sentido de moradia, mas tambm no sentido de ser algum, como condio da

    existncia. Abaixo segue a lista de edificaes tombadas pela proteo estadual da

    Fundao Catarinense de Cultura na cidade de Urussanga, a sequncia

    compreende vinte e cinco edificaes.

    Figura 1 Casaro da Famlia Nichele, construo de 1907, 2015.

    Fonte: Acervo da Pesquisadora

    Figura 2 Casaro da Viva Nichele, construo 1908, 2015.

    Fonte: Acervo da Pesquisadora

  • 34

    Figura 3 Conjunto Arquitetnico Bez Fontana, construo 1901, 2015.

    Fonte: Acervo da Pesquisadora

  • 35

    Figura 4 Igreja Matriz Nossa Senhora da Conceio Construo 1923 (Campanrio) e 1945 (Igreja), 2015.

    Fonte: Acervo da Pesquisadora Figura 5 Casaro da Famlia Boccardo, construo 1921, 2015.

    Fonte: Acervo da Pesquisadora

  • 36

    Figura 6 Primeira Prefeitura Municipal, construo 1902, 2015.

    Fonte: Acervo da Pesquisadora Figura 7 Igreja So Gervsio e Protsio, construo 1912, 2015.

    Fonte: Acervo da Pesquisadora

  • 37

    Figura 8 Residncia da Famlia Bettiol,construo 1933, 2015.

    Fonte: Acervo da Pesquisadora Figura 9 Cantina Cadorin, construo em etapas, incio 1927 at 1944, 2015.

    Fonte: Acervo da Pesquisadora

  • 38

    Figura 10 Estao Ferroviria Urussanga, construo 1925, 2015.

    Fonte: Acervo da Pesquisadora Figura 11 Casa Ivanir Cancellier, construo 1909, 2015.

    Fonte: Acervo da Pesquisadora

  • 39

    Figura 12 Casa Iva Damian, construo, 1896, 2015.

    Fonte: Acervo da Pesquisadora Figura 13 Casa da famlia de Csaro, construo 1937, 2015.

    Fonte: Acervo da Pesquisadora

  • 40

    Figura 14 Casa de Fioravante Mazzucco, construo 1914, 2015.

    Fonte: Acervo da Pesquisadora Figura 15 Casa da Famlia Miotello, construo 1943, 2015.

    Fonte: Acervo da Pesquisadora

  • 41

    Figura 16 Casa da Famlia De Lorenzi Cancellier, construo 1907, 2015.

    Fonte: Acervo da Pesquisadora Figura 17 Casa Rosalino Damiani, construo 1929, 2015.

    Fonte: Acervo da Pesquisadora

  • 42

    Figura 18 Casa de Lucas Bez Batti: Casa de Bona Marchet, construo 1925, 2015.

    Fonte: Acervo da Pesquisadora Figura 19 Casa de Lucas Bez Batti: Casa Palcio de Lucca, construo 1896, 2015.

    Fonte: Acervo da Pesquisadora

  • 43

    Figura 20 Casa Torquato Tasso, construo 1892, 2015.

    Fonte: Acervo da Pesquisadora Figura 21 Casaro da Famlia Mazzucco, construo 1912, 2015.

    Fonte: Acervo da Pesquisadora

  • 44

    Figura 22 Casa de Caetano Bez Batti, construo 1936, 2015.

    Fonte: Acervo da Pesquisadora

    Figura 23 Victorio Bez Batti, construo 1925, 2015.

    Fonte: Acervo da Pesquisadora

  • 45

    Figura 24 Casa de Carmela Bez Batti, construo 1948, 2015.

    Fonte: Acervo da Pesquisadora Figura 25 Casa de Zeferino Brigo, construo 1944

    Fonte: Acervo da Pesquisadora

  • 46

    4 MEMRIA E IDENTIDADE

    As casas antigas de Urussanga evidenciam a memria dos seus

    moradores, em suas paredes h vestgios de um tempo vivido, de fatos e histrias

    de anos de moradia. Essas casas despertam em mim desde criana esta nostalgia

    de tempos vividos, como se eu estivesse presente de alguma forma e que hoje sinto

    saudades, pois tambm incitam as lembranas de infncia da minha casa, onde vivi

    at os vinte e trs anos. Nas palavras de Cattani (2000), apropriar-se do espao e ali

    enquadrar a paisagem significa talvez control-la, guard-la para si, construir-se um

    lugar pessoal, mbil, interior e esse lugar acompanha o corpo e seus

    deslocamentos. As casas antigas so lugares vivos da memria, como um livro,

    onde meus olhos podem ler nas suas linhas e entrelinhas de concreto, pedra e

    madeira e rememorarem meu imaginrio, as vivncias ali passadas.

    As janelas se comportam como componentes primordiais na construo

    destes fragmentos de memria que tanto me encantam. Lembro da janela do meu

    quarto e a vista para o aude, envolto com bancos de madeira onde eu admirava a

    paisagem e meu pai sentado todas as manhs, observando os peixes nadando

    como bailarinos que danam na gua. De acordo com Bosi (2001, p. 53) a

    lembrana a sobrevivncia do passado. O passado, conservando-se no esprito de

    cada ser humano, aflora a conscincia na forma de imagens-lembrana. Quando

    volto meu olhar para as janelas das casas antigas, penso nas janelas abertas, onde

    a luz do sol ilumina seu interior, e como se eu estivesse l h oitenta anos, do lado

    de fora das janelas, olhando para o interior da residncia e me apropriando da

    existncia e das situaes vividas naquele local.

    Imaginar as lembranas alheias trazidas por estas casas me faz refletir

    sobre como elas so elementos essenciais na paisagem, e enquanto patrimnio

    cultural refletem manifestaes sociais dos colonizadores da cidade e reforam

    vnculos de pertencimento, no apenas individuais, mas tambm coletivos. Para o

    socilogo Halbwachs (2006), a lembrana o efeito de uma ordem coletiva, e a

    memria individual tambm est relacionada a um grupo social comum, unido por

    ela [a memria], chamado grupo de referncia. Este grupo de referncia

    caracterizado por um grupo do qual o sujeito fez parte, com vivncias em comum,

    um espao de conflitos e influncias entre um e outro, ou seja, nossas lembranas

    so coletivas e podem ser rememoradas por outros, pois, ainda segundo o autor,

  • 47

    nunca estamos ss, mesmo que os outros no estejam presentes fisicamente, pois

    esto conosco em pensamento.

    Desta forma, em outras palavras, a memria coletiva pode ser a soma de

    inmeras memrias individuais que se relacionam e que podem ser transformadas,

    esta relao que estabeleo entre as casas antigas de Urussanga, seus moradores,

    herdeiros e comunidade. A memria do municpio e a identidade do seu povo esto

    ligadas diretamente s lembranas do grupo social unido por estas vivncias,

    materializadas no patrimnio cultural local. As memrias coletivas evocadas por

    meio das casas, mesmo que de anos atrs, fazem parte da construo da minha

    memria individual, me reconhecendo como sujeito pertencente desta histria e

    evocando lembranas da minha casa, do meu espao. Para Halbwachs (2006, p. 72)

    para evocar seu prprio passado, em geral a pessoa precisa recorrer a lembranas

    de outras e se transporta a pontos de referncia que existem fora de si.

    O sentimento de pertencimento a um local e a um grupo est relacionado

    com a identidade deste mesmo grupo, ela que em sua concepo histrico-social

    caracteriza o sujeito e seu grupo como nicos, ligados por aspectos em comum

    como fsicos, comportamentais e psicolgicos. Dentre os elementos unificados que

    compem a identidade do sujeito est a memria, ela um elemento do sentimento

    de identidade, como afirma Pollak (1992, p. 5):

    A memria um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual como coletiva, na medida em que ela tambm um fator extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerncia de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstruo de si.

    A identidade pode ser abordada no sentido da imagem de si mesmo e

    para com os outros, ou seja, a imagem que a pessoa constri e/ou adquire e

    apresenta para os outros, ou ainda na dimenso biolgica, como a questo de

    gnero, ou tambm definida pela religio, entretanto, a pesquisa no ir por estes

    caminhos. No sentido de identidade cultural, o patrimnio, seja material ou imaterial,

    uma pea de extrema relevncia na composio de seus fundamentos, com a

    capacidade de representar a identidade, tornando-se um veculo de difuso cultural

    e um elemento de referncia no espao e no tempo. por meio desta identidade

    reconhecida no passado-presente que possvel distinguir ou afirmar um dos outros,

    o que de acordo com Hall (2005, p. 106) na linguagem do senso comum, a

  • 48

    identificao construda a partir do reconhecimento de alguma origem comum, ou

    de caractersticas que so partilhadas com outros grupos ou pessoas, ou ainda a

    partir de um mesmo ideal.

    4.1 O OLHAR PARA DENTRO DAS JANELAS: PESQUISA DE CAMPO

    Quando pensava a pesquisa e estava ainda em projeto, a fim de explorar

    as memrias e as questes relacionadas ao patrimnio cultural arquitetnico,

    emergiu o desejo de realizar entrevistas com moradores, familiares ou pessoas que

    de algum modo contribuam para o estudo. Com o desejo amadurecido e

    transformado na pesquisa de campo, segui em direo aos entrevistados, munida de

    uma cmera fotogrfica digital, que utilizei para registrar fotograficamente as casas,

    e de um celular utilizado para gravar o udio das entrevistas. Ao todo foram cinco

    entrevistas realizadas, destas, 4 (quatro) no dia 14 de maio e 1 (uma) no dia 18 de

    maio de 2015. Ressalto que todos os envolvidos autorizaram devidamente o uso de

    suas falas.

    Os entrevistados foram Graciana de Bona, filha do segundo proprietrio

    da casa (Figura 18 Casa de Lucas Bez Batti: Casa de Bona Marchet), ela conta

    que seu pai comprou dos filhos do primeiro proprietrio: Lucas Bez Batti. Ado

    Bettiol filho do primeiro proprietrio que construiu a casa (Figura 8 Residncia da

    Famlia Bettiol). Valdecir Miotello, atual proprietrio, conta que comprou a casa

    tambm dos filhos de quem a construiu (Figura 15 Casa Famlia Miotello). Ivete

    Bez Batti Bastos Alves, bisneta de Lucas Bez Batti quem construiu a casa que

    atualmente reside a Sra Graciana, estes quatro entrevistados em suas casas e

    Marielle Bonetti entrevistada na casa de Pedra Cancellier (Figura 16 Casa da

    Famlia de Lorenzi Cancellier), onde a utiliza juntamente com sua irm Michelle

    Bonetti como o espao "Casa de Pedra Cancellier - Ateli Aberto", Marielle relata

    que seus antepassados tambm so friulanos (natural da regio do Friuli-Venezia

    Giulia na Itlia) assim como o imigrante Francesco De Lorenzi Cancellier, primeiro

    proprietrio.

    A entrevista teve por objetivo coletar informaes de cada entrevistado

    sobre as concepes de patrimnio cultural, a histria da construo da casa, as

    memrias vivenciadas ou o que surge a partir da casa, a viso que estas pessoas

    tm da janela, tambm como a importncia (ou no) das casas para cidade. Com as

    http://pt.wiktionary.org/wiki/regi%C3%A3ohttp://pt.wiktionary.org/w/index.php?title=Friuli-Venezia_Giulia&action=edit&redlink=1http://pt.wiktionary.org/w/index.php?title=Friuli-Venezia_Giulia&action=edit&redlink=1

  • 49

    respostas possvel identificar a falta de informaes referente ao patrimnio

    cultural-material da cidade, perceptvel que os proprietrios hoje se sentem

    lesados de alguma forma, o patrimnio que tem seu sentido de preservao para

    permanente difuso e identidade cultural visto, inclusive por quem reside nele,

    como um empecilho para o crescimento da cidade. Em sua opinio, Graciana

    expressa que podia construir um prdio bonito [...] pra mim me prejudicou (o

    tombamento) porque perdeu o valor do terreno, estes bens culturais edificados

    esto ameaados destruio, vtimas do tempo e do descaso. Em conformidade

    com Turino (2003), preservar o Patrimnio no contraditrio com o

    desenvolvimento econmico e social; pelo contrrio, impulsiona-o.

    Uma cidade como Urussanga, com amplo patrimnio arquitetnico,

    precisa de agentes culturais capacitados, uma gesto pblica de cultura com

    informaes que possam auxiliar a comunidade, ampliando horizontes e o

    desenvolvimento cultural do municpio. no mnimo triste que a cidade, exemplo de

    herana cultural, esteja sujeita a perder a manifestao mais visvel da sua

    identidade, fao minha as palavras de Marielle quando diz que Urussanga dorme

    em bero esplndido, s no acordou para isso [...] ainda dorme num sono profundo.

    Eu acredito que papel do gestor pblico capacitar pessoas pra difundir esse tipo de

    informao na cidade, enquanto a informao tiver centralizada e no tiver acessvel

    pra todos, porque a gente v hoje os proprietrios, a grande maioria tem interesse

    em restaurar essas casas, mas no sabem os caminhos, ento a gente v que o

    grande problema hoje a ignorncia no bom sentido, ignorncia da falta de

    informao e do saber como fazer.

    Por outro lado, depoimentos me emocionaram no que diz respeito s

    memrias, umas relacionadas diretamente com a casa, como lembra o Sr. Ado no

    alto de seus 92 anos Ajudei na construo, eu tinha oito anos [...] traziam os tijolos

    de carro de boi [...] e eu e a Adlia (irm), essa que faleceu fez um ano ontem.

    Ajudou tambm a Olinda (irm) a carregar tijolo, subir no andaime, tinha uma escada

    comprida, carregava o tijolo, tinha uma corda, colocava o tijolo, depois puxava.

    Relata a dificuldade financeira e os esforos para seu pai construir a moradia, e fala

    com orgulho da beleza de sua casa Naquele tempo no tinha dinheiro, gastamos 20

    mil reis, e no foi fcil adquirir, todos que vem aqui, apontam aquela casa, que ela

    bonita, gostam, no sei se por causa do tipo, do feitio dela, mas ela muito boa,

    bem conservada [...] ela faz parte da cidade.

  • 50

    Essas memrias, mesmo sendo de um passado distante, incitam

    memrias da minha infncia, como quando criana, quando andei de carro de boi,

    to ldico como se estivesse voando ou andando sobre nuvens, segurava o toco de

    madeira que era envolto no carro, enquanto ao tocar os pedregulhos ele seguia a

    balanar e gemer. Nas palavras Bosi (2001, p. 82)

    Um mundo social que possui uma riqueza e uma diversidade que no conhecemos pode chegar-nos pela memria dos velhos. Momentos desse mundo perdido podem ser compreendidos por quem no os viveu e at humanizar o presente.

    Valdecir lembra que quando criana vinha at o centro para ajudar o pai

    no trabalho e ficava a admirar as casas da praa com desejo de um dia ainda morar

    em uma delas olhava aquelas casas, pessoal muitas vezes na varanda em desfile

    de sete de setembro e eu assim: quando ser que a gente vai conseguir um dia

    estar aqui em uma varanda dessas olhando um desfile? No imagina que iria acabar

    adquirindo uma e estaria aqui morando no centro da cidade e preservando um

    patrimnio daqui. Quando o questiono sobre o significado da janela, ele a coloca

    como um elemento fundamental na casa abro a janela da sala e a viso que eu

    tenho da praa, da cidade em si e me recordo dos desfiles de sete de setembro,

    desfile de festa de vinho alegrico, o pessoal passando, o pessoal namorando no

    jardim, ento a janela pra mim me traz esse tipo de recordao, esse tipo de viso.

    Ao longo da entrevista pergunto a Valdecir qual a importncia dos bens

    tombados para cidade e o que significaria uma possvel perda desses bens, ele foi

    enftico ao responder que Se desmanchar tudo o que nos recorda o passado daqui

    mais alguns anos, no vai ter nada de referencia da cidade do que foi o inicio da

    cidade, da colonizao, dos pioneiros, dos imigrantes que chegaram aqui e deram

    essa casa, esse ar de cidade italiana, porque as construes so os traos da Itlia,

    se a gente perder essas ltimas casas que tem daqui mais, cinquenta, cem anos no

    vai ter mais essa referncia, essa recordao do passado, essa ligao com a Itlia.

    Para Marielle que hoje possui o projeto Casa Pedra Cancellier Ateli

    Aberto, a janela se tornou a identidade do projeto, ela a descreve como uma porta

    que se abre para o infinito, a janela aberta principalmente, ento aquela coisa que

    acolhe, que te convida a entrar, mas que ao mesmo tempo quando est dentro tu

    tem um infinito, aquela coisa do sem limites, dar asas a imaginao. Ao ser

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    questionada sobre o significado das janelas, Sra. Ivete ficou pensativa por alguns

    segundo e depois exclamou: Nunca pensei nisso, neste momento afirmei ainda

    mais a satisfao de poder levar a pessoas questes que elas no abordavam at

    ento, o que passa despercebido para alguns, fonte de alimentao para outros.

    Marielle sempre destaca em suas falas a importncia do patrimnio

    cultural para cidade, seja material ou imaterial uma construo que tem toda uma

    simbologia, uma historia por trs que a gente no quer que se perca, porque s

    jovens hoje, as crianas j no tiveram contato com isso, ento a gente tambm tem

    essa preocupao que toda essa historia, todo esse trabalho dessas pessoas que

    passaram que construram tambm seja resgatado e seja valorizado, e tambm o

    patrimnio imaterial que est por trs disso, a questo do saber, a forma como eles

    faziam, a prpria questo das crenas, das danas, dos cultos tudo isso tambm

    patrimnio.

    Estando em contato constante com a casa, os objetos ali presentes, a

    histria da famlia materializada em cada cmodo, Marielle conta que rememora

    suas memrias de infncia sendo acolhida nessa casa a gente comea a resgatar

    tambm as memrias da infncia, seja a questo da lngua, o modo como cuidar da

    casa, as flores no jardim, essa coisa de os pregos, tem vrios pregos pendurados,

    eles tinham a mania de pendurar as coisas em cada cantinho que encontravam, a

    forma de cuidar do jardim, varias coisas misturadas no uma flor s um

    pouquinho de tudo ento tudo isso pra gente tambm comea a resgatar memrias

    da infncia [...] tem essa coisa de reviver e tambm de se colocar no lugar deles, a

    situao daquela poca, hoje a gente tem tudo com muito fcil acesso, naquela

    poca no era assim, era tudo com muito esforo.

    A pesquisa de campo torna-se componente fundamental para esta

    pesquisa, por meio das entrevistas realizadas me senti como parte de cada casa,

    que estruturam um cenrio imponente de caminhos entrecruzados sob a tica da

    arte, essas narrativas da histria e da memria ramificaram ao passar dos anos,

    fundindo a reminiscncia da cidade, materializadas em pedra e cal. A finalidade

    desta pesquisa de campo foi alm do mbito potico de tentar fazer parte das casas,

    foi tambm de coletar dados para a produo artstica, desta forma todas as

    palavras, todos os contatos, olhares, emoes e gestos e at mesmo os momentos

    de silncio, de pensamentos e dvidas foram extremamente essenciais para a

    elaborao da produo em arte descrita nos captulos a seguir.

  • 52

    5 ARTE E ARTE CONTEMPORNEA

    Definir limitar, e meu propsito no limitar a arte nesta pesquisa, ao

    contrrio, deix-la livre de limites, livre para o sensvel, para desprender olhares,

    para questionar, para provocar, livre para ser arte. Entretanto, se faz necessrio

    explanar sobre ela. A arte mutvel, assim como a sociedade, ela reflete o conceito

    histrico e passou por vrios momentos, assumindo funes distintas, uma vez que

    o homem representa seu meio social atravs dela. Assim, de acordo com Fischer

    (1987, p. 15): toda arte condicionada pela sua poca e representa a humanidade

    na medida em que corresponde s ideias e s aspiraes, s necessidades e s

    esperanas de uma determinada situao histrica.

    Como janela do sensvel, a arte surge a partir de um propsito (que nem

    sempre uma obra de arte), porm ela pode ser compreendida de formas diversas

    pelo espectador, no exatamente o que o artista idealizou, e isto faz dela um meio

    de comunicao e interao com infinitas possibilidades de abrangncia, desde a

    mais superficial mais profunda, difcil aquele que hoje seja indiferente arte,

    afinal, ela pode ser representada pela msica, poesia, cinema, fotografia, dentre

    outras composies e, de alguma forma, qualquer sujeito j deve ter vivenciado por

    esses meios.

    A arte e em especial a arte contempornea transcendem a ideia do belo,

    transcendem a moldura, a galeria e a autoria definida pelo fazer manual, afinal, a

    ideia que considera a autoria, tambm no esto mais presas a espaos delimitados

    e a linguagens especficas, prope a desconstruo da lgica e desinventa

    objetos23. Em outras palavras, Ktia Canton (2009, p.12) diz que:

    A arte ensina justamente a desaprender os princpios das obviedades que so atribudas aos objetos, s coisas. Ela parece esmiuar o funcionamento dos processos da vida, desafiando-os, criando para novas possibilidades. A

    arte pede um olhar curioso, livre de pr-conceitos, mas repleto de ateno.

    A arte contempornea no est unificada a fins estticos, decorativos ou

    religiosos, como j esteve, ela est presente para desafiar, criar questes,

    questionar certezas, levantar dvidas, seu prprio conceito anacrnico, de certa

    23

    Termo utilizado por Manoel de Barros no poema Uma didtica da inveno (BARROS, 2009, p.21)

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    forma, podemos dizer que se trata de produes em tempo atual, com linguagens

    cada vez mais incorporadas ao espectador.

    A fotografia a linguagem escolhida para compor esta pesquisa atravs

    da produo artstica, ela se tornou uma das linguagens mais pertinentes na arte

    contempornea. Surgiu ainda no sculo XIX e etimologicamente significa escrita

    com a luz. Segundo Sontag (1981, p. 04) fotografar apropriar-se da coisa

    fotografada, a fotografia parece ser fragmentos do mundo, tempo interrompido no

    instante em que nos apropriamos de cada imagem registrada tornando-a parte de

    ns. A fotografia registra a memria imagtica, e para Dubois (2003) o papel da

    fotografia conservar o trao do passado, um testemunho do que foi.

    5.1 A POTICA DA JANELA

    Mas o que uma janela se no o ar emoldurado por esquadrias?

    24

    A temtica da paisagem urbana, patrimnio cultural, memria, casa e arte

    me acompanham desde o incio do curso, sempre percebi a cidade como um corpo

    vivo atuante, com intenes, desejos, receios, do lixo ao luxo a cidade um

    emaranhado de contrastes e semelhanas. Durante o percurso, enquanto

    acadmica do curso de Arte Visuais - Bacharelado, minhas produes refletiram o

    olhar para a paisagem urbana, como na produo: Produto Urbano, para exposio

    coletiva City Art realizada na Galeria de Arte Octvia Brigo Gaidizinski - Anexo ao

    Teatro Municipal Elias Angeloni em Cricima/SC -