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Jurisprudência Comentada Aos Moços JADER MARQUES Advogado Criminalista, Especialista e Mestre em Ciências Criminais, VicePresidente do Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais (ITEC) e Professor de Direito Penal da Faculdade Ritter dos Reis Canoas/RS. "Honremos os juízes que, sem garantias reais, contrariam os interesses dos poderosos; que, com pobreza em casa, contêm o apetite dos opulentos; que, expondo a própria liberdade, defendem a liberdade alheia, e amam o povo, e não fazem da ordem pretexto para a injustiça. Seus nomes sobrevivem na tradição oral de comarcas distantes e obscuras, através das resistências ao arbítrio sem contraste, gloriosos de uma glória íntima, iluminados de uma luz sem recompensa, bravos de uma bravura sem ressonância." (ROBERTO LYRA. Como julgar, como defender, como acusar.) ABORTO PEDIDO DE AUTORIZAÇÃO JUDICIAL PARA INTERRUPÇÃO TERAPÊUTICA DE GESTAÇÃO INDEFERIMENTO DO PEDIDO PELO JUIZ CRIMINAL, EM PRIMEIRO GRAU INTERPOSIÇÃO DE APELAÇÃO CRIMINAL E, CONCOMITANTE, DE AGRAVO DE INSTRUMENTO, VISANDO À OBTENÇÃO DA MEDIDA ANTES DO JULGAMENTO DA APELAÇÃO, DEFERIDA PELO RELATOR E CONFIRMADA PELA CÂMARA Em julgamento realizado no dia 09 de março de 2001, a Câmara Especial Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, à unanimidade, deu provimento a recurso de Agravo de Instrumento interposto contra decisão de primeira instância denegatória de pedido de autorização judicial para interrupção terapêutica de gestação. A requerente, com 17 semanas de gestação, formulou pedido de interrupção da gravidez junto à Vara do Júri de Porto Alegre, com fundamento na malformação do feto que morreria ainda no útero ou logo após o nascimento. Demonstrou, outrossim, por declaração médica, a existência de riscos caso fosse mantida a gravidez, sendo aconselhável a interrupção. Em que pese ter o Ministério Público manifestado pelo deferimento do pedido, houve julgamento de improcedência, embasada a decisão na letra do art. 267, inc. VI, do Código de Processo Civil. A requerente interpôs Recurso de Apelação e, concomitantemente, manejou Recurso de Agravo de Instrumento. O advogado, premido pela urgência do caso, demonstrando extrema sensibilidade e responsabilidade profissional, lançou mão do recurso mais adequado à satisfação dos graves e delicados interesses defendidos. Nem tão adequado do ponto de vista formal, o que pouco ou nada importa.

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Page 1: J u r i s p r u d ê n c i a C o m e n t a d a · "E ntr e os juízes br asileir os, via de r egr a, abusa se das citações. P or dá cá aquela palha, invocam se pr ofusamente autor

Jurisprudência Comentada

Aos Moços

JADER MARQUESAdvogado Criminalista,

Especialista e Mestre em Ciências Criminais,VicePresidente do Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais (ITEC) e

Professor de Direito Penal da Faculdade Ritter dos Reis Canoas/RS.

"Honremos os juízes que, sem garantias reais, contrariam os interesses dospoderosos; que, com pobreza em casa, contêm o apetite dos opulentos; que,expondo a própria liberdade, defendem a liberdade alheia, e amam o povo, e nãofazem da ordem pretexto para a injustiça. Seus nomes sobrevivem na tradição oralde comarcas distantes e obscuras, através das resistências ao arbítrio semcontraste, gloriosos de uma glória íntima, iluminados de uma luz semrecompensa, bravos de uma bravura sem ressonância."(ROBERTO LYRA. Como julgar, como defender, como acusar.)

ABORTO PEDIDO DE AUTORIZAÇÃO JUDICIAL PARA INTERRUPÇÃOTERAPÊUTICA DE GESTAÇÃO INDEFERIMENTO DO PEDIDO PELO JUIZCRIMINAL, EM PRIMEIRO GRAU INTERPOSIÇÃO DE APELAÇÃOCRIMINAL E, CONCOMITANTE, DE AGRAVO DE INSTRUMENTO,VISANDO À OBTENÇÃO DA MEDIDA ANTES DO JULGAMENTO DAAPELAÇÃO, DEFERIDA PELO RELATOR E CONFIRMADA PELA CÂMARA

Em julgamento realizado no dia 09 de março de 2001, a CâmaraEspecial Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, àunanimidade, deu provimento a recurso de Agravo de Instrumento interpostocontra decisão de primeira instância denegatória de pedido de autorizaçãojudicial para interrupção terapêutica de gestação.

A requerente, com 17 semanas de gestação, formulou pedido deinterrupção da gravidez junto à 2ª Vara do Júri de Porto Alegre, comfundamento na malformação do feto que morreria ainda no útero ou logo apóso nascimento. Demonstrou, outrossim, por declaração médica, a existência deriscos caso fosse mantida a gravidez, sendo aconselhável a interrupção.

Em que pese ter o Ministério Público manifestado pelo deferimento dopedido, houve julgamento de improcedência, embasada a decisão na letra doart. 267, inc. VI, do Código de Processo Civil.

A requerente interpôs Recurso de Apelação e, concomitantemente,manejou Recurso de Agravo de Instrumento.

O advogado, premido pela urgência do caso, demonstrando extremasensibilidade e responsabilidade profissional, lançou mão do recurso maisadequado à satisfação dos graves e delicados interesses defendidos. Nem tãoadequado do ponto de vista formal, o que pouco ou nada importa.

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74 RDP Nº 7 AbrMaio/2001 JURISPRUDÊNCIA COMENTADA

Há casos em que o profissional da advocacia precisa estar mais atentoaos interesses do seu constituinte do que preso às estritas formas legais. Hácasos em que o causídico, com coragem, precisa ousar desafiar a dogmática(pré)constituída, trabalhando com a instrumentalidade do direito,especialmente no campo processual.

O que se verifica neste processo ora sob estudo é que o nobreadvogado fezse verdadeiro operador do direito, sujeito ativo na busca detransformação da dogmática constituída, quando esta mesma ordemconstituída não se presta ao atendimento dos anseios humanos.

E se o juiz, ao cabo do processo, determina o direito aplicável aos fatos,nunca se olvide a presença corajosa do advogado, que rompe o branco inútildo papel, fazendo surgir do raciocínio lógico e jurídico os seus argumentos,suas teses, seus pedidos.

A advocacia só pode ser exercida com coragem e paixão. Coragempara romper com o silêncio que oprime; para dar voz ao sofrimento contidodaquele que nada tem, porque nada mais espera. Paixão para fazer dotrabalho um instante de luta, um eterno combate em busca da satisfação dointeresse lesado, do direito ferido, da garantia violada.

Neste caso, sem sombra de qualquer dúvida, a defesa esteve à alturados interesses em debate, fazendo jus aos elogios feitos no corpo do acórdão,parte final do voto.

Na mesma linha de análise, cumpre destacar o papel do juiz diante doinusitado pedido formulado, já que houve a interposição de Agravo deInstrumento (de natureza cível), em processo que tramitava perante a 2ª Varado Júri, contendo a postulação urgente de autorização para interrupção dagestação.

Nada simples a incumbência do Desembargador CARLOS CINIMARCHIONATTI, Relator do recurso de agravo, já que estava diante de umrecurso formalmente inadequado, mas que postulava algo extremamenteurgente, para o que, inclusive, a ritualística do direito processual não estava aoferecer alternativa.

Neste contexto, o nobre Relator, ao destacar em seu voto aimpropriedade do agravo de instrumento no processo penal, demonstrainegável senso jurídico e de adequada aplicação do direito, quando afirma:

"O recurso de agravo de instrumento não se aplica à apelação criminal;nem a legislação penal e processual penal contêm recurso específico parasituações assim.

Apesar disto, o processo não é um fim em si mesmo, é instrumento àrealização do direito, o que se sobrepõe, aliandose à situação exposta, que érealmente gravíssima e não pode esperar o procedimento normal atinente àapelação criminal."

Foi com essa visão que o Relator encaminhou seu voto no sentido doconhecimento e provimento do recurso, ampliando a inteligente fundamentaçãoao afirmar:

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"Potenciando as circunstâncias do caso, em torno de suas razões de fatoe de direito, delas se retira a situação em concreto como é peculiar à aplicaçãojudicial do direito.

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RDP Nº 7 AbrMaio/2001 JURISPRUDÊNCIA COMENTADA 75

Também penso que não só a lei, senão a lei e a função judicial são asque dão ao povo seu direito.

Serve a este objetivo uma hermenêutica material, incompatível com amecanização do raciocínio jurídico, limitada ao encontro de soluções puramentetécnicojurídicas, atenta mais à logicidade interna das proposições do que àseiva da vida que deve inspirar" na excelente lição do Professor PLAUTOFARACO DE AZEVEDO, em sua importante Aplicação do direito e contextosocial, p. 161.

Entre a observação rigorosa da lei processual e a solução da situaçãode risco de vida da gestante, sobreleva a pessoa humana em detrimento daforma legal, porque é àquela que se volta o direito, enquanto instrumento derealização de felicidade.

A pessoa humana deve estar no centro do ordenamento jurídico. Para apreservação da dignidade do ser humano é preciso superar os estreitos limitesdo tecnicismo jurídico, para libertar o direito de sua minúscula capacidade deapreensão do mundo e sua infinita diversidade.

Em artigo publicado no Informativo do Instituto Transdisciplinar deEstutos Criminais (Itec), 1 sob o título "A pessoa: centro do ordenamentojurídico", o Professor MARCO AURÉLIO MOREIRA DE OLIVEIRA asseveracom autoridade:

"A lição da História tem sido terrível: os que atentaram contra os direitosdas pessoas não terão quem, amanhã, lhes garanta proteção quando delanecessitarem em favor de suas prerrogativas; da mesma forma, serãoestigmatizados pela reprovação dos justos os que afrontarem a ordem judicialindependente, responsável por proclamar a igualdade dos cidadãos perante osdireitos e as garantias protetivas da dignidade humana."

O deferimento da interrupção da gestação em sede de Agravo deInstrumento manejado concomitantemente com Apelação Criminal semdúvida, configura manifestação de coragem e independência dosdesembargadores da Câmara Especial Criminal do Tribunal de Justiça gaúcho.

Independência que é necessária, em nome do direito, não apenasquando o enfrentamento se dá entre o rico e o pobre ou entre o poderoso e ofraco, mas, principalmente, quando é preciso superar o direito em nome darealização do justo.

O imortal NELSON HUNGRIA, em seus Comentários ao Código Penal, 2apresenta inigualável lição sobre o papel do juiz de direito, quando escreve:

"Entre os juízes brasileiros, via de regra, abusase das citações. Por dácá aquela palha, invocamse profusamente autores e precedentes julgados,daquém e dalém mar, com transcrições em sete línguas diferentes, e assentenças fogem inteiramente, por isso mesmo, a austera singeleza de quedevem revestirse. Sentença não são desafogo de sapiência ou paradas deerudição ad hoc, deglutida na última vigília. Como adverte Calamandrei, no seuelogio dos juízes, as sentenças judiciais não precisam de ser amostradas derebrilhante cultura de vitrina. O que lhes convém é que, dentro das possibilidadeshumanas sejam justas, servindo ao fim prático de implantar a paz entre oshomens. Longe de mim afirmar que o juiz não deva ilustrarse, cnsultando a liçãodoutrinária e pondose em dia com a evolução jurídica; mas se ele se deixa

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seduzir demasiadamente pelo teorismo, vai dar no carrascal das subtilitates jurise das abstrações inanes, distanciandose do solo firme dos fatos, para aplicar,não a autêntica justiça, que é sentimento em face da vida, mas um direitocerebrino e inumano; não o direito como ciência de lógica pura, divorciado darealidade humana; não a verdadeira justiça, que é função da alma voltada para omundo, mas um direito postiço arrebicado sabendo a palha seca e cheirando anaftalina de biblioteca."

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E prossegue o exMinistro HUNGRIA:

"O juiz que para a demonstração de ser a linha reta o caminho mais curtoentre dois pontos cita desde de Euclides até os geômetras da quarta dimensão,acaba perdendo a crença em si mesmo e a coragem de pensar por contaprópria. Dele jamais se poderá esperar uma solução cautamente pretoriana, ummilímetro de avanço na evolução do direito, o mais insignificante esforço deadaptação das leis. O juiz deve ter alguma coisa de pelicano. A vida é variedadeinfinita e nunca lhe assentam com irrepreensível justeza as 'roupas feitas' da lei eos figurinos da doutrina. Se o juiz não dá de si para dizer o direito em face dadiversidade de cada caso, a sua justiça será a leito de Procusto: ao invés demedirse com os fatos, estes é que terão de medirse com ela."

A transcrição dessas contundentes palavras tem o objetivo dehomenagear o "juizpelicano", no dizer do autor do texto acima. Aquele quenão admite aprisionar a grandeza da vida, nem mesmo em face de consagradadoutrina ou de iterativa jurisprudência. A esse respeito, aliás, continuaadvertindo o exMinistro NELSON HUNGRIA, com a mesma veemência eacerto:

"Da mesma tribo do juiz técnicoapriorístico é o juiz fetichista dajurisprudência. Esse é o juiz burocrata, o juiz de fichário e catálogo, o juizcolecionador de arestos segundo a ordem alfabética dos assuntos. É o juiz quese põe genuflexo diante dos repertórios jurisprudenciais como se fossem livrossagrados de alguma religião cabalística. Para ele, a jurisprudência é o direitoimutável e eterno: segregase dentro dela como anacoreta na sua gruta,indiferente às aventuras do mundo. Será inútil tentar demovêlo dos seusângulos habituais. Contra a própria evidência do erro, ele antepõe, enfileiradoscronologicamente, uma dúzia ou mais de acórdãos, e tranqüilo, sem fisgadas deconsciência, repete o ominoso brocardo: error comunis facit jus. À força de seimpregnar de doutrina e jrisprudência, o juiz despersonalizase. Reduz suafunção ao humilde papel de esponja, que restitui a água que absorve. Constróino seu espírito uma parede de apriorismos e preconceitos jurídicos, que lhetapam as janelas para a vida. Suas decisões semelham, pela ausência deespontaneidade, às declarações de amor decoradas no Conselheiro dosNamorados. Enquadrado o seu pensamento nos esquemas fechados doteorismo científico ou do casuísmo curial, sua alma se estiola e resseca,impassível aos dramas que vêm epilogarse nas salas dos tribunais. Não sente odireito, que ele só conhece e declara dentro de fórmulas invariáveis e hirtas.Exerce a função tão fria e impessoalmente como o empregado de aduana aoclassificar mercadorias sob as rubricas da tabela tarifária."

A diversidade da vida real estava a reclamar uma solução materialmentejusta, inobstante formalmente inadequada.

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Assim é que o deferimento do pedido de interrupção de gestação, combase no risco de vida da gestante, em que pese a inadequação de forma, abreespaço para a discussão em torno do papel do juiz diante do justo,especialmente quando se percebe que o insigne Relator e seus pares daCâmara Especial, poderiam, simplesmente, não conhecer do recurso.

E nenhuma alegação jurídica contundente poderia ser levantada contraessa decisão, por ser formalmente adequada.

Nem mesmo faria qualquer diferença a morte da gestante,posteriormente ao indeferimento da autorização de aborto, pois sempre haveriaa justificativa jurídica de que o pedido não estava adequado ao sistema legal. Aresposta poderia ter sido simples: não conheço do recurso, por inadequado.

O Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São PauloADAUTO SUANES, em sua excelente obra Os fundamentos éticos doprocesso penal, 3 analisa um julgado do Supremo Tribunal Federal em que aintempestividade fez com que se deixasse de conhecer de um recurso criminal,mesmo diante de coação ilegal flagrante:

"Mais uma vez se repete um velho chavão: o processo em si (e a demorana decisão da causa) não representa prejuízo para o réu; a condenação nãorepresenta prejuízo para o réu; o cumprimento da pena não representa prejuízopara o réu. Que se haverá de entender, então como prejuízo? Assim, dediscurso em discurso, encerrase o julgamento, sem que o leitor saiba se haviaou não constrangimento ilegal ensejador de concessão de habeas corpus deofício. Notese, para remate, que nenhum dos Ministros afirma que se tratava deréu solto, caso em que se poderia compreender que o interessado voltasse pelasvias adequadas."

Ao final das considerações, o exDesembargador faz uma "terrível"pergunta ao leitor:

"O presente julgamento 'traz à baila' uma velha questão, bastante prática:o leitor, se estivesse sendo processado criminalmente, preferiria ser julgado porum juiz culto e insensível ou por um juiz inculto, mas com sensibilidade?"

Diuturnamente, milhares de decisões desse tipo são prolatadas.Decisões formalmente corretas, porém, que deixam a gravidade dascircunstâncias totalmente de lado.

Vejase o clássico exemplo da exigência de autenticação de cópias emhabeas corpus, o que ainda ocorre em alguns Tribunais Pátrios. Ou então, umchavão ainda mais comum (e não menos terrível): "o habeas corpus nãoadmite a análise de prova". Ainda: "não há nulidade sem prova do prejuízo".

Invocamse súmulas, entendimentos pacíficos da melhor jurisprudência,abalizada doutrina, dogmas consagrados pela posição dominante, enfim, todoe qualquer artifício de retórica é útil a evitar seja enfrentada a questão defundo: a violação do direito do acusado se defender, de calar, de mentir, denada provar.

Como salientado no julgado da pena do jovem DesembargadorMARCHIONATTI, o processo é instrumento à realização do direito. Como tal,não pode admitir o abuso, a violação das garantias, a quebra dos princípios.

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Chancelar o equívoco, a partir de uma decisão de Pilatos, 4 significainércia vedada ao homem público juiz de direito.

O jurista italiano LUIGI FERRAJOLI, 5 pai do Garantismo Penal, sobre opapel da jurisdição:

"Assim o papel da jurisdição é, antes de tudo, destinado ao controlesobre a ilegalidade no exercício do poder. Não porque hoje há um poder maiscorrupto do que no passado, mas porque, de um lado, aumentou acomplexidade de organização do Estado e, de outro, também houve umaumento da estrutura garantísica do Direito.

E cada aumento de garantia, isto é, de limites e vínculos, comporta umaumento no papel da jurisdição. Naturalmente a legitimação do papel do PoderJudiciário se dá pela legitimação da norma, ou seja, a legitimação pelo DireitoPenal, processo penal, processo civil, que fazem com que esse poder sejanaturalmente um poder de recomposição e não de decisão."

Essas breves considerações a respeito do acórdão que segue adiantereproduzido na íntegra, como já foi dito, têm a intenção de prestar uma singelahomenagem às atitudes corajosas de homens e mulheres que carregam, nasua atividade jurídica, o compromisso com a dignidade da pessoa humana.

É preciso pressa para que não tarde o dia do despertar para uma sóconsciência: o ser humano fez o direito para alcançar a paz, a liberdade, ajustiça e a felicidade.

Como RUI BARBOSA, em sua "Oração aos Moços", cumpre que sediga:

"Eia, Senhores! Mocidade viril! Inteligência brasileira! Nobrenação explorada. Brasil de ontem e de amanhã! Dainos o de hoje, que nosfalta."

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RDP Nº 7 AbrMaio/2001 JURISPRUDÊNCIA COMENTADA 79

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL

ABORTO PEDIDO DE AUTORIZAÇÃO JUDICIAL PARA INTERRUPÇÃOTERAPÊUTICA DE GESTAÇÃO INDEFERIMENTO DO PEDIDO PELO JUIZ

CRIMINAL, EM PRIMEIRO GRAU INTERPOSIÇÃO DE APELAÇÃOCRIMINAL E, CONCOMITANTE, DE AGRAVO DE INSTRUMENTO,

VISANDO À OBTENÇÃO DA MEDIDA ANTES DO JULGAMENTO DAAPELAÇÃO, DEFERIDA PELO RELATOR E CONFIRMADA PELA CÂMARA

O processo não é um fim em si mesmo, é instrumento à realização dodireito, aliandose à situação exposta, que é realmente gravíssima e não podeesperar o procedimento atinente à apelação criminal.

Se, do ponto de vista médico, não há outra alternativa, senão ainterrupção terapêutica da gestação, cabe ao juiz equacionar diante dascircunstâncias únicas do caso e, juridicamente, encontrar solução, tanto paraconhecimento do recurso, à falta de recurso adequado, como para seujulgamento, uma e outra vinculadas, no caso concreto, ao valor prevalecenteda saúde e da vida da gestante.

Estudos médicos, que demonstram a procedência do pedido eenfatizam a existência de sério risco à vida da gestante, além do estado doconcepto, cuja saúde não se pode cientificamente estabelecer devido àsmúltiplas malformações, nem sua vida salvar, lamentavelmente.

A existência de perigo atual à saúde da gestante e, para mais disso, derisco iminente à sua vida, em maior ou menor grau, são bastantes em si àcaracterização da necessidade do aborto, como único meio seguro pararesguardo da pessoa da gestante, caso não haja interrupção natural dagestação.

Em medida ou proporção adequada, devese exigir a existência deperigo sério à vida da gestante, entretanto, não a ponto de exigir que lhe sejaiminente ou quase atual a própria morte, porque já então poderá ser tardiaqualquer intervenção médica.

Conhecimento e provimento do recurso.

TJRS AI 70002099836 C.Esp.Crim. Rel. Juiz Carlos CiniMarchionatti J. 09.03.2001

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos.

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80 RDP Nº 7 AbrMaio/2001 JURISPRUDÊNCIA COMENTADA

Acordam os integrantes da Câmara Especial Criminal do Tribunal deJustiça do Estado, à unanimidade, em dar provimento ao agravo, ratificando ostermos da medida concedida.

Custas, na forma da lei.

Participaram do julgamento, além do signatário, o eminenteDesembargador MARCO ANTÔNIO BARBOSA LEAL, Presidente, e aeminente Juíza de Direito MARIA DA GRAÇA CARVALHO MOTTIN.

Porto Alegre, 09 de março de 2001.

Juiz de Direito CARLOS CINI MARCHIONATTI Relator

RELATÓRIO

Juiz de Direito CARLOS CINI MARCHIONATTI (Relator):

Tratase de recurso de agravo de instrumento de parte de requerentesde autorização judicial para interrupção terapêutica de gestação, cujo pedidofoi indeferido pelo juízo criminal para o qual foi distribuído, visando, com o atualrecurso, ligado à apelação, já interposta, obtenção de medida judicial conformeo pedido, que não pode esperar o julgamento da apelação.

A requerente, grávida com 17 semanas de gestação, recebeudiagnóstico de malformação do feto, gravemente comprometido por problemasque ocasionarão sua morte, ainda durante a gestação ou logo após seunascimento, apresentandose documentos médicos, comprobatórios doalegado (fls. 17 a 22), bem como declaração do médico Chefe do Setor deMedicina competente do Hospital referido, demonstrando os riscos inerentes àmanutenção da gravidez, aconselhando e colocandose à disposição pararealização de interrupção terapêutica da gestação, caso haja decisão judicialneste sentido (fls. 23 e 24).

Inicialmente, requereuse autorização judicial junto à 2ª Vara do Júri daComarca da Capital, tendo o Dr. Promotor de Justiça opinado pelo deferimentodo pedido (fls. 36 e 37).

A Dra. Juíza de Direito julgouo improcedente, por entendêloimpossível, na forma do art. 267, inc. VI do Código de Processo Civil (fls. 41 a45).

Daí o atual recurso de agravo de instrumento, que, na qualidade deRelator, conhecendo dele, recebi e deferi a medida solicitada nos seguintestermos (fls. 56 a 58):

"O pronunciamento do Dr. Promotor de Justiça que se encontra nasfolhas 28 e 29 destes autos com objetividade expõe sobre o pedido em si e,com exatidão jurídica, indica sua solução.

"O MINISTÉRIO PÚBLICO, por seu órgão signatário, nos autos doexpediente nº 10501954, vem dizer a V Exa. o seguinte:

"... requer autorização judicial para procedimento abortivo, em face demáformação fetal. Traz documento, firmado pelos doutores. ... e ..., médicos doSetor de Medicina do Hospital ..., comprovando estar grávida com dezessete

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semanas, bem como que o feto apresenta múltiplas máformações: hidrocefalia,ausência de rim esquerdo, displasia do rim direito, deformidade do poio cefálicoe mielomeningocele (fl. 15/16).

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RDP Nº 7 AbrMaio/2001 JURISPRUDÊNCIA COMENTADA 81

"Competente para apreciação do pedido é a Vara do Júri, posto que, se écompetente para julgar a interrupção ilícita da gravidez, inequívoco é quetambém o é para autorizar o aborto, não se devendo esquecer de que o abortolegal está previsto no Código Penal (art. 128). Aliás o documento das fls. 23/26 eos que acostamos a esta peça evidenciam, à saciedade, o que acima afirmase.

"Pretendese, portanto, o chamado aborto eugenésico, que nossadesatualizada lei penal não admite, embora a justiça criminal brasileira venhaautorizando, conforme se vê do documento das fls. 23/26 dos autos e dos queseguem em anexo, e, no projeto para reforma da Parte Especial do CódigoPenal, já haja sua previsão.

"Todavia, entende, o MINISTÉRIO PÚBLICO, que, também, tratase dehipótese de aborto terapêutico, para salvar a vida da gestante, porque ossupracitados médicos, no relatório acima referido, dizem que: 'A hidrocefalia ou oaumento do volume da cabeça fetal, além de ser condição ominosa, pode levar auma evolução desfavorável da prenhez, impedindo, mesmo no futuro, arealização de um parto normal, podendo obrigar o obstetra a uma operaçãodeterminante de riscos maternos, sabendose previamente que não haverásobrevida fetal' (fl. 15). E, obviamente, referemse ao risco de vida para arequerente.

"Para a interrupção dessa gravidez, nossa lei penal não reclamaautorização judicial, ou seja, o único árbitro da prática do aborto é o médico,conforme ensina DAMÁSIO E. DE JESUS (em Código Penal Anotado; 8. ed., p.379). Todavia, os médicos, freqüentemente, pedemna, para se protegerem. Éocaso dos autos.

"Pelo exposto, opina pelo DEFERIMENTO do pedido, forte no art. 128,nº I, do CP, ou, tendo em vista a inviabilidade de o produto da concepção nascercom vida, dadas as comprovadas deformações que traz, pela total ausência deilicitude material do procedimento pleiteado (ausência de lesividade, basenuclear da ilicitude)."

"Em primeiro lugar, pois, reportome ao criterioso pronunciamento doilustrado órgão do Ministério Público junto ao colendo juízo de origem, cujasrazões de fato e de direito adotamse como razões de decidir, emborasobremodo respeitese a orientação judicial, objeto do atual recurso.

"Devo acrescer as seguintes considerações, e muitas outras aindaseriam possíveis, sendo as que sobrelevo.

"Indeferido o pedido em primeiro grau de jurisdição, interpôsse apelaçãoe, concomitantemente, agravo de instrumento, como quer que seja, visando àobtenção de autorização judicial.

"O recurso de agravo de instrumento não se aplica à apelação criminal,nem a legislação penal e processual penal contêm recurso específico parasituações assim.

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82 RDP Nº 7 AbrMaio/2001 JURISPRUDÊNCIA COMENTADA

"Apesar disso, o processo não é um fim em si mesmo, é instrumento àrealização do direito, o que se sobrepõe, aliandose à situação exposta, que érealmente gravíssima e não pode esperar o procedimento normal atinente àapelação criminal.

"Cabe ao juiz equacionar diante das circunstâncias únicas do casoconcreto.

"Os estudos médicos, que demonstram a absoluta procedência dopedido, enfatizam a existência de sério risco à vida da gestante, além do estadodo concepto, cuja saúde não se pode cientificamente estabelecer devido àsmúltiplas malformações, nem sua vida salvar, lamentavelmente.

"Do ponto de vista médico não há outra alternativa, senão a interrupçãoterapêutica da gestação, e juridicamente se deve encontrar solução, uma e outravinculadas à preservação da vida da gestante, como se tipifica no art. 128, inc. I,do Código Penal.

"No caso, é a de acolherse o exposto na petição de recurso e autorizarse, como se autoriza, a interrupção terapêutica da gestação."

O parecer da Dra. Procuradora de Justiça é no sentido de julgarseprejudicado o recurso, pela perda de seu objeto.

Posteriormente, adveio nova e diligente petição para reiterar anecessidade da intervenção médica em favor da gestante, e informar que, aoinício do domingo a medida liminar fora concedida sextafeira , derase oabortamento natural do feto, vindo imediatamente a falecer, anexandose àpetição documentos comprobatórios oriundos de entidade hospitalar.

O recurso de apelação também o estou trazendo à sessão.

É o relatório.

VOTO

Juiz de Direito CARLOS CINI MARCHIONATTI (Relator):

Já se terá visto que o caso em si, sob aspectos variados, refoge ao quepossa ser considerado comum na praxe forense, além de representar temapropício à polêmica e à divisão de opiniões, jurídicas ou não, ao influxo dasmais elevadas convicções pessoais.

Por isso mesmo requer considerações pertinentes.

O voto, que li em sessão, o resumi, para agora, na lavratura do acórdão,desenvolvêlo completo, expondo a persuasão das razões de decidir.

A primeira das cogitações possíveis diz respeito à competência paraconhecer do pedido de autorização judicial para interrupção terapêutica dagestação e, em conseqüência, julgálo.

O Código de Organização Judiciária do Estado do Rio Grande do Sul,ao regular a atribuição de competência às unidades jurisdicionais, não trataespecial e expressamente da hipótese (art. 84 e seus incisos, remissivos aoutros, conforme ali se dispõe).

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Mas, sem dúvida, podese situálo no âmbito da jurisdição criminal,porque a matéria em si é de natureza criminal, o Código Penal incrimina oaborto, assim como dispõe quando não seja punível, como é o caso (arts. 124a 128).

E, na Comarca da Capital, os processos de competência do júri,relativos aos delitos dolosos contra a vida, como o de aborto, são dasatribuições privativas das Varas do Júri (artigo mencionado, incisos X e XII).

O Dr. Promotor de Justiça, em seu pronunciamento, transcrito norelatório e que adotei como uma das razões de decidir ao deferir a medidasolicitada, assim como a ilustrada Juíza de Direito, na respeitável decisãorecorrida, objeto deste recurso e do de apelação, ambos se referiram àquestão, afirmando a competência do juízo criminal de origem.

A egrégia 8ª Câmara Criminal, em julgamento de conflito decompetência em situação similar (nº 70000310300, de que Relator o eminenteDesembargador MARCO ANTÔNIO RIBEIRO DE OLIVEIRA), trazido àconsideração inclusive na decisão recorrida, igualmente.

Embora a conveniência dessas observações, na espécie não hádiscussão a respeito, e por isso, além do exposto, também confirmo acompetência do juízo da vara de origem, tal como se estabeleceu, e, a partirdaí, como conseqüência desta definição, a desta Câmara Criminal.

A segunda cogitação possível situase em torno da possibilidade, ounão, do próprio recurso de agravo de instrumento, especificamente quandocaiba apelaçãocriminal.

Fiz menção na decisão autorizando o pedido, assim expondo:

"O recurso de agravo de instrumento não se aplica à apelação criminal,nem a legislação penal e processual penal contêm recurso específico parasituações assim.

'Apesar disso, o processo não é um fim em si mesmo, é instrumento àrealização do direito, o que se sobrepõe, aliandose à situação exposta, que érealmente gravíssima e não pode esperar o procedimento normal atinente àapelação criminal.

'Cabe ao juiz equacionar diante das circunstâncias únicas do casoconcreto.

'Os estudos médicos, que demonstram a absoluta procedência dopedido, enfatizam a existência de sério risco à vida da gestante, além do estadodo concepto, cuja saúde não se pode cientificamente estabelecer devido àsmúltiplas malformações, nem sua vida salvar, lamentavelmente.

'Do ponto de vista médico não há outra alternativa, senão a interrupçãoterapêutica da gestação, e juridicamente se deve encontrar solução, uma e outravinculadas à preservação da vida da gestante, como se tipifica no art. 128, inc. I,do Código Penal.

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'No caso, é a de acolherse o exposto na petição de recurso e autorizarse, como se autoriza, a interrupção terapêutica da gestação.

'Comuniquese imediatamente esta decisão ao colendo juízo de origem,encarecendo determine o seu cumprimento."

Continuo pensar exatamente conforme essas razões.

Nem tinham as partes mais o que fazer, a não ser esperar o julgamentodo recurso de apelação, submetido a regramento próprio, adequado aosistema recursal penal e à maioria dos casos judiciais, via de regra, sejaquanto às características de seu rito, seja quanto às propriedades de seusefeitos, não obstante isso, de modo absoluto e de forma manifesta, inadequadoàs circunstâncias urgentes determinantes do caso.

A situação periclitante, por excelência, no âmbito do processo penal,relativa à privação da liberdade do acusado, pode sempre ser resolvida atravésde habeas corpus, que, entretanto, é incabível para o caso, assim como omandado de segurança, porque não existe direito subjetivo, líquido e certo, àinterrupção da gestação.

À falta de previsão legal para o recurso interposto, poderseia sequerconhecer dele.

Mas não é o meu modo de ver e de julgar.

Potenciando as circunstâncias únicas do caso, em torno de suas razõesde fato e de direito, delas se retira a solução em concreto, como é peculiar àaplicação judicial do direito.

Também penso que não só a lei, senão a lei e a função judicial são asque dão ao povo seu direito.

Serve a este objetivo uma hermenêutica material, incompatível com amecanização do raciocínio jurídico, limitada ao encontro de soluçõespuramente técnicojurídicas, atenta mais à logicidade interna das proposiçõesdo que à seiva da vida que as deve inspirar na excelente lição do ProfessorPLAUTO FARACO DE AZEVEDO, em sua importante Aplicação do direito econtexto social, p. 161.

Entre a observação rigorosa da lei processual que não dispõe derecurso específico que servisse à iminência do caso , e a solução da situaçãoaflitiva, pondo em risco ou em perigo a saúde e, em medida determinada poressa contingência, a própria vida da gestante, se persistisse seu estado degravidez irresoluta, sobrelevase a necessidade de proteção da pessoagestante, determinando e impondo, em primeiro lugar, o conhecimento dorecurso, na modalidade pela qual se expressou, que é o que menos importa.

Superada esta situação jurídica, impõese, em segundo lugar,julgamento do recurso.

Àquelas circunstâncias, com as quais interage, aliase outra, a daimpossibilidade científica ou médica, devidamente comprovada, de salvar onascituro, lamentavelmente.

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"A decisão justa só se encontra entendendo as razões das partes,quaisquer que sejam estas, buscandose a qualificação jurídica dos fatos tendoem vista o contexto em que se inscrevem, vale dizer, mediante umavalorização global dos dados fáticos e jurídicos ensejados na espécie,confrontandoos com os interesses sociais e prefigurando os efeitos que iráproduzir na vida concreta dos homens", mais uma vez citando lição do ilustreProfessor, em mesma obra e local.

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Nesta linha de raciocínio, pondero que, pelo menos e pelo que significa,devese confirmar a decisão que permitiu a interrupção terapêutica dagestação, dandose, nesta medida, provimento ao recurso, embora não sedesconsidere a situação superveniente, de precipitação de abortamentonatural, que não se podia prognosticar quanto à sua data e que, tudo indica,fez bem à gestante, logo após a autorização judicial da medida.

Reafirmo que as circunstâncias únicas do caso autorizavam a medidaque deferi.

Ao deferila, e antes devo também dizer que consultei Vossa Excelência,Senhor Presidente, estava em busca de justiça no caso concreto, tanto quantoVossa Excelência, como sempre, mas especialmente neste caso, dadaprincipalmente a situação pessoal da mãe, submetida a sério e crescenteperigo com a evolução da gestação, não só quanto à sua saúde física, senãoquanto ao seu estado emocional, como naturalmente se pode compreender.

Ao decidir, como também consignei, muito considerei a opinião doilustrado Promotor de Justiça, Dr. MARCELO RIBEIRO, atuante junto aocolendo juízo de origem.

Além das razões que já compõem este voto, adequase explicitar mais oque segue.

Poderseia, até, dizer de muitas maneiras; coerente com o que antesobservei, direi com a objetividade possível.

São impuníveis o aborto necessário ou terapêutico, se não há outromeio de salvar a vida da gestante, e o aborto sentimental ou ético, no caso degravidez resultante de estupro (Código Penal, art. 128, incisos I e II,respectivamente).

O primeiro caracteriza estado de necessidade dentro do qual a salvaçãoda vida da mulher, como valor prevalecente, justifica a morte do feto, depois deesgotadas as possibilidades à salvação da mãe e do filho.

A outra hipótese prevista pelo Código é a da gestação proveniente deestupro, por razão de ordem ética ou emocional que o legislador considerouponderáveis a ponto de excluir sua ilicitude ou desconceituar como crime.

O Código Penal não acolheria outras justificativas, dentre elas,guardando relação com o caso, o critério chamado eugênico, em que aprovocação do aborto tem por fim evitar o nascimento de seres afetados degraves desvios de normalidade.

Não se legitima, assim, o denominado aborto eugênico ou eugenésico.

Então, a indagação que se põe é a de como se considerar o caso.

A digna Dra. Juíza de Direito, em decisão motivada, como devem sertodas as decisões judiciais, considerou tratarse de aborto eugênico, daí omérito de seu indeferimento, que se reconhece e muito se respeita.

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Diferentemente, à semelhança do pensamento do Dr. Promotor deJustiça, nos termos de seu pronunciamento, também concebido com critério eelaborado com exatidão, e das razões que arrolei por ocasião da decisão pelaqual deferi a medida pleiteada, mais as que acresço agora, neste voto, pensocaracterizarse situação de aborto necessário.

Em uma síntese, mesmo repetindo, diagnosticandose, em âmbitomédico, principalmente, que "a hidrocefalia ou o aumento do volume da cabeçafetal, além de ser condição ominosa, pode levar a uma evolução desfavorávelda prenhez, impedindo, mesmo no futuro, a realização de um parto normal,podendo obrigar o obstetra a uma operação determinante de riscos maternos,sabendose previamente que não haverá sobrevida fetal", caracterizase, aomesmo tempo, a existência de perigo atual à saúde da gestante com apersistência da gravidez e, pelo menos, de perigo mais ou menos iminente àsua vida, como se exige e com o que se tipifica a hipótese do art. 128, inc. I, doCódigo Penal.

Corretamente, a doutrina de nomeada dispensa a necessidade daatualidade do perigo. Havendo perigo para a vida da mãe, o aborto estáautorizado.

A existência de perigo atual à saúde da gestante e, para mais disso, derisco iminente à sua vida, em maior ou menor grau, são bastantes em si àcaracterização da necessidade do aborto, como único meio seguro pararesguardo de sua vida, caso não haja interrupção natural da gestação.

Dito de outro modo, em medida ou proporção adequada, devese exigira existência de perigo sério à vida da gestante, como existia, entretanto, não aponto de exigir que lhe seja iminente ou quase atual a própria morte, porque jáentão poderá ser tardia qualquer intervenção médica.

Somandose o estado do concepto, cuja saúde não se podecientificamente estabelecer devido às múltiplas malformações, nem sua vidasalvar, lamentavelmente, nem havendo outra alternativa do ponto de vistamédico, a não ser a recomendação da interrupção terapêutica da gestação,juridicamente se deve encontrar solução, uma e outra vinculadas à necessáriae prevalecente preservação da pessoa e da vida da gestante.

Daí a procedência do pedido de autorização judicial.

Obviamente, a ausência de risco à mãe ou a possibilidade de vida donascituro, mesmo que afetado, em qualquer grau, de desvio da normalidade,levariam a outra postura médica e jurídica.

Mas, no caso, coexistem, um demonstrando o outro e a procedência dopedido.

De outra maneira, não só o juízo de consideração ou de caracterizaçãoda ocorrência de aborto necessário motivaria a procedência do pedido.

Ainda que se duvide, para argumentar, de que só o aborto necessáriopoderia dirimir o perigo de vida da gestante, como requisito do aborto ou daautorização judicial no caso, de outro lado, o feto não tinha condições de vida,

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pelo diagnóstico de múltiplas malformações e prognóstico de morte durante agestação ou logo após seu nascimento.

Em outra perspectiva, o pedido teria e tem igual razão.

No tocante às normas penais nãoincriminadoras não vige o princípio dareserva legal.

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Os incisos que estabelecem os abortos lícitos ou impuníveis não sãonormas incriminadoras.

Com isso, eventual lacuna legislativa pode ser suprida pelos processosde autointegração da lei penal.

Dentro da teoria do crime, cuidase a respeito, no mais das vezes,dentre as causas de exclusão da ilicitude ou da antijuridicidade, parademonstração da existência de causas supralegais (digase genericamenteassim) ou não explícitas de sua exclusão.

Existem condutas consideradas justas pela consciência social, que nãoestão acobertadas como causas de exclusão da ilicitude pelo códigoexpressamente.

Neste sentido, a realização do aborto nas mesmas circunstânciasrepresentaria, pelo mínimo admissível, inexigibilidade de conduta diversa (queexcluiria a culpabilidade penal).

Nas circunstâncias, não se poderia exigir dos pais, autores do pedido, edos médicos, que os atenderam de acordo com o consentimento deles, outraconduta, senão, razoavelmente, a interrupção terapêutica da gestação.

Sua justificação ressalta do relatório médico (fl. 16):

"Infelizmente não há tratamento comprovado cientificamente que possarestabelecer a saúde fetal na sua integridade, não havendo como salvar esteconcepto.

"Nos países onde a interrupção da gestação é permitida, esta opção écolocada frente a estes casos, visando também a proteger a mãe dos riscosinerentes a manutenção da prenhez. No Brasil e, em nosso Estado inclusive, jáhouve casos de autorização judicial devido a estas malformações, resguardandose segredo de justiça solicitado.

"Os meios utilizados para interrupção da gravidez neste período incluemo emprego de medicação aplicada diretamente na circulação fetal, o queassegura ao feto um tratamento com dignidade e sem sofrimento. E, a seguir, senecessário, indução do abortamento, habitualmente utilizada nos procedimentosobstétricos. Portanto, permite a realização do abortamento via vaginal, dez vezesmais seguro para a saúde da gestante. (...)"

Ainda que se pudesse considerar, para discussão, que o caso nãorepresenta, com rigorosíssima tipicidade, o disposto no inc. I do art. 128 doCódigo Penal, sob a consideração de que não se provou a impossibilidade desalvar a vítima da gestante caso persista a gestação, ainda assim, não seexigiria outra conduta dos requerentes e dos médicos, sendo, como seobservou, muitas vezes mais seguro à saúde da gestante, além da absolutaimpossibilidade de salvar o feto.

O Código Penal tem a idade de 60 anos. Desde que entrou em vigor seseguiu enorme progresso da ciência médica, o que é notório. À época eraimpensável que se pudesse diagnosticar com a exatidão científica atual ecomo fizeram os médicos no caso. O legislador, que não pode a tudo prever,não tinha como fazêlo com tamanha percuciência que tornasse inevitável aaplicação irrestrita da regra legal aos dias de hoje.

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Nas circunstâncias, supliciarseia a gestante, além de seus familiares,exigir deles a continuidade da gestação.

Esta é mais uma razão, que se agrega às demais, para conhecer dopedido e acolher os termos de seu requerimento.

E, ainda, haveria outra, dedutível por analogia.

No aborto ético, permitindoo, o legislador considerou ponderáveisrazões emocionais, não importando o estado do feto; no caso, a múltiplamalformação dele, tornando impossível sua vida, por maioria de razão, nocontexto das demais circunstâncias, erigese também como razão ética dandoapoio e procedência ao pedido.

Assim que, por onde quer que se examine o pedido, encontramsesempre razões relevantes ao seu acolhimento.

Por fim, tenho o propósito de expressar o meu reconhecimento àatuação dos médicos e dos advogados, porque, ao recorrerem à intervençãojudicial, tanto quanto os autos permitem revelar, agiram inspirados em éticaexemplar e empenhados na melhor solução para o caso, com o que tambémmuito respeito a decisão judicial, objeto do recurso, juridicamente valiosa etambém criteriosa, mesmo perfilhando opinião contrária.

Penso que todos cumpriram com o seu dever, principalmente os pais,autores do pedido, que, em atitude modelar, sem deixar de ser profundamentedolorosa, recorreram ao Poder Judiciário em busca do reconhecimento regularde seu direito; e, como expressão disso, mesmo assim, todos certamentelamentam: o de que mais se queria era a vida do nascituro.

É o voto.

Des. MARCO ANTÔNIO BARBOSA LEAL (Presidente) De acordo.

Dra. MARIA DA GRAÇA CARVALHO MOTTIN (Juíza de Direito) Deacordo.

Juíza de Direito da decisão: Dra. LAIS ETHEL CORREA PIAS

APELAÇÃO CRIMINAL ABORTO

Pedido de autorização judicial para interrupção terapêutica da gestação,indeferido em primeiro grau, tendo as partes interposto agravo de instrumento,visando à obtenção de medida judicial junto à Superior Instância, antes dojulgamento da apelação (Agravo de Instrumento 70002099836).

Perda de objeto da apelação, considerada prejudicada, tendoseconfirmado, no julgamento daquele recurso, a medida deferida pelo Relator,além da superveniência de abortamento natural do feto.

TJRS ACr 70002111508 C.Esp.Crim. Rel. Juiz Carlos CiniMarchionatti J. 09.03.2001

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ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos.

Acordam os integrantes da Câmara Especial Criminal do Tribunal deJustiça do Estado, à unanimidade, julgar prejudicada a apelação.

Custas, na forma da lei.

Participaram do julgamento, além do signatário, o eminenteDesembargador MARCO ANTÔNIO BARBOSA LEAL, Presidente, e aeminente Juíza de Direito MARIA DA GRAÇA CARVALHO MOTTIN, Revisora.

Porto Alegre, 09 de março de 2001.

Juiz de Direito CARLOS CINI MARCHIONATTI Relator

VOTO

Juiz de Direito CARLOS CINI MARCHIONATTI (Relator):

Considerando que a egrégia Câmara vem de confirmar a medida quedeferi, na qualidade de Relator, no agravo de instrumento, interposto paraobter, desde logo e antes do julgamento da apelação, autorização judicial parainterrupção terapêutica da gestação, além disso, a informação de que houveabortamento natural do feto, após o deferimento da medida pleiteada deautorização judicial, como observei no relatório, quando também me referi àsprincipais ocorrências contidas nos autos do agravo de instrumento, ponderoesteja prejudicado o julgamento deste recurso de apelação, devido à perda deseu objeto.

Para mais disso, devo ressalvar que, em meu voto, relativo ao agravode instrumento, fiz outras considerações que o julgamento do caso em sirequer.

Des. MARCO ANTÔNIO BARBOSA LEAL (Presidente) De acordo.

Dra. MARIA DA GRAÇA CARVALHO MOTTIN (Juíza de Direito eRevisora) De acordo.

Juíza de Direito da sentença: Dra. LAIS ETHEL CORREA PIAS