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1 IX ENCONTRO ABCP Área Temática: Política e economia INFLAÇÃO E POLÍTICA NO BRASIL CONTEMPORÂNEO: A EXPERIÊNCIA DOS GOVERNOS FHC E LULA. JOSÉ CARLOS MARTINES BELIEIRO JUNIOR Universidade Federal de Santa Maria Brasília, DF 04 a 07 de agosto de 2014

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IX ENCONTRO ABCP

Área Temática: Política e economia

INFLAÇÃO E POLÍTICA NO BRASIL CONTEMPORÂNEO: A EXPERIÊNCIA

DOS GOVERNOS FHC E LULA.

JOSÉ CARLOS MARTINES BELIEIRO JUNIOR

Universidade Federal de Santa Maria

Brasília, DF

04 a 07 de agosto de 2014

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INFLAÇÃO E POLÍTICA NO BRASIL CONTEMPORÂNEO: A EXPERIÊNCIA

DOS GOVERNOS FHC E LULA

JOSÉ CARLOS MARTINES BELIEIRO JUNIOR

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA

RESUMO

O objetivo do trabalho é analisar a relação entre a inflação e a política no

período de redemocratização sob os governos FHC e Lula. A motivação

principal é busca da dimensão política dos fenômenos econômicos, e da inter-

relação entre política e economia. A inflação foi a principal questão política dos

governos democráticos entre 1985-1994. Muitos planos de estabilização foram

tentados e apenas o Plano Real conseguiu debelar a inflação alta no Brasil. Os

governos FHC e Lula foram marcados pela estabilidade econômica, mas a

inflação ocupou um lugar relevante na agenda política dos dois governos e as

políticas voltadas à estabilidade da inflação prejudicaram o crescimento

econômico sob os governos democráticos.O trabalho procura analisar essas

questões sob o ponto de vista político, incorporando a dimensão econômica no

processo de redemocratização política no Brasil. O trabalho analisa os

percalços da transição democrática nos governos Sarney e Collor, com uma

ênfase especial à experiência dos governos FHC e Lula.

Palavras-chave: crise econômica e democracia; inflação e política; governos

FHC e Lula.

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Introdução: a questão da inflação na transição democrática

A economia e a sociedade brasileira viveram uma dramática experiência

de inflação alta que perdurou por quase duas décadas. Desde o final do regime

militar em 1979 até meados de 1994, o índice total de inflação havia atingido os

impressionantes 13.342.346.717.617,70% colocando o país na pior crise

econômica de sua história republicana. Os anos de inflação alta e

descontrolada acompanharam todo o processo de redemocratização política,

atingindo diretamente os governos democráticos:governo Sarney (1985-1990),

governo Collor (1990-1992) e governo Itamar (1992-1994), mobilizando 13

diferentes ministros da fazenda, 6 diferentes moedas, 9 zeros cortados e

finalmente, 5 planos de estabilização econômica tentados.

A inflação alta foi finalmente controlada pelo Plano Real em 1994 e os

governos FHC e Lula conviveram com taxas comparativamente baixas quando

se observa o comportamento dos preços nas décadas de 80 e 90. Desse

modo, enquanto os primeiros governos da redemocratização (1985-1995)

conviveram com alta inflação e instabilidade econômica permanente, os

governos FHC e Lula conseguiram atravessar dois governos consecutivos cada

(1º FHC-1994-98 e 2º FHC -1998-2002) e(1ºLula 2002-2006 e 2ºLula - 2006-

2010), sob uma ordem econômica mais estável em termos de política de

controle de preços.

O objetivo destetrabalho é justamente analisar a relação entre inflação e

política, ou seja, entre esfera econômica e esfera política tendo como

perspectiva de análise, entender o sentido político que inflação assumiu nos

governos FHC e Lula. A idéia que orienta esse trabalho é a procura de uma

análise integrada entre economia e política, buscando compreender a dinâmica

da transição democrática a partir da problemática da dimensão econômica,

nesse caso, a inflação.Grande parte dos argumentos desenvolvidos no âmbito

deste trabalho são beneficiados por trabalhos anteriores de economia e

política, como os de Sola (1988) e (1993), Sallum Jr. e Kugelmas (1993) e

Sallum Jr.(1996) e (1998). Entretanto, o objetivo é procurar entender os

impactos da inflação na esfera política, entendo a inflação como uma questão

política.

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Durante todo o processo de redemocratização política do país -

momento de enorme expectativa social quanto à construção de um novo

regime político democrático – foi inegavelmente marcado pela presença da

inflação alta. O primeiro governo civil da transição, o governo Sarney foi

obrigado a adotar 3 diferentes planos de estabilização econômica. O primeiro

foi o Plano Cruzado, lançado em fevereiro de 1986, seguido pelo Plano Bresser

de junho de 1987 e o Plano Verão, lançado em janeiro de 1989. Todos os três

planos de estabilização da economia fracassaram no objetivo de controlar a

inflação e promover maior crescimento econômico e a política econômica do

governo Sarney oscilou entre o experimentalismo heterodoxo do Plano

Cruzado ao retorno ortodoxo do Plano Verão. Do ponto de vista político, a

inflação adquiriu enorme importância nos governos dos anos 80 e 90. Toda a

dinâmica da popularidade presidencial e o sucesso ou o insucesso político do

governo em questão deveria passar obrigatoriamente pelo controle definitivo

dos preços.

Pode-se afirmar que o desespero dos governos da transição

democrática em controlar definitivamente o problema da inflação alta produziu

uma dinâmica de medidas heterodoxas e radicais, como o Plano Cruzado e o

Plano Collor, que foram planos de estabilização concebidos a partir do Estado

sem qualquer mediação política e institucional.Medidas consideradas

milagrosas, elaboradas por uma equipe econômica dotada de capacidade

quase onipotente para lidar com os problemas do país, muitas vezes, essas

medidas causavam ainda mais pânico e incerteza na sociedade do que

propriamente uma solução definitiva para o problema da inflação alta e

descontrolada. A aplicação da política econômica deve estar vinculada a

dinâmica política do regime democrático, o que também acaba por dificultar a

sua implantação (SOLA, 1988). Por ouro lado, a inflação alta obrigava os

governos da transição democrática a adotarem medidas ortodoxas e

impopulares, aprofundando a recessão econômica, como aconteceu com o

governo Collor, onde nos anos 1990-92, a inflação acumulada foi de 3.212,74%

e desempenho de -3,86% de PIB.

Desse modo, como se pode perceber, os governos da primeira geração

da transição democrática, que compreende os anos 1985-1994, ou seja, os

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governos Sarney, Collor e Itamar Franco, foram obrigados a conviver com uma

conjuntura de instabilidade econômica permanente e a persistência da inflação

alta e descontrolada. Para tentar alcançar o objetivo de uma economia sem

inflação como condição si ne qua non para a estabilização política, esses

governos foram obrigados a adotar medidas heterodoxas e ortodoxas que

produziram mais instabilidade, inflação e perda de apoio e legitimidade política,

aprofundando a crise política do Estado brasileiro. Nesse sentido, a inflação

alta e o desempenho da economia nos anos 85-94 apontam para um fracasso

dos primeiros governos democráticos em vencer a inflação e levar o país para

um novo ciclo de crescimento e desenvolvimento. A inflação descontrolada

significou para esses governos um pesadelo constante, na medida em que os

critérios econômicos passaram a condicionar a avaliação de um bom

desempenho governamental. E os governos democráticos da primeira geração

amargam a pior inflação registrada em toda a história do Brasil, na soma dos

governos Sarney, Collor e Itamar, a inflação acumulada foi de 10.244,75%.

O Governo FHC

O governo Itamar Franco (1992-94) pode ser considerado de transição

entre a situação de inflação alta e descontrolada para uma situação de inflação

baixa e sob controle. A própria estratégia política que levaria o sociólogo

Fernando Henrique Cardoso ao poder nas eleições de 1994 seria gestada no

interior do governo Itamar Franco, quando FHC foi convidado para ocupar o

Ministério da Fazenda em 1993. Nesse aspecto, é importante considerar que a

sustentação da candidatura de FHC à Presidência no interior da coalizão

política por ele liderada, teve na luta contra a inflação o seu maior trunfo

político e pessoal.

Mais uma vez, a prioridade para o grupo político de FHC que compunha

o apoio partidário no interior do governo Itamar era o combate definitivo da

inflação. A própria viabilidade eleitoral da candidatura FHC passaria

obrigatoriamente pelo sucesso da estratégia do Plano URV/Real, afinal,

novamente o enfrentamento eleitoral de 1994 seria entre duas candidaturas

polarizadas, uma a esquerda liderada pelo PT de Lula e a outra de centro-

direita, liderada pela coalizão PSDB-PFL. A experiência política de FHC

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adquirida na luta política anti-inflacionária dos tempos do Plano Cruzado,

quando FHC era líder do governo Sarney no Senado, foi extremamente

importante para seu sucesso posterior. O sucesso de FHC com o plano de

estabilização econômicaseria o passaporte para seu sucesso eleitoral como

candidato da aliança política gestada no interior do bloco governista de Itamar

Franco.

Como bem demonstrou Carlos Pio (2001), a rede formada pelo grupo de

economistas inercialistas, estabelecidas no contexto dramático do Plano

Cruzado foi o elemento diferencial que atuou a favor de FHC no momento da

formulação do Plano Real. Nesse sentido, foi a experiência política na luta

contra inflação nos anos 80 que ajudou FHC a liderar de modo bem sucedido a

luta política no âmbito do Plano Real nos anos 90. A sua habilidade política em

lidar com os políticos no interior do Congresso Nacional e os partidos políticos,

bem como a sua habilidade pessoal em lidar com os principais economistas da

redeheterodoxa e inercialistafoi de fato, o ingrediente central da estratégia bem

sucedida que produziu o Plano Real.

Nas eleições presidenciais de 1994, a inflação e a crise econômica

foram um dos principais temas de campanha para os dois candidatos, Lula

novamente pelo PT e FHC pela aliança PSDB e PFL. O candidato petista

convocara inclusive um economista assessor econômico do partido, o ex-

professor da PUC-SP Aloísio Mercadante, para debater com mais competência

os temas econômicos e principalmente a inflação. As chances de uma vitória

eleitoral de Lula eram reais, havia o acúmulo dos de 29 milhões de votos do

pleito de 1989 e um contexto político menos fragmentado e radicalizado como

foi o embate com Fernando Collor. Novamente, como em 89, havia o medo do

custo Lula e de suas posturas radicais diante da economia e da própria

inflação, visto que durante a campanha, a posição de Lula diante do plano de

estabilização recém lançado era umagrande dúvida entre o empresariado e os

mercados. Lula manteve-se na dianteira das eleições de 1994 até o mês de

julho de 1994 quando entre em vigor a nova moeda, o Real, e a inflação

começa a cair para níveis extremante baixos.

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Considerando seu sucesso na luta contra a inflação, como avaliar a

política econômica adotada por FHC em seus oito anos de mandato

presidencial? Evidentemente, a centro de sua estratégia de política econômica

concentrou-se na busca incessante e desesperada pela estabilidade

inflacionária. O objetivo em si é de fato gerador de ganhos sociais e

econômicos significativos e nesse sentido, compreende-se que toda energia de

seu governo tenha se voltado para o combate e estabilização da inflação.

Como a tabela ao final mostra, a inflação baixa acompanhou toda a experiência

do governo tucano. No primeiro mandato presidencial (1995-1998), a inflação

acumulada foi de 38, 85%, e no segundo mandato (1998-2002), a inflação

acumulada foi de 35,11%, somando ao final de dois mandatos, inflação de

73,96%.

Por essa via de análise, as políticas de reforma orientada para o

mercado impostas por FHC atingiram algum sucesso importante em termos de

esvaziamento das funções econômicas do Estado brasileiro de origem

nacional-desenvolvimentista, e de uma maior internacionalização da estrutura

produtiva do país segundo uma lógica de inserção da economia e da sociedade

brasileiras na dinâmica da globalização e da ideologia neoliberal. Mas é

necessário, no entanto, questionar os custos e limites dessas políticas de

abertura do ponto de vista da desnacionalização produtivae dos seus impactos

no capitalismo nacional. De outra parte, a própria centralidade da política

econômica, voltada quase que exclusivamente para o combate à inflação

também deve ser objeto de análise crítica do governo FHC.Como já afirmaram

Freire e Nobre (1998), a era FHC pode ser caracterizada como uma era de

“estabilidade imperfeita”. Nesse aspecto, é importante considerar os altos

custos financeiros, econômicos e sociais da política econômica de controle da

inflação.

Um critério de análise da política econômica se refere ao desempenho

da economia sob o comando de FHC. No quesito crescimento econômico, a

avaliação do governo FHC foi de grande irregularidade, onde a economia

vivenciou um comportamento típico de vôo de galinha, com média de

crescimento de 2,0% ao ano nos oito anos de Fernando Henrique Cardoso no

poder, acumulando crescimento de 10,3% no primeiro mandato e 8,4% no

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segundo. Sob José Sarney, a economia brasileira cresceu a uma média 4,0%

ao ano, acumulando 22,09% de avanço no PIB. No final, a média de

crescimento de FHC é naturalmente menor do que o registrado pelos militares

e durante os governos democráticos, entre Sarney e Lula, FHC ganha apenas

do período Collor, quando a economia experimentou recessão de -3,86% nos

dois anos do ex-governador de Alagoas no poder.

Como se pode constatar, o governo FHC conseguiu atingir taxas de

crescimento do PIB numa média de 2,4% no primeiro mandato (1994-1998) e

2,1% no segundo mandato (1999-2001) resultado bastante inferior aos

registrados nos governos militares pós-64 e mesmo durante o governo de

transição democrática de José Sarney (1985-1990). Segundo levantamento do

economista Reinaldo Gonçalves (2003), o crescimento do produto no período

pós-1930 foi em média de 5,0% ao ano no Brasil, resultado superior ao de

muitos países capitalistas avançados. Olhando para os dados dos anos FHC,

observa-se grande irregularidade no desempenho da economia brasileira, num

padrão do tipo stop and go com crescimento de 4,2% em 1994, primeiro ano do

Real, atingindo 0% em 1998. Neste ano, as crises financeiras deflagradas na

Rússia e Ásia impactaram diretamente sobre a economia brasileira. Desse

modo, longe de uma política econômica que levasse o país para a estabilidade

definitiva e crescimento econômico sustentável e duradouro, o binômio

estabilidade/instabilidade parecerem ter marcado profundamente o período

FHC no poder entre os anos 94-2001.

Em função das contradições encontradas na política econômica de FHC,

cabe a pergunta: qual a lugar da inflação no projeto político de FHC? Em que

medida a política de combate a inflação tinha objetivos mais amplos que a

mera estabilização dos preços e converteu-se numa política estratégica e

estruturante para seu projeto de reorganização do capitalismo brasileiro em

novas bases, segundo a dinâmica da globalização e do neoliberalismo? De

fato, é possível afirmar que a política de combate à inflação e o sucesso do

Plano Real passou a ser encarado como uma política condicional, isto é, uma

etapa necessária para a execução de outras políticas de reforma. O sucesso

do Real tornou-se condição necessária para o sucesso na implantação das

outras políticas da agenda reformista do governo FHC. Do ponto de vista

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macro político, o controle da inflação também representou a reorganização do

poder do Estado sobre a sociedade, um novo pacto social entre Estado e

sociedade e de afirmação do poder político estatal.

Em quase duas décadas de crise econômica e inflacionária, a

capacidade de intervenção do Estado sobre a sociedade e a economia ficaram

seriamente enfraquecidas.Nesse sentido, ao menos no plano simbólico, a

vitória de FHC na luta contra a inflação representou um ato de reafirmação do

poder político estatal e do próprio poder Executivo sobre a sociedade e a

economia. Como se sabe, o processo de redemocratização política do país foi

marcado pela maior e mais grave crise econômica da história, enfraquecendo a

intervenção do Estado sobre a sociedade, criando vazios de legitimidade do

poder político, comprometendo seriamente a capacidade do Estado governar a

sociedade,tornando frágil as bases de compromisso com o regime

democrático. Sobre essa questão, consultar Reis & O´Donnell (1988).

Nesse aspecto das relações entre economia e política, a luta contra a

inflação se converteu numa luta também pela construção do regime

democrático no Brasil, na medida em que o regime inflacionário inercial

brasileiro poderia colocar em xeque o processo de transição democrática num

mínimo de segurança social e estabilidade econômica. Os governos da

primeira geração da transição democrática (1985-1994) conviveram

intensamente com essa situação de instabilidade e insegurança. Desse modo,

a luta contra a inflação alta no Brasil representou uma luta política de afirmação

do regime democrático. A vitória política de FHC em controlar a inflação inercial

no Brasil significou também uma vitória para a democracia, e uma contribuição

importante para o fortalecimento do consenso democrático no Brasil.

Outra dimensão relevante da vitória política de FHC na luta contra a

inflação a partir do Plano Real, diz respeito à possibilidade de uma sociedade

civilizada no Brasil. Como se sabe, processos agudos de inflação promovem a

erosão das bases tradicionais de sociabilidade. Os princípios de confiança e de

relações de reciprocidade são fragilizados diante de experiências prolongadas

de inflação alta. A situação histórica vivenciada pela Alemanha e Hungria dos

anos 20 do século XX foram exemplos dramáticos de violência social e de

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radicalização política. No caso alemão, a crise social e econômica do pós

Primeira Guerra Mundial (1914-1919) facilitou o espectro da radicalização

política que levou o país ao nazismo e a deflagração de uma nova guerra

mundial de proporções assustadoras para toda a humanidade. Os impactos da

inflação na vida social são bem demonstrados em Viera, Barbosa, Prado,

Leopoldi e D´Araújo (1993).

No Brasil dos anos 80 e 90 a guerra de todos contra todos adquiriu outro

sentido: a sobrevivência básica e cotidiana de uma luta diária contra uma

economia de preços sempre em alta, e as dificuldades para conseguir

acompanhar a velocidade dos aumentos de preços. Os salários e a renda dos

assalariados tornavam-se alvos preferenciais do ritmo dos aumentos. O conflito

distributivo instaurado pela inflação alta leva uma situação social voltada pela

lógicada sobrevivência, e da busca por alguma proteção contra a ferocidade da

inflação alta. A sociedade torna-se uma sociedade do salve-se quem puder

num regime de inflação alta como se viveu no Brasil. Na experiência brasileira

de inflação, as regras da civilização são fragilizadas e a inflação se converte

em principal fator de erosão das bases sociais.

Torna-se essencial considerar a dimensão política, econômica e social

das políticas de estabilização de preços em vigor a partir de 1994 com o Plano

Real e seus impactos na sociedade, na economia e na política. Por vezes, as

abordagens econômicas se concentram apenas nos benefícios econômicos

gerados pela estabilização, sem levar em conta os impactos positivos na vida

social e política de uma economia sem inflação. Considera-se que a luta contra

a inflação assumiu um papel civilizatório na recente trajetóriado país pela

redemocratização política. De fato, a luta contra a inflação, foi benéfica à

construção da democracia no Brasil. A inflação possui um forte caráter

conflitivo que inviabiliza a governabilidade política num mínimo de estabilidade

e segurança institucional.

A política econômica de FHC sofreu mudanças entre o primeiro e

segundo mandato. No primeiro mandato presidencial, a política cambial foi

mantida em regime de câmbio fixo, ancorando o Real no Dólar como forma de

segurar o valor damoeda e assegurar patamares de preços condizentes com

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os objetivos do Plano.A partir do segundo mandato presidencial, em 1998, a

política de câmbio fixo foi alterada para o regime de câmbio flutuante. Na

ocasião, o próprio governo não esclareceu os motivos da mudança da política

cambial, que fora feita logo após os resultados das urnas confirmarem a vitória

eleitoral ao grupo político de FHC. De todo modo, a manutenção da política de

câmbio fixo em regime de paridade com o dólar, obteve grande aceitação

popular, pela ilusão de possuir umamoeda forte e de maior acesso ao

consumo. De outro lado, a valorização do caráter simbólico da moeda forte no

imaginário social, apesar de positiva em contextos de alta inflação, não deixou

de trazer grande custo financeiro ao país, promovendo aumento no

endividamentoe incertezas geradas pelo movimento dinâmico das moedas

centrais no contexto da competição entre os países de capitalismo avançado.

Entretanto, a partir do segundo mandato presidencial (1998-2002), o

governo FHC passou a receber uma intensa críticasobre a necessidade de se

adotar uma política de desenvolvimento. Sendo clara a sua política de

estabilização, quando se refere às políticas de desenvolvimento, não havia

essa clareza. Essa percepção era sentida dentro e fora do governo. E mesmo

no que se refere à política econômica, nunca houve unanimidade no interior do

governo. Sallum Jr (1998) demonstrou a existência de uma clivagem entre os

economistas do governo FHC produzida basicamente em torno do dilema

estabilização versus crescimento. Os liberais-fundamentalistas, agrupados no

Ministério da Fazenda e Banco Central, eram favoráveis ao aprofundamento da

política de abertura econômica e na aposta na capacidade do mercado atrair

maior investimento privado para o país, enquanto os liberais-

desenvolvimentistas, localizados no BNDES e Ministério do Planejamento,

defendiam a adoção de políticas de crescimento e seletividade na abertura

econômica para exterior em função dos seus impactos na indústria nacional.

Apesar das críticas, FHC conseguiu manter a inflação baixa,

estabelecendo a política do chamado tripé macroeconômico: o regime de

metas de inflação que deve se situar entre 4,5% a 6,5% ao ano,o câmbio

flutuante, e a política de superávit primário, isto é,a economia de gastos ao

redor de 3,5% do PIB. De modo geral, essa política promoveu efeitos positivos

em termos de responsabilidade fiscal e de uma maior adequação do Estado

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brasileiro a nova era de racionalidade do gasto público e de superação do

populismo fiscal.Por outro lado, para muitos críticos, essa política do governo

FHC em relação aos mercados e ao capital financeiro, acabou prejudicando a

adoção de políticas de crescimento e planejamento econômico e no sentido de

dotar o Estado de capacidade para investir. A crise energética de 2000pode ser

lida como um sinal evidente do esvaziamento do Estado promovida pelo

governo FHC, e sua adesão pouco crítica ao conteúdo conservador e passivo

das medidas do tripé macroeconômico.

A partir do segundo mandato, FHC procurou responder às críticas de

que seu governo não detinha um projeto políticode crescimento e que se

voltava até então, apenas para a estabilização econômica. O abandono do

ideário desenvolvimentista era evidente naquela altura dos anos de 1999 e

2000. A criação do Ministério do Desenvolvimento em 2001 representou um

movimento reativo do governo FHC em direção a uma perspectiva políticapró-

ativa na participação do Estado no desenvolvimento. Como os dados indicam,

os resultados econômicos do segundo mandato presidencial foram ainda piores

quando comparado com o primeiro mandato presidencial, com crescimento

acumulado de 8,4% entre os anos 1998-2002, contra 10,3 do primeiro

mandado. A sensação de um governo sem clareza de projeto no segundo

período de FHC como presidente, aliado ao contexto produzido pela crise

energética, com necessidade do governo adotar o racionamento de energia,

colocou em xeque o viés neoliberal do seu governo, ao atestar que a falta de

planejamento estatal das políticas governamentais na área poderia levar o país

a beira de uma crise enérgica de grandes proporções econômicas.

O Governo Lula

A eleição de Luiz Ignácio Lula da Silva para a Presidência da República

em 2002 foi cercada de enormes expectativas quanto ao seu mandato. Depois

de três tentativas frustradas desde a histórica eleição de 1989, passando pelos

pleitos de 1994 e 98, Lula e o PT finalmente chegavam ao poder político

máximo do país. De fato, a chegada de Lula e o PT ao poder político principal

do Estado brasileiro foi um acontecimento marcante na história moderna do

país, tendo como referência a biografia do ex-presidente, rica em significado

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político e simbólico. Na verdade, a vida de Lula é uma ilustração viva do épico

social impulsionado pela modernização capitalista que o Brasil experimentou

entre os anos 50 e 70. O próprio PT, nascido em 1982 a partir das lutas

operárias de 1978, 79 e 80 chega ao poder como novidade inédita enquanto

partido de esquerda no Brasil.

Ao chegar ao poder em 2002, Lula e o PT já haviam adquirido um

considerável estoque de capital político, com o acúmulo da experiênciadas

eleições nacionais anteriores, bem como na ocupação do poder em escala

local em cidades relevantes do Sul/Sudeste do país. No caso das eleições

derrotadas por Lula em 89, 94 e 98 o tema da inflação pode ser entendido

como uma razão importante para explicar algumas dessas derrotas eleitorais.

Em 1989, adotando uma perspectiva política centrada na classe operária

sindicalizada, o partido não possuía uma clara plataforma econômica contra a

inflação ou um esboço de política econômica que contemplasse o debate em

torno da inflação, bem como uma política de alianças com outros setores da

sociedade.

Aquele contexto instável das eleições presidenciais de 1994 também

pode ser pensado como um momento de transição política, de final do governo

provisório de Itamar Franco e de transição econômica, de recontratualização da

economia em direção a nova moeda, o Real.A derrota de Lula pode ser

creditada à ineficiência com que o partido de Lula lidou com a questão do

combate a inflação naquele contexto.Em 1998, a persistência da inflação na

agenda eleitoral e o medo de Lula mudar o Plano Real levaram mais uma vez a

vitória eleitoral de FHC e seus aliados políticos. O espectro do medo de volta

da inflação produziu efeitos importantes nas duas eleições, 94 e 98. Em 1998,

FHC inclusive jogou politicamente com esse sentimento de medo de volta da

inflação, ao esconder a mudança da política cambial, que foi alterada para o

regime de câmbio flutuante logo após a divulgação dos resultados oficiais

confirmando sua vitória.

Nas eleições presidências de 2002, o cenário político e econômico era

bastante distinto de 89, 94 e 98 quando o PT e Lula pareceram estar perdidos

em oferecer uma proposta eficaz de políticade combate a inflação. O governo

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FHC por seu lado, também dava sinais de esgotamento frente às críticas

dirigidas ao governo no segundo mandato presidencial (1998-2002). A imagem

principal que ficou na memória coletiva foi de um governo sem agenda no

segundo mandato, situação bastante diferente do que foi o primeiro mandato

quando FHC tinha de fato uma agenda de reformas para o país e perseguiu

seus objetivos com o objetivo de impor o seu projeto.

Ao lado do esvaziamento do projeto político de reformas liberais do

governo FHC, os anos 2000 também experimentaram mudanças políticas

relevantes no contexto latino-americano. Em muitos países da região, as

críticas ao neoliberalismo e seu pacote de políticas acabaram levando ao poder

grupos políticos de esquerda baseados em forte rejeição ao modelo neoliberal

de sociedade, de economia e de política. Em muitas situações nacionais, havia

um esgotamento de um conjunto de políticas adotadas nos anos 90, e a

compreensão geral de que ao final de um pouco mais de uma década de

reformas, poucos resultados em termos de maior crescimento econômico foram

realmente alcançados. Em muitos países da região sul-americana, as críticas

ao modelo do Consenso de Washington eram generalizadas.

No caso brasileiro, esse contexto regional de questionamento ao

neoliberalismo beneficiou a vitória da candidatura de Lula. Naquelas eleições

de 2002 estavam em jogo dois projetos distintos de sociedade, e José Serra do

PSDB não conseguiu defender o legado neoliberal de FHC com competência e

clareza na disputa contra Lula. No entanto, é importante enfatizar que mesmo

sob condições objetivas de vitória eleitoral, aindapairavam incertezas em

relação à viabilidade econômica do projeto petista de poder. Assim como em

1989 e nas demais eleições disputadas por Lula, o empresariado manifestava

um sentimento de dúvidas sobre a política econômica a ser adotada pelo PT, a

postura em relação aos compromissos fiscais de FHC, e, sobretudo, sobre a

continuidade do Plano Real. A inflação apresentava sinais de descontrole

durante as eleições de 2002, numa clara demonstração da desconfiança dos

agentes econômicos em relação à candidatura de Lula a Presidência da

República. Durante o curso do processo eleitoral, o grupo petista lançou a

chamada Carta ao Povo Brasileiro, um documento onde o partido reafirmava

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seu compromisso com o cumprimento dos contratos celebrados e o não

rompimento com os fundamentos econômicos assumidos pela gestão FHC.

Com a vitória política de Lula e do PT consagrada na legitimidade das

urnas, muitos à esquerda política supunham uma virada radical na política

econômica. A enorme expectativa popular em torno da chegada de um

autêntico líder operário e popular ao posto máximo do poder político no país foi

cercada de expectativas quanto a mudanças nos rumos da economia e da

sociedade brasileira. Para setores do partido de Lula, essas mudanças

poderiam conduzir o país ao socialismo ou num tipo de capitalismo

democrático, segundo um modelo social-democrático clássico. A agenda

econômica do governo, para muitos, não poderia descuidar de políticas que

promovam a retomada do crescimento econômico e a adoção de políticas

distributivas que atendessem ao imperativo político de igualdade social e

equidade, segundo um projeto democrático de sociedade.

Muitas dessas expectativas sociais e políticas foram frustradas nos

primeiros anos do mandato de Lula em razão da inflação. A retomada da

inflação nos anos 2003 e 2004 obrigaramo governo Lula a adotar uma política

econômica conservadora e ortodoxa, com a utilização dos instrumentos

tradicionais, como juros altos e a queda drástica na atividade econômica como

forma de combater a inflação.O Ministro da Fazenda indicado por Lula para

comandar a política econômica, Luiz Antonio Palocci, médico e ex-prefeito de

Ribeirão Preto-SP, acabou por adotar uma política econômica afinada com as

linhas adotadas pelo seu antecessor, Pedro Malan.

As conseqüências políticas com a adoção da mesma política econômica

de FHC foram grandes. O baixo desempenho da economia no início do

mandato de Lula, que chegou a registrar crescimento 0% em 2003, sugeria

uma grande decepção, afinal, qual a diferença entre Lula e FHC no campo da

política econômica? Embora a posição de Lula fosse crítica em relação a

política econômica e da necessidade política de justificar uma diferença entre

os dois governos (PALOCCI, 2003) o fato concreto é que seu governo foi

levado a adotar medidas impopulares para controlar a inflação. Nesse sentido,

seria a ameaçada volta da inflação o principal fio condutor da decepção do

16

governo Lula? Leda Paulani (2006) fala em verdadeiro estado de emergência

inflacionário para explicar a fácil adesão de Lula ao esquema hegemônico

dominante de política econômica nos anos sob a condução de Palocci.

Os primeiros anos do governo Lula, bem como as suas declarações

posteriores, indicam que a experiência trágica da inflação nos anos 80 e 90

sedimentaram a formação deum consenso político entre os dois principais

partidos políticossobre a necessidade do controle da inflação. Esse consenso

mostra que o controle da inflação é prioridade para qualquer política econômica

responsável. O que sugere também é que políticas de controle da inflação

devem adotadas independentes dos custos sociais e econômicos. É possível

pensar num pacto celebrado entre PT e PSDB num tipo consenso anti-

inflacionário, celebrado no mesmo tipo de política econômica a ser adotada. A

própria dinâmica da transição entre os governos FHC e Lula, um padrão

altamente civilizado e respeitoso, inédito para o padrão histórico brasileiro, dá

uma idéia da aproximação entre os dois partidos. A manutenção do Plano Real

selou efetivamente um nível de compromisso político entre os partidos PSDB e

PT na condução do país, superado positivamente o radicalismo de medidas,

indicando maior proximidade entre os dois partidos em matéria de política

econômica.

A experiência dos governos FHC e Lula, governos de segunda geração

de transição democrática, sugerem um contexto político e econômicodistinto

dos governos da primeira geração, dos anos 80 e 90. Nos anos FHC e Lula,

sem dúvida se referem um período com maior estabilidade política e

econômica, e os anos 1994-2010 foram de estabilidade política e inflação sob

controle. Embora os custos sociais e econômicos da política de estabilização

econômica não devem ser novamente desconsiderados, não se deve minimizar

o significado da estabilidade econômica e política para um país que iniciou a

transição democrática com enormes percalços políticos e econômicos. Nesse

aspecto, a contribuição de FHC e Lula para o fortalecimento do processo de

construção democrática no Brasil recente não pode ser desprezado. A

dimensão econômica desse processo tem a ver é claro, com a situação

econômica do país a partir de 1994 e a estabilidade da inflação. Sem o controle

definitivo da inflação, a nova democracia brasileira iria sofrer com essa doença

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do inflacionismo permanente, doença geradora de conflitos e incertezas na

sociedade e na economia.

A gestão AntonioPalocci no Ministério da Fazenda, marcada pela

orientação ortodoxa na política econômica perdurou por três anos, entre 2003 a

2005. Sua queda foi precipitada pela crise política causada pela quebra do

sigilo bancário de um caseiro, que provocou enorme mal estar no governo Lula,

abrindo caminho para nomeação do professor da PUC-SP, de linhagem

desenvolvimentista, Guido Mantega. Inegável dizer que Palocci foi o principal

responsável pela política de controle da inflação nos anos 2003-2005, quando

havia sinais claros de descontrole e incerteza dos mercados em relação à

gestão petista na economia. O ex-ministro Palocci também foi um dos

principais responsáveis pela articulação do grupo petista com o empresariado

nacional e um dos redatores da Carta ao Povo Brasileiro, lançado durante a

campanha eleitoral com o objetivo de tranqüilizar os mercados e o

empresariado. Além disso, o papel de Palocci na liderança da equipe de

transição entre FHC e Lulafoi igualmente relevante.

A nomeação de Guido Mantega ao Ministério da Fazenda representou a

mais importante mudança de rumos na condução da política econômica sob o

governo Lula entre a orientação ortodoxa e a orientação desenvolvimentista.

Importante enfatizar que mesmo sob uma nova diretriz ideológica, a política

econômica de Lula com Mantega não deixou de vincular-se aos fundamentos

da política econômica do governo anterior, e principalmente com a inflação.

Nesse sentido, a adoção de uma estratégia de caráter expansionista deveria

ocorrer levando em conta a política de controle da inflação e portanto, um tipo

de ação calculada sem colocar em risco as metas de inflação estabelecidas no

governo FHC. Pode-se afirmar que entre termos políticos e econômicos, o

governo Lula estava numa importante tensão. De um lado, a necessidade de

manter a política de controle de inflação, que desde FHC deve estar sob o

regime de metas de inflação, devendo obrigatoriamente oscilar entre 4,5% a

6,5% ao ano, sem comprometer os ganhos da estabilização depois de uma

longa e descontrolada inflação. De outro, a questão política fundamental para

Lula: promover crescimento econômico acima do obtido por FHC como forma

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de justificar sua posição política como líder de uma nova coalizão política e

social.

Nos primeiros anos de seu primeiro mandato presidencial, não estava

claro para Lula que sua posição a frente do governo seria bem sucedida, ou

seja, se a política de controle de inflação seria preponderante sobre a política

de crescimento econômico e qual sentido, Lula iria optar. A partir de 2005 e

principalmente a partir do segundo mandato, em 2006, que a política

econômica do governo petista teria uma clareza em seus objetivos de

crescimento e desenvolvimento. E nesse caso, mais do que a política

econômica em si, foram às outras políticas adotadas por Lula que se revelaram

bem sucedidas em criar um ambiente favorável ao crescimento da economia. A

política de transferência direta de renda, criada em 2003, e a política de

valorização do salário mínimo, com reajustes acima da inflação, ajudaram

decisivamente a impulsionar o acesso ao consumo e ampliação do mercado

interno de consumo, grande aposta do governo para alavancar a economia

brasileira.

A equação positiva para o governo Lula foi a relação positiva entre a

política social e a política econômica que acabou criando as condições ideais

para uma maior expansão da economia, que se verificou no segundo mandato

presidencial, a partir de 2006. A expansão do crédito popular para consumo de

bens, imóveis e automóveis, numa verdadeira política de incentivo ao consumo

tornou a economia do país menos vulnerável às oscilações do mercado

internacional e proporcionou a inclusão de milhões no mercado consumidor.

Embora o governo Lula e a política econômica conduzida por Mantega à frente

do Ministério da Fazenda tenham continuado o chamado tripé macroeconômico

básico da estabilização, o que para muitos, representou a “macroeconomia da

estagnação” (BRESSER-PEREIRA, 2007), Lula conseguiu uma flexibilização

na política econômica que se revelou exitosa.

A escolha pelo mercado interno, claramente inspirado no modelo de

capitalismo inclusivo das economias desenvolvidas, foi o grande trunfo social,

político e econômico do governo Lula, na medida em que possibilitou ao

governo sedimentar uma aliança com os setores populares, que antes,

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rejeitavam a figura de Lula e do PT. (SINGER, 2012). Nesse sentido, essa

escolha política em privilegiar setores excluídos do consumo de massa

fortaleceu o consenso em outros grupos sociais em torno da política econômica

na medida em que os objetivos de alcançar maior crescimento com taxas de

inflação sob controle ampliaram o leque de alianças e apoio que o governo Lula

poderia obter. No caso do empresariado industrial de face nacional, a utilização

exponencial do BNDES como banco público de apoio a iniciativas ao capital

privado nacional incluiu também a classe economicamente dominante no

interior do bloco de poder petista.

No conhecido binômio inflação versus crescimento econômico, o

governo Lula não se saiu mal, quando se compara com outros governos da

transição democrática. Do ponto de vista da inflação acumulada, o governo

Lula cravou 25,73% no primeiro mandato (2003-2006), e 20,58% no segundo

(2007-2010), índice inferior a todos os governos da transição democrática. Em

relação ao crescimento econômico e expansão do PIB, o governo Lula

acumulou crescimento de 12,9% do PIB no primeiro mandato e 17,9% no

segundo, acumulando crescimento total de 30,8%, contra 18,4% dos governos

FHC, como se pode constatar em quadro abaixo.

INFLAÇÃO ACUMULADA DOS GOVERNOS DEMOCRÁTICOS (1985-2010):

GOVERNO PERÍODO INFLAÇÃO

Sarney 1985-1989 3.638,43%

Collor 1990-1992 3.212,74%

Itamar 1992-1994 3.393,58%

FHC I 1995-1998 38,85%

FHC II 1998-2002 35,11%

Lula I 2003-2006 25,73%

Lula II 2007-2010 20,58%

DESEMPENHO ECONÔMICO DOS GOVERNOS DEMOCRÁTICOS (1985-

2010):

GOVERNO PERÍODO CRESCIMENTO DO

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PRODUTO INTERNO

BRUTO – PIB

Sarney 1985-1990 22,09%

Collor 1990-1992 - 3,86%

Itamar 1992-1994 10,97%

FHC I 1995-1998 10,3%

FHC II 1998-2002 8,4%

Lula I 2003-2006 12,9%

Lula II 2007-2010 17,9%

Fonte: o autor

Conclusões

A experiência dos governos FHC e Lula oferecem um importante campo

de análise política sobre os percalços econômicos do processo de

redemocratização política do Brasil contemporâneo. A luta contra a inflação

vivenciada pelos grupos políticos desde 1986 com o Plano Cruzado,

proporcionou um enorme aprendizado em termos práticos e teóricos sobre

como lidar com um problema grave como a inflação, e ao mesmo tempo,

ajudou a sedimentar medidas para evitar a volta da escalada inflacionária entre

nós. No entanto, é importante reconhecer o caráter dramático da experiência

dos anos 80 e 90 enquanto experiência aguda de crise social, política e

econômica causada pela inflação alta e descontrolada. E nesse aspecto, é

quase comum afirmar que a questão da inflação tornou-se uma espécie de

fantasma que ronda a tomada de decisão de política econômica no país. E ao

que aparece, continua rondando o espectro da política brasileira

contemporânea como um fantasma.

De fato, a experiência acumulada dos governos FHC e Lula, de origem

partidária e de trajetórias políticas e pessoais tão distintas como são PSDB e

PT, mostra que no campo da política econômica, as convergências são muito

maiores do que as divergências. Se o governo FHC priorizou estabilidade

econômica e o governo Lula reforçou o caráter social do Estado brasileiro, no

caso da política econômica, o compromisso de ambos os governos foi com a

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manutenção da inflação baixa e controlada, segundo o regime de metas

adotado. Essa superação do radicalismo político dos grupos relevantes da

disputa política nacional ajudou a fortalecer a democracia no Brasil, na medida

em que a superação do drama inflacionário contribuiu decisivamente para a

melhoradas condições sociais e econômicas da nova democracia brasileira.

A luta bem sucedida contra a inflação a partir de 1994 e a experiência

dos governos FHC e Lula mostram um maior amadurecimento da democracia

brasileira. A persistência da inflação alta poderia jogar contra o processo de

afirmação do regime democrático num país de tradição autoritária como o

Brasil. Nesse sentido, os governos FHC e Lula contribuíram de modo

fundamental para um ambiente de civilidade política, estabilidade econômica e

principalmente, de justiça social. De uma maneira consistente, é possível

afirmar, concordando com o economista Bresser-Pereira que estamos vivendo

no Brasil um novo momento: uma era de democracia política, combinada com

economia em crescimento e justiça social. Esses três elementos juntos

consagram o período dos anos 2000 como um período de ganhos sociais e

econômicos indiscutíveis.No entanto, não é possível afirmar que o problema da

inflação esteja completamente superado no Brasil. É correto pensar num

verdadeiro estado mental de medo que paira sobre nossas consciências como

um sentimento de medo e pânico sobre o provável retorno da inflação alta.

Esse sentimento difuso de retorno de uma nova escalada inflacionária

nos ensina muito sobre a situação da inflação no Brasil pós-estabilidade. Afinal,

há que se questionar sobre o caráter da estabilidade conseguida, e se de fato

vivemos sob uma estabilidade permanente e sustentável ou se trata de uma

estabilidade passageira e sujeita a retrocessos e imprevistos. No mais, é

sempre importante considerar nas condições econômicas do Brasil

contemporâneo, que é realmente relativo falar em estabilidade como um

projeto sustentável e de longo prazo, diantedos inúmeros fatores de

instabilidade presentes na economia brasileira e na economia internacional.

Nesse sentido, a inflação brasileira, mesmo sob o controle proporcionado pela

política econômica de FHC e Lula, não está totalmente sob controle, como nos

países de capitalismo avançado. Políticas amargas e impopulares sempre

estarão à disposição para os governos democráticos a qualquer sinal de

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descontrole dos preços.Portanto, a economia e sociedade brasileira não estão

definitivamente livres da inflação.

Nesse aspecto da questão, a nova democracia brasileira, que nasceu

sob os percalços da maior da crise econômica da história moderna do país,

ainda não conseguiu superar seus principais problemas econômicos, e a

inflação, mesmo sob controle, é um mal prestes a explodir a qualquer

momento, necessitando de cuidados e vigilância permanentes. De todas as

patologias do Brasil, a fundamental doença da democracia brasileira

contemporânea é o inflacionismo, que ainda vai exigir cuidados especiais do

Estado e da política de coordenação macroeconômica, obrigando ao sacrifício

de outras prioridades políticas e do sacrifício da própria sociedade brasileira.

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