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IX ENABED: Forças Armadas e Sociedade Civil: Atores e Agendas da
Defesa Nacional no Século XXI
T7 - Segurança Internacional e Defesa
IMPACTOS DA MUDANÇA DO PERFIL DAS FORÇAS ARMADAS SOBRE A
GRANDE ESTRATÉGIA DOS ESTADOS UNIDOS (1973-2003)
João Arthur da Silva Reis
Mestrando em Economia Política Internacional pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro – UFRJ.
Florianópolis, 06-08 de Julho de 2016
IMPACTOS DA MUDANÇA DO PERFIL DAS FORÇAS ARMADAS SOBRE A
GRANDE ESTRATÉGIA DOS ESTADOS UNIDOS (1973-2003)
João Arthur da Silva Reis
Resumo: Este trabalho pretende analisar os impactos da transformação no Perfil das Forças Armadas dos Estados Unidos ocorrida nas décadas de 1970 e 1980 na configuração da Grande Estratégia estadunidense. Tendo como início o fim do recrutamento militar obrigatório, em 1973, este movimento de reforma militar foi uma resposta à derrota no Vietnã e à presença mais assertiva da União Soviética no plano internacional. O objetivo seria o de construir capacidades tecnológicas avançadas, através de investimentos massivos em tecnologias de informação, eletrônica e computação, de modo a multiplicar a efetividade das Forças Armadas dos Estados Unidos e tornar obsoletas as capacidades mais numerosas da URSS. As alegadas potencialidades desta nova força de voluntários profissionais foram demonstradas no período final da Guerra Fria, em uma série de “conflitos de baixa intensidade” no Terceiro Mundo, culminando na Guerra do Golfo, em 1991, quando os novos sistemas de armas foram utilizados sem restrições. Esta nova estrutura de força foi caracterizada como o “novo modo americano de fazer a guerra”, que teria tornado obsoleta a guerra de atrito e a mobilização em massa – recursos do antigo “modo americano de fazer a guerra”, demonstrado na Guerra Civil e nas duas Guerras Mundiais. Nesse contexto, a pergunta de pesquisa que norteia o trabalho é: de que maneira esta transformação tecnológica e doutrinária dos Estados Unidos no âmbito militar se relaciona com a adoção de uma estratégia mais intervencionista por parte dos Estados Unidos nas décadas de 1990 e 2000? Argumenta-se que, sobretudo, o fim do serviço militar obrigatório relaciona-se com esse processo de duas maneiras: (i) foi fundamental para a constituição de capacidades mais ofensivas de projeção de poder; e simultaneamente (ii) causou um insulamento burocrático das Forças Armadas e o alijamento da sociedade civil dos debates acerca da condução da política externa e de defesa.
Palavras-chave: Perfil de Força; Grande Estratégia; Recrutamento Militar Obrigatório; Digitalização; Guerra do Golfo; Guerra do Iraque.
1. Introdução
Ao final da Guerra Fria, houve uma mudança fundamental na estratégia e na
diplomacia dos Estados Unidos da América. Embora possam ser traçadas muitas
continuidades no exercício da hegemonia estadunidense desde o final da Segunda
Guerra Mundial, quando esta se consolidou, ocorreram alterações importantes na
estratégia acerca de como estar seria exercida desde então. O período que se seguiu
ao colapso interno da União Soviética sinalizou um dos momentos de inflexão mais
significativos neste sentido, uma vez que os Estados Unidos passaram por um
alargamento dos objetivos principais do país e um aumento do uso de meios militares
para alcança-los. Dito de maneira simples, houve um aumento no intervencionismo
como ferramenta diplomática, que passou a ser executado de maneira crescentemente
unilateral.
O que se verificou foi uma mudança na Grande Estratégia, entendida enquanto
a articulação das capacidades políticas, militares e econômicas para atingir e defender
seus interesses securitários vitais, tais como percebidos pelas lideranças políticas e por
setores da burocracia formuladora de políticas (CEPIK; MACHADO, 2011). Embora uma
vasta gama de autores ligados a diversas correntes teóricas tenha descrito este
processo de maneira semelhante: como a adoção de uma estratégia de dominação, ou
mesmo imperial (FIORI, 2008; ANDERSON, 2015; MEARSHEIMER, 2011), foi a
literatura neorrealista1 que observou este fenômeno a partir da ótica da Grande
Estratégia. Para estes, esse processo corresponderia à transição de uma grande
estratégia de engajamento seletivo, vigente desde o fim da Segunda Guerra Mundial,
para uma estratégia de primazia (POSEN; ROSS, 1996; PORTER, 2013),
preponderância (LAYNE, 1997) ou dominação (MEARSHEIMER, 2011). O elemento
central é a existência de dois objetivos principais: a manutenção da superioridade do
poder militar e econômico dos Estados Unidos em relação ao resto do mundo, e
aplicação de força e pressão sistemática para a conformação do resto do mundo aos
padrões americanos de democracia e abertura de mercados (MEARSHEIMER, 2011).
Este artigo, contudo, não pretende entrar em pormenores da extensa literatura
acerca da formulação, dos impasses e alternativas acerca da Grande Estratégia. Busca-
se, em vez disso, atentar para o caráter de continuidade que este conceito produz na
condução da política externa e de defesa. Ou seja, como ressaltou Perry Anderson
(2015), há uma continuidade de objetivos – e dos meios para atingi-los – que perpassa
diferentes governos, a despeito das rivalidades e disputas na condução da política
doméstica. As mudanças na Grande Estratégia ocorrerem em décadas, passando ao
largo de mandatos presidenciais de políticos com afiliações ideológicas e partidárias
distintas (ANDERSON, 2015).
A explicação para tal fenômeno, se deve, em grande medida, que toda estratégia
está sujeita a constrangimentos de caráter estrutural, ou seja, os meios de sua
execução. Se a continuidade na formulação estratégica se deva em muito à formação,
a partir da Segunda Guerra Mundial, de uma elite de formuladores de política externa e
de defesa em torno da Casa Branca e de órgãos civis e militares (ANDERSON, 2015),
não explica sua consecução, isto é, as ferramentas utilizadas para atingir os fins. A
despeito do conjunto de interesses econômicos e políticos que propelem mudanças
estratégicas, e dos projetos socioeconômicos em disputa no debate sobre os objetivos
de longo prazo de um Estado, o fato é que uma mudança na execução da estratégia só
pode ocorrer se houverem os meios para tanto. Neste quesito, o papel das Forças
Armadas é essencial.
1 Neorrealismo, ou realismo estrutural aqui é entendido em sentido amplo, englobando as diferentes perspectivas teóricas que compartilham o entendimento do Sistema Internacional como caracterizado fundamentalmente por (i) ter Estados como os principais atores; (ii) ser anárquico, uma vez que não há um Estado ou instituição capaz de impor verticalmente uma organização sobre as demais unidades; (iii) a preponderância de uma lógica de balança de poder, já que as Grandes Potências tendem a maximizar sua fatia de poder no Sistema em um contexto de incerteza sobre as intenções das demais unidades (WALTZ, 1979).
O argumento proposto neste trabalho é que o perfil de forças, i.e., a estrutura
organizacional e doutrinária das Forças Armadas, possibilitou a adoção da Grande
Estratégia mais intervencionista, militarista e unilateral que foi implementada após o
colapso da União Soviética. Esta mudança no perfil de força dos Estados Unidos, que
permitiu que as Forças Armadas adotassem uma doutrina voltada à realização de
intervenções de caráter mais limitado e com maior prontidão, em vez de conflitos de
maior porte e duração, foi fruto de um processo de reformas e mudanças institucionais
que tiveram início ainda na década de 1970.
O conceito de Perfil de Força será usado ao longo do trabalho com o mesmo
sentido de Estrutura de Força (MEARSHEIMER, 1981) ou de Formato das Forças
Armadas, para o qual usaremos a definição básica apresentada por Finer (1975):
“Na sua mais estreita e explícita definição, formato meramente significa a base de serviço das forças; i.e.; se são nativas ou estrangeiras, pagas ou não, ad hoc ou permanentes. Em sua definição mais extensa, eu incluo dentro do conceito, o tamanho das forças armadas, a composição variante de suas armas principais (marinha em relação às forças terrestres ou componentes de artilharia em relação à infantaria ou cavalaria ou o equivalente), e eu igualmente incluo a estratificação social da força (FINER, 1975, p. 90, tradução própria)”.
Como demonstra Mearsheimer (1981), a centralidade de tal conceito reside no
fato de que o Perfil/Estrutura de Força determina o tipo de missão que as Forças
Armadas são capazes de cumprir: se será mais voltada à projeção de poder em longa
distância, para a defesa territorial de determinada área ou para realizar intervenções de
pequeno porte em áreas diversas, por exemplo (MEARSHEIMER, 1981). Estas
escolhas importam, pois um Estado dificilmente seria capaz de arcar com os custos
econômicos e sociais de manter Forças Armadas capazes de efetuar todo tipo de
missão simultaneamente. E uma vez feita esta escolha, o treinamento, a doutrina e a
correlação entre as Forças devem refleti-la (MEARSHEIMER, 1981).
As modificações do Perfil das Forças Armadas dos Estados Unidos sobre as
quais nosso foco recairá foram efetuadas no período de aproximadamente 15 anos que
se seguiu ao final da Guerra do Vietnã. Podem ser divididas, grosso modo, em três fases
principais, ainda que tal periodização seja arbitrária e necessariamente simplificadora.
A primeira foi caracterizada pela eliminação da conscrição, ou seja, do serviço militar
obrigatório, e ocorreu ainda durante a guerra, no governo Nixon, como resultado do
baixo desempenho das Forças Armadas na guerra de contra insurgência no Vietnã e da
crise de legitimidade que esta acarretou no plano interno. A segunda foi uma mudança
de caráter doutrinário que, possibilitada pela força de voluntários, modificou toda a
maneira de se pensar a conduta da guerra, e foi levada a cabo pela liderança do Exército
frente à necessidade de manter o equilíbrio com a União Soviética na frente ocidental.
Seu resultado foi a adoção da Doutrina da Batalha Ar-Terra, aplicada na Guerra do
Golfo, em 1991. A terceira fase ocorreu ao longo da década de 1990, como resultado
do próprio sucesso da Guerra do Golfo, que incentivou as lideranças militares e civis
aprofundarem elementos do processo de reformas vistos como responsáveis pela
vitória, e das demais intervenções executadas ao longo da década, em especial a
campanha aérea na Guerra do Kosovo (1999).
O resultado destas mudanças foi tido como o surgimento de um “novo modo
americano de fazer a guerra”, no qual o uso massivo do poder aéreo simultaneamente
permitiria a redução do uso de forças terrestres nas operações e a condução de guerras
convencionais não declaradas (MAHNKEN, 2008; BOOT, 2003). A posterior evolução
das guerras do Afeganistão (2001) e do Iraque (2003) foram tidas inicialmente como a
demonstração inconteste do sucesso deste novo perfil de força quanto, com a evolução
de conflitos de insurgência prolongados, como prova de seus limites.
Nesse contexto, a pergunta de pesquisa que norteia o trabalho é: de que maneira
esta transformação tecnológica e doutrinária dos Estados Unidos no âmbito militar se
relaciona com a adoção de uma estratégia mais intervencionista por parte dos Estados
Unidos nas décadas de 1990 e 2000? Argumenta-se que, sobretudo, o fim do serviço
militar obrigatório relaciona-se com esse processo de duas maneiras: (i) foi fundamental
para a constituição de capacidades mais ofensivas de projeção de poder; e
simultaneamente (ii) causou um insulamento burocrático das Forças Armadas e o
alijamento da sociedade civil dos debates acerca da condução da política externa e de
defesa.
Este trabalho é divido em quatro seções, além da introdução e das
considerações finais. A primeira seção esboça um breve panorama histórico acerca da
grande estratégia estadunidense e do seu perfil de forças até o período inicial da Guerra
Fria. A segunda seção trata do período inicial de mudanças do perfil de forças e grande
estratégia, focando no governo Nixon. A terceira vai mostrar de que maneira o governo
Carter efetua as mudanças fundamentais e ao governo Reagan executa uma guinada
ampla. A quarta seção avalia o impacto da guerra do golfo e das intervenções da década
de 1990, além da guerra do Afeganistão, para o que viria a ser o modus operandi da
Guerra ao Terror. As considerações finais seguem na sequência, avaliando se as
hipóteses foram confirmadas ou não.
2. Articulação entre Grande Estratégia e Perfil de Força até a Segunda Guerra
Mundial
A posição geopolítica insular desfrutada pelos Estados Unidos desde seus
primórdios incluiu decisivamente na construção de sua grande estratégia e na
construção de suas Forças Armadas (WEIGLEY, 2001). Até a irrupção da Guerra de
Secessão, o efetivo do Exército era de apenas 16 mil homens acostumados a tarefas
de defesa costeira, patrulha de terras no Oeste e guerras de conquista contra indígenas
e contra o México (MCNEILL, 1982; WEIGLEY, 2001). Esse reduzido exército regular,
historicamente complementando pela formação de milícias locais e voluntárias – que
tiveram importância fundamental na Guerra de Independência, era fruto de uma cultura
política e cívica resistente à existência de um Exército permanente e centralizado, bem
como ao fortalecimento de capacidades estatais centralizadas no governo federal
(IZECKSOHN, 2015).
Essa organização militar descentralizada teve suas limitações demonstradas no
início da Guerra Civil, quando a ilusão de que se poderia vencer a guerra em um curto
espaço de tempo e com poucos recursos se mostrou equivocada. A maneira pela qual
a União foi capaz de vencer, utilizando-se do serviço militar obrigatório e de uma
estratégia de atrito e de superioridade de meios, lançou as bases do chamado “modo
americano de fazer a guerra” (WEIGLEY, 2001). Esse exército, contudo, foi
desmobilizado após o fim da guerra, e as forças armadas americanas retornaram a
moldes similares aos de antes da guerra, embora com muito mais capacidade de
mobilização em caso de necessidade do que antes.
Os contornos básicos do perfil de força vigentes se manteriam até meados do século
XX. Se desde século XIX os Estados Unidos se consolidaram como grande potência
indisputada em sua própria região, a partir da Primeira Guerra Mundial houve um
rompimento com o isolacionismo vigente até então. De acordo com Scott Silverstone
(2014), pelo menos desde 1917, os objetivos mais importantes dos Estados Unidos
foram garantir o “acesso de grande área”, entendido tal como “manter o acesso aberto
a, e uma ordem política equilibrada na Europa, Leste Asiático e Oriente Médio”
(SILVERSTON, 2014, p. 58). Assim, parte considerável de sua grande estratégia se
voltou à projeção de poder nas três regiões supracitadas, de modo a atingir dois
objetivos correlatos: (i) evitar a consolidação hegemônica de alguma potência regional;
(ii) assegurar acesso aos mercados e recursos da região em questão (SILVERSTONE,
2014).
A despeito deste ser objetivo estratégico primário dos Estados Unidos há um século,
os meios para implementá-lo mudaram substancialmente ao longo do tempo. Nas duas
guerras mundiais, os Estados Unidos agiram como um offshore balancer. De acordo
com Mearsheimer (2011), isso significava que o país interviria em alguma das regiões
estratégicas somente quando houvesse risco de controle por parte de um país, tal qual
os próprios Estados Unidos faziam no Hemisfério Ocidental. Uma vez que o hegemon
em potencial fosse derrotado, suas forças seriam retiradas. Inicialmente, esta estratégia
se materializou através de uma expansão naval, especialmente em direção à Ásia
(PIKE, 2010). Nas duas guerras mundiais, fez com que os Estados Unidos só
interviessem em larga escala quando havia ameaça real de uma potência hostil
estabelecer controle hegemônico na Europa ou na Ásia, como foi o caso da Alemanha
e do Japão (MEARSHEIMER, 2010).
O início da Guerra Fria representou uma mudança, com o posicionamento
permanente de unidades militares na Europa e no Leste Asiático, como parte da política
de contenção da União Soviética (LAYNE, 1997). Consequentemente, também viu uma
modificação fundamental no Perfil de Forças: diferentemente da experiência de guerras
passadas, as Forças Armadas não foram desmobilizadas aos números anteriores ao
conflito (HOSSEIN-ZADEH, 2006). A conscrição, que fora implementada pela primeira
vez em um período de paz em 1940, foi mantida. Esta Grande Estratégia de
Engajamento Seletivo também seria caracterizada pelo uso de intervenções militares
pontuais, normalmente de grande escala, para garantir a segurança de perímetros tidos
como prioritários, como na Coreia (195-1953) e no Vietnã (1965-1975)
(MEARSHEIMER, 2011). Neste último, a incapacidade das forças estadunidenses de
obterem uma vitória, apesar de elevadíssimos custos humanos e econômicos, levou a
uma onda de oposição interna que resultou em uma derrota. A partir desta, os Estados
Unidos passariam por um período de reorganização de seu Perfil de Força.
3. O Fim da Conscrição e o Início da Mudança no Perfil de Força
A maneira pela qual a Guerra do Vietnã foi travada refletiu o “modo americano de
fazer a guerra” vigente, cuja tradição remontava à estratégia de Grant na Guerra de
Secessão, de Pershing na Primeira Guerra Mundial e de Eisenhower na Segunda
Guerra Mundial (BOOT, 2003; MAHNKEN, 2008). O conceito básico era de utilizar a
capacidade de mobilização de recursos econômicos e humanos, garantida pelo
recrutamento militar obrigatório e pelo poderio industrial do país, para efetuar grandes
operações convencionais e derrotar o inimigo em uma guerra de atrito (BOOT, 2003;
MAHNKEN, 2008). Ademais, somava-se uma dimensão, consolidada durante a
Segunda Guerra Mundial, com a formação do complexo militar-acadêmico-industrial: a
capacidade tecnológica e de inovação, tida como fundamental tanto na derrocada do
Eixo quanto para manter capacidade de dissuasão convencional frente aos números
superiores da União Soviética (MAHNKEN, 2008; MEDEIROS, 2004).
A incapacidade de obter a decisão no Vietnã se deveu em muito ao fato de a
guerra ter caráter irregular, em que o Exército Norte-Vietnamita e a milícia Viet Minh
combinaram ações convencionais e de guerrilha, fazendo com que as vitórias dos EUA
em combate tivessem pouco efeito na condução da guerra (MAHNKEN, 2008). Mesmo
as inovações tecnológicas e doutrinárias desenvolvidas para lidar com um inimigo
irregular tiveram efeitos dúbios. O amplo uso de helicópteros, como meio de mobilidade
para a infantaria, tinha como contrapartida a necessidade de alocar grandes
quantidades em mão-de-obra efetuando atividades logísticas em bases militares,
tornando-as alvos fáceis de ações de sabotagem (MEDEIROS, 2004). E a utilização
massiva das novas aeronaves em ações de bombardeio, com o uso de napalm,
desfolhantes químicos e sensores eletrônicos, não só se mostrou ineficaz na destruição
das unidades dispersas inimigas como também desmoralizantes do ponto de vista da
propaganda da legitimidade do confronto (MEDEIROS, 2004).
A onda de oposição à guerra, causada tanto pelo aumento substancial no número
de convocações obrigatórias para uma guerra tida como ilegítima, quanto pela
desmoralização da atuação do Exército devido ao elevado custo humano e uma
ausência de resultados positivos tornou o terreno muito propício para a instauração de
um debate sobre alternativas e modificações no sistema de recrutamento militar
obrigatório (SINGLETON, 2014). A conscrição se mantinha nos EUA desde 1940,
quando fora instaurada pela primeira vez em tempos de paz, embora os números de
convocados tivessem diminuído nos anos 19602 (SCHULZINGER, 2002; SINGLETON,
2014). A escalada da situação no Vietnã, contudo, fez o presidente Johnson aprovar
requerimentos do Exército para aumentos de pessoal da ordem de 200 mil em 1965 e
340 mil em 1966.
Neste período, com o aumento da resistência à convocação, especialmente entre
estudantes universitários, os proponentes da abolição da conscrição e da conversão do
sistema de recrutamento para uma base voluntária ganharam proeminência e a atenção
do Congresso, especialmente entre políticos do Partido Republicano (SINGLETON,
2014). Entre estes, um grupo de economistas ligados a correntes teóricas liberais, tendo
como mais destacado expoente Milton Friedman foram capazes de influenciar um grupo
de assessores do então Senador Richard Nixon, que o convenceram de incorporar o fim
do serviço militar obrigatório à sua plataforma eleitoral. Em 1969, já presidente, Nixon
montou uma comissão com o objetivo de estudar a possibilidade de abolir a conscrição,
e elaborar um parecer em forma de relatório (SINGLETON, 2014).
O relatório da Comissão Gates, como ficou conhecida, possuía argumentos de
ordem puramente econômica, em sua maioria, e era fortemente favorável ao fim do
2 Em 1962, foram chamados 76 mil, em 1963, 119 mil, ao passo que o número de deferimentos devido a trabalho, estudo ou paternidade tinham tido um aumento exponencial, somando 1,430 milhões em 1963. Neste mesmo ano, o Congresso havia autorizado a extensão do ato de Serviço e Treinamento Universal (responsável por autorizar a conscrição) por mais quatro anos sem maiores objeções (SINGLETON, 2014).
recrutamento obrigatório3 (SINGLETON, 2014; MITTELSTADT, 2015). As lideranças do
Exército, que tinha mais de 50% de todos seus quadros conscritos, tiveram maior
resistência a este projeto. O argumento era que era da natureza das instituições
militares a manutenção de um sistema paternal, hierárquico, e assim criasse laços, e,
portanto, lealdade, com seus subordinados. Ao final, a baixíssima popularidade que o
Exército e a própria conscrição tinham na época fizeram o oficialato do Exército ceder,
e o fim da conscrição foi aprovado em 27 de Janeiro de 1973 (MITTELSTADT, 2015;
STEWART JR, 2007).
As dificuldades de conseguir voluntários para prestar serviço foram imediatas.
Duas medidas importantes foram efetuadas ainda na década de 1970 para resolver este
gargalo: a construção de um programa de bem-estar social militar e o recrutamento de
mulheres. Durante o governo Reagan, em função do custo elevado da transição para a
força de voluntários, este processo evoluiu para um desmantelamento das redes de
bem-estar públicas, ao passo que as redes militares foram fortalecidas. A lógica era a
de que somente aqueles que haviam arriscado suas vidas prestando serviço militar eram
merecedores de tais benefícios, ao passo que o restante da população não tinha direito
algum intrínseco à sua cidadania4 (MITTELSTADT, 2015). O resultado previsível foi a
atração de minorias e grupos sociais de situação socioeconômica mais frágil, como
negros e hispânicos, especialmente em um contexto de estagnação econômica e
crescimento do desemprego. A despeito de um período de aumento do crescimento
durante o governo Reagan, resultante em parte dos gastos militares massivos do
período (que produziram uma espécie de keynesianismo militar), o período como um
todo registrou uma diminuição do ritmo de crescimento econômico em relação às
décadas anteriores e uma relativa estagnação dos salários (HOSSEIN-ZADEH, 2006) .
Em 1991, mulheres (que exerciam relativamente poucas funções de combate) e
minorias étnicas (negros e hispânicos, sobremaneira) somados representavam 49,1%
do efetivo do Exército regular (SCHUBERT; KRAUS, 1998). Esse processo foi criticado
tanto por lideranças civis do movimento negro quanto por militares, caracterizando-o
3 Seu argumento central era de que o serviço militar obrigatório era equivalente a um imposto “escondido”, o que o tornava assim, mais custoso, em termos sociais e reais, ao país e aos cidadãos, do que a força de voluntários, mesmo que esta tivesse um custo orçamentário mais alto (U$ 4,6 bilhões ao ano). A solução passaria por encarar o serviço militar como parte do mercado de trabalho normal, em que um soldado se converteria em apenas um trabalhador que receberia um salário em troca de um serviço (SINGLETON, 2014). 4 O sistema então existente de bem-estar social estadunidense era composto por redes de segurança públicas e privadas, muitas criadas em adição aos primeiros programas do New Deal, e eram vistos como uma recompensa à sociedade como um todo pela prestação do serviço militar dos soldados conscritos e pelo trabalho dos trabalhadores civis. A partir de então, com a emergência da força de voluntários, o sistema de bem-estar militar passou a ser um incentivo ao alistamento (MITTELSTADT, 2015).
como uma “conscrição da pobreza”, uma vez que fazia com que o fardo do serviço militar
recaísse não sobre a sociedade como um todo, mas quase que exclusivamente sobre
setores de menor renda (SCHUBERT; KRAUS, 1998; HOSSEIN-ZADEH, 2006;
STEWART JR, 2007). Ademais, muitos críticos afirmariam que o distanciamento entre
a maior parte dos cidadãos da realidade da guerra permitido pelo fim da conscrição
diminuiria a accontability da condução de segurança e defesa nacional (STEWART JR,
2007).
4. Mudança Doutrinária e a estratégia de Offset Tecnológico
Com o final da Guerra do Vietnã, com a retirada das tropas estadunidenses do
Vietnã do Sul, em 1975, as lideranças dos Estados Unidos buscaram reorganizar os
elementos principais de sua Política Externa e de Defesa, bem como sua doutrina
militar. De acordo com a proposição da Doutrina Nixon/Guam, os EUA deveriam relegar
aos seus aliados regionais a responsabilidade pela contenção do comunismo, liberando
as Forças Armadas dos EUA de conflitos em locais como o Oriente Médio, Ásia ou África
e permitindo que seu foco se voltasse novamente à União Soviética (KISSINGER, 1994;
MAHNKEN, 2008). Esta, ao longo do tempo em que os EUA se mantiveram no atoleiro
vietnamita, modernizara sua doutrina, e seus blindados e aumentara o efetivo das forças
do Pacto de Varsóvia posicionadas na Europa. Por conta disso, havia uma percepção,
entre líderes militares da OTAN, de que esta conseguiria frear uma ofensiva soviética
por no máximo dez dias antes de ser obrigada a usar armas nucleares táticas, em caso
de uma deflagração (MAHNKEN, 2008; TOFFLER; TOFFLER, 1994).
De modo a buscar alternativas à guerra nuclear, fora criado, em 1973, o TRADOC,
Comando de Treinamento e Doutrina (do inglês, Training and Doctrine Command), um
conglomerado de centros de pesquisa e universidades militares visando a desenvolver
pesquisas em áreas como tecnologia, doutrina e educação militar (TOFFLER;
TOFFLER, 1994). Neste mesmo ano, ocorreu o conflito Árabe-Israelense conhecido
como Guerra do Yom Kippur, e a performance de Israel se tornou fonte de estudos e
inspiração para futuras modificações doutrinárias dos Estados Unidos5 (TOFFLER;
TOFFLER, 1994; MAHNKEN, 2008).
O elevado poder de fogo e a destruição humana e material acarretada por ela,
bem como a maneira pela qual Israel atingiu a vitória, serviram como referência para
5 Como as forças israelenses e sírias lutavam com equipamento de última geração estadunidense e soviético, respectivamente, o conflito se assemelhou a uma simulação, em escala reduzida, de como uma guerra entre a OTAN e o Pacto de Varsóvia poderia ocorrer na Alemanha Ocidental (TOFFLER; TOFFLER, 1994; MAHNKEN, 2008).
exaustivos estudos por parte do TRADOC6. O primeiro aprendizado veio na forma da
emissão, pelo TRADOC, da nova doutrina de Defesa Ativa, de 1976 (TOFFLER;
TOFFLER, 1994). Esta, amplamente baseada na observação da batalha nas Colinas do
Golã, propugnava que, em um conflito futuro na frente ocidental, as forças da OTAN
deveriam manter uma estratégia defensiva de atrito até a chegada de reforços que
permitissem um ataque em profundidade, nos escalões mais à retaguarda do inimigo.
Também afirmava que as guerras convencionais futuras seriam caracterizadas por
elevado poder de fogo e de destruição. Embora tida como um primeiro passo na direção
da mudança, foi amplamente criticada por ser muito conservadora, nucleada em torno
do atrito e da postura defensiva (MAHNKEN, 2001; TOFFLER; TOFFLER, 1994).
As transformações mais profundas se iniciaram em 1977, com a nomeação do
General de Divisão Don Starry, que em 1973 fora enviado para Israel de modo a produzir
um relatório sobre a guerra do Yom Kippur, para o comando do TRADOC (MAHNKEN,
2001; TOFFLER; TOFFLER, 1994). O trabalho desenvolvido por Starry e por um grupo
de assessores próximos, com o aval do Estado-Maior do Exército e do Departamento
de Defesa, se pautou na necessidade de fazer uma reforma profunda em toda a
estrutura das Forças Armadas. Em termos de doutrina, se dava um passo além do que
havia proposto o conceito de Defesa Ativa. A ênfase era dada às noções de campo de
batalha ampliado e de batalha profunda: era fundamental interditar a movimentação em
toda a retaguarda do inimigo, imobilizando seus escalões de apoio, através de uma
estratégia de manobra e da interdição efetuada pela Força Aérea, de maneira bem mais
agressiva do que as formulações anteriores. O esforço liderado por Starry resultou na
emissão da Doutrina de Batalha Ar-Terra, em 1982, e que foi continuamente aprimorada
e reformulada ao longo das décadas seguintes. (TOFFLER; TOFFLER, 1994).
Esta mudança doutrinária acarretou uma reforma estrutural nas Forças Armadas.
Era essencial o desenvolvimento de novas tecnologias, intensivas em poder de fogo,
operadas por militares com tempo maior de treinamento, de modo a aprenderem a
operar tais tecnologias, e uma integração maior entre as diferentes Forças (TOFFLER;
TOFFLER, 1994). Parte essencial do trabalho do TRADOC envolveu a requisição das
6 Após uma resistência desesperada por parte de duas brigadas israelenses que receberam o impacto do primeiro ataque de surpresa de divisões de tanques sírias, os reforços terrestres e aéreos israelenses foram direcionados não para reforçar as unidades na defensiva, mas sim para atacar os flancos e a retaguarda do adversário, impedindo que novos reforços e unidades se somassem à frente de batalha. A doutrina síria, inspirada na soviética, se baseava em um ataque escalonado: as divisões eram posicionadas numa espécie de coluna e se lançavam sucessivamente sobre a linha de frente, de modo a obter a vitória através do atrito. O efeito da manobra israelense fora o de fechar uma pinça em torno do adversário, impedindo que muitas das divisões da retaguarda sequer chegassem ao campo de batalha, inutilizando a estratégia de escalonamento (TOFFLER, TOFFLER, 1994).
tecnologias envolvidas nesta transformação estrutural das Forças Armadas, o que foi
feito através da definição de necessidades de sistemas de armas específicos, que
posteriormente se tornaram o núcleo do equipamento militar estadunidense7
(MAHNKEN, 2008).
O objetivo seria o de construir capacidades tecnológicas que pudessem
compensar as vantagens numéricas soviéticas no teatro de operações da Europa
Ocidental, além de estimular uma corrida armamentista que fizesse a URSS se
desgastar investindo mais em defesa do que sua economia planificada pudesse suportar
(MAHNKEN, 2008). O fato é que, em meados da década de 1970, o montante de
investimento em pesquisa e desenvolvimento (P&D) havia caído consideravelmente em
relação às décadas anteriores, em que ocorreram as fases iniciais da corrida
armamentista da Guerra Fria (MEDEIROS, 2004). O custeio das operações da Guerra
do Vietnã consumira, durante a segunda metade da década de 1960, cerca de 30
bilhões de dólares por ano, o que correspondia a aproximadamente 37% do orçamento
militar total. Devido às limitações orçamentárias impostas pela vigência do padrão dólar-
ouro, o aumento dos gastos com custeio incorria em uma redução do orçamento
despendido à P&D (MEDEIROS, 2004).
Embora o fim do atrelamento do dólar ao ouro em 1971, tenha resolvido em parte
esse dilema, o Vietnã e o escândalo de Watergate reduziram significativamente o apoio
político a grandes projetos de inovação no campo militar (MEDEIROS, 2004). Foi só
durante o governo Carter, com Harold Brown à frente do Departamento de Defesa, que
teve início a estratégia de offset tecnológico (do inglês, compensação) que buscava
levar a inovação industrial ao campo da diplomacia e assim procurar desgastar a União
Soviética (MARTINAGE, 2014). Mais tarde, no governo Reagan o objetivo de incentivar
uma corrida armamentista com a URSS, no campo espacial e nuclear, ficava explícito
com a Iniciativa de Defesa Estratégica (MAHNKEN, 2008; MEDEIROS, 2004).
O governo Reagan apresentava uma maior assertividade internacional como um
rompimento com a “fraqueza” do governo Carter, que não teria sido capaz de agir à
altura do aumento das capacidades militares soviéticas e à Revolução do Irã (1979).
Esta, especificamente, foi tida como um fracasso da Doutrina Nixon, uma vez que um
dos próprios aliados regionais que deveriam se encarregar da contenção ao comunismo
havia colapsado internamente (ARRIGHI, 1994). Agora, os Estados Unidos deveriam
7 O J-STARS, um sistema de radar baseado no ar, que enviava informações em tempo real para estações em terra, foi desenvolvido entre 1978-1979 (TOFFLER; TOFFLER, 1994; MAHNKEN, 2001). Igualmente, foram desenvolvidos outros sistemas que até hoje formam o núcleo do equipamento padrão do Exército estadunidense: o tanque M1 Abrams, o carro de combate M2/M3 Bradley, o helicóptero de ataque Apache, um helicóptero de transporte de pessoal e um sistema de defesa antiaérea, o MRLS (MAHNKEN, 2001).
retomar a capacidade de intervenção além-teatro. Embora já no Governo Carter se
prenunciasse um rompimento com Doutrina Nixon através da decisão de criar uma
Força de Deslocamento Rápido, o aumento dos gastos militares e a elevação da retórica
anticomunista marcam o período Reagan como o da decisiva retomada da capacidade
de intervenção dos Estados Unidos (HOSSEINZ-ZADEH, 2006).
Escrevendo em 1981 acerca das escolhas de Perfil de Força que os Estados
Unidos deveriam fazer nos próximos anos, em meio ao clima de mudanças nas Forças
Armadas, John Mearsheimer afirmou que a escolha central consistiria no teatro de
operações principal. Ou o aparato militar dos Estados Unidos seria mais voltado para
um papel defensivo no continente europeu, exigindo divisões de alto grau de
mecanização e unidades blindadas, ou para intervenções no Terceiro Mundo, que
requereriam divisões mais leves com o máximo de flexibilidade (MEARSHEIMER,
1981). Se as demonstrações de força estadunidenses na Líbia, Granada e Nicarágua
durante o governo Reagan (ANDERSON, 2015) não produziram uma resposta definitiva
sobre isso, a evolução das reformas feitas a partir do aprendizado da Guerra do Golfo
deixaria clara a escolha pela segunda opção.
5. A Guerra do Golfo e o pós-Guerra Fria
A Guerra do Golfo de 1991 marcou a mudança estratégia dos Estados Unidos no
pós-Guerra Fria, com a alocação permanente de unidades militares na Arábia Saudita
após o conflito. Assim, o governo Bush rompeu com a estratégia de engajamento
seletivo, implementada ao longo da Guerra Fria, e que mantinha unidades militares
baseadas permanentemente apenas no Leste Asiático e na Europa, para fazê-lo
também no Oriente Médio (LAYNE, 1997; MEARSHEIMER, 2011). Este momento
marcou o abandono por completo da estratégia de deixar que potências locais se
balanceassem na região (como durante a guerra Irã-Iraque, entre 1980-1988). Se a
Revolução Iraniana, em 1979, dera início ao abandono da Doutrina Kissinger de se
apoiar em aliados locais, a intervenção de sucesso no Golfo, juntamente com o fim dos
constrangimentos da Guerra Fria, levava os Estados Unidos a utilizar suas próprias
forças para impedir a ascensão de um eventual polo regional (ARRIGHI, 1994;
MEARSHEIMER, 2011; SILVERSTONE, 2014).
O que permitiu tal inflexão foi a mudança no Perfil de Força efetuado desde 1973.
As novas capacidades centradas na digitalização trouxeram avanços significativos, que
seriam demonstrados amplamente na guerra de 1991, principalmente em duas esferas
relacionadas: (i) nos novos meios de consciência de situação, permitindo a criação do
teatro sintético de operações; (ii) e na utilização de sistemas de guiagem de precisão,
possibilitadas pela revolução das armas digitais, produto da segunda fase das reformas,
analisadas na seção anterior (NEVES JR, 2015).
A conflagração teve, grosso modo, duas fases. A Operação Escudo do Deserto, que
ocorreu ao longo de seis meses iniciais, buscou assegurar o absoluto controle do
domínio aéreo pelos Estados Unidos, destruindo a Força Aérea iraquiana e efetuando
supressão de defesas antiaéreas. Simultaneamente, foram posicionadas unidades
estadunidenses e aliadas da ordem de, respectivamente, 500 mil e 160 mil soldados na
Arábia Saudita, para preparar a ofensiva terrestre (MAHNKEN, 2001). Esta ocorreu na
Operação Tempestade do Deserto, em conjunção com uma campanha intensa de fogo
aéreo aproximado. As munições guiadas de precisão permitiam que ataques de
precisão cirúrgica dizimassem as unidades iraquianas de tanques, ao passo que as
tecnologias de consciência de situação permitiam a coordenação com o avanço terrestre
e ocupação territorial em alta velocidade. Esta operação durou cem dias, até que o
governo iraquiano se rendeu (NEVES JR, 2015; SCHUBERT; KRAUS, 1998).
O sucesso estrondoso na Guerra do Golfo foi mostrado como evidência inconteste
das qualidades do novo modelo de perfil de força. A vitória foi capitalizada como uma
demonstração dos benefícios do uso de uma força de voluntários: os soldados que
serviram no golfo seriam mais bem-treinados e motivados do que os desmoralizados
combatentes do Vietnã (SCHUBERT; KRAUS, 1998). O desempenho dos Estados
Unidos também ensejou um aprofundamento do processo de modernização militar
posto em curso a partir de fins da década de 1970. Sintomático desse fenômeno, foi o
debate em torno da chamada “Revolução em Assuntos Militares” que emergiu na época
(MAHNKEN, 2008). O argumento básico desta tese era de que a aplicação de novas
tecnologias na guerra induziria uma doutrina inovadora, e com ela toda uma nova forma
de organizar as Forças Armadas, de modo que seria capaz de alterar a natureza
fundamental da conduta da guerra. As críticas a esta tese se concentraram no
determinismo tecnológico, e explicações alternativas buscaram qualificar o argumento,
propondo o conceito de “Revolução Técnica Militar”, ou propondo a noção de “Gerações
da Guerra” (NEVES JR, 2015). Não cabe aqui adentrar e tampouco se posicionar nesse
debate, mas sim compreender como ele foi percebi pelo establishment militar e a
maneira pela qual, em consequência, impactou a formulação da Grande Estratégia dos
Estados Unidos a partir da vitória contra o Iraque na guerra de 1991.
Em 1992, um estudo do Pentágono chamado “Revolução Técnico-Militar: um estudo
preliminar”, fez uma primeira avaliação do impacto do uso de tecnologias da informação
na guerra, tendo como base a experiência do Golfo. A pesquisa fora comissionada por
um analista do Pentágono chamado Andrew Marshall, após a publicação de estudos de
analistas militares soviéticos que observaram apreensivos o uso combinado das novas
tecnologias de reconhecimento e consciência de situação com sistemas de armas
baseados em ataques de precisão, o que chamaram de “complexos de reconhecimento
e ataque” (do inglês, reconoissance-strike complexes) (MAHNKEN, 2008).
Quando a expressão “Revolução em Assuntos Militares” passou a ser usada de
maneira mais frequente, a partir de 1993, Marshall preferiu destacar o caráter
“emergente” desta revolução: embora as tecnologias de informação tivessem
demonstrado seu potencial revolucionário, era ainda necessário efetuar reformas
profundas na organização do perfil das forças armadas para que de fato a revolução se
consolidasse. Os pontos enfatizados consistiam, além da combinação de sistemas de
comando e controle mais sofisticados com sistemas de armas que permitissem ataque
em profundidade, no que ele chamava de “guerra de informação”. Esta consistia na
capacidade de “degradar, destruir e romper” os sistemas de informação do adversário,
simultaneamente à de proteger as próprias operações de informação
(MAHNKEN,2008).
A adesão das lideranças do Pentágono e das Forças Armadas às propostas de
Marshall para implementação destas reformas se verifica pela publicação, em 1993, de
uma versão atualizada da Batalha Ar-Terra, propondo a construção de uma força de
capacidade de projeção global, baseada nos Estados Unidos e de alta mobilidade, que
pudesse substituir a utilização de forças baseadas em regiões próximas a áreas de
conflito (TOFFLER; TOFFLER, 1994). Posteriormente, a nomeação de William Perry8
para o cargo de Secretário de Defesa, em 1994, resultou na publicação do Joint Vision
2010 em 1996, documento que serviu como guia para futuras alterações na organização
das Forças Armadas, e a Revisão Quadrienal de Defesa de 1997 reconhecia
explicitamente a existência de uma RMA em curso (MAHNKEN, 2008).
A despeito da retórica revolucionária, os esforços de modernização militar dos
Estados Unidos passaram a se pautar, ao longo das décadas seguintes, em
modificações incrementais no Perfil de Forças. Para tanto, centraram-se em aumentar
a prontidão para efetuar intervenções externas, evitando a necessidade de um
demorado período de concentração de tropas em países aliados, como os seis meses
necessários para a concentração de 500 mil soldados na fronteira do Iraque, em 1991,
durante a Operação Escudo do Deserto. O fato é que a estratégia posta em prática na
Guerra do Golfo, na verdade, corresponde a uma transição entre o modelo de exército
de massas do século XX e a guerra digital. Mais do que isso, consistia em um
“amálgama entre dois modos de guerrear” (NEVES JR, 2015, p.51), que combinava os
8 Perry havia desempenhado papel central na estratégia de offset entre 1977 e 1981, quando ocupara o posto de Subsecretário de Defesa para pesquisa e engenharia (MAHNKEN, 2008).
grandes números e a capacidade industrial típicos do modo tradicional americano de se
fazer a guerra com a mais recente tecnologia de informação, guiagem e consciência de
situação (NEVES JR, 2015).
Ao longo das décadas de 1990 e 2000 foram feitos esforços no sentido de, cada vez
mais, ampliar o controle operacional de modo a vencer com o uso mínimo de apoio
terrestre (MEDEIROS, 2014). Estas mudanças foram ocorrendo simultaneamente a um
aumento substancial no número de intervenções militares feitas em países da periferia
do Sistema. O aprendizado no uso de novos sistemas de armas e de informação
decorrente do seu uso em intervenções criava incentivos para uma modificação
incremental no Perfil de Forças, levando-as a um processo de retroalimentação da
especialização em efetuar intervenções de curta duração, com menor custo e mais
reduzido número de baixas possível. Durante o governo Clinton, foram realizadas mais
de 48 operações militares no exterior, destacando-se as intervenções na Somália (1992-
1993), no Haiti (1994), na ex-Iugoslávia (Bósnia em 1994 e Kosovo em 1999) e o
bombardeio quase ininterrupto do Iraque, que se estenderia da imposição de uma zona
de exclusão aérea (1993) até a invasão de 2003 (FIORI, 2008).
Uma consequência deste processo foi uma significativa redução de pessoal: em
2013, o efetivo total das Forças Armadas estadunidenses correspondia a 73% do efetivo
de 1992. Esta redução não afetou as diferentes forças de maneira homogênea: embora
Exército, Marinha e Aeronáutica tenham sido mais afetadas, o contingente dos
Fuzileiros Navais teve um ligeiro aumento, e o das Forças Especiais aumentou seis
vezes de tamanho (NEVES JR, 2015).
A ascensão da munição guiada de precisão e de aeronaves furtivas permitiu que
os Estados Unidos, ao longo da década de 1990, usassem a força de maneira limitada
e localizada, através do emprego do poder aéreo. Desse modo, áreas de interesse
secundário passaram a sofrer intervenções de pequenas dimensões para atingir
objetivos limitados, como coagir regimes rivais (Sérvia, Iraque) e punir grupos terroristas
sem os comprometimentos que uma operação terrestre acarretaria, fenômeno que
Thomas Mahnken denominou de “guerra de standoff” (MAHNKEN, 2008, p. 179). A
experiência do Iraque, particularmente, abriria o precedente para o que Anderson (2015,
p. 110) chamou de “guerra convencional não declarada”. A intensa campanha de
bombardeios a que o regime de Saddam Hussein foi submetido a partir de 1993, quando
foi acusado de lançar ataques contra curdos e xiitas no Iraque9. A partir daí, o uso de
9 Somente em 1999, já haviam ocorrido mais de 6 mil sortidas aéreas estadunidenses e britânicas, responsáveis pela entrega de cerca de 400 mil toneladas de munição (ANDERSON, 2015, p. 110).
bombardeios se tornou expediente a cada vez que o governo se recusava a cumprir
com determinações do Conselho de Segurança da ONU (MAHNKEN, 2008).
A instabilidade no Bálcãs, como resultado do violento processo de separatismo da
Iugoslávia, apresentou novas oportunidades para os EUA intervirem. A campanha
contra a Sérvia por ocasião da Guerra do Kosovo, particularmente, representou mais
uma inflexão na conduta estadunidense. Por ter sido efetuada em conjunto com a
OTAN, demonstrou as restrições de se atuar em conjunção com os outros países
membros, que precisavam autorizar em conjunto cada alvo de ataque (MAHNKEN,
2008). Essas limitações foram deliberadamente evitadas no governo Bush Jr, que
adotaria postura mais unilateral na tomada de decisão e condução de guerras e
operações militares (MEARSHEIMER, 2011).
Foi também no Kosovo que a munição JDAM, um sistema de conversão de munição
“burra” em munição guiada por GPS, foi inaugurada. Disparadas dos também
inaugurados bombardeiros furtivos B-2, as J-DAM representaram 29% de toda a
munição utilizada no conflito, taxa que chegava a 90% nas semanas finais da guerra. O
encerramento da guerra com uma rendição por parte dos sérvios, após intensa
campanha aérea contra a o exército sérvio no Kosovo e contra a infraestrutura civil da
Sérvia, fez com que numerosos analistas militares do Pentágono e de think-tanks
declarassem a superioridade da guerra aérea (MAHKEN, 2008). Seu argumento era de
que, a partir de agora, com o uso de novas e mais baratas munições guiadas de
precisão, lançadas de novas aeronaves com maior capacidade furtiva, possibilitaria
mais vitórias rápidas e sem uma única baixa, tal como no Kosovo (MAHNKEN, 2008).
Outra lição foi a de que era necessário modificar o perfil do Exército em si, de modo
que se tornasse em uma força mais móvel, capaz de realizar intervenções em diferentes
teatros de operações sem a necessidade de acesso a bases previamente instaladas
(MAHKEN, 2008). Essa constatação deu início à constituição de brigadas capazes de
sustentar operações de maneira mais autônoma, com ampla mobilidade e uso intensivo
de unidades blindadas. Institucionalizava-se a decisão entre as opções que
Mearsheimer evidenciara quase vinte anos antes (MEARSHEIMER, 2011).
A campanha aérea na guerra do Kosovo foi o ponto culminante de uma série de
intervenções e campanhas limitadas conduzidas pelos Estados Unidos ao longo da
década de 1990. Tanto oficiais militares quanto analistas de defesa começaram a
debater o surgimento do “novo modo americano de fazer a guerra”, centrado no uso de
alta tecnologia para conduzir operações limitadas com custo humano baixo ou nulo. As
implicações políticas foram duas. A primeira era de que não haveria mais necessidade
de se travar campanhas militares prolongadas ou operações de larga escala, apenas o
uso cirúrgico de forças para perseguir objetivos secundários. A segunda era a
consequente diminuição da discricionariedade para o uso da força, eivada do
pensamento de que seria possível tornar a guerra mais barata, fácil e “humana” através
do uso de munição guiada de precisão (MAHNKEN, 2008; ANDERSON, 2015).
A campanha do Afeganistão, em 2001, representaria um novo estágio deste
processo, ao combinar uma campanha aérea com o uso de um reduzido número de
unidades de Operações Especiais para funções de apoio e coordenação com forças
locais (MAHNKEN, 2008). Cerca de 316 soldados de unidades de Operações Especiais,
juntamente com 110 paramilitares da CIA, em conjunção com milícias da Aliança do
Norte, derrubaram o governo Talibã de Cabul. Embora a longa ocupação do país e a
inconclusiva guerra de insurgência que tenham se seguido a essa “vitória”, o “modelo
afegão” de guerra foi propagandeado como um sucesso, e um paradigma que foi
replicado em uma série de conflitos posteriores, em sua maioria não-declarados
(MAHNKEN, 2008).
A invasão do Iraque, em 2003, marca duas rupturas com as tendências em curso
desde a primeira Guerra do Golfo, em 1991. Em primeiro lugar, a declaração de guerra
a despeito da não-aprovação da comunidade internacional marcou um unilateralismo
declarado por parte do governo estadunidense. Em segundo lugar, foi a operação de
maior porte desde então, exigindo uma presença militar terrestre mais significativa. De
todo modo, o fato de que foi necessário um efetivo com cerca de metade do de 1991,
juntamente com a rapidez em derrubar o governo de Bagdá e os menores custos da
campanha levaram uma série de analistas a decretar o sucesso definitivo do “novo modo
americano de fazer a guerra” (BOOT, 2003). Assim como no Afeganistão, contudo, na
sequência ocorreria uma longa guerra de contra insurgência, que não foi capaz de
produzir resultados positivos.
A Guerra ao Terror, iniciada após os atentados do 11 de Setembro nos Estados
Unidos, cujos marcos são as invasões do Afeganistão e do Iraque, iniciaram uma nova
fase na Grande Estratégia instaurada após o fim da Guerra Fria. Abandonou-se por
completo a estratégia de manutenção da balança de poder regional no Oriente Médio,
ao desmontar um dos pilares desta: o Iraque (MEARSHEIMER, 2011).
Simultaneamente, proliferaram guerras não-declaradas em regiões do Oriente Médio,
Ásia Central e África, com o uso intensivo de VANTs, forças privadas de segurança
(mercenários) e, em alguns casos, pequenos contingentes de Forças de Operações
Especiais. O panorama geral foi de uma perda quase completa da accountabily da
política de defesa e segurança nacional, uma vez que a maior parte destas intervenções
foi feita frequentemente sem o conhecimento público (HOSSEIN-ZADEH, 2006).
6. Considerações Finais
A escalada do intervencionismo, tal como apresentada na seção anterior, que se
seguiu ao fim da Guerra Fria, representou uma inflexão na Grande Estratégia dos
Estados Unidos: do engajamento seletivo para a dominância ou primazia global. Se
durante a Guerra Fria já havia imperativos de promoção dos valores culturais e políticos
americanos como meios de estabelecer a ordem hegemônica dos Estados Unidos,
baseada em capacidades econômicas e militares superiores, o que diferenciava o
período do pós-Guerra Fria era a perda de seletividade e discricionariedade do
intervencionismo. Como colocado por Mearsheimer, “nenhuma tentativa séria é feita de
priorizar os interesses dos Estados Unidos, porque estes são virtualmente ilimitados”
(MEARSHEIMER, 2011, p. 19). Essa postura, cuja consequência estratégica foi o
intervencionismo tal como delineado na seção anterior, foi possível graças ao momento
unipolar experimentado na época, mas as raízes que geraram sua execução devem ser
encontradas no âmbito das Forças Armadas.
O que este trabalho pretendeu ressaltar foi o papel da mudança no Perfil de Forças
que possibilitou essa inflexão estratégica. Foram apresentadas três fases durante as
quais esta mudança teria ocorrido: (i) em 1973, com a eliminação da conscrição; (ii) ao
longo das décadas de 1970 e 1980, com a inflexão doutrinária representada pela
doutrina da Batalha Ar-Terra e seus efeitos nas aquisições de sistemas de armas,
tecnologias empregas e ênfase na interoperabilidade; e (iii) com a evolução posterior à
Guerra do Golfo de 1991 que direcionou os esforços na criação de prontidão de
emprego, flexibilidade operacional e aumento da capacidade ofensiva, com o
incremento do uso do poder aéreo em detrimento do terrestre.
Se as três fases representam mudanças significativas e reordenamentos de
prioridades estratégicas, ressalta-se o papel do fim da conscrição como o vetor das
mudanças posteriores. Uma vez que fora feito na esteira da derrota no Vietnã, voltou-
se deliberadamente para eliminar as imposições de construção de legitimidade e de
escrutínio público da política de defesa. A perda de accountability resultante permitiu
que as fases seguintes das modificações de Perfil de Força fossem conduzidas à parte
da sociedade, formuladas exclusivamente por um reduzido número de assessores
políticos, burocratas e militares, frequentemente com amplo trânsito entre os postos em
órgãos públicos e diretorias de companhias privadas de produção de armamentos. A
despeito de alterações presidenciais, com uma retórica de mudança e crítica às gestões
anteriores, a continuidade quase inalterada da grande estratégia entre o governo Bush
e Obama demonstra o potencial de dependência de trajetória que a formulação de
políticas pode assumir uma vez enclausurada desta maneira.
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