crise ambiental: irrupÇÃo de gaia e o fim … · o sistema de coordenadas da ... e a dissolução...
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CRISE AMBIENTAL: IRRUPÇÃO DE GAIA E O
FIM DA DICOTOMIA MODERNA HOMEM/NATUREZA
Bruna Jamila de Castro1
Moisés Alves de Oliveira2
Universidade Estadual de Londrina (UEL)
INTRODUÇÃO
O termo “crise ambiental” difunde-se entre nós de forma intensa, empregado de forma
extensiva para evocar uma série de acontecimentos: aquecimento global; acidificação e
aquecimento dos oceanos; perda acelerada de biodiversidade; poluição atmosférica; depleção
da camada de ozônio; a degradação dos solos; a escassez de água potável; entre tantos outros.
O panorama é ambíguo, mas converge sempre para a questão dos problemas
polarizados de relacionamento do homem com a natureza. Problemas, dizem, há muito
ignorados, que batem à nossa porta e inserem a incerteza de um futuro para seres viventes
(STENGERS, 2015).
Como descreve o filósofo Bruno Latour (2011b), parece que as questões em jogo são
demasiadamente intratáveis, muito amplas e incertas, o que se converte em uma paralisia: um
sentimento de desmedida, uma dissonância entre a escala dos fenômenos a serem abordados e
o conjunto de estados emocionais que seriam necessários para lidar com eles. Para Latour
(2004, 2011b, 2013a, 2014a) isso talvez ocorra justamente porque estamos mal equipados
para lidar com essas questões, em especial porque temos pautado nossas ações em uma
compreensão bicameral de mundo: duas zonas ontológicas inteiramente distintas e puras, a
dos humanos (mundo social) de um lado, e a dos não-humanos (mundo natural) de outro. A
distinção fundamental de base cartesiana pela qual se estabeleceu, lenta e gradualmente, todo
o sistema de coordenadas da constituição moderna (LATOUR, 2013b).
1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Educação Matemática da UEL.
Integrante do Grupo de Estudos Culturais das Ciências e das Educações (GECCE). [email protected]
2 Doutor em Educação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Professor do Programa de
Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Educação Matemática da UEL. [email protected]
A Educação Ambiental (EA), sob suas múltiplas tendências, tem almejado formar
indivíduos preocupados com os problemas ambientais, propondo ações educativas pelas quais
se tome consciência das relações que os homens estabelecem com a natureza. Pode-se dizer
que, de modo frenquentemente vago e por vezes contraditório, o pensamento ecológico já
tentou tecer milhares de relações entre Homem e Natureza. Mas partem sempre do mesmo
equívoco de que estes domínios funcionam separados e estão à espera de serem
reconectados/reconciliados (LATOUR, 2014a), em que o primeiro é o sujeito pensante
(governado por uma autoconsciência) e a segunda um cenário exterior (fora de nós),
inanimado, inerte e distante.
Essa “cisão cartesiana entre natureza e cultura é a base da educação moderna e
constitui-se em um dos principais entraves para a promoção de uma educação ambiental”
(GRÜN, 2011, p.58), pois ao conservar esta dicotomia a EA torna impraticável sua política,
uma vez que ingnora (mantém invisível) o trabalho de mediação com não-humanos. O maior
inconveniente disso (mas não o único), é que as crises ambientais “não se apresentam jamais
sob a forma de uma crise da ‘natureza’. Elas aparecem muito mais como crises da
objetividade [...]” (LATOUR, 2004, p.44), como uma dificuldade de alocar previamente o que
produzimos coletivamente na categoria “natural” ou “social”. Na prática os problemas
ambientais não tratam da Natureza, esta figura fria e inanimada, mas sim de híbridos de
humanos e não humanos, de forças, ações e ingredientes que estão fluindo através de entes
que não se limitam ao rótulo “natural”.
Nosso objetivo é apontar, a partir de uma notícia da crise ambiental, veiculada por dois
famosos portais brasileiros de jornalismo on-line, a impossibilidade de considerarmos a
dicotomiamodernahomem/natureza para pensar os problemas ambientais. Para dar conta da
tarefa utilizamos o conceito-ferramenta de “Gaia”, da teorização mais recente de Bruno
Latour e assumimos também alguns desassossegos básicos dos Estudos Culturais, destacados
por Nelson, Treichler e Grossberg (2009), como o rompimento com lógicas cristalizadas; a
suspensão das produções/invenções que se mostram naturalizadas e a dissolução da ideia de
que haveria lugares privilegiados para a produção do conhecimento, rejeitando qualquer
distinção hierárquica entre alta cultura e cultura de massa. Elementos que vem sendo
exercitados em diversas pesquisas ligadas ao campo da Educação, como se evidencia nas
obras organizadas por Saraiva e Marcello (2012), Kirchof, Wortmann e Costa (2015) e na
Educação Ambiental, como mostram Guimarães e Wortmann (2014). Assim, esperamos
operar um dispositivo de estranhamento para com a concepção de mundo moderna e oferecer
outra possibilidade para pensar as questões ecológicas.
PENSANDO AS QUESTÕES AMBIENTAIS COM LATOUR: A NOÇÃO DE “GAIA”
Tentamos operar neste escrito com o conceito-ferramenta de “Gaia”. Este é um dos
nomes que vêm sendo convocados para se pensar ontológica e politicamente os modos
possíveis de enfrentamento às atuais condições de existência não só dos humanos, mas de
uma enorme quantidade de outros viventes sobre (e sob) a Terra (DANOWSKI; VIVEIROS
DE CASTRO, 2014). Já se valeram deste termo os antigos gregos, Nietzsche e Lovelock. Na
contemporaneidade, com Latour, Isabelle Stengers, Eduardo Viveiros de Castro e Débora
Danowski, Gaia vem ganhando ares renovados.
Latour tem reinterpretado/redefinido a teoria de Gaia de Lovelock3, segundo ele a
mesma teria sido mal compreendida, uma vez que tentaram encaixar esta nova noção ꟷ de
descrição de um estado de coisas ꟷ em uma moldura antiga, transformando Gaia em um único
superorganismo vivo (LATOUR, 2013a). Tratam-na, por exemplo, como destaca Latour
(2014b), como um tipo de Gaia-Deusa-da-Nova-Era, sensível aos nossos apelos, ou uma
Gaia-Pro-Vida, uma espécie de ativista protetor da vida, ou em uma Gaia-Babá, que precisa
tomar conta dos os seres e prover suas necessidades. De acordo com Latour (2014b),
Lovelock não introduziu em nenhum momento em sua teorização que Gaia é um todo
coerente, pelo contrário, ele se recusa conceder a qualquer parte a propriedade de ser o todo.
Sem concordar com todos os contornos da Gaia de Lovelock, Latour (2013a; 2014a)
reconhece nesta sua noção/versão, neste personagem fictício, uma forma poderosa de garantir
que um todo unificado prematuramente não assuma a definição do que os organismos estão
fazendo, tal como ocorre com a ideia de Natureza, que com frequência é definida pelos
modernos como algo “dado”, um todo unificado, inanimado e externo. Gaia ao contrário
3 No início da década de 70, o químico James Lovelock, em parceria com a bióloga Lynn Margulis, defenderam
a hipotese de Gaia ꟷ hoje considerada uma teoria ꟷ enunciando que a biosfera e os componentes físicos da
Terra, como a atmosfera, criosfera, hidrosfera e litosfera, são intimamente integrados, que seus elementos
interagem entre si, de modo a formar um complexo sistema que mantêm as condições climáticas e
biogeoquímicas preferivelmente em homeostase, ou seja, que os componentes de Gaia buscariam meios de se
ajustar/adaptar, ou melhor, de se autorregular (LOVELOCK; MARGULIS, 1974). A teoria foi ao longo dos
anos mais desenvolvida, defendida e publicada por Lovelock, por isso Latour ao se referir a esta, geralmente
traz a “Gaia de Lovelock”, omitindo o nome de Margulis (mas Latour reconhece a importância dos estudos da
bióloga para o conceito em várias passagens de suas obras).
guarda o sentido de um planeta que está vivo, que responde as nossas ações de modo ativo e
imprevisível: quando se adiciona uma entidade ꟷ seja um gás como o CO2 ꟷ toda uma cadeia
de outras agências entrelaçadas a esta entidade ganha vida. E não se trata de um
antropomorfismo, como alerta Latour contra os críticos de Lovelock, não se trata de atribuir a
seres inanimados características que seriam humanas, mais sim de distribuir o poder de
agência entre os mais diversos entes, concebê-lo como “uma propriedade do próprio mundo”.
(LATOUR, 2014a).
Assim, para Latour (2013a) Gaia não guarda nenhuma semelhança com esta
Natureza da modernidade, que possuí níveis e camadas ordenadas. Em Gaia nenhum agente é
apenas sobreposto ao outro, como seria o caso se vivêssemos em um planeta inerte. Segundo
o autor se encararmos literalmente a teoria de Lovelock não há mais ambiente, uma vez que
todos os agentes modificam tanto quanto possível seus próprios vizinhos, assim, é
completamente impossível distinguir o que é o ambiente, ao qual um organismo se adapta, e
qual é o ponto onde a ação começa. Em termos de agência, a distinção entre um ente e seu
ambiente se dissolve.
Por este ângulo, podemos dizer que Gaia nomeia uma nova maneira de imaginar o
coletivo, ou como diz Latour (2013a), uma nova forma de compor o mundo comum, em que a
questão da política não é limitada aos seres humanos, mas também será estendida a não-
humanos, isto é, a todas as agências que o compõem. Para este escrito, portanto, buscamos
tirar da noção de Gaia a ideia de conectividade/associação entre os diferentes entes, em um
sistema frágil, complexo e contingente4.
AS QUESTÕES AMBIENTAIS EM DESTAQUE NA MÍDIA
A temática ambiental tem circulado cada vez mais intensamente fora das instâncias
que antes a detinham, o que era antes exclusiva do âmbito de universidades, institutos de
pesquisa, instituições governamentais, isto é, de “alguns expertos, selecionados com o maior
cuidado e capazes de fazer a ligação entre os dois conjuntos [natureza e sujeito/sociedade]”
4 É importante destacar que, por conta do tamanho do texto,não foi possível percorrer todos os elementos que
compõem a originalidade de Gaia. Latour assume Gaia como uma nova forma de poder político, um modo de
recompor um novo tipo de projeto coletivo (LATOUR, 2013a).
(LATOUR, 2004, p.33), agora se avoluma enquanto cultura dispersa e cada vez mais
intensamente debatida fora das instâncias a que era limitada.
No Brasil pesquisas que articulam EA e Estudos Culturais têm confirmado essa
dispersão, apontando que são inúmeras as mídias que vem contribuindo para pensarmos as
questões ambientais: série televisiva (FENSTERSEIFER, 2005), filmes (SAMPAIO;
WORTMANN, 2013), jornais (KIRCHOF, WORTMANN; BONIN, 2011), revistas
(SCHWAAB, 2011; GARRÉ; VIEIRA; HENNING, 2014), filmes infantis (KINDEL, 2003;
OLIVEIRA; SAMPAIO, 2016), histórias em quadrinhos (CASTRO; OLIVEIRA, 2017),
desenhos animados (WORTMANN; RIPOLL; POSSAMAI, 2012), dentre muitas outras.
Consideradas por estas investigações como espaços pedagógicos, estas instâncias produzem,
reconstroem e propagam verdades, contribuindo de forma relevante para a constituição do
cosmos imaginado, ora instaurando Natureza como um problema, ora como um lócus a ser
preservado, mas em suma como algo essencializado, exterior, autônomo e independente da
interação com o humano/social (WORTMANN, 2010).
Tendo em vista que mídia assume potência de ator central, pelo processo de
mediação e de construção de sentidos e valores, optou-se por tomá-la como objeto de estudo.
O jornalismo em especial nos chamou a atenção por dois motivos: ser um espaço de grande
circulação de informações acerca dos problemas ambientais (crise ambiental), como ressalta
Schwaab (2011, p.9) “A credibilidade em poder dizer, atribuída ao Jornalismo, é assumida
[...] como elemento que autoriza um lugar de competência diante de problemáticas centrais da
contemporaneidade, como a questão ambiental”; e por a enunciação jornalística ter a
pretensão de transmitir “a verdade" de modo objetivo (CORREIA, 2009).
Selecionamos, para a análise, uma notícia que foi publicada em janeiro de 2016, por
dois famosos portais brasileiros de jornalismo on-line, o “uol.com” e a “globo.com”.
Instâncias midiáticasque estão entre os sites de conteúdo de notícias mais acessados do Brasil,
alcançando audiência superior a respectivamente 50 e 38 milhões de visitantes por mês
(MIZUKAMI, 2014). Desta forma, a notícia foi consumida por um número representativo de
pessoas.
Procedemos à análise inspirados por alguns princípios da Teoria ator-rede. Seguindo
a perspectiva sugerida por Latour, tentamos acompanhar as associações que atores humanos e
não-humanos instauram entre si. Para o filósofo um ator/atuante é tudo o que tem agência,
deste modo, o ator não se define pelo que ele faz, mas sim pelos efeitos do que ele faz.
(LATOUR, 2012). Como porta de entrada para análise escolhemos uma entidade (o plástico)
que define, ordena, classifica, organiza, compõe e distribui vários tipos de agências de
diferentes maneiras.
O PLÁSTICO É NOTÍCIA: A CRISE AMBIENTAL
Como se “fisga” a atenção do leitor em uma manchete? A resposta é simples, com
uma isca... no caso da notícia abaixo (Figura 1): os oceanos, os peixes, o plástico e a data de
2050 (que está logo ali). Instaura-se de imediato um alerta, que provocam em nós uma
sensação de angústia, insegurança e medo, mas também impela a agir, frente a eminência do
desastre (GARRÉ; VIEIRA; HENNING, 2014).
Figura 1 – Notícia publicada em 20 de janeiro de 2016 na “globo.com”5
Fonte:http://g1.globo.com/natureza/noticia/2016/01/oceanos-terao-mais-plasticos-do-que-peixes-em-2050-diz-
estudo.html
5 A mesma notícia foi publicada no dia 19 de janeiro de 2016 no “uol.com”. Disponível em: <https://noticias.
uol.com.br/meio-ambiente/ultimas-noticias/redacao/2016/01/19/oceanos-terao-mais-plasticos-do-que-peixes-
em-2050.htm>.
O plástico foi a matéria-prima que inovou a indústriano século XX, maleável, de
custo baixo (ou seja, muito rentável), durável (até demais) e com diversas aplicações, seus
limites atuais são bem difíceis de definir, sendo essencial para o fronte de
modernização(tomado como sinônimo de desenvolvimento). Mas como veremos o plástico
também é um ótimo exemplo de como estamos atados a relações incertas, instáveis e frágeis
em Gaia, essa noção nos ajuda a compreender esta Terra que parece reagir às nossas ações.
Reagir, não no sentido de uma divindade, um ser sensível que quer se vingar de nós, mas
como uma associação intrincada de elementos heterogêneos, que ao sofrer alteração em um de
seus vínculos, gera ondas de ação que não respeitam quaisquer fronteiras tradicionais,
deixando-nos evidente que não existe um agente, seja ele humano ou não-humano, que esteja
isolado do restante da existência (LATOUR, 2013a).
Como podemos observar na foto trazida pela notícia ꟷ que nos mostra uma camada
de plásticos diversos flutuando na superfície da Baía de Hanauma, no Havaí, no ano de 2008,
local que faz parte de uma área de cerca de 1,3 milhão de quilômetros quadrados no oceano
Pacífico, conhecida como a "Grande Mancha de Lixo do Pacífico" ꟷ após algumas décadas de
demasiada produção e consumo do plástico, esse produto “milagroso”, por meio de uma
cascata contingente de eventos imprevistos foi capaz de consequências espantosas. Isso
chama nossa atenção para o fato de Gaia ser ao mesmo tempo exígua e frágil, e, também
suscetível e implacável, podendo assumir a aparência de uma potência ameaçadora
(DANOWSKI; VIVEIROS DE CASTRO, 2014).
O uso maciço de plásticos é tamanho que os oceanos abrigarão mais detritos plásticos do
que peixes em 2050 [...]. O sistema atual de produção, utilização e descarte de plásticos tem
efeitos negativos importantes: de 80 a 120 bilhões de dólares de embalagens plásticas são
perdidos anualmente. E além do custo financeiro, sem nada em troca, os oceanos terão mais
plástico do que peixes (em peso) até 2050.6
O plástico que, por um viés moderno, parecia um objeto inanimadodo mundo natural,
um objeto limpo, como diz Latour (2004), ganha status de agente político, com capacidade
deativar toda uma redede outras agências emaranhadas a ele, colocando em movimento
políticos, empresários, mídia, ativistas, cientistas etc. A notícia nos dá indícios do enredo
complicado e confuso que cercam os problemas ambientais, as teias complexas de relação e
colaboração da dupla humano-não-humano (LATOUR, 2013a), que neste caso, em especial, 6 Os recortes das notícias são trazidos em itálico e espaçamento simples, para diferenciá-los do restante do
texto.
se dá por meio de um imbróglio de química, técnica, de moral, de política e especialmente de
economia.
Ao seguirmos o rastro da fonte da informação, o Fórum Econômico Mundial (World
Economic Forum – WEF) em Davos, Suíça, como retrata a manchete, percebemos que o
plástico é capaz de mobilizaruma extensa rede. O fórum reúne os principais líderes
empresariais e políticos, assim como intelectuais e jornalistas selecionados para discutir as
questões mais urgentes enfrentadas mundialmente, essa assembleia política por sua vez baseia
as informações ꟷ que são trazidos na notícia ꟷ em um relatório “The new plastics economy
rethinking the future of plastics”7. Produzido em associação com Ellen MacArthur Foundation
(EMF), uma instituição de caridade britânica que tem como objetivo declarado inspirar a
geração a repensar, re-projetar e construir um futuro positivo através do quadro de uma
economia circular.
O documento em questão, com a força de inúmeros aliados ꟷ ONGs ambientalistas,
o último relatório do Painel Intergovernamental para Mudança Climática (IPCC) da ONU,
agências governamentais, multinacionais, além de especialistas de diversos campos de
pesquisa de universidades renomadas ꟷ aponta que o fluxo de plásticos para os oceanos
poderá aumentar numa ordem de grandeza nas próximas décadas, colocando o ano de 2050
como um marco crítico da situação. De material revolucionário o plástico se transformou em
um material problemático por insistir em aparecer em locais não desejados.
Em termos de Latour (2004), podemos dizer que o plástico passou de “matters of
fact”, uma questão sobre um fato rígido/estabelecido e naturalizado, para “matters of
concern”, uma questão de interesse/preocupação, algo com atributos ativos e altamente
discutível (LATOUR, 2004, 2012).
Sigamos desdobrando as agências manifestadas por este matters of concern. Ao
analisar um pouco mais o relatório, observamos que ele foi feito sob a égide de um Projeto
chamado MainStream8, uma iniciativa global multi-indústria lançada em 2014 pelo WEF, que
tem por objetivo acelerar a inovação focada nos negócios e ajudar a expandir a economia
circular, sendo liderado por diretores executivos (CEOs) de nove empresas globais: Averda,
7 Disponível em: <https://www.ellenmacarthurfoundation.org/assets/downloads/publications/EllenMacArthur
FoundationTheNewPlasticsEconomy_19012016.pdf>.
8 Termo em inglês que denota uma tendência, estilo, movimento ou moda dominante. A tradução literal de
mainstream é "corrente principal" ou "fluxo principal".
BT, Desso BV, Royal DSM, Ecolab, Indorama, Philips, SUEZ e Veolia. Como guardiões do
progresso, os autodenominados porta-vozes do “universal”9, certos de seu acesso privilegiado
à Natureza ꟷ que por um viés econômico é constituída como um regime de bens (LATOUR,
2004) ꟷ, buscam encarnar a vida política do futuro que preze por economia circular, que por
princípio busque superar um modelo de pensamento linear para uma oportunidade atraente de
aumentar a eficácia sistêmica da economia do plástico, rumo a padrões de produção e
consumo regenerativos, visando um crescimento sustentável,mas sempre comprometidos com
o avanço implacável da frente de modernização.
Convencidos pela narrativa de modernização e emancipação, tornam cada vez mais
explícita a fragilidade dos sistemas de apoio à vida que tornam possíveis as suas "esferas de
existência" (LATOUR, 2011a). Afastados de suas próprias práticas, os modernos vivem como
se os domínios natureza-cultura estivessem firmemente estabelecidos, mas quando deparam-
se com “matters of concern”, isso muda abrutamente. Essa associação complicada de seres,
nações, indústrias, inovações, consumidores, instituições, deixam cada vez mais evidente que
os problemas ambientais não tratam da Natureza.
O fórum estima necessária“uma refundação total das embalagens e dos plásticos em geral” e
a busca por alternativas ao petróleo como material de base para sua produção - pois caso
nada mude, o plástico representará 20% da produção petroleira em 2050.[...]Os modelos de
produção e consumo lineares são cada vez mais questionados [...].
Com vista a certeira diminuição dos recursos fósseis, passa-se a busca por materiais
biossintéticos em substituição ao plástico, ativando toda uma cadeia de pesquisas. Materiais
de reserva bacteriana tais como poli-hidroxialcanoatos (PHA), de cana-de-açúcar, de milho,
são algumas das alternativas que vem sendo levantadas em consideração, mas por enquanto
nenhum tem potência para ocupar o lugar do plástico derivado do petróleo na indústria. Fato
que faz ganhar força a reciclagem deste material.
Neste ponto o plástico já não é um simples objeto moderno inerte e estável, mas um
ator-rede, que pode afetar até mesmo os atuais modelos de produção e consumo, como vimos
acima. As misturas crescem, as vinculações e implicações aumentam etorna-se impossível não
admitir que a objetividade moderna perde sua força (LATOUR, 2013a). Não há mais
ambiente sob a qual a humanidade age. Todo o não-humano que era considerado na
9 Mas que na verdade agem “para o bem-estar, o prazer ou boa consciência de um pequeno número de
humanos, cuidadosamente selecionados [...]” (LATOUR, 2004, p.45).
Constituição moderna passivo agora é ativo e móvel, dotado de capacidade (agência) para
instaurar as mais diversas lutas científico-políticas, tal como os seres humanos, “os adereços
mais humildes agora desempenham um papel, como se não houvesse mais distinção entre os
personagens principais e o ambiente em torno deles” (LATOUR, 2013a, p.63, tradução
nossa).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O modo como realidade aparece, em sua complexidade e hibridismo, escancara a
insuficiência da dicotomia homem/natureza. A súbita colisão de Gaia com os humanos, como
destacam Danoski e Viveiros de Castro (2014, p.26), “contribui de maneira decisiva para o
desmoronamento da distinção fundamental da episteme moderna”. Fica cada vez mais
evidente essa enorme sensação de incompatibilidade entre o mundo por nós vivenciado, em
que multiplicam-se quase-sujeito10, onde estamos atados e agenciados por uma multiplicidade
de elementos e entidades heterogêneas, e o mundo projetado pela Constituição Moderna, onde
haveria apenas entes puros. Nunca conseguimos, afinal, separar totalmente e a priori a
produção comum dos domínios Natureza e Sociedade/Cultura (LATOUR, 1994).
O conceito de “Gaia” parece servir, assim, como ferramenta para realizar um
“empreendimento de deslocamento do pensamento, que permita a emergência de novas
possibilidades, de caminhos outros” (GALLO; VEIGA NETO, 2007, s/p). Como argumenta
Stengers (2014), Gaia tem a urgência de induzir pensamento e sentimento de uma maneira
particular, em um processo de reimaginar ativamente um mundo não-antropocêntrico. Ela
pode estreitar a nossa conexão e experiência coletiva, por meio de outros sensores (não
modernos). Mas temos que tomar cuidado para o risco de um pensamento holístico que
despreze a multiplicidade de Gaia, como nos alerta Latour (2014b), se a tratarmos como uma
totalidade, como tem feito os críticos de Lovelock, ela será apenas mais uma possibilidade de
recarregar as formas modernas de pensar.
Pensar as questões ambientais por meio de Gaia exige, portanto, o fim da visão
moderna que opõe homem e natureza. Latour (2013a) vê em Gaia a oportunidade de
10 Latour usa o termo “quase-sujeitos” ou “quase-objetos” para se referir aos híbridos de humanos e não-
humanos, uma vez que em relação eles “não ocupam nem a posição de objetos que a Constituição prevê para
eles, nem a de sujeitos” (LATOUR, 1994, p. 54).
ampliarmos o repertório estreito de emoções e sensações com as quais entendemos as
questões ambientais, uma oportunidade de nos afastamos da razão desanimada/desencarnada
que levou diretamente à atual crise ecológica: a ideia de que existe, de um lado, a Natureza, e
do outro lado os seres humanos. Com Gaia, como em uma fita de Möbius, não há mais nem
dentro, nem fora. Não sabemos mais onde o ambiente está em relação a nós, nem nós em
relação a ele. (LATOUR, 2013a).
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