crise ambiental: irrupÇÃo de gaia e o fim … · o sistema de coordenadas da ... e a dissolução...

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CRISE AMBIENTAL: IRRUPÇÃO DE GAIA E O FIM DA DICOTOMIA MODERNA HOMEM/NATUREZA Bruna Jamila de Castro 1 Moisés Alves de Oliveira 2 Universidade Estadual de Londrina (UEL) INTRODUÇÃO O termo “crise ambiental” difunde-se entre nós de forma intensa, empregado de forma extensiva para evocar uma série de acontecimentos: aquecimento global; acidificação e aquecimento dos oceanos; perda acelerada de biodiversidade; poluição atmosférica; depleção da camada de ozônio; a degradação dos solos; a escassez de água potável; entre tantos outros. O panorama é ambíguo, mas converge sempre para a questão dos problemas polarizados de relacionamento do homem com a natureza. Problemas, dizem, há muito ignorados, que batem à nossa porta e inserem a incerteza de um futuro para seres viventes (STENGERS, 2015). Como descreve o filósofo Bruno Latour (2011b), parece que as questões em jogo são demasiadamente intratáveis, muito amplas e incertas, o que se converte em uma paralisia: um sentimento de desmedida, uma dissonância entre a escala dos fenômenos a serem abordados e o conjunto de estados emocionais que seriam necessários para lidar com eles. Para Latour (2004, 2011b, 2013a, 2014a) isso talvez ocorra justamente porque estamos mal equipados para lidar com essas questões, em especial porque temos pautado nossas ações em uma compreensão bicameral de mundo: duas zonas ontológicas inteiramente distintas e puras, a dos humanos (mundo social) de um lado, e a dos não-humanos (mundo natural) de outro. A distinção fundamental de base cartesiana pela qual se estabeleceu, lenta e gradualmente, todo o sistema de coordenadas da constituição moderna (LATOUR, 2013b). 1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Educação Matemática da UEL. Integrante do Grupo de Estudos Culturais das Ciências e das Educações (GECCE). [email protected] 2 Doutor em Educação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Professor do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Educação Matemática da UEL. [email protected]

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CRISE AMBIENTAL: IRRUPÇÃO DE GAIA E O

FIM DA DICOTOMIA MODERNA HOMEM/NATUREZA

Bruna Jamila de Castro1

Moisés Alves de Oliveira2

Universidade Estadual de Londrina (UEL)

INTRODUÇÃO

O termo “crise ambiental” difunde-se entre nós de forma intensa, empregado de forma

extensiva para evocar uma série de acontecimentos: aquecimento global; acidificação e

aquecimento dos oceanos; perda acelerada de biodiversidade; poluição atmosférica; depleção

da camada de ozônio; a degradação dos solos; a escassez de água potável; entre tantos outros.

O panorama é ambíguo, mas converge sempre para a questão dos problemas

polarizados de relacionamento do homem com a natureza. Problemas, dizem, há muito

ignorados, que batem à nossa porta e inserem a incerteza de um futuro para seres viventes

(STENGERS, 2015).

Como descreve o filósofo Bruno Latour (2011b), parece que as questões em jogo são

demasiadamente intratáveis, muito amplas e incertas, o que se converte em uma paralisia: um

sentimento de desmedida, uma dissonância entre a escala dos fenômenos a serem abordados e

o conjunto de estados emocionais que seriam necessários para lidar com eles. Para Latour

(2004, 2011b, 2013a, 2014a) isso talvez ocorra justamente porque estamos mal equipados

para lidar com essas questões, em especial porque temos pautado nossas ações em uma

compreensão bicameral de mundo: duas zonas ontológicas inteiramente distintas e puras, a

dos humanos (mundo social) de um lado, e a dos não-humanos (mundo natural) de outro. A

distinção fundamental de base cartesiana pela qual se estabeleceu, lenta e gradualmente, todo

o sistema de coordenadas da constituição moderna (LATOUR, 2013b).

1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Educação Matemática da UEL.

Integrante do Grupo de Estudos Culturais das Ciências e das Educações (GECCE). [email protected]

2 Doutor em Educação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Professor do Programa de

Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Educação Matemática da UEL. [email protected]

A Educação Ambiental (EA), sob suas múltiplas tendências, tem almejado formar

indivíduos preocupados com os problemas ambientais, propondo ações educativas pelas quais

se tome consciência das relações que os homens estabelecem com a natureza. Pode-se dizer

que, de modo frenquentemente vago e por vezes contraditório, o pensamento ecológico já

tentou tecer milhares de relações entre Homem e Natureza. Mas partem sempre do mesmo

equívoco de que estes domínios funcionam separados e estão à espera de serem

reconectados/reconciliados (LATOUR, 2014a), em que o primeiro é o sujeito pensante

(governado por uma autoconsciência) e a segunda um cenário exterior (fora de nós),

inanimado, inerte e distante.

Essa “cisão cartesiana entre natureza e cultura é a base da educação moderna e

constitui-se em um dos principais entraves para a promoção de uma educação ambiental”

(GRÜN, 2011, p.58), pois ao conservar esta dicotomia a EA torna impraticável sua política,

uma vez que ingnora (mantém invisível) o trabalho de mediação com não-humanos. O maior

inconveniente disso (mas não o único), é que as crises ambientais “não se apresentam jamais

sob a forma de uma crise da ‘natureza’. Elas aparecem muito mais como crises da

objetividade [...]” (LATOUR, 2004, p.44), como uma dificuldade de alocar previamente o que

produzimos coletivamente na categoria “natural” ou “social”. Na prática os problemas

ambientais não tratam da Natureza, esta figura fria e inanimada, mas sim de híbridos de

humanos e não humanos, de forças, ações e ingredientes que estão fluindo através de entes

que não se limitam ao rótulo “natural”.

Nosso objetivo é apontar, a partir de uma notícia da crise ambiental, veiculada por dois

famosos portais brasileiros de jornalismo on-line, a impossibilidade de considerarmos a

dicotomiamodernahomem/natureza para pensar os problemas ambientais. Para dar conta da

tarefa utilizamos o conceito-ferramenta de “Gaia”, da teorização mais recente de Bruno

Latour e assumimos também alguns desassossegos básicos dos Estudos Culturais, destacados

por Nelson, Treichler e Grossberg (2009), como o rompimento com lógicas cristalizadas; a

suspensão das produções/invenções que se mostram naturalizadas e a dissolução da ideia de

que haveria lugares privilegiados para a produção do conhecimento, rejeitando qualquer

distinção hierárquica entre alta cultura e cultura de massa. Elementos que vem sendo

exercitados em diversas pesquisas ligadas ao campo da Educação, como se evidencia nas

obras organizadas por Saraiva e Marcello (2012), Kirchof, Wortmann e Costa (2015) e na

Educação Ambiental, como mostram Guimarães e Wortmann (2014). Assim, esperamos

operar um dispositivo de estranhamento para com a concepção de mundo moderna e oferecer

outra possibilidade para pensar as questões ecológicas.

PENSANDO AS QUESTÕES AMBIENTAIS COM LATOUR: A NOÇÃO DE “GAIA”

Tentamos operar neste escrito com o conceito-ferramenta de “Gaia”. Este é um dos

nomes que vêm sendo convocados para se pensar ontológica e politicamente os modos

possíveis de enfrentamento às atuais condições de existência não só dos humanos, mas de

uma enorme quantidade de outros viventes sobre (e sob) a Terra (DANOWSKI; VIVEIROS

DE CASTRO, 2014). Já se valeram deste termo os antigos gregos, Nietzsche e Lovelock. Na

contemporaneidade, com Latour, Isabelle Stengers, Eduardo Viveiros de Castro e Débora

Danowski, Gaia vem ganhando ares renovados.

Latour tem reinterpretado/redefinido a teoria de Gaia de Lovelock3, segundo ele a

mesma teria sido mal compreendida, uma vez que tentaram encaixar esta nova noção ꟷ de

descrição de um estado de coisas ꟷ em uma moldura antiga, transformando Gaia em um único

superorganismo vivo (LATOUR, 2013a). Tratam-na, por exemplo, como destaca Latour

(2014b), como um tipo de Gaia-Deusa-da-Nova-Era, sensível aos nossos apelos, ou uma

Gaia-Pro-Vida, uma espécie de ativista protetor da vida, ou em uma Gaia-Babá, que precisa

tomar conta dos os seres e prover suas necessidades. De acordo com Latour (2014b),

Lovelock não introduziu em nenhum momento em sua teorização que Gaia é um todo

coerente, pelo contrário, ele se recusa conceder a qualquer parte a propriedade de ser o todo.

Sem concordar com todos os contornos da Gaia de Lovelock, Latour (2013a; 2014a)

reconhece nesta sua noção/versão, neste personagem fictício, uma forma poderosa de garantir

que um todo unificado prematuramente não assuma a definição do que os organismos estão

fazendo, tal como ocorre com a ideia de Natureza, que com frequência é definida pelos

modernos como algo “dado”, um todo unificado, inanimado e externo. Gaia ao contrário

3 No início da década de 70, o químico James Lovelock, em parceria com a bióloga Lynn Margulis, defenderam

a hipotese de Gaia ꟷ hoje considerada uma teoria ꟷ enunciando que a biosfera e os componentes físicos da

Terra, como a atmosfera, criosfera, hidrosfera e litosfera, são intimamente integrados, que seus elementos

interagem entre si, de modo a formar um complexo sistema que mantêm as condições climáticas e

biogeoquímicas preferivelmente em homeostase, ou seja, que os componentes de Gaia buscariam meios de se

ajustar/adaptar, ou melhor, de se autorregular (LOVELOCK; MARGULIS, 1974). A teoria foi ao longo dos

anos mais desenvolvida, defendida e publicada por Lovelock, por isso Latour ao se referir a esta, geralmente

traz a “Gaia de Lovelock”, omitindo o nome de Margulis (mas Latour reconhece a importância dos estudos da

bióloga para o conceito em várias passagens de suas obras).

guarda o sentido de um planeta que está vivo, que responde as nossas ações de modo ativo e

imprevisível: quando se adiciona uma entidade ꟷ seja um gás como o CO2 ꟷ toda uma cadeia

de outras agências entrelaçadas a esta entidade ganha vida. E não se trata de um

antropomorfismo, como alerta Latour contra os críticos de Lovelock, não se trata de atribuir a

seres inanimados características que seriam humanas, mais sim de distribuir o poder de

agência entre os mais diversos entes, concebê-lo como “uma propriedade do próprio mundo”.

(LATOUR, 2014a).

Assim, para Latour (2013a) Gaia não guarda nenhuma semelhança com esta

Natureza da modernidade, que possuí níveis e camadas ordenadas. Em Gaia nenhum agente é

apenas sobreposto ao outro, como seria o caso se vivêssemos em um planeta inerte. Segundo

o autor se encararmos literalmente a teoria de Lovelock não há mais ambiente, uma vez que

todos os agentes modificam tanto quanto possível seus próprios vizinhos, assim, é

completamente impossível distinguir o que é o ambiente, ao qual um organismo se adapta, e

qual é o ponto onde a ação começa. Em termos de agência, a distinção entre um ente e seu

ambiente se dissolve.

Por este ângulo, podemos dizer que Gaia nomeia uma nova maneira de imaginar o

coletivo, ou como diz Latour (2013a), uma nova forma de compor o mundo comum, em que a

questão da política não é limitada aos seres humanos, mas também será estendida a não-

humanos, isto é, a todas as agências que o compõem. Para este escrito, portanto, buscamos

tirar da noção de Gaia a ideia de conectividade/associação entre os diferentes entes, em um

sistema frágil, complexo e contingente4.

AS QUESTÕES AMBIENTAIS EM DESTAQUE NA MÍDIA

A temática ambiental tem circulado cada vez mais intensamente fora das instâncias

que antes a detinham, o que era antes exclusiva do âmbito de universidades, institutos de

pesquisa, instituições governamentais, isto é, de “alguns expertos, selecionados com o maior

cuidado e capazes de fazer a ligação entre os dois conjuntos [natureza e sujeito/sociedade]”

4 É importante destacar que, por conta do tamanho do texto,não foi possível percorrer todos os elementos que

compõem a originalidade de Gaia. Latour assume Gaia como uma nova forma de poder político, um modo de

recompor um novo tipo de projeto coletivo (LATOUR, 2013a).

(LATOUR, 2004, p.33), agora se avoluma enquanto cultura dispersa e cada vez mais

intensamente debatida fora das instâncias a que era limitada.

No Brasil pesquisas que articulam EA e Estudos Culturais têm confirmado essa

dispersão, apontando que são inúmeras as mídias que vem contribuindo para pensarmos as

questões ambientais: série televisiva (FENSTERSEIFER, 2005), filmes (SAMPAIO;

WORTMANN, 2013), jornais (KIRCHOF, WORTMANN; BONIN, 2011), revistas

(SCHWAAB, 2011; GARRÉ; VIEIRA; HENNING, 2014), filmes infantis (KINDEL, 2003;

OLIVEIRA; SAMPAIO, 2016), histórias em quadrinhos (CASTRO; OLIVEIRA, 2017),

desenhos animados (WORTMANN; RIPOLL; POSSAMAI, 2012), dentre muitas outras.

Consideradas por estas investigações como espaços pedagógicos, estas instâncias produzem,

reconstroem e propagam verdades, contribuindo de forma relevante para a constituição do

cosmos imaginado, ora instaurando Natureza como um problema, ora como um lócus a ser

preservado, mas em suma como algo essencializado, exterior, autônomo e independente da

interação com o humano/social (WORTMANN, 2010).

Tendo em vista que mídia assume potência de ator central, pelo processo de

mediação e de construção de sentidos e valores, optou-se por tomá-la como objeto de estudo.

O jornalismo em especial nos chamou a atenção por dois motivos: ser um espaço de grande

circulação de informações acerca dos problemas ambientais (crise ambiental), como ressalta

Schwaab (2011, p.9) “A credibilidade em poder dizer, atribuída ao Jornalismo, é assumida

[...] como elemento que autoriza um lugar de competência diante de problemáticas centrais da

contemporaneidade, como a questão ambiental”; e por a enunciação jornalística ter a

pretensão de transmitir “a verdade" de modo objetivo (CORREIA, 2009).

Selecionamos, para a análise, uma notícia que foi publicada em janeiro de 2016, por

dois famosos portais brasileiros de jornalismo on-line, o “uol.com” e a “globo.com”.

Instâncias midiáticasque estão entre os sites de conteúdo de notícias mais acessados do Brasil,

alcançando audiência superior a respectivamente 50 e 38 milhões de visitantes por mês

(MIZUKAMI, 2014). Desta forma, a notícia foi consumida por um número representativo de

pessoas.

Procedemos à análise inspirados por alguns princípios da Teoria ator-rede. Seguindo

a perspectiva sugerida por Latour, tentamos acompanhar as associações que atores humanos e

não-humanos instauram entre si. Para o filósofo um ator/atuante é tudo o que tem agência,

deste modo, o ator não se define pelo que ele faz, mas sim pelos efeitos do que ele faz.

(LATOUR, 2012). Como porta de entrada para análise escolhemos uma entidade (o plástico)

que define, ordena, classifica, organiza, compõe e distribui vários tipos de agências de

diferentes maneiras.

O PLÁSTICO É NOTÍCIA: A CRISE AMBIENTAL

Como se “fisga” a atenção do leitor em uma manchete? A resposta é simples, com

uma isca... no caso da notícia abaixo (Figura 1): os oceanos, os peixes, o plástico e a data de

2050 (que está logo ali). Instaura-se de imediato um alerta, que provocam em nós uma

sensação de angústia, insegurança e medo, mas também impela a agir, frente a eminência do

desastre (GARRÉ; VIEIRA; HENNING, 2014).

Figura 1 – Notícia publicada em 20 de janeiro de 2016 na “globo.com”5

Fonte:http://g1.globo.com/natureza/noticia/2016/01/oceanos-terao-mais-plasticos-do-que-peixes-em-2050-diz-

estudo.html

5 A mesma notícia foi publicada no dia 19 de janeiro de 2016 no “uol.com”. Disponível em: <https://noticias.

uol.com.br/meio-ambiente/ultimas-noticias/redacao/2016/01/19/oceanos-terao-mais-plasticos-do-que-peixes-

em-2050.htm>.

O plástico foi a matéria-prima que inovou a indústriano século XX, maleável, de

custo baixo (ou seja, muito rentável), durável (até demais) e com diversas aplicações, seus

limites atuais são bem difíceis de definir, sendo essencial para o fronte de

modernização(tomado como sinônimo de desenvolvimento). Mas como veremos o plástico

também é um ótimo exemplo de como estamos atados a relações incertas, instáveis e frágeis

em Gaia, essa noção nos ajuda a compreender esta Terra que parece reagir às nossas ações.

Reagir, não no sentido de uma divindade, um ser sensível que quer se vingar de nós, mas

como uma associação intrincada de elementos heterogêneos, que ao sofrer alteração em um de

seus vínculos, gera ondas de ação que não respeitam quaisquer fronteiras tradicionais,

deixando-nos evidente que não existe um agente, seja ele humano ou não-humano, que esteja

isolado do restante da existência (LATOUR, 2013a).

Como podemos observar na foto trazida pela notícia ꟷ que nos mostra uma camada

de plásticos diversos flutuando na superfície da Baía de Hanauma, no Havaí, no ano de 2008,

local que faz parte de uma área de cerca de 1,3 milhão de quilômetros quadrados no oceano

Pacífico, conhecida como a "Grande Mancha de Lixo do Pacífico" ꟷ após algumas décadas de

demasiada produção e consumo do plástico, esse produto “milagroso”, por meio de uma

cascata contingente de eventos imprevistos foi capaz de consequências espantosas. Isso

chama nossa atenção para o fato de Gaia ser ao mesmo tempo exígua e frágil, e, também

suscetível e implacável, podendo assumir a aparência de uma potência ameaçadora

(DANOWSKI; VIVEIROS DE CASTRO, 2014).

O uso maciço de plásticos é tamanho que os oceanos abrigarão mais detritos plásticos do

que peixes em 2050 [...]. O sistema atual de produção, utilização e descarte de plásticos tem

efeitos negativos importantes: de 80 a 120 bilhões de dólares de embalagens plásticas são

perdidos anualmente. E além do custo financeiro, sem nada em troca, os oceanos terão mais

plástico do que peixes (em peso) até 2050.6

O plástico que, por um viés moderno, parecia um objeto inanimadodo mundo natural,

um objeto limpo, como diz Latour (2004), ganha status de agente político, com capacidade

deativar toda uma redede outras agências emaranhadas a ele, colocando em movimento

políticos, empresários, mídia, ativistas, cientistas etc. A notícia nos dá indícios do enredo

complicado e confuso que cercam os problemas ambientais, as teias complexas de relação e

colaboração da dupla humano-não-humano (LATOUR, 2013a), que neste caso, em especial, 6 Os recortes das notícias são trazidos em itálico e espaçamento simples, para diferenciá-los do restante do

texto.

se dá por meio de um imbróglio de química, técnica, de moral, de política e especialmente de

economia.

Ao seguirmos o rastro da fonte da informação, o Fórum Econômico Mundial (World

Economic Forum – WEF) em Davos, Suíça, como retrata a manchete, percebemos que o

plástico é capaz de mobilizaruma extensa rede. O fórum reúne os principais líderes

empresariais e políticos, assim como intelectuais e jornalistas selecionados para discutir as

questões mais urgentes enfrentadas mundialmente, essa assembleia política por sua vez baseia

as informações ꟷ que são trazidos na notícia ꟷ em um relatório “The new plastics economy

rethinking the future of plastics”7. Produzido em associação com Ellen MacArthur Foundation

(EMF), uma instituição de caridade britânica que tem como objetivo declarado inspirar a

geração a repensar, re-projetar e construir um futuro positivo através do quadro de uma

economia circular.

O documento em questão, com a força de inúmeros aliados ꟷ ONGs ambientalistas,

o último relatório do Painel Intergovernamental para Mudança Climática (IPCC) da ONU,

agências governamentais, multinacionais, além de especialistas de diversos campos de

pesquisa de universidades renomadas ꟷ aponta que o fluxo de plásticos para os oceanos

poderá aumentar numa ordem de grandeza nas próximas décadas, colocando o ano de 2050

como um marco crítico da situação. De material revolucionário o plástico se transformou em

um material problemático por insistir em aparecer em locais não desejados.

Em termos de Latour (2004), podemos dizer que o plástico passou de “matters of

fact”, uma questão sobre um fato rígido/estabelecido e naturalizado, para “matters of

concern”, uma questão de interesse/preocupação, algo com atributos ativos e altamente

discutível (LATOUR, 2004, 2012).

Sigamos desdobrando as agências manifestadas por este matters of concern. Ao

analisar um pouco mais o relatório, observamos que ele foi feito sob a égide de um Projeto

chamado MainStream8, uma iniciativa global multi-indústria lançada em 2014 pelo WEF, que

tem por objetivo acelerar a inovação focada nos negócios e ajudar a expandir a economia

circular, sendo liderado por diretores executivos (CEOs) de nove empresas globais: Averda,

7 Disponível em: <https://www.ellenmacarthurfoundation.org/assets/downloads/publications/EllenMacArthur

FoundationTheNewPlasticsEconomy_19012016.pdf>.

8 Termo em inglês que denota uma tendência, estilo, movimento ou moda dominante. A tradução literal de

mainstream é "corrente principal" ou "fluxo principal".

BT, Desso BV, Royal DSM, Ecolab, Indorama, Philips, SUEZ e Veolia. Como guardiões do

progresso, os autodenominados porta-vozes do “universal”9, certos de seu acesso privilegiado

à Natureza ꟷ que por um viés econômico é constituída como um regime de bens (LATOUR,

2004) ꟷ, buscam encarnar a vida política do futuro que preze por economia circular, que por

princípio busque superar um modelo de pensamento linear para uma oportunidade atraente de

aumentar a eficácia sistêmica da economia do plástico, rumo a padrões de produção e

consumo regenerativos, visando um crescimento sustentável,mas sempre comprometidos com

o avanço implacável da frente de modernização.

Convencidos pela narrativa de modernização e emancipação, tornam cada vez mais

explícita a fragilidade dos sistemas de apoio à vida que tornam possíveis as suas "esferas de

existência" (LATOUR, 2011a). Afastados de suas próprias práticas, os modernos vivem como

se os domínios natureza-cultura estivessem firmemente estabelecidos, mas quando deparam-

se com “matters of concern”, isso muda abrutamente. Essa associação complicada de seres,

nações, indústrias, inovações, consumidores, instituições, deixam cada vez mais evidente que

os problemas ambientais não tratam da Natureza.

O fórum estima necessária“uma refundação total das embalagens e dos plásticos em geral” e

a busca por alternativas ao petróleo como material de base para sua produção - pois caso

nada mude, o plástico representará 20% da produção petroleira em 2050.[...]Os modelos de

produção e consumo lineares são cada vez mais questionados [...].

Com vista a certeira diminuição dos recursos fósseis, passa-se a busca por materiais

biossintéticos em substituição ao plástico, ativando toda uma cadeia de pesquisas. Materiais

de reserva bacteriana tais como poli-hidroxialcanoatos (PHA), de cana-de-açúcar, de milho,

são algumas das alternativas que vem sendo levantadas em consideração, mas por enquanto

nenhum tem potência para ocupar o lugar do plástico derivado do petróleo na indústria. Fato

que faz ganhar força a reciclagem deste material.

Neste ponto o plástico já não é um simples objeto moderno inerte e estável, mas um

ator-rede, que pode afetar até mesmo os atuais modelos de produção e consumo, como vimos

acima. As misturas crescem, as vinculações e implicações aumentam etorna-se impossível não

admitir que a objetividade moderna perde sua força (LATOUR, 2013a). Não há mais

ambiente sob a qual a humanidade age. Todo o não-humano que era considerado na

9 Mas que na verdade agem “para o bem-estar, o prazer ou boa consciência de um pequeno número de

humanos, cuidadosamente selecionados [...]” (LATOUR, 2004, p.45).

Constituição moderna passivo agora é ativo e móvel, dotado de capacidade (agência) para

instaurar as mais diversas lutas científico-políticas, tal como os seres humanos, “os adereços

mais humildes agora desempenham um papel, como se não houvesse mais distinção entre os

personagens principais e o ambiente em torno deles” (LATOUR, 2013a, p.63, tradução

nossa).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O modo como realidade aparece, em sua complexidade e hibridismo, escancara a

insuficiência da dicotomia homem/natureza. A súbita colisão de Gaia com os humanos, como

destacam Danoski e Viveiros de Castro (2014, p.26), “contribui de maneira decisiva para o

desmoronamento da distinção fundamental da episteme moderna”. Fica cada vez mais

evidente essa enorme sensação de incompatibilidade entre o mundo por nós vivenciado, em

que multiplicam-se quase-sujeito10, onde estamos atados e agenciados por uma multiplicidade

de elementos e entidades heterogêneas, e o mundo projetado pela Constituição Moderna, onde

haveria apenas entes puros. Nunca conseguimos, afinal, separar totalmente e a priori a

produção comum dos domínios Natureza e Sociedade/Cultura (LATOUR, 1994).

O conceito de “Gaia” parece servir, assim, como ferramenta para realizar um

“empreendimento de deslocamento do pensamento, que permita a emergência de novas

possibilidades, de caminhos outros” (GALLO; VEIGA NETO, 2007, s/p). Como argumenta

Stengers (2014), Gaia tem a urgência de induzir pensamento e sentimento de uma maneira

particular, em um processo de reimaginar ativamente um mundo não-antropocêntrico. Ela

pode estreitar a nossa conexão e experiência coletiva, por meio de outros sensores (não

modernos). Mas temos que tomar cuidado para o risco de um pensamento holístico que

despreze a multiplicidade de Gaia, como nos alerta Latour (2014b), se a tratarmos como uma

totalidade, como tem feito os críticos de Lovelock, ela será apenas mais uma possibilidade de

recarregar as formas modernas de pensar.

Pensar as questões ambientais por meio de Gaia exige, portanto, o fim da visão

moderna que opõe homem e natureza. Latour (2013a) vê em Gaia a oportunidade de

10 Latour usa o termo “quase-sujeitos” ou “quase-objetos” para se referir aos híbridos de humanos e não-

humanos, uma vez que em relação eles “não ocupam nem a posição de objetos que a Constituição prevê para

eles, nem a de sujeitos” (LATOUR, 1994, p. 54).

ampliarmos o repertório estreito de emoções e sensações com as quais entendemos as

questões ambientais, uma oportunidade de nos afastamos da razão desanimada/desencarnada

que levou diretamente à atual crise ecológica: a ideia de que existe, de um lado, a Natureza, e

do outro lado os seres humanos. Com Gaia, como em uma fita de Möbius, não há mais nem

dentro, nem fora. Não sabemos mais onde o ambiente está em relação a nós, nem nós em

relação a ele. (LATOUR, 2013a).

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