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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ARTES
LIGIA DIOCLECIO MINAMI
I T I N E R Â N C I A S :a memória entre a materialidade
e a virtualidade fotográfica
CAMPINAS 2018
LIGIA DIOCLECIO MINAMI
I T I N E R Â N C I A S :a memória entre a materialidade
e a virtualidade fotográfica
Dissertação apresentada ao Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Mestra em Artes Visuais.
ORIENTADORA: PROfA. DRA. LUISE WEISS
ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO fINAL DA DISSERTAÇÃO DEfENDIDA PELA ALUNA LIGIA DIOCLECIO MINAMI, E ORIENTADO PELA PROfA. DRA. LUISE WEISS.
CAMPINAS 2018
BANCA EXAMINADORA DA DEfESA DE MESTRADO
LIGIA DIOCLECIO MINAMI
ORIENTADORA: PROfA. DRA. LUISE WEISS
MEMBROS:1. PROf(A). DR(A). Luise Weiss 2. PROf(A). DR(A). Ivanir Cozeniosque Silva3. PROf(A). DR(A). Livia Afonso de Aquino
Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas.
A ata de defesa com as respectivas assinaturas dos membros da banca examinadora encontra-se no processo de vida acadêmica da aluno(a).
DATA DA DEfESA: 29/01/2018
Para minha mãe, por tornar possível a travessia.
A G R A D E C I M E N T O S
Luise Weiss, pela orientação, confiança, liberdade e sensibilidade
Lívia Aquino, por aceitar acompanhar a pesquisa desde a qualificação, pelas provocações e libertadores apontamentos
Ivanir Cozeniosque, pela presença na banca e por todos os cuidados
Aos suplentes da banca, Lygia Eluf e Milton Turcato
Wall e a equipe da Gaia, por toda atenção
Kenji Ota, mestre querido sempre presente
Patrícia Yamamoto, amiga e cúmplice acadêmica
Miguel Chikaoka, por ensinar a fotografia como pretexto para acessar afetos
Dona Edite, por fazer possível esta pesquisa de várias maneiras
Crisinha, amiga-irmã de todos os momentos
Simone Peixoto, irmã mais velha querida, pelas conversas, cumplicidades e o sofá sempre disponível
Luciana Bertarelli e Marcio Elias Santos, pela acolhida, amizade e carinhos
Betânia Barbosa, tão longe mas tão perto
Adriana Issobata, por topar participar das loucuras fotográficas
Julia Goeldi, pelas conversas de ateliê e disponibilidade investigativa
Lívia Gabbai, Paula Gabbai, Renato Hofer e Manu Romeiro, queridos de conversês, pedaladas e trocas criativas
Clarisse Romeiro, que me fez pirilampa ao mergulhar em azuis
Danilo Perillo, sempre disponível e generoso
fernanda Grigolin, que me ajudou a parir Peneira
Simone Wicca, pelo inesquecível pão caseiro, conversês e desafios lançados
Xilomóvel, pela confiança e por sempre fazerem acreditar que um mundo melhor é possível
A toda a família campineira, que sempre me faz querer atravessar a estrada
R E S U M O
A construção da memória por uma fotografia itinerante, errante entre pixels
da captura digital e a impressão em cianotipia, transitando por suportes
que a tornam permeável: contaminada pelos rastros gráficos da monotipia
na impressão em papeis e tecidos, pelo movimento virtual do vídeo em
time-lapse, pela narrativa das páginas do livro. Travessia que perscruta o
tempo no fotográfico, condensado pelo instantâneo digital, dilatado pela
impressão artesanal, atravessado pela sequencialidade do livro.
PALAvrAs-ChAvE: fotografia, fotografia – processos de impressão, me-
mória, monotipia, vídeo, livro de artista, arte e fotografia.
A B S T R A C T
The construction of memory by an itinerant photography, placed between
digital capture and cyanotype printing, passing through media that makes
it permeable: contaminated by the graphic traces of monotype on paper
and tissue printing, by the virtual movement of time-lapse video, by the nar-
rative of the the book’s pages. Course that addresses time in photography,
condensed by the digital snapshot, expanded by the handmade printing,
crossed by the sequentiality of the book.
KEY WOrD: photography, photography - printing processes, memory, mo-
notype, video, artist’s book, art and photography.
L I S TA D E I M A G E N S
1 . Michael Wesely, Câmera Aberta, Instituto Moreira Salles, IMS, São Paulo, Avenida Paulista, 2017. p. 11
2 . Michael Wesely, Câmera Aberta, The Museum of Modern Art, MOMA, New York, 2004. p. 11
3 e 4 . Michael Wesely, Stilleben, 2001-2007. p. 11
5. Hiroshi Sugimoto. Theaters, Hollywood Cinerama, Los Angeles, 2003. p. 13
6. Hiroshi Sugimoto. Theaters, Movie Theatre-UA Playhouse, New York, 1978. p. 13
7. Hiroshi Sugimoto. Theaters, Metropolitan Orpheum, Los Angeles, 1993. p. 13
8. Hiroshi Sugimoto. Theaters, Movie Theatre, Canton Palace, Ohio, 1980. p. 13
9. Hiroshi Sugimoto. Photogenic Drawing, Roofline of Lacock Abbey, most likely, 1835-1839, 2009. p. 13
10. Hiroshi Sugimoto. Photogenic Drawing, Buckler fern, march 6, 1839 or earlier, 2008. p. 13
11. Robert Rauschenberg and Susan Weil, Female Figure, 1950. Exposed blueprint paper (266,7 x 91,4 cm). p. 16
12. Robert Rauschenberg, Bastidores do processo, revista Life, 1951. p. 16
13. Robert Rauschenberg, Bed, 1955, Oil and pencil on pillow, quilt, and sheet on wood supports (191,1 x 80 x 20,3 cm). p. 16
14. Robert Rauschenberg, Storyline from Ground Rules, 1997, Aquatint (120,7 x 84,8 cm). p. 16
15. Kenji Ota, Semente de Cacau Bravo, 1993, Van dyke brown sobre papel artesanal. (48 x 66 cm). p. 18
16. Kenji Ota, Tectônicas, 1999. Van dyke brown e cianotipia sobre tecido. (100 x 120 cm). p. 18
17. Cris Bierrenbach, Sem Nome, 2003, Daguerreótipo (25 x 19 cm). p. 23
18. Cris Bierrenbach, The Blue Lines of My Life, Geral e detalhe, 1995, cianotipia sobre papel arroz (215 x 25 cm). p. 23
19. Anna Atkins, British Algae: Cyanotype Impressions, 1843-1853, fotogramas em cianotipia. p. 43
20. Blueprints, cópias em cianotipia de projetos de Joaquim Cavalheiro.Projeto para construção de casas na Travessa Joli, Brás, 1913. Projeto para construção de casa na Rua Conselheiro Carrão, 126, Bela Vista, 1913. fonte: Série Obras Particulares. AHMWL-SP p. 44
S U M á R I O
1] INTRODUçãO | PARTIDA .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11
2] SOBRE O TEMPO .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 14 A EFEMERIDADE E O FOTOGRáFICO .................................... 14
3] PERCURSO .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17 3.1) DIáLOGOS ................................................................. 17
3.2) ARTESANIAS ............................................................... 31
3.3) CIANOTIPIA ............................................................... 43
3.4) INTERSECçÕES E TROCAS .......................................... 48
3.4) TEMPO E MOVIMENTO ............................................... 54
4] ITINERÂNCIAS .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 70 IMPERMANÊNCIA: VIRTUALIDADE E MATERIALIDADE ...... 70
5] MEMÓRIAS .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 84 DOS AFETOS, CAMADAS E MATERIALIDADES ................... 84
6] A TRILHA INCESSANTE .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 90
7] BIBLIOGRAFIA .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 93
8] APÊNDICE|DIáRIO .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 96
9] APÊNDICE|GLOSSáRIO .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .157
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1 ] I N T R O D U ç ã O | PA R T I D A
Dias e noites vagueiam pela eternidade. Assim são os anos que vêm e vão como viajantes que lançam seus barcos através dos mares ou cavalgam pela
terra. Muitos foram os ancestrais que sucumbiram pela estrada. Também tenho sido tentado há muito pela nuvemovente ventania, tomado por um
grande desejo de sempre partir. (Matsuo Bashô)
Com estas palavras Matsuo Bashô1 se lançava, há quatro séculos atrás,
em peregrinação poética e espiritual às terras do norte do Japão. Em seu diário, nar-
rativas em prosa (haibun) rodeiam haikais, misturando real e fantástico, conduzindo a
metáfora da travessia através de um encadeamento de imagens descritas pela síntese
poética de sua escrita.
Há cerca de cinco anos atrás, este mesmo parágrafo me inspirava, dando iní-
cio ao que seria uma longa jornada, atravessando a imagem fotográfica e seus desdobra-
mentos em fazeres calcados no entendimento da transitoriedade do viver, na eternidade
dos ciclos, cruzando numerosas transformações pelo caminho da impermanência.
Que imagens são essas que se valem do gráfico e do fotográfico em cole-
ções de rastros, em camadas de gestos, de afetos, de memórias? O que esconde essa
itinerância incansável através de pixels, químicos e pigmentos? Que síntese é essa que
guarda em sua aparente simplicidade o complexo entendimento da vida?
A presença constante de um processo químico fotossensível que precipita
imagens – por exposição à radiação solar – em azuis celestes, os gestos envolvidos no
processo de produção destas imagens, os pixels-movimento do vídeo tornados matéria
através da impressão artesanal, as imagens transformadas pelas texturas diversas dos
suportes, as flores e folhas decalcadas em pegadas se encontrando, na impressão,
com o imatérico do digital – tudo são sobreposições que contam sobre deslocamentos
dessas imagens, que carregam o desejo de eternidade de uma memória perene, frágil.
São movimentos em direção ao impossível do imutável, reconhecendo, nestas itinerân-
cias, a transitoriedade da matéria, o ocaso das formas que nos rodeiam: folhas que
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caem e secam, flores que murcham, o corpo que envelhece.
No relato deste percurso, duas vozes contam sobre a travessia: uma delas
mais racional, fruto da decantação do pensamento, do intervalo entre as experiên-
cias do fazer. Dialoga com reflexões de artistas, escritores, filósofos, pensadores da
imagem – gerando desdobramentos para a pesquisa a partir de um exercício onde a
consciência sobre o trabalho emerge aos poucos, retornando em maior clareza e con-
sistência sobre rumos a serem perseguidos na pesquisa.
A outra nasce do calor do embate criativo durante o próprio trabalho, extra-
ída do diário de processos, transcrita e editada para este relato. Uma voz que beira o
devaneio, mergulhada, por vezes, nas aflições e dificuldades que permeiam o processo
criativo durante este parto do interno para a materialidade da obra, do existir para o
outro, para o mundo. Voz que oscila: por vezes em grito aturdido, por vezes em calma
quase silenciosa. Conversa, durante a travessia, com a síntese poética dos haikais e
haibuns de Bashô, onde “o não dito tem valor quase sempre maior do que aquilo que
é possível explicitar”, numa intuição que “se concretiza em frases que se esvaem em
volutas de fumaça, em palavras que preferem aludir a indicar.” (SICA, 2017, p. 27)
No formato impresso deste relato, estas duas vozes se constituem em dois
volumes independentes, evidenciando, talvez, uma sensação de dualidade, de certa
angústia: dual em vozes, entre produzir um trabalho visual e outro escrito, entre poético
e racional, entre matérico e virtual, entre partidas e chegadas, entre prazer e dor, entre
estático e movimento, entre vida e morte.
Talvez seja a partir da investigação destas extremidades que a consciência
de unidade venha emergir, num relato que busca transcender as divisões da forma en-
quanto discorre sobre os percursos do fazer, num movimento que se pretende mistura,
embaralhamento, fusão: da poética à poesia.
Quando falo de poesia, não penso nela como gênero. A poesia é uma cons-ciência do mundo, uma forma específica de relacionamento com a realidade. Assim, a poesia torna-se uma filosofia que conduz o homem ao longo de toda a sua vida. (TARKOVSKY, 1998, p. 18)
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2 ] S O B R E O T E M P O
A EFEMERIDADE E O FOTOGRáFICO
A esse quem o poderá prender e fixar para que pare um momento e arrebate um pouco do esplendor da eternidade perpetuamente imutável, para que veja como a eternidade é incomparável, se a confronta com o tempo que nunca pára? Compreenderá então que a duração do tempo não será longa, se não se compuser de muitos movimentos passageiros. (AGOSTINHO, 1988, p. 276)
A mudança, se consentirem em olhar para ela diretamente, sem véu interpos-to, logo lhes aparecerá como o que pode haver de mais substancial e dura-douro no mundo. Sua solidez é infinitamente superior à de uma fixidez que não passa de um arranjo efêmero entre mobilidades. (BERGSON, 2006, p. 17)
fotografia... seria esta a definição adequada a referenciar um trabalho cujo
hibridismo por vezes escapa às clássicas definições do meio?
A instantaneidade da captura fotográfica em sua vertente digital, o tempo
estendido proporcionado pelas artesanias da impressão fotossensível da cianotipia –
técnica que remonta aos primórdios da fotografia –, a duração perscrutada na edição do
vídeo. São ações que refletem inquietações oriundas da consciência da passagem de
um tempo que nos escapa, dada a incapacidade do humano em reter na memória todas
as pequenas transformações observadas em si e em seu entorno.
De dentro da efemeridade do tempo, comumente sofremos da angústia de
nos apegarmos a episódios, pessoas, na ilusória crença de que ao “congelarmos” este
movimento incessante pelo seu registro, estas preciosas sensações às quais nos afer-
ramos estarão eternamente presentes dentro daquela imagem-afeto que por vezes car-
regamos como um amuleto, nos trazendo o consolo da lembrança.
[...] na fotografia, morte e eternidade são inextricáveis, como as duas faces de uma moeda. O instante arrancado do continuum, que o registro fotográfi-co eterniza, é um fragmento do vivido que se esvaiu. A eternidade do registro acaba funcionando como prova irrefutável de que a vida, em cada milésimo de instante, está grávida de morte. Porque é por natureza provisório, transi-tório, fugaz, cada momento vivido incuba sua própria morte. Sendo capaz de congelar o instante num flagrante eterno, a fotografia acaba apontando para o avesso do eterno: a irrepetibilidade e morte irremediável que está inscrita na passagem de cada instante. A vida aparece para morrer a cada aparição. (SANTAELLA, 1996, p. 179-182)
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Um retrato da convivência com a consciência da sensação da perda se deli-
neia: a observação da passagem do tempo para o outro coexistindo com o próprio tem-
po se esvaindo. Morremos um pouco todos os dias, somos todos feitos de pequenas
transformações, algumas palpáveis, visíveis, outras escondidas no interno do sentir.
Na fotografia, a busca pela eternização destes fugazes instantes guarda em sua nar-
rativa o turbilhão de ocasos que nos cercam sem que muitas vezes nos demos conta,
seja pelas limitações de nossa percepção, seja pelo poder anestesiante que a rotina
exerce sobre nosso cérebro. A memória não se constitui apenas de recordações, mas
se apoia numa avalanche de esquecimentos. A fotografia vem alicerçar esta precária
edição de lembranças performada por nossos afetos.
A utilização da “caixa-preta” (fLUSSER, 2011) fotográfica neste contexto, a
explora também como ferramenta de registros automatizados e contínuos, a dar conta
desta lacuna da memória em guardar e organizar instantes em sequência, rearranjado-
-os em vídeo, em time-lapses1 que em poucos minutos condensam dias – instantes acu-
mulados que denunciam as lentas e imperceptíveis efemeridades de nosso entorno.
Os processos de impressão fotográfica por contato vêm humanizar a relação
com estes registros mecanizados, permitindo, no longo tempo de artesania exigido
pela impressão, a apreensão desta imagem pelo tato e pelo gesto, para além da visão
– proporcionando a dilatação do instante fotográfico abordado durante este ciclo.
O conjunto destes recursos resulta na criação de um tempo particular e cir-
cular, feito de imagens que se alternam entre a virtualidade da captura digital, a busca
da concretude durante as impressões por processos gráficos e fotográficos arcaicos e
a recaptura para o mundo virtual, ora transformadas em vídeo e duração, ora em ins-
tantâneos digitais – que podem, eventualmente, se materializar novamente em outros
suportes narrativos, como o livro.
Continuamente o tempo se condensa e se dilata na produção desta imagem
itinerante, que vaga por pixels, químicos e pigmentos com diferentes plasticidades,
constantemente transmutada, mas sempre inteira em sua essência.
Em diversos momentos desta investigação, retratos de familiares carrega-
1 Em GLOSSÁRIO, p. 106.
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dos de densidade afetiva se alternam com vestígios de ocasos da natureza, saba2:
folhas secas, flores que murcham, concretudes que se decompõe e deixam seus teste-
munhos em rastros fotoquímicos, depósito de pigmentos e pixels animados, na cons-
tatação da inevitável impermanência da matéria, do tempo, do sentir.
Talvez, decantadas estas investigações, a criação deste espaço repleto de
imagens-sensações venha a se tornar uma espécie de mnemoteca pessoal, uma cons-
telação de imagens detonadora de lembranças.
Talvez o futuro destas imagens-objeto, vídeos e livros, desta intensa produção
de passados, acabe por constituir uma espécie de sítio arqueológico de recordações. Sem
dúvida, soterradas de camadas: de gestos, de químicos, de pixels, de afetos.
Quem pretende se aproximar do próprio passado soterrado deve agir como o homem que escava. Antes de tudo, não se deve temer voltar sempre ao mesmo fato, espalhá-lo como se espalha a terra, revolvê-lo como se revolve o solo. Pois “fatos” nada são além de camadas que apenas à exploração mais cuidadosa entregam aquilo que recompensa a escavação. [...] uma verdadeira lembrança deve, portanto, ao mesmo tempo, fornecer uma imagem daquele que se lembra, assim como um bom relatório arqueológico deve não apenas indicar as cama-das das quais se originam seus achados, mas também, antes de tudo, aquelas outras que foram atravessadas anteriormente. (BENJAMIN, 1997. p. 239)
2 “Considera-se que o tempo, per se, ajuda a tornar conhecida a essência das coisas. Os japoneses têm um fascínio especial por todos os sinais de velhice. Sentem-se atraídos pelo tom escurecido de uma velha árvore, pela aspereza de uma rocha ou até mesmo pelo aspecto sujo de uma figura cujas ex-tremidades foram manuseadas por um grande número de pessoas. A todos esses sinais de uma idade avançada eles dão o nome de saba, que significa, literalmente, ‘corrosão’. Saba, então, é um desgaste natural da matéria, o fascínio da antigüidade, a marca do tempo, ou pátina. Saba, como elemento do belo, corporifica a ligação entre arte e natureza.’’ (TARKOVSKY apud Ovchinnikov, 1997, p. 66)
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3 ] P E R C U R S O
3.1) DIáLOGOS
Pertence verdadeiramente ao seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo, aquele que não coincide perfeitamente com este, nem está adequado às suas pretensões e é, portanto, nesse sentido, inatual; mas, exatamente por isso, exatamente através desse deslocamento e desse anacronismo, ele é capaz, mais do que os outros, de perceber e apreender o seu tempo. [...] Aqueles que coincidem muito plenamente com a época, que em todos os aspectos a esta aderem perfeitamente, não são contemporâneos porque, exatamente por isso, não conseguem vê-la, não podem manter fixo o olhar sobre ela. (AGAMBEM, 2009, p. 59)
A partir das considerações de Giorgio Agambem, é possível pensar que este
olhar crítico sobre o seu tempo e, portanto, contemporâneo, se clarifica com esse
deslocamento do presente e uma abertura ao anacronismo, pois desta forma o sujeito
conseguiria olhar para o tempo presente sem uma fruição inquestionante, sem estar
“ofuscado” pelo excesso de luzes do presente. “Contemporâneo é aquele que recebe
em pleno rosto o facho de trevas que provém de seu tempo.” (Idem, p. 63)
A partir desta espécie de “anacronismo crítico”, é possível pensar em al-
guns diálogos inspiradores deste trabalho, destacados por representarem pontos de
contato tidos como essenciais nesta pesquisa. Além da relação anacrônica sublinhada
pelo uso de técnicas e suportes comercialmente defasados, este grupo de artistas faz
destas escolhas elementos essenciais da poética dos trabalhos aqui elencados. fo-
tógrafos como Michael Wesely ou Hiroshi Sugimoto se situam neste território, e ainda
que o resultado estético do trabalho final seja de inquestionável beleza, o processo
criativo e a abordagem do tempo na fotografia é o foco dessas escolhas anacrônicas
– embora frequentemente isso só seja percebido por um olhar mais experimentado e
atento.
A pedido do MoMa (Museu de Arte Moderna de Nova Iorque), o fotógrafo
alemão Michael Wesely fez uso de câmeras com chapas de filme 4x5 polegadas para
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registrar, com exposições que chegaram a somar três anos de duração, o projeto de
renovação de seu edifício, de 2001 a 2004. São fotografias que condensam, em uma
única tomada, os inquietantes detalhes e sobreposições ocorridos nesse longo perí-
odo de construção. Esse trabalho vem sendo aperfeiçoado desde a década de 1990,
registrando reestruturações urbanas como a de Potsdamer Platz, em Berlim, e, mais
recentemente, em São Paulo, na construção da sede do Instituto Moreira Salles, na Av.
Paulista. Numa outra vertente, Wesely explora o que poderia se aproximar de um regis-
tro de naturezas-mortas. Numa única chapa, fotografa buquês de flores em exposições
que duram dias, registrando numa única imagem todos os estágios de sua efemerida-
de. A síntese fotográfica se opera acumulando numerosas camadas de tempo e de re-
presentação do corpo-espaço numa única chapa, construindo imagens de aspecto oní-
rico, povoadas de rastros, mas que, em verdade, carregam um forte caráter documental
ao registrar as modificações ocorridas durante a passagem do tempo. Sinto o diálogo
com esta imagem que carrega o documento, mas que ao mesmo tempo se dobra à
sua potência onírica e ficcional durante a apreensão de seu aspecto, provocando certa
confusão tomada de fascínio nas tentativas de entendimento destas sobreposições de
camadas de tempo.
Já o fotógrafo japonês Hiroshi Sugimoto provoca: “Suppose you shoot a
whole movie in a single frame”. E responde: “You get a shining screen.” foi a partir
desta proposição que, entre as décadas de 1970 e 2000, criou Theaters, uma série
de fotografias de cinemas norte-americanos utilizando chapas de filme preto e branco
em câmeras de grande formato, com exposições com a duração dos filmes exibidos
– e que resultavam em imagens dos majestosos cinemas com a tela inteiramente lu-
minosa. Novamente uma síntese se opera, mas neste caso, resulta em apagamento:
os filmes mostrados na tela, com sua luminosidade constante, acabam por “apagar” a
informação contida nas telas por excesso de incidência de luz no suporte fotográfico.
Num contraponto a esta luz ofuscante, é o espaço que abriga as telas – e que na pro-
jeção dos filmes não é sequer notado por sua escuridão – o que vem à luz. O tempo
do filme, neste caso, vem revelar o que estava “escondido” em suas bordas. O espaço
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MICHAEL WESELY
Câmera Aberta
Instituto Moreira Salles, IMS, São Paulo, Avenida Paulista, 2017
The Museum of Modern Art, MOMA, New York, 2004
Stilleben 2001-2007
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HIROSHI SUGIMOTO
Theaters
Hollywood Cinerama, Los Angeles, 2003; Movie Theatre-UA Playhouse, New York, 1978; Metropolitan Orpheum, Los Angeles, 1993; Movie Theatre, Canton Palace, Ohio, 1980.
Photogenic Drawing
Roofline of Lacock Abbey, most likely, 1835-1839, 2009; Buckler fern, march 6, 1839 or earlier, 2008.
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reina estático, em detrimento das imagens do filme, que no entanto acabam congeladas
e inacessíveis nessa imagem-duração. Já em Photogenic Drawing, Sugimoto resgata
negativos de papel dos primórdios da fotografia feitos por William Henry fox Talbot1 e,
numa verdadeira experiência arqueológica, positiva imagens das experimentações do
cientista-fotógrafo, consideradas mal-sucedidas e sequer fixadas ou positivadas pelo
autor. Com isso, traz à tona os supostos “erros” e os desloca deste território, alçando
estas imagens a um trabalho a ser apreendido em outro espaço discursivo que não o da
precisão técnica e científica, perseguida à época da descoberta da fotografia. No territó-
rio da arte, a reflexão sobre o processo e as escolhas feitas durante este percurso abar-
ca outros critérios, nos levando a questionar sobre o valor destas imagens tecnicamente
perfeitas e, portanto, dignas de exibição, e estas outras, rejeitadas para os parâmetros
científicos e comerciais. Um aspecto comumente abordado no uso destes processos
arcaicos da fotografia nesta pesquisa é a recusa da perfectibilidade da imagem técnica,
fazendo uso da artesania como forma de se colocar permeável aos acasos e erros, po-
tencializando novos desdobramentos criativos a partir de sua incidência.
O uso subversivo de equipamentos e suportes é uma característica comum
aos dois fotógrafos, gerando poéticas a partir de um cuidadoso rompimento das regras
recomendadas pelos fabricantes de equipamentos e insumos fotográficos, agindo “contra
o programa dos aparelhos no “interior” do próprio programa” (fLUSSER, 2008. p. 34).
Como ponto em comum com esta pesquisa, o uso de um suporte como ferramenta de sín-
tese, de desejo de condensação temporal, desta tensão entre estático X movimento que
a fotografia guarda. No caso de ambos, partindo do movimento do entorno condensado no
estático fotográfico. Nesta pesquisa, num caminho inverso, do estático fotográfico para o
movimento, no uso do time-lapse.
Em 1951, o MoMa adquire um gigantesco fotograma2 de corpo inteiro feito
em cianotipia por Robert Rauschenberg, incluindo o trabalho em sua exibição de fotogra-
fias abstratas e lançando o estudante de Black Mountain College, na Carolina do Norte,
no circuito das artes. Em abril do mesmo ano, a revista Life3 publicava uma série destes
1 Em GLOSSÁRIO, p. 106.2 Em GLOSSÁRIO, p. 106.3 goo.gl/4LffNU
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ROBERT RAUSCHENBERG
Female Figure
Robert Rauschenberg and Susan Weil, 1950.
Exposed blueprint paper (266,7 x 91,4 cm)
Bastidores do processo, revista Life, 1951.
Bed, 1955
Oil and pencil on pillow, quilt, and sheet on wood supports (191,1 x 80 x 20,3 cm)
Storyline from Ground Rules, 1997
Aquatint (120,7 x 84,8 cm)
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trabalhos performados junto a sua companheira Susan Weil, explorando a técnica com
as famosas blueprints – papeis emulsionados com químicos de cianotipia utilizados
para cópias de projetos de engenharia. Mais uma vez a experimentação promovia a
subversão do suporte, abordado das mais diversas maneiras por este artista inquie-
to, conhecido pela sobreposição de imagens e de técnicas de impressão dentro do
mesmo trabalho – e pelo uso dos próprios objetos misturados a pintura, em compo-
sições que denominou “assemblages”. Numa das mais conhecidas vertentes de seu
trabalho, a torrente de fotografias sobrepostas numa multiplicidade de camadas cria
narrativas que remetem ao cotidiano das ruas, num momento em que a pintura do
expressionismo abstrato com propostas mais herméticas reinava na cena artística. É
como se o espírito caótico das fotomontagens dadaístas do início do século revivesse
em Rauschenberg pela via das impressões, promovendo o rompimento de paradigmas
na arte vigente, carregando o banal encontrado numa simples caminhada pelo entor-
no urbano para o território da arte, numa variedade de cores e uso experimental de
técnicas de impressão que impressionam pelo vigor. Pensando no experimentalismo
no uso de técnicas e nestas imagens construídas em camadas, é possível identificar
pontos de intersecção com esta pesquisa, embora aqui este recurso se dê pela esco-
lha monocromática de resultados, ao contrário da frequente explosão de cores da obra
de Rauschenberg.
No Brasil, artistas como Kenji Ota e Cris Bierrenbach também incorporam
técnicas arcaicas em suas obras como parte integrante de sua poética e conceito.
Na série Semente de Cacau Bravo, Kenji Ota aborda o diálogo do fotográfico
com a matéria imprimindo a imagem da semente – fotografada em filme e ampliada
em filme gráfico – em van dyke brown sobre papeis artesanais produzidos pelo próprio
artista. O acaso proporcionado pelo uso do processo na sensibilização do papel – feita
com pinceis sobre superfície rugosa e irregular – é evidenciado pelas diferentes tona-
lidades na aparência da imagem, que parte da mesma matriz em suas três versões.
O resultado é uma evocação da matéria, a evidência do suporte como detonador das
imprevisibilidades incorporadas à poética. Esta mesma busca tem feito parte das pro-
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KENJI OTA
Semente de Cacau Bravo, 1993
Van dyke brown sobre papel artesanal. (48 x 66 cm)
Tectônicas, 1999
Van dyke brown e cianotipia sobre tecido. (100 x 120 cm)
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16
25
postas de impressão desta pesquisa, onde diferentes substratos acabam por alterar a
plasticidade da mesma imagem impressa, neste caso apenas explorando a cianotipia.
Em Tectônicas, o tecido e as transparências criam camadas que pela sobreposição en-
tre processos e diferentes experimentações, geram imagens com aparência rochosa, a
despeito da fluidez leve e delicada de tecidos onde foram impressas. Chama a atenção
a abertura e a busca para que os acasos se manifestem durante o processo, conforme
pode ser conferido no depoimento a seguir.
KENJI OTA | depoimento
Fale sobre este trabalho, de quando é, como surgiu?
A série se chama Tectônicas, agora todas as fotos de rochas e coisas afins
tem este nome, sejam em papel ou tecido. São de 1999. Havia ganho a Bolsa
Vitae neste ano para realizar um ensaio fotográfico com processos. A princi-
pio seriam feitos em papel artesanal. Só me lembro que quando comecei a
fazer os trabalhos nada dava certo... atribuí esta “falência” ao fato de que na
época não parava de chover em São Paulo, e creditei o desastre à excessiva
umidade do ar.
O fato é que, em determinado momento, decidi experimentar o suporte tecido
na esperança de conseguir algo, e aí começou uma grande viagem de muitas
experimentações e descobertas...
E sobre as camadas de tecido?
Todos os trabalhos se compõem pela sobreposição de três camadas de te-
cidos-imagens. A primeira a da imagem fotográfica com filme, a segunda no
modo fotograma e a terceira foi necessária apenas para fins de bloqueio de
luz porque o organdi é muito fino e transparente. Infelizmente não tive a luz
na época de aproveitar a transparência.
Quais técnicas fotográficas foram utilizadas?
Vandyke nas duas camadas e muitas vezes cianótipo, na última camada de
tecido. Este formato creio que tem muito a ver com as Tankas Tibetanas. Na
época eu frequentava um centro tibetano, e a grande sala de meditação era
decorada com muitas Tankas maravilhosas.
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Como foi o processo de cada uma das camadas?
Durante o processo de trabalho o que mais me interessou e mobilizou vários
experimentos foi fazer a segunda camada, porque em quase todos os casos
na primeira era simplesmente emulsionar o tecido e imprimir a foto. Dois
trabalhos escaparam deste modus operandi regular, um que é um fotograma
– só amassando o tecido e expondo na luz do sol, e outro que eu quis fazer
aquele metalizado semelhante ao dos papéis. Aí tive que dar uma dupla emul-
sionagem para fazer subir o metalizado.
Agora a segunda camada realmente foi algo muito interessante, experimentações
de várias formas de emulsionagem não regulares: socava o tecido num balde de
vandyke e as vezes deixava lá por uma noite. Quando o tecido teimava na regu-
laridade tonal eu socava no fixador forte para provocar clareamentos irregulares.
Quando não metalizava como eu desejava, eu intuitivamente borrifava água no
tecido exposto na luz “desenhando” relevos no tecido amassado. Enfim, na segun-
da camada é que o trabalho mais legal aconteceu.
O curioso é que depois de tantas experimentações realizadas, tudo tinha um
aspecto mineral!!
Onde foram expostos estes trabalhos?
Alguns foram expostos primeiramente na III Bienal Internacional de fotogra-
fia, em Curitiba, em 2000, depois foram para Berlim, no ICBRA Gallery, no
mesmo ano. Foi uma coletiva com vários brasileiros: Luise Weiss, Feres Kouri,
Rubens Matuck... chamou-se de Mensch Natur Technik. No mesmo ano foram
para Bobigny, que é um bairro afastado de Paris, numa exposição que era
uma espécie de intercâmbio entre Brasil e França. Os franceses expuseram
na FAAP e nós lá. A mostra chamava-se São Paulo ICI Bobigny LA-BAS.
Mais recentemente, em 2012, Eder Chiodetto expôs três tecidos novamente,
em Curitiba, na Galeria SIM.
Kenji subverte de maneira surpreendente a própria técnica a partir da forma
de executar os fotogramas, originados do próprio gesto aliado a intervenções químicas
da água e do fixador, sem um objeto físico a ser fotografado. Também chama a atenção
a produção artesanal de seu próprio substrato no trabalho em papel, amplificando a
incidência de acasos provenientes da absorção diversa do químico sobre a superfície
27
irregular. Numa escala mais tímida, a escolha pela irregularidade dos papeis artesa-
nais produzidos por um fornecedor especializado, o uso em comum da cianotipia e a
possibilidade de camadas e fusões de imagens geradas pela sobreposição de transpa-
rências em tecidos são caminhos igualmente perseguidos por esta pesquisa, que deve
sua imersão nestes processos arcaicos e várias de suas reflexões à generosidade e
possibilidade de acesso direto a este artista e seu trabalho.
Na superfície de um tríptico de daguerreótipos4, Cris Bierrenbach explora
o autorretrato através das características únicas de um dos processos fundadores
da fotografia, projetando o reflexo de suas inquietações na superfície espelhada das
imagens. O processo eleito, que tem como suporte uma chapa de metal espelhada
em prata, a um só tempo acolhe a fotografia e reflete a imagem de quem o olha,
podendo gerar reflexões sobre a própria natureza destas imagens-espelho que nos
rodeiam ou mesmo como metáfora dos relacionamentos humanos. Em outro traba-
lho, usa a cianotipia em papel arroz, em vários retalhos costurados com impressões
das linhas das mãos de diferentes pessoas, criando peças que remetem a uma col-
cha de identidades. É interessante pensar nessas imagens que remetem ao único
de cada ser humano, ao destino de cada um (quando pensamos na leitura de mãos)
atreladas a este processo de cópias também únicas, já que devido às artesanias
envolvidas, uma impressão nunca sai exatamente como a outra – mais uma vez, as
mãos, que neste caso executam o processo, entram em cena enfatizando essa iden-
tidade singular. A exploração do caráter único das cópias e o uso da representação
da identidade também tem eco na presente investigação, a partir de negativos feitos
em monotipia que, positivados em cianotipia, evidenciam estas mãos como rastro-
-identidade de um contato direto. A diversidade de experimentações em processos
tão variados como fotografia preto e branco, cianotipia, goma bicromatada, daguerre-
otipia, raio-x, vídeo ou performances, é uma das marcas registradas da artista, que
mistura técnicas arcaicas e contemporâneas, criando anacronismos que convivem
dentro da relevância de linguagem suscitada por cada uma de suas proposições –
sendo esta flexibilidade na escolha de linguagens outra característica em comum
4 Em GLOSSÁRIO, p. 106.
28
CRIS BIERRENBACH
Sem Nome, 2003
Daguerreótipo (25 x 19 cm)
The Blue Lines of My Life
Geral e detalhe, 1995.
Cianotipia sobre papel arroz
(215 x 25 cm)
17
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29
com a pesquisa em curso.
Destes diálogos, inúmeras reflexões vêm de encontro às buscas empenha-
das nesta pesquisa e, embora os resultados estéticos ou escolhas técnicas destes
diálogos por vezes não coincidam com o aqui proposto, algumas questões essenciais
chamam a atenção: vêm sugerir sobre as possíveis formas de amadurecimento concei-
tual dentro do processo criativo.
Ainda falando de anacronismos, pode-se pensar na presença de processos
primitivos como a monotipia ou mesmo na utilização da cianotipia nesta pesquisa,
como sinalizadores de uma espécie de diálogo amplificado com o objeto da memória,
sobrepondo ao tempo passado a que remetem as imagens, o tempo arcaico da origem
dos processos utilizados e seu tempo particular do fazer, numa sobreposição de cama-
das que acaba por gerar vínculos profundos com as imagens. A força destes vínculos,
nesta abordagem, é constituída a partir da consistência da experiência performada
pelas artesanias, que pedem reflexão e cuidado durante seu fazer, impregnado de ma-
terialidade e também de acasos, de respostas imprevistas das matérias trabalhadas,
muitas delas incorporadas como parte importante do trabalho, gerando desdobramen-
tos não planejados inicialmente.
As questões de dilatação e condensação do tempo também são constante-
mente observadas durante esse deslocamento da imagem entre materialidade e virtu-
alidade, bem como a transformação de seu aspecto visual sobre suportes com apelos
táteis diversos e variações tonais distintas.
Ao reincorporar estas imagens-experiência impressas ao imatérico da fo-
tografia digital, seja por meio do vídeo ou da refotografia, observa-se esta itinerância
da imagem não como negação ou perda, mas como soma de experimentações, como
reflexão atenta para operações aparentemente banais performadas em nosso cotidia-
no pelas “caixas-pretas” (fLUSSER, 2011) que nos rodeiam. Gestos prosaicos como
escanear ou refotografar uma imagem para divulgação podem, nesta proposta, alcan-
çar outros destinos que se pretendem pensativos das ricas e infinitas possibilidades
destes movimentos.
30
31
3.2] ARTESANIAS
Arcaico significa: próximo da arké, isto é, da origem. Mas a origem não está situada apenas num passado cronológico: ela é contemporânea ao devir histó-rico e não cessa de operar neste, como o embrião continua a agir nos tecidos do organismo maduro e a criança na vida psíquica do adulto. A distância – e, ao mesmo tempo, a proximidade – que define a contemporaneidade, tem o seu fundamento nessa proximidade com a origem, que em nenhum ponto pul-sa com mais força do que no presente. (AGAMBEN, 2009. p. 69)
A origem, o caos, o começo.
A questão: de que é feita minha memória?
Num primeiro momento, caminho instintivo, um mergulho em caixas e ga-
vetas empoeiradas pelo esquecimento. Escavações arqueológicas em meio a oce-
anos de recordações, objetos de evocação diversos: retratos, roupas, páginas de
diários, documentos. Objetos ordinários, tesouros extraordinários.
Dessa maneira iniciava-se uma busca. Do aparente caos dos acúmulos de
supostas insignificâncias, revolvidos os afetos de outros tempos, surgiu esse desejo
de dar forma, de entender, organizar, entrar em contato. O meio? A fotografia. Parecia
simples escanear retratos, fotografar objetos, digitalizar materialidades e imprimí-las,
reordenar. Mas o inesperado aconteceu. A insuficiência. Não bastava o documento
do fotográfico. A origem, o olhar sobre o passado, tinha que se impregnar do presen-
te. As imagens tinham que ser ingeridas, mastigadas e regurgitadas.
Da incompletude sentida no processo de captura de imagens fotográficas
digitais, um longo trajeto se delineou. Estas inquietações têm sido parte integrante
de um processo criativo iniciado em 2010 – ano das primeiras experiências com os
processos históricos da fotografia como cianótipo, van dyke e goma bicromatada,
sob orientação do mestre Kenji Ota, no bacharelado de fotografia do Senac. Através
destes processos, fui apresentada a uma forma estendida e híbrida de fazer fotogra-
fia, que enfatiza não apenas a captura, mas principalmente a impressão artesanal. A
imagem, originalmente apreendida por equipamentos digitais, via escaneamento ou
câmera, era impressa em negativo numa transparência (fotolito) e, posteriormente,
32
Abraço, 2010
Cianotipias em linho. Negativo a partir de escaneamento de fotografias. (183 x 93 cm)
33
Nuvemovente, 2012
Van dyke brown em seda esticada em moldura. Quadros sobrepostos. Negativos a partir de fotografia digital. (42 x 52 cm)
34
positivada em algum dos processos fotográficos citados.
Neste percurso, além da impressão, processos arcaicos de captura de
imagem como calotipia e daguerreotipia também foram foco de investigação: o caló-
tipo úmido em 2013, quando frequentava a Casa Ranzini e pesquisava, junto a Roger
Sassaki e fernando fortes, as possibilidades deste processo que utiliza o papel
como negativo; e os daguerreótipos, em curso ministrado por Cris Bierrenbach no
Sesc Pompeia, explorando a captura fotográfica em chapas de metal sem o recurso
da reprodutibilidade tradicionalmente associado à fotografia moderna.
Em meio a estas pesquisas, era como se operasse uma desconstrução de
meu fazer fotográfico, até então concentrado em grande parte na imaterialidade do
paradigma digital. Lentamente, alguns questionamentos surgiram a partir destas ex-
perimentações: como o imediatismo da fotografia digital operava em meu fazer? Até
onde minha insatisfação com a fotografia digital alcançava? Como estes processos
arcaicos me faziam refletir sobre isso?
Eu me dobrava à lógica processual desta fotografia de tempos estendidos
buscando entender como isso impactava meu trabalho, em meu olhar. Como as ima-
gens passaram a me olhar depois destas experiências?
Algumas frustrações nesta trajetória foram importantes para delimitar os
aspectos desta busca. Dois episódios foram especialmente marcantes.
No primeiro acontecimento, os planos eram claros: faria um calótipo1, fo-
tografia feita em câmera de grande formato, cujo suporte é artesanalmente emulsio-
nado por químicos fotossensíveis, dando origem, quando exposto à luz ultravioleta
capturada pela câmera, a um negativo em papel. Este negativo pode ser positivado
por contato – e não por ampliação – em processos igualmente artesanais como
papel salgado, albúmem, cianótipo. Mal me iniciara na técnica, queria experimentar
possibilidades: usando um delicado papel japonês de 17g como suporte, fotografa-
ria algumas penas, àquela altura tão presentes na temática de meu trabalho. Mas
além de fotografá-las, também queria inserí-las no chassi onde se acomodaria meu
negativo. Ou seja, o objeto cujo rastro seria capturado fotograficamente pela câmera
1 Em GLOSSÁRIO
35
na cena, seria também poeticamente fotografado por contato, atado ao suporte que
o registraria fotoquimicamente, numa espécie de fotograma.
A primeira frustração foi óbvia. Os calótipos são feitos a partir de quími-
cos que respondem principalmente à radiação ultravioleta, ou seja, à luz solar. Os
primeiros modelos a serem fotografados pelo processo se prostravam heroicos sob
o sol para que suas fisionomias deixassem seu registro sobre o papel. Walter Benja-
min fala dos retratos em calotipia de David Octavius Hill, feitos em um cemitério de
Greyfriars, em Edimburgo, quando observa o quanto a técnica influencia os resulta-
dos estéticos que, não raro, lhe causavam um misto de estranhamento e fascínio:
A fraca sensibilidade luminosa das primeiras chapas exigia uma longa ex-posição ao ar livre. Isso por sua vez obrigava o fotógrafo a colocar o mode-lo num lugar tão retirado quanto possível, onde nada pudesse perturbar a concentração necessária ao trabalho. […] O próprio procedimento técnico levava o modelo a viver não ao sabor do instante, mas dentro dele: durante a longa duração da pose, eles por assim dizer cresciam dentro da imagem, diferentemente do instantâneo […] (BENJAMIN, 2008, p. 96)
Em minha falta de experiência com a técnica, eu começara por evitar que
meu tema fotográfico fossem pessoas. Seria muito frustrante para qualquer vítima
de minha vontade constatar que depois de 15 minutos ou mais de imobilidade, a
imagem poderia não sair ou não ficar a contento. Esta foi a primeira concessão feita
à técnica e à minha falta de experiência. Pensei que minhas penas estariam de bom
tamanho para minhas inabilidades.
Sem tochas de luz ultravioleta artificiais para iluminar meu tema, as ima-
gens teriam que ser feitas em ambiente externo. Prevendo os ventos comuns daque-
le final de verão, prensei as penas sob um grande vidro. Após um cuidadoso posicio-
namento da câmera, evitando os reflexos advindos de meu estratagema, outro fator
agravou a tomada: o mau tempo. Passadas longas horas entre o preparo da cena a
ser fotografada e a sensibilização química do papel a servir de suporte, os ventos se
encarregaram da transformação do cenário – e do processo fotográfico. Os cálculos
fotométricos sob as condições de luz iniciais, com o céu levemente nublado, indica-
vam uma exposição de cerca de 15 minutos. Durante a tomada, com os ventos se
intensificando, as nuvens se fecharam, escurecendo drasticamente o dia e o melhor:
36
começou a chover. Um guarda-chuva teve que ser acionado, prejudicando ainda mais
a condição de luz. A exposição passou a 30 minutos, debaixo de ventos e chuva. O
resultado? A fotografia de minha frustração e impotência. O dia em que o acaso me
deu uma dura e cansativa lição.
No segundo episódio, que envolvia um daguerreótipo, já contava com mi-
nha experiência anterior de frustração. Ciente das limitações de processos que de-
mandam longa exposição e câmeras de grande formato acopladas a pesados tripés,
me conscientizei de minhas impossibilidades e me concentrei em fotografar algo
simples. Enquadrei uma cena externa, onde se podia ver uma rica gama de texturas:
um muro de tijolos de argila aparente e uma tubulação de ferro que brotava do chão
de paralelepípedos. As condições meteorológicas foram incrivelmente similares às
do calótipo frustrante, mas o sofrimento, infinitamente menor. Novamente o céu se
fechou em meio à exposição de 15 minutos. Novamente a exposição praticamente
dobrou de tempo. Saí tranquila, desta vez, sem chuva.
O problema se deu em outra etapa. Eu fazia a foto em meio a um curso
de duração determinada2. Era final de tarde. Na daguerreotipia, assim como em vá-
rios processos do início da história da fotografia, as artesanias demandam tempo e
paciência. Neste caso, um tempo ainda mais longo, ao utilizar o método menos sen-
sível desenvolvido por M. Edward Becquerel, mas um tanto menos tóxico do que o
original descoberto por Louis Jacques Mandé Daguerre3 – que fazia uso de vapor de
mercúrio durante o processo. A chapa de cobre previamente galvanizada com prata
passava por um longo preparo, que incluía polimentos ao ponto do espelhamento
e sensibilização por exposição aos vapores de iodo. Posteriormente, além do longo
tempo de exposição para a captura da foto, longo também era o tempo de revelação
da imagem latente carregada pela chapa. Coberta por uma película vermelha (Am-
berlith) para filtragem da luz, a imagem aparecia lentamente na chapa, colocada sob
fortes holofotes de luz halógena. Como o tempo era curto naquele final de dia, as
cerca de duas horas demandadas por esta etapa não foram completadas, gerando
2 Daguerreotipia com Cris Bierrenbach. Sesc Pompeia, maio de 2013.3 Em GLOSSÁRIO, p. 106.
37
Calótipo úmido em papel japonês, com fotograma de pena. (11,5 x 16 cm)
Calótipos úmidos. negativos em papel japonês . (11,5 x 16 cm)
38
uma imagem belíssima, porém, sub-revelada.
Diante da vivência anterior em calotipia, saí radiante com um lindo daguer-
reótipo subrrevelado em mãos. No entanto, esta última experiência me esclareceu
alguns limites da relação entre o tempo e os resultados que buscava.
A despeito de alguns incidentes de percurso, meu interesse pelos proces-
sos de impressão fotográfica por contato nunca esmaeceram. Neste tipo de técnica,
a captura fotográfica que irá originar a matriz a ser impressa permite a escolha da
tecnologia digital. Já havia feito algumas capturas com pinhole em filme gráfico e
positivado nestes processos, mas entendi que gostava do tempo instantâneo da
captura digital. Me agradava a liberdade para experimentar qualquer assunto com a
praticidade de uma câmera portátil e instantânea e a flexibilidade da dimensão físi-
ca deste negativo gerado digitalmente – além da transformação possibilitada pelos
tratamentos de imagem. Só sentia que após a captura da imagem, a foto não estava
concluída. Durante o processo criativo, ficou claro que a impressão era uma etapa
potente e rica a ser explorada.
Queria enxergar a itinerância desta imagem por materialidades e virtua-
lidades, perceber a resiliência de sua essência, a integridade, a despeito de todas
as camadas acumuladas neste trajeto. A oportunidade de refletir sobre as imagens
capturadas fazendo uso das mãos e de um tempo de produção mais próximo da es-
cala humana têm sido características importantes nestes processos de impressão
fotográfica com os quais tenho comumente trabalhado.
Cada processo possui características de cor, nitidez e textura próprios,
transformando o aspecto previsível associado à verossimilhança da fotografia digital
– conseguindo subverter, pelo caminho trilhado na materialização destas imagens, o
aspecto programável da fotografia que Vilém flusser tão bem definiu: “Todas as ima-
gens que o fotógrafo produz são, em tese, futuráveis para quem calculou o programa
do aparelho. São imagens prováveis” (fLUSSER, 2008, p. 34).
Transcendendo o entendimento do programa para além do que garante
o funcionamento dos dispositivos fotográficos, pode-se pensar na impressão com
39
Daguerreótipo, método Becquerel. (10 x 15 cm)
Daguerreótipo sub-exposto, método Becquerel. (10 x 15 cm)
40
o uso de processos artesanais, explorando um espaço maior para a incidência de
acasos, como uma das inúmeras formas de “utilizar os aparelhos contra seus progra-
mas.” De “lutar contra a sua automaticidade” (idem).
Surge um desejo de aprofundar essas investigações, intercalando o uso
de técnicas diversas para a criação de imagens: fotografia digital, vídeo, monotipia,
cianotipia.
Conectando todas estas técnicas, a possibilidade de trabalhar imagens
de maneira a explorar a transformação de seu aspecto verossimilhante, mas sempre
atrelado ao conceito defendido por Roland Barthes em “A Câmera Clara”, onde ele
considera que “o referente adere” (BARTHES, 2006, p. 14) na imagem fotográfica,
chamando “referente fotográfico não à coisa facultativamente real para que remete
uma imagem ou um signo, mas a coisa necessariamente real que foi colocada diante
da objectiva sem a qual não haveria fotografia” (BARTHES, 2006, p. 87) – ou seja,
não negando o potencial narrativo ficcional inerente ao fotográfico, mas reiterando a
ligação da imagem com o objeto ou sujeito fotografado.
Nesta pesquisa, esta “aderência” por vezes é expandida quase à literali-
dade, quando um processo fotográfico que permite que se prescinda do uso de câ-
meras é utilizado na produção dos fotogramas.
É interessante pensar nesta fotografia sem câmera, cujo rastro se traduz
visualmente numa quase ausência, já que apenas os contornos deste corpo-objeto
são fotografados, gerando, muitas vezes, uma imagem “vazia” das texturas deste
referente, como um espaço vago, aberto, uma lacuna.
Talvez esta pesquisa se situe entre a busca dessa aderência fotográfica
em sua forma mais extrema – por meio dos fotogramas – e a procura pelo rastro
desta textura do referente, quando do uso da monotipia para produção de negativos
a serem positivados em cianotipia. Em ambos os casos, a presença destes corpos-
-referentes é solicitada de maneira intensa, através do contato direto destes na su-
perfície a ser impressa.
Há, nestas investigações, uma inquietação constante em busca desta pro-
41
fotografia digital original; cianótipo em papel japonês; cianótipo tonalizado com chá preto em papel para aquarela; cianótipo em cambraia de algodão.
42
dução de rastros, de vestígios, de pegadas. Como se a contingência “do que foi”,
apontada por Barthes à época da fotografia em sua forma de apreensão físico-quími-
ca, lhe conferisse um elo de ligação mais intenso com o referente por conta de sua
inextrincável materialidade.
Dir-se-ia que a fotografia traz sempre consigo o seu referente, ambos atingi-dos pela mesma imobilidade amorosa ou fúnebre, no próprio seio do mundo em movimento: eles estão colados um ao outro, membro a membro, como o condenado acorrentado a um cadáver em certos suplícios; ou ainda semelhan-tes a esses casais de peixes [...] que navegam juntos, como que unidos por um coito eterno. (BARTHES, 2006, p. 13)
43
3.3] CIANOTIPIA
A possibilidade de uma fotografia forjada sob o sol, que reflita os diferentes
azuis do céu, que prescinda do uso de câmeras. Da simplicidade, a síntese, a comple-
xidade de uma poética que se coloca em diálogo com a natureza, com o empírico das
artesanias e seus gestos. Uma imagem que se forma pelo contato direto do objeto a
ser fotografado sobre a superfície saturada de sais fotossensíveis de ferro. O que pode
parecer, num primeiro momento, de um primitivismo limitante aos olhos contemporâne-
os, pode se revelar, num olhar mais atento, em riqueza, em potência poética agregada
a um fazer profundamente ligado à origem, ao nascer da fotografia.
O cianótipo foi o primeiro e mais simples dos processos fotográficos de im-
pressão por contato que não envolviam sais de prata. foi descoberto em 1842, pelo
matemático, astrônomo, químico e inventor inglês Sir John Herschel (1792-1871), con-
tribuidor ativo da cena fotográfica do século XIV. Dentre suas pesquisas, destaca-se a
descoberta das propriedades do hipossulfito de sódio, usado como fixador fotográfico,
num processo que estabilizava as imagens feitas com sais de prata, impedindo que o
químico continuasse a oxidar depois de exposto ao sol, levando a imagem a desaparecer.
Uma descoberta crucial para o desenvolvimento da fotografia como a conhecemos nos
dias de hoje.
A cianotipia deriva das pesquisas de Herschel com sais de ferro – o citrato
férrico amoniacal e o ferricianeto de potássio –, que quando combinados, se tornam sensí-
veis à radiação solar. É uma técnica fotográfica de impressão por contato: um negativo ou
um objeto (quando se trata de um fotograma) é colocado sobre o suporte (papel, tecido,
madeira) emulsionado com químico fotossensível e exposto à radiação ultravioleta (ou luz
solar), que provoca uma reação, fixando o químico à superfície. Quando lavado em água,
o químico não precipitado no suporte se dissolve e uma imagem com a característica cor
azul se revela.
Comercialmente, o cianótipo ficou famoso a partir de 1876, quando era indus-
44
trializado em folhas de papel sensibilizado, utilizado em cópias de desenhos técnicos e
plantas de projetos para engenheiros e construtores – as famosas blueprints.
Uma das pioneiras a utilizar a técnica foi Anna Atkins (1799-1871), botânica
amadora com interesses em ilustração científica e taxonomia. fruto de suas investiga-
ções, em 1850, num desejo em criar uma versão ilustrada da pioneira publicação de
William Harvey, Manual of British Algae1 (1841), ela lança o que é considerado um dos
primeiros livros confeccionados com processos fotográficos: British Algae - Cyanotype
Impressions2, que consistia em diversos fotogramas de algas impressos em cianotipia,
com 13 versões produzidas e parte de uma antologia com três volumes, completada em
1853.
Nos fotogramas, ao capturar os contornos e transparências dos objetos
posicionados sobre o suporte fotossensível, uma fotografia sem o uso da câmera se
opera, trazendo consigo toda a carga de imprevisibilidade, acasos e encantamentos
inerentes a um processo que passa ao largo da industrialização e das imagens às
quais estamos familiarizados na contemporaneidade.
Dentro do fazer criativo, a vulnerabilidade do processo a fatores externos
e mesmo o manuseio artesanal conduzido ao largo da previsibilidade técnica à qual
nos acostumamos, pode entregar resultados que ultrapassam o planejado. O processo
força a reflexão sobre as próprias expectativas na produção de imagens, gerando a
possibilidade de expansão do trabalho a partir do diálogo com a matéria do suporte
escolhido e com algumas características marcantes da técnica, como a diversidade
dos azuis em função da incidência variável de radiação solar – dias ensolarados, nubla-
dos, diferentes horários ao longo do dia –, os diferentes graus de contraste da imagem
decorrentes de tempos de exposição diversos, o comportamento particular de cada
objeto exposto em relação à radiação solar.
Além da surpresas obtidas pelos fotogramas, com os contornos dos objetos
se delineando de maneiras surpreendentes, a exploração de inúmeras alternativas de
composição a partir de um suporte fotossensível traz novas abordagens na relação
1 https://archive.org/details/manualofbritishm00harv2 The New York Public Library - digital collections (https://digitalcollections.nypl.org/search/index?utf8=✓&keywords=anna+atkins)
45
ANNA ATKINS
British Algae: Cyanotype Impressions 1843-1853
fotogramas em cianotipia.
46
BLuEPRINTS
Cópias em cianotipia de projetos de Joaquim Cavalheiro
Projeto para construção de casas na Travessa Joli, Brás, 1913.
Projeto para construção de casa na Rua Conselheiro Carrão, 126, Bela Vista, 1913.
fonte: Série Obras Particulares. AHMWL-SP
47
com a imagem, privilegiando a experimentação e a liberdade proporcionadas pelo ma-
nuseio direto dos químicos e objetos a serem impressos, permitindo, além da visão, o
contato tátil com o suporte, o gesto durante a aplicação da emulsão, vindo a enriquecer
a relação sensível com a materialidade da imagem.
Outro ponto importante a ser considerado é o tempo estendido na produção
das imagens, indo na contramão da instantaneidade digital e permitindo que contempla-
ção e reflexão se somem aos resultados, potencializando a geração de novos desdobra-
mentos a partir dos resultados obtidos no decorrer do percurso, com escolhas que po-
dem, a depender da permeabilidade aos acasos do trajeto, transcender a ideia original.
Seu uso nos dias de hoje, vem de encontro à possibilidade de uma ferramen-
ta que, pela simplicidade da composição pelo contato e pela positivação de uma matriz
em negativo, é passível de diálogos com outras linguagens – como a fotografia digital,
a monotipia ou o desenho. Estas múltiplas alternativas na geração de negativos podem
ser exploradas tanto em impressões individuais como numa mesma composição, so-
brepondo camadas dentro de uma mesma imagem e permitindo, neste hibridismo, a
manifestação de uma forte carga subjetiva e poética.
48
3.4] INTERSECçÕES E TROCAS
A obra transcende o autor. [...] a simples imitação não gera satisfação dura-doura; a habilidade precisa amadurecer. A lentidão do tempo artesanal é fonte de satisfação; a prática se consolida, permitindo que o artesão se aposse da habilidade. A lentidão do tempo artesanal também permite o trabalho de reflexão e imaginação – o que não é facultado pela busca de resultados rápi-dos. Maduro quer dizer longo; o sujeito se apropria de maneira duradoura da habilidade. (SENNET, 2009, p. 328)
Pensando nas artesanias envolvidas em processos fotográficos de impres-
são por contato como cianotipia, goma bicromatada, van dyke brown, albumina ou pa-
pel salgado, entre outros, pode-se elencar alguns pontos de intersecção com a prática
de processos gráficos de impressão como gravura em metal ou madeira.
São processos que, apesar de reprodutíveis a partir de uma matriz a ser
replicada, possuem cópias “únicas”, já que durante o manuseio artesanal, é frequente
que haja variações em suas reproduções derivadas, sem o rigor mecânico da repetição,
presente em tecnologias industriais baseadas na automação de impressoras e maqui-
nário de gráficas.
A presença de um tempo de produção atrelado ao fazer manual também
permite maior permeabilidade na reflexão sobre as imagens, “o artífice pode fazer uma
pausa no trabalho e refletir sobre o que está fazendo” (SENNETT, 2009, p. 329), facili-
tando desdobramentos empíricos em impressões subsequentes, através de interven-
ções na própria matriz ou mesmo em composições derivadas de múltiplas camadas ou
matrizes, fruto desta maleabilidade proporcionada pela impressão – amplificando sua
importância durante o trajeto criativo.
A possibilidade do ateliê de gravura como espaço compartilhado de trabalho
em processos fotográficos artesanais de impressão também se mostra natural, talvez
pela própria história da fotografia, que em alguns de seus primeiros passos, derivava
de matérias e raciocínios gráficos – basta lembrarmos das heliografias1 de Niépce a
fazer uso do betume da judeia, das placas de metal de Daguerre, comumente utilizadas
1 Ver Em GLOSSÁRIO, p. 106.
49
como matrizes de gravura ou até mesmo se pensarmos nos calótipos de Talbot, que os
chamava de “desenhos fotogênicos”.
Litografia, serigrafia e fotogravura foram técnicas comercialmente bastante uti-
lizadas, onde a associação do gráfico com o fotográfico constituiu avanços importantes
na história da reprodutibilidade da imagem. Embora tenham sido gradativamente substi-
tuídas por outros processos menos artesanais que atendessem à vertiginosa demanda
por quantidade e perfeição no terreno da reprodutibilidade técnica, são ferramentas ricas
de possibilidades artísticas no espaço do ateliê de gravura. Por afinidade de artesanias,
outras técnicas livres e diretas como monotipia e desenho também são passíveis de
mistura com qualquer processo de impressão fotográfica por contato – como cianotipia
ou goma bicromatada – pois permitem matrizes em materiais simples e acessíveis como
acetato ou papel vegetal. São processos que se mostram abertos a experimentações
híbridas, pensadas a partir da lógica da matriz e sua impressão por contato, passíveis
de contaminações entre si.
Pensando nestas contaminações, é interessante notar a potência do ateliê
como espaço de convergência, que se consolida durante o percurso do trabalho, esta-
belecendo “um movimento de coesão entre as pessoas através dos rituais do trabalho,
seja um cafezinho tomado no corredor ou uma parada urbana” (SENNETT, 2009, p. 88).
Assim, o espaço se converte num local de troca de experiências não só em eventuais
orientações ou cursos ministrados aos usuários, mas também em trocas durante o
próprio fazer coletivo. Entre impressões e preparos de materiais, é natural o intercâm-
bio de informações e reflexões acerca dos processos criativos particulares de cada
interlocutor.
Durante as investigações desta pesquisa, foi importante a convivência em
três destes espaços: o Laboratório de Gravura do Instituto de Artes da Unicamp e o
Ateliê Coletivo do Xilomóvel, em Campinas, e o Ateliê de Gravura do Sesc Pompeia,
em São Paulo. A abordagem do vídeo nesta pesquisa nasceu a partir da participação
em um trabalho com retratos desenvolvido por Julia Goeldi, artista que tem um sólido
trabalho em gravura em metal (vide em 3.5 - Tempo e movimento). Enquanto contribuía
50
posando como modelo para uma gravura em água tinta, conversas acerca dos resul-
tados levaram a questionamentos que enveredaram por investigações fotográficas e
filosóficas. Logicamente haviam outros pontos já sendo maturados durante a pesquisa,
mas as trocas ocorridas nestes espaços foram fundamentais para o amadurecimento
do trabalho.
Também foi de grande importância a abertura destes espaços para a propa-
gação destes processos fotográficos, seja em oficinas ou apresentação da pesquisa,
despertando o interesse por estas técnicas como ferramenta criativa. No Laboratório
de Gravura da Unicamp, convidada pela Profa. Luise Weiss, pude apresentar técnicas
como goma bicromatada e cianotipia aos alunos. Muitos deles nunca haviam tido con-
tato com os processos. Ensinar sobre a técnica e compartilhar esta visão de possibi-
lidades híbridas entre gráfico e fotográfico na universidade foi um importante passo,
pois permitiu o amadurecimento das formas de transmissão da experiência, gerando
novas propostas para outras instituições de ensino de artes e alargando o alcance
destes processos como ferramenta, amplificando seu diálogo com outras linguagens e
descortinando novos rumos em minha reflexão sobre o ensino no território das artes.
O retorno dessas trocas com outros artistas e mesmo com leigos no campo
das artes foi sem dúvida enriquecedor, trouxe questionamentos e descobertas im-
portantes para a pesquisa, levando a novas abordagens na forma de responder às
demandas de propostas que compartilhem não apenas técnica, mas pontos de vista
artísticos e modos de conduzir o processo criativo.
Destas propostas, cabe destacar o convite recebido pelo Xilomóvel Ateliê
Itinerante para participação em um festival de ateliês volantes, realizado na Estação
Cultura de Campinas e promovido pelo Itaú Cultural, em edital do Projeto Rumos. O fes-
tival Volante, com atividades voltadas para o grande número de pessoas que transitam
por este espaço público, deveria apresentar técnicas gráficas e fotográficas de maneira
acessível e lúdica, permitindo aos participantes o contato com os diversos processos
presentes – xilogravura, serigrafia, tipografia, cianotipia, pinhole, fotografia lambe-lambe
e demonstração de gravura em metal (água tinta). Pensando neste roteiro de experiên-
51
cias ao alcance dos transeuntes locais, foi a primeira vez em que propus uma oficina
onde os papeis já vinham emulsionados – a exemplo das outrora famosas blueprints –,
focando a proposta nas possibilidades da impressão e narrativa permitidas pela ciano-
tipia. Surgiu aí um projeto que denominei Fotomobil, com proposições que abordam a
fotografia experimental contaminada com outras linguagens. A atividade para o festival
consistia em uma pequena caixa contendo dois papeis fotossensíveis em formato de
livros-sanfona, onde os autores poderiam positivar negativos fornecidos e misturá-los
a fotogramas feitos com objetos presentes no kit, utilizando as dobras do livro como
recurso narrativo. foi uma surpresa extremamente positiva perceber as características
empíricas do processo sendo exploradas em toda a sua potência pelas mais diversas
faixas etárias, considerando que as explicações sobre a técnica eram bastante sucin-
tas em relação a outros cursos ministrados anteriormente.
Cabe também destacar um conjunto de três oficinas derivadas desta expe-
riência, abordando a cianotipia e o uso dos fotogramas em diferentes diálogos: com a
monotipia, a poesia e o desenho em camera obscura. Nas três, os participantes rece-
biam folhas de papel sensibilizado e produziriam imagens tendo como suporte final um
pequeno caderno a ser costurado ao final do curso.
No Jardim Fotográfico, os alunos eram convidados a percorrer o entorno e cole-
tar folhas de espécimes vegetais para fazer fotogramas que dialogassem com os negativos
digitais de folhas recebidos. Uma pequena prensa também era disponibilizada, onde as
folhas coletadas poderiam se transformar em monotipias decalcadas em papel vegetal,
gerando novos negativos. As três modalidades de rastro destas folhas eram então unidas
pela impressão em cianotipia e pela narrativa do caderno.
Já em Fotopoemas, os alunos recebiam algumas imagens em negativos di-
gitais e um poema de Manuel de Barros. Eram então instigados a recortar o poema,
desconstruindo frases e palavras inspirados pela receita dadaísta de se fazer um po-
ema. No caderno, uma reconstrução junto às imagens fornecidas e a fotogramas era
proposta, tendo novamente a cianotipia e a narrativa sequencial como unificadora e
criadora de novos sentidos.
52
A observação do entorno e o desenho com a camera obscura era o mote de
Observatório Fotográfico. Os participantes saíam pelas redondezas com a camera obs-
cura e desenhavam sobre papel vegetal, gerando negativos que posteriormente seriam
positivados junto a fotogramas na impressão por cianotipia, ressignificando desenhos
e entorno e tendo o caderno como suporte.
Em cada uma das propostas eram apresentadas referências que remetiam
aos primórdios da história da fotografia, situando a técnica historicamente. As propos-
tas também contavam com algumas personalidades homenageadas, que acabavam
por sugerir possíveis abordagens nos trabalhos: Anna Atkins e seus cadernos com
fotogramas de algas na proposta com a monotipia; William Henry fox Talbot e seus
desenhos do entorno em camera obscura; os poemas dadaístas e Manoel de Barros
na proposta com poesia.
foi enriquecedor ter maior consciência da abertura ao que o processo entre-
gava a partir da resposta dos alunos às provocações lançadas: o que era erro e o que
era incorporado ao trabalho final? Como a camera obscura enxergava, como o olho en-
xergava, e como isso se traduzia em traço? Como o desafio da narrativa texto-imagem
se dava na desconstrução de um poema de Manuel pelos métodos dadaístas? Quais
as diferenças entre capturar uma folha em fotografia digital, em monotipia ou pela
apreensão direta conseguida com os fotogramas? Como a narrativa desta produção de
imagens se transformava a partir da sequencialidade das páginas do caderno?
A maior das questões voltou para mim não em forma de interrogação, mas
em constatação: como compartilhar experiências em propostas de ensino pode revelar
tanto acerca de si e retornar em tamanha riqueza para o próprio trabalho.
A antiga coordenação da alma, do olhar e da mão [...] é típica do artesão, e é ela que encontramos sempre, onde quer que a arte de narrar seja praticada. Podemos ir mais longe e perguntar se a relação entre o narrador e sua maté-ria – a vida humana – não seria ela própria uma relação artesanal. Não seria sua tarefa trabalhar a matéria-prima da experiência – a sua e a dos outros – transformando-a num produto sólido, útil e único? (BENJAMIN, 2008, p. 221)
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3.5] TEMPO E MOVIMENTO
Mais uma tarde agitada no ateliê de gravura do Sesc Pompeia. Em pleno
funcionamento, era possível observar as diversas correntes de movimento do espaço:
a mesa repleta de mãos e placas tomadas de tinta, o maçarico sob as chapas quei-
mando verniz, as prensas comprimindo os segredos das matrizes, a bacia com ácidos
ondulando sobre o cobre, as leituras de trabalhos conduzidas por Evandro Carlos Jardim.
De meu posto, me contentava, resignada, a apreender o entorno, em minha tentativa
de imobilidade. Era observada. Conversava com Julia Goeldi enquanto, concentrada, ela
me retratava. Primeiro à lápis, o grafite se depositando sobre o metal coberto de uma
camada de breu. Depois, com as pinceladas de verniz se intercalando com os banhos de
ácido da água tinta.
No decorrer do trabalho, a clareza dos traços do retrato desenhado a grafite
foi sendo encoberta por escuras pinceladas de verniz que construíam, camada a ca-
mada, os futuros tons de cinza que, impressos, formariam meu rosto. O olhar de Júlia
enxergava além do que aparentava ser apenas um amontoado de verniz pincelado. Me
via luz e sombra e calculava, a cada camada, quais seriam as áreas mais claras e escu-
ras a serem cobertas pelo verniz, recebendo os numerosos banhos de percloreto que
corroíam a matriz de modo que suas reentrâncias se saturassem de tinta no momento
da impressão.
Nessa construção da imagem, me senti fotografada pelos olhos de Júlia.
Em lugar da “caixa-preta”, todas as áreas de luz e sombra eram percebidas por seus
olhos e processadas em escolhas transmitidas às suas habilidosas mãos, treinadas
pela experiência de quem repetira este ritual à exaustão.
Um retrato intermediado por uma câmera fotográfica, cujo fenômeno físico de
formação da imagem será sempre inscrito digitalmente no ccd ou apreendido quimica-
mente por um suporte fotossensível em toda sua manifestação, terá sempre um grau
de surpresa carregado de alguma previsibilidade devido à sua verossimilhança inerente.
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O retrato pelo qual aguardava era uma total icógnita. Como Júlia processaria
este fenômeno ótico em seu cérebro? Como enxergaria minha boca? Eu conversara com
ela e as pessoas em volta na maior parte do tempo. Como seria possível entender a
forma, o volume, a imobilidade dentro dos inúmeros movimentos da fala? E meu rosto?
Certamente eu virara minha cabeça por diversas vezes enquanto conversava. De quan-
tos ângulos, de que perspectiva seria feito este retrato?
foi uma belíssima surpresa entender como Júlia respondera as todas estas
questões ao me mostrar a placa de cobre já gravada, limpa das pinceladas de verniz.
Pude contemplar meu rosto se insinuando entre as reentrâncias corroídas pelo ácido.
Como seria na impressão, quando essas texturas reteriam a tinta a ser depositada
sobre o papel pela ação da prensa? Como se revelariam os tons de cinza interpretados
por seu cérebro e intermediados por seu fazer?
Entre indagações e etapas, o inesperado. Enquanto seguíamos em processo,
Lívia Gabbai, que sempre retratara e organizara os processos ocorridos no ateliê, fizera
numerosas fotos com sua câmera digital – várias delas de meu rosto a posar para Júlia.
Ao me deparar com estes retratos gentilmente cedidos, pude entender este olhar inter-
mediado pela câmera de outras maneiras. Eu me via séria, sorrindo, falando, em diferen-
tes ângulos. Quando finalmente olhei para o retrato feito por Júlia impresso em papel,
esplêndido em sua riqueza de tonalidades e pinceladas, pude compreender de quantas
faces ele se compunha. Me vi única e múltipla a um só tempo, entendendo como aque-
las mais de três horas de movimentos diversos se condensavam numa única imagem. E
como aquelas mil faces se sobrepunham umas às outras pelo olhar de Júlia.
fui tomada de inquietudes. Desse embate entre olho-homem e olho-câmera
– subtraídas questões de escolha narrativa como enquadramento e composição e pen-
sando sobre estas formas de apreender a luz sobre o entorno e o referente –, me dei
conta de algo ainda nebuloso, mas tateava a certeza de uma busca.
Precisava investigar estas inquietudes fotograficamente. Através dos regis-
tros de um dispositivo ótico, como seria este retrato que continha tantas faces dentro
de si? Como seria este movimento resultante da tentativa de imobilidade? Como se
56
JULIA GOELDI
Ligia, Adriana e Nico, 2015-2016
Gravura em metal, água-tinta e lavis sobre papel.
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apresentaria este tempo condensado em movimento? Como a objetividade fotográfica
inscreveria o que Júlia enxergava? O que pincelaria este olho-câmera com a mesma luz?
A natureza que fala à câmera não é a mesma que fala ao olhar; é outra, especialmente porque substitui a um espaço trabalhado conscientemente pelo homem, um espaço que ele percorre inconscientemente. (BENJAMIN, 2008, p. 94)
Com duas câmeras fotográficas montadas no ateliê Piratininga, acompanhei
duas sessões de retratos feitos por Júlia. Para tanto, programei temporizadores para que
acionassem automaticamente o obturador das câmeras posicionadas em frente aos re-
tratados em intervalos regulares – de 15 em 15 segundos, ou de 5 em 5 segundos, por
exemplo. Dessa forma, a fotografia exercia todo o seu automatismo. Me sentia colocar
em ação esta imagem feita pelo equipamento, inscrita sem a interferência humana, esta
fotografia tão polêmica alardeada durante os primeiros anos de seu nascimento.
No voyerismo proporcionado pela função de fotógrafa, pude prestar atenção
a detalhes que não havia percebido ao ser retratada. Neste tempo de duração da ses-
são, haviam diferentes faces da mesma pessoa, como constatara em minha própria
experiência. O movimento dos rostos era constante, mesmo em busca da imobilida-
de. Pude perceber também o movimento do entorno. A luz natural filtrada por telhas
transparentes, deixava ver o movimento do sol. Outras faces surgiam desta incidência
inconstante: a luz esculpia diferentes volumes. O vento soprava do quintal e do ventila-
dor instalado para que o calor fosse suportado. Os cabelos dançavam, mudando cons-
tantemente de posição. O cansaço dos retratados fazia com que a “pose” sustentada
orgulhosamente no início da sessão, desse lugar a uma atitude mais relaxada. Talvez,
pela insistência do registro contínuo ao longo deste tempo estendido, finalmente algu-
ma naturalidade fosse alcançada.
[...] a partir do momento que me sinto olhado pela objectiva, tudo muda: preparo-me para a pose, fabrico instantaneamente um outro corpo, meta-morfoseio-me antecipadamente em imagem. [...] Perante a objectiva, eu sou simultaneamente aquele que eu julgo ser, aquele que eu gostaria que os ou-tros julgassem que eu fosse, aquele que o fotógrafo julga que sou e aquele de quem ele se serve para exibir a sua arte. [...] não paro de me imitar a mim próprio e é por isso que sempre que me fotografam (que deixo que me fotografem) sou invariavelmente assaltado por uma sensação de inautentici-dade, por vezes de impostura. (BARTHES, 2006, p. 19-21)
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Esta “pose” a que Roland Barthes faz referência, finalmente fora abatida
pelo cansaço e pela captura constante e aleatória, que não buscava a essência do
retratado dentro da subjetividade do ponto de vista do fotógrafo ou da encenação pro-
porcionada pelo modelo, mas pela indiscrição do equipamento fotográfico em revelar
até mesmo o que evitamos nos retratos cotidianos: os olhos entreabertos ao piscar,
o peso da mesma posição por longo tempo denotando o cansaço, as expressões que
antecedem esta face gloriosa que sempre queremos oferecer a quem nos fite com o
intuito do registro visual.
Talvez, olhando para várias destas fotos “acidentais”, registros de momen-
tos inoportunos, tenha percebido menos destas pessoas. Não as reconheceria se me
fosse dado a identificá-las apenas por estes retratos. Barthes tinha razão ao cons-
tatar a falha da fotografia em entregar toda a essência do retratado apenas por sua
mais notória característica: a verossimilhança.
Instigada pelos registros que possuia, a aventura com este material prosse-
guia: Julia condensara três horas de observação num processo calcográfico. A matriz
em metal produzida durante este tempo, guardava, por meio de gestos e processos
químicos de gravação e impressão, sua interpretação, sua síntese.
Como seria a síntese feita pelo equipamento fotográfico?
Por sobreposição desta sequência de imagens numa linha do tempo, come-
cei a trabalhar esta condensação num programa de edição de vídeo, de forma a criar
um tipo de animação denominada time-lapse. As mais de três horas de contidas em
cada sessão de modelo-vivo se transformaram em vídeos-síntese, que variavam de um
a três minutos de duração1.
Em meio a este processo, uma leitura me fascinou. Ao escrever sobre tem-
po e duração, o filósofo Henri Bergson fez com que me sentisse parte de um experi-
mento científico-filosófico, quando enxerguei a linha do tempo do programa de edição
de vídeo descrita minuciosamente em sua reflexão:
1 Vídeo Adriana: https://youtu.be/1jQfYrRmVlEVideo Nico: https://youtu.be/xvZRLWea1tQwatch?v=xvZRLWea1tQ
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Imaginemos uma linha reta, indefinida, e sobre essa linha um ponto material A que se desloca. Se esse ponto tomasse consciência de si mesmo, sentir--se-ia mudando já que se move: perceberia uma sucessão. Mas essa suces-são se revestiria para ele da forma de uma linha? Sem dúvida sim, contanto que ele pudesse elevar-se de algum modo acima da linha que percorre e perceber nela simultaneamente vários pontos justapostos: isso, porém, o levaria a formar a ideia de espaço, e é no espaço que veria desenrolarem-se as mudanças que sofre e não na pura duração. (BERGSON, 2006, p. 11)
Ao acelerar ou retardar a velocidade de apresentação dos frames, uma
ilusão de controle sobre a condensação ou dilatação deste tempo acontecia. Repre-
sentado no layout do programa de edição de forma linear pela “linha do tempo”, era
como se um sentimento de empoderamento me inundasse ao me conscientizar do
que ocorria no programa pelas palavras do filósofo. fui tomada por certa estupefação,
ao vivenciar os recursos possibilitados pelas ferramentas digitais de uma outra ma-
neira, enquanto observava o cursor indicando na timeline a localização espacial exata
correspondente ao instante a que se referia aquela imagem de movimento.
A potencial banalidade que a facilidade fotográfica digital permite, tem sido
uma reflexão constante em meio às investigações nas quais tenho me empenhado.
Talvez a descrição deste autor, nascido em 1859, apenas 20 anos depois do anúncio
oficial da descoberta da fotografia e provavelmente já tendo tido contato com as pri-
meiras pesquisas sobre o movimento na fotografia, conduzidas por Eadweard James
Muybridge2, tenha a clareza de quem ainda não se encontrava mergulhado na inunda-
ção de imagens presente em nosso tempo.
Passadas as primeiras explorações em time-lapse com os retratos e o facínio
exercido por essa linha do tempo descrita filosoficamente, a direção das investigações
com vídeo se voltaram para o aspecto oculto que as “caixas-pretas” revelavam. Nestas
tomadas automatizadas, movimentos imperceptíveis eram trazidos à tona quando o tem-
po era reordenado e condensado. Júlia fizera a síntese de três horas em uma gravura.
As imagens captadas poderiam conter a síntese deste tempo em apenas alguns segun-
dos. Ao imprimir alguns destes frames-retratos em cianotipia, percebi que este mesmo
tempo voltava a se dilatar. Um vídeo padrão funciona com 24 frames por segundo. Cada
2 Em GLOSSÁRIO, p. 106.
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frame leva cerca de uma hora para sua impressão em cianotipia. Imaginei as 24 horas
de impressão condensadas novamente neste segundo de vídeo, ao serem retransporta-
das para o meio digital.
Pensando nestas folhas secas e flores murchas que vinha coletando para o
trabalho com fotogramas, passei a imaginar quanto tempo teriam levado estes corpos
para chegarem ao estágio em que os tinha recolhido. Também me ocorreu que, ao con-
trário da dificuldade de imobilidade dos modelos com quem Júlia vinha trabalhando, o
movimento de uma flor no decorrer deste mesmo tempo era absurdamente sutil. O tem-
po de captura teria que ser muito mais longo para que alguma alteração se fizesse notar.
Ao invés de horas, talvez dias ou semanas. No entanto, falaria sobre uma vida inteira.
A metáfora da impermanência havia encontrado mais uma ferramenta para
representá-la. A efemeridade da vida poderia ser perscrutada pela duração contida no
vídeo em time-lapse.
… o “vídeo” não é um objeto (algo em si, um corpo próprio), mas um estado. Um estado da imagem (em geral). Um estado-imagem, uma forma que pensa. O vídeo pensa (ou permite pensar) o que as imagens são (ou fazem). (DUBOIS, 2001, posição 225)
A aproximação que esta técnica guarda com a fotografia estática e sua ligação
com os primórdios da exploração do movimento na imagem me acenavam para um novo
caminho. O automatismo da câmera fotográfica seria capaz de capturar o que o mecanis-
mo de visão humana e a capacidade de apreensão do cérebro não conseguem absorver.
Entendi qual seria o objeto desta investigação ao abrir uma das páginas do
diário de processos. A efêmera beleza de uma espécie de flor que havia impresso anos
antes em cianotipia me contaria sobre a vida secreta de seu ocaso.
A flor escolhida, uma gérbera, é uma espécie pertencente à família Asteraceae –
também conhecida como “compostas”, ou seja, o que visualizamos como miolo, é, na ver-
dade, um agrupamento de pequenas flores, formando o que se convencionou chamar de
“inflorescências”. Estas inflorescências são tão unidas e organizadas que são confundidas
com o miolo de uma única flor – girassois e as margaridas possuem a mesma constituição.
Esta característica me chamou a atenção anos atrás, quando por ocasião de
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uma viagem de 15 dias, um pequeno vaso com gérberas foi esquecido sobre a mesa.
Ao retornar, uma imagem fascinante me chamou a atenção: o “miolo” de uma das gér-
beras, ao invés de secar e manter sua forma original, se desfez em várias “sementes
aladas” que, leves, se espalharam sobre a mesa e pela casa. A outra secou e manteve
suas inflorescências na forma original.
Esta peculiaridade me fez pensar neste movimento dentro de seu ocaso. O
que parecia ser uma morte, na verdade era a própria vida eclodindo, voando leve para
se perpetuar onde o vento as conduzisse.
Nas primeiras experiências com time-lapse, procurei um canto recolhido na
casa com incidência de luz natural, pois queria estudar também este movimento do
entorno, o correr dos dias. Montei uma cena com duas flores num pequeno recipiente
transparente, de maneira que a câmera captasse as gérberas de forma frontal.
A primeira decepção foi perceber que, ao murchar, o corpo da flor pesava
sobre sua haste debilitada e caía, voltando seu “miolo” para baixo. Em outra tentativa,
tentei cortar a haste de maneira que a flor pudesse se apoiar na beirada do recipiente ao
murchar. No entanto, ainda sim ela terminava por se dobrar sobre si e pender para baixo,
escondendo o que eu gostaria de visualizar: seu miolo-inflorescente.
Várias tentativas – e semanas – depois, me dei conta que lutava contra a natu-
reza de meu objeto de contemplação. Pensando em todos os acasos mal-sucedidos que
colhera até então, finalmente o óbvio me ocorreu: mudar o ângulo de captação da cena.
foi assim, depois de mais algumas tentativas, que posicionei a câmera a
pegar uma única gérbera numa tomada aérea – e que a coloquei num recipiente com a
boca estreita, para que não fosse engolia ao ter suas pétalas murchas.
finalmente, 5.218 frames e 20 dias depois, eu tinha meu mistério registra-
do satisfatoriamente pela objetiva da “caixa-preta”3.
Na etapa seguinte, que passaria pelo filtro dos algorítmos matemáticos do
programa de vídeo e sua linha do tempo “filosófica”, outras escolhas tiveram que ser
feitas ao longo do caminho. Uma delas foi a supressão das cores. Depois de várias ex-
periências com os vermelhos alaranjados explodindo pela tela, entendi que a síntese,
3 https://youtu.be/fIzC4fDDVW0
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além de temporal, teria que ocorrer também na visualidade. Era necessário “limpar” ao
máximo qualquer informação que distraísse a visão do que realmente me interessava:
a efemeridade de suas formas.
A escolha do preto e branco também se deu pela aproximação visual com o
fotolito, o negativo-matriz que posteriormente daria origem às impressões em cianoti-
pia. Desta maneira, a síntese se completava em diversos sentidos.
foi partindo deste mesmo princípio que entendi que não haveriam outras
imagens se fundindo ou se intercalando com este time-lapse, como tentara fazer no
início, adicionando retratos ou fotos da mesma cena em outros ângulos, com a câmera
“solta”4.
Cortar, limpar, concentrar.
Desta forma pude enxergá-la com uma clareza austera.
Enxuta, compreendi que estes vinte dias poderiam ser pulsações de um
coração, que seu movimento era uma dança. foi também neste momento, que percebi
que este movimento – tal qual suas inflorescências se espalhando a procura de terra
fértil para florirem novamente – não tinha fim.
Desta maneira decidi pelo vídeo em loop5.
Vida e morte dançando ao pulsar dos dias.
Nascer, morrer, renascer.
O tempo circular, a infinitude da impermanência.
O que diz respeito à flor, aprenda com a flor, diria Bashô.
4 https://youtu.be/lornn4Ks7Hs5https://youtu.be/UM6pGmdbsI4
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3) ITINERÂNCIAS
IMPERMANÊNCIA: VIRTUALIDADE E MATERIALIDADE
[…] cada sociedade necessita de uma imagem à sua semelhança. […] As-sistimos a um processo irrefreável de desmaterialização. A superfície em que a fotografia argêntica se inscrevia era o papel ou material equivalente, e por isso, ocupava um lugar, fosse um álbum, uma gaveta ou uma moldura. Em compensação, a superfície de inscrição da fotografia digital é a tela: a im-pressão da imagem sobre um suporte físico já não é imprescindível para que a imagem exista; a foto digital, portanto, é uma imagem sem lugar e sem origem, desterritorializada, não tem lugar porque está em toda parte. (fONT-CUBERTA, 2013. p. 14)
Os primeiros movimentos na direção destas itinerâncias se deram pela in-
completude sentida na fotografia digital. Talvez esta imagem “sem lugar e sem origem,
desterritorializada” a que Juan fontcuberta se refere, que carrega a instantaneidade
e a imaterialidade em sintonia com o que se convencionou situar no “ser contemporâ-
neo”, termine por resultar numa espécie de lacuna na relação afetiva que certas ima-
gens suscitam. Na abordagem desta pesquisa, um contato mais profundo com estas
imagens-afeto se fazia necessário.
A impressão em processos fotográficos arcaicos permite uma dilatação no
tempo do instantâneo, proporcionada pelas etapas de sua produção: o emulsionamen-
to dos tecidos com químicos fotossensíveis, sua secagem, a composição criada com
negativos e objetos diversos sobre a superfície sensibilizada, a exposição ao sol ou em
câmaras de luz ultravioleta para fixação da imagem, a lavagem para que a imagem se
revele por inteiro e finalmente a secagem.
As matérias envolvidas nestes processos alargam as possibilidades inicial-
mente imaginadas, respondendo com acasos às tentativas de controle sobre os resul-
tados. Cada superfície fala sobre texturas e diferentes escalas de nitidez – as tramas
dos fios dialogam com os pontos dos meios-tons contidos nas retículas impressas nos
negativos digitais e com a forma como o químico adere e se espalha na superfície. O
brilho ou a opacidade da superfície acolhe a imagem de maneiras diversas. O toque
de cada uma dessas escolhas se traduz em sensações que conversam com os afetos
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que carregam as imagens. A pele que toca a matéria impressa enxerga junto aos olhos:
existe, nesse contato direto entre mão, matéria e imagem, algo de sensual, de irresistí-
vel apelo sensório – a pele vivificada numa impressão em seda ou a macia porosidade
das pétalas de flores trabalhadas sobre o fino papel japonês.
Imagens paridas em luz e água, cada uma a seu tempo. Imagens que falam
sobre a alquimia das substâncias fotossensíveis, que cantam sobre a memória de au-
sências, que tecem texturas da pele dos que estão.
A memória e seus afetos não são vivenciados apenas pela visualidade do
olhar. Neste trabalho, podem também ser evocados pelas mãos. O tempo prolongado
de contato durante o fazer permite vínculos mais profundos. As imagens procuram por
sua matéria. As mãos vem guiá-las neste caminho, que passa pelo âmago do sentir
antes de encontrar sua concretude.
Neste percurso, os retratados passam a fazer parte de uma ficção, de uma
mitologia pessoal. Os processos gráficos e fotográficos utilizados os afastam da segu-
rança verossimilhante. As imagens se transformam no decorrer dos processos, se mis-
turam a traços impressos e intervenções da vontade. Passam a documentar sonhos
sinestésicos. Na tela, de volta ao pixels imatéricos, continuam a emanar texturas, se-
guem seduzindo, livres em sua onipresença virtual, mas confinadas na impossibilidade
sensível do toque matérico.
Precisamos nos habituar a pensar que todo visível é talhado no tangível, todo ser tátil prometido de certo modo à visibilidade, e que há invasão, en-cavalgamento, não apenas entre o tocado e quem toca, mas também entre o tangível e o visível que está incrustado nele. Toda visão efetua-se algures no espaço tátil. (MERLEAU-PONTY apud DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 31)
Diante destes deslocamentos, outras questões ficaram mais evidentes no
decorrer do trabalho. O vídeo Ocasos, que se utiliza da técnica do time-lapse, condensa
20 dias da existência de uma flor em 45 segundos de duração. foram sobrepostos
5.218 frames, que tiveram sua velocidade de execução acelerada em cinco vezes.
Numa montagem em loop, esta sequência foi sobreposta de maneira reversa, gerando
um novo vídeo de cerca de um minuto e quinze segundos.
24 frames foram extraídos e retrabalhados em impressões em cianotipia.
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Pensando nas etapas de impressão descritas no início deste capítulo, cada uma des-
tas impressões leva cerca de uma hora para sua conclusão, quando serão novamente
refotografadas digitalmente para sua reintrodução no time-lapse inicial.
Podemos imaginar que nestes 24 frames há um dia (24 horas)?
Ou podemos imaginar estes 24 frames dentro de um único segundo de um
vídeo comum (24 fps)?
Como num movimento de sístole e diástole, este tempo se condensa e se
dilata, conduzido sempre pelo mesmo objeto de estudo – a existência da flor –, cuja
apreensão de sua duração só é possível graças ao automatismo fotográfico.
Por que retrabalhar estes quadros? Por que reexpandir o tempo condensado?
Por que condensar esta existência em poucos minutos? De que serve esta busca?
fluímos pelo tempo muitas vezes sem a consciência precisa de sua passa-
gem. Constantemente tocamos “no que foi” de dentro da efemeridade presente. Somos
fruto de um pretérito contínuo, seja pela trajetória pessoal, seja por uma ancestralidade
que ultrapassa a existência particular, adentrando na esfera do coletivo, do que implica
nossa identidade “humana”. Quando o automatismo da “caixa-preta” vem revelar um
tempo que nossa percepção não dá conta de apreender, o entorno pode momentanea-
mente se transformar num novo e rico universo a ser explorado – a finitude das etapas
que envolvem a vida matérica se evidencia. Olhar para estas transformações pode se
tornar um exercício de contemplação. Como se a percepção fosse desperta da aneste-
sia. Olhar para a própria mortalidade pode, paradoxalmente, ser o mais intenso ritual de
vivificação da existência.
“Ser imortal é insiginficante; exceto o homem, todas as criaturas o são, pois ignoram a morte...” (BORGES, 2008. p. 19)
Paralelamente, observando este corpo-flor a desvanecer, o infinito se revela
na impermanência das formas sendo reabsorvidas quando em seu habitat original.
Serão inúmeras transformações até o retorno a sua essência celular, decomposta,
devolvida à terra de origem. Um movimento cíclico, interminável.
Do sentimento primitivo de pertencimento a este universo, eclode uma bus-
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ca incessante por registros, por rastros destas etapas: a fotografia digital a inscrever
os sinais luminescentes do mundo, a monotipia a decalcar manchas gráficas das textu-
ras sobre a superfície, os fotogramas sinalizando vestígios fotoquímicos do corpo que
esteve presente. Uma intensa produção de pretéritos que se mostra como pegadas,
pistas de etapas concluídas, de matérias que se foram, de um ser que já é outro, con-
tinuamente transmutado.
A flor que emanava sua luminescência, inscrita digitalmente nos frames do
vídeo, tem seu corpo envolto na tinta escura e esmagado pelo rolo da prensa contra a
superfície translúcida do papel. O rastro de pigmento se deposita numa mancha, que
posicionada sobre a superfície emulsionada de sais de ferro fotossensíveis, exposta
à luz que queima a pele, seguirá gravada como uma cicatriz queimada de sol. Mergu-
lhada na pureza da água, soltará o químico não fixado tal qual sangue que se solta
da ferida lavada. Os tons de ciano surgem da metamorfose: do amarelo esverdeado
queimado em tons cinzentos pelo sol ao azul do céu emergindo da água. Quando o
rastro luminescente da fotografia digital toca este vestígio de matéria dentro do mundo
alquímico, o invisível do universo parece se descortinar por um breve instante. Tênue
brilho que se acende, para se perder novamente nas profundezas do insondável, do
inconsciente. Mais um ciclo de tempos e matérias atesta sua presença ausente. Mais
um pretérito ratificado. Corpos vivos e ricos de substância em pleno ocaso. A eternida-
de dos rastros. A efemeridade matérica dos corpos.
A morte (ou sua alusão) torna patéticos os homens. Estes comovem por sua condição de fantasmas; cada ato que executam pode ser o último; não há rosto que não esteja por se dissipar como o rosto de um sonho. Tudo, entre os mortais, tem o valor do irrecuperável e do casual. (BORGES, 2008. p. 21)
Na instalação de livro-de-artista Ocasos, concebida para a área externa da
Casa das Rosas, alocada em seu jardim, folhas em decomposição encontradas no en-
torno vieram registrar seus contornos em rastros gravados pela ação do sol sobre o te-
cido emulsionado com os sais de ferro da cianotipia. Os fotogramas destas folhas dia-
logavam com os arredores e com as fotografias de negativos digitais que compunham
a impressão. O ferro da cianotipia, fixado e tornado azul pela radiação solar, continuava
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a sofrer seus efeitos neste espaço ao relento. Corroído pela ação das intempéries,
este mesmo ferro, presente na estrutura que esticava os tecidos, criava dobras onde
se acumulavam mais folhas que caíam do pergolado onde pendia o “livro”.
Referentes e entorno se misturam pela impressão em cianotipia neste “li-
vro-instalação”, sugerem relações entre a materialidade e seu rastro direto nos fotogra-
mas, em diálogo com outra natureza de representação, suscitada pela fotografia digi-
tal. Neste trabalho, o entorno tem seu papel amplificado como uma espécie de coautor
da imagem, precipitando seu próprio rastro na ação sobre os químicos fotossensíveis
através da luz solar – executa a parte desta fotografia que prescinde de câmeras. É
também o entorno que continua a depositar corpos-folha pelas dobras do tecido, em
contraposição a seu próprio rastro fotográfico. Mais do que nunca, “o referente adere”
(BARTHES, 2006, p. 14) à fotografia.
A coautoria também se faz presente no desdobramento do vídeo Ocasos,
proposto em formato de um livro flipbook, materializando a ilusão de movimento num
recurso simples, quase didático que, em verdade, caberia, em coerência, numa etapa
pré-vídeo – embora tenha sido pensado e concebido depois deste. Este formato tam-
bém explora o exercício dos 24 frames impressos em cianotipia: o livro vem atrelado a
um kit, onde negativos dos frames acompanham blueprints com instruções para que os
“leitores” imprimam as imagens representativas do tempo cíclico abordado no vídeo.
Os leitores são convidados a serem coautores ao experenciar o processo de dilatação
do tempo proposto nesta pesquisa.
O livro também tem sido explorado como espaço onde itinerâncias entre pro-
cessos se desdobram na sequencialidade narrativa de suas páginas. A primeira experi-
ência se deu no livreto O menino que carregava água na peneira, onde fotografia digital
e a cianotipia refotografada se misturavam de maneira despretensiosa, na proposta de
um pequeno múltiplo impresso digitalmente. O livro, produto final de um curso de livro
de artista ministrato por fernanda Grigolin na Oficina Oswald de Andrade, foi resultado
da edição de fotos de um arquivo pessoal. As fotos aparentemente não possuiam cone-
xão entre si, a não ser pelo tema da água, inspirado pela poesia de Manoel de Barros.
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Posteriormente o poeta inspirou outro livreto, Os deslimites da palavra, desta vez enca-
deando em sua narrativa visual a monotipia e fotografias digitais originárias do making
of do vídeo em time-lapse Ocasos.
A escolha por imagens em preto e branco, num primeiro momento se deu
pela uniformização visual de imagens de diferentes naturezas e luzes. Mais tarde,
houve a percepção da preferência por um tratamento digital que aproximasse a fo-
tografia da natureza gráfica da imagem, ao serem destacados contrastes intensos e
eventualmente adicionando ruídos digitais e transformando meios tons em retículas
– trabalhadas inicialmente para saída de fotolitos digitais para processos artesanais
de impressão. É como se a matriz monocromática e hipercontrastada da impressão
gráfica fosse perseguida como imagem final.
Um outro critério para estas imagens sem cor aconteceu por razões práti-
cas, pelo tipo de saída digital eleito, em populares impressoras laser presentes em
copiadoras comuns, sem os sofisticados recursos tecnológicos fine art ou off set nor-
malmente atrelados a impressões gráficas de alta qualidade e precisão na fidelidade
das imagens. Neste caso, a supressão das cores termina por ter variações tonais in-
teressantes a cada tiragem, contando com fornecedores diversos e não habituados a
trabalhos desta natureza. São escolhas que também reforçam os ruídos originais das
imagens, advindos do ccd da câmera digital propositadamente trabalhado com iso ele-
vado ou em fotografias cuja captura contou com o uso de pinhole digital – no primeiro
livreto. Outros “defeitos” fotográficos na captura também foram incorporados, como o
uso da lente de 50mm invertida no segundo livro, produzindo imagens em macro com
as familiares distorções, aberrações cromáticas e pouca profundidade de campo con-
templadas por este recurso. São defeitos que passaram a ser perseguidos em todo o
processo criativo de produção: da captura fotográfica inicial à impressão final – e que
acabam por dialogar de forma orgânica com as intervenções experimentais em proces-
sos artesanais como cianotipia ou monotipia.
Pensando na autopublicação, além do modesto formato dos livretos, as op-
ções anteriores também favorecem o alcance a um público mais amplo e heterogêneo
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no circuito de feiras de publicações independentes, abrindo mão de dispendiosos pro-
cessos gráficos que poderiam dificultar sua agilidade e viabilidade ou onerar o custo
final do trabalho.
A imagem segue itinerante: por suportes, públicos, temporalidades, plastici-
dades e fazeres diversos.
As pontas dos nossos dedos são feiticeiros que embaralham o universo. (fLUSSER, 2009, p.40)
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5 ) M E M Ó R I A S
AFETOS, PRESENçA, AUSÊNCIA, FICçãO
Uma vez que a fotografia (é esse o seu noema) autentifica a existência de tal pessoa, eu quero encontrá-la por inteiro, isto é, na essência, “tal como ela própria é”, para além de uma mera semelhança, civil ou hereditária. [...] fui fotografado milhares de vezes; mas se todas essas fotografias “falharam” o meu ar (e talvez, afinal, eu não o tenha), a minha efígie perpetuará (o tempo, de resto limitado, que dura o papel) a minha identidade, não o meu valor. Aplicado a quem se ama, este risco é dilacerante: posso ficar privado para sempre da “imagem verdadeira.” (BARTHES, 2006, p. 118-120)
Em seu livro “A câmera clara”, Barthes fala sobre a fotografia e de seu
fracasso em espelhar a essência do retratado. fala da pose, deste retratado que
perde em espontaneidade ao se saber fotografado, onde ele mesmo se posta diante
da objetiva quase que “adulterando” este retrato de si. Ao buscar um retrato de sua
falecida mãe que lhe mostrasse sua essência, nos conta sobre estas imagens-afeto
de entes queridos que guardamos dentro de nós, e que a verossimilhança fotográfica
muitas vezes não consegue dar conta em representar. Ao eleger o retrato ideal, esco-
lhe aquele de sua mãe ainda criança e sequer nos dá a ver a imagem, pois certamente
esta só faria sentido à sua subjetividade – sustenta sua decisão apenas descrevendo
minuciosamente a foto sem mostrá-la a seus leitores.
Antes desta conclusão, no entanto, reflete a respeito desta carga de au-
tenticidade que a fotografia do paradigma fotoquímico carrega consigo, atestando o
que nomeia “referente” àquele que esteve diante da objetiva e tornou possível a foto,
e não necessariamente “à coisa facultativamente real para que remete uma imagem
ou um signo” (BARTHES, 2006, p. 87), ou seja, a fotografia não seria um atestado da
verdade de um fato, de uma situação, mas um atestado de presença daquele que foi
fotografado.
Que desejo de memória seria este que guarda o fotográfico? Que imagens
valiosas são estas que nem sempre primam por sua qualidade ou mesmo semelhança
com o real, mas que ativam sentimentos, afetos?
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[...] perante certas fotos, eu preferia ser selvagem, sem cultura.
[...] eu só me interessava pela fotografia por sentimento; queria aprofundá-la, não como uma questão (um tema), mas como uma ferida: vejo, sinto, portanto reparo, olho e penso.
A subjetividade absoluta só é atingida num estado, um esforço de silêncio (fechar os olhos é fazer falar a imagem no silêncio). A foto toca-me quando a retiro do seu blá-blá vulgar: técnica, realidade, reportagem, arte, etc.: nada dizer, fechar os olhos, deixar que o pormenor suba sozinho à consciência afe-tiva. (BARTHES, 2006, p. 15, p. 30, p. 64)
Em diferentes momentos de suas reflexões, esta ligação do fotográfico com
a subjetividade e afetividade vem à tona, fazendo pensar, para além das definições con-
sagradas no meio, sobre a presença constante da fotografia como ativadora dessas
camadas soterradas da memória.
Aleida Assmann fala da memória corporal de feridas e cicatrizes sendo mais
digna de confiança do que a memória mental – um corpo que tem a recordação inscrita
em sua própria pele, carregando a presença corporificada do que foi. E discorre sobre
a fotografia como instrumento de vestígio do real, utilizada como alegoria de um fenô-
meno de entalhadura do corpo. “[...] a metáfora fotográfica acentua não só o caráter
imediato de uma marca impressiva, mas, de quebra, a “corrosão”[Verwundung] de uma
matéria sensível” (ASSMAN, 2011, p. 266), que constituiria uma analogia entre a foto-
grafia e o trauma: “compara-se o autorregistro fotográfico do recorte de realidade nos
sais de prata da chapa química com o autorregistro de uma experiência traumática na
matriz do inconsciente.” (idem)
A ferida de Barthes ao fitar essas imagens pode ser pensada como seu
próprio corpo sendo atingido por estes “entalhes”. Imagens que emergem à superfície
da consciência ativadas pela força do sentimento, que afetam.
Imaginando um fotograma, este referente que não esteve diante da câmera,
mas decalcado em presença sobre o próprio suporte fotoquímico, e sustentando que a
verossimilhança fotográfica seja incapaz de fazer jus à imagem que tenho do retratado,
seria possível que este momento de tanta proximidade me falasse mais a esta memória?
Que este “entalhe” se fizesse com mais intensidade evocando a presença deste corpo?
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Que instinto estaria contido nesta espécie de “ansiedade de contato”, onde a
proximidade se dá na ausência de lacunas entre estes os corpos e seu registro?
Georges Didi-Huberman nos fala sobre o fazer rudimentar, primitivo, contido
na impressão por contato – não no sentido grosseiro, bruto, não-trabalhado ou rude
do termo, mas na ligação direta entre a ferramenta e o gesto, do encanto contido na
complexidade visível dessa transposição, da interação transparente entre ferramenta,
gesto e substrato. (DIDI-HUBERMAN, 2008, p. 30)
Nas impressões em seda de Ocasos, um encontro entre referentes de di-
ferentes naturezas se opera: negativos de mãos geradas a partir da imaterialidade
da fotografia digital tocam fotogramas de folhas ou negativos em monotipia, feitos a
partir do decalque de flores. Num desdobramento deste trabalho, negativos em mono-
tipia utilizando argila como pigmento, geram decalques de partes desse mesmo corpo
outrora fotografado pela câmera. Positivados em cianotipia, suas formas remetem a
pinturas rupestres que, no entanto, flutuam em azul, na leveza do tecido. A memória
de um gesto ancestral, encontrada em mãos impressas em cavernas pelo mundo, se
contrapõe, neste conjunto de imagens, à virtualidade fotográfica contemporânea, nesta
técnica dos primórdios da história da fotografia.
Tempos de origens diversas se conectam neste fazer artesanal que engloba
diferentes ferramentas. Pegadas do mundo material aglutinadas sobre a superfície fotos-
sensível gerando toques sutis, numa fotografia que, apesar deste referente aderido, nos
leva a um mergulho na verticalidade de um universo construído à maneira do que André
Rouillé, contestando a mensagem sem código de Barthes, chama de um “novo real”:
A imagem fotográfica não é um corte nem uma captura nem o registro direto, automático e analógico de um real preexistente. Ao contrário, ela é a produção de um novo real (fotográfico), no decorrer de um processo conjunto de registro e de transformação, de alguma coisa do real dado; mas de modo algum as-similável ao real. A fotografia nunca registra sem transformar, sem construir, sem criar. (ROUILLÉ, 2009, p. 77)
Nesta pesquisa, pode-se pensar que na carga ficcional das imagens amplifi-
cada, já que características de cor e captura de cada referente da composição acabam
por afastá-la da verossimilhança da fotografia digital. O caráter gráfico das texturas
da monotipia se mistura aos contornos dos corpos impressos em fotogramas, em
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contraponto à aparência mimética da captura digital. Diferentes camadas de tempos e
gestos se sobrepõe na impressão em cianotipia. A analogia com um “relatório arqueo-
lógico” suscitada por Benjamin (BENJAMIN, 1997. p. 239) para aludir a este “passado
soterrado” ativado pela memória, encontra aqui camadas compostas de diferentes re-
ferentes e gestos contrutivos. Uma memória constituída por vestígios cuidadosamente
sobrepostos, carregada de presentes.
Se existem coisas futuras e passadas, quero saber onde elas estão. Se ainda não posso compreender, sei todavia que em qualquer parte onde estiverem, aí não são futuras nem pretéritas, mas presentes. Pois, se também aí são futu-ras, ainda lá não estão. E, se nesse lugar são pretéritas, já lá não estão. Por conseguinte, em qualquer parte onde estiverem, quaisquer que elas sejam, não podem existir senão no presente. Ainda que se narrem os acontecimentos verídicos já passados, a memória relata não os próprios acontecimentos que já decorreram mas sim as palavras concebidas pelas imagens daqueles fatos, os quais, ao passarem pelos sentidos, gravaram no espírito uma espécie de vestígios. Por conseguinte, a minha infância que já não existe presentemente, existe no passado que já não é. Porém a sua imagem quando a evoco e se torna objeto de alguma descrição, vejo-a no tempo presente, porque ainda está na minha memória. (AGOSTINHO, Santo. 1988, p. 282)
No livro Cicatriz, a alegoria da ferida fotográfica pode ser enxergada de den-
tro da ficção, no ensaio fotográfico de um pequeno incidente: um cigarro cai sobre o
travesseiro, abrindo uma fenda por onde escapam plumas. fotografias digitais em clo-
se desta “ferida” conduzem a narrativa, entrecortadas por imagens em cianotipia onde
a mancha do químico, com seu vestígio líquido, abriga fotogramas das plumas que es-
caparam. Monotipias destas mesmas plumas se espalham pelas páginas. A narrativa
prossegue com a costura do “machucado” para contenção do “ferimento”.
O potencial ficcional da fotografia é revirado pelo deslocamento de sentido
das imagens abordadas, pela sequencialidade narrativa do livro e o embaralhamento
entre a fotografia digital e técnicas arcaicas. A materialidade, desta vez, sugere signos:
vestígios de químico aludindo a manchas de sangue sobre o papel, encerrando, dentro
de sua forma incerta, a leveza interna do corpo “machucado”.
A memória, aqui, é trabalhada por metáforas sutis. Os rastros já não dizem sobre
referente de forma direta. Os referentes fotografados, por seus significados, dizem sobre o
impalpável de sensações e sentimentos. Um referente invisível à câmera se faz presente
em sua ausência. Como disse Barthes: “fechar os olhos é fazer falar a imagem no silêncio.”
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6 ] A T R I L H A I N C E S S A N T E
Escalei o monte Gassan no dia oito. Gassan é conhecido como o ‘monte da lua’. Coloquei ao redor de meu pescoço um colar feito de alvo algodão.
Depois de galgar mais de oito milhas através da névoa, respirando o rarefeito ar das grandes altitudes, caminhei pelo gelo e pela brancura das neves
eternas até o ultimo portal das nuvens, na senda do sol e da lua. Arfante e gelado alcancei o cume. O sol acabara de se pôr, e a rósea lua clariperfeita
no céu brilhava. Juntei algumas folhas no chão e dormi. (Matsuo Bashô)
De dentro da travessia, inquietações, perscrutações, perguntas. Algumas
claras, pontuadas neste relato, respondidas pelo fazer durante o processo criativo ou
entre decantações da prática, em preciosos períodos de silêncio. Outras, insondáveis,
sentidas para logo se esvaírem, acalmadas pelo caminho a se desenrolar.
Acolher dualidades. Talvez um dos maiores desafios do percurso.
Nesta fotografia que se faz itinerante entre virtualidade e materialidade, per-
cebi que nunca havia negado a tecnologia e que as técnicas arcaicas de impressão por
contato se faziam presentes não pelo desejo de resgate do antigo, mas por necessidade
ferramental, que agregasse ao conceito do trabalho e respondesse satisfatoriamente aos
questionamentos de uma poética onde a recusa em aceitar a previsibilidade da imagem
digital é um dos pontos-chave do processo criativo. Partindo desse pressuposto, outras
demandas vieram a se tornar importantes durante este percurso: a necessidade de tornar
o processo permeável a respostas matéricas, o ponto-de-partida encarnado pela matriz
fotográfica sempre intacto e pronto a novas derivações, a busca pelo tempo estendido do
artífice como recurso reflexivo, o retorno à imaterialidade digital numa utilização mais cons-
cienciosa dos recursos tecnológicos, a partir da experiência com estes deslocamentos.
Junto a estas constatações, uma memória cuidadosamente construída, ali-
mentada por rastros de origens diversas, metáforas de um tempo circular, onde a
transformação matérica é sentida a partir da contemplação e se desloca para o fazer:
o ocaso de uma flor se desloca em inúmeros desdobramentos fotográficos para dizer
sobre a impermanência, sobre a infinitude dos ciclos de vida e morte que, para além
de serem vistos como extremidades, são sorvidos como caminhos inexauríveis da
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existência. Cada trabalho derivado destas reflexões, é sentido como estas pequenas
frações de tempo, estas mudanças incessantes anunciadas por Santo Agostinho, Hen-
ry Bergson e Jorge Luis Borges quando buscam entender a constituição deste tempo
que sentimos e que, no entanto, continuamente nos escapa. Este tempo que mede
a metamorfose dos corpos, que queremos congelar eternos na ferida fotográfica para
nos lembrar, para que tudo seja sempre o presente do sentir.
Colhidos na materialidade do mundo, estes corpos dançam diáfanos ao
sabor da luz dos dias que correm, desenhados pelos pixels-movimento das telas. Re-
pousam impressos como feridas sobre a trama fluida do tecido, sobre a rugosidade
do papel, sobre as páginas de um livro. Colhidos na materialidade da ferida impressa,
corpos são tragados novamente para o mundo dos pixels transmutados em roupas de
sonhos, sentidos tão intensos porque tão irreais em aparência. Corpos que podem
ainda renascer outros, misturados a outras matérias e substratos.
A travessia continua, alimentada, talvez, por desassossegos que não querem
respostas que apartem, mas novas perguntas que continuem fazer mover-se. Itinerâncias
que prosseguem de dentro das imagens, ao longo dos fazeres, na busca de outros entornos,
no decorrer das trocas de saberes, nas tentativas de instigar o outro, nos deslocamentos
entremundos físicos ou intangíveis, no querer entender o meu lugar a partir das relações com
o outro. Mudança incessante norteada pela solidez da essência, pela busca da síntese.
Ocasos de um tempo percorrido, senda sinuosa em direção ao ser no mun-
do, camadas de memória passíveis de escavação futura. Carregam, em sua constru-
ção, a única verdade fotográfica possível: a fotografia do interno.
É impróprio afirmar que os tempos são três: pretérito, presente e futuro. Mas talvez fosse próprio dizer que os tempos são três: presente das coisas passa-das, presente das presentes, presente das futuras. Existem, pois, estes três tempos na minha mente que não vejo em outra parte: lembrança presente das coisas passadas, visão presente das coisas presentes e esperança presente das coisas futuras. Se é lícito empregar tais expressões, vejo então três tem-pos e confesso que são três. (AGOSTINHO, 1988, p. 284)
Estamos permanentemente nascendo e morrendo. Por isso o problema do tempo nos afeta mais que os outros problemas metafísicos. Porque os outros são abstratos. O do tempo é nosso problema. Quem sou eu? Quem é cada um de nós? Quem somos? Talvez o saibamos algum dia Talvez, não. Nesse meio tempo, entretanto, como dizia Santo Agostinho, minha alma arde, porque quero saber. (BORGES, 1985, p. 49)
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8 ] A P Ê N D I C E | D I á R I O
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sol ardente apesar do vento
de outono
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O diário depositório.
Entrefolhas, pensamentos decantam misturados a objetos do
fazer. Folhas entrefolhas, flores entrefolhas, cheiro de seiva,
essências em vestígios do olfato, em marcas sobre o papel. A
matéria que se transforma entrepáginas, outrora eterna em
pegadas, rastros de sua forma efêmera. Pétalas despedaçadas, a
beleza contida na violência de se fazer imóvel quando impressa,
a graciosidade da sugestão de movimento de dentro do estático,
da bidimensionalidade do pigmento escuro.
Tudo são tentativas de apreender o impalpável, de representar o
que se rebela à forma fixa. Tudo são memórias, afinal.
Aquele que esteve diante da câmera, que deixou suas pegadas
gravadas no negativo. Coleciono rastros: do ccd da caixa-preta
digital, do contato com o químico fotossensível, da tinta impressa
sobre a transparência.
Durante a impressão, brinco com diferentes pegadas. Sobreponho
camadas, crio histórias do interno.
Ficções, a fotografia do sentir.
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O que diz respeito ao pinheiro, aprenda do pinheiro;
o que diz respeito ao bambu, aprenda
do bambu.
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Da infinitude da impermanência construí a duração.
Deixei que falasse por si. Os dias se alternando em luzes que
piscam pulsantes, coração vivo da essência em pegadas negras.
Foi desta maneira que pude me concentrar em suas formas
dançantes. Hipnotizada pela cadência do tempo travestido
de movimento, não queria que terminasse. Eu sabia que se
encerrara meu tempo de capturar sua vida secreta de ocasos.
Todos os dias a vigiá-la, sem que conseguisse perceber seus acenos
– sobrepus todos enfileirados na linha do tempo de modo a assistí-
los passar sob o domínio de minha vontade de apreendê-los.
Ali, sobre a linha onde os dias se transformaram no correr dos
segundos, eu a vi dançar. E entendi que tinha que mostrá-la
como realmente era: eterna em matéria, finita como corpo.
Transformação à revelia, de um tempo que sou incapaz de
perceber ao fitá-la.
O que diz respeito à flor, aprenda com a flor, diria Bashô.
Eu a contemplei a me ensinar sobre o pulsar da vida de dentro de
seu ocaso.
Foi assim que me entendi parte dela.
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OCASOS, 2017
sequência de frames retirada do vídeo
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OCASOS, 2017
sequência de 24 frames retirada do vídeo e impressa em cianotipia sobre papeis artesanais
tamanho aproximado 16x20 cm
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OCASOS, 2017
frame do vídeo impresso em cianotipia sobre papel artesanal
tamanho aproximado 16x20 cm
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Uma imagem que não quer ser vista, queimada sobre a pele de fibras que quase se
desfazem ao agitar do líquido. As pontas dos dedos tentam em vão alisá-la, para
que esticada, revele formas. A pele se rompe. Quer repouso, secar em paz, longe da
ansiedade que a acaricia.
A linha rasga fibras da superfície úmida do papel, toma o lugar da faca. A
sinuosidade da artesania nas bordas do substrato.
A espera, condição primeira para colher resultados. A pressa machuca a matéria.
Pensamentos povoam intervalos. Por que a espera se tenho prontas outras
possibilidades? Por que eu a fazer? Por que não delegar? Por que o retorno técnico
ao primitivo? Que busca é essa? Onde quero chegar?
Talvez não esteja no resultado o anseio maior, embora este mova minha vontade.
O caminho se sobrepõe ao destino. Nele se depositam experiências, toques,
frustrações, êxitos, o acúmulo de presentes, de presenças.
No futuro restarão lembranças. A fotografia feita de futuros do pretérito. Vai
dizer o que já foi. O processo é o que há de mais próximo do presente que se foi, o
momento em que toco ecos dessa imagem-passado com dedos de senti-la presente,
em que pincelo desejos de ver, em que mergulho na água a vontade de achar
a imagem perdida. Uma fotografia que renasce outra, misturada a matérias
estranhas que se sobrepõe à informação original, contam outras camadas,
descortinam novas cores.
Toco o espaço que carrega o desconhecido, uma fenda para a surpresa de dentro
do que me é familiar. A imagem que nasce da intimidade da convivência e,
paradoxo, do estranhamento da transformação, a surpresa do renascimento, o
medo do devir vislumbrado pela convivência com a metamorfose.
Tocar o escuro...
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nuvemovente céume impediu contemplara lua cheia de outono
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OCASOS, 2017
frame do vídeo impresso em cianotipia sobre papel artesanal
tamanho aproximado 16x20 cm
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O que me traz de volta ao trabalho? Por que minha vontade não é constante? Fico
a fitá-lo de longe, pensá-lo sendo feito. Sonho. No outro mundo o toco. Acordo
furiosa. Me surpreendo quando, neste mundo, as matérias não reagem como no
outro.
O imaginado desmorona diante da rebeldia matérica.
Aquele pedaço de pele jaz no lixo, impregnado de alquimias. Um frame se foi. Uma
camada amarrotada.
Penso sempre em minha própria pele frágil, quando um dia, machucada,
amarrotou-se sobre minha própria carne. A fragilidade de viver. Uma distração e
minha pele, ossos e carne ao chão.
Por que me exponho? Por que transito sobre esta linha?
Talvez a proximidade entremundos separados pela linha fascine. O mais vivo e
desperto tão próximo à morte. Circular sobre a intensidade desta proximidade
traz inteireza. O vento frio, os pingos da chuva cortando a pele, o coração
quente pulsando, a despeito do ar gélido da velocidade, a mente concentrada,
em suspensão, atravessando o movimento. Não há espaço para a fuga. Já se é o
próprio movimento.
Dores e prazeres, cheio e vazio. Travessias forjadas de forças opostas tragando
o estar para o presente. Sentada em zazen, o movimento continua dentro da
imobilidade. O pássaro à janela chama para o agora, o tempo da mente que
venta, da pele que se expõe ao presente.
O caminho se sobrepõe ao destino.
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OCASOS, 2017
frame do vídeo impresso em cianotipia sobre papel artesanal
tamanho aproximado 16x20 cm
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OCASOS 2017
flipbook impressão digital 8x12 cm
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OCASOS 2017
detalhe: kit com negativos e papeis para impressão em cianotipia
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OS DESLIMITES DA PALAVRA 2017
livro de artista impressão digital fechado: 10x13,5 cm aberto: 20x13,5 cm
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OS DESLIMITES DA PALAVRA 2017
detalhe: monotipia digitalizada integrante do livro
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OS DESLIMITES DA PALAVRA 2017
livro de artista impressão digital fechado: 10x13,5 cm aberto: 20x13,5 cm
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OS DESLIMITES DA PALAVRA 2017
detalhe: foto integrante do livro
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OS DESLIMITES DA PALAVRA 2017
livro de artista impressão digital fechado: 10x13,5 cm aberto: 20x13,5 cm
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OS DESLIMITES DA PALAVRA 2017
detalhe: foto integrante do livro
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O MENINO QUE CARREGAVA ÁGUA NA PENEIRA 2015
livro de artista impressão digital fechado: 10x13,5 cm aberto: 20x13,5 cm
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O MENINO QUE CARREGAVA ÁGUA NA PENEIRA 2015
detalhe: cianotipia digitalizada integrante do livro
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O MENINO QUE CARREGAVA ÁGUA NA PENEIRA 2015
detalhe: cianotipia digitalizada integrante do livro
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O MENINO QUE CARREGAVA ÁGUA NA PENEIRA 2015
detalhe: cianotipia digitalizada integrante do livro
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O MENINO QUE CARREGAVA ÁGUA NA PENEIRA 2015
detalhe: cianotipia digitalizada integrante do livro
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O MENINO QUE CARREGAVA ÁGUA NA PENEIRA 2015
detalhe: cianotipia digitalizada integrante do livro
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CICATRIZ 2017
livro de artista impressão digital fechado: 10x13,5 cm aberto: 20x13,5 cm
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CICATRIZ 2017
detalhe: cianotipia digitalizada integrante do livro
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CICATRIZ 2017
livro de artista impressão digital fechado: 10x13,5 cm aberto: 20x13,5 cm
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CICATRIZ 2017
detalhe: cianotipia digitalizada integrante do livro
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CICATRIZ 2017
livro de artista impressão digital fechado: 10x13,5 cm aberto: 20x13,5 cm
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CICATRIZ 2017
detalhe: cianotipia digitalizada integrante do livro
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CICATRIZ 2017
livro de artista impressão digital fechado: 10x13,5 cm aberto: 20x13,5 cm
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CICATRIZ 2017
detalhe: cianotipia digitalizada integrante do livro
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fim de primaverachoram os pássaroslacrimejam os peixes
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O que me dizem os rastros do corpo diretamente sobre a
superfície? O que vem a ser essa fotografia sem câmera?
E se a lembrança for constituída não só da superficialidade de
uma verossimilhança passiva, mas da presença decalcada e
quase violenta desse corpo que foi?
Sendo a memória feita de uma edição de afetos e sensações, não
seria este retrato muito mais fiel?
O toque, o sujar da pele, a proximidade, o atravessar da linha. Seria
esta uma espécie de expansão literal do referente de Barthes? Um
possível desdobramento dessa necessidade nunca plenamente
satisfeita pela fotografia?
A proximidade insuficiente da objetiva.
O tato amplificado durante o processo.
Não apenas o tato-suporte. A necessidade do tato-referente.
Lygia Clark me disse sobre verticalidade, sobre a solidão do
artista: “o artista é um solitário”. Não importam os filhos, amor,
pois dentro dele ele vive só. ele nasce dentro dele, parto difícil a
cada minuto, só, irremediavelmente só.”
No dia dos mortos, pulsa o novo. Um renascimento, mais um
parto de si. Dores e liberdades me tomam.
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... a estrada, sempre sob a densa neblina e cortantes rajadas de vento,
nos fazia sentir que estávamos tateando o
caminho por entre as nuvens.
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Que fotografia é essa que tenho buscado?
Tocar a origem, o primitivo do mundo de dentro da tecnologia
das caixas-pretas, querer entender do começo para se entender
presente.
Produzir futuros como quem produz pegadas, para que nos
labirintos da memória se saiba do caminho trilhado, se entenda
um ser forjado de percursos, para além de destinos traçados.
Que caminho é esse que se faz palpável para logo em seguida se
esconder do tato dentro das telas virtuais? O que importa neste
mapa?
A experiência. Pistas do que foi o referente, do que foi quem
viveu o processo. Sedução sinestésica, texturas do ver, do
tocar, ruídos mudos para se olhar, imagens-fusão de pixels,
pigmentos, químicos. A duração que se pretende o infinito da
impermanência. O mover-se sobre linhas tênues que delimitam
universos sutis.
Medo? De cair? De romper a pele? De acordar em outro mundo?
Talvez eu tenha entendido, através deste fazer fotográfico, que
pertenço a todos os continentes divididos pela linha. Origem,
presente. Passado, futuro. Vida, morte.
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vento de outonoa silenciosa colinamuda me responde
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leve brisa leve pinheiro
trevos e juncos
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silêncio profundoo sibilo da cigarraperfura as rochas
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… para chegar a esta cidade, era necessário atravessar um imenso
pântano. Segui por uma estreita trilha, que por
milhas e milhas cruzava, como uma reta, o imenso
alagado. Já avistava ao longe a pequena cidade
quando uma forte chuva começou a cair, e a escuridão da noite encobriu com rápidas
pinceladas de nanquim a paisagem.
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O assombro que fala de dentro do fazer.
Como na fala da psicanálise, o de repente do despencar. O
abismo, a garganta, o buraco para onde tudo converge.
Por que o assombro? Medo de cair?
Não. No buraco da gravidade zero não se cai. Levito no vazio,
(não) lugar onde dualidades convivem, linhas já não rasgam,
tudo é inteiro. Luz para enxergar o negro, peso que se faz leve ao
flutuar no denso das águas.
Imagens que vagam itinerantes, dentro de meu próprio
deslocamento por luas, sóis, folhas, flores. Tudo é passagem, tudo
é impermanência de uma matéria a outra. Da pele que toco ao
parir flores na água, da pétala que murcha no correr dos dias,
do sol que não se cansa de levantar, apesar de tudo. Da noite
nanquim de Bashô, do vento que corto ao percorrer as sendas.
Assombro, a eloquência do assombro...
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Me entendo feita de abismos. O sol que queima a pele nua, vento e chuva que
acariciam e ferem. A noite, a lua, a sombra, o incômodo da sombra.
Vida e morte me habitam, convivo com o todo. Leveza e peso a um só tempo.
É difícil ser inteira, não querer evitar a dor, não fugir de si.
Mas sou afortunada. De dentro da verticalidade que me diz Lygia Clark, esse
fazer que me ensina sobre o interno. Vejo este aproximar-se chegando de quando
ainda não era nascida. Por fotos longínquas, me aproximei. O foco da objetiva do
outro não foi suficiente. Havia o não dito, o querer perscrutar, o virar do avesso de
Barthes.
Continuei a trajetória.
O contato com álbum de família refotografado.
Do olho da câmera do outro à artesania de fazer minha esta imagem.
O contato da foto feita por mim, forjada em luz e sombra.
A lente macro. Mais perto. Ainda insuficiente.
Retirei a caixa-preta que se interpunha entre corpo e substrato.
O pigmento tocou a pele, a pegada do primitivo se fez.
O sol tocou a pele deste contato, a eternizou. O céu refletido em azuis.
Toque, pureza, síntese. Ganho a partir da perda. A dor de estar fincada ao chão.
A liberdade e a leveza da transcendência. Colocar-se vulnerável a si, deixar que o
mundo externo atravesse a espessura da carne. SER.
“[...] a pureza é descoberta dentro da maior conturbação de uma crise. É o ponto
luminoso dentro da maior escuridão.” Lygia Clark
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A fotografia sem câmera.
A textura terrosa do referente-rastro em contato direto. Uma camada frágil, numa
matriz perdida, não passível de outras cópias. A argila se fragmentando em
partículas, em pó: uma alegoria de nós mesmos.
No entanto, o registro se fez. A busca humana por eternidade, por se inscrever de
forma definitiva no tempo. Alguém viu aquelas mãos decalcadas nas cavernas,
alguém quis imaginar como teria sido a efemeridade daquela vida. O que
imaginamos quando olhamos para estas imagens e fechamos os olhos? O que
sabemos de nós através destas imagens-vestígio?
Não é verossimilhante esta imagem que enxergo. Estranhamente, a vejo como
se atravessasse a carne, como a um esqueleto. Fantasmagórica, assustadora. O
interno que nem sempre é belo sem máscaras. Enxergar por debaixo da pele,
enxergar-se no outro numa imagem espelho. Minha origem vista de perto.
Tão perto que assusta.
Produzo pretéritos para serem vistos no futuro. Gestos que me conectam ao presente
de me sentir viva. Me pergunto do que me lembrarei quando olhar para este sítio
arqueológico fotográfico, para todas estas intenções de memória. Serei outra,
andando por outros continentes, outros trechos da travessia. E os desassossegos, serão
os mesmos?
Sigo itinerante sob as luas e sóis de Bashô: subindo montanhas, atravessando
pântanos e desertos, dormindo sobre folhas ao relento, pés nus sobre a terra,
deixando pegadas sob as estrelas que dizem sobre meu ontem, minha essência,
meu destino.
Compulsiva, continuo fabricando rastros, fotografando o que mal vejo, mas que
sinto intenso. Sigo vulnerável a mim mesma.
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9 ] A P Ê N D I C E | G L O S S á R I O
FOTOGRAFIA
CALÓTIPO Processo de captura fotográfica a base de prata descoberto em 1839 pelo inglês William Henry Fox-Talbot (1800-1877). Foi um dos primeiros processos fotográficos a explorar a reprodutibilida-de pelo sistema negativo-positivo utilizando matrizes em papel.
CIANOTIPIA Processo de impressão fotográfica por contato descoberto pelo inglês Sir John Herschel em 1842. É um processo a base de sais de ferro sensíveis à radiação ultravioleta, positivando imagens com a característica cor azul. Foi comercialmente utilizado a partir de 1876 para fazer cópias de projetos de engenharia, as famosas blueprints.
DAGUERREÓTIPO Processo de captura fotográfica descoberto pelo francês Louis Jacques Mandé Da-guerre (1787-1851), anunciado e disponibilizado ao público pelo governo francês em 1839, o que garantiu sua popularização. Utiliza chapas de metal (geralmente cobre) recobertas de uma camada de prata onde será formada a imagem que se mostra positiva ou negativa de acordo com a incidência de luz sobre sua superfície. É um processo não reprodutível.
EADWEARD JAMES MUYBRIDGE (1830-1904) Um dos precursores da invenção do cinema. Desen-volveu um dos primeiros obturadores para câmeras fotográficas, fato que possibilitou o automatismo no registro fotográfico. Desafiado a fotografar um cavalo de corrida em pleno “voo” durante o galope, foi com seu sistema de obturadores automatizados que conseguiu mostrar que o animal tinha todas as patas suspensas do solo quando se encontravam recolhidas em direção ao ventre do animal, e não abertas em pleno “voo” como era representado em pinturas. A partir destes experimentos, que contavam com uma numerosa sequência fotos de várias etapas do movimento, desenvolveu o zootropo, aparelho giratório passava as imagens em rotação linear criando a ilusão de movimento. Com um invento deriva-do, o zoogiroscopio ou zoopraxiscopio, Muybridge projetou suas imagens em movimento sobre uma tela, dando início ao que seria o cinema.
FOTOGRAMA Fotografia capturada sem o uso de câmeras. O objeto é posicionado sobre uma super-fície fotossensível e exposto à luz. As áreas com incidência de luz capturam seus contornos pela ação fotoquímica.
GOMA BICROMATADA Processo de impressão fotográfica por contato que faz uso de pigmentos de cor aliados a químicos fotossensíveis da família dos dicromatos (ou bicromatos), permitindo maior estabi-lidade da imagem nas cópias do que as positivações em processos a base de prata do período e uma grande margem para intervenção do fotógrafo na revelação da imagem.
HELIOGRAFIA Processo descoberto por Niépce em 1827, que faz uso de um composto a base de betume da judeia, um derivado do petróleo sensível à luz, utilizado por gravadores para cobrir as placas de cobre, possibilitando desenhar sobre elas antes de mergulhá-las em ácido para aprofundamento dos traços na gravura. Era um processo pouco sensível, com exposições de até 8 horas.
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JOSEPH NICéPHORE NIéPCE (1765-1833) Inventor francês considerado o autor de uma das primei-ras imagens fotográficas feitas com uso de câmera de que se tem notícia, realizada em 1927 e chama-das por ele de heliografias. Associou-se a Daguerre, provavelmente em busca de melhores resultados em suas pesquisas.
LOUIS JACqUES MANDé DAGUERRE (1787-1851) Foi um pintor, cenógrafo, físico e inventor francês, famoso na história da fotografia por ser o criador do daguerreótipo, processo de captura fotográfica que utiliza chapas de metal como suporte em imagens únicas, não-reprodutíveis. Antes da descoberta, conduziu pesquisas junto a Niépce, já falecido à época que o governo francês lhe outorga o mérito pela descoberta. Dividiu a pensão vitalícia recebida pelo feito com o filho de Niépce.
MUNGO PONTON (1801-1880) Foi o descobridor das propriedades fotossensíveis dos dicromatos, em 1839, que possibilitou seu uso na técnica da goma bicromatada. O processo foi aperfeiçoado e em 1858, John Pouncy fez uso da cor aliado à goma arábica e ao dicromato, caracterizando o processo como o conhecemos.
Time-lapse Técnica cinematográfica onde o intervalo entre os frames de uma cena é pré-determinado e maior do que num filme comum, resultando num número reduzido de frames em relação a um vídeo comum, ocasionando uma reprodução que parece estar “acelerada”. É frequentemente utilizado para registrar acontecimentos de longa duração, imperceptíveis à observação normal, e onde seria inviável a utilização de uma câmera de vídeo capturando continuamente uma cena por dias – como no movimento dos astros ou no crescimento de plantas, por exemplo.
VaN DYKe BROWN Processo de impressão fotográfica por contato a base de sais de prata combinados a sais de ferro (citrato férrico amoniacal, o mesmo utilizado na cianotipia), sensível à radiação ultravio-leta. Foi descoberto em 1840, em pesquisas de Sir. John Herschel com processos a base de prata. Suas imagens possuem um característico tom amarronzado que originou seu nome, inspirado nos marrons utilizados pelo pintor flamengo Anthony van Dyck (1599-1641).
WILLIAM HENRY FOx-TALBOT (1800-1877) Cientista inglês, descobridor dos calótipos e autor de um dos primeiros livros com fotografias, The pencil of Nature, produzido artesanalmente a partir de negativos em papel. Chamava suas fotografias de “desenhos fotogênicos.”
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POESIA
HAIBUN Texto em prosa que rodeia um grupo de haikais.
HAIkAIS OU HAIkU Poema japonês de 17 sílabas, em esquemas silábicos de 5-7-5 sílabas que frequen-temente faz alusão à natureza ou estações do ano.
MATSUO BASHÔ (1644 - Ueno, 1694 - Osaka) Poeta japonês famoso por seus diários poéticos de viagem, compostos por narrativas em prosa, haibun, rodeando grupos de haikais. Seu pai era um sa-murai que vivia como professor de caligrafia. Aos nove anos torna-se amigo do jovem Todo Yoshimada, herdeiro do poderoso clã Todo. Bashô adota o nome literário de Sobo e seu companheiro o de Sengin. Estudam a caligrafia, a poesia japonesa e o verso clássico chinês. Com a morte de Sengin em 1666, Bashô se aprofunda na arte do haikai, trilhando um caminho poético próprio. Em 1681 inicia a prática do zazen, que influenciaria sua poesia de forma definitiva. Em 1682, depois de um retiro na periferia de Edo, despoja-se da obrigações mundanas e adota o exótico nome Bashô (bananeira). Passa a pe-regrinar errante com um grupo de discípulos, escrevendo conjuntamente seus relatos, dentre eles Visita ao Santuário de Kashima (1687), Visita a Sarashima (1688) e Trilha Estreita ao Confim (1689). Em 1694 adoece gravemente depois de uma caminhada até Osaka. Morre cercado de amigos e alunos. É enterrado às margens do lago de Biwa, no jardim do templo Yoshinaka, à sombra de uma bananeira.
RENGA Tankas ou wakas encadeados pelo tema da estação.
TANkA OU WAkA Poemas curtos encontrados na poesia japonesa, compostos em esquemas de 5-7-5-7-7 sílabas, divididos em um terceto de versos imparissilábicos e um dístico parissilábico: 5-7-5/7-7, sendo a primeira estrofe posteriormente constituinte dos conhecidos haikais. Foram muito utilizados na poesia das antologias imperiais dos séculos X e XII e correntes até o século XVI.