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ITF INSTITUTO TEOLÓGICO FRANCISCANO FREI ANDRÉ LUIZ DA ROCHA HENRIQUES, OFM TEOLOGIA FUNDAMENTAL EM DUNS SCOTUS A necessidade da revelação sobrenatural PETRÓPOLIS 2012

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ITF – INSTITUTO TEOLÓGICO FRANCISCANO

FREI ANDRÉ LUIZ DA ROCHA HENRIQUES, OFM

TEOLOGIA FUNDAMENTAL EM DUNS SCOTUS

A necessidade da revelação sobrenatural

PETRÓPOLIS

2012

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FREI ANDRÉ LUIZ DA ROCHA HENRIQUES, OFM

TEOLOGIA FUNDAMENTAL EM DUNS SCOTUS

A necessidade da revelação sobrenatural

Monografia apresentada à Faculdade de Teologia do Instituto Teológico Franciscano.

Prof. orientador: Frei Volney Berkenbrock, OFM

PETRÓPOLIS

2012

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“Quem encontrou a residência da sabedoria,

e quem penetrou em seus tesouros?

Quem subiu ao céu para atingir a sabedoria,

e quem a fez descer das nuvens?

Ninguém conhece seu caminho,

ninguém descobre suas veredas.

Mas aquele que tudo sabe e conhece

descobriu-a com sua inteligência [...]

É ele o nosso Deus,

nenhum outro pode ser-lhe comparado.

Desvendou todos os caminhos da ciência;

e a deu a Jacó, seu servo,

e a Israel, seu amado.

Depois disso apareceu sobre a terra

e conviveu no meio dos seres humanos”

(Br 3,15.29.31-32a.36-38).

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 5

1 CONTEXTO HISTÓRICO E ESTRUTURA DA QUESTÃO.............................. 7

1.1 CONTEXTO HISTÓRICO ....................................................................................... 8

1.2 ESTRUTURA DA QUESTÃO ................................................................................. 9

1.3 OS ARGUMENTOS PRINCIPAIS E A PROPOSTA DE ESTUDO.................... 10

1.4 EXCURSO 1: O INTELECTO HUMANO NO PRESENTE ESTADO ................ 12

1.5 EXCURSO 2: USO DAS ESCRITURAS POR SCOTUS ...................................... 14

2 POSSIBILIDADE DA REVELAÇÃO ................................................................... 15

2.1 ARGUMENTO CONTRA A POSSIBILIDADE DA REVELAÇÃO .................. 15

2.2 ORIGEM DO CONCEITO DE “SOBRENATURALIDADE” ............................. 16

2.3 CONCEITO ESCOTIANO DE “SOBRENATURALIDADE” ............................. 17

2.3.1 Primeiro modo de considerar a sobrenaturalidade ............................................... 17

2.3.2 Segundo modo de considerar a sobrenaturalidade ............................................... 18

2.3.3 Diferença entre os dois modos de considerar a sobrenaturalidade ...................... 19

2.4 RESPOSTA DE SCOTUS AO ARGUMENTO APRESENTADO ...................... 19

3 NECESSIDADE DA REVELAÇÃO ...................................................................... 21

3.1 ARGUMENTO PRINCIPAL CONTRA A NECESSIDADE DA REVELAÇÃO

SOBRENATURAL ........................................................................................................ 21

3.2 PERSUASÕES FILOSÓFICAS.............................................................................. 21

3.2.1 Argumento n. 1: Atividade autossuficiente do intelecto agente e possível ......... 22

3.2.2 Argumento n. 2: Perfeição natural do intelecto.................................................... 22

3.2.3 Argumento n. 3: Suficiência dos hábitos teóricos e práticos naturais ................. 23

3.2.4 Argumento n. 4: Todas as conclusões se encontram nos primeiros princípios ... 24

3.3 PERSUASÕES TEOLÓGICAS .............................................................................. 25

3.3.1 Argumento n. 1: Necessidade do conhecimento distinto do fim ......................... 26

3.3.2 Argumento n. 2: Necessidade do conhecimento distinto dos meios ................... 28

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3.3.3 Argumento n. 3: Necessidade do conhecimento daquilo que é próprio de Deus 29

3.3.4 Argumentos nn. 4 e 5: Necessidade de ser disposto a obter o fim e limitação do

intelecto agente ............................................................................................................... 34

3.4 RESPOSTA DE SCOTUS À QUESTÃO............................................................... 35

3.5 RESSALVA: A LIBERDADE ABSOLUTA DE DEUS ....................................... 35

4 TEOLOGIA: CIÊNCIA DISTINTA DA METAFÍSICA .................................... 37

4.1 QUESTÃO ACERCA DO PRIMEIRO OBJETO DO INTELECTO HUMANO 37

4.2 CONHECIMENTO METAFÍSICO SOBRE DEUS .............................................. 40

4.2.1 Distinção entre revelação natural e sobrenatural ................................................. 40

4.2.2 Acerca da demonstração metafísica da existência de Deus ................................. 43

4.3 TEOLOGIA: “CIÊNCIA PRÁTICA” ..................................................................... 45

CONCLUSÃO ............................................................................................................... 47

REFERÊNCIAS ............................................................................................................ 48

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5

INTRODUÇÃO

A Teologia Fundamental é, de certo modo, uma disciplina recente, embora

suas raízes se estendam até aos primórdios do cristianismo, com os padres apologistas,

no século II. Foi justamente da apologética cristã, contra acusações de pagãos e ateus

que afirmavam a irracionalidade da fé, que começaram a surgir as primeiras

elaborações acerca dos fundamentos mesmos da Teologia.

O fim do século XIII, época em que lecionou o Bem-aventurado João Duns

Scotus1, conheceu, como veremos no primeiro capítulo do presente trabalho, uma

crescente oposição do pensamento filosófico aristotélico-averroístico ao pensamento

teológico tradicional, atacando justamente os seus próprios fundamentos, isto é, a

necessidade de que algo seja inspirado sobrenaturalmente ao ser humano nesta vida.

Compreende-se, deste modo, a grande importância que Scotus deu ao tema, pois, uma

vez derrubada a sobrenaturalidade da revelação cristã – atrelada necessariamente à

incapacidade do ser humano de conhecer tais realidades reveladas apenas por meio de

sua razão natural –, todo o edifício teológico estaria fadado a ruir.

Dada, portanto, a importância vital desta temática no pensamento do Doutor

Sutil2, buscaremos analisar passo a passo os argumentos e contra-argumentos

apresentados na primeira parte do Prólogo da Ordinatio, atentos ao método próprio da

Teologia Fundamental, que deve possibilitar um diálogo autêntico da Teologia – que

1 O Bem-aventurado João Duns Scotus nasceu entre 1265-1266, provavelmente na aldeia de Duns, na

Escócia. Abraçou a vida religiosa na Ordem dos Frades Menores, à qual pertencia seu tio Frei Elias Duns, vigário geral da Escócia e guardião do convento de Dumfries, onde, em 1280-1281, Scotus

realizou seu noviciado. Foi ordenado sacerdote na igreja de Santo André em Northampton, Inglaterra,

a 17 de março de 1291, por Dom Olívio Sutton, bispo de Lincoln. Lecionou em Oxford, Cambridge, Paris e Colônia, onde faleceu a 8 de novembro de 1308, sendo sepultado na igreja de São Francisco. É

considerado um dos príncipes da Escolástica e, ao lado de São Boaventura, o principal representante da Escola Franciscana. Foi beatificado por João Paulo II em 20 de março de 1993.

2 Era uso comum na Idade Média o emprego de um título que qualificasse o pensamento dos doutores

de maior referência: assim, Santo Tomás é conhecido como Doctor Angelicus ou Communis, São Boaventura como Doctor Seraphicus, etc. O título Doctor Subtilis é o mais comumente aplicado ao

nosso pensador, devido ao caráter verdadeiramente sutil de seu pensamento, repleto de distinções e

demonstrações silogísticas. Todavia, ele também é conhecido como Doctor Marianus, pela brilhante defesa que, em 1307, em assembleia solene da Universidade de Paris, fez da tese imaculista, ou seja,

de que Maria Santíssima teria sido concebida sem o pecado original; tornada dogma da Igreja Católica por Pio IX em 1854. Além disso, também é conhecido como Doctor Ordinis, devido à grande

importância dada por este ao ordenamento essencial dos seres; conceito que se sobressai,

particularmente, na sua demonstração metafísica da existência de Deus.

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não pode jamais abandonar os princípios da fé – com quem quer que, vindo ao seu

encontro como interlocutor, não professe estes mesmos dados da fé.

Haverá um método que possa reunir em si todas as vantagens de ambos os descritos, o da dúvida metódica e o do argumento teológico? Este método

existe, e é o método escolástico da teologia, o credo ut intelligam. Este

método se funda sobre a fé e dá também à razão humana tudo quanto lhe pode ser concedido. Dentro deste método podem ser reconhecidos

plenamente os argumentos racionais, segundo sua lógica e força natural, sem perder de vista que se tratam de verdades reveladas, das quais por isto temos

certeza superior e absoluta, não por causa dos argumentos da razão, mas por

causa da revelação divina. Com a ratio fide illustrata, além disto, é possível uma investigação mais serena, mais segura e mais profunda das verdades

reveladas acessíveis à pura razão3.

Enfim, buscaremos no último capítulo esclarecer algumas questões

relacionadas à metafísica de Duns Scotus, particularmente a questão da demonstração

racional da existência de Deus, que já na época do Doutor Sutil, e até hoje, vem

causando uma série de mal-entendidos. A abordagem desta temática nasce também de

um interesse pessoal, pois foi acenado, na nossa defesa da monografia da Filosofia

acerca da “Metafísica do Bem-aventurado João Duns Scotus enquanto possibilidade

racional do discurso teológico”4, que tal demonstração racional esvaziaria a Teologia

de seu próprio conteúdo e tornaria desnecessária a mesma revelação sobrenatural.

Antes, porém, de entrarmos propriamente em nossa reflexão, resta-nos ainda

um alerta aos leitores, pois, em primeiro lugar, “talvez não exista, em teologia,

discurso tão árido quanto o que concerne à sua epistemologia”5; e, em segundo lugar,

“Duns Scotus é um autor difícil para qualquer um, talvez – acrescenta E. Gilson com

uma pitada de humor – o era até para si mesmo”6. Desejamos que este presente

trabalho possa contribuir para tornar um pouco mais fácil, e quiçá menos árida, a

compreensão do pensamento do Doutor Sutil.

3 KOSER, 2008, Epistemologia Teológica, p. 32. Observação: a disciplina Teologia Fundamental é

também muitas vezes chamada de Epistemologia Teológica.

4 Monografia apresentada ao Curso de Filosofia da UNIFAE – Centro Universitário Franciscano do

Paraná, em 2008, sob orientação do Professor Frei João Mannes, OFM. Uma síntese da monografia

pode ser encontrada em “Duns Scotus e o fundamento racional do discurso teológico” Revista Filosófica São Boaventura, Curitiba, v.2, fasc.1, p. 75-86, jan./jun. 2009.

5 TAVARES, 2008, p. 31. Cf. observação na nota anterior.

6 TAVARES, 2008, p. 31.

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1 CONTEXTO HISTÓRICO E ESTRUTURA DA QUESTÃO

O tema da necessidade da revelação sobrenatural foi colocado por Duns

Scotus como primeira questão de sua grande obra, intitulada Ordinatio. Escrita ao que

tudo indica em Oxford, esta obra foi conhecida durante muito tempo como Opus

Oxoniense. Trata-se de uma última “ordenação” dos comentários de Scotus aos quatro

livros das Sentenças de Pedro Lombardo. O estudo das Sentenças era elemento

obrigatório na formação acadêmica7 dos doutores em Teologia e conferia ao

concluinte o título de “bacharel sentenciário”.

Chegaram a nós três tipos de comentários de Scotus: a Ordinatio, a Reportatio

e a Lectura. A Reportatio é redigida provavelmente por seus alunos, compondo e

ordenando diversas “reportações” de suas aulas; ficou conhecida também com os

títulos de Opus parisiense ou Reportata parisiensia. A Lectura, por sua vez, foi

redigida pelo jovem Scotus; enquanto a Ordinatio representa o estágio mais maduro de

seu pensamento.

Seguindo a estrutura básica das Sentenças, a Ordinatio é igualmente dividida

em quatro livros, aos quais Scotus acrescenta um extenso prólogo, dividido em cinco

partes: 1. sobre a necessidade da doutrina revelada; 2. sobre a suficiência da Sagrada

Escritura; 3. sobre o objeto da Teologia; 4. sobre a Teologia como ciência; 5. sobre a

Teologia na medida em que é ciência prática.

7 Esquema provável do curriculum studiorum de Scotus (LAURIOLA, 2001, p. III; 1996, p. 114):

1281-1283: estudante de Filosofia em Northampton;

1283-1285: estudante de Filosofia em Oxford;

1285-1286: leitor de Filosofia em Northampton; 1286-1289: estudante de Teologia em Paris;

1289-1291: leitor de Teologia em Northampton; 1292-1297: estudante de Teologia em Paris, com vistas ao título de magister regens;

1297-1298: desenvolve o tirocínio de baccalaureus biblicus em Paris;

1298-1299: estuda as Sentenças, em Oxford; 1299-1301: leciona nos studi generali de Oxford e de Cambridge como baccalaureus sententiarius;

1301-1303: leciona no studium generale de Paris, até junho de 1303, quando é expulso por ordem do

Rei Filipe IV, o Belo, por não aceitar subscrever o libelo do rei contra o Papa Bonifácio VIII; 1303-1304: leciona no studium generale de Oxford até fim do verão de 1304;

1304-1305: leciona novamente no studium generale de Paris, recebendo, a 26 de março de 1305, a licentia docendi, isto é, o título de magister regens;

1305-1307: exercita o magistério catedrático na Universidade de Paris até fim de junho;

1307-1308: é transferido à Colônia para reger o studium generale.

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8

O presente trabalho se detém à questão acerca da necessidade da revelação

sobrenatural, isto é, à questão única que compõe a primeira parte do Prólogo da

Ordinatio, e que é formulada pelo Doutor Sutil nos seguintes termos: “Se é necessário

ao homem, no presente estado, alguma doutrina que seja inspirada de modo

sobrenatural”8.

1.1 CONTEXTO HISTÓRICO

Para se entender o contexto epistemológico e as preocupações que nortearam o

pensamento de Duns Scotus, não se pode olvidar, conforme explica Cruz Hernández9,

a crescente autonomia da Filosofia ao longo do século XIII. Chegavam, enfim, ao

pleno desenvolvimento as grandes universidades medievais. E entre elas, Paris e

Oxford se constituíam como os dois grandes centros intelectuais da Idade Média.

Nestas mesmas universidades haveria de estudar e lecionar o nosso pensador. Até à

época de Santo Tomás, nas universidades medievais, a Filosofia era ensinada

unicamente por teólogos; agora, passava a ser ensinada por professores de Filosofia.

Um fato, porém, levará filósofos e teólogos a um conflito acirrado: a 7 de

março de 1277, o bispo Estevão de Tempier condena 219 teses de cunho aristotélico-

averroístico. Segundo Chauvet10

, esta mesma condenação acaba atingindo até mesmo

o pensamento tomasiano11

, levando o Capítulo Geral da Ordem dos Frades Menores,

celebrado em Estrasburgo no ano de 1282, a restringir a leitura das obras de Tomás de

Aquino aos leitores notabiliter intelligentes, e somente numa leitura conjunta com o

Correctorium Fratris Thomae, escrito por Frei Guilherme de Mare, no qual se criticam

116 proposições.

Estas condenações de 1277 podem, segundo Guerizoli12

, ser articuladas em

torno de duas teses opostas: de um lado, a tese de “que nessa vida mortal podemos

8 DUNS SCOTUS, 2003, p. 225. Em latim: “Utrum homini pro statu isto sit necessarium aliquam

doctrinam supernaturaliter inspirari” (DUNS SCOTUS, 2001, p. 7).

9 Cf. CRUZ HERNÁNDEZ, 1968, p. 191.

10 Cf. CHAUVET, 1968, p. 80.

11 Tem se tornado bastante frequente o uso de termos distintos para designar o pensamento do

fundador e o da escola de pensamento nele fundada; assim, respectivamente: tomasiano e tomista; escotiano e escotista, etc.

12 Cf. GUERIZOLI, 2004, p. 741.

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conhecer Deus em sua essência” (tese 36) e, de outro, aquela que afirma “que sobre

Deus não pode ser conhecido senão que Ele existe ou a sua existência” (tese 215). A

primeira, conhecida como ontologismo, foi defendida por Henrique de Gand,

contemporâneo de Scotus, e pretende interpretar a doutrina agostiniana da

iluminação13 no sentido de que só podemos conhecer algo na luz da essência divina, o

Ser14

. A segunda parece entrever o apofantismo de linhagem ortodoxa e a afirmação

tomasiana de que “sobre Deus podemos conhecer que Ele existe [;...] não, porém, o

que Ele é”15

.

Para Pich16

, “a chamada ‘correção’ de Scotus ao otimismo acerca das

possibilidades da razão segue os reflexos imediatos das condenações de 1277 no seu

pensamento”. O Sutil revisou e “ordenou” as partes do Prólogo, provavelmente, entre

os anos de 1300 e 1301, de modo que o espaço extraordinário cedido a estas questões,

se comparado aos cinco breves artigos do prólogo de Tomás de Aquino e Boaventura,

apontam para uma mudança radical das relações entre Filosofia e Teologia pós 1277.

1.2 ESTRUTURA DA QUESTÃO

A quaestio é apresentada nestes termos: “Pergunta-se se é necessário ao

homem, no presente estado, que alguma doutrina especial seja inspirada de modo

sobrenatural, a qual a saber, não fosse possível atingir pela luz natural do intelecto”17

.

A lógica interna da questão – semelhante aos quiasmos tão apreciados na

exegese moderna e facilmente encontrados nas Sagradas Escrituras – pode ser

compreendida a partir do quadro a seguir, dando, ao mesmo tempo, uma ideia da

complexidade da argumentação desenvolvida pelo Doutor Sutil no trato da questão.

13

Duns Scotus critica o pensamento de Henrique de Gand, que estabelece a necessidade de uma

iluminação especial de Deus para se chegar a um conhecimento certo e indubitável, por conduzir, necessariamente, ao ceticismo. Reinterpretando a teoria agostiniana da iluminação, o Doutor Sutil

falará em iluminação geral, o que tornaria possível a qualquer um, utilizando-se apenas das

capacidades naturais do intelecto, chegar à certeza. Sobre as questões acerca da teoria da iluminação conferir o ótimo trabalho de Faustino Antonio Prezioso: La critica di Duns Scoto all’ontologismo de

Enrico de Gand. Padova: CEDAM, 1961.

14 Em grego: w;n, o;ntoj; daí, ontologia como ciência do ser.

15 TOMÁS DE AQUINO. Suma theologiae, I, q. 3, a. 4 apud GUERIZOLI, 2004, p. 741.

16 PICH, 2003, p. 18.

17 DUNS SCOTUS, 2003, p. 225-226, n. 1.

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10

a) Elenco de alguns poucos argumentos principais contra (3) e a favor (2);

b) Quatro persuasões filosóficas;

c) Cinco persuasões teológicas, suas instâncias contrárias e a resposta a elas;

d) Solução da questão;

c’) Resposta aos três principais argumentos apresentados pelos teólogos;

b’) Resposta aos quatro argumentos apresentados pelos filósofos;

a’) Resposta aos argumentos principais contra a solução apresentada.

No centro encontra-se justamente a solução proposta por Scotus, isto é, a

reformulação do próprio modo de conceber a sobrenaturalidade, que, conforme

analisaremos no próximo capítulo, constitui-se como conceito-chave para a resolução

do problema da possibilidade da revelação sobrenatural; o qual deve naturalmente

anteceder à questão acerca da necessidade desta, pois, se porventura fosse concluída a

sua impossibilidade, de que adiantariam os mais sutis e complexos argumentos a favor

de sua necessidade?

1.3 OS ARGUMENTOS PRINCIPAIS E A PROPOSTA DE ESTUDO

Os argumentos iniciais, o pro et contra introdutório, nem sempre foram bem

apreciados pelos comentadores escotistas. Allan B. Wolter, por exemplo, interpreta-os

como “mera ornamentação”, uma simples convenção escolástica, de modo que os

verdadeiros argumentos se encontrariam justamente no corpo da questão, isto é, na

“controvérsia entre filósofos e teólogos”. Para ele, estes argumenta principalia

“seriam significativos, nos termos de uma ‘analogia biológica do desenvolvimento de

organismos’, apenas como um ‘vestigial organ’, uma ‘relíquia histórica’”18

. Neste

sentido, os argumentos iniciais seriam resquício de debates anteriores e já comumente

rebatidos. Esta interpretação tem sua força no fato de que os dois últimos argumentos

iniciais já terem sido apresentados anteriormente por Henrique de Gand como

“argumentos iniciais”. Entretanto, acerca do primeiro argumento não se pode afirmar o

mesmo.

18

PICH, 2003, p. 20.

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11

Colman Ó. Huallacháin, por sua vez, insere os quatro argumentos dos

filósofos na série de argumentos iniciais, contando, deste modo, um total de sete

argumentos contrários à necessidade de doutrinas reveladas, os quais mostrariam a

“mentalidade” dos filósofos. Para justificar sua interpretação, ele se firma nas

anotações marginais de Scotus, que assinalou os dois primeiros argumentos e o

primeiro argumento contrário do corpo da questão com as letras a, b e c,

respectivamente. Contudo, a assinalação de Scotus não obedece ao elenco dos sete

argumentos.

Até mesmo o extenso comentário introdutório à tradução brasileira do Prólogo

da Ordinatio, elaborado por Roberto Hofmeister Pich19

, que busca analisar

exclusivamente “as principais posições de Scotus na primeira parte do Prólogo à

Ordinatio”, delimita-se apenas aos argumentos apresentados no corpo da questão.

Salvo o reconhecimento aos grandes comentadores de Scotus, buscaremos,

entretanto, apresentar no presente estudo uma ordem distinta de organização dos

argumentos presentes nesta primeira parte do Prólogo a partir justamente destes

mesmos argumentos iniciais, movidos para tanto mais por motivos metodológicos do

que históricos. Cada um destes argumentos será colocado à cabeça de um capítulo,

partindo do último argumento para o primeiro, de modo a tratarmos primeiramente da

possibilidade da revelação; a seguir, da sua necessidade; e, por fim, da distinção entre

o conhecimento metafísico possível acerca de Deus e aquele propriamente teológico.

Pelos mesmos motivos metodológicos, a fim de tentar facilitar ao menos um

pouco a compreensão do pensamento do Doutor Sutil, buscaremos reunir à

apresentação de cada argumento, suas instâncias contrárias e a resposta dada por

Scotus, que se encontram separadas na obra original.

Esta esquematização tem como embasamento teórico a divisão sistemática

proposta por Constantino Koser e que busca analisar primeiramente a possibilidade da

revelação para, a seguir, debruçar-se sobre a questão de sua necessidade. Além disso, o

mesmo autor, no elenco dos argumentos apresentados por Scotus, distingue o terceiro

argumento inicial como referente à possibilidade20

, preferindo analisá-lo num capítulo

19

In: SCOTUS, 2003, p. 15-218.

20 Cf. KOSER, 2008, Epistemologia Teológica, p. 87.

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12

à parte, isto é, naquele dedicado à “investigação racional da comunicabilidade de

mistérios”21

.

A distinção da primeira questão parece encontrar também seu embasamento

teórico em Camille Bérubé e Luis Alberto de Boni. Estes lançam a hipótese de que o

primeiro argumento teria sua origem numa crítica filosófica, na forma característica de

uma “interpretação virtualizante”, da defesa escotiana da univocidade do ente e do ser

enquanto ser como primeiro objeto do intelecto ex ratione potentiae: se tal é o

primeiro objeto comum do intelecto, então Deus – que está contido virtualmente sob o

conceito de ente – também pode ser conhecido em si pela razão natural. Scotus teria se

visto, deste modo, forçado a retomar, no Prólogo, o tema do primeiro objeto do

intelecto, após a redação das primeiras distinções do Livro I da Ordinatio22, como uma

espécie de correção ao mal-entendimento de teorias suas.

Portanto, este argumento será estudado à parte, justamente com a finalidade de

sanar algumas críticas levantadas durante a nossa defesa da monografia de Filosofia,

que buscava precisamente apontar para o limite máximo da capacidade da razão

natural até ao ponto da demonstração metafísica da existência de Deus e de algumas de

suas propriedades absolutas.

1.4 EXCURSO 1: O INTELECTO HUMANO “NO PRESENTE ESTADO”

No centro da questão está o ser humano, visto a partir de uma perspectiva

propriamente teológica, formulada por Scotus como o homem “no presente estado23

”.

Para Scapin24

, é justamente esta a sua perspectiva fundamental, ou seja, o “ponto de

vista que qualifica inequivocamente a concepção escotista do ser humano”.

21

Cf. KOSER, 2008, Epistemologia Teológica, p. 210-217.

22 Cf. DUNS SCOTUS. Ordinatio, I, d. 3, p. 1, q. 1-3.

23 Literalmente, “pro statu isto” (por esse estado). No prólogo de Lectura, o Doutor Sutil emprega a

expressão “pro statu viae” (pelo estado de caminhada), e, na segunda parte do prólogo da Ordinatio, o

termo “viator” (peregrino). O Catecismo da Igreja Católica (n. 302) faz uso deste conceito para tratar da providência divina: “A criação tem sua bondade e sua perfeição próprias, mas não saiu

completamente acabada das mãos do Criador. Ela é criada ‘em estado de caminhada’ (‘in statu viae’) para uma perfeição última a ser ainda atingida, para a qual Deus a destinou. Chamamos de divina

providência as disposições pelas quais Deus conduz sua criação para esta perfeição”.

24 Cf. SCAPIN, 1972, p. 269.

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13

A expressão é introduzida por Scotus já na formulação da questão a fim de

indicar que se trata de uma necessidade conforme às condições do intelecto humano

agora, enquanto peregrina nesta vida em direção à eternidade. Isto se deve a um

pressuposto de fé, segundo o qual o fim próprio do ser humano consiste na visão de

Deus face a face, ou seja, não apenas em conceitos confusos abstraídos a partir das

realidades sensíveis, mas como conhecimento intuitivo (imediato) da mesma essência

divina enquanto esta essência. Portanto, em absoluto (ex ratione potentiae), o intelecto

humano possui tal capacidade, pois seria absurdo que, para tanto, Deus mudasse a

natureza mesma da alma humana, pois, sendo esta uma “perfeição simples” (perfectio

simpliciter), deixaria de ser idêntica a si mesma: “o que é substancialmente simples

não pode ser intrinsecamente mudado”25

.

Mas qual é a razão deste estado? – Respondo. ‘Estado’ não parece ser senão

‘permanência estável’, firmada por leis de sabedoria. Porém, é firmado por

aquelas leis que o nosso intelecto não intelija, por esse estado, senão aquelas espécies [ou formas inteligíveis] que reluzem na imagem [sensível], e isto

[ocorre] ou por causa da pena do pecado original, ou por causa da concordância das potências da alma no operar, no sentido que a potência

superior [ou intelecto] opera sobre a mesma realidade sobre a qual opera a

inferior [ou os sentidos] [...] Contudo, esta concordância, que ocorre de fato no presente estado, não é da natureza do intelecto enquanto é intelecto – nem

também enquanto está em um corpo, porque assim teria necessariamente uma concordância semelhante no corpo glorioso, o que é falso

26.

No presente estado, portanto, seja devido à pena do pecado original, seja por

livre determinação divina independente da queda dos primeiros pais, a condição de

fato de atuação do intelecto consiste na concordância natural das potências da alma no

operar, isto é, na limitação da ação do intelecto aos objetos a ele apresentados a partir

da ação prévia dos sentidos.

Esta perspectiva antropológica escotiana é a chave para a compreensão da

questão acerca do “objeto adequado do intelecto humano”, conforme analisaremos no

25

WOLTER. Duns Scotus on the natural desire for the supernatural, p. 133 apud PICH, 2003, p.

30.

26 Tradução livre de DUNS SCOTUS, 1954, p. 113-114 (Ord. I dist. 3 pars 1 q. 3 n. 187): “Sed quae

est ratio huius status? – Respondeo. ‘Status’ non videtur esse nisi ‘stabilis permanentia’, fermata

legibus sapientiae. Firmatum est autem illis legibus, quod intellectus noster non intelligat pro statu isto nisi illa quorum species relucent in phantasmate, et hoc sive propter poenam peccati originalis, sive

propter naturalem concordantiam potentiarum animae in operando, secundum quod videmus quod potentia superior operatur circa idem circa quod inferior [...] Ista tamen concordantia, quae est de facto

pro statu isto, non est de natura intellectus unde intellectus est, – nec etiam unde in corpore, quia tunc

in corpore glorioso necessario haberet similem concordantiam, quod falsum est”.

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14

capítulo 4, e ao mesmo tempo a delimitação básica a que se deve ater a argumentação

que será desenvolvida ao longo de toda a quaestio.

1.5 EXCURSO 2: USO DAS ESCRITURAS POR SCOTUS

É muito comum o uso de passagens bíblicas como autoridades elencadas entre

os argumentos iniciais de uma quaestio medieval, geralmente ao lado de citações dos

Santos Padres, especialmente de Santo Agostinho.

Não nos propomos, aqui, apresentar um estudo sobre a exegese bíblica de

Duns Scotus, mas apenas enfatizar o uso simultâneo que, na presente questão, o

Doutor Sutil faz da hermenêutica própria das duas escolas clássicas de exegese

patrística: a antioquena (exegese literal) e a alexandrina (exegese alegórica).

Primeiramente, o Doctor Ordinis apresenta a autoridade de 2Tm 3,16s,

conforme a exegese literal – que deve preceder qualquer exegese espiritual e da qual

deverá esta partir –: “Toda Escritura é inspirada por Deus e útil para ensinar, para

repreender, para corrigir, para educar na justiça, a fim de que o homem de Deus seja

perfeito e capacitado para toda boa obra”.

Em seguida, como que se lançando a águas mais profundas dos desígnios

misteriosos de Deus, apresenta os versículos de Br 3,31-32.37-38 como autoridade a

favor, não só da necessidade da revelação sobrenatural, mas também do seu fato no

Antigo e no Novo Testamento, conforme a exegese alegórica, tão cara aos Santos

Padres:

Além disso, em Baruque 3 [assim] é dito sobre a sabedoria: Não há quem

possa saber os seus caminhos, mas quem sabe todas as coisas, este27

tem

conhecimento dela; logo, nenhum outro pode possuí-la senão o que sabe todas as coisas. Isto quanto à sua necessidade. Sobre o fato, porém, ele

acrescenta: Concedeu-a ao seu filho Jacó e a Israel, o seu amado, no que concerne ao Antigo Testamento; e segue-se: Depois destas coisas,

apareceu28

em terras e circulou com os homens, no que concerne ao Novo

Testamento29

.

27

Isto é, Deus, que concede a sua sabedoria aos homens por meio da revelação.

28 O verbo tem por sujeito o próprio Deus, possibilitando assim uma leitura alegórica profética com

vistas ao mistério da Encarnação.

29 DUNS SCOTUS, 2003, p. 228-229, n. 4.

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15

2 POSSIBILIDADE DA REVELAÇÃO

A palavra “revelação”, em seu sentido etimológico, significa “tirar o véu”,

indicando assim um sentido primitivamente físico, isto é, de tornar visível algo que

estava “velado”. Deste sentido físico, passou-se a uma compreensão de revelação

enquanto atividade intelectual de manifestação a outro de um dado por ele

desconhecido.

Revelação em sentido mais estrito e mais sublime é a manifestação de um

espírito ao outro, pela qual o primeiro apresenta ao segundo o conteúdo de seu conhecimento, tornando-o destarte capaz e solicitando-o ao

assentimento, sem ciência própria, fundado apenas sobre a ciência do

testemunho30

.

Embora possamos falar em revelação sobrenatural de verdades naturais, como

quando se afirma que Deus revela ao profeta fatos conhecíveis por outros e que este

ignorava; o que se pretende dizer aqui com a expressão “revelação sobrenatural” são

propriamente os mistérios divinos, desconhecidos não apenas pelo sujeito que recebe a

revelação, mas simplesmente impossíveis de se obter naturalmente por qualquer

intelecto humano neste mundo e conhecíveis por si unicamente pelo intelecto divino.

Dada a impossibilidade de se alcançar este conhecimento sobrenatural, não se daria

também a impossibilidade de sua recepção por parte do intelecto humano?

2.1 ARGUMENTO CONTRA A POSSIBILIDADE DA REVELAÇÃO

Se é necessária uma doutrina inspirada sobrenaturalmente, isto significa que a

potência intelectiva natural é “desproporcionada” ao objeto enquanto conhecível; de

modo que necessita tornar-se “proporcionada” a ele por meio de algo diferente de si.

Este, por sua vez, só pode ser natural ou sobrenatural; se é natural, o todo formado por

este e a potência intelectiva continua sendo “desproporcionado” ao primeiro objeto; se

é sobrenatural, então a potência intelectiva é “desproporcionada” também a este, de

modo que seria necessário recorrer ainda a um outro, e assim ao infinito. Logo, como

não se pode proceder ao infinito31

, é necessário parar no primeiro, dizendo que a

30

SCHEEBEN. Handbuch der Katholischen Dogmatik, I, p. 9 apud KOSER, 2008, Epistemologia

Teológica, p. 60.

31 Cf. ARISTÓTELES. Metaphysica, II, t. 5-13.

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potência intelectiva é “proporcionada” a todo conhecível e segundo todo modo do

conhecível32

. Se ela é assim “proporcionada” a todo conhecível, então não existe

propriamente um conhecimento sobrenatural; porém, se tal conhecimento existisse, a

“desproporcionalidade” da potência intelectiva em relação a este impossibilitaria

qualquer forma de comunicação de tal conhecimento por parte daquela, que não

poderia tornar-se “proporcionada” por nada: nem por algo natural, nem sobrenatural.

2.2 ORIGEM DO CONCEITO DE “SOBRENATURALIDADE”

O termo “sobrenatural” (u`perfu,shj) e seus sinônimos foram

empregados inicialmente, tanto na Filosofia (Platão, Proclo) quanto na Teologia

(Justino, Gregório de Nazianzo, Gregório de Nissa, Pseudo-Dionísio) para designar as

“substâncias superiores à natureza”, querendo indicar deste modo a distância absoluta

entre a perfeição destas e a que se pode perceber nas substâncias sensíveis. Um

segundo uso do termo está relacionado aos fatos que saem do curso ordinário da

natureza, isto é, os milagres. Este uso encontrou maiores dificuldades, pois fora muitas

vezes confundido como um ato contrário à natureza (para. fu,sin33

). Já

Orígenes terá que combater tal compreensão equivocada: “Nada poderia ser contra a

natureza das coisas feitas por Deus, [... mas] há coisas que estão acima da natureza:

são estas coisas que Deus pode fazer elevando o homem acima da natureza humana”34

.

Deste modo, o conceito de “sobrenatural” passa definitivamente ao âmbito da

Antropologia Teológica, geralmente relacionado ao fim último do ser humano, isto é,

ao desejo natural humano da visão de Deus, que não pode, contudo, ser atingida

naturalmente, mas unicamente por um dom sobrenatural.

Esta compreensão teológica já bem consolidada será colocada à prova, no

século XIII, com o ingresso no pensamento ocidental da metafísica aristotélica de

matizes averroísticos e avicenianos. Aristóteles35

só conhece dois tipos de movimento:

32

Cf. DUNS SCOTUS, 2003, p. 228, n. 3.

33 Cf. Rm 11,24: alegoria paulina do enxerto de ramos de oliveira selvagem numa oliveira frutífera

referente à relação espiritual da Igreja dos pagãos com o antigo Israel.

34 ORÍGENES. Contra Celso, V, 23 apud BOULNOIS, 2004, p. 1673.

35 Cf. ARISTÓTELES. Física, V, t. 6.

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natural e violento, de modo que ou a graça divina se reduz a um cumprimento natural

dos fins da natureza, entendido como concordância entre causa primeira e causas

segundas36

, ou opera como um retorno violento da natureza contra si mesma. Além

disso, segundo o Estagirita, todos os homens querem conhecer e, particularmente, as

causas mais elevadas, de modo que a contemplação de Deus é o fim último do homem,

o ato que mais radicalmente realiza sua essência e que pode ser alcançado pelo

exercício da moral e da especulação.

2.3 CONCEITO ESCOTIANO DE “SOBRENATURALIDADE”

O Sutil empreenderá na solutio, conforme apresentado no esquema da

quaestio, uma análise metódica e precisa do conceito de “sobrenaturalidade”. Contudo,

seu modo próprio de argumentar nem sempre é bem compreendido; dando, assim,

margens para compreensões equivocadas ou mesmo reduzidas de seu pensamento.

Diversos comentadores – como Josef Finkenzeller, Ludger Honnefelder, Alessandro

Ghisalberti e Olivier Boulnois – parecem ignorar a distinção entre os dois modos de

considerar a sobrenaturalidade ou preferem uni-los numa única conceitualização; o

que, seguindo a interpretação apresentada por Pich37

, não nos parece conforme à

argumentação literal de Scotus, que, como analisaremos a seguir, apresenta uma

diferenciação entre os dois modos de considerar a sobrenaturalidade.

2.3.1 Primeiro modo de considerar a sobrenaturalidade

Este primeiro modo consiste na comparação entre o que recebe a ação e o

agente do qual a recebe. Para tal, deve-se primeiro distinguir entre o ato recebido e o

agente.

Em relação ao ato recebido, a potência receptiva pode ser uma potência

natural, violenta ou neutra. “Ela é chamada de natural se for naturalmente inclinada,

violenta se é contra a sua inclinação natural sofrer o ato, indiferente se nem for

36

Causa primeira é Deus enquanto princípio primeiro de todas as coisas e, neste sentido, causa remota

de toda causalidade presente nas criaturas; entendidas, assim, como causas segundas. Neste esquema filosófico, Deus, por ser eterno, não poderia agir na história, mas apenas no ato criador, tomado por

isso como ab aeterno.

37 Cf. PICH, 2003, p. 151-193.

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inclinada naturalmente àquela forma que recebe nem à oposta. Nesta comparação,

porém, não há nenhuma sobrenaturalidade”38

. Em outras palavras, a partir desta

perspectiva, “nenhum conhecimento lhe é sobrenatural, porque o intelecto possível é

naturalmente aperfeiçoado por todo e qualquer conhecimento e está naturalmente

inclinado a todo e qualquer conhecimento”39

.

Mas, em relação ao agente de quem esta recebe o ato, há naturalidade quando

tal agente é “apto a imprimir naturalmente tal forma em tal passivo, há

sobrenaturalidade, porém, quando [o receptivo] é comparado com um agente que não é

naturalmente capaz de imprimir aquela forma naquele que sofre o ato”40

. Em outras

palavras, no presente estado, há naturalidade somente mediante a ação do intelecto

agente e da imagem sensível, únicos agentes naturais de todo processo intelectivo41

.

Deste modo, portanto, ao revelar qualquer coisa sem o concurso dos agentes naturais

do conhecimento, Deus o faz de modo realmente sobrenatural.

Scotus ainda procura responder à instância que nega a distinção acima.

Segundo os instanciadores, uma forma contrária à inclinação do receptivo só pode ser

induzida por um agente que o violente; do mesmo modo, o agente sobrenatural só

pode agir sobrenaturalmente induzindo uma forma. No entanto, segundo o Sutil, a

distinção permanece válida, pois a razão por si de “violento” se dá na comparação do

receptivo com a forma, enquanto a razão por si de “sobrenatural”, na comparação do

receptivo com o agente42

.

2.3.2 Segundo modo de considerar a sobrenaturalidade

Pelo outro modo proposto por Scotus, um conhecimento poderia ser

considerado sobrenatural quando procede de um agente que toma o lugar de um objeto

sobrenatural. Ao revelar mistérios conhecíveis somente a partir da visão da essência

divina, Deus causa na mente algum conhecimento destas verdades, ainda que obscuro,

38

DUNS SCOTUS, 2003, p. 261, n. 57.

39 DUNS SCOTUS, 2003, p. 263, n. 60.

40 DUNS SCOTUS, 2003, p. 261, n. 57.

41 Cf. DUNS SCOTUS, 2003, p. 263, n. 61.

42 Cf. DUNS SCOTUS, 2003, p. 262, n. 59.

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visto que se trata de um conhecimento acerca de um objeto não conhecido, o qual seria

capaz de causar um conhecimento perfeito e claro destas verdades.

“O objeto, pois, apto a causar o conhecimento desta [proposição] ‘Deus é

trino’, e de semelhantes, é a essência divina conhecida sob a [sua] razão própria”43

.

Logo, o conhecimento imperfeito destas proposições “está virtualmente contido

naquele perfeito, cuja causa seria o objeto em si conhecido”44

.

2.3.3 Diferença entre os dois modos de considerar a sobrenaturalidade

Para tornar evidente a diferença entre estes dois modos de considerar a

sobrenaturalidade, o Sutil propõe um exemplo: “Se um agente sobrenatural [...]

causasse o conhecimento de um objeto natural, como se infundisse a geometria em

alguém, este [conhecimento] seria sobrenatural pelo primeiro modo, não pelo

segundo”45

.

Pelo primeiro modo, qualquer conhecimento infundido por Deus, mesmo um

conhecimento apto a ser obtido naturalmente, seria considerado sobrenatural, porque

não procede dos agentes naturais do conhecimento, isto é, o intelecto agente e a

imagem sensível. Pelo segundo modo, no entanto, só se pode falar de um

conhecimento sobrenatural se este for relativo ao objeto sobrenatural em si. Por isso,

onde se dá este segundo modo, dá-se simultaneamente o primeiro, pois este

conhecimento relativo ao objeto sobrenatural não pode ser causado pelos agentes

naturais, mas unicamente pelo agente sobrenatural.

2.4 RESPOSTA DE SCOTUS AO ARGUMENTO APRESENTADO

Uma vez esclarecido o conceito de “sobrenaturalidade”, pode-se responder ao

argumento apresentado contra a possibilidade de uma revelação sobrenatural.

O intelecto humano, no presente estado, é de fato desproporcionado em

relação àquelas verdades que não podem ser conhecidas a partir do intelecto agente e

43

DUNS SCOTUS, 2003, p. 264, n. 63.

44 DUNS SCOTUS, 2003, p. 265, n. 63.

45 DUNS SCOTUS, 2003, p. 265-266, n. 65.

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das imagens sensíveis, como a proposição ‘Deus é trino’. Logo, deve tornar-se

proporcional por meio de um outro.

Este ‘outro’ pode ser compreendido como aquele conhecimento procedente do

agente-revelador que substitui o objeto propriamente sobrenatural – por meio deste

conhecimento o intelecto assente àquelas verdades, ainda que possua acerca delas

apenas um conhecimento obscuro – ou como o agente que causa o conhecimento

destas mesmas verdades sobrenaturalmente – ou seja, sem o concurso dos agentes

naturais do conhecimento no presente estado.

Em qualquer dos dois modos de compreender este ‘outro’, o intelecto é

aperfeiçoado naturalmente pelo conhecimento destas verdades, pois são conforme à

sua própria inclinação; de modo que o intelecto está em potência obediencial em

relação a este ‘outro’ e é suficientemente proporcionado a ele, de modo a ser movido

por este mesmo.

A partir de si, o intelecto “é capaz daquele assentimento causado por tal

agente, inclusive naturalmente capaz; não é necessário, portanto, que este mesmo

[intelecto] seja proporcionado por meio de um outro para receber o próprio

assentimento. Fica-se, portanto, no segundo, não no primeiro”46

.

46

DUNS SCOTUS, 2003, p. 283, n. 94.

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21

3 NECESSIDADE DA REVELAÇÃO

Dada a possibilidade da revelação sobrenatural enquanto comunicação de

mistérios, é preciso demonstrar agora que tal revelação seja necessária ao peregrino.

Para os teólogos, isso é evidente, pois, pela fé, sabem que ao ser humano foi dada uma

inclinação natural ao fim sobrenatural, ao qual, porém, não poderá alcançar

naturalmente, pelas suas próprias forças.

Segundo Pich, o problema da revelação sobrenatural para os medievais, e por

conseguinte para Duns Scotus, não consistia tanto na existência ou não da chamada

“perfeição sobrenatural”, defendida pelos teólogos, mas “se uma inclinação, cuja

realização está além dos poderes naturais do ser humano, não implica uma certa

imperfeição deste mesmo”47

.

3.1 ARGUMENTO PRINCIPAL CONTRA A NECESSIDADE DA REVELAÇÃO

SOBRENATURAL

O argumento principal contrário é formulado, portanto, do seguinte modo: O

intelecto é mais perfeito que o sentido. No entanto, o sentido não tem necessidade de

algum auxílio sobrenatural para chegar ao seu fim; logo, tampouco o intelecto, pois se

não é deficiente no imperfeito, muito menos o será no perfeito. O Filósofo48

o

comprova: “A natureza não é deficiente no necessário”49

.

Para chegarmos à resposta de Scotus, acompanhemo-lo por meio das

complexas razões aduzidas por filósofos e teólogos acerca da pretensa “deficiência” da

natureza humana e da necessidade da graça em vista da “perfeição” sobrenatural50

.

3.2 PERSUASÕES FILOSÓFICAS

Os filósofos pensam poder demonstrar, mediante a autoridade e razão do

Estagirita, que nenhum conhecimento sobrenatural é necessário ao homem no presente

47

PICH, 2003, p. 17.

48 Modo honorífico e comum entre os medievais para designar Aristóteles.

49 ARISTÓTELES. De anima, III, t. 45 apud DUNS SCOTUS, 2003, p. 228, n. 2.

50 Cf. DUNS SCOTUS, 2003, p. 231, n. 5.

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22

estado; contudo, ao analisar seus raciocínios, Scotus chega à conclusão de que não

passam de persuasões ruins.

3.2.1 Argumento n. 1: Atividade autossuficiente do intelecto agente e possível

O primeiro argumento aduzido pelos filósofos baseia-se no princípio da

autossuficiência dos princípios ativo e passivo para a realização de uma ação. Com

efeito, “quando um ativo natural e um passivo são aproximados e não impedidos,

segue-se uma ação necessariamente, porque ela não depende essencialmente senão

daqueles como de causas anteriores”51

. Porém, com respeito a todo inteligível, o

princípio ativo é o intelecto agente; e o passivo, o intelecto possível; os quais se

encontram naturalmente desimpedidos. Logo, por sua virtude natural, estes podem

produzir um ato de entendimento com respeito a todo e qualquer inteligível.

Contra este argumento, Scotus recorda que o intelecto agente não é a única

causa do conhecimento, pois este depende da alma cognoscente e do objeto conhecido.

De modo que, pelo próprio Filósofo, embora “a alma possua suficiente ativo e passivo,

na medida em que a ação com respeito ao conhecimento convém à alma, não possui,

contudo, suficiente ativo em si, na medida em que a ação convém ao objeto, porque

assim é como uma tábua rasa”52

.

3.2.2 Argumento n. 2: Perfeição natural do intelecto

Embora pareça muito semelhante ao primeiro, o segundo argumento deve ser

tomado distintamente. Este toca de modo mais direto a polêmica em torno da

“deficiência” da natureza, e é formulado assim: “A toda potência natural passiva

corresponde algum natural ativo, de outro modo pareceria que a potência passiva

existiria sem utilidade na natureza, se não pudesse, por meio de nada na natureza, ser

reduzida ao ato [...]; logo, corresponde a ela alguma potência natural ativa”53

.

Para responder a isto, o Sutil aponta para uma necessária distinção na

compreensão do termo “natureza”. Este, por sinal, pode ser tomado por um princípio

51

DUNS SCOTUS, 2003, p. 231, n. 6.

52 DUNS SCOTUS, 2003, p. 270, n. 72; cf. ARISTÓTELES. De anima, III, t. 14.

53 DUNS SCOTUS, 2003, p. 232, n. 7.

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intrínseco de movimento ou de repouso; ou como contraposto à arte ou a um propósito

deliberado, quer seja intrínseco ou não. Neste sentido, deve-se negar que a todo

passivo corresponda naturalmente um princípio ativo intrínseco, porque muitos seres

são receptivos de algum ato do qual não possuem um princípio ativo intrínseco, sem

que, contudo, a potência passiva exista em vão, pois pode ser conduzida ao ato por

meio de um outro agente na natureza, isto é, na coordenação dos seres. Do mesmo

modo, pode-se afirmar que a potência intelectiva receptiva não é em vão, pois pode ser

aperfeiçoada por um agente sobrenatural. O fato de ela não poder alcançar a sua

perfeição a partir de meios naturais, isto não a vilifica, pois “se a nossa felicidade

consistisse na mais elevada investigação teórica que agora podemos naturalmente

atingir54

[...], digo que uma outra [perfeição] mais eminente pode ser recebida

naturalmente”55

. Nisto, portanto, muito mais é dignificada a natureza.

3.2.3 Argumento n. 3: Suficiência dos hábitos teóricos e práticos naturais

Um terceiro argumento apela para a suficiência dos hábitos teóricos e práticos

naturais, pois naqueles teóricos – matemática, física e metafísica – compreende-se

todo ente e, semelhantemente, não parece existir outra ciência prática do que as ativas

e produtivas56

.

Uma resposta clássica a este argumento fora anteriormente apresentada por

Santo Tomás de Aquino57

, segundo o qual, a razão diversa do conhecível introduz a

diversidade das ciências. O Aquinatense apresenta o seguinte exemplo: enquanto o

astrônomo demonstra por cálculos matemáticos que a Terra é redonda; o mesmo o faz

o cientista natural pela observação da natureza. Deste modo, “nada impede que, sobre

as mesmas coisas sobre as quais as disciplinas filosóficas tratam, na medida em que

são conhecíveis pela luz da razão natural, também uma outra ciência trate, na medida

em que elas são conhecidas pela luz da revelação divina”58

.

54

Cf. ARISTÓTELES. De anima, III, t. 45.

55 DUNS SCOTUS, 2003, p. 271-272, n. 75.

56 Cf. DUNS SCOTUS, 2003, p. 232, n. 8.

57 Cf. TOMÁS DE AQUINO. Summa theologiae, I, q. 1, a. I, ad. 2.

58 DUNS SCOTUS, 2003, p. 273, n. 79.

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Contudo, esta resposta não soluciona a questão, pois “se dos conhecíveis na

teologia há um conhecimento transmitido ou que pode ser transmitido em outras

ciências, embora numa outra luz, logo não é necessário o conhecimento teológico

sobre estes mesmos”59

.

A única resposta possível, portanto, segundo Scotus, é que “naquelas ciências

teóricas, ainda que seja tratado de tudo o que é teorizável, não, contudo, quanto a tudo

o que é conhecível sobre eles, porque não [é tratado, ali,] quanto ao que é próprio

deles”60

, como ficará61

evidente na terceira razão dos teólogos.

3.2.4 Argumento n. 4: Todas as conclusões se encontram nos primeiros princípios

O último argumento dos filósofos é extraído do campo da Lógica, que assim

afirma acerca dos primeiros princípios: “o que pode naturalmente inteligir o princípio,

pode naturalmente conhecer as conclusões incluídas no princípio”62

. Dado que

conhecemos naturalmente os primeiros princípios, segue-se que podemos naturalmente

ter conhecimento de todas as conclusões conhecíveis.

Henrique de Gand responde dizendo que os termos que compõem os primeiros

princípios são abstraídos dos objetos sensíveis e, portanto, suas conclusões só podem

ser aplicadas em relação a estes mesmos objetos sensíveis63

. Contudo, o intelecto não

pode duvidar de que estes mesmos primeiros princípios são tão válidos em relação aos

objetos sensíveis quanto aos não sensíveis, “pois não duvidamos mais que os

contraditórios não são simultaneamente verdadeiros sobre Deus (como que Deus é

bem-aventurado e não bem-aventurado, e deste tipo) do que sobre algo branco”64

.

Conforme o Sutil, a resposta consiste no fato de que nem todas as conclusões

conhecíveis estão incluídas virtualmente nos primeiros princípios: “Quando, portanto,

os termos sujeitos, porque distribuídos, são tomados por todos, não são tomados por

59

DUNS SCOTUS, 2003, p. 273, n. 79.

60 DUNS SCOTUS, 2003, p. 275, n. 82.

61 Na obra original, a resposta de Scotus aos argumentos dos filósofos se encontra depois da exposição

dos argumentos dos teólogos.

62 DUNS SCOTUS, 2003, p. 233, n. 9.

63 DUNS SCOTUS, 2003, p. 275, n. 83.

64 DUNS SCOTUS, 2003, p. 276, n. 84.

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25

todos senão com respeito aos termos predicados que são comuníssimos, e, por

consequência, em virtude de tais princípios não são conhecidos dos [seus] inferiores

senão os [seus] predicados comuníssimos”65

. Isto fica evidente num exemplo: embora

a proposição ‘todo todo é maior que a sua parte’ inclua a proposição ‘um quaternário é

maior que um binário’, e outras semelhantes, ela não inclui, contudo, as seguintes: ‘o

quaternário é o dobro do binário’, ‘um ternário está numa proporção de um e meio

para com um binário’, pois estes predicados exigem termos médios especiais, não

incluídos naqueles predicados comuníssimos66

.

3.3 PERSUASÕES TEOLÓGICAS

Antes de adentrarmos na argumentação apresentada pelos teólogos, é

imprescindível uma leitura atenta da nota apresentada por Scotus sobre a questão de

argumentos construídos com base em alguma sentença de fé.

Nota: nada sobrenatural pode, pela razão natural, ser mostrado existir no

peregrino, e nem pode [ser mostrado] ser necessariamente requerido para a

sua perfeição; e tampouco, ademais, o que possui [algo sobrenatural] pode conhecer que aquele nele se encontra. Portanto, é impossível, aqui, que se

faça uso da razão natural contra Aristóteles: caso se argumente a partir do que é crido, não há argumentação contra um filósofo, pois ele não admite

uma premissa crida. Donde estas razões aqui formuladas contra ele têm uma

outra premissa, crida ou provada a partir do que é crido; por isso mesmo, não são senão persuasões teológicas, a partir do que é crido para o que é crido

67.

Portanto, se os argumentos a seguir são compostos com elementos de fé ou a

partir de conclusões que partem da fé, qual o valor deles na resolução da controvérsia

entre filósofos e teólogos? Ao tomarem como verdadeiro aquilo que não pode ser

provado pela razão natural, eles simplesmente se destroem a si mesmos68

.

O Doutor Sutil aponta o valor destes argumentos não tanto na conclusão

positiva a que buscam persuadir, mas na indeclinável necessidade de não permanecer

na dúvida. Para a conclusão da questão acerca da necessidade da revelação

sobrenatural, não importa, por exemplo, qual seja especificamente o fim próprio do ser

humano, incontornável é a necessidade de conhecer determinadamente qual das duas

65

DUNS SCOTUS, 2003, p. 276, n. 86.

66 Cf. DUNS SCOTUS, 2003, p. 277, n. 87.

67 DUNS SCOTUS, 2003, p. 234-235, n. 12.

68 Cf. DUNS SCOTUS, 2003, p. 269, n. 70.

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partes da contradição é verdadeira: ‘a fruição de Deus é o nosso fim’ ou ‘a fruição de

Deus não é o nosso fim’. Se, mediante a luz natural, permanece-se na dúvida, fica,

portanto, demonstrado racionalmente que o intelecto humano, no presente estado,

necessita de um conhecimento que seja inspirado sobrenaturalmente, pois não se pode

ficar indiferente em algo que implique tão eminentemente a realização mesma do ser

humano. Contudo, a resposta à contradição só é possível mediante a fé69

.

3.3.1 Argumento n. 1: Necessidade do conhecimento distinto do fim

O primeiro argumento dos teólogos consiste na seguinte sentença: “a todo o

que age por meio do conhecimento é necessário o conhecimento distinto do seu fim”70

.

Que seja necessário, acerca deste, algum conhecimento sobrenatural torna-se evidente

quando se analisa as conclusões a que chegara naturalmente o próprio Aristóteles, que

ora afirma que a felicidade perfeita está no conhecimento adquirido das substâncias

separadas71

, ora, duvidando, crê que “se algo é um dom dos deuses, é racional que seja

a felicidade”72

. Portanto, “apoiando-se na razão natural somente, ou errará73

acerca do

fim em particular, ou permanecerá em dúvida”74

.

Todavia, ainda que um filósofo julgue ser possível demonstrar que a visão de

Deus face a face e a sua fruição seja o fim próprio do ser humano – conclusão que o

teólogo julga ser possível apenas pela revelação –, “certas condições do fim, em

função das quais ele é mais desejável e deve ser mais ferventemente procurado, não

podem ser determinadamente conhecidas pela razão natural [..., isto é,] que estas

convêm perpetuamente ao homem pleno, em alma e corpo”75

.

Além disso, o intelecto humano, no presente estado, não conhece o fim

próprio de nenhuma substância, a não ser pelos atos dela manifestos a nós. Contudo,

69

Cf. DUNS SCOTUS, 2003, p. 269, n. 71.

70 DUNS SCOTUS, 2003, p. 235, n. 13.

71 Cf. ARISTÓTELES. Ethica ad Nicomachum, I, c. 9.

72 ARISTÓTELES. Ethica ad Nicomachum, I, c. 13 apud DUNS SCOTUS, 2003, p. 236, n. 14.

73 Duns Scotus acrescenta uma nota com os dizeres: “Isto é crido”. Cf. nota introdutória às persuasões

teológicas.

74 DUNS SCOTUS, 2003, p. 236, n. 14.

75 DUNS SCOTUS, 2003, p. 236-237, n. 16.

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acerca de nossa própria natureza, não experimentamos, no presente estado, quaisquer

atos – nem conhecemos que eles se encontrem em nossa natureza – a partir dos quais

conheçamos que a visão das substâncias separadas nos é conveniente76

.

Porém, contra este argumento, apresentam-se as seguintes instâncias77

:

a) “Como a natureza do homem é naturalmente conhecível ao homem, dado

que não é desproporcional à sua potência cognitiva, segue-se que, tendo sido esta

natureza conhecida, pode ser conhecido naturalmente o fim desta natureza”78

.

b) “Poder ter fé, assim como poder ter caridade, é da natureza dos homens,

mesmo que ter fé, assim como ter caridade, pertença à graça [concedida] aos fiéis”79

.

Logo, como a natureza do homem é naturalmente conhecível ao homem, pode-se

conhecer naturalmente esta potência obediencial da natureza humana para a fé e a

caridade e, por conseguinte, também a ordenabilidade de tal natureza ao fim ao qual a

fé e a caridade dispõem80

.

c) “O homem naturalmente deseja aquele fim que tu chamas de

sobrenatural”81

. Portanto, como a natureza do homem é naturalmente conhecível ao

homem, pode-se concluir, a partir de tal ordenação natural, aquele fim dito

‘sobrenatural’.

Como é evidente a partir do grifo, todos os instanciadores partem da ideia

comum de que a nossa natureza ou a nossa potência intelectiva nos é naturalmente

conhecível; o que é negado pelo Sutil: “A nossa alma, pois, não é conhecida por nós,

nem a nossa natureza, no presente estado, senão sob alguma razão geral, abstraível dos

[objetos] sensíveis”82

. Deste modo, embora a mente seja idêntica a si, não se pode

afirmar, sem mais, que seja proporcional a si enquanto objeto conhecível, pois a sua

76

Cf. DUNS SCOTUS, 2003, p. 236, n. 15.

77 A última instância presente na obra original, por referir-se diretamente ao tema do “objeto primeiro

do intelecto humano”, será analisada no capítulo 4.

78 DUNS SCOTUS, 2003, p. 239, n. 19, grifo nosso.

79 AGOSTINHO. De praedestinatione sanctorum, 5,10 apud DUNS SCOTUS, 2003, p. 240, n. 22.

80 Cf. DUNS SCOTUS, 2003, p. 240, n. 22.

81 DUNS SCOTUS, 2003, p. 240, n. 23.

82 DUNS SCOTUS, 2003, p. 242, n. 28.

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razão especial – enquanto ordenada a tal fim – não está incluída naquelas razões gerais

que podem ser abstraídas do que pode ser formado na imaginação83

.

Acerca do desejo natural do ser humano pelo sobrenatural, afirmado na

instância c, Scotus concede que Deus é o fim natural do homem, mas não um fim que

possa ser naturalmente alcançado, mas somente sobrenaturalmente84

.

Não é demais recordar aqui a concepção escotista de Deus como objeto

voluntário, enquanto é ele que chega ao homem, e não vice-versa, permanecendo sempre transcendente (indisponível, se diz agora) diante de

qualquer instância humana que pretenda ser exigência. Com seu princípio de que nada criado pode condicionar absolutamente a autodoação livre de Deus,

Scotus somente poderá ver na interposição da graça criada um compromisso,

também livre, referido ultimamente à pessoa. Deus – e sua autodoação livre no amor – fica como razão única da situação nova de amizade com o homem

acima de qualquer condicionamento criado que pudesse exigir ou ser exigido

por esse amor85

.

Por fim, o argumento parece ser corroborado por Agostinho86

: “Os filósofos,

ignorando a que fim estas coisas deveriam ser referidas, puderam, entre as coisas

falsas que disseram, ver alguma verdade”.

3.3.2 Argumento n. 2: Necessidade do conhecimento distinto dos meios

Complementando o anterior, o segundo argumento é assim formulado: “a todo

cognoscente que age por causa de um fim é necessário o conhecimento sob que base e

de que maneira será obtido tal fim; ademais, é necessário o conhecimento de todos os

[meios] necessários para [atingir] aquele fim; em terceiro lugar, é necessário o

conhecimento de que todos estes [meios] bastam para [atingir] tal fim”87

.

Este argumento é igualmente motivado por uma sentença de fé, ou seja, a de

que “a beatitude é conferida como prêmio, em função dos méritos que Deus aceita

como dignos de tal prêmio, e, por conseguinte, não segue, por necessidade natural,

83

Cf. DUNS SCOTUS, 2003, p. 242-243, n. 29.

84 Cf. DUNS SCOTUS, 2003, p. 244, n. 32; sobre o desejo natural de Deus, cf. SERAFINI, Marcella.

“Il desiderio naturale di Dio nel pensiero di Duns Scoto”. In. Giovanni Duns Scoto: Studi e ricerche nel VII Centenario della sua morte. Vol. 1. A cura di Martín Carbajo Núñez. Roma: Antonianum,

2008, p. 275-306.

85 ARMELLADA, 2005, p. 388-389.

86 AGOSTINHO. De civitate Dei, XVIII, c. 41, n. 3 apud DUNS SCOTUS, 2003, p. 266, n. 66.

87 DUNS SCOTUS, 2003, p. 237, n. 17.

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quaisquer de nossos atos, mas é dada contingentemente por Deus, que aceita alguns

atos, na ordem a ele mesmo, como meritórios”88

.

A instância contrária a este argumento é apresentada na obra original junto às

instâncias contra o primeiro, pois supõe o conhecimento do fim (um extremo) por

meio do conhecimento da natureza humana (outro extremo), de modo que a instância é

assim formulada: “se por meio de um extremo é conhecido o outro extremo, logo

também os meios”89

.

Ainda que esta instância possa ser refutada recorrendo à resposta às instâncias

contra o primeiro argumento, Scotus acrescenta ainda que não é possível alcançar

naturalmente o conhecimento dos meios necessários para a salvação, pois não há neles

“uma consecução natural, mas tão somente a aceitação da vontade divina, que

compensa estes méritos como dignos de tal fim”90

.

Novamente, pode-se concluir em favor do argumento mediante a autoridade

de Agostinho91

: “de que vale conhecer para onde se há de ir, se se ignora o caminho

pelo qual se há de ir?” Nisto erravam os filósofos, os quais, ainda que tenham

transmitido algumas verdades sobre as virtudes, misturaram-nas, contudo, com

concepções falsas, uma vez que o próprio Aristóteles92

ensinou como lei “não

alimentar nenhuma criança deformada”!

3.3.3 Argumento n. 3: Necessidade do conhecimento daquilo que é próprio de Deus

O terceiro argumento, por sua vez, parte do princípio de que um conhecimento

torna-se mais necessário quanto mais nobre for o seu objeto. O conhecimento acerca

da essência divina naquilo que lhe é próprio enquanto haec essentia é um

conhecimento mais perfeito do que aquele conhecimento transcendental no qual ela

convém com os seres sensíveis. Este conhecimento próprio, todavia, não nos é

possível tão somente por meios naturais, uma vez que estas propriedades não são

88

DUNS SCOTUS, 2003, p. 238, n. 18.

89 DUNS SCOTUS, 2003, p. 241, n. 26.

90 DUNS SCOTUS, 2003, p. 247, n. 39.

91 AGOSTINHO. De civitate Dei, XI, c. 2 apud DUNS SCOTUS, 2003, p. 267, n. 67.

92 ARISTÓTELES. Política, VII, c. 16 apud DUNS SCOTUS, 2003, p. 267, n. 67.

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alcançáveis por meio da “demonstração propter quid”, ou seja, a partir do

conhecimento intuitivo da essência divina, já que, no presente estado, nossa faculdade

intelectiva esteja condicionada apenas às imagens sensíveis; nem mesmo são

adquiridas através da “demonstração quia”, ou seja, a partir dos efeitos (criaturas) em

direção à causa (o Criador), uma vez que chegaríamos apenas a predicados

comuníssimos e não a estas propriedades próprias.

Além disso, recorrendo unicamente à “demonstração quia” – único caminho

possível, no presente estado, de se alcançar algum conhecimento natural acerca da

realidade divina –, o intelecto permaneceria duvidoso acerca daquelas propriedades

próprias de Deus enquanto haec essentia, ou poderia até mesmo desviar-se para o erro,

dado que, pela fé, sabe-se que “uma propriedade sua, pois, é que seja comunicável a

três [pessoas divinas]; mas, os efeitos não mostram esta propriedade, porque não são

por este mesmo [ser] enquanto trino”93

. Portanto, torna-se necessária uma doutrina

inspirada sobrenaturalmente.

Contra este argumento é lançado mão dos princípios da lógica aristotélica,

também conhecida como “lógica formal”, de modo a formular-se a seguinte instância

contrária: “aquelas verdades necessárias cujos termos conhecemos naturalmente,

também estas podemos naturalmente compreender; mas, conhecemos naturalmente os

termos de todas as verdades reveladas necessárias; logo, etc.”94

Além disso, segundo Aristóteles95

, estas verdades necessárias96

só podem ser

de dois tipos: a) mediatas, também chamadas de ‘conceitos complexos’; b) imediatas,

isto é, ‘conceitos não complexos’. Uma verdade imediata é aquela que é conhecida a

partir dos próprios termos, enquanto aquela dita ‘mediata’ pode ser conhecida

conjugando outras verdades imediatas por meio de um raciocínio silogístico.

93

DUNS SCOTUS, 2003, p. 248, n. 41.

94 DUNS SCOTUS, 2003, p. 250, n. 42. Como se trata de um argumento silogístico, o uso de “logo,

etc.” na conclusão não cria nenhuma dificuldade na sua compreensão, uma vez que os termos que comporiam a conclusão são logicamente deduzíveis a partir dos termos da premissa maior e da

premissa menor. Este modo de escrever a conclusão é muito frequente nos textos de Scotus, que

demonstra grande preferência por esta forma lógica de argumentação.

95 Cf. ARISTÓTELES. Analytica posteriora, I, 3.

96 Neste caso, ‘necessário’ se opõe a ‘contingente’ e, portanto, refere-se a um conceito ‘universal’. Os

‘universais’ são entendidos como ‘verdades necessárias’ por serem sempre válidos, uma vez que

independem da existência transitória daquelas realidades particulares a partir das quais são abstraídos.

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Para tornar mais visível esta argumentação, o Sutil apresenta o seguinte

cenário97

: Imagine-se que um filósofo – consideremos aqui alguém que não professe a

fé cristã – e um teólogo se ponham a debater acerca da proposição ‘Deus é trino’.

Enquanto este afirma a veracidade desta proposição, aquele julga poder negá-la. Neste

debate, porém, cada um dos opositores não está apenas negando ou afirmando os

mesmos termos (‘Deus’ e ‘trino’), mas também os mesmos conceitos (‘divindade’ e

‘trindade’); de modo que ambos demonstram possuir estes mesmos conceitos. Se,

portanto, o filósofo – mesmo sem a fé – demonstra conhecer naturalmente estes termos

e, consequentemente, os conceitos por eles significados; logo, ele conhece estas

verdades e não precisa de nenhuma revelação sobrenatural, enquanto que o teólogo

não adquire nenhum conhecimento novo por meio da revelação.

Scotus não se furta a esta investigação lógica, própria da Filosofia da

Linguagem e tão apreciada na Filosofia contemporânea, particularmente na

perspectiva filosófica dita ‘analítica’ (em contraposição à perspectiva ‘hermenêutica’).

De certo modo, parece ser justamente esta característica de seu pensamento que tem

atraído tanto a atenção de filósofos contemporâneos, como tende a afirmar Pich:

[...] a presente investigação pretende mostrar uma atividade filosófica legítima e, para determinados fins, imprescindível. Toda teologia filosófica,

para que obtenha, entre todos, no mínimo credibilidade, tem de analisar filosoficamente a linguagem natural, que inclui a religiosa. Para tanto, o

estudo dos escolásticos é um dever metodológico: como a filosofia analítica

da religião, a teologia filosófica dos medievais é conscientemente argumentativa e realiza vigorosamente análises conceituais

98.

O Doutor Sutil começa a sua refutatio99 retomando aquela distinção

aristotélica dos conceitos em ‘mediatos’ e ‘imediatos’. Consideremos um conceito

‘imediato’, seja qual for, e o designemos com a letra a. Neste conceito ‘imediato’ a

estão incluídos muitos conceitos ‘mediatos’, no sentido de que podemos conhecer tais

conceitos a partir daquele primeiro conceito evidente por si. Como exemplo deste tipo

de inclusão lógica – dita também como sendo uma inclusão ‘virtual’ –, Scotus

97

Cf. DUNS SCOTUS, 2003, p. 251, n. 44. Sobre a questão “se a alma, deixada à sua perfeição natural, possa conhecer a Trindade das pessoas em Deus”, cf. DUNS SCOTUS. Cuestiones

Cuodlibetales. Introducción, resúmenes y versión de Felix Alluntis. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1968, p. 493-538, q. 15 (BAC 277).

98 PICH, 2003, p. 17-18.

99 Cf. DUNS SCOTUS, 2003, p. 251-253, nn. 45-47.

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menciona os enunciados particulares acerca de algo comum ao predicado do que é

comum ao sujeito, aos quais passa a chamar de b e c. Antecipando o exemplo dado a

seguir pelo Sutil, podemos dizer que a seja a proposição ‘o triângulo é a primeira das

figuras’, b ‘alguma figura é primeira’ e c ‘o quadrado não é a primeira das figuras’.

Estas duas proposições, b e c, são verdades ditas ‘mediatas’, pois não são aptas a ser

entendidas senão por aquele que conhece o sentido da verdade ‘imediata’ a, ou seja,

que conheça o objeto ‘triângulo’ e, portanto, sua propriedade particular de ‘primeira

das figuras’.

Atendo-nos, agora, apenas à proposição b, ‘alguma figura é primeira’,

imaginemos a situação em que alguém possa compreender os termos de b (‘figura’ e

‘primeira’) e juntá-los um com o outro, mas não conheça o ‘triângulo’, não sendo

capaz, portanto, de compreender os termos de a e nem, por conseguinte, o próprio a,

isto é, a proposição ‘o triângulo é a primeira das figuras’. Neste caso, b será uma

proposição neutra ao seu intelecto, pois não pode ser compreendida nem por si nem a

partir de uma proposição imediata. Este alguém é capaz de dizer o que seja uma

‘figura’ – podendo abstraí-la do ‘quadrado’, por exemplo – e até mesmo compreende a

ideia de ‘primazia’ – a qual poderá ser abstraída do conceito comum de ‘primazia’ nos

números ordinais –, mas falta-lhe justamente a compreensão do que seja um

‘triângulo’, de modo que ele não será capaz de afirmar ou negar a veracidade da

proposição b, pois lhe falta o conhecimento da única figura que possui tal propriedade.

Por outro lado, ainda que ‘triângulo’ seja um termo médio particular em relação aos

termos comuns ‘figura’ e ‘primazia’, não é possível deduzi-lo a partir destes, pois o

‘triângulo’ é um termo médio particular contido essencialmente sob o universal

‘figura’ e que indica o modo próprio de ‘primazia’ de uma figura. Logo, não se trata de

um termo médio que possa ser deduzido a partir de dois extremos, ou seja, daquele

médio contido essencialmente entre estes extremos. Deste modo, não é necessário que

aquele que pode conceber ‘figura’ em comum e ‘primazia’ em comum possa conceber

o ‘triângulo’ em particular.

Partindo do exemplo geométrico para a questão dos conceitos teológicos,

percebe-se que o mesmo se dá também aqui: “temos determinados conceitos comuns

às substâncias materiais e imateriais, e podemos compô-los uns com os outros; mas,

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estas junções [de termos em proposições] não têm evidência senão a partir de verdades

imediatas, que tratam daquelas quididades sob a sua razão própria e especial”100

. Ou

seja, as proposições propriamente teológicas, isto é, aquelas que partem da revelação

sobrenatural que Deus faz acerca de si mesmo, embora sejam compostas a partir de

conceitos comuns transcendentais, abstraídos das realidades materiais e aplicados à

realidade espiritual, recebem a sua evidência não a partir destes termos comuns, mas

da razão própria pertinente à natureza divina enquanto haec essentia, não conhecível

por si, mas apenas pelo assentimento da fé que nasce da revelação.

O Doutor da Ordem, embora conceda que “Deus possa, por meio de uma

revelação especial, causar o conhecimento de algum não-complexo [,isto é, de um

conceito ‘imediato’], como num enlevamento, tal conhecimento sobrenatural, contudo,

não é, de lei comum, necessário”101

. Segundo a lei comum, de potentia Dei ordinata,

todos os conceitos ‘imediatos’ que possuímos, no presente estado, são formados

naturalmente em virtude do intelecto agente e da imagem sensível. Algumas verdades

‘mediatas’ necessárias ao peregrino permanecem, no entanto, ignoradas ou neutras ao

nosso intelecto, pois sua compreensão não está incluída virtualmente naqueles

conceitos ‘imediatos’ naturais. Portanto, segundo o Sutil, é necessário que o

conhecimento destas nos seja transmitido sobrenaturalmente. E ainda que alguém hoje

possa vir a assentir naturalmente a estas proposições teológicas por causa dos vários

motivos de credibilidade ou pela autoridade e testemunho de santidade daquela pessoa

humana que lhas transmitiu; todavia, a primeira transmissão de tal doutrina só pode se

dar sobrenaturalmente, porque ninguém pôde chegar naturalmente ao conhecimento

delas. Somente a esta primeira transmissão é que chamamos justamente de

“revelação”102

.

Por fim, a autoridade de Agostinho é mencionada para confirmar esta solução:

“Sobre essas coisas que estão além dos nossos sentidos, visto que não podemos

100

DUNS SCOTUS, 2003, p. 252, n. 45.

101 DUNS SCOTUS, 2003, p. 263, n. 61.

102 Cf. DUNS SCOTUS, 2003, p. 264, n. 62. Acerca do conceito escotiano de revelação como prima

traditio, cf. PELLEGRINI, Modesto. La rivelazione nell’insegnamento di Duns Scoto. Roma:

Antonianum, 1970, p. 15-39.

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conhecê[-las] por nosso testemunho, requeremos o testemunho de outros”103

. Visto,

pois, que estas verdades ‘mediatas’ ou ‘complexas’ são, de si, neutras ao nosso

intelecto no presente estado, não nos é possível recorrer a qualquer testemunho

humano, sendo, portanto, necessário o testemunho sobrenatural de um ser superior a

toda a espécie humana.

3.3.4 Argumentos nn. 4 e 5: Necessidade de ser disposto a obter o fim e limitação do

intelecto agente

O quarto argumento dos teólogos parte de uma ideia de cooperação entre

Criador e criatura, entre graça e natureza, dispondo lentamente o ser humano ao seu

fim sobrenatural, ao qual, a partir de si, não está disposto. Este processo de dispor-se

àquele fim se dá por meio de algum conhecimento sobrenatural imperfeito, em

preparação àquele perfeito, que corresponde ao fim sobrenatural. Deus poderia

conceder o conhecimento perfeito de imediato, removendo a imperfeição e

indisposição da natureza humana, mas é mais perfeito dar à criatura uma atividade

com respeito à sua perfeição; e, para tanto, esta necessita de algum conhecimento

imperfeito104

.

O quinto argumento, por sua vez, comparando o intelecto agente (luz natural)

a um instrumento da atividade intelectual do ser humano, afirma que tal instrumento,

por ser limitado à imagem sensível, é incapaz de alguma ação que a exceda em

perfeição, como seja o conhecimento de alguma verdade pura105

. Portanto, em vista de

tal conhecimento, o intelecto humano necessita da ação da luz incriada, isto é, o

próprio Deus revelador.

Porém, segundo Scotus106

, estas duas razões não parecem muito eficazes. A

quarta seria eficaz se tivesse provado anteriormente que o homem está ordenado a um

fim sobrenatural e que não possa alcançá-lo naturalmente. A quinta requer também

duas coisas: que é necessário o conhecimento de certas coisas que não é possível

103

AGOSTINHO. De civitate Dei, XI, c. 3 apud DUNS SCOTUS, 2003, p. 267, n. 68.

104 Cf. DUNS SCOTUS, 2003, p. 254, n. 50.

105 Cf. DUNS SCOTUS, 2003, p. 254-255, n. 51.

106 Cf. DUNS SCOTUS, 2003, p. 255, n. 52.

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conhecer pela via dos sentidos, e que a luz do intelecto agente é, para tais conhecíveis,

limitada. Além disso, este último argumento parece concluir contra quem o

formulou107

, pois reduz o intelecto humano a nenhuma ação própria108

em relação à luz

incriada; o que parece inconveniente.

De modo que as três primeiras razões se mostram mais prováveis. Contudo,

não se deve esquecer a nota introdutória a estas persuasões dos teólogos, isto é, acerca

da validade de argumentos com elementos de fé, conforme apresentado anteriormente.

3.4 RESPOSTA DE SCOTUS À QUESTÃO

O Doutor Sutil109

nega, portanto, aquele segundo argumento principal, que

busca apelar para a dignidade humana contra a ideia da necessidade de um

conhecimento dado sobrenaturalmente, acusando que tal necessidade significaria uma

vilificação de nossa natureza, tornada, deste modo, inferior a todos os seres puramente

materiais, que podem chegar a seu fim próprio por suas próprias forças.

Segundo o que fora já afirmado na resposta ao segundo argumento dos

filósofos, ainda que o ser humano não possa alcançar o seu fim próprio naturalmente,

mas apenas sobrenaturalmente, a ordenação natural deste a um fim sobrenatural só

pode significar sua superioridade em relação aos demais seres, pois o seu fim próprio é

infinitamente superior a toda ordenação natural.

3.5 RESSALVA: A LIBERDADE ABSOLUTA DE DEUS

Uma vez confirmada a necessidade da revelação sobrenatural, da qual decorre

todos os demais meios queridos por Deus para a salvação do gênero humano (fé

107

Este argumento é de Henrique de Gand. Cf. HENRIQUE DE GAND. Summa, a. 8, q. 2.

108 É preciso esclarecer, aqui, que embora a solução escotiana consista na potência obediencial do

intelecto humano enquanto naturalmente receptivo do conhecimento sobrenatural; tal receptividade não significa pura passividade por parte do intelecto, pois o assentimento da fé só é possível enquanto

ato próprio do intelecto humano e resposta deste à autocomunicação divina. Além do mais, Scotus

prefere o nome “intelecto possível” para indicar aquilo que Aristóteles chamou de “intelecto passivo”, pois também a este corresponde uma atividade própria, distinta da atividade do “intelecto agente”. Não

se deve esquecer também que, para Scotus, a limitação do intelecto agente às realidades sensíveis se dá apenas pro statu isto e não ex ratione potentiae, ou seja, tal limitação não é conforme à sua natureza

como faculdade da alma, destinada à contemplação face a face de Deus na eternidade.

109 Cf. DUNS SCOTUS, 2003, p. 282, n. 93.

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infusa, fé adquirida, batismo, demais sacramentos, boas obras etc.), Scotus110

introduz

uma ressalva baseada na liberdade absoluta de Deus de salvar a quem Ele quiser.

Alguém é um não batizado, mas tem boas motivações, conformes à reta razão

natural, e evita aquilo que a razão natural lhe mostra que é mau. Poderia, de lei

comum, ser ensinado por um homem ou anjo, como Cornélio111

, mas, ainda que não

fosse ensinado, ele poderia ser salvo. E, mesmo que fosse ensinado, ele já poderia ser

considerado justo antes disso e, deste modo, digno da vida eterna; sem, contudo,

possuir teologia, mesmo quanto às primeiras verdades da fé, mas tão somente um

conhecimento natural. Logo, nada da teologia seria, absolutamente falando,

simplesmente necessário à salvação. Poder-se-ia dizer que ele, por querer o que é bom

em geral, mereceria de congruidade112 ser justificado, e Deus não lhe subtrairia o dom

da sua liberalidade; logo, Ele lhe daria a primeira graça sem sacramento, porque não

está obrigado ao uso dos sacramentos. “Pois Deus não é menos gracioso àquele que

ele, por causa do mérito de congruidade, justifica sem o sacramento do que àquele que

ele, sem todo o mérito próprio, justifica na recepção do sacramento”113

.

É importante, no entanto, ressaltar que se trata de uma exceção, não de uma

regra, como parece ter interpretado Richard Cross. Segundo este114

, Scotus estaria

afirmando que o ser humano não necessita de qualquer conhecimento revelado-

sobrenatural para que seja salvo e, portanto, sua resposta à questão acerca da

necessidade ou não da revelação seria negativa.

O que, na verdade, o Sutil está afirmando é que Deus pode, absolutamente

falando, salvar a quem quer que seja; ainda que, de potência ordenada, a glória não

seja concedida a ninguém sem o hábito da fé. Logo, segundo a lei comum estabelecida

por Deus, a revelação sobrenatural é necessária ao peregrino para a sua salvação.

110

Cf. DUNS SCOTUS, 2003, p. 256-261, nn. 54-56.

111 Cf. At 10,1-48.

112 Literalmente, de congruo, mérito no qual não há equivalência de justiça em relação à recompensa

(cf. KOSER, 2008, Graça, p. 60). Distingue-se, por isso, do mérito de condigno, no qual ocorre tal equivalência, que consiste em: estado de graça da parte do merecedor; honestidade, liberdade e

sobrenaturalidade por parte da obra; promessa e aceitação da parte de Deus (cf. KOSER, 2008, Soteriologia, p. 87).

113 DUNS SCOTUS, 2003, p. 258, n. 55.

114 Cf. CROSS. Duns Scotus, p. 11 apud PICH, 2003, p. 144.

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4 TEOLOGIA: CIÊNCIA DISTINTA DA METAFÍSICA

Uma vez demonstradas a possibilidade e a necessidade da revelação

sobrenatural, resta-nos ainda esclarecer melhor a distinção entre Teologia e Metafísica.

Para tanto, é imprescindível um retorno à questão acerca do primeiro objeto do

intelecto humano, que está na base da definição do objeto próprio da Metafísica e que

é tratada no primeiro argumento inicial.

4.1 QUESTÃO ACERCA DO PRIMEIRO OBJETO DO INTELECTO HUMANO

O primeiro argumento inicial parte da compreensão aristotélica/medieval de

ciência. Segundo esta, toda ciência possui um “objeto primeiro”, algo presente em

todas as realidades sobre as quais esta mesma ciência se debruça para conhecer; o

mesmo se dá com relação a toda e qualquer potência ou faculdade, seja ela intelectiva,

volitiva ou sensitiva. Um exemplo muito frequente para explicar o que seja um “objeto

primeiro” é a cor em relação à visão (potência sensitiva), ou seja, todo e qualquer

objeto é dito “visível” (objeto da potência sensitiva da visão) se e somente se é dotado

de “cor”. A cor é, portanto, o objeto primeiro e adequado à visão. A primazia da cor

entre os objetos “visíveis” pode ser compreendida como uma primazia de comunidade

ou virtualidade (tudo que tenha cor é objeto da visão) e anterioridade (a cor é o

primeiro elemento percebido pela visão).

Para facilitar a análise do primeiro argumento inicial, indicaremos

distintamente as premissas e a conclusão:

[Premissa maior:] “Toda potência que tem algo comum como primeiro

objeto pode naturalmente [alcançar] tudo o que está contido sob este mesmo como o objeto natural por si. [...]

[Premissa menor:] Mas o primeiro objeto natural do nosso intelecto é o ente enquanto ente;

[Conclusão:] logo, o nosso intelecto pode naturalmente ter um ato acerca de

todo e qualquer ente”115

.

A partir do exemplo do primeiro objeto da visão, torna-se mais fácil

compreender a formulação da premissa maior do argumento apresentado, pois é

evidente que a cor é algo comum a todos os objetos “visíveis” e que, portanto, todo e

115

DUNS SCOTUS, 2003, p. 226, n. 1, grifo nosso.

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qualquer objeto dotado de cor pode naturalmente ser percebido por esta potência

sensitiva e é objeto natural por si da visão.

Todavia, Henrique de Gand, teólogo contemporâneo de Scotus, pretende

resolver a questão justamente negando a veracidade desta premissa maior. Ele

interpreta a premissa menor de modo diverso de Scotus. Para ele, o ente enquanto ente

é a própria essência de Deus, na qual – como que numa luz, a luz incriada –

compreendemos todas as coisas. Segundo este pensamento, conhecido como

“ontologismo”, Deus é naturalmente conhecido pelo homem, já no presente estado,

mas apenas de modo confuso, ou seja, enquanto primeiro objeto do nosso intelecto –

entendido como presente em todo ato intelectivo referente aos seres materiais –, e não

enquanto objeto particular, cuja intelecção “é muito mais excelente do que a intelecção

confusa de tal [objeto] comum”116

.

Scotus se opõe à solução proposta pelo gandavense, afirmando que ela se

destrói a si mesma, pois contraria a própria compreensão de primeiro objeto, conforme

vimos no exemplo da visão. Segundo o Sutil, o seu argumento falha segundo a figura

de dicção, pois confunde universal e singular117. O ente enquanto ente é um conceito

universal – e, portanto, distinto de qualquer ente singular, inclusive Deus – e somente

neste aspecto pode ser entendido como primeiro objeto do intelecto. É verdade que

cada indivíduo existente é realmente um ente, contudo, o ente enquanto ente não é

nem este indivíduo nem qualquer outro, mas um conceito comum a todos os

indivíduos existentes; sem, contudo, imaginar que o ser seja tal coisa como se fosse

um elemento concreto e onipresente, partilhado por todos os seres, pois tal

compreensão incorreria necessariamente em panteísmo. Deve-se, no entanto, sustentar

também que tal conceito de ente é uma formalidade realmente existente, ou seja, que

não é criada pela mente, mas que subsiste em todas as coisas antes de todo ato do

intelecto, sendo a primeira formalidade percebida pelo intelecto e conceituável por um

processo de abstração última como o “não-nada”, isto é, tudo que não repugna ser

pode ser entendido como ente.

116

DUNS SCOTUS, 2003, p. 279, n. 90; cf. HENRIQUE DE GAND. Summa, a. 3, q. 4, ad. 2.

117 Cf. DUNS SCOTUS, 2003, p. 280-281, n. 91.

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Porém, ao aplicar tal conceito generalíssimo como primeiro objeto do nosso

intelecto, devemos concluir necessariamente que nosso intelecto pode conhecer

qualquer coisa que seja; o que, no presente estado, não parece verdadeiro. A resposta

de Scotus, portanto, aponta para o uso ambíguo do termo “natural” – presente tanto na

premissa menor quanto na conclusão – para tratar do ente enquanto ente em sua

indiferença a todo ente material e espiritual:

O objeto natural pode, pois, ser tomado ou como aquele que naturalmente ou

a partir da ação de causas naturalmente ativas a potência pode atingir, ou como aquele ao qual a potência está naturalmente inclinada, possa ela atingir

naturalmente aquele objeto ou não. [...] portanto, [...] a premissa menor é falsa acerca do objeto natural, isto é, [acerca do objeto] naturalmente

atingível, – [porém,] é verdadeira de outro modo, quanto [ao objeto] ao qual

a potência está, a saber, naturalmente inclinada ou está ordenada118

.

É aplicada aqui aquela mesma distinção usada por Scotus no primeiro modo

de pôr a sobrenaturalidade. Em sua indiferença a todo ente material e espiritual, o ens

inquanto ens não pode ser considerado naturalmente o primeiro objeto movente119 do

nosso intelecto no presente estado, mas apenas o seu primeiro objeto ex ratione

potentiae e ao qual está naturalmente inclinado.

Deve-se, além do mais, reconhecer que esta indiferença total do ens a todo

ente material e espiritual não é naturalmente conhecida, pois, ao formular tal conceito

de ente enquanto ente como primeiro objeto, Avicena120

teria pressuposto o

conhecimento que lhe advinha de sua fé muçulmana121

. Também Scotus, devido ao

pressuposto teológico da visão de Deus face a face na glória, recusa-se a reduzir o

primeiro objeto do intelecto à quiditas rei materialis:

O primeiro objeto de uma potência é indicado por aquilo que é adequado à

potência a partir da razão de potência, não aquilo que é adequado à potência em algum estado: do mesmo modo que o primeiro objeto da visão não é

posto naquilo que é adequado à visão existente em um ambiente iluminado

118

DUNS SCOTUS, 2003, p. 279 e 281, n. 90 e 92.

119 A ideia de primeiro objeto movente é em empregado pelo Sutil em Ord. I dist. 3 pars 1 q. 3 n. 187

(Cf. DUNS SCOTUS, 1954, p. 113-114).

120 Cf. AVICENA. Metaphysica, 6.

121 Cf. DUNS SCOTUS, 2003, p. 244, n. 33. Deste modo Scotus refuta o último argumento da

instância contra o primeiro argumento dos teólogos, que afirmava ser “naturalmente conhecível que a

razão do ente está perfeitissimamente contida em Deus” (DUNS SCOTUS, 2003, p. 240, n. 24).

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precisamente por uma candeia, mas naquilo que é naturalmente adequado à visão por si, quanto é da natureza da visão

122.

Contudo, o nosso conceito de ens, no presente estado, só pode ser

naturalmente atingível a partir dos entes singulares materiais e somente em relação a

estes é dito “conceito natural”, de modo que o uso que o peregrino faz deste conceito

para tratar dos seres espirituais é um raciocínio apenas extensivo e não propriamente

um ato de intelecção. Também os conceitos teológicos mais sobrenaturais, enquanto

proposições complexas reveladas, são compostos, no presente estado, a partir de

conceitos naturais e simples, conforme vimos. Por sua vez, o conceito metafísico

comuníssimo de ens não repugna a nenhuma realidade possível, mesmo àquelas

incapazes de ser conhecidas naturalmente, de modo que pode ser legitimamente

predicado até mesmo a Deus, além do qual não se pode imaginar nada maior ou mais

perfeito, segundo o famoso argumento ontológico de Santo Anselmo.

4.2 CONHECIMENTO METAFÍSICO SOBRE DEUS

Como vimos, por abstração das coisas sensíveis, o intelecto pode chegar a um

conceito generalíssimo, o conceito unívoco de ser, que se apresentando como pura

indeterminação pode ser predicado a Deus e às criaturas, constituindo-se, deste modo,

como objeto próprio da Metafísica, que, em Scotus, apresenta-se como ciência dos

transcendentais. Contudo, seja pela Metafísica ou pela Teologia, em última instância,

é sempre Deus que se dá a conhecer a si mesmo. Se, em sentido estrito, “revelação” se

refere à Palavra de Deus revelada de modo sobrenatural, também o conhecimento

possível naturalmente pode ser entendido como “revelação”.

4.2.1 Distinção entre revelação natural e sobrenatural

Koser123

distingue três espécies de revelação: a primeira pelos efeitos; a

segunda, pela palavra; e a terceira, pela essência. Esta última se dará apenas na glória e

122

Tradução livre de DUNS SCOTUS, 1954, p. 112 (Ord. I dist. 3 pars 1 q. 3 n. 186): “Obiectum primum potentiae assignatur illud quod adaequatum est potentiae ex ratione potentiae, non autem quod

adaequatur potentiae in aliquo statu: quemadmodum primum obiectum visus non ponitur illud quod adaequatur visui exsistenti in médio illuminato a candela, praecise, sed quod natum est adaequari visui

ex se, quantum est ex natura visus”.

123 Cf. KOSER, 2008, Epistemologia Teológica, p. 63-64.

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é a única que nos oferece um conhecimento imediato de Deus, pois nela Deus se

oferece ao conhecimento humano em sua própria essência divina, na contemplação

eterna face a face concedida por meio de Cristo aos bem-aventurados. Portanto,

enquanto peregrinamos nesta vida, nos é possível ter acesso a duas espécies distintas

de “revelação”, que coincidem no fato de oferecer um conhecimento apenas mediato

de Deus, ou seja, um conhecimento não pela essência mesma de Deus, mas através de

algo que a substitui: as criaturas, enquanto efeitos da ação divina, e a Palavra de Deus,

como declaração pessoal acerca de si. A existência destas vias é atestada claramente

pelas Escrituras, particularmente nos livros sapienciais e nos escritos paulinos:

São insensatos por natureza todos que ignoram a Deus e que, pelos bens

visíveis, não chegaram a conhecer aquele que é, nem, pela consideração das obras, reconheceram o Artífice. [...] Porquanto, partindo da grandeza e da

beleza das criaturas, chega-se a contemplar, por analogia, aquele que lhes

deu origem (Sb 13,1.5).

A primeira espécie de revelação constitui o degrau mais baixo da revelação

que Deus faz acerca de Si mesmo e é chamada de “revelação natural”, pois é

transmitida pela natureza criada, percebida pela “luz natural” da faculdade intelectiva e

manifesta a partir do ato criador.

Com efeito, o que se pode conhecer de Deus está claro para eles, pois o

próprio Deus lhes revelou. De fato, desde a criação do mundo, o invisível de

Deus – o eterno poder e a divindade – torna-se visível à inteligência através de suas obras. Assim eles não têm desculpa. É que, conhecendo a Deus, não

o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças, mas perderam-se em

raciocínios falsos, vindo a obscurecer-se o coração insensato deles (Rm 1,19-21).

A segunda espécie de revelação constitui o degrau médio – “Andamos na fé e

não na visão” (2Cor 5,7) – e recebe diversos nomes. É chamada “revelação da graça”,

pois procede de uma condescendência graciosa de Deus às suas criaturas, enquanto

manifesta aos seres humanos pela sua palavra aquilo que não era perceptível pela

revelação natural. Por meio dela também, Deus manifesta seu desígnio eterno e

benevolente, que ultrapassa a toda imaginação, e que consiste na vocação dos seres

humanos à união com Deus no amor, participando graciosamente de sua vida eterna

bem-aventurada. É também chamada de “revelação positiva”, pois é acrescentada à

natureza por livre vontade de Deus; e de “sobrenatural”, seja pelo conteúdo (mistérios

propriamente divinos), pela forma (sem o concurso dos princípios naturais da

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intelecção no presente estado, isto é, imagem sensível e intelecto agente) ou pela

finalidade (a elevação do ser humano à vida sobrenatural).

Pois o nosso conhecimento é parcial, como parcial é a nossa profecia. Mas quando chegar a perfeição, desaparecerá o que era parcial. Quando era

criança, falava como criança, pensava como criança, raciocinava como

criança; mas quando me tornei homem, abandonei as coisas de criança. No presente vemos por um espelho e obscuramente; então veremos face a face.

No presente conheço só em parte; então conhecerei como sou conhecido (1Cor 13,9-12).

A terceira espécie de revelação constitui o degrau mais alto, que se dá

mediante a “luz da glória” e que consiste na visão de Deus face a face, segundo a

expressão clássica paulina. Ainda que, neste nível de revelação, se conheça a Deus em

sua mesma essência, este conhecimento não pode ser entendido simplesmente como

um conhecimento natural, conforme à capacidade do intelecto ex natura potentiae e

superada a limitação intrínseca de sua atividade pro statu isto, pois a visão de Deus

não é natural a nenhuma criatura, nem mesmo aos anjos, mas sempre um dom livre e

gracioso da parte de Deus. Só Deus se conhece a si mesmo naturalmente e só Ele pode

dar-se a si mesmo a conhecer a quem quer que lhe apraza revelar-se124

. Neste

esplendor da glória bem-aventurada, Deus se manifestará às suas criaturas “sem

nenhum véu”125

.

Estas três formas de revelação formam um todo orgânico e são partes do plano geral da Providência divina. Se considerarmos as três formas da parte

de Deus, são um ato inteiramente livre e gratuito da vontade divina, tendo

por finalidade a glória de Deus e a felicidade das criaturas. À medida que subirmos pelas diversas formas e suas intermediárias, tornam-se uma

manifestação cada vez mais profunda, cada vez mais gratuita e cada vez mais cheia de motivos e deveres de gratidão e religião para as criaturas a que

se destinam126

.

124

“É claro que o conhecimento intuitivo de Deus é necessário para a visão beatífica, mas a sua ação

como princípio ativo extrínseco é, naquela ação intelectiva, um ato livre da vontade. A visão beatífica é pura e verdadeiramente sobrenatural porque transcende a causalidade de todo e qualquer outro objeto

como princípio ativo extrínseco, diferindo mesmo da causalidade da essência divina ao intelecto

divino. Na visão beatífica, o que motiva o intelecto humano não é a essência divina, mas a sua vontade, que não é realmente diferente da essência” (PICH, 2003, p. 160; cf. Ordinatio I d.3 q.8 n.2 e

Quaestiones Quodlibetales q.14 n.5).

125 A visão face a face não significa de modo algum que Deus deixe de ser um mistério para as suas

criaturas, pois a infinitude divina não pode ser esgotada por um intelecto finito. A contemplação face a

face é semelhante a alguém que contempla o oceano: ainda que não seja capaz de enxergar todo os seus limites e as incontáveis riquezas existentes em suas águas, ele não pode deixar de extasiar-se com

a imensidão de sua beleza.

126 KOSER, 2008, Epistemologia Teológica, p. 64.

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A existência e a distinção apresentada acerca das duas espécies de revelação

possíveis aos seres humanos no presente estado são confirmadas também pelo

magistério solene da Igreja, particularmente mediante as definições dogmáticas do

Concílio Vaticano I, que, de certo modo, sintetizam também o próprio pensamento

apresentado por Duns Scotus em seu Prólogo à Ordinatio:

[DH 3004:] A mesma santa mãe Igreja sustenta e ensina que Deus, princípio

e fim de todas as coisas, pode ser conhecido com certeza pela luz natural da razão humana, a partir das coisas criadas [...], mas <ensina> que aprouve à

sua misericórdia e bondade revelar-se à humanidade a si mesmo e os eternos decretos da sua vontade, por outra via, e esta sobrenatural [...].

[DH 3005:] Contudo, [...] a revelação é absolutamente necessária [...] porque

Deus, em sua infinita bondade, ordenou o homem para um fim sobrenatural, isto é, para participar dos bens divinos, que superam de todo a compreensão

humana [...].

[DH 3008:] Visto que o homem depende inteiramente de Deus como seu criador e Senhor, e que a razão criada está inteiramente sujeita à Verdade

incriada, somos obrigados a prestar, pela fé, a Deus que revela, plena adesão do intelecto e da vontade. Esta fé, porém, que é o início da salvação humana,

a Igreja a professa como virtude sobrenatural, pela qual, cremos ser verdade

o que ele revela, não devido à verdade intrínseca das coisas conhecida pela luz natural da razão, mas em virtude da autoridade do próprio Deus

revelante, o qual não pode enganar-se nem enganar [...]127

.

É, sobretudo, esta distinção presente entre revelação natural e sobrenatural que

estabelece, consequentemente, também a distinção entre Metafísica e Teologia como

ciências independentes e complementares. Com o intuito de sanar os extremismos

existentes em seu tempo entre fé e razão, o Doutor Sutil debruçou-se longamente e

com grande profundidade nas questões relativas à Epistemologia e à Metafísica,

caracterizando esta última como ciência natural que pretende alcançar o máximo

conhecimento. “Ao contrário da teologia, porém, essa ciência não possui inicialmente

a evidência de seu tema”128

– referindo-se aqui à demonstração racional da existência

de Deus –, que para aquela, decorre da certeza advinda da fé na revelação.

4.2.2 Acerca da demonstração metafísica da existência de Deus

Uma compreensão mais clara acerca do conhecimento que nos é possível

atingir naturalmente sobre a realidade divina não é jamais algo inútil à Teologia,

127

DENZINGER, 2007, p. 644-646 (Constituição dogmática Dei Filius sobre a fé católica, cap. 2-3).

Para verificar a retomada destes cânones pelo Concílio Vaticano II, cf. DV 6 (DH 4206).

128 GUERIZOLI, 1999, p. 34.

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primeiramente porque aponta mais precisamente, a partir dos próprios limites do nosso

conhecimento natural, qual seja a necessidade que temos de um conhecimento

revelado sobrenaturalmente. Neste sentido, o próprio Sutil apresenta algumas balizas

importantes em seu Tratado acerca do Primeiro Princípio. Segundo ele, embora seja

possível chegar, no presente estado, a uma compreensão filosófica de “criação”

(criatio ab aeternum); esta, contudo, permanece uma visão deficitária e necessitada do

auxílio imprescíndivel da revelação sobrenatural, dada a impossibilidade de se

demonstrar racionalmente o seu conceito propriamente teológico (criatio in tempore):

Mas esse antecedente [, a distância infinita entre o ser e o nada, transposta

pelo poder infinito de Deus,] baseia-se exclusivamente na fé; e é verdadeiro quanto à ordem real da criação, onde a não-existência precede a existência

real da criatura com prioridade de quase-duração. Todavia, se tomarmos a

criação como a toma Avicena, Metafísica, livro VI, no sentido de a não-existência preceder a existência com mera prioridade de natureza [ou seja, a

natureza da criatura não implica a sua existência, sendo nela como que acidental], então o antecedente deixa de ser um pressuposto de fé, mas está

suficientemente demonstrado, porque pelo menos a primeira natureza depois

de Deus procede dele e não existe por si mesma, nem recebe o ser de algo preexistente [isto é, da matéria]; logo é criada

129.

Por fim, outra baliza importante está no âmbito da compreensão do conceito

de “onipotência”. Pela causação eficiente, conclui-se a infinitude intensiva do Primeiro

Princípio pelo fato de ser maior perfeição que um agente possa realizar atualmente

uma infinidade de efeitos do que poder realizá-los apenas sucessivamente. Todavia,

esta potência infinita do Primeiro Eficiente, cujo conhecimento é atingível pela razão

natural, não corresponde ainda à “onipotência” enquanto atributo teológico de Deus,

que consiste na capacidade divina de intervir diretamente por meio de milagres e

outras ações acima da ordem natural das coisas:

Portanto, ainda que tenha relegado o estudo da omnipotência propriamente

dita, conforme a entendem os católicos, para o tratado relativo ao que se

deve acreditar, ainda que a não se tenha provado, prova-se todavia a potência infinita que por si possui simultaneamente toda a causalidade de maneira

eminente, a qual, enquanto é por si, se existisse formalmente, poderia

produzir simultaneamente efeitos infinitos, se estes fossem simultaneamente factíveis

130.

129

DUNS SCOTUS, 1972, p. 50 (Ord. I dist. 2 n. 121).

130 DUNS SCOTUS, 1998, p. 116, n. 85. Acerca deste tema da onipotência, cf. PUSCI, Lucio. La

nozione dela divina omnipotenza in Giovanni Duns Scoto. Estratto dalla Tesi di Laurea in S.

Teologia. Roma: Miscellanea Francescana, 1967 (Via del Serafico, 1).

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Por outro lado, a especulação metafísica sobre a existência de Deus e seus

atributos particulares oferece à mesma ciência teológica os conceitos naturais mais

aptos, segundo a nossa própria capacidade no presente estado, para nomear a mesma

essência divina, particularmente o conceito de “Ser infinito”; que, segundo o mesmo

Doutor Sutil, substitui a essência divina como objeto da nossa teologia, distinta da

teologia em si (conhecimento imediato e perfeitíssimo da essência divina, possível

unicamente a Deus) e da teologia dos bem-aventurados (conhecimento imediato da

essência divina, concedido por Deus aos bem-aventurados, que o contemplam face a

face na glória).

A nossa teologia também tem por objeto primeiro Deus. No entanto, como

para nós ele não é uma realidade evidente e imediata (sed quia illud non est nobis evidens), também não pode ser imediatamente conhecido por nós

(immo non est nobis notum). Recorda Scotus que somente Deus é conhecido

por si mesmo de maneira totalmente natural e necessária. Objeto primeiro da nossa teologia é, segundo Scotus, o Ens infinitum. Este é o conceito mais

perfeito que, mediante nossa capacidade intelectiva, podemos alcançar em

relação ao objeto primeiro da teologia131

.

É importante, aqui, distinguir a compreensão de “infinito” no pensamento de

Scotus daquela proveniente da especulação aristotélica. Para o Sutil, o infinito se dá de

modo intensivo e qualitativo, como “aquilo ao qual não se pode adicionar perfeição

alguma”132

; enquanto, por sua vez, Aristóteles o compreende de modo extensivo e

quantitativo: “Não aquilo além do qual não há nada, mas, ao contrário, aquilo além do

qual sempre há alguma coisa. Eis o infinito”133

.

4.3 TEOLOGIA: “CIÊNCIA PRÁTICA”

O conceito de Ser infinito é, para Scotus, a “dobradiça” que une o fim da

Metafísica (conhecimento natural da realidade transcendental) e o início da Teologia

(conhecimento revelado e sobrenatural).

131

TAVARES, 2008, p. 49; cf. DUNS SCOTUS, 2003, p. 334-336, n. 168. Acerca do objeto primeiro

da Teologia, cf. TODISCO, Orlando. “Dio ‘ut ens infinitum’ e ‘ut haec essentia’: oggetto primo dela teologia scotista”. In. Deus et homo ad mentem Ioannis Duns Scoti. Acta Tertii Congressus

Scotistici Internationalis. Roma: Societas Internationalis Scotistica, 1972, p. 607-625 (Studia Scholastico-scotistica; 5).

132 GUERIZOLI, 1999, p. 108.

133 ARISTÓTELES. Física, III, 6, 207a apud GUERIZOLI, 1999, p. 109.

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Deve-se, porém, enfatizar que a possibilidade de se demonstrar o “Ser

Infinito” pela via da razão natural não nega a necessidade da revelação divina, pois é

impossível ao homem peregrino conhecer naturalmente a Deus de forma própria e

particular, isto é, como tal essência em si. O que conhecemos naturalmente pelo

conceito de “Ser infinito” é apenas o modo transcendental disjuntivo de Deus ser, ou

seja, um atributo positivo de Deus em relação às criaturas finitas.

Além do que, para Scotus, a Teologia não é jamais uma ciência teórica – como

o é a Metafísica –, mas eminentemente prática, ou seja, que visa o conhecimento do

fim último do homem e das condições necessárias para se alcançá-lo. Mesmo os

artigos de fé que se referem à revelação de mistérios aparentemente desvinculados a

qualquer ato virtuoso que o homem possa realizar em vista de sua salvação – qual

sejam o mistério das processões em Deus, da natureza dos anjos, da transubstanciação

eucarística etc. –, o Doctor Ordinis nunca os vê como pura especulação, mas sempre

como ato do intelecto que se estende à faculdade volitiva, isto é, como conhecimento

que se desdobra em amor.

A finalidade da Teologia não é tanto aumentar o saber, mas potencializar ao

máximo o amor e retificar o agir do peregrino em vista de seu fim último, ou seja, o

próprio Deus enquanto sumamente digno de ser amado. Uma vez que este fim

sobrenatural não é concedido a um ser privado de razão, mas justamente àquele a

quem Deus fez à sua imagem e semelhança, dotando-o com um intelecto sábio e uma

vontade livre, não é conveniente que o ser humano alcance o seu fim sem o concurso

de tais faculdades que lhe são próprias: eis a necessidade da revelação e, igualmente, a

constituição mesma da Teologia como ciência prática.

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CONCLUSÃO

A história do pensamento, que inclui também a Teologia enquanto nossa

teologia – nos dizeres de Duns Scotus –, muda conceitos, adota sistemas diversos,

volta-se para perspectivas inovadoras, coloca em cena temas novos ou faz ressurgir

temas antigos, talvez já um tanto esquecidos; contudo, seja qual for a linguagem

adotada ou os interesses epistemológicos em cena, quando se trata de tentar enunciar a

relação entre Deus e suas criaturas, sucedem-se binômios relativamente equivalentes,

quais sejam sobrenatural e natural, graça e natureza, fé e razão, ou seja, o esforço de

cada época em dizer aos seus contemporâneos qual seja o papel próprio de Deus e da

criatura nesta relação ímpar, fundamento de toda expressão religiosa.

Neste presente trabalho, buscamos apresentar a leitura feita por um teólogo

medieval, o Bem-aventurado João Duns Scotus, que – ainda que distanciado de nós

por mais de sete séculos –, permanece como referência primeira para toda a escola

franciscana, ao lado do Doutor Seráfico, São Boventura. A sutileza de seu pensamento,

reflexo último do método escolástico da fides quaerens intellectum, poderia dar a

impressão, a leitores menos afeitos ao pensamento medieval, de mera especulação

inútil, ou mesmo uma pretensão desmesuradamente racional e muito pouco religiosa.

Contudo, “este árduo processo mediante o qual a razão dá o melhor de si, desfrutando

ao máximo de sua intrínsecas virtualidades, culmina na espera despretensiosa pelo

dom inaudito da Revelação”134

.

Portanto, é justamente neste esforço extremo de “tocar” o máximo de nossas

capacidades humanas que se manifesta a insodável riqueza dos dons divinos; e a

própria revelação, consequentemente também a Teologia, como relação misteriosa em

que cada um dos participantes deste diálogo divino-humano se dá completamente, sem

reservas. Deste modo compreendemos a “Teologia enquanto ciência prática” – nos

dizeres de Scotus – como seu modo pessoal de viver o mandamento principal do

Senhor, qual seja: “amarás o Senhor teu Deus de todo o coração, com toda a alma, com

toda a mente e com todas as forças”135

.

134

TAVARES, 2008, p. 65.

135 Mc 12,30 (grifo nosso); cf. Mt 22,37; Lc 10,27; Dt 6,5. A expressão grifada não se encontra em Dt.

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