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Publicação trimestral – Ano XXVII – Nº 107 – Julho / Setembro 2002 – Preço 2,25 Boletim de Pastoral Litúrgica ISSN 0873-3295 107

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Boletim dePastoral LitúrgicaIS

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BOLETIM DE PASTORAL LITÚRGICAPropriedade do Secretariado Nacional de Liturgia

Director: Pedro Lourenço FerreiraRedacção e Administração: Secretariado Nacional de LiturgiaSantuário de Fátima – Apartado 31 — 2496-908 FÁTIMATel. 249 533 327 – Fax 249 533 343 – E-mail: [email protected]

Publicação registada na SGMJ nº 118776ISSN 0873-3295

Assinatura anual: Portugal: 9 € (IVA incl.) — Outros países: 13 €

G.C. – GRÁFICA DE COIMBRA

Depósito Legal Nº. 88 990/95

O ministério da palavra, Pedro Lourenço Ferreira ................................................ 81

Catequese sobre o Salmo 76, João Paulo II ........................................................... 83

Catequese sobre o Cântico de Ana, João Paulo II ................................................. 85

Catequese sobre o Salmo 96, João Paulo II ........................................................... 87

Catequese sobre o Salmo 79, João Paulo II ........................................................... 89

Catequese sobre o Cântico do Emanuel, João Paulo II ......................................... 91

Catequese sobre o Salmo 80, João Paulo II ........................................................... 93

Catequese sobre o Salmo 50, João Paulo II ........................................................... 95

Catequese sobre o Cântico de Habacuc, João Paulo II ......................................... 97

Catequese sobre o Salmo 147, João Paulo II ......................................................... 99

Catequese sobre o Salmo 91, João Paulo II ........................................................... 101

Catequese sobre o Cântico de Moisés, João Paulo II ............................................ 103

A liturgia eucarística, José Ferreira ....................................................................... 105

Curso para Acólitos – 7. Ser acólito, José de Leão Cordeiro ............................... 111

Música na Igreja contemporânea em Portugal, António José Ferreira................. 114

A nova lei do património culturale as suas implicações face à Igreja, José António Falcão ........................... 125

O novo Directório da piedade popular, D. Manuel Falcão ................................... 127

Peregrinação Nacional dos Acólitos, Manuel Mário Dias Ribeiro ....................... 131

Comissão Episcopal de Liturgia, Redacção ............................................................ 141

Novidades sobre a Missa, IGMR.............................................................................. 142

Livros litúrgicos oficiais – Situação em Julho de 2002, Redacção ...................... 144

JULHO – SETEMBRO 2002

107

O ministério da palavra

EDITORIAL

A reforma litúrgica – conjunto deacções que visam a renovação da Igreja noespírito do II Concílio do Vaticano – estáapenas nos inícios. As orientações daIgreja têm encontrado obstáculos e resis-tências que só o Espírito Santo poderávencer. O mistério da Igreja começa porser divino: Corpo de Cristo, imagem doPai e templo do Espírito Santo. A reno-vação litúrgica tem a ver com Deus e osseus desígnios de salvação. Os decretos daIgreja integram-se neste processo, masnão passam de ficheiros temporários.

No início do novo mandato (até 2005),confiado pela Conferência EpiscopalPortuguesa ao director do SecretariadoNacional de Liturgia, a grande atenção ea primeira das preocupações chama-se«ministério da palavra». Sinto vergonhada situação e, embora já tenha feito dili-gências para melhorar a situação, confessoeste pecado de negligência e omissão queestá na origem de muitos males da liturgia.

Mais um documento? Não, porque te-mos doutrina suficiente sobre o assunto.Precisamos de recordar as orientações daIgreja e percorrer o caminho sob a moçãodo Espírito Santo. A vida humana é umahistória de salvação. Conhecemos a gran-de história da salvação – que vai desde aprimeira criação à obra da redenção – masprecisamos de integrar a nossa históriapessoal e comunitária no conjunto dos de-sígnios salvíficos de Deus. Pensamos quesabemos donde vimos e que apenas igno-ramos o que está para acontecer. Esta ideia

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ocupa o nosso espírito e produz inquieta-ções, precisamente porque é imperfeita.Nós somos parte do mistério de Deus ecada um é uma revelação da manifestaçãode Deus. E aqui tudo começa para sempre.

A palavra de Deus que está na origemde toda a criação tem lugar na liturgia:«Quando na Igreja se lê a Sagrada Escri-tura, é o próprio Deus quem fala ao seupovo, é Cristo, presente na sua palavra,quem anuncia o Evangelho. Por isso asleituras da palavra de Deus, que proporci-onam à Liturgia um elemento da maiorimportância, devem ser escutadas por to-dos com veneração» (IGMR 29). Ao ser-viço desta palavra encontram-se os minis-tros ordenados e os leitores instituídos. Atécnica profissional destes agentes da pas-toral – em tempos de concorrência verbal– está a perder qualidade e a criar espaçopara o ritualismo litúrgico e o clima propí-cio à multiplicação das seitas religiosas. Ahumanidade tem sede da palavra de Deus eprocura-a avidamente, como já o fizeraSanto Agostinho em Milão. E a Palavraque mora no mais íntimo da alma humanacria o movimento da convergência queconduz ao encontro salvífico. A este pro-pósito, a Igreja recomenda: «Os pastoresde almas tenham especialmente em contaaquelas pessoas que por ocasião dos fune-rais assistem às celebrações litúrgicas eouvem o Evangelho, mas ou não são cató-licos, ou são católicos que nunca ou quasenunca tomam parte na celebração da Eu-caristia, ou parecem até terem perdido a

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fé. Lembrem-se os sacerdotes que sãoministros do Evangelho de Cristo paratodos» (IGMR 385). A fé, que é um domde Deus, nasce e alimenta-se da Palavraque é a fonte da verdadeira vida. Esta podeestar escondida a aguardar a primaverapara se poder manifestar. E a liturgia, que éobra de Cristo, está ao serviço da Palavraque falou pelos Profetas e Se fez carne noseio da Virgem Maria, e se torna Pão davida no Corpo de Cristo que a Igreja gerana celebração da Eucaristia. Este é o mis-tério da fé que animou a Cristo até ao fim,e que na morte legou em herança a toda ahumanidade. O «tudo está consumado»,pronunciado por Cristo crucificado, diz ofim das cerimónias e ritos do culto antigo edá início ao culto cristão, e nele à Palavrade Deus. Os místicos falam-nos abundan-temente desta realidade: «Agora, por úl-timo, nestes dias, [Deus] nos falou peloFilho tudo de uma só vez. No qual oApóstolo dá a entender que Deus ficoucomo mudo, e não tem mais que falar, por-que o que antes disse aos Profetas, falou-ono todo, dando-nos o Todo, que é o seuFilho. ... E assim, em tudo nos havemos deguiar, humana e visivelmente, pela lei deCristo-Homem e de sua Igreja e ministros,e por essa via remediar as nossas igno-râncias e fraquezas espirituais, pois paratudo acharemos, por esta via, abundantemedicina. E tudo o que for sair deste ca-minho, não só é curiosidade, senão muitoatrevimento, e nada se há-de crer porvia sobrenatural, senão só o que é ensina-mento de Cristo-Homem, como digo, e deseus ministros, homens» (S. João da Cruz,Subida do Monte Carmelo, II, 22, 4.7).

A Igreja sempre entendeu a Palavra deDeus deste modo, tanto dentro como forada liturgia. No único e definitivo acto deculto cristão – Cristo crucificado – a Pala-vra de Deus realizou a «obra ainda mais

excelente que o acto da criação no princí-pio do mundo» (Vig. Pascal, oração dep.da leitura da criação). A esta fé da Igrejacorresponde uma prática litúrgica. Assimcomo o ensinamento de Jesus era diferenteno seu tempo, porque «ensinava comoquem tinha autoridade» (Mt 7, 29), assimem cada tempo a proclamação dessa pala-vra deve ser com a autoridade de quem crêo que lê, de quem ensina o que crê e dequem vive o que ensina. A escola desteministério é a meditação assídua da Pala-vra que instrui e move ao anúncio fiel.Por esta razão, «na falta de leitor instituí-do, podem ser designados outros leigospara proclamar as leituras da sagradaEscritura, desde que sejam realmente ap-tos para o desempenho desta função e setenham cuidadosamente preparado, de talmodo que, pela escuta das leituras divi-nas, os fiéis desenvolvam no seu cora-ção um afecto vivo e suave pela sagradaEscritura». (IGMR 101).

As condições ou requisitos para quequalquer leigo possa proclamar as leiturassão genéricas:– realmente aptos para o desempenhodesta função– cuidadosamente preparados.

A aptidão é, certamente, técnica, teo-lógica, humana e espiritual. A preparaçãoé o exercício que faz a aptidão: estudar aleitura e ler em voz alta, ler algum comen-tário bíblico, rezar a leitura com Cristo epartilhá-la na conversa com os irmãos.

O ministério da palavra é o primeirogrande sinal – mistério e sacramento – dapresença de Cristo na sua Igreja, sobretu-do nas acções litúrgicas, fontes de vidacristã e renovadoras das actividades huma-nas. Ao exercício deste ministério se refe-rem também as palavras de Jesus: «Vóssois a luz do mundo» (Mt 5, 14).

PEDRO LOURENÇO FERREIRA

A VOZ DO PAPA

DEUS RENOVAOS PRODÍGIOS DO SEU AMOR

Catequese sobre o Salmo 76

1. A Liturgia, ao inserir nas Laudes deuma manhã o Salmo 76 que acabamos deproclamar, deseja recordar-nos que oinício do dia nem sempre é luminoso.Assim como alvorecem dias tenebrosos,nos quais o céu está coberto de nuvens eameaçado pela tempestade, assim tambéma nossa vida conhece dias repletos de lá-grimas e de receio. Por isso, já no alvo-recer a oração se torna lamento, súplicae invocação de ajuda.

O nosso Salmo é, precisamente, umaoração que se eleva para Deus com insis-tência, profundamente animada pela con-fiança, aliás, pela certeza da intervençãodivina. De facto, para o Salmista o Senhornão é um imperador impassível, confinadono seu luminoso céu, indiferente às nossasvicissitudes. Desta impressão, que porvezes nos oprime o coração, surgem per-guntas tão amarguradas que fazem vacilara fé: “Deus está a desmentir o seu amor e asua eleição?

Esqueceu-se dos tempos em que nosamparava e nos fazia felizes?”. Como ve-remos, estas perguntas desaparecerão de-vido a uma renovada confiança em Deus,redentor e salvador.2. Sigamos, então, o desenvolvimentodesta oração que começa com uma tonali-dade dramática, na angústia, para depois,pouco a pouco, se abrir à serenidade e àesperança. Eis diante de nós, em primeirolugar, a lamentação sobre o presente triste

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e sobre o silêncio de Deus (cf. vv. 2-11). Édirigido ao céu, aparentemente mudo, um brado que pede ajuda, as mãos ele-vam-se em súplica, o coração desfalecedevido às aflições. Nas noites em que nãose dorme, feitas de lágrimas e de orações,“volta ao coração” um cântico, como diz oversículo 7, uma estrofe desconfortadaressoa continuamente no fundo da alma.

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Quando o sofrimento chega ao ápice ese deseja afastar o cálice do sofrimento(cf. Mt 26, 39), as palavras explodem e tor-nam-se perguntas dilacerantes, como já sedisse (cf. Sl 76, 8-11). Este brado interpelao mistério de Deus e do seu silêncio.3. O Salmista pergunta porque é que oSenhor o recusa, porque mudou o seurosto e o seu modo de agir, esquecendo oamor, a promessa de salvação e a ternuramisericordiosa. “A direita do Altíssimo”,que realizara os prodígios salvíficos doÊxodo, parece estar paralisada (cf. v. 11).E este é um verdadeiro e próprio “tor-mento”, que faz vacilar a fé de quem reza.

Se fosse assim, Deus seria irreconhe-cível, tornar-se-ia um ser cruel ou umapresença como a dos ídolos, que não sa-bem salvar porque são incapazes, indife-rentes e impotentes. Nos versículos daprimeira parte do Salmo 76 encontra-setodo o drama da fé no tempo das prova-ções e do silêncio de Deus.4. Mas há motivos de esperança. É o quesobressai na segunda parte da súplica(cf. vv. 12-21), semelhante a um hino des-tinado a repropor a confirmação corajosada própria fé também nos dias tenebrososdo sofrimento. Canta-se o passado de sal-vação, que teve a sua epifania de luz nacriação e na libertação da escravidão doEgipto. O presente amargo é iluminadopela experiência salvífica do passado, queé uma semente lançada na história: elanão morreu, mas simplesmente foi sepul-tada, para depois germinar (cf. Jo 12, 24).

Por conseguinte, o Salmista recorre aum importante conceito bíblico, o do “me-morial”, que não é apenas uma vaga recor-dação confortadora, mas é a certeza deuma acção divina que nunca virá a faltar: “Tenho na memória as gestas do Senhor,lembro-me das Suas maravilhas” (Sl 76,12).

Professar a fé nas obras de salvação dopassado faz ter fé em tudo o que o Senhor éconstantemente e, portanto, também notempo presente. “Ó Deus, santos são osVossos caminhos... Vós sois o Deus queopera prodígios” (vv. 14-15). Assim opresente, que parecia não ter futuro nemluz, é iluminado pela fé em Deus e aberto àesperança.5. A fim de apoiar esta fé o Salmistaprovavelmente cita um hino mais antigo,talvez cantado na liturgia do templo deSião (cf. vv. 17-20). É uma clamorosa teo-fania na qual o Senhor entra na história,agitando a natureza e sobretudo as águas,símbolo da confusão, do mal e do sofri-mento. É muito bonita a imagem do cami-nho de Deus sobre as águas, sinal do seutriunfo sobre as forças negativas: “Sobreo mar foi o vosso caminho, e a vossasenda, no meio de águas caudalosas, semque se conhecesse o Vosso caminho” (v.20). E o pensamento dirige-se para Cristoque caminha sobre as águas, símbolo elo-quente da sua vitória sobre o mal (cf. Jo 6,16-20).

Por fim, recordamos que Deus guiou oseu povo, “como um rebanho”, “pela mãode Moisés e de Aarão” (Sl 76, 21). OSalmo leva-nos implicitamente a umacerteza: Deus conduzir-nos-á de novo àsalvação. A sua mão poderosa e invisívelestará connosco através da mão visível dospastores e dos guias por Ele estabelecidos.O Salmo, que começou com um brado desofrimento, no final suscita sentimentos defé e de esperança no grande pastor dasnossas almas (cf. Heb 13, 21; 1 Pd 2, 25).

JOÃO PAULO II

13 de Março de 2002Transcrito de L'Osservatore Romano

A ALEGRIA E A ESPERANÇA DOSHUMILDES ENCONTRA-SE EM DEUS

Catequese sobre o Cântico de Ana

1. Uma voz feminina orienta-nos hoje naoração de louvor ao Senhor da vida. Defacto, na narração do Primeiro Livro deSamuel, é Ana quem entoa o hino queacabamos de proclamar, depois de teroferecido ao Senhor o seu menino, o pe-queno Samuel. Ele será profeta em Israel eassinalará com a sua acção a passagem dopovo hebraico para uma nova formade governo, a monárquica, que terá comoprotagonistas o desventurado rei Saul e oglorioso rei David. Ana deixará atrás desi uma história de sofrimentos porque,como diz a narração, o Senhor “tinha-afeito estéril” (1 Sm 1, 5).

No antigo Israel a mulher estéril eraconsiderada como um ramo seco, umapresença morta, também porque impediaque o marido tivesse uma continuidade narecordação das gerações seguintes, umfacto importante numa visão ainda incertae obscura do além.

2. Mas Ana tinha posto a sua confiançano Deus da vida e rezara da seguinte for-ma: “Senhor dos exércitos, se Vosdignardes olhar para a aflição da Vossaserva e Vos lembrardes de mim; se não Vosesquecerdes da Vossa escrava e lhe derdesum filho varão, eu o consagrarei ao Senhor

A VOZ DO PAPA

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durante todos os dias da minha vida” (v.11). E Deus ouviu o brado desta mulherhumilhada, dando-lhe precisamente Sa-muel: o ramo seco produziu um rebentovivo (cf. Is 11, 1); o que era impossível aosolhos humanos tornou-se uma realidade palpitante naquela criança que iria serconsagrada ao Senhor.

O cântico de agradecimento, que veioaos lábios desta mãe, será retomado ereelaborado por outra mãe, Maria, que,permanecendo virgem, irá gerar por obrado Espírito de Deus. Com efeito, o Mag-nificat da mãe de Jesus deixa entrever emfiligrana o cântico de Ana que, precisa-mente por isso, é chamado “o Magnificatdo Antigo Testamento”.

3. Na realidade, os estudiosos fazemnotar que o autor sagrado pôs nos lábios deAna uma espécie de salmo real, cheio decitações ou alusões a outros Salmos.

Sobressai em primeiro plano a ima-gem do rei hebraico, invadido por adver-sários mais poderosos, mas que no final ésalvo e triunfa porque, ao seu lado, o Se-nhor quebra o arco dos fortes (cf. 1 Sam 2,4). É significativo o final do cântico quan-do, numa solene epifania, entra em cena oSenhor: “Tremerão diante do Senhor os

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seus inimigos! Trovejará do céu sobreeles. O Senhor julga os últimos confins daterra! Ele dará o império ao Seu Rei, eexaltará o poder do Seu ungido” (v. 10).Em hebraico, a última palavra é precisa-mente “Messias”, isto é “ungido”, quepermite transformar esta oração real emcântico de esperança messiânica.

4. Desejaríamos realçar dois temas nestehino de agradecimento que exprime ossentimentos de Ana. O primeiro dominarátambém o Magnificat de Maria e é a trans-formação do destino realizada por Deus.Os fortes são humilhados, os fracos “re-vestidos de vigor”; os saciados vão deses-peradamente à procura de alimento e osfamintos sentam-se para um banquetesumptuoso; o pobre é arrancado da poeirae recebe “um trono de glória” (cf. vv. 4.8).

É fácil sentir nesta antiga oração aorientação das sete acções que Maria vêrealizar na história por Deus Salvador: “Exerceu a força com o Seu braço e ani-quilou os que se elevavam no seu próprioconceito. Derrubou os poderosos dos seustronos e exaltou os humildes. Encheu debens os famintos e aos ricos despediu-oscom as mãos vazias. Tomou a Seu cuidadoIsrael, Seu servo” (Lc 1, 51-54).

É uma profissão de fé pronunciadapelas duas mães em relação ao Senhor dahistória, que se manifesta em defesa dosúltimos, dos pobres e infelizes, dos ofendi-dos e dos humilhados.

5. Outro tema que desejamos esclarecerrelaciona-se ainda mais com a figura deAna: “A estéril foi mãe de sete filhos e amulher que tinha muitos filhos deixou deconceber” (1 Sm 2, 5). O Senhor que in-verte os destinos é também aquele queestá na origem da vida e da morte. O seioestéril de Ana era semelhante a um tú-mulo; e não obstante Deus fez germinarnele a vida, porque ele “tem nas Suas mãosa alma de todo o ser vivente, e o sopro devida de todos os homens” (Job 12, 10). Emcontinuidade, canta-se logo a seguir: “OSenhor é que dá a morte e a vida, leva àhabitação dos mortos e tira dela” (1 Sm 2,6).

A esperança já não diz respeito apenasà vida do menino que nasce, mas tambémà que Deus pode fazer desabrochar depoisda morte. Desta forma, abre-se um ho-rizonte quase “pascal” de ressurreição.Isaías cantará: “Os vossos mortosreviverão, os seus cadáveres ressuscitarão,despertarão jubilosos os que jazem nosepulcro! Porque o vosso orvalho é umorvalho de luz, e a terra das sombras dará àluz” (Is 26, 19).

JOÃO PAULO II

20 de Março de 2002Transcrito de L'Osservatore Romano

1. A luz, a alegria e a paz, que no tempopascal inundam a comunidade dos discí-pulos de Cristo e se difundem em toda acriação, invadem este nosso encontro, quetem lugar no clima intenso da Oitava dePáscoa. É o triunfo de Cristo sobre o mal esobre a morte, que celebramos duranteestes dias. Com a sua morte e a sua ressur-reição, é estabelecido definitivamente oreino de justiça e de amor desejado porDeus.

É precisamente ao tema do reino deDeus que se refere a Catequese de hoje,dedicada à reflexão sobre o Salmo 96.Este Salmo começa com a solene procla-mação: “O Senhor é Rei! A terra exulta eas numerosas ilhas alegram-se”, e dis-tingue-se como uma celebração do Reidivino, Senhor do cosmos e da história.Portanto, poderíamos dizer que nos encon-tramos na presença de um Salmo “pascal”.

Sabemos como o anúncio do reino deDeus era importante na pregação de Jesus.Deus não é apenas o reconhecimento dadependência do ser criado em relação aoCriador; é também a convicção de que nointerior da história estão inseridos umprojecto, um desígnio e uma trama de har-monias e de bens, desejados por Deus.Tudo isto se realizou plenamente na Pás-coa da morte e da ressurreição de Jesus.

A GLÓRIA DO SENHOR NO JUÍZOCatequese sobre o Salmo 96

A VOZ DO PAPA

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2. Agora, percorramos o texto do Salmo,que a liturgia nos propõe na celebraçãodas Laudes. Imediatamente depois daaclamação do Senhor rei, que ressoa comoum toque de trombeta, abre-se diante doorante uma grandiosa epifania divina.Referindo-se ao uso de citações ou alusõesa outros trechos dos Salmos ou dos Pro-fetas, sobretudo de Isaías, o Salmista de-lineia a irrupção no cenário do mundo dogrande Rei, que aparece circundado poruma série de ministros ou forças cósmi-cas: as nuvens, as trevas, o fogo e os re-lâmpagos.

Ao lado deles, outra série de ministrospersonifica a sua acção histórica: a justi-ça, o direito e a glória. O seu ingresso nocenário faz a criação estremecer. A terraexulta em todos os lugares, também nasilhas, consideradas como a área mais re-mota (cf. v. 1). O mundo inteiro é ilumi-nado por relâmpagos de luz e a terra estre-mece (cf. v. 4). Os montes que, segundo acosmologia bíblica, encarnam as reali-dades mais antigas e sólidas, derretem-secomo se fossem de cera (cf. v. 5), como jácantava o profeta Miqueias: “Olhai, oSenhor sai do seu lugar e desce... desfa-zem-se as montanhas e os vales derre-tem-se como cera junto do fogo” (1, 3-4).Nos céus ressoam hinos angélicos que

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exaltam a justiça, ou seja, a obra de sal-vação levada a cabo pelo Senhor para osjustos. Enfim, toda a humanidade con-templa a revelação da glória divina, ouseja, da misteriosa realidade de Deus(cf. Sl 96, 6), enquanto os “inimigos” istoé, os iníquos e os injustos, cedem perante aforça irresistível do juízo do Senhor (cf.v. 3).

3. Depois da teofania do Senhor douniverso, o Salmo descreve dois tipos dereacção diante do grande Rei e do seuingresso na história. Por um lado, osidólatras e os ídolos caem por terra con-fusos e derrotados; por outro, os fiéisreunidos em Sião para a celebração li-túrgica em honra do Senhor, elevam comalegria um hino de louvor. A cena dos“adoradores de estátuas” (cf. vv. 7-9) é es-sencial: os ídolos prostram-se diante doúnico Deus e os seus seguidores co-brem-se de vergonha. Os justos assistemexultantes ao juízo divino, que elimina amentira e a falsa religiosidade, fontes demiséria moral e de escravidão. Eles en-toam uma profissão de fé luminosa: “Por-que Tu és, ó Senhor, o Altíssimo sobre aterra inteira, mais elevado do que todos osdeuses” (v. 9).

4. Ao quadro que descreve a vitória so-bre os ídolos e sobre os seus adoradoresopõe-se aquele que poderíamos definircomo o maravilhoso dia dos fiéis (cf. vv.10-12). Com efeito, fala-se de uma luz quese levanta para o justo (cf. v. 11): é comose despontasse uma aurora de alegria, defesta e de esperança, também porque comose sabe a luz é símbolo de Deus (cf. 1 Jo 1,5). O profeta Malaquias declarava: “Paravós que temeis o Senhor brilhará o sol dajustiça” (3, 20). À luz, associa-se a felici-

dade: “Alegria para os corações rectos.Justos, alegrai-vos com o Senhor e cele-brai a sua memória santa!” (Sl 96, 11-12).

O reino de Deus é uma fonte de paz ede serenidade, pois aniquila o império dastrevas. Uma comunidade judaica contem-porânea de Jesus cantava: “A injustiça va-cila diante da justiça, como as trevas seafastam da luz; a injustiça desaparecerápara sempre e a justiça, como o sol, mos-trar-se-á como princípio de ordem domundo” (Livro dos mistérios, do Qumran:1 Q 27, I, 5-7).

5. Antes de deixar o Salmo 96, é impor-tante encontrar nele, para além da face doSenhor Rei, também o rosto do fiel. Ele édescrito com sete traços, sinal de perfeiçãoe de plenitude. Aqueles que esperam avinda do grande Rei divino odeiam o male amam o Senhor, são os hasidim, ou seja,os fiéis (cf. v. 10), caminham pela senda dajustiça e são rectos de coração (cf. v. 11),alegram-se diante das obras de Deus e dãograças ao santo nome do Senhor (cf. v. 12).Peçamos ao Senhor que estes traços espiri-tuais brilhem inclusivamente nos nossosrostos.

JOÃO PAULO II

3 de Abril de 2002Transcrito de L'Osservatore Romano

1. O salmo que agora foi entoado tem atonalidade de um lamento e de uma sú-plica de todo o povo de Israel. A primeiraparte emprega um célebre símbolo bíblico,o pastoral. O Senhor é invocado como“pastor de Israel”, aquele que “conduziuJosé como um rebanho” (Sl 79, 2). Do altoda arca da aliança, sentado sobre os queru-bins, o Senhor guia o seu rebanho, isto é, oseu povo, e protege-o dos perigos.

Assim fizera durante a travessia do de-serto. Mas agora, parece estar ausente,quase adormecido ou indiferente. Ao reba-nho que devia orientar e nutrir (cf. Sl 22)oferece apenas um pão embebido em lá-grimas (cf. Sl 79, 6). Os inimigos escar-necem este povo humilhado e ofendido;contudo, Deus não se mostra admirado,não “desperta” (v. 3), nem revela o seu po-der, defendendo as vítimas da violência eda opressão. A invocação da antífona re-petida (cf. vv. 4.8) tenta fazer com queDeus abandone a sua atitude indiferente,fazendo com que ele volte a ser pastor edefesa do seu povo.

2. Na segunda parte da oração, densa detensão e, ao mesmo tempo, de confiança,encontramos outro símbolo querido à Bí-blia, o da vinha. É uma imagem que secompreende facilmente, porque faz parte

VISITAI, SENHOR,A VOSSA VINHA

Catequese sobre o Salmo 79

A VOZ DO PAPA

JULHO – SETEMBRO 2002 89

do panorama da terra prometida e é sinalde fecundidade e de alegria.

Como ensina o profeta Isaías numadas suas mais nobres páginas poéticas (cf.Is 5, 1-7), a vinha encarna Israel. Ela ilus-tra duas dimensões fundamentais: por umlado, dado que é plantada por Deus (cf. Is5, 2; Sl 79, 9-10), a vinha representa odom, a graça, o amor de Deus; por outro,

90 BOLETIM DE PASTORAL LITÚRGICA

ela precisa do trabalho do camponês, gra-ças ao qual produz uvas que podem dar ovinho e, portanto, representa a respostahumana, o empenho pessoal e o fruto deobras justas.

3. Através da imagem da vinha, o Salmorecorda as principais etapas da históriahebraica: as suas raízes, a experiência doêxodo do Egipto, a entrada na terra prome-tida. A vinha tinha alcançado o seu nívelmais amplo de extensão sobre toda a re-gião palestina e para além dela, com oreino de Salomão. De facto, expandia-sedos montes setentrionais do Líbano, comos seus cedros, até ao mar Mediterrâneo equase até ao grande rio Eufrates (cf. vv.11-12).

Mas o esplendor deste florescimentofoi interrompido. O Salmo recorda-nosque na vinha de Deus passou a tempes-tade, isto é, Israel sofreu uma provaçãoáspera, uma dura invasão que devastou aterra prometida. O próprio Deus derrubou,como se fosse um invasor, o muro que cir-cundava a vinha, deixando assim que nelairrompessem os saqueadores, representa-dos pelo javali, um animal considerado,pelos costumes antigos, violento e impuro.Ao poder do javali uniram-se todos os ani-mais selvagens, símbolo de uma horda ini-miga que tudo devasta (cf. vv. 13-14).

4. Então, dirige-se a Deus o prementeapelo para que volte a manifestar-se emdefesa das vítimas, rompendo o seu silên-cio: “Voltai, sem tardança ó Deus dosexércitos, observai o céu e considerai;atendei a esta vinha” (v. 15). Deus seráainda o protector da cepa vital desta vinhasubmetida a uma tempestade tão violenta,afastando tudo o que procuraradesenraizá-la e incendiá-la (cf. vv. 16-17).

A este ponto, o Salmo abre-se a umaesperança com tonalidades messiânicas.De facto, o versículo 18 reza assim: “Quea Tua mão se estenda sobre o homem daTua direita, sobre o filho do homem queVós fortalecestes”. O pensamento diri-ge-se talvez, antes de mais, para o rei davídico que, com o apoio do Senhor,orientará a reconquista da liberdade. Con-tudo, é implícita a confiança no futuroMessias, aquele “filho do homem” queserá cantado pelo profeta Daniel (cf. 7,13-14) e que Jesus assumirá como títulopredilecto para definir a sua obra e a suapessoa messiânica. Aliás, os Padres daIgreja serão unânimes ao indicar na vinharecordada pelo Salmo uma prefiguraçãoprofética de Cristo “videira verdadeira”(Jo 15, 1) e da Igreja.

5. Sem dúvida, para que o rosto do Se-nhor volte a brilhar, é necessário que Israelse converta na fidelidade e na oração aDeus Salvador. É o que o Salmista expri-me ao afirmar: “não nos afastaremos maisde ti” (Sl 79, 19).

Por conseguinte, o Salmo 79 é um cân-tico prevalecentemente marcado pelo so-frimento, mas também por uma confiançainabalável. Deus está sempre disposto a“voltar” para o seu povo, mas é necessárioque também o seu povo “volte” para Elena fidelidade. Se nós nos convertemos dopecado, o Senhor “converter-se-á” da suaintenção de castigar: é esta a convicção doSalmista, que tem o seu eco também nosnossos corações, abrindo-os à esperança.

JOÃO PAULO II

10 de Abril de 2002Transcrito de L'Osservatore Romano

1. O hino que acabamos de proclamar fazparte, como cântico de alegria, da Liturgiadas Laudes. Ele constitui uma espécie deselo de algumas páginas do Livro de Isaíasque se tornaram célebres devido à sualeitura messiânica. Trata-se dos capítulos6-12, normalmente chamados “o livro doEmanuel”. De facto, no centro daquelesoráculos proféticos domina a figura de umsoberano que, apesar de pertencer à histó-rica dinastia davídica, revela contornostransfigurados e recebe títulos gloriosos:“Conselheiro-Admirável, Deus-Poderoso,Pai-Eterno, Príncipe-da-Paz” (Is 9, 5).

A figura concreta do rei de Judá queIsaías promete como filho e sucessor deAcaz, o soberano daquela época muitoafastado dos ideais davídicos, é o sinal deuma promessa mais nobre: a do rei-Mes-sias que realizará em plenitude o nome de“Emanuel”, isto é, “Deus-connosco”,tornando-se a presença divina perfeita nahistória humana. Compreende-se facil-mente, então, como o Novo Testamento eo cristianismo tenham intuído naqueleperfil real a fisionomia de Jesus Cristo,Filho de Deus que se fez homem solidárioconnosco.

2. O hino a que agora fazemos referência(cf. Is 12, 1-6) é considerado pelos estu-diosos, tanto pela qualidade literária comopelo seu tom geral, uma composição

EXULTAÇÃO DO POVO REDIMIDOCatequese sobre o Cântico do Emanuel

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A VOZ DO PAPA

posterior em relação ao profeta Isaías, queviveu no século oitavo antes de Cristo. Équase uma citação, um texto à maneirade salmo, talvez de uso litúrgico, que éinserido neste ponto para servir de conclu-são ao “livro do Emanuel”. Com efeito,recorda alguns dos seus temas: a salva-ção, a confiança, a alegria, a acção divina,a presença entre o povo do “Santo de Is-rael”, expressão que indica tanto a trans-cendente “santidade” de Deus, como a suaproximidade amorosa e activa, com a qualo povo de Israel pode contar.

Quem canta é uma pessoa que fez umatriste experiência, sentida como um actodo juízo divino.

Mas agora a provação terminou; a có-lera do Senhor é substituída pelo sorriso,com a disponibilidade para salvar e con-fortar.

3. As duas estrofes do hino marcamquase dois momentos. No primeiro (cf.vv. 1-3), aberto pelo convite para rezar:“Dirás naquele dia”, domina a palavra“salvação”, repetida três vezes e aplicadaao Senhor: “Este é o Deus da minha salva-ção... Ele foi a minha salvação... as fontesda salvação”.

Recordamos, entre outras coisas, que onome de Isaías como o de Jesus contém araíz do verbo hebraico ylsa”, que faz alu-são à “salvação”. Por conseguinte, o nosso

orante tem a certeza indiscutível de que naorigem da libertação e da esperança seencontra a graça divina. É significativoobservar que ele faz referência implícitaao grande acontecimento salvífico doêxodo da escravidão do Egipto, porquemenciona as palavras do cântico de liber-tação entoado por Moisés: “O Senhor é aminha força e a minha glória” (Ex 15, 2).

4. A salvação dada por Deus, capaz desuscitar a alegria e a confiança também nodia obscuro da provação, é representadapela imagem, clássica na Biblia, da água:“Tirareis com alegria água das fontes dasalvação” (Is 12, 3). O pensamento vaiespiritualmente para a cena da mulhersamaritana, quando Jesus lhe oferece apossibilidade de ter em si mesma uma“nascente de água a jorrar para a vidaeterna” (Jo 4, 14).

A este propósito, Cirilo de Alexandriacomenta de maneira sugestiva: “Jesuschama água viva ao dom vivificante doEspirito, o único através do qual a humani-dade, apesar de ter sido completamenteabandonada, como os troncos nos montes,seca e privada, devido às insídias do dia-bo, de todas as espécies de virtudes, érestituida à antiga beleza da natureza... OSalvador chama água à graça do EspiritoSanto, e se alguém participar d’Ele, teráem si mesmo a nascente dos ensinamentosdivinos, de forma que não terá mais neces-sidade dos conselhos dos outros, e poderáexortar todos os que tem sede da Palavrade Deus. Eram assim, quando estavamnesta vida e na terra, os santos profetas, osapóstolos e os sucessores do seu ministé-rio. A seu respeito foi escrito: tirareiságua com alegria da fonte da salvação”(Comentário ao Evangelho de João II, 4,Roma 1994, págs. 272.275).

Infelizmente a humanidade abandonacom frequência esta nascente que tira asede a todo o ser da pessoa, como realçacom amargura o profeta Jeremias: “Aban-donou-Me, a Mim, fonte de águas vivas,para cavar cisternas, cisternas rotas, quenão podem reter as águas” (Jer 2, 13).Também Isaías, poucas páginas atrás,tinha exaltado “as águas de Siloé quecorrem tranquilas”, simbolo do Senhorpresente em Sião, e ameaçara o castigo dainundação das “águas abundantes e impe-tuosas do rio Eufrates” (Is 8, 6-7), símbolodo poder militar e económico e da idola-tria, águas que, então, fascinavam Judá,mas que o teriam submergido.

5. Outro convite “Naquele dia direis”começa a segunda estrofe (cf. Is 12, 4-6),que é um apelo contínuo ao louvor jubi-loso em honra do Senhor. Multiplicam-seos imperativos para cantar: “Louvai, in-vocai, manifestai, proclamai, cantai,bradai, exultai”.

No centro do louvor está uma únicaprofissão de fé em Deus salvador, queintervém na história e está ao lado da suacriatura, partilhando as suas vicissitudes:“O Senhor... fez obras maravilhosas...Quão grande no meio de ti é o Santo deIsrael” (vv. 5.6). Esta profissão de fé temtambém uma função missionária: “narraias suas obras entre os povos... anunciai-asem toda a terra” (vv. 4.5). A salvação obti-da deve ser testemunhada no mundo, demaneira que toda a humanidade corra para aquelas nascentes de paz, de alegriae de liberdade.

JOÃO PAULO II

17 de Abril de 2002Transcrito de L'Osservatore Romano

92 BOLETIM DE PASTORAL LITÚRGICA

A VOZ DO PAPA

SOLENE CONVITEA RENOVAR A ALIANÇACatequese sobre o Salmo 80

1. “Tocai a trombeta pelo novo mês, nalua cheia, dia da nossa festa” (Sl 80, 4).Estas palavras do Salmo 80, agora procla-mado, remetem para uma celebração litúr-gica segundo o calendário lunar do antigoIsrael. É difícil definir com exactidão afestividade a que o Salmo se refere; é certoque o calendário litúrgico bíblico, emboracomece com o fluxo das estações e portan-to da natureza, se apresenta firmementeancorado na história da salvação e, em par-ticular, no principal acontecimento doêxodo da escravidão egípcia, ligado à luacheia do primeiro mês (cf. Êx 12, 2-6; Lv23, 5). Com efeito, foi ali que se revelou oDeus libertador e salvador.

Como afirma poeticamente o versícu-lo 7 desse mesmo Salmo, foi Deus que ti-rou dos ombros do hebreu escravo noEgipto, a cesta repleta de tijolos, necessá-rios para a construção da cidade de Pitome Ramsés (cf. Êx 1, 11.14). O próprio Deuspôs-se ao lado do povo oprimido e, com oseu poder, tirou e cancelou o sinal amargoda escravidão, a cesta dos tijolos cozidosao sol, expressão dos trabalhos forçados aque eram obrigados os filhos de Israel.

2. Agora, sigamos a evolução deste cân-tico da liturgia de Israel. Ele abre-se comum convite à festa, ao cântico, à música: trata-se da convocação oficial da assem-bleia litúrgica, segundo o antigo preceito

do culto, nascido já na terra do Egipto,com a celebração da Páscoa (cf. Sl 81 [80],2-6). Depois deste apelo, ergue-se a voz dopróprio Senhor, através do oráculo do sa-cerdote no templo de Sião, e estas pala-vras divinas hão-de ocupar todo o res-to do Salmo (cf. vv. 6-17).

O tema que se desenvolve é simples einclui dois pólos ideais. Por um lado, há odom divino da liberdade que foi oferecidaa Israel oprimido e infeliz: “Clamaste naopressão, e Eu libertei-te” (v. 8). Existeuma referência também ao apoio que o Se-nhor ofereceu a Israel, a caminho no deser-to, ou seja, ao dom da água em Meriba,num contexto de dificuldade e de prova-ção.

3. Por outro lado, porém, juntamentecom o dom divino, o Salmista introduzoutro elemento significativo. A religião bí-blica não é um monólogo solitário deDeus, uma sua acção destinada a ficarinerte. Pelo contrário, é um diálogo, umapalavra acompanhada de uma resposta,um gesto de amor que exige adesão. Por isso, reserva-se um amplo espaço aosconvites que Deus dirige a Israel.

O Senhor convida, em primeiro lugar,à observância do primeiro mandamento,fundamento de todo o Decálogo, ou seja, afé no único Senhor e Salvador, e a rejeiçãodos ídolos (cf. Êx 20, 3-5). O discurso do

JULHO – SETEMBRO 2002 93

sacerdote em nome de Deus é cadenciadopelo verbo “escutar”, querido ao livro doDeuteronómio, que exprime a adesão obe-diente à Lei do Sinai e constitui um sinalda resposta de Israel ao dom da liberdade.Com efeito, no nosso Salmo ouve-se re-petir: “Escuta, meu povo... Oxalá meouvisses, Israel! (...) E o meu povo nãoescutou a minha voz, Israel não quisobedecer-me... Ah, se o meu povo meescutasse! (...) (vv. 9.12 e 14).

É somente através da fidelidade à es-cuta e à obediência que o povo pode rece-ber plenamente os dons do Senhor. Infeliz-mente, é com amargura que Deus devedar-se conta das numerosas infidelidadesde Israel. O caminho no deserto, a que oSalmo faz alusão, está totalmente conste-lado de tais actos de rebelião e de idolatria,que alcançarão o seu ápice na configura-ção do bezerro de ouro (cf. Êx 32, 1-4).

4. A última parte do Salmo (cf. vv. 14-17) tem uma tonalidade melancólica.Efectivamente, nele Deus exprime um de-sejo que até agora não foi satisfeito: “Ah,se o meu povo me escutasse, se Israel an-dasse pelos meus caminhos!” (v. 14).

Porém, esta melancolia inspira-se noamor e está ligada a um profundo desejode cumular de bens o povo eleito. Se Israelcaminhasse pelas sendas do Senhor, elespoderiam dar imediatamente a vitória so-bre os seus inimigos (cf. v. 15) e nutri-lo“com a flor do trigo” e saciá-lo “com o meldo rochedo” (v. 17). Seria um alegrebanquete de pão fresquíssimo, acompa-nhado do mel que parece correr das rochasda terra prometida, representando a pros-peridade e o completo bem-estar, comonão raro se repete na Bíblia (cf. Dt 6, 3; 11,9; 26, 9 e 15; 27, 3; e 31, 20). Com a apre-sentação desta maravilhosa perspectiva,evidentemente o Senhor procura obter a

conversão do seu povo, uma resposta deamor sincero e efectivo ao seu amor, maisgeneroso do que nunca.

Na leitura cristã, a oferta divina revelaa sua amplitude. Com efeito, Orígenesoferece-nos esta interpretação: o Senhor“fê-los entrar na terra prometida; não osnutriu com o maná, como no deserto, mascom a semente que caiu na terra (cf. Jo 12,24-25), que renasceu... Cristo é a semente;Ele é também a rocha que, no deserto, sa-ciou o povo de Israel com a água. Em sen-tido espiritual, saciou-o com o mel, e nãocom a água, a fim de que quantos acredita-rem e receberem este alimento, sintam omel na sua boca” (Homilia sobre o Salmo80, n. 17, em: Orígenes-Jerónimo, 74 Ho-milias sobre o Livro dos Salmos, Milão1993, pp. 204-205).

5. Como sempre na história da salvação,a última palavra no contraste entre Deus eo povo pecador nunca é o juízo e o castigo,mas o amor e o perdão. Deus não desejajulgar nem condenar, mas salvar e libertara humanidade do mal. Ele continua a repe-tir-nos as palavras que lemos no livro doProfeta Ezequiel: “Porventura sentireiprazer com a morte do injusto... O queeu quero é ele se converta dos seus mauscaminhos, e viva (...) Por que motivodeveríeis morrer, casa de Israel? Eu nãosinto prazer com a morte de ninguém.Palavra oráculo do Senhor Deus. Conver-tei-vos e tereis a vida” (18, 23 e 31-32).

A liturgia torna-se o lugar privilegiadoonde escutar o apelo divino à conversão evoltar ao abraço do Deus “misericordiosoe clemente, lento a encolerizar-se, mascheio de bondade e de fidelidade” (Êx34, 6).

JOÃO PAULO II24 de Abril de 2002Transcrito de L'Osservatore Romano

94 BOLETIM DE PASTORAL LITÚRGICA

A VOZ DO PAPA

SENHOR, TENDE PIEDADE DE MIM!Catequese sobre o Salmo 50

1. Cada semana da Liturgia das Laudes émarcada na Sexta-feira pelo Salmo 50, oMiserere, o Salmo penitencial mais ama-do, cantado e meditado, hino ao Deusmisericordioso elevado pelo pecador arre-pendido. Já tivemos ocasião, numa cate-quese precedente, de apresentar o quadrogeral desta grande oração. Em primeirolugar, entra-se na região tenebrosa do pe-cado para aí levar a luz do arrependimentohumano e do perdão divino (cf. vv. 3-11).Depois, exalta-se o dom da graça divina,que transforma e renova o espírito e o co-ração do pecador arrependido: esta é umaregião luminosa, cheia de esperança e deconfiança (cf. vv. 12-21).

Detemo-nos, nesta nossa reflexão, nal-gumas considerações, na primeira parte doSalmo 50, aprofundando alguns dos seusaspectos. Mas, no começo, desejaríamosmencionar a maravilhosa proclamaçãodivina do Sinai, que é quase o retrato doDeus cantado pelo Miserere: “Javé! Javé!Deus misericordioso e clemente, vagarosoem encolerizar-Se, cheio de bondade efidelidade, que mantém a sua graça até àmilésima geração, que perdoa a iniqui-dade, a rebeldia e o pecado” (Êx 34, 6-7).

2. A invocação inicial eleva-se a Deuspara obter o dom da purificação que façacomo dizia o profeta Isaías “brancos comoa neve” e “como a lã” os pecados, em si

semelhantes ao “escarlate” e “vermelhoscomo a púrpura” (cf. Is 1, 18). O Salmistaconfessa o seu pecado de forma clara esem hesitações: “Reconheço, de verdade,a minha culpa... Contra Vós apenas é queeu pequei, pratiquei o mal perante osvossos olhos” (Sl 50, 5-6).

Por conseguinte entra em cena a cons-ciência pessoal do pecador que se abrepara compreender claramente o seu mal. Éuma experiência que envolve liberdade eresponsabilidade, e leva a admitir que sequebrou o vínculo para construir umaescolha de vida alternativa em relação àPalavra divina. Disto deriva uma decisãoradical de mudança. Tudo isto está encer-rado naquele “reconhecer”, um verbo queem hebraico não significa apenas umaadesão intelectual mas uma opção vital.

É o que, infelizmente, muitos não fa-zem, como nos adverte Orígenes: “Háquem, depois de ter pecado, se sintacompletamente tranquilo e não se preo-cupe com o seu pecado nem tocado pelaconsciência do mal cometido, mas vivacomo se nada tivesse acontecido. Semdúvida, esse não poderia dizer: tenhosempre consciência do meu pecado. Aocontrário, quando, depois do pecado, opecador se inquieta e se aflige devido aoseu pecado, quando se sente atormentadopelos remorsos, dilacerado sem tréguas esofre sobressaltos no seu íntimo que se

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eleva para o contestar, ele, com razão,exclama: não há paz para os meus ossosface ao aspecto dos meus pecados... Por-tanto, quando os pecados cometidos seapresentam aos olhos do nosso coração, osrevemos um por um, os reconhecemos,nos envergonhamos e arrependemos doque fizemos, então perturbados e aterrori-zados, justamente dizemos que não há pazpara os nossos ossos face ao aspecto dosnossos pecados...” (Homilias sobre osSalmos, Florença 1991, págs. 277-279).

O reconhecimento e a consciência dopecado é, portanto, fruto de uma sensibili-dade adquirida graças à luz da Palavra deDeus.

3. Na confissão do Miserere há um realcede particular evidência: o pecado não écompreendido apenas na sua dimensãopessoal e “psicológica”, mas é analisadosobretudo na sua qualidade teológica.“Contra Vós apenas é que eu pequei” (Sl50, 6), exclama o pecador, ao qual a tradi-ção deu o rosto de David, consciente doseu adultério com Betsabé, e da denúnciado profeta Natan contra este crime e contrao crime da morte do seu marido, Urias (cfv. 2; 2 Sam 11, 12).

Por conseguinte, o pecado não é ape-nas uma questão psicológica ou social,mas é um acontecimento que prejudica arelação com Deus, violando a sua lei, recu-sando o seu projecto na história, alterandoa escala dos valores, “mudando as trevasem luz e a luz em trevas”, isto é, “cha-mando bem ao mal e mal ao bem” (cf. Is 5,20). Antes de ser uma possível afrontacontra o homem, o pecado é antes de maistraição a Deus. São emblemáticas as pala-vras que o filho desprovido de bens pro-nuncia diante de seu pai, pródigo de amor:“Pai, pequei contra o Céu isto é, contraDeus e contra ti!” (Lc 15, 21).

4. A este ponto o Salmista introduz outroaspecto, mais directamente relacionadocom a realidade humana. Foi a frase quesuscitou muitas interpretações e quetambém foi relacionada com a doutrina dopecado original: “Eis que eu nasci na cul-pa, e a minha mãe concebeu-me pecador”(Sl 50, 7). O orante deseja indicar a pre-sença do mal dentro do nosso ser, como éevidente na menção da concepção e donascimento, uma forma de exprimir toda aexistência partindo da sua origem. Mas oSalmista não relaciona formalmente estasituação com o pecado de Adão e Eva,isto é, não fala explicitamente de pecadooriginal.

Contudo, é evidente que, segundo otexto do Salmo, o mal se esconde naspróprias profundezas do homem, é ine-rente à sua realidade histórica e, por isso, édecisivo o pedido da intervenção da graçadivina. O poder do amor de Deus supera opoder do pecado, o rio transbordante domal pode menos do que a água fecundantedo perdão: “Onde abunda o pecado,superabunda a graça” (Rm 5, 20).

5. Por este caminho, a teologia do pecadooriginal e toda a visão bíblica do homempecador são indirectamente recordadoscom palavras que deixam, ao mesmo tem-po, entrever a luz da graça e da salvação.

De facto, Deus salva-nos “não porcausa das obras da justiça que tivéssemosfeito, mas por misericórdia, mediante obaptismo de regeneração e renovação doEspírito Santo, que derramou sobre nósabundantemente por Jesus Cristo, nossoSalvador” (Tit 3, 5-6).

JOÃO PAULO II

8 de Maio de 2002Transcrito de L'Osservatore Romano

96 BOLETIM DE PASTORAL LITÚRGICA

A VOZ DO PAPA

DEUS VEM PARA JULGARCatequese sobre o Cântico de Habacuc

1. A Liturgia das Laudes propõe-nosuma série de cânticos bíblicos de profundaintensidade espiritual, para acompanhar aoração fundamental dos Salmos. Hojeouvimos um exemplo tirado do terceiro eúltimo capítulo do livro de Habacuc. Esteprofeta viveu nos finais do século XII a.C.,quando o reino de Judá se sentia esmagadoentre duas superpotênctias que se expan-diam, por um lado o Egipto e, por outro, aBabilónia.

Contudo, muitos estudiosos conside-ram este hino final como uma citação. Porconseguinte, no apêndice ao breve escritode Habacuc encontra-se um verdadeiro epróprio cântico litúrgico, “em tom de la-mentação” que deve ser acompanhado por“instrumentos de corda”, como dizemduas notas colocadas no início e no finaldo Cântico (cf. Hab 3, 1.19b). A Liturgiadas Laudes, no prosseguimento da antigaoração de Israel, convida-nos a transfor-mar em cântico cristão esta composição,escolhendo alguns dos seus versículosmais significativos (cf. vv. 2-4.13a.15-19a).2. O hino, que revela também uma notá-vel força poética, apresenta uma grandiosaimagem do Senhor (cf. vv. 3-4). A sua fi-gura domina solenemente todo o cenáriodo mundo e o universo é percorrido porum estremecimento perante o seu andarsolene. Ele prossegue do sul, de Teman edo monte Faran (cf. v. 3), isto é, da zona doSinai, sede da grande epifania reveladora

de Israel. Também no Salmo 67 se des-creve “o Senhor que vem do Sinai aoSantuário” de Jerusalém (cf. v. 18). O seuaparecimento, de acordo com uma cons-tante da tradição bíblica, está circundadode luz (cf. Hab 3, 4).

É uma irradiação do seu mistériotranscendente mas que se comunica àhumanidade: de facto, a luz está fora denós, não a podemos prender ou parar; con-tudo ela envolve-nos, ilumina-nos e aque-ce-nos. Assim é Deus, distante e próximo,não se pode prender mas está ao nossolado, ou melhor, sempre pronto para estarconnosco e em nós. Quando se revela a suamajestade, a terra responde com um corode louvor: é a resposta cósmica, uma es-pécie de oração à qual o homem dá voz.

A tradição cristã viveu esta experiên-cia interior não só no âmbito da espirituali-dade pessoal, mas também em audaciosascriações artísticas. Pondo de lado as ma-jestosas catedrais da Idade Média, men-cionamos sobretudo a arte do orientecristão com os seus admiráveis ícones ecom as geniais arquitecturas das suasigrejas e dos seus mosteiros.

A respeito disto, a Igreja de Santa So-fia de Constantinopla é uma espécie de ar-quétipo no que se refere à demarcação doespaço da oração cristã, na qual a presençae a incapacidade de conter a luz permitemsentir tanto a intimidade como a transcen-dência da realidade divina. Ele penetratoda a comunidade orante até à profundi-

JULHO – SETEMBRO 2002 97

dade dos ossos e, ao mesmo tempo, convi-da-a a ultrapassar-se a si mesma para seimergir completamente na inefabilidadedo mistério. São também significativas aspropostas artísticas e espirituais, que ca-racterizam os mosteiros daquela tradiçãocristã. Naqueles verdadeiros e própriosespaços sagrados, e o pensamento diri-ge-se imediatamente para o MonteAthos, o tempo contém em si um sinalda eternidade. O mistério de Deus mani-festa-se e esconde-se naqueles espaçosatravés da oração contínua dos monges edos eremitas, que sempre foram consi-derados semelhantes aos anjos.3. Mas voltemos ao Cântico do profetaHabacuc. Para o autor sagrado a entradado Senhor no mundo tem um significadobem determinado. Ele quer entrar na his-tória da humanidade, “no decorrer dosanos”, como se repete por duas vezes noversículo 2, para julgar e melhorar esta vi-cissitude, que nós conduzimos de maneiratão confusa e, muitas vezes, pervertida.

Então, Deus mostra a sua indignação(cf. v. 2c) contra o mal. E o cântico faz re-ferência a uma série de intervenções divi-nas inexoráveis, mesmo sem especificar sese trata de acções directas ou indirectas.Recorda-se o Êxodo de Israel, quando acavalaria do Faraó foi afundada no mar(cf. v. 15). Mas faz-se aparecer também aperspectiva da obra que o Senhor está pararealizar em relação ao novo opressor doseu povo. A intervenção divina é descritade maneira quase “visível” através de umasérie de imagens agrícolas: “Porque entãoa figueira não brotará; nulo será o produtodas vinhas, faltará o fruto da oliveira, e oscampos não darão de comer. Não haverámais ovelhas no aprisco, nem bois nos es-tábulos” (v. 17). Tudo o que é sinal de paze de fertilidade é eliminado e o mundomostra-se como um deserto. Esta é a ima-gem querida a outros profetas (cf. Jer 4,19-26; 12, 7-13; 14, 1-10), para ilustrar o

juízo do Senhor que não é indiferenteperante o mal, a opressão e a injustiça.4. Face à irrupção divina, o orante ficaaterrorizado (cf. Hab 3, 16), tudo é umfrémito, sente-se o esvaziar da alma, éatingido pelo tremor, porque o Deus dajustiça é inefável, de maneira muito dife-rente dos juízes da terra.5. Por isso o nosso cântico, apesar de es-tar assinalado pelo ”tom de lamento”,transforma-se num hino de alegria. Defacto, as calamidades anunciadas têm porfinalidade a libertação dos oprimidos (cf.v. 15). Por isso, elas dão origem à alegriado justo que exclama: “Eu, porém, exulta-rei no Senhor, alegrar-me-ei em Deus,meu Salvador” (v. 18). A mesma atitude ésugerida por Jesus aos seus discípulos notempo dos cataclismas apocalípticos:“Quando estas coisas começarem a acon-tecer, cobrai ânimo e levantai as vossascabeças, porque a vossa libertação estápróxima” (Lc 21, 28).

No cântico de Habacuc é muito bonitoo versículo final, que exprime a serenidadereadquirida. O Senhor é definido comofizera David no Salmo 17 não só como “aforça” do seu fiel, mas também comoaquele que lhe dá agilidade, vigor, sereni-dade nos perigos. David cantava: “Eu vosamo, Senhor, minha força... Ele iguala osmeus pés aos do veado, e mantém-me depé nas alturas” (Sl 17, 2.34). Agora onosso cantor exclama: “O Senhor Deus éa minha força, Ele torna os meus pés ágeiscomo os da corça, e faz-me caminhar nasalturas” (Hab 3, 19). Quando o Senhorestá ao nosso lado, já não se receiam ospesadelos nem os obstáculos, mas prosse-gue-se o caminho da vida, apesar de seráspero, com um andar leve e com alegria.

JOÃO PAULO II

15 de Maio de 2002Transcrito de L'Osservatore Romano

98 BOLETIM DE PASTORAL LITÚRGICA

A JERUSALÉM RECONSTRUÍDACatequese sobre o Salmo 147

A VOZ DO PAPA

1. O Lauda Jerusalem, que acabamos deproclamar, é muito apreciado pela liturgiacristã. Ela entoou com frequência o Salmo147 relacionando-o com a Palavra deDeus, que “corre veloz” sobre a face daterra, mas também com a Eucaristia, ver-dadeira “flor de trigo” concedida por Deuspara “saciar” a fome do homem (cf. Sl 147,14-15).

Orígenes, numa das suas homilias, tra-duzidas e difundidas no Ocidente por SãoJerónimo, ao comentar o nosso Salmo, re-lacionava precisamente a Palavra de Deuscom a Eucaristia: “Nós lemos as SagradasEscrituras. Eu penso que o Evangelho é oCorpo de Cristo; penso que as SagradasEscrituras são o seu ensinamento. E quan-do ele diz: Se não comerdes a carne doFilho do Homem e não beberdes o Seusangue (cf. Jo 6, 53), mesmo se estas pala-vras se podem compreender também doMistério [eucarístico], contudo o corpo deCristo e o seu sangue são verdadeiramentea palavra das Escrituras, são o ensinamen-to de Deus. Quando assistimos ao Mistério[eucarístico], se dele se desperdiça umapequena porção, sentimo-nos perdidos. Equando estamos a ouvir a Palavra de Deus,e nos chega aos ouvidos a Palavra deDeus, a carne de Cristo e o seu sangue, enós pensamos noutras coisas, em quegrande perigo nós caímos!” (74 Homiliassobre o Livro dos Salmos, Milão 1993, pp.543-544).

Os estudiosos fazem notar que esteSalmo deve ser relacionado com oprecedente, para constituir uma únicacomposição, como acontece precisamenteno original hebraico. De facto, tem-se umcântico único e coerente em honra dacriação e da redenção realizadas peloSenhor. Ele começa com um jubilosoapelo ao louvor: “Louvai o Senhor porqueé bom cantar. Louvai o nosso Deus porqueo louvor é agradável” (Sl 146, 1).2. Se detivermos a nossa atenção notrecho que agora acabamos de ouvir, po-demos apercebernos de três momentosde louvor, introduzidos por um convitedirigido à cidade santa, Jerusalém, paraque glorifique e louve o seu Senhor (cf. Sl147, 12).

No primeiro momento (cf. vv. 13-14)entra em cena a acção histórica de Deus.Ela é descrita através de uma série desímbolos que representam a obra de pro-tecção e de apoio realizada pelo Senhorem relação à cidade de Sião e dos seusfilhos. Antes de mais faz-se referência às“grades” que fortificam e fazem com queas portas de Jerusalém sejam invioláveis.Talvez o Salmista se refira a Neemias quefortificou a cidade santa, reconstruídadepois da experiência amarga do exílio emBabilónia (cf. 3, 3.6.13-15; 1-9; 6, 15-16;12, 27-43). A porta, entre outras coisas, éum sinal para indicar toda a cidade na suadensidade e tranquilidade. No seu interior,

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representado como um seio seguro, osfilhos de Sião, isto é, os cidadãos, gozamda paz e da serenidade, envolvidos nomanto protector da bênção divina.

A imagem da cidade jubilosa e tran-quila é exaltada pelo dom altíssimo e pre-cioso da paz que faz com que as fronteirassejam seguras. Mas precisamente porquepara a Bíblia a paz-shalôm não é umconceito negativo, que recorda a ausênciade guerra, mas um facto positivo debem-estar e prosperidade, eis que o Sal-mista introduz a saciedade com a “flor detrigo”, isto é, com o grão excelente, com asespigas cheias de grãos. Por conseguinte,o Senhor fortaleceu as defesas de Jerusa-lém (cf. Sl 87, 2), fez descer sobre ela a suabênção (cf. Sl 128, 5; 134, 3), fazendo-achegar a todo o país, concedeu a paz (cf. Sl122, 6-8) e saciou os seus filhos (cf. Sl132, 15).3. Na segunda parte do Salmo (cf. Sl 147,15-18), Deus apresenta-se sobretudocomo criador. De facto, relaciona-se duasvezes a obra criadora com a palavra quefez desabrochar o aparecimento do ser:“Deus disse: “Faça-se a luz”. E a luz foifeita... Envia as suas ordens à terra... Enviaa Sua palavra...” (cf. Gn 1, 3; Sl 147,15.18).

De acordo com a Palavra divina, eisque surgem e se estabelecem as duas esta-ções fundamentais: por um lado, a ordemdo Senhor faz descer sobre a terra o in-verno, representado de modo significativopela neve suave como a lã, pelo orvalhosemelhante à poeira, pelo granizo compa-rável às migalhas de pão e pelo gelo quetudo paraliza (cf. vv. 16-17). Por outrolado, outra ordem divina manda soprar ovento quente que traz o Verão e faz der-reter a neve: as águas da chuva e dos riospodem correr livremente para regar a terrae a fecundar.

Por conseguinte, a Palavra de Deusestá na base do frio e do calor, do ciclo dasestações e da afluência da vida na natu-reza. A humanidade é convidada a reco-nhecer e a dar graças ao Criador pelo domfundamental do universo, que a rodeia, fazcom que ela respire, a alimenta e ampara.4. Passa-se então ao terceiro e últimomomento do nosso hino de louvor (cf. vv.19-20). Volta-se ao Senhor da históriado qual se partiu. A Palavra divina levaa Israel um dom ainda mais nobre e pre-cioso, o da lei, da Revelação. Um domespecífico: “Não trata assim os outrospovos, todos esses ignoram os seusmandamentos” (v. 20).

Portanto, a Bíblia é o tesourto do povoeleito à qual devemos aderir com amor efidelidade. É o que diz Moisés aos He-breus no Deuteronómio: “Qual é o grandepovo, que possua mandamentos e precei-tos tão justos como esta Lei que hoje vosapresento?” (Dt 4, 8).5. Assim como existem duas acções glo-riosas de Deus na criação e na história, as-sim também existem duas revelações: umainscrita na própria natureza e que estáaberta a todos, a outra oferecida ao povoeleito, que a deverá testemunhar e comuni-car a toda a humanidade e que está contidana Sagrada Escritura. Duas revelações dis-tintas, mas Deus permanece único assimcomo a sua Palavra. Tudo foi feito pormeio da Palavra dirá o Prólogo do Evan-gelho de João e sem ela nada de tudo o queexiste foi feito. Mas a Palavra também sefez ”homem”, isto é, entrou na história, elevantou a sua tenda entre nós (cf. Jo 1,3.14).

JOÃO PAULO II

5 de Junho de 2002Transcrito de L'Osservatore Romano

100 BOLETIM DE PASTORAL LITÚRGICA

LOUVOR AO SENHOR CRIADORCatequese sobre o Salmo 91

A VOZ DO PAPA

1. A antiga tradição hebraica reserva umlugar particular ao Salmo 91, que agoraouvimos como cântico do homem justo aoDeus criador. O título atribuído ao Salmoindica, de facto, que ele é destinado ao diade sábado (cf. v. 1). É, pois, o hino que seeleva ao Senhor eterno e glorioso quando,ao pôr do sol de Sexta-feira, se entra nosanto dia da oração, da contemplação, dosereno repouso do corpo e do espírito.

No centro do Salmo, ergue-se, solenee grandiosa, a figura do Deus altíssimo(cf. v. 9), à volta do qual se esboça ummundo harmonioso e em paz. Perante ele écolocada também a pessoa do justo que,segundo uma concepção querida ao Anti-go Testamento, está repleto de bem-estar,alegria e longa vida, como natural conse-quência da sua existência honesta e fiel.Trata-se da denominada “teoria da retri-buição”, pela qual todo o delito tem umcastigo sobre a terra e todo o acto bom temuma recompensa. Mesmo se há nesta visãouma componente de verdade, todaviacomo Job fará pensar e como dirá Jesus(cf. Jo 9, 2-3) a realidade da dor humana émuito mais complexa e não pode sersimplificada tão facilmente. O sofrimentohumano, de facto, deve ser considerado naperspectiva da eternidade.

2. Mas examinemos agora este hino sa-piencial através dos aspectos litúrgicos.Ele é constituído por um intenso apelo ao

louvor, ao canto alegre da acção de graças,ao ar de festa da música, marcada pelaharpa de dez cordas, pela lira e pela cítara(cf. vv. 2-4). O amor e a fidelidade do Se-nhor devem ser celebrados através docanto litúrgico que é conduzido “comarte” (cf. Sl 46, 8). Este convite vale tam-bém para as nossas celebrações, porqueencontram sempre um resplendor não sónas palavras e nos ritos, mas também nasmelodias que o animam.

Depois deste apelo a não extinguirmais o fio interior e exterior da oração,verdadeira respiração constante da huma-nidade fiel, o Salmo 91 propõe, em duasimagens, o perfil do ímpio (cf. vv. 7-10) edo justo (cf. vv. 13-16). O ímpio, porém, éposto perante o Senhor, “o excelso parasempre” (v. 9), que fará morrer os seusinimigos e dispersará todos os que fazem omal (cf. v. 9). De facto, só à luz divina seconsegue compreender em profundidade obem e o mal, a justiça e a perversão.3. A figura do pecador é delineada comuma imagem vegetal: “os pecadores ger-minam como a erva e florescem todos osque fazem o mal” (v.8). Mas este florescerestá destinado a secar e a desaparecer. OSalmista, efectivamente, multiplica osverbos e as palavras que descrevem a des-truição: “Espera-os uma ruína eterna... osteus inimigos, Senhor, perecerão, serãodispersos todos os que fazem o mal” (vv8.10).

JULHO – SETEMBRO 2002 101

Na raiz deste êxito catastrófico está o malprofundo que ocupa o espírito e o coraçãodo perverso: “O homem insensato nãocompreende e o estulto não penetra nestascoisas” (v. 7). Os adjectivos aqui usadospertencem à linguagem sapiencial e de-notam a brutalidade, a cegueira, a surdezde quem pensa poder tornar-se perversosobre a face da terra, sem travões morais,com a ilusão de que Deus está ausente eindiferente. O orante, por outro lado, estácerto de que o Senhor, mais cedo ou maistarde, aparecerá no horizonte para fazerjustiça e dobrar a arrogância do insensato(cf Sl 13).4. Eis-nos, pois, diante da figura dojusto, representada como uma grandepintura e cheia de cores. Também nestecaso se recorre a uma imagem vegetal,fresca e verdejante (cf. Sl 91, 13-16). Di-ferente do ímpio que é como a erva doscampos, viçosa mas passageira, o justo er-gue-se para o céu, sólido e majestosocomo a palmeira e o cedro do Líbano. Poroutro lado, os justos “estão plantados nacasa do Senhor “ (v. 14) isto é, têm umarelação muito mais sólida e estável com otemplo e, por isso, com o Senhor, que neleestabeleceu a sua morada.

A tradição cristã jogará também com oduplo significado da palavra gregaphoinix, usada para traduzir o termo he-braico que indica a palmeira. Phoinix é onome grego da palmeira, mas também o daave que chamamos “fénix”. Ora, é sabidoque a fénix era símbolo da imortalidade,porque se imaginava que aquela ave renas-cia das próprias cinzas. O cristão faz umaexperiência semelhante graças à sua parti-cipação na morte de Cristo, fonte de vidanova (cf. Rm 6, 3-4). “Deus... de mortosque estávamos pelos pecados, fez-nos re-viver em Cristo” diz a Carta aos Efésioscom ele também nos ressuscitou” (2, 5-6).

5. Uma outra imagem representa o justoe é de tipo animal, destinada a exaltar aforça que Deus concede, mesmo quandochega a velhice: “Tu me dás força como ade um búfalo, e me unges com óleo novo”(Sl, 91, 11). Por um lado, o dom da potên-cia divina faz triunfar e dá segurança (cf.v. 12); por outro, a fronte gloriosa do justoé consagrada pelo óleo que dá uma energiae uma bênção protectora. O Salmo 91 é,pois, um hino de optimismo, fortalecidopela música e pelo canto. Ele celebra aconfiança em Deus que é fonte de sereni-dade e paz, mesmo quando se assiste aosucesso aparente do ímpio.

Concluímos com as palavras de Orí-genes, traduzidas por São Jerónimo, quetiram a sua razão da frase em que o sal-mista diz a Deus: “unges-me com óleonovo” (v. 11). Orígenes comenta: “Anossa velhice tem necessidade do óleo deDeus. Como quando os nossos corposestão cansados não se fortalecem senãoungindo-os com o óleo; como a chama-zinha da lâmpada se extingue se não lheacrescentamos óleo, assim também, achamazinha da minha velhice tem necessi-dade, para crescer, do óleo da misericórdiade Deus. De resto, também os Apóstolossobem ao monte das Oliveiras (cf. Act 1,12), para receber luz do óleo do Senhor,pois estavam cansados e as suas lâmpadastinham necessidade do óleo do Senhor...Por isso, rezemos ao Senhor para que anossa velhice, toda a nossa fadiga e todasas nossas trevas sejam iluminadas peloóleo do Senhor” (74 Homilias sobre oLivro dos Salmos, Milão, 1993, pp. 280-282, passim).

JOÃO PAULO II

12 de Junho de 2002Transcrito de L'Osservatore Romano

102 BOLETIM DE PASTORAL LITÚRGICA

1. “E Moisés fez ouvir a toda a assem-bleia de Israel as palavras deste cântico,até ao fim” (Dt 31, 30). Lê-se assim naabertura do cântico que acabamos deproclamar, tirado das últimas páginas dolivro do Deuteronómio, precisamente docapítulo 32. Dele, a Liturgia das Laudesescolheu os primeiros doze versículos,reconhecendo neles um jubiloso hino aoSenhor que protege e cura com amor oseu povo no meio dos perigos e das difi-culdades do dia. A análise do cântico reve-lou que se trata de um texto antigo masposterior a Moisés, sobre cujos lábiosfoi posto, para lhe conferir um carácter desolenidade. Este cântico litúrgico situa-sena própria origem da história do povo deIsrael. Não faltam nessa página orantenotas ou ligações com alguns Salmos ecom a mensagem dos profetas: desta for-ma, ela tornou-se uma sugestiva e intensaexpressão da fé de Israel.

2. O cântico de Moisés é mais amplo doque o trecho proposto pela Liturgia dasLaudes, que constitui apenas o seu prelú-dio. Alguns estudiosos pensaram detectarna composição um género literário quetecnicamente é definido com a palavrahebraica rîb, isto é “controvérsia”, “litígioprocessual”. A imagem de Deus presente

A VOZ DO PAPA

OS BENEFÍCIOS DE DEUSA FAVOR DO POVO

Catequese sobre o Cântico de Moisés

na Bíblia não se mostra absolutamentecomo a do ser obscuro, uma energia anó-nima e feia, um acontecimento incompre-ensível. Ao contrário, é uma pessoa quetem sentimentos, age e reage, ama e con-dena, participa na vida das suas criaturas enão é indiferente às suas obras. Assim, nonosso caso, o Senhor convoca uma espéciede assembleia judicial, na presença de tes-temunhas, denuncia os delitos do povoacusado, exige uma pena, mas deixa im-pregnar a sua sentença por uma misericór-dia infinita. Seguimos agora os vestígiosdesta vicissitude, embora nos detenhamosapenas nos versículos que a Liturgia nospropõe.

3. Vem imediatamente a menção dosespectadores-testemunhas cósmicos:“Escutai, ó céus... ouça, toda a terra” (Dt32, 1). Neste processo simbólico Moisésserve de autoridade pública. A sua palavraé eficaz e fecunda como a profética, ex-pressão da divina. Observe-se o fluxosignificativo das imagens para adefinir: trata-se de sinais deduzidos danatureza como a chuva, o orvalho, o agua-ceiro, a chuvada e as gotas de água que fa-zem com que a terra seja verdejante e co-berta de caules de trigo (cf. v. 2).

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A voz de Moisés, profeta e intérpreteda palavra divina, anuncia a iminenteentrada em cena do grande juiz, o Senhor,do qual ele pronuncia o nome santíssimo,exaltando uma das suas numerosas carac-terísticas. De facto, o Senhor é chamado aRocha (cf. v. 4), um título que aparece emtodo o nosso cântico (cf. vv. 15.18.30.31.37), uma imagem que exalta a fidelidadeestável e indiscutível de Deus, que é muitodiferente da instabilidade e da infidelidadedo povo. O tema é desenvolvido com umasérie de afirmações sobre a justiça divina:“A sua obra é perfeita; todos os seus ca-minhos são a própria justiça; Deus deverdade, jamais iníquo, constantementeequitativo e recto” (v. 4).

4. Depois da solene apresentação do Juizsupremo, que também é a parte lesada, oobjectivo do cantor desloca-se para o acu-sado. Para o definir, ele recorre a uma efi-caz representação de Deus como pai (cf. v.6). As suas criaturas, tão amadas, são cha-madas seus filhos, mas infelizmente são“raça perversa” (cf. v. 5). Com efeito, sa-bemos que já no Antigo Testamento se temuma concepção de Deus como pai solícitoem relação aos seus filhos que com muitafrequência desiludem (Êx 4, 22; Dt 8, 5; Sl102, 13; Sir 51, 10; Is 1, 2; 63, 16; Os 11,1-4). Por isso, a denúncia não é fria masapaixonada: “É assim que recompensas oSenhor, povo louco e insensato? Não é Eleo teu Pai, o teu Criador? Não foi Ele que teformou e te consolidou?” (Dt 32, 6). Defacto, é muito diferente insurgir-se contraum soberano implacável ou revoltar-secontra um pai amoroso.

Para tornar concreta a acusação e fazercom que a conversão provenha da sinceri-dade do coração, Moisés faz apelo à me-mória: “Recorda-te dos dias antigos,medita os anos de cada século” (v. 7). Com

efeito, a fé bíblica é um “memorial”, isto é,uma redescoberta da acção eterna de Deusque se espalha com o passar do tempo; étornar presente e eficaz aquela salvaçãoque o Senhor proporcionou e continua aoferecer ao homem. O grande pecado deinfidelidade coincide, então, com o “es-quecimento”, que apaga a recordação dapresença divina em nós e na história.

5. O acontecimento fundamental quenão se deve esquecer é o da travessia dodeserto depois da saída do Egipto, o temafundamental do Deuteronómio e de todo oPentateuco. Desta forma, recorda-se aviagem terrível e dramática no deserto doSinai, “nas solidões ululantes e selvagens”(v. 10), como se diz com uma imagem degrande impacto emotivo. Mas ali Deus in-clina-se sobre o seu povo com uma ternurae doçura surpreendentes. Com o símbolopaterno entrelaça-se alusivamente tambémo materno da águia: “Protegeu-o e veloupor ele. Guardou-o como a menina dosSeus olhos. Como a águia vela pelo seuninho. E paira sobre as suas aguiazinhas;estende as asas para as recolher, e leva-assobre as suas penas robustas” (v. 10.11). Ocaminho no deserto transforma-se entãonum percurso tranquilo e sereno, porquehá o manto protector do amor divino.

O cântico remete também para o Sinai,onde Israel se tornou aliado do Senhor, asua “porção” e “herança”, isto é, a reali-dade mais preciosa (cf. v. 9; Êx 19, 5). Ocântico de Moisés torna-se desta forma umexame de consciência de todos para que,finalmente, os benefícios divinos sejamcorrespondidos com a fidelidade, e nãocom o pecado.

JOÃO PAULO II

19 de Junho de 2002Transcrito de L'Osservatore Romano

104 BOLETIM DE PASTORAL LITÚRGICA

A LITURGIA EUCARÍSTICA

MISSA

Palavra e rito

As acções litúrgicas, particularmenteas acções sacramentais, compõem-se nor-malmente de dois tempos: o primeiro é oda Palavra, o outro é o do Rito, no sentidode a acção, o gesto, o sinal. A palavra falamais à inteligência, o rito ou a acção falamais à sensibilidade, aos sentidos exterio-res. Ambas as coisas são linguagem, cadaqual a seu modo, e completam-se uma àoutra. A palavra sem o rito, o sinal, podenão ser suficientemente eloquente; o rito,o sinal, sem a palavra poderia não ser en-tendido na sua significação profunda e atéser entendido com sentido mágico. A pala-vra dá o sentido da acção, a acção dá en-carnação à palavra.

Hoje, as acções litúrgicas começam to-das pela liturgia da palavra; o caso maisconhecido é precisamente o da Missa.

O Missal, na Introdução Geral[28(8)]*, começa mesmo por esclarecer:“A Missa consta, por assim dizer, de duaspartes: a liturgia da palavra e a liturgia eu-carística”; mas chama logo a atenção, paraevitar separação ou oposição entre as duaspartes, continuando: “Estas duas partes,porém, estão entre si tão estreitamente li-gadas, que constituem um único acto deculto. De facto, na Missa é posta a mesatanto da palavra de Deus como do Corpode Cristo, mesa em que os fiéis recebeminstrução e alimento.”

* Estas citações referem-se à Instrução Geral do Missal Romano (IGMR). Os números entre parêntesis rectosreferem-se à nova edição. O outro documento citado é o Ordenamento das Leituras da Missa (OLM).

Da Bíblia à Liturgia

A Eucaristia foi instituída pelo Senhorna Última Ceia e desta instituição somosinformados por quatro fontes da SagradaEscritura:

1) Evangelho de S. Mateus: 26, 26-28;2) Evangelho de S. Marcos: 14, 22-24;3) Evangelho de S. Lucas: 22, 19-20;4) Primeira epístola de S. Paulo aos Co-ríntios: 11, 23-27.

Destas quatro fontes a mais antiga é ade S. Paulo que foi escrita cerca do ano 55e ela representa não só a mais antiga refe-rência à instituição da Eucaristia mas à ce-lebração da mesma, pois que foi escrita apropósito de uma celebração concreta, emCorinto, por sinal não muito edificante...

Os textos atrás referidos encerram oessencial da instituição da Eucaristia emsete verbos – quatro em relação ao pão etrês em relação ao vinho – que se comple-tam uns aos outros e acabam por se reduzira quatro, como se pode observar no quadrocomparativo seguinte. Aí podemos tomarconsciência de que a Igreja, na celebraçãoda Eucaristia, continua a fazer o mesmoque Jesus fez na Última Ceia, tanto em re-lação ao mistério que é celebrado como aténa maneira de o celebrar.

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106 BOLETIM DE PASTORAL LITÚRGICA

Na Ceia Na Missa

Jesus 1. tomou o pão 1. Apresentação das oferendastomou o cálice (ofertório)

2. pronunciou a acção de graças 2. Oração eucarística

3. partiu o pão 3. Fracção do pão consagrado

4. deu-o, o pão,e do mesmo modo o cálice 4. Comunhão

É certamente isto o que queremos sig-nificar quando levamos ao altar os nossosdons, em particular o pão, o vinho e aágua, “que se vão converter no Corpo eSangue de Cristo”, mas é preciso evitarque o sentido fundamental da nossa parti-cipação interior e exterior na Ceia do Se-nhor fique obscurecida e desfigurada pelodesenvolvimento, como que folclórico, danossa apresentação dos dons.

2. O ritual

a) A assembleia

A liturgia da Palavra abre agora sobrea liturgia sacramental, a liturgia eucarís-tica no caso da Missa. A passagem deuma à outra torna-se visível até na própriadisposição da assembleia. Na liturgia dapalavra, o presidente ocupa a cadeirapresidencial, a cátedra no caso do Bispo,possivelmente ao fundo da abside, se-gundo a antiga tradição. Agora, ao pas-sar-se à liturgia eucarística, o presidente eos ministros mais ligados a si (diáconos eacólitos) e os concelebrantes deslocam-se

Apresentação das oferendas(ofertório)

1. O nome

“Apresentação das oferendas” é onome que o Missal dá actualmente a estaprimeira parte da liturgia eucarística a quehabitualmente se dá o nome de ofertório.Este último nome pode ser equívoco,porque pode dar a entender que o sacrifí-cio da Missa consiste na oferta a Deus das“nossas coisas” como acontece nos sacrifí-cios pagãos e mesmo nos do Antigo Testa-mento.

Na Eucaristia o que é oferecido, a hós-tia ou vítima, é o próprio Senhor Jesus quea Si mesmo Se ofereceu, de uma vez parasempre, no altar da cruz (He 7,27ss). Oque na Missa fazemos ao celebrar Eucaris-tia não repete a morte do Senhor, masfazemo-lo em sua memória, ou melhor,como seu memorial, como dizemos naOração Eucarística, para que tenhamosocasião de actualizarmos, cada vez que ofazemos, a oblação de nós próprios unida àoblação perene do Senhor Jesus.

JULHO – SETEMBRO 2002 107

para junto do altar, a mesa da “Ceia do Se-nhor” (1Cor 11, 20). Com eles, toda a as-sembleia fica sensibilizada a uma novaorientação: o lugar e a acção da Eucaristia.

Isto é particularmente visível na Missapresidida pelo Bispo.

b) Preparação do altar [IG 73(47)]

“Em primeiro lugar prepara-se o altarou mesa do Senhor que é o centro de toda aliturgia eucarística”.

“O altar cristão é, pela sua própria na-tureza, uma mesa especial do sacrifício edo banquete pascal:

– ara especial, onde se perpetua sacra-mentalmente o sacrifício da cruz até aofim dos séculos, até que Cristo venha;

– mesa, em volta da qual se reúnem osfilhos da Igreja para darem graças a Deus ecomungarem o Corpo e o Sangue de Cris-to” (Pontifical da dedicação do altar, 4).

O altar prepara-se “colocando nele ocorporal, o sanguinho, a pala, o Missal e ocálice, salvo se este for preparado na cre-dência”.

c) Traz-se pão, vinho e água

É assim, com esta simplicidade, queaparece a mais antiga referência a este ges-to de trazer as oferendas, que são a matérianecessária para a celebração da Ceia doSenhor (S. JUSTINO, Apol I, 65 e 67).Não há ainda nenhuma referência a qual-quer significação litúrgica deste gesto,embora seja evidente que ela está contidano simples facto de ele se orientar exclusi-vamente para a celebração da Eucaristia. Asignificação espiritual começa, no entanto,a afirmar-se cedo.

Assim, setenta e cinco anos depois dotexto de S. Justino (+ 165), S. Hipólito(+235), na sua Tradição Apostólica (4 e21), aos dons que os diáconos apresentam

ao Bispo para a celebração da Eucaristia jálhes chama Oblatio, oblação, palavra quejá tem uma ressonância litúrgica; mas nãose fala ainda de quaisquer formulários.

A partir desta época (séc. III) torna-senormal que os fiéis levem para a Eucaristiaa matéria necessária para a Ceia do Se-nhor. Esta oferenda está logo em relaçãocom a comunhão. S. Cipriano (+258), porexemplo, censura uma mulher rica, masavara, dizendo-lhe: “Tu vens à liturgia doSenhor sem o pão do sacrifício e preten-des uma parte do pão do sacrifício que opobre ofereceu!”

Nos séculos IV-V, o rito da preparaçãodas oferendas era geral nas Igrejas do Oci-dente (cf. S. Agostinho, Conf., V, 9), masfazia-se ainda em silêncio, sem cânticonem fórmulas especiais.

O primeiro ritual litúrgico da apresen-tação dos dons é referido nos séculos VII-VIII e provém da liturgia papal, portantode Roma (cf. OR I).

Actualmente o Missal retoma o antigocostume de os fiéis apresentarem as ofe-rendas para a Eucaristia, dizendo: “É delouvar que o pão e o vinho sejam apresen-tados pelos fiéis. Recebidos pelo sacerdoteou pelo diácono em lugar conveniente sãodepois colocados sobre o altar. Emborahoje em dia os fiéis já não tragam do seupróprio pão e vinho, como se fazia noutrostempos, no entanto, o rito desta apresenta-ção conserva ainda valor e significação es-piritual”.

São permitidas também ofertas, em di-nheiro e outros dons, destinados aos po-bres ou à Igreja, trazidos pelos fiéis ou re-colhidos dentro da igreja. Estes dons serãodispostos em lugar conveniente, fora damesa eucarística” [IG 73(49)]. E a rubricada nova edição do Missal diz: “É louvávelque os fiéis manifestem a sua participaçãopor meio da oferta do pão e do vinho para

a celebração da Eucaristia, ou de outrosdons para socorrer às necessidades daIgreja e dos pobres” (Ord. Missa, 22).

d) A procissão com os dons e o cântico[IG 74(50)]

“A procissão em que são trazidas asoferendas é acompanhada pelo cântico doofertório, que se prolonga pelo menos atéque os dons tenham sido depostos sobre oaltar. O canto pode acompanhar sempre orito da “apresentação das oferendas”. Ésomente a propósito deste cântico que apa-rece a palavra ofertório, designação quevem da tradição anterior. O Missal nãoapresenta actualmente nenhum texto paraeste cântico; ele fica ao critério da aprova-ção da Conferência Episcopal, como osdemais. Mas não é necessário que ele su-blinhe a ideia de oferta, mas que simples-mente se integre no mistério do dia ou dotempo litúrgico, como sucedia no Missalanterior. Este tinha antífona própria destemomento para todos os dias, mas só muitoraramente e em contextos especiais subli-nhava a ideia de oferecer.

e) Colocação dos dons sobre o altare fórmulas que a acompanham[IG 75(49)]

“O sacerdote coloca o pão e o vinhosobre o altar enquanto diz as fórmulasprescritas”.

As fórmulas actuais somente estão emuso desde 1970, aquando da reforma pós-conciliar do Missal; anteriormente existi-ram outras que eram apologias de origemmedieval (séc. IX-XI), algumas das quaiseram verdadeiras antecipações da OraçãoEucarística, e por isso, deslocadas nestemomento. Ao contrário das anteriores, asformas actuais são verdadeiras orações debenção: “Bendito sejais, Senhor, Deus do

Universo, pelo pão que nos dais, fruto daterra e do trabalho do homem,…”, “Bendi-to sejais, Senhor, pelo vinho, fruto da vi-deira e do trabalho do homem,…”.

Na sua primeira parte, esta fórmulaque acabámos de citar, já existia, e existe,na benção da mesa judaica. Quando sepreparava a revisão desta parte da liturgiada Missa, depois do Concílio, foi pergun-tado aos responsáveis maiores da liturgiajudaica se haveria alguma dificuldade emque a Igreja Católica utilizasse essas fór-mulas de benção na sua liturgia da mesa doSenhor. Foi respondido que não havia ne-nhuma dificuldade, antes pelo contrário;tal solução seria até vista com muito agra-do. Assim, muito provavelmente utiliza-mos hoje na preparação dos dons para aeucaristia fórmulas de oração que o Se-nhor já usou na Última Ceia.

Quanto ao gesto e ao modo de pronun-ciar estes fórmulas o Missal diz: “O sacer-dote, junto do altar, toma a patena com opão e, elevando-a um pouco acima do al-tar, com ambas as mãos, diz em voz baixa:«Bendito sejais, Senhor,…» ”. Indicaçõessemelhantes em relação ao cálice: “ele-vando-o um pouco, …, com ambas asmãos…, diz em voz baixa…”.

Depois, tanto num caso como no ou-tro, o Missal acrescenta: “Se não houvercântico do ofertório o sacerdote pode pro-ferir estas palavras em voz alta. No fim, opovo pode aclamar: «Bendito sejais parasempre»”. Donde, no caso de haver cânti-co, devem estas fórmulas ser ditas em vozbaixa, até para não provocar a sobreposi-ção da resposta do povo ao cântico; masmesmo que não haja cântico estes formu-lários podem dizer-se sempre em silêncio.

Quanto aos gestos de elevar a patena eo cálice, neste momento, não são gestospropriamente ofertoriais, erguidos paraDeus, nem muito menos gestos de osten-

108 BOLETIM DE PASTORAL LITÚRGICA

são ao povo, mas apenas de apresentaçãosobre o altar, e por isso, serão apenas umpouco elevados.

A expressão verbal propriamente ofer-torial encontra-se dentro da Oração Euca-rística, na anamnese: “Celebrando o me-morial da Morte e da Ressurreição, ofere-cemos…”. O gesto erguido para Deus vaiser o que acompanha a doxologia no fimda Oração Eucarística: “Por Cristo, comCristo, em Cristo…”.

e) A água no cálice

Seja qual for a origem do gesto de mis-turar água no vinho, esse gesto é hoje in-terpretado na oração que o acompanha:“Pelo mistério desta água e deste vinho se-jamos participantes da divindaded’Aquele que assumiu a nossa humanida-de”. “Pelo mistério” quer dizer que aquelegesto tem uma significação simbólica, eesse símbolo é explicado no que se segue:a participação na divindade do Filho deDeus que Se fez homem tomando em Si anossa humanidade. Esta oração vinha atri-buída nos antigos Sacramentários à festado Natal; ao texto antigo apenas se acres-centou a expressão “pelo mistério destaágua e deste vinho” para que ele pudesseentrar no lugar que hoje ocupa. Mas nãotraduzir nunca: “pela mistura desta água edeste vinho”, como já aconteceu emboranão oficialmente.

f) A incensação[IG 75(51); Ord. Missa 27]

“Depois, o sacerdote pode incensar osdons colocados sobre o altar e, em segui-da, a cruz e o próprio altar, para significarque a oblação da Igreja bem como a suaoração sobem diante de Deus com o incen-so. Depois podem ser incensados pelo diá-cono ou por outro ministro o sacerdote por

causa do seu ministério sagrado e o povoem razão da dignidade baptismal (Ord.Missa, 75)”

O rito da incensação exprime reverên-cia e oração, como já vem significado nosalmo 140,2: “Suba até Vós a minha ora-ção como incenso”; e no Apocalipse 8,3-4:”Veio um anjo e foram-lhe dadas muitasespécies de aromas para que os ofereces-sem com a oração de todos os santos. E dasmãos do anjo, subiu à presença de Deus ofumo dos aromas com as orações dossantos” (cf. Cerem.Bispos, 84); mas tam-bém não pode deixar de vir à memória apalavra de S. Paulo, que evoca o sentidosacrificial do rito da incensação: “Cristoentregou-Se por nós, oferecendo-Se aDeus em sacrifício de suave odor” (Ef.5,2).

g) A ablução das mãos

“A seguir o sacerdote, ao lado do altar,lava as mãos: com este rito exprime-se odesejo de uma purificação interior”. [IG76(52)]

Esta interpretação da ablução dasmãos pode encontrar-se já em S. Cirilo deJerusalém (+387), na sua catequese mista-gógica (V,2): “Não é por causa das man-chas corporais que se lavam as mãos; não épor isso…Lavar as mãos é um símbolo deque devemos purificar-nos de todos osnossos pecados e de todas as nossas faltas.Como as nossas mãos são o símbolo daacção, ao lavá-las fazemos alusão ao ca-rácter puro e irrepreensível qual deve ser odas nossas acções”. E, a propósito, cita osalmo de David (Sl 125), que esteve emuso no Missal anterior e que entre nós serezava quase por inteiro; agora o mesmosentido está presente na apologia queacompanha a ablução das mãos: ”Lavai--me, Senhor, da minha iniquidade e purifi-cai-me do meu pecado”.[cf. IG 76(52)]

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3. A oração sobre as oblatas[IG 77(53)]

a) Invitatório

“Terminada a colocação dos dons so-bre o altar e os ritos que a acompanham,conclui-se a preparação das oferendas comum invitatório (convite) para que todosorem juntamente com o sacerdote ao quala assembleia responde, de pé (Ord. Missa,29), e a que se segue a Oração sobre asOblatas.

O convite para esta oração tem noMissal português duas fórmulas: uma lon-ga, a mais tradicional: “Orai, irmãos,…”;outra breve, que é simplesmente “Ore-mos”, como em todas as outras orações. Aprimeira é mais uma apologia medievalque, no passado, apresentou até algumasvariantes nas diversas liturgias, como nade Braga: “Orai por mim, irmãos”.

b) A oração

De todos os formulários do rito da pre-paração das oferendas, o mais importantee o mais antigo é esta oração conclusivade todo este rito, agora chamada Oraçãosobre as Oblatas e que anteriormente sechamou Secreta, por razões não total-

mente esclarecidas. Em princípio todos osritos se concluem com uma oração presi-dencial: os ritos da entrada com a oraçãocolecta, os das preparação das oferendascom a oração sobre as oblatas, os do fim daeucaristia com a oração pós-comunhão. Ésempre esta a estrutura da oração cristã: deDeus ao homem, na palavra, do homem aDeus, na oração.

A oração sobre as oblatas não tem nor-malmente a amplitude da Oração Colecta;faz antes frequentemente referência às“nossas oferendas” (Natal, Missa da Auro-ra), “à oblação que Vos apresentamos” (id,Missa do Dia), “à oblação que trazemospara o vosso altar” (29 Dez.).

Para além da apresentação das ofe-rendas que vão ser consagradas no Corpo eSangue do Senhor, estão as pessoas que asapresentam e que, por esse gesto, pedemao Senhor: “Fazei de nós mesmos umaoblação eterna para vossa glória” (SS.Trindade). O espaço da preparação dasoferendas deve facilitar ainda mais apreparação das pessoas exterior e interior-mente. A tanto ajudará o silêncio dessemomento, o cântico ou o toque do orgão.“Assim termina a preparação dos dons etudo está preparado para a Oração Euca-rística” [IG 77 (53)].

JOSÉ FERREIRA

110 BOLETIM DE PASTORAL LITÚRGICA

A tradução da nova edição daInstrução Geral do Missal Romano

revista na recente edição típicado Missal Romano latino

está quase pronta para a impressão

CURSO PARA ACÓLITOS

7

Ser acólito

1. Tempo de oração• Acolhimento• Sinal da cruz• Pequena oração

2. O acólito vai para a igrejaCada domingo, algum tempo antes de

começar a missa, o acólito deve ir para aigreja, sempre muito bem vestido e limpo,desde o cabelo até aos sapatos, sem esque-cer as mãos e as unhas.

Não se esqueça de uma coisa impor-tante: quem vai receber a santíssima Eu-caristia, não deve tomar nenhuma comidaou bebida, excepto água ou remédios, peloespaço de ao menos uma hora antes da sa-grada comunhão. Isto quer dizer que oacólito deve terminar o pequeno-almoçocerca de 15 minutos antes de começar amissa, dado que desde o princípio da mis-sa até à comunhão se demoram 45 minu-tos. Não se esqueça também de que, du-rante a missa, não deve chupar rebuçadosnem outras guloseimas. Na igreja não secome comida vulgar. Só se comunga oCorpo de Cristo.

Questões práticas:

— Antes de ir para a missa, no domingo,que deve fazer o acólito?

ACÓLITOSACÓLITOS

— Porque lhe devem merecer muito cui-dado as mãos e as unhas?

— Quanto tempo se deve estar sem co-mer antes da comunhão?

— Será que o acólito deve comungar to-dos os domingos? E tu comungas?

— Será só durante a missa que não sedevem mascar pastilhas e chupar re-buçados ou sempre que se está naigreja? Porquê?

3. O acólito chega à igrejaAo chegar à porta da igreja, o acólito

deve cumprimentar os companheiros e aspessoas que ali estiverem. Pode tambémesperar um pouco por outros acólitos queainda não tenham vindo. É bom estar alium bocadinho, em grupo, contando ou ou-vindo alguma novidade.

Ao entrar na igreja, deve começar porver se há algum cartaz ou notícia nova noguarda-vento ou no expositor, e tambémse lhe está atribuído algum serviço nessedia: acolitar, recolher as ofertas, acolher aspessoas à porta da igreja, distribuir algumafolha. São serviços que pertencem aosacólitos.

Por fim, o acólito dirige-se para os pri-meiros bancos da igreja. É aí o seu lugar,não nos bancos de trás. Porquê? Porquepode ser necessário chamá-lo para algum

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112 BOLETIM DE PASTORAL LITÚRGICA

serviço durante a celebração, e, se estiver àfrente, isso torna-se mais fácil. E tambémporque é bonito ver os mais novos uns aopé dos outros.

Questões práticas:

— Deverá o acólito entrar na igreja logoque chega à porta desta? Porquê?

— Qual é a primeira coisa que ele devefazer ao entrar na igreja? Porquê?

— Depois disso, para que bancos se devedirigir o acólito: para os da frente oupara os de trás? Porquê?

4. O acólito saúda JesusQue faz o acólito ao chegar ao seu lu-

gar nos bancos da frente? Ajoelha e saúdaJesus, que está presente na Eucaristiaguardada no sacrário. Jesus é o grandeamigo de todos os cristãos, e a nossa pri-meira palavra deve ser sempre para Ele.Nas igrejas mais modernas há uma capelado Santíssimo. Se for esse o caso, é para aíque o acólito se deve dirigir, a fim de sau-dar Jesus.

Como se saúda Jesus? Primeiro ajoe-lhando, a seguir inclinando a cabeça, de-pois fazendo sobre si próprio o sinal dacruz, e por fim ficando uns momentos emadoração. Vejamos como se faz cada umdestes gestos.

Como se ajoelha? Com os dois joe-lhos e conservando o corpo bem direito.Há pessoas que, depois de ajoelhar, se sen-tam nos calcanhares, o que é muito feio.Não se deve confundir o ajoelhar com am-bos os joelhos e o genuflectir com um sójoelho. Falaremos disso mais tarde. Por-que se inclina a cabeça? Porque essa éuma forma de saudar Jesus, com um gestode humildade, que é o significado da incli-nação da cabeça. Assim como ajoelhar sig-nifica tornar-se pequeno diante de Deus,inclinar a cabeça é manifestar que temos

consciência da nossa pequenez. Como sefaz o sinal da cruz? Faz-se com a mãodireita aberta e os dedos juntos, indo com amão da testa ao peito e do ombro esquerdoao direito, ao mesmo tempo que se diz: Emnome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.O sinal da cruz é o sinal identificativo doscristãos, porque foi na cruz que Jesus deu avida por nós. Que diz o acólito duranteos breves momentos de adoração? Podedizer, por exemplo: Jesus, hoje é domingo,o dia da tua ressurreição, e eu estou aquina igreja da minha terra para celebrar atua Ceia. Faz-me bom cristão, bom paro-quiano e bom acólito.

Tudo isto deve ser feito com muitadignidade e sem pressa, pensandon’Aquele que estamos a saudar. Depois derezar durante alguns momentos o acólito,se nesse dia for ele a acolitar, vai para asacristia e veste a sua túnica. Se não for oseu dia de acolitar, fica sentado no banco,a olhar para o sacrário e a falar com o Se-nhor. Mas não deve estar a falar com quemestá ao seu lado, nem a rir, nem a brincar,nem a fazer mal.

Questões práticas:

— Que faz o acólito quando chega ao seulugar nos bancos da frente da igreja?E se na igreja houver uma capela doSantíssimo?

— Quais são os três gestos com que sesaúda Jesus presente no sacrário? Va-mos aprender a fazê-los bem (O res-ponsável exemplifica e a seguir convi-da cada candidato a fazer o mesmo).

— Qual é o significado ou o simbolismodo ajoelhar? E do inclinar a cabeça?E do sinal da cruz?

— Como se deve fazer cada um destesgestos de adoração?

— Depois de rezar, que deve fazer o acó-lito se nesse dia for ele a acolitar? E senão for?

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5. A túnica do acólitoTodos os que servem no presbitério

usam uma veste branca, a começar pelopresidente da celebração e a acabar nosacólitos. A veste dos bispos, dos presbíte-ros e dos diáconos chama-se alva, palavraque quer dizer veste branca. À dos acólitoschama-se-lhe túnica, que é uma veste tam-bém branca mas mais ajustada ao corpo doque a alva.

O acólito não veste a túnica logo naprimeira vez que exerce este serviço. Ébom, primeiro, que faça o Curso paraAcólitos, e que, mesmo sem túnica, du-rante alguns domingos, esteja junto dosoutros companheiros que já são acólitos, eaprenda, pouco a pouco, a fazer as coisascom eles. Quando o responsável dosacólitos entender que algum dos candi-datos está preparado para acolitar bem,informa disso o pároco e este, num do-mingo, depois da homilia, chama-o, no-meia-o acólito e entrega-lhe a túnica, ocíngulo e uma pequena cruz de madeira. Amãe do acólito ou outra pessoa sua amigavem ajudá-lo a vestir-se e, nesse mesmodomingo, é ele o primeiro que leva para oaltar o pão ou alguma das outras coisasque estão na credência.

Geralmente é a mãe do acólito que lhedeve fazer a túnica, que será cingida à cin-tura por um cíngulo ou cordão, tambémbranco. A túnica deve estar sempre muitobem lavada e passada a ferro. As túnicasdos acólitos também podem pertencer àparóquia. Nesse caso, deverão ser de ta-manhos diferentes, para se adaptarem fa-cilmente à altura de cada acólito.

A cor branca da túnica recorda ao acó-lito que ele deve viver na graça de Deus,ser puro de coração e servir o Senhor comalegria, dignidade e generosidade.

O acólito deve aprender a atar o cín-gulo e a arranjar a túnica, para não ir comela de qualquer maneira, porque isso é

feio. Se não sabe fazer o nó do cíngulo,peça ao senhor padre ou a outra pessoa queo ensine.

O acólito já deve ter a túnica vestidaquando o senhor padre chega à sacristia,para poder ajudá-lo a vestir-se. Quando elechega, cumprimenta-o e, quando ele vestea alva, dá-lhe o cíngulo e ajuda-o a arran-jar a alva, para ficar à mesma altura, embaixo, tanto adiante como atrás.

O acólito nunca deve chegar atrasado.Isso é falta de educação e impede que amissa comece à hora marcada.

O lema do acólito é constituído portrês palavras, e todas começam por um«A»: AMIGO, ASSEADO, ATENTO. O acólitoé amigo de todos mas particularmente doseu pároco, é asseado desde a ponta doscabelos ao bico dos pés, e está sempreatento ao que é preciso fazer. E é PONTUAL.

Questões práticas:

— Como se chama a veste branca dosministros ordenados? Que significaesse nome?

— E como se chama a veste branca dosacólitos? Que diferença existe entreuma alva e uma túnica?

— Quando é que o acólito usa pela pri-meira vez a sua túnica? Antes dissoque tem ele de aprender?

— Quem lha entrega e quando? Além datúnica, que outras coisas lhe são en-tregues? (O responsável ensina oscandidatos a utilizar o cordão).

— O que é que a cor branca da túnicarecorda ao acólito?

— O acólito deve chegar à igreja e à sa-cristia antes ou depois do senhor pa-dre? Para quê? Qual é o lema do acó-lito?

JOSÉ DE LEÃO CORDEIRO

114 BOLETIM DE PASTORAL LITÚRGICA

Em Abril de 2001, a Escola Diocesanade Música Sacra de Coimbra celebrou o Xaniversário. Fiz, nessa ocasião, uma con-ferência sobre a “Música na Igreja Con-temporânea em Portugal”. Entretanto,para a futura “Enciclopédia da Música emPortugal no século XX”, a editar pelo Cír-culo de Leitores sob a direcção da Prof.Doutora Salwa Castelo Branco (da Uni-versidade Nova de Lisboa), foram-me pe-didas entradas sobre os padres ManuelAlaio, Manuel de Faria Borda, BenjamimSalgado, Luís Rodrigues, Manuel Simões,Manuel Luís, Cón. José Ferreira, ManuelValença, António Ferreira dos Santos, JoséFernandes da Silva, Joaquim dos Santos,Manuel Frade, António Azevedo Oliveira,José Pedro Martins, António Cartageno,Mário Silva e Acílio Mendes. Além destescompositores, escrevi entradas sobre oestudo da Música nos seminários, o Se-minário de Braga, o Seminário dos Oli-vais, os periódicos musicais religiosos, asComissões Diocesanas de Música Sacra eo Serviço Nacional de Música Sacra.Outros autores investigam certamenteoutras questões e compositores do âmbitoeclesial.

Apesar das limitações em termos defontes e bases pessoais, espero lançar luzsobre a relação da Igreja com a música no

século XX. Sobre a segunda metade doséculo XX, há o estudo publicado na obracolectiva “A Igreja e a Cultura Contempo-rânea em Portugal”; em relação à primeirametade, mais haverá por fazer. Proponho,assim, nos limites próprios de uma revista,uma viagem panorâmica pelos jardins damúsica na Igreja. Um percurso de cemanos não é fácil, nem linear. A vastidão dotema e a limitação do espaço obrigam-mea optar, passando um pouco ao lado depessoas, instituições, iniciativas que mere-ciam uma visita.

A LENTA EVOLUÇÃOPRÉ-CONCILIAR

Numa fase de mudanças e convulsõespolíticas e sociais, em Portugal e nomundo, a música religiosa das primeirasdécadas é marcada pela restauração grego-riana. No século XIX e no despontar do sé-culo XX, as festas religiosas reflectiamainda o gosto pela ópera italiana. EmItália, do programa da inauguração de umórgão de tubos, em 1902, constavamexcertos da Norma (Bellini), da Traviata(Verdi), Lucia di Lammermor (Donizetti),La Bohème (Puccini), CavalleriaRusticana (Mascagni). Os cardeais Sarto

MÚSICA LITÚRGICA

MÚSICANA IGREJA CONTEMPORÂNEA

EM PORTUGAL

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(Veneza), Ferrari (Milão) e outros lutavampor um estilo mais litúrgico de música,onde Perosi tinha um lugar importante.Acto legislativo que emana da própriavontade do Papa, em 1903, o motu proprio“Tra le Sollecitudini” valoriza o cantogregoriano, a polifonia clássica, a língualatina, o órgão de tubos. Espalhado pelaimprensa católica, o desejo de renovaçãofoi encontrando acolhimento. No segui-mento do código jurídico da música sa-cra, muitas vezes citado e publicado emPortugal, designadamente em boletinsdiocesanos, os bispos nomearam comis-sões diocesanas de música sacra, cujafunção, até ao Vaticano II, se limitaria pra-ticamente à análise de publicações e reper-tórios das bandas de música e dos coros.Com a aprovação da comissão diocesana ea bênção do prelado, as colectâneas procu-ram garantir a sua entrada no repertóriodas paróquias e seminários. Testemunhadesta prática é a Lyra Sacra, colectâneaem fascículos do jesuíta António de Me-nezes, que, a partir de 1902, reúne ocontributo de padres compositores devários pontos do País e é uma colectâneafundamental para o conhecimento damúsica religiosa praticada na viragem doséculo XIX para o século XX. Embora osexemplares não abundem, repertóriosespecíficos foram criados em alguns semi-nários, como as Melodias Sacras, do Se-minário Diocesano do Funchal, em 1908,que preservaram o repertório musical dasMissas do Parto (novenas do Meninomadeirenses). O açoreano P.e Tomás Bor-ba vai-se tornando uma figura respeitada,como se depreende dos conselhos pedidospela Comissão Bracarense de Música Sa-cra. Desenvolveria um trabalho pedagógi-co notável no Conservatório Nacional epublicaria títulos marcantes, como o Mé-todo de Solfejo e o Dicionário de Música,

com Fernando Lopes Graça. Compôs epublicou, em 1910, os Coros Religiososque, segundo Manuel Faria, são umavanço em relação ao repertório da época.

O vento da República, implantada em1910, faz estremecer a Igreja: as ordensreligiosas são expulsas, seminários fe-cham, património é vandalizado, desmo-rona-se a pujante actividade musical decolégios como o de Montariol, em Braga.Na capital, só ficaram os dominicanos ir-landeses e os Padres da Missão. A Igrejade São Luís dos Franceses, onde haviaum bom órgão de tubos, era um focolitúrgico-musical interessante, graças aocontributo do compositor P.e CarmeloBallester Nieto. A instâncias do episcopa-do, Ballester organizou o Manual do Sol-dado Português, publicado em 1917, com56 cânticos e outras orações. Com as Apa-rições de Nossa Senhora na Cova da Iria,Fátima ultrapassará os centros de peregri-nação regionais (como a Nazaré e o Sa-meiro), tornando-se o santuário do País,centro pastoral, factor de música e de di-vulgação. Com a melhoria das relaçõesentre a Igreja e o Estado, os seminários fo-ram retomando o seu normal funciona-mento. Nos seminários passou a ser ensi-nado o gregoriano segundo a edição vati-cana, e foram criados coros para a execu-ção das polifonias clássica e moderna. Al-guns professores estudavam em abadiasestrangeiras e alguns seminários tiveram,esporadicamente, aulas e conferências deespecialistas estrangeiros e nacionais. OP.e Manuel Alaio lançava os alicerces da“Escola de Braga”, com o seu trabalho pe-dagógico nos seminários bracarenses, aactividade com orfeões e coros, as compo-sições de raiz popular. No Patriarcado deLisboa, o espólio do Seminário de Santa-rém é testemunha de uma intensa activida-de musical que inclui o canto gregoriano,

o ensino e a prática do órgão, a polifoniaclássica dos grandes compositores, músicasacra moderna, e música popular para osmomentos de convívio.

Apesar dos esforços pela dignificaçãodo culto, a música praticada nas igrejasnão era tão “boa”, “verdadeira” e “santa”como as normas pretendiam. Frei Antónioda Pena publicou, no jornal A época, umacrónica sobre uma bênção do Santíssimo,em Lisboa. O autor satiriza a “catadupa denotas, trémulos, pizicatos... uma músicanervótica, cataléptica, teatral... uma músi-ca excitante e lúbrica que faz lembrar avalsa, a polka, o tango argentino”. Vozesfortes, “vozes ásperas, fanhosas, incultas(...) cheias de convicção e de uma admirá-vel confiança em si mes-mas”, não paravam decantar “Ó Salú-lú-lú... ÓSalú-tá-tá...”, alternadascom nova dose de “trilosestridentes ou de reque-bros sentimentais” pelosviolinos, contrabaixos eoutros instrumentos. Estepadre vicentino lamentava que as indica-ções claras do motu proprio não fossempostas em prática. Motivo de reparos ofe-recia também a celebração da missa. DomAntónio Coelho, importante liturgista be-neditino, afirmava, na mesma altura, que arazão de os fiéis não cantarem se devia àdificuldade da língua, à falta de explicaçãoe ensaios, e a velhos hábitos: “em Portu-gal, as missas cantadas são missas solitári-as”, na medida em que os fiéis não partici-pam. “Os filhos aprendem dos pais. E es-tes ainda têm nos ouvidos aqueles intermi-náveis e inumeráveis e horrivelmente ma-çadores: In terra pax... in terra pax... paxhominibus... pax hominibus... pax in terra

pax... bonae voluntatis... bonae bonae...voluntatis in terra pax... e os Amen tão re-petidos, tão embaralhados que desafiavamquem tivesse o atrevimento de os querercontar”.

Num contexto sócio-político difícil, osCongressos litúrgicos de Vila Real (1926)e de Braga (1928) e o Concílio PlenárioPortuguês (1926) são sinais e factores dedinamismo. Revelando as preocupaçõespastorais da hierarquia portuguesa, o Con-cílio Plenário incentiva os clérigos aaprenderem música.1 “Desde o princípioaté ao fim dos estudos, dediquem-se osalunos dos seminários ao estudo da músicasacra”(nº 446). Só assim poderiam ensinaros cânticos aos fiéis, sobretudo do ordiná-

rio, em vista de uma me-lhor participação naliturgia. Havia a preocu-pação de banir da igrejatoda a sensualidade, nosinstrumentos e modo deexecução. “As músicas,quer de órgão ou outrosinstrumentos, quer de

canto, em que haja alguma coisa de lasci-vo ou impuro, sejam absolutamente bani-das das igrejas e bem assim as que tiveremcarácter teatral ou profano”(nº 345). Ospróprios sinos devem tocar em sintoniacom as normas litúrgicas: “nunca se exe-cutem neles músicas lascivas, impuras eprofanas”(nº 281). Na linha do Tra leSollecitudini, o Concílio Plenário proibiaos coros mistos. E “se cantar na igreja jun-to ao órgão ou harmónio um coro de mu-lheres ou meninas, o instrumento será to-cado por uma mulher e não por um homeme vice-versa”(nº 343). Aos clérigos eraproibida a assistência a bailes: “se impre-vistamente se começar a dançar na sua

1 Concílio Plenário Português (1926). Pastoral Colectiva. Decretos. Suplemento (Lisboa: União Gráfica 1931)113-14.

“Desde o princípio atéao fim dos estudos, dedi-quem-se os alunos dosseminários ao estudo damúsica sacra”Concílio Plenário Português, 1926.

116 BOLETIM DE PASTORAL LITÚRGICA

presença, são obrigados a retirar-se da-quele local ou da casa”(nº 30). Num es-forço pastoral de conjunto, os bispos, es-forçam-se “por que não haja durante asfestas religiosas divertimentos profanos,sobretudo arraiais nocturnos, que frequen-temente se convertem em injúria a Deus eruína dos bons costumes”(nº 324). Pelamesma razão, proíbe os bailes e espectácu-los no adro ou junto da igreja e a participa-ção de filarmónicas: “porque muitas vezesas bandas de música dão ocasiões a diver-timentos que profanam, de algum modo,as festas religiosas, procurem os párocos,tanto quanto possam, que elas não sejamchamadas para as festas” (nº 325), exclu-indo, com maioria derazão, as que “tenhamtomado parte em fun-ções reprovadas pelaigreja” (nº 326), comoos enterros civis.

Em 1926, DomAntónio Coelho fundaa revista Opus Dei,que tem um papel mui-to importante no mo-vimento litúrgico egregoriano em Portugal, um quarto de sé-culo antes da revista Canto Gregoriano.Os discursos sobre a música sacra que ti-veram lugar no 1º Congresso LitúrgicoNacional Romano-Bracarense reflectemos mesmos objectivos pastorais de digni-dade e participação nas cerimónias. A re-vista Música Sacra, fundada em Coimbra,em 1927, reúne alguns nomes cimeiros davida musical religiosa. Com qualidadegráfica excelente para a época, a MúsicaSacra, publicou cânticos litúrgicos e poli-fonia clássica, peças de órgão, acompa-nhamento de harmónio, artigos sobrequestões musicais. E, contudo, morre comano e meio de vida: só 43 anos mais tarde

voltaria Portugal a ter uma Nova Revistade Música Sacra. Embora o Liber Usualisseja preferido pelos arautos da restauraçãogregoriana, muitos seminários e paróquiasusam outras colectâneas: o espiritanoCantai ao Senhor (que conhecerá seis edi-ções entre 1925-1972) e o DevocionárioMusical (de 1927), do jesuíta P.e LuísGonzaga Mariz. O Cantuale, com quintaedição em 1927, foi organizado em Lisboapelo P.e Ballester, incluindo gregoriano,polifonia clássica e moderna. Destinado àCongregação da Missão e Filhas da Cari-dade a nível mundial, incluía 5 cânticos doilustre compositor Luís de Freitas Branco.

Em 1931, o Seminário de Cristo Reidos Olivais (Lisboa)sucede ao de Santarémcomo Seminário Maiordo Patriarcado. Comformadores novos nopróprio domínio damúsica, terá um papelimportantíssimo nomovimento litúrgico ena reforma do canto.Na abertura do Semi-nário, o Cardeal Cere-

jeira manifestou o desejo de que fosse en-sinado o gregoriano à maneira de Soles-mes. O programa de estudos previu umaaula diária de canto gregoriano. A polifo-nia assinalava as grandes celebrações pon-tificais na Sé, transmitidas pela EmissoraNacional. Foi notável a acção litúrgica doliturgista Monsenhor Pereira dos Reis, quefez conferências sobre o canto gregoriano,foi presidente da Comissão de Música Sa-cra do Patriarcado e, na sua paróquia, deuimportância à participação dos fiéis pelocanto. Josué Trocado, leigo a cuja capelaAntónio Salazar ia à missa, gozou demuita credibilidade na Igreja pelas confe-rências teórico-práticas de canto gregoria-

Na abertura do Semináriodos Olivais, o Cardeal Cere-jeira manifestou o desejo deque fosse ensinado o grego-riano à maneira de Soles-mes. O programa de estudospreviu uma aula diária decanto gregoriano.

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no. Professor dos Olivais, InácioAldassoro organizou o Jubilate, publicadoem 1939, para dotar o coro do Semináriode Cristo Rei e outros seminários de umbom repertório de música sacra, e “contri-buir para a renovação da música religiosaem Portugal”. O organizador pretendeeliminar “dos cânticos religiosos, quecostumavam ouvir-se, aqueles fados efandangos que outra coisa não são que oreflexo dum sentimentalismo exagerado eagitação doentia”.

Em resposta ao apelo do CongressoLitúrgico Internacional de Antuérpia, foicriada, no mesmo ano, a Liga da AcçãoLitúrgica e Paroquial, nomeada uma co-missão nacional e comissões diocesanas,pouco depois. Na Semana Litúrgica deLisboa, em 1932, foram discutidos os esta-tutos, depois estudados e redigidos em for-ma definitiva pelos bispos. Para fomentaro espírito cristão, pretendia-se que os se-minaristas participassem frequentementeno canto da missa e vésperas, ao Domingo,e que a missa principal dos domingos edias santos fosse “cantada por todo opovo”. Embora fosse a menos genuína dasmissas gregorianas, De angelis era a maiscantada e publicada no País.

A partir dos anos 30, a Tipografia Edi-torial Franciscana, de Braga, publica umnúmero significativo de missas, em latim eem português, composições de carácter re-ligioso, hinos, marchas, motetos, colectâ-neas de cânticos, e estudos no domínio damúsica e da organística. A Lumen, cominício em 1937, tem uma actividade im-portante no esclarecimento e divulgaçãoda música sacra e litúrgica até aos anos 70.

Manuel Faria começa a compor, comum talento e desejo pessoal que o levarão,em 1939, ao Pontifício Instituto de MúsicaSacra. Manuel Faria tornar-se-á o grandeexpoente da Escola de Braga, pedagogo,

maestro, articulista, compositor cujo catá-logo de obras impressionará pela diversi-dade e riqueza, incluindo música profanae sacra, para coro e orquestra, de raizminhota e em linguagem dodecafónica.

Na sequência do Tra le Sollecitudini edos decretos do Concílio Plenário Portu-guês, os bispos publicaram diversas provi-sões, revelando uma vigilância pastoralefectiva, em alguns casos. Após mais deum século de esquecimento, nota-se umesforço por dar ao órgão de tubos a impor-tância nacional perdida, com restauros,por vezes infelizes e até desastrosos, porparte da Direcção dos Edifícios e Monu-mentos Nacionais e das comunidades cris-tãs. O Seminário dos Olivais continua adesempenhar um importante papel peda-gógico, não só pela formação musical,mas também pela transmissão das missasgregorianas e polifónicas pela EmissoraNacional. Como outros, o Coro dos Oli-vais contribuiu com o seu canto polifónicopara festividades e comemorações várias,como o centenário de Santa Isabel, emCoimbra (1936), e a reabertura da Capelada Universidade de Coimbra (1938), jun-tamente com o Seminário desta cidade.

Os bispos, continuando a velha lutapela recristianização das festas religiosas,publicam provisões para pôr cobro a abu-sos praticados pelas bandas filarmónicas.Luís Rodrigues (reitor da Lapa, no Porto)publica, além das composições religiosase obras didácticas, Música Sacra: Históriae Legislação, obra com os documentos doMagistério sobre música.

Nos anos 50, emerge uma leigabrigantina que estudou no Instituto Grego-riano de Paris: Júlia d’Almendra. Em1950, inicia em Fátima as semanas grego-rianas, para dar formação gregoriana eorganística em função dos seminários eparóquias. Várias dioceses acolhem tam-

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bém semanas gregorianas, designadamen-te Coimbra, Évora, Funchal e Porto. Asiniciativas aparecem algo tardiamente,quase meio século depois do Tra leSollecitudini, quando sopravam já os ven-tos de mudança que iriam abrir a Igreja aomundo e à cultura contemporânea. Nãoobstante, as Semanas Gregorianas, o Cen-tro de Estudos Gregoriano/Instituto Gre-goriano de Lisboa, a revista Canto Grego-riano, as conferências, a organização deexcelentes concertos garantem a Júliad’Almendra um lugar entre as pessoas quemais contribuíram para a elevação do ní-vel musical português. Nos anos 50, apa-recem alguns dos primeiros discos de mú-sica religiosa feitos em Portugal. ManuelFaria gravou um disco de canto gregorianoexecutado por 300 crianças de Vizela, e osmonges beneditinos de Singeverga grava-ram, em 1956, os primeiros 33 rotaçõescom canto gregoriano.

RENOVAÇÃONA IGREJA E NA MÚSICA

Às portas do Concílio Vaticano IIaparecem novos cânticos, com um espíritorenovador que se fazia sentir em outros pa-íses como a França. Manuel Luís publicaos 10 Cânticos sobre os salmos e o Cânti-co de glória, afirmando-se, com os SalmosResponsoriais, outras composições e tare-fas pedagógicas, o grande impulsionadorda música litúrgica renovada. A revistaOra et Labora, criada em 1954, seria, du-rante três décadas, uma revista litúrgico--musical importante pela documentação,publicação de cânticos e estudos.

Os anos 60 são os anos do Concílio, daSacrosanctum Concilium (1963) e da ins-trução Musicam Sacram (1967), das mani-

festações juvenis, da mudança, da crise, daexperimentação e da polémica. O ventorenovador do Espírito entra pelas janelasda Igreja, renovando a linguagem dos seuscantos com uma sólida fundamentação bí-blica. O tesouro da grande música da Igre-ja deve ser aberto e admirado, mas nãosubstitui o pão quotidiano do canto da as-sembleia. No programa de estudos para osseminários diocesanos de Portugal, de1963, previa-se dois tempos semanais:música e canto coral do 1º ao 6º ano, músi-ca e canto gregoriano, no 7º e 8º ano. Coma diminuição de alunos, o ensino tornar--se-ia bastante problemático, gerando, emmuitos casos a simples ausência da disci-plina. O Maestro Frederico de Freitas, quecompôs alguns cânticos para a Nova Re-vista de Música Sacra, lamenta que se te-nha confundido “o desejado género, aces-sível e facilmente assimilável, com um gé-nero piegas e nefelibata falho de invençãoe sentido próprio, o qual veio a resultar namais indesejável vulgaridade”. A opiniãode outros músicos “eruditos” era seme-lhante. Cânticos biblicamente pobres, le-tras religiosas sobre melodias sentimentaisou ritmos de dança, geravam dispersão,dividindo os fiéis e alienando-os do Misté-rio celebrado. Muitas vezes, a roupagemharmónica, rítmica e instrumental escon-dia as fraquezas melódicas.

Em vista da renovação do cantolitúrgico, a Comissão Episcopal deLiturgia nomeou, em 1965, a ComissãoNacional de Música Sacra, (constituídapor Manuel Faria, António Ferreira dosSantos, Celestino Borges de Sousa e Ma-nuel Luís). Em 1967, publicou as NormasLitúrgicas, que incluíam esclarecimentossobre a prática da música na liturgia. Otrabalho de criação e aprovação das me-lodias teria resultados práticos em 1971,com a edição das Melodias Oficiais do

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Missal Romano. As várias missas emportuguês e os próprios títulos realçam adimensão existencial e comunitária daeucaristia, em que a assembleia deveparticipar actuosamente: Missa eclesial,Cânticos da Assembleia Cristã, Comuni-dade de Vida, O povo de Deus reunido,Missa Comunitária, Missa ‘Igreja Viva’. Avaga de traduções do espanhol, francês,italiano, foi ainda superior à que ocorreuem finais do século XIX e princípio doséculo XX, e as canções do P.e Zezinhoinvadiram a liturgia. Num país cansado daguerra colonial, os gritos de liberdadeouvem-se também na Igreja. Canta-se“Deus e a paz”, e o sonho de um mundomais humano e justo impregna os cânticosreligiosos, mesmo que fossem melodiasdos Beatles, de Bob Dylan, ou EnnioMorricone: “Faz a paz, escolhe o amor, vaiconstrói um mundo melhor”.

A RENOVAÇÃOCONSOLIDA-SE

Após o regresso de Munique, o P.eAntónio Ferreira dos Santos funda, com aEquipa de Música Litúrgica, o Boletim deMúsica Litúrgica, o Serviço Diocesanode Música Litúrgica, o Curso de MúsicaLitúrgica, o Coro da Sé do Porto. Foi, dealgum modo, o início de uma actividademusical impressionante pela sua qualida-de, versatilidade em prol da música e dosministérios musicais. Em 1974, não defen-de “que a música rítmica litúrgica tenha deser, pura e simplesmente, a deslocação damúsica rítmica ligeira para a liturgia”, masaprova a tentativa de encontrar “umalinguagem litúrgico-musical para pessoasmais familiarizadas com a música rítmi-ca”, que encerra valores antropológicos,psicológicos, sociológicos e musicais.

Manuel Faria é reconhecido no seu méritode compositor, com o Prémio Nacional deComposição Carlos Seixas, atribuído àssuas Parábolas da Montanha.

Em 1975, tem início o Encontro Na-cional de Pastoral Litúrgica, que terá umagrande influência na definição de um es-tilo musical para a liturgia. Em 1976,aparece o Boletim de Pastoral Litúrgica,com o objectivo de fazer a ligação entre oSecretariado Nacional de Liturgia e as co-missões diocesanas de liturgia, música earte sacras. Em Beja, o P.e Cartageno fez,entre 1978-1982, com o P.e António Apa-rício, uma recolha exaustiva de cânticos datradição popular religiosa do Baixo Alen-tejo que, praticamente, tinham deixado dese cantar. A Comissão de Liturgia e Músi-ca Sacra de Beja recuperou muitos dessescânticos, adaptando alguns textos àliturgia. Posteriormente, foram gravados edivulgados quase trinta espécimes, emlivro, cassete e CD.

Na década de 80, nota-se claramenteuma viragem. A produção musical de raizvai ultrapassando a contrafacção de melo-dias, o que acaba por se reflectir no NovoCantemos Todos (1990). A formação mu-sical em algumas dioceses e a participaçãono Encontro Nacional de Pastoral Litúrgi-ca levam a um maior discernimentolitúrgico-musical. A actividade organísticadesenvolve-se com os contributos deGerhard Doderer, Manuel Valença, Ferrei-ra dos Santos, António Simões. Curiosa-mente, os organeiros Dinarte Machado eManuel dos Santos Fonseca foram semi-naristas, nos Açores e em Braga, respecti-vamente, e a vocação organeira de PedroGuimarães está intimamente ligada aoGrande Órgão da Sé do Porto. Em 1985,ano Europeu da Música, pela primeira veza Conferência Episcopal Portuguesa pu-blica uma Nota pastoral sobre o canto

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litúrgico, sinal de uma vigilância que seexprime em outras afirmações dos bisposde Braga e Porto. É inaugurado o GrandeÓrgão da Sé do Porto, o primeiro de quatrograndes órgãos na cidade entre 1985-2000.

Os anos 90 são caracterizados poruma estruturação do ensino e da práticamusicais inédita na Igreja portuguesados últimos dois séculos. Depois do Cursode Música Litúrgica do Porto e da EscolaBracarense de Música Sacra, outras esco-las diocesanas de música foram criadas:Coimbra em 1991, Aveiro em 1994, Lis-boa em 1995. De nível universitário e âm-bito nacional, nasce, em 1997, a Escoladas Artes, da Universidade Católica Portu-guesa, ponto de chegada e ponto de partidade uma relação nova e promissora entre aIgreja e a cultura. Os anos 90 são tambémmarcados pelas cantatas e outras grandesobras religiosas (sobretudo as de Ferreirados Santos). Não sendo obras de vanguar-da, reflectem um extraordinário domíniodas estéticas musicais e conhecimento damúsica sacra, envolvendo uma vastidão derecursos humanos e instrumentais. Nestadécada, grandes Órgãos foram construídosnas Igrejas da Lapa, Senhora da Concei-ção, Cedofeita, nas sés de Leiria, Beja, An-gra do Heroísmo. Numerosos órgãos fo-ram restaurados por António Simões,Dinarte Machado e Pedro Guimarães, quefundou, em 1992, a Escola e Escola deOrganaria com Georg Jann. Este alemãoradicado no Porto, “verdadeiro génio daorganaria”, na opinião de Ferreira dosSantos, tem-se dedicado à construção erestauro de órgãos. A cedência das igrejaspara concertos de música religiosa e festi-vais é já um contributo musical. Em bomnúmero de casos, a organização e execu-ção esteve a cargo de agrupamentos vocaisou instrumentais ligados à instituição ecle-

siástica, trazendo a Portugal intérpretes decraveira internacional. A Lapa tornou-se aigreja musicalmente mais dinâmica doPaís. Departamento do Secretariado Naci-onal de Liturgia, o Serviço Nacional deMúsica Sacra ganhou visibilidade emediatização, graças às publicações feitase às iniciativas de âmbito nacional quereuniram em Fátima milhares de músicos,pequenos cantores, coros adultos, bandasfilarmónicas. Os anos 90 são também umadécada de boas publicações, algumas comcaracterísticas inéditas: Cânticos Instru-mentados para Banda, Salmos Responso-riais e o homónimo Livro do organista, aedição para canto da Liturgia das Horas,os Cânticos de Entrada e Comunhão, osCDs do Requiem à memória do Infante D.Henrique, da inauguração do GrandeÓrgão da Sé do Porto e da Igreja de SãoLourenço. A nível de estudos sobre músicareligiosa, José Paulo Antunes publicou asua tese de doutoramento Soli Deo Gloria,e, graças à organização da Exposição Cris-to, Fonte de Esperança, pela primeira vezfoi publicado um trabalho com algumaprofundidade sobre o contributo musicalda Igreja contemporânea.

PERSPECTIVASDE SÍNTESE

A composição religiosa da primeirametade do século XX tem um acentominhoto. Uma parte significativa dos cân-ticos utilizados pertenciam a autores domeio bracarense, como Manuel Alaio, Do-mingues Correia, Alexandre dos Santos(franciscano), Alberto José Brás, ManuelFaria. Na segunda metade, a criação musi-cal diversificou-se: Manuel Luís, em Lis-boa, Carlos Silva em Leiria, José Pedro

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Martins em Faro, António Cartageno emBeja, Ferreira dos Santos no Porto. Bragacontinuou a ser um viveiro de composito-res: José Fernandes da Silva, Joaquim dosSantos, Azevedo Oliveira, Henrique Faria,Joaquim Mendes de Carvalho, José deSousa Marques. O Boletim de Música Li-túrgica e a Nova Revista de Música Sacra(com um leque de compositores e sensibi-lidades bastante alargado) contribuirampara o aumento de compo-sição qualificada para aliturgia, para a assembleia ecoros mistos, para coro eórgão, para crianças e jo-vens. O facto de os músicoseclesiásticos não se encon-trarem nas vanguardas da música, deve--se à sua formação, muito ligada ao Pon-tifício Instituto de Música Sacra, e aos ob-jectivos litúrgicos ou pedagógicos, com-pondo para assembleias cristãs que devemparticipar actuosamente. Daí que tradiçãomusical popular e a influência do gregori-ano como canto litúrgico de referência, te-nham marcado a música religiosa ao longodo século. Na composição litúrgicanovecentista, predomina a texturamonofónica, embora também se encon-trem composições polifónicas ehomofónicas (sobretudo nos compositoresde Braga, que usam, com muita frequên-cia, o acompanhamento de órgão ouharmónio).

O órgão de tubos manteve-se comoparadigma dos instrumentos no Magisté-rio da Igreja. Na prática, o que predomi-nou até aos anos 60 foi o harmónio, acom-panhado, às vezes, por instrumentos decorda e de sopro. A partir dos anos 60, in-troduziu-se fortemente o órgão electrónicode sala, que justamente cederia o lugar aoórgão clássico. Da suspeita em relação àsbandas de música, na linha de Pio X, pas-

sou-se, no final do século, ao projecto umaintegração harmoniosa das filarmónicasna liturgia solene. De um canto litúrgicopraticamente todo em latim, passou-se aum canto litúrgico praticamente todo emportuguês. De um canto religioso im-pregnado de nacionalismo, saudosismo ecom um carácter excessivamente piedoso,passou-se a canto inspirado na Bíblia,mesmo quando a mensagem carrega as

mágoas e alegrias da huma-nidade. E, ao contrário dadiminuição do canto colec-tivo profano, que se perdeucom a passagem de uma so-ciedade agrária a uma cul-tura citadina, os espaços da

Igreja são lugares onde se aprende e secanta em coro, nas missas dominicais, nasprocissões, na catequese, nos encontros decristãos.

Na primeira metade do século, a práti-ca de boa música esteve circunscrita a al-guns centros, e nas próprias cidades im-portantes havia muitas carências. Apesardos seus limites, os seminários (Braga,Lisboa, Porto, Coimbra) eram lugaresonde se passava muito tempo ao longo demuitos anos, com muitos estudantes e apossibilidade de terem bons corospolifónicos e agrupamentos instrumentais.Na própria música popular, os semináriosderam um contributo importante, sendo,até aos anos 60, um factor de divulgaçãomusical na publicação de cancioneiroscom música portuguesa e estrangeira, exe-cutada em festas, convívios e passeios. Ocontributo dos conservatórios e outras es-colas de música fez, entretanto, subir acultura musical média; em contrapartida, onúmero de seminaristas baixou, levando anovas estratégias de formação ou, em mui-tos casos, à simples inexistência de aulasde música.

Os espaços da Igrejasão lugares onde seaprende e se canta

em coro.

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Os suportes de gravação (primeiro ovinil, depois a cassete e o CD) conquista-ram um papel cada vez mais importante nadivulgação da música religiosa.Vocacionadas para a missão através dosaudiovisuais, as Edições Paulistas tiveramaqui um papel insuperável, mesmo que al-gumas publicações obedeçam mais a crité-rios comerciais do que estéticos oulitúrgicos. As numerosas missas televisio-nadas e radiodifundidas,com especial preparaçãodos coros para esse efei-to e níveis musicais deexecução muito variá-veis, contribuíram tam-bém para a divulgaçãode repertórios e estilosde canto.

Bons coros iniciaram a sua actividadeligados ao pároco, à paróquia ou seminá-rio (Stella Vitae, Santa Maria de Belém,Audite Nova, Laudate, Coro Gregorianodo Porto, Coro de Câmara do Porto), comuma actividade significativa em concer-tos, missas, casamentos. Compositores,organistas, musicólogos, cantores, regen-tes, fundadores de coros e orfeões, organi-zadores de concertos, colóquios e confe-rências, professores em conservatórios eoutras escolas de música, houve numero-sos padres e leigos cristãos que desempe-nharam um papel importante na evoluçãoda música em Portugal. De forma assumi-da ou não, o ambiente religioso marcou asensibilidade musical de muitas pessoas,como Cândido Lima: “Havia um órgão detubos na minha aldeia. O meu contactocom a música deu-se, portanto, desde quetenho consciência, aos 4-5 anos, nas ceri-mónias religiosas, a ouvir as pessoas mais

velhas que vinham de Braga para tocarórgão. Ficou-me, portanto, o órgão noouvido e as vozes das pessoas de família acantar”.2

O vocabulário musicográfico é teste-munha da influência cristã, incluindo no-mes eclesiásticos em sentido figurado,como vulgata, breviário, intróito, catedral,altar, holocausto, apocalíptico. Na músicapop/rock, há diversos nomes inspirados

em temas cristãos, ou co-locados numa atitude dehumor ou crítica: Bastar-dos do Cardeal, Pedro eos Apóstolos, Santos epecadores, EspíritoSanto, Tentações, Anjos.Nos títulos das canções,

encontramos também essa inspiração:Salmo (dos Heróis do Mar), O Menino,Milagre (dos Madredeus), Anjo da Guar-da (de António Variações), São Salvadordo Mundo (de José Cid).

Olhar sabiamente o passado é cons-truir o futuro. A secularização foi assu-mida pela Igreja, que não pode nem deveter hoje na música a influência que exer-ceu no passado. O mecenato e a influênciamonopolista, apoiada nos poderes políticoe económico, dá lugar ao diálogo e aointercâmbio, assente na humildade e noserviço, em parceria com as autarquias,escolas de música e outras instituições. Aestruturação diocesana que aconteceu demodo exemplar no Porto e em Braga, queteve seguimento nas dioceses de Coimbra,Aveiro e Lisboa, é exemplo e desafio paraas outras dioceses. As formações inicial epermanente são vitais para um desenvolvi-mento efectivo da música religiosa que serepercuta num bom coro catedralício, na

2 C. LIMA, cit. in S. AZEVEDO, A invenção dos sons. Uma panorâmica da composição em Portugal hoje (Lisboa:Caminho da Música 1998), 162.

Houve numerosos padrese leigos cristãos que de-sempenharam um papelimportante na evoluçãoda música em Portugal.

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melhoria dos coros paroquiais, em melho-res órgãos litúrgicos, organistas mais com-petentes, formação descentralizada. Comogrande proprietária, a Igreja é tambémresponsável pela degradação de muitosórgãos e a desorganização dos espóliosmusicais. Se é verdade que um ou outroserviço diocesano de música litúrgica fun-ciona muito bem, há comissões constituí-das, segundo o Anuário Católico, por 3elementos, que não funcionam. Como pas-tores, os bispos têm, obviamente, umagrande responsabilidade no domínio damúsica: o que falta não é teoria, mas actose condições.

Fátima é hoje centro de conferências,encontros, retiros, a musicoteca religiosanacional e, ao mesmo tempo, um olharaberto ao mundo. As iniciativas nacionais,a amplificação da música litúrgica paramultidões presentes e audiênciasradiofónicas e televisivas de milhões, os

três órgãos de tubos, a Escola de Música,as publicações, o contributo criativo doCón. Carlos Silva, fazem do Santuário umfactor de cultura musical. A criação deuma musicoteca religiosa que inclua hiná-rios, revistas, discos, cassetes, CDs, ma-nuscritos, registos de concertos e grandescelebrações, estudos actualizados sobre asmúsicas religiosas é um projecto assumidoque falta cumprir. Terá procura? Será, pelomenos, um arquivo.

A comemoração do X aniversário daEscola Diocesana de Música Sacra deCoimbra, com diversos concertos, confe-rências e debates, é exemplo a seguir. Or-ganizar e manter uma escola não é fácil.Organizar anualmente uma jornada de mú-sica litúrgica não será tão difícil e deixarásementes que, cedo ou tarde, hão-de florir.

ANTÓNIO JOSÉ FERREIRA

A NOVA LEIDO PATRIMÓNIO CULTURAL

E AS SUAS IMPLICAÇÕESFACE À IGREJA

ARTE SACRA

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A Lei n.º 107/2001, publicada no Diá-rio da República (1.ª Série) de 8 de Setem-bro de 2001, estabelece as novas bases dapolítica e do regime de protecção e valori-zação do património cultural, dotandoPortugal de um instrumento jurídico mo-derno, concebido à luz da actual reflexãosobre a salvaguarda, o desenvolvimento ea fruição dos bens culturais, ao mesmotempo que harmoniza a legislação nacio-nal não só com as importantes convençõesinternacionais ratificadas pelo nosso país,mas também com a legislação em vigornoutros estados europeus. Trata-se de umapequena revolução no âmbito patrimonialque, caso se proceda à regulamentação es-perada, dentro do prazo definido para oefeito, poderá imprimir decisiva dinâmicaa este domínio.

Dotado de um regime com especifici-dades próprias, de acordo com o que é re-conhecido na Concordata celebrada entrea Santa Sé e a República Portuguesa, opatrimónio cultural da Igreja Católica vaireceber diversos “impactos” com a plausí-vel entrada em vigor da nova Lei, após asua regulamentação. Embora o legisladortenha acautelado, pelo menos em termosteóricos, a pertinência daquelas especi-ficidades, os bens culturais religiosos vão

Grande parte do património cultural português con-tinua a ser desconhecido, devido à inexistência deum inventário que cubra efectivamente todo o terri-tório nacional. Um dos sectores em que o atraso narealização desse instrumento fundamental se está arevelar mais nocivo diz respeito aos bens religiosos,domínio que representa uma parcela decisiva danossa identidade como país. Nas regiões em que ainventariação decorre com normalidade, comoacontece na diocese de Beja – a segunda mais ex-tensa de Portugal –, tem sido possível identificar,proteger a valorizar um importante conjunto deobras de arte em risco de perda iminente. Esta pin-tura mural do século XVII que figura uma almaprestes a ser salva do Purgatório, integrada no arcoda capela de São Miguel da igreja matriz de SantaCruz, no concelho de Almodôvar, é um bom exem-plo da utilidade da existência de um inventário sis-temático e actualizado (fotografia de José AntónioFalcão – © Departamento do Património Históricoe Artístico da Diocese de Beja).

ficar sujeitos a um novo sistema de pro-tecção, com o acréscimo, ao institutotradicional da “classificação”, de um

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* Director do Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja.

novo modelo de registo, a “inventaria-ção”, aparentemente de carácter coercivo.Por outro lado, alarga-se substancialmenteo leque de intervenções a cargo do sectorpúblico (estatal, regional, municipal),abrangendo domínios até agora poucodefinidos, como é o caso do patrimóniomóvel.

Em contrapartida, a nova Lei reco-nhece o papel decisivo da sociedade civilna defesa, enriquecimento e animação dopatrimónio cultural, abrindo o caminho àacção organizada dos cidadãos, preferen-temente sob a forma do associativismopatrimonial, que é posto a par do associati-vismo ambientalista. Ultrapassa-se, destemodo, o excessivo protagonismo atribuídoao Estado pela anterior Lei de Bases (n.º13/85, de 6 de Julho), de nítido pendorestatizante, o que permite um equilíbriomais ajustado entre a acção do Estado,mais administrativa e reguladora, e a dosagentes da sociedade civil, maisdinamizadora e interventiva in loco.

Mesmo assim, subsistem certas in-congruências, particularmente na áreada inventariação e dos deveres e direitosdos proprietários, a que se aplica frequen-temente a expressão algo equívoca de“detentores”, como se existisse de partedo legislador certa dificuldade em aceitarque um “particular”, singular ou colectiva,possa ser proprietário, em sentido pleno,de um bem cultural. Em suma, encontra-mo-nos perante um sector ainda emaberto, em que se torna necessário apro-fundar linhas de reflexão que possam vir ailuminar uma futura praxis.

JOSÉ ANTÓNIO FALCÃO*

O convento de Nossa Senhora do Carmo, em Moura– a primeira casa da Ordem do Carmo a ser fundadano nosso país, ainda em pleno século XIV –, encon-tra-se parcialmente classificado, desde 1944 (De-creto n.º 33 587, de 27 de Março), como Imóvel deInteresse Público. A igreja, propriedade da paróquiade São João Baptista, permanece em bom estado deconservação e constitui um importante centro devo-cional da região. Os restantes sectores do vastocomplexo conventual, pertença do Estado, foramvotados ao abandono e ao vandalismo depois doencerramento do hospital público que aí funcio-nava. A Câmara Municipal pretende agoratransformá-los em hotel termal, o que põe entravesà salvaguarda de um monumento do maior interessepara o conhecimento da história e da arte portugue-sas e dificulta o seu pleno uso cultural e pastoral.Esta situação, tal como outras que se revelam clara-mente lesivas para o património nacional, exigeuma conjugação de esforços de parte do Estado e daIgreja, como se reconhece na nova Lei de Bases (fo-tografia de Sara Fonseca – © Departamento do Pa-trimónio Histórico e Artístico da Diocese de Beja).

Há muito esperado, foi há pouco apre-sentado o Directório sobre Piedade Popu-lar e Liturgia – Princípios e Orientações.A sua publicação, além de inegável inte-resse pastoral, é, de certo modo, acto dejustiça para com uma expressão da fé dopovo cristão que se mostrou verdadeira-mente providencial em tempos de crise davida litúrgica. E quem sabe se não voltaráa sê-lo nas sociedades de velha cristanda-de em que a maioria dos baptizados aban-donou o culto oficial da Igreja.

Quem percorre a história da liturgia,desde os primórdios da Igreja até aos nos-sos dias, pode verificar que a vida litúrgicaatravessou longos períodos de crise, so-bretudo no que diz respeito à participaçãodos fiéis nas celebrações. Segundo estudode D. Botte na “Introdução à Liturgia” deMartimort, desde o princípio até ao Concí-lio de Trento (meados do séc, XVI), distin-guem-se quatro períodos no processo dedesenvolvimento da liturgia: 1) período daimprovisação (séc. I-IV); 2) período dacriação dos formulários (séc. IV-VII); 3)período da compilação destes (séc. VIII-XII); 4) período da sua fixação (séc. XIII-XIV).

Neste último período, mais ou menoscoincidente com o tempo áureo da IdadeMédia caracterizado por forte clericalismonas suas diversas modalidades, os fiéis, nasua grande maioria, por falta de verdadeirainiciação cristã e em geral de cultura rude,

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O NOVO DIRECTÓRIODA PIEDADE POPULAR

davam-se mais às expressões duma religi-osidade popular, nem sempre muito orto-doxa, do que às práticas litúrgicas paraeles difíceis de entender, tanto mais que olatim já há muito deixara de ser língua po-pular.

Dizem os historiadores que tal situa-ção, que se foi agravando, preparou o ter-reno para as divisões resultantes da criseprotestante do séc. XVI e levou a Igreja aempenhar-se num extraordinário esforço

CRÓNICA

128 BOLETIM DE PASTORAL LITÚRGICA

de renovação polarizada pelo Concílio deTrento. Os padres deste Concílio, depoisde acordarem nos princípios doutrináriosda renovação, confiaram ao Papa a refor-ma litúrgica. Pio V não se fez esperar. Em1568 saiu o Breviário reformado e em1570 o novo Missal que perdurou quaseaté aos nossos dias.

No entanto este período de intensarenovação não durou muito, e o facto de seter centrado na reforma dos livros semsuficiente pedagogia pastoral não teve oimpacto esperado. Seguiram-se três sécu-los, que vão da criação da Congregaçãodos Ritos até ao advento de S. Pio X(1614-1903), a que chamaram “era dosrubricistas”, durante o qual de novo aliturgia entrou em estagnação, do que foisintoma, entre outros, o facto do culto dosSantos e a piedade popular quase teremafogado a celebração dos mistérios cris-tãos.

Foi preciso esperar pelo movimentolitúrgico, iniciado em 1837 por D. Guéran-ger, para tornar desejada e possível umaautêntica renovação da liturgia. Esta foiimpulsionada por S. Pio X, encontrougrande apoio em Pio XII e foi definitiva-mente lançada pelo Concílio Vaticano II. Éde recordar que o primeiro documentodeste Concílio foi a Constituição Sacro-sanctum Concilium sobre a reforma litúr-gica (4.l2.1963). Este documento reconhe-ce que «a participação na sagrada liturgianão esgota a vida espiritual» (12) e maisadiante diz que «são muito de recomendaros exercícios piedosos do povo cristão,desde que estejam em conformidade comas leis e normas da Igreja». (13)

Vinte e cinco anos depois, na CartaApostólica Vicesimus quintus annus sobreo balanço da renovação litúrgica (4.12.1988), João Paulo II escreve a respeito dapiedade popular: «Para salvaguardar a

reforma... é necessário ter em conta a pie-dade popular cristã e a sua relação com avida litúrgica. Ela não pode ser ignoradanem tratada com indiferença ou desprezo,porque se apresenta rica de valores e jáexprime uma certa atitude perante Deus.Mas precisa de ser constantemente evan-gelizada... A pastoral litúrgica autênticasaberá apoiar-se nas riquezas da piedadepopular e orientá-las para a liturgia.» (18).

Estas palavras têm o seu quê de profé-tico. De facto, estamos a assistir ao aban-dono das práticas litúrgicas pelas popula-ções baptizadas dos países de velha cris-tandade, como o nosso, embora ele aindaseja dos que mais apegados se tem mostra-do às tradições cristãs, talvez por ser aque-le em que a passagem para a civilizaçãourbana se tem feito sentir mais lentamente.A quebra dos índice de prática dominicalrevelada no último recenseamento é sinto-mática e preocupante.

A situação, porém, agora é diferente.No passado, a ruralidade dominante davida favorecia as expressões da piedadepopular: festas de santos patronos, pro-cissões, meses, novenas, promessas...Tais expressões dizem cada vez menos aohomem da rua da civilização urbana, ci-vilização esta que invade mesmo as zonasrurais.

É certo que, com o desprestígio doracionalismo cientista e a derrocada doateísmo militante, parece estar a dar-se umregresso ao espiritual, ao misterioso, aotranscendente, ao religioso. No entanto,este regresso está a fazer-se sem referên-cias à Palavra de Deus revelada, à econo-mia sacramental, aos exemplos de vida naIgreja. Por isso ele facilmente descambana superstição, na magia, na adivinhação eem outras aberrações semelhantes. Bastaver como a imprensa, os outros meios decomunicação social e até a internet en-

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chem páginas de horóscopos e de anún-cios de cartomantes, videntes e demaisprofissionais da bruxaria.

Tais manifestações não se podem cha-mar de religiosidade popular e muito me-nos de piedade popular cristã. Mas issonão quer dizer que já não haja expressõesautênticas desta piedade, mesmo nas gran-des cidade. De facto, são frequentes os si-nais cristãos no interior e até no exteriordas casa, têm audiências significativas astransmissões pela rádio e tv de celebraçõeslitúrgicas e devocionais, os “sítios” católi-cos da internet são dos mais visitados, osgrandes meios de comunicação de massaestão atentos ao que a Igreja diz dos pro-blemas humanos e sociais, sinal de queisso interessa os seus públicos.

A Igreja tem de estar atenta a estessinais dos novos tempos, para procedi-mentos adequados. A publicação do novoDirectório da Piedade Popular é provadesta atenção da Igreja. Destina-se ele aorientar a prática pastoral especialmenteno que diz respeito às várias expressões dareligiosidade do homem da rua dos nossosdias, de forma a valorizar o que nelas há debom, a purificá-las do erro e do mal, de asevangelizar e de as aproximar , nas suainspiração e orientação, das práticaslitúrgicas.

O novo Directório, mais do que propornormas à piedade popular – que por suanatureza é profundamente espontânea –,aponta critérios, fornece dados sobre a ori-gem e sentido das devoções, oferece su-gestões para a válida harmonização entreexercícios de piedade e as celebraçõeslitúrgicas. Um grande esforço de criativi-dade é pedido a quantos na Igreja são res-ponsáveis pela salvação e santificação dopovo, desde os bispos e os padres até aossimples fiéis leigos conscientes da sua vo-cação e missão de baptizados.

O que diz o novo Directório

Socorrendo-nos dos textos de apresen-tação do Directório, feita pelo Prefeito eSecretário da Congregação do Culto Divi-no e Disciplina dos Sacramentos no dia 9de Abril passado, tentaremos dar aos nos-sos leitores uma ideia do que ele contém.Omitimos o que ambos disseram sobre aimportância da piedade popular na vidapessoal e colectiva dos fiéis, por já o ter-mos referido acima.

O novo Directório é um documento decarácter pastoral – a começar pelo nome:Directório sobre Piedade Popular eLiturgia – Princípios e Orientações – quetem por objecto o nexo entre a celebraçãolitúrgica do mistério cristão e as outrasformas de culto a que é costume chamarpiedade popular. Ao visar directamente asexpressões muito variadas desta piedade,ele tem sempre presente a sua referência àliturgia como inspiração máxima de toda avida cristã.

O Directório tem duas partes prece-didas duma Introdução que apresenta otema, a sua natureza, os destinatários, osprincípios a respeitar e e a linguagemprópria da piedade popular. A I Partefornece pontos de referência tirados dahistória da Igreja, do Magistério e da Te-ologia, a ter presentes na harmonizaçãoentre a piedade popular e a liturgia. Nelase recorda a experiência da Igreja na maté-ria e se propõem princípios e orientaçõespráticas.

Na II Parte oferecem-se propostas deactuação, tendo por quadro o decorrerdo ano litúrgico. Dá-se especial relevo àsexpressões devocionais que têm por ob-jecto a Mãe de Deus, os Santos, os sufrá-gios pelos defuntos e as peregrinações asantuários. A propósito são focadas di-

versas particularidades significativas,como as linguagens usadas, as fórmulas deoração, os cânticos populares, os gestos,as imagens e os tempos e lugares.

Na apresentação feita pelo Secretárioda Congregação, Mons. Tamburrini dete-ve-se em três pontos:

1. A primazia da liturgia.

Como disse o Concílio (S.C.7), «cadacelebração litúrgica, como obra de Cristosacerdote e de seu Corpo que é a Igreja, éacção sagrada por excelência e nenhumaoutra acção da Igreja iguala a sua eficáciacom o mesmo título e o mesmo grau». Épreciso superar o equívoco de que aliturgia não é popular. De facto, a reno-vação conciliar visou primordialmente aplena participação do povo nas celebra-ções litúrgicas. O facto do Directório teroptado por analisar as expressões da pie-dade popular no enquadramento do anolitúrgico é já de si significativo. No entan-to isso não implica qualquer intenção deexcluir, contrapor ou marginalizar a pieda-de popular, antes pelo contrário.

2. Valorizaçãoe renovação da piedade popular .

O facto das expressões de piedade e dedevoção populares se considerarem facul-tativas não permite depreciá-las, poisconstituem uma riqueza do povo de Deus,contendo valores autênticos de vida cristã.

A atitude correcta é a da sua valorização, eporventura da sua purificação e evangeli-zação.

A renovação da liturgia querida peloConcílio deve reflectir-se na renovação dapiedade popular segundo uma quádruplainspiração: bíblica, pois não pode haveroração sem referência directa ou indirectaà Palavra de Deus; litúrgica, pois a liturgiacelebra os mistérios da fé que devem ins-pirar toda a atitude orante; ecuménica, deforma a congraçar as diversas sensibilida-des e tradições; antropológica, de forma autilizar, sem arcaísmos, os símbolos e ex-pressões significativas de cada povo. Sen-tido pedagógico, gradualidade e atençãoàs circunstâncias de tempo e de lugar re-querem-se para uma criativa pastoral derenovação da piedade popular.

3. Distinção e harmoniada piedade popular com a liturgia.

Nas suas expressões culturais, devemdistinguir-se os exercícios de piedade po-pular das celebrações litúrgicas, evitandomisturar as respectivas fórmulas. Em par-ticular deve salvaguardar-se a precedênciaprópria dos domingos, das solenidades edos tempos e dias litúrgicos. Por sua vez,deve reconhecer-se que a piedade popularé forma privilegiada de inculturação dofacto religioso, sem a qual não se pode fa-lar em religião ou piedade própria dum de-terminado povo.

! MANUEL FRANCO FALCÃO

130 BOLETIM DE PASTORAL LITÚRGICA

Peregrinação Nacionaldos Acólitos

Fátima – 1 de Maio de 2002

Decorreu no passado dia 1 de Maio,dia litúrgico de São José, Operário, a Pere-grinação Nacional de Acólitos a Fátimaque, excedendo todas as expectativas,congregou cerca de dois mil e quinhentosAcólitos. Há quatro anos, altura em queesta assembleia reunia cerca de quatrocen-tos participantes, o Senhor Bispo D. Sera-fim, usava, nas suas palavras, a analogiada “bola de neve”, uma realidade que vaicrescendo à medida que percorre caminho.Certo é que no ano passado este mesmoencontro contou com a presença de oito-centos participantes. O Senhor Reitor doSantuário, presidindo à Eucaristia, come-çou por saudar esta grande assembleia, as-sinalando que na história do Santuárionunca tinha acontecido uma presença tãonumerosa de túnicas brancas, dando aoSantuário uma solenidade que a todos en-tusiasmou.

Estes trabalhadores do altar concentra-ram-se, pelas nove horas, no centro pasto-ral Paulo VI, onde se paramentaram, e pe-las dez horas caminharam em cortejo, pelacruz alta, até à Capelinha das Aparições,onde foi rezado o Terço a que presidiu oSenhor Bispo, D. Serafim.

Pelas onze horas decorreu a grandiosaprocissão da Capelinha para o altar do re-cinto onde foi celebrada a Eucaristia. Eratal a multidão dos que vestiam túnicasbrancas que os próprios organizadores daprocissão se viram confrontados com umarealidade a repensar...

E porque a quantidade coloca sériosdesafios à qualidade, pelas quinze horasdecorreu um tempo de formação para osdiversos sectores: os responsáveis estive-ram a perspectivar linhas de acção para ofuturo, apostando com seriedade em pro-jectos de formação existentes e a consoli-

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dar. Os jovens estiveram a reflectir sobreos sinais da presença de Cristo na liturgia.Os mais novos dialogaram sobre o perfildo acólito no decorrer das celebraçõeslitúrgicas. As opiniões que recolhi acercadestes momentos formativos foram muitopositivas.

Pelas quinze e trinta decorreu a Procis-são Eucarística, cuja solenidade a muitostocou, tal foi a beleza e dignidade destamajestosa manifestação de fé e louvor aoSantíssimo Sacramento, por quem osAcólitos manifestam especial adoração.

Ficam lançados sérios desafios aosgrupos, suas paróquias e suas dioceses.Trata-se de uma realidade crescente que épreciso acompanhar e qualificar.

MANUEL MÁRIO DIAS RIBEIRO

132 BOLETIM DE PASTORAL LITÚRGICA

A procissão da Capelinha das Aparições, onde se formou o cortejo, parecia não ter fimcom os 1400 acólitos devidamente paramentados. Foi, certamente, uma das procissõesmais bonitas do Santuário de Fátima. Um longo abraço uniu a Capelinha ao altar dorecinto que foi pequeno para tanta gente nova.

Oa acólitos e os concelebrantes ocupam os seus devidos lugares em qualquer celebração.

Os acólitos sabem estar nas celebrações, tanto junto do altar a servir, como à distânciarequerida pelas circunstâncias, neste caso o grande número de presenças.

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A BELEZA DOS GESTOS

Dois cortejos litúrgicos, duas cruzes dife-rentes. Aqui é o cortejo dos peregrinos quechegam a Fátima e se dirigem para a Cape-linha das Aparições. Ao lado é o cortejodos ministros em direcção ao lugar da ce-lebração da eucaristia. Há cruzes e cruzes.

Ajudar o diácono e servir o sacerdote

134 BOLETIM DE PASTORAL LITÚRGICA

«O Acólito é instituído paraajudar o Diácono e para servir oSacerdote. É sua função, portan-to, cuidar do serviço do altar;auxiliar o Diácono e o Sacerdotenas acções litúrgicas, sobretudona celebração da Missa (...). Namedida em que for necessário,poderá também cuidar da ins-trução de outros fiéis que, por um

O MINISTÉRIO DO ACÓLITO

encargo temporário, devamajudar o sacerdote ou o diácononas acções litúrgicas, levando omissal, a cruz, as velas, etc., ouexercendo outras funções destegénero. Desempenhará maisdignamente estes ofícios, se par-ticipar na Santíssima Eucaristia,cada vez com uma piedade maisardente, alimentando-se dela eprocurando alcançar um conhe-cimento da mesma sempre maisprofundo.

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Destinado de modo particularpara o serviço do altar, o Acólitohá-de procurar conhecer o quediz respeito ao culto divino ecompreender o seu significadoíntimo e espiritual, de modo que,em cada dia, se ofereça a sipróprio totalmente a Deus e, porsua atitude grave e respeitosa,seja para todos exemplo no tem-plo sagrado, amando sincera-mente o corpo místico de Cristoou povo de Deus, sobretudo osfracos e os doentes».

Paulo VI, Ministeria quaedam, VI

Os acólitos não instituídos devemdesempenhar o seu ministériocom a mesma dignidade que ascelebrações litúrgicas reclamam.Os ministros devem aprender unscom os outros a arte de bem ser-vir ao altar. Levar os dons ao altar,estar junto do altar e ajudar a dis-tribuir a comunhão são gestosmísticos que afirmam o mistériodo culto divino.

136 BOLETIM DE PASTORAL LITÚRGICA

O SERVIÇO DO ALTAR

A participação na Santíssima Eucaris-tia é a grande escola onde os acólitosaprendem a servir ao altar do Senhor. Ogesto de realizar uma acção é tão nobrequanto o deve ser a presença local namesma celebração.

Toda a vida do acólito se orienta para oaltar e dele procede. Os gestos e as atitudesdizem a verdade do ministério. Nada podeser entregue ao acaso ou à improvisação,

como se o importante fosse o gesto utilitá-rio. “Ajudar à Missa” é um acto de cultoque reclama conhecimentos profundos dapertença a Cristo e do exercício do minis-tério sacerdotal de Cristo em cada um dosseus membros. Mais do que o serviço deum por todos é o serviço que cada um deverealizar de acordo com a sua condição naIgreja em oração. Esta dita quem deve ir equem deve estar, como se vai e como seestá.

Estas duas fotografias, sem cabeçamas muito femininas, afirmam o sentidoprofundo dos gestos. Ter o turíbulo na mãoafirma a pessoa como incenso e levar apíxide ao altar reclama mãos limpas eunhas asseadas. O anel desta menina équestão de bom gosto e muito mais.

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SABER E NÃO SABER ESTAR

Saber estar é uma arte que se aprendeescutando e observando os mestres, mas aperfeição desta arte encontra-se na consi-deração íntima do que se é e se realiza.

Apresentamos nesta página algunsexemplos, porventura menos abonatóriosdo ministério dos acólitos, mas – porqueficaram registados – podem ajudar a saberestar na celebração.

No Pai nosso uns deram-se as mãos,um ergueu-as discretamente e outro apro-veitou para tapar a boca que não rezava.

Durante o cortejo as meninas fixaramo fotógrafo e alguma até pediu o que aquitem para recordar um descuido feminino.

Ao fundo fica um pormenor: devemter tocado os sinos e a atenção quase geralvoltou-se para a torre. Os sinos ouvem-se.

138 BOLETIM DE PASTORAL LITÚRGICA

E as mãos como se colocam durante ascelebrações litúrgicas? Umas fazem umgesto, outras descaem, outras tapam orosto e outras andam perdidas. Os acólitosestão ao serviço dos ritos mas não sãoritualistas.

A orientação do corpo é para diante oupara o lado? Onde se realiza o mistério, aíse deve encontrar o coração e a atenção.

Está provado que a presença de fotó-grafos no espaço das celebrações e naproximidade dos ministros é motivo dedistração no serviço divino e provocaatropelos à liturgia. Deve evitar-se, mas setiver de ser que seja com discrição eprofissionalismo, para que o registo foto-gráfico sirva para confirmar a verdade domistério pascal.

Por fim, registamos o calçado. Podenão parecer importante, mas merece aatenção dos acólitos. O calçado deve serdigno de ir à presença do Senhor. Com es-tes sapatos e o que das calças se deixa ver,o acólito poderia muito bem apresentar-sena festa do melhor amigo.

Estão de moda outros calçados e ou-tras maneiras de arrematar o vestuário.São todos tão dignos da celebração comoaptos para serem usados na festa de ca-samento do melhor amigo. A liturgia é afesta das núpcias de Cristo com a Igreja. Otraje desportivo tem o seu espaço próprio.

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140 BOLETIM DE PASTORAL LITÚRGICA

WWW.LITURGIA.PT

Está disponível o Sítio do Secretariado Nacional de Liturgia.A informação aumenta e o projecto é animador.

Um serviço importante à causa da pastoral litúrgica.

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NOTÍCIAS

COMISSÃO EPISCOPAL DE LITURGIA

Ao novo Presidente da ComissãoEpiscopal de Liturgia, D. António Taipa, oBoletim de Pastoral Litúrgica deseja umfecundo ministério pastoral, sobretudo narenovação e dinamização do SecretaridoNacional de Liturgia, do Serviço Nacionalde Música Sacra e do Serviço Nacional deAcólitos.

A liturgia está chamada a ser a luz queno candelabro da Igreja ilumina a activida-de humana e a orienta ao serviço do bem.

A Conferência Episcopal Portuguesaelegeu na Assembleia Plenário de 8 a 11 deAbril de 2002 o Conselho Permanente e osPresidentes das Comissões Episcopais.Para a Comissão Episcopal de Liturgia foieleito o Senhor D. António Maria BessaTaipa, Bispo Auxiliar do Porto.

No dia 20 de Junho foram constituídasas Comissões Episcopais para o períodode 2002-2005.

A Comissão Episcopal de Liturgiaficou assim constituída:

Presidente:D. António Maria Bessa Taipa

Vogais:D. Júlio Tavares RebimbasD. Albino Mamede Cleto

Secretário:P. Dr. Pedro Lourenço Ferreira

O Senhor D. Manuel Franco Falcão,que tão dedicadamente presidiu a estaComissão Episcopal nos últimos anos,deixa saudades no Secretariado Nacionalde Liturgia, nos seus colaboradores e nosque têm acompanhado as actividades pro-movidas promovidas pela Comissão Epis-copal de Liturgia no plano nacional. Com-preendem-se e aceitam-se as razões da dis-pensa deste serviço, já que outros serviçoso reclamam e a idade também merece maisatenções e descanso. O Boletim de Pasto-ral Litúrgica agradece a colaboração quese prontificou a continuar nas suas cróni-cas sobre liturgia.

142 BOLETIM DE PASTORAL LITÚRGICA

TEXTOS DA NOVA INSTRUÇÃO GERAL DO MISSAL ROMANO

As adaptaçõesAs adaptações consistem, muitas vezes, na escolha de certos ritos e textos, como são os can-

tos, as leituras, as orações, as admonições e os gestos, de forma a corresponderem melhor àsnecessidades, à preparação e à capacidade dos participantes; elas são da responsabilidade do sa-cerdote celebrante. [24]

O cantoDeve fazer-se um grande uso do canto na celebração da Missa, de acordo com a índole dos

povos e as possibilidades de cada assembleia litúrgica. Embora não seja necessário cantar sempre,por exemplo nas Missas feriais, todos os textos que, por si mesmos, se destinam a ser cantados,deve no entanto procurar-se com todo o cuidado que não falte o canto dos ministros e do povo nascelebrações que se realizam nos domingos e festas de preceito. [40]

É muito conveniente que o sacerdote cante as partes musicadas da Oração eucarística. [147]As fórmulas a dizer simultaneamente por todos os concelebrantes, e que vêm musicadas no

Missal, é de louvar que sejam proferidas com canto. [218]

Os gestos e atitudes corporaisOs gestos e as atitudes corporais, tanto do sacerdote, do diácono e dos ministros, como do

povo, visam conseguir que toda a celebração seja bela e de nobre simplicidade, que se compreen-da a significação verdadeira e plena das suas diversas partes e que se facilite a participação detodos. [42]

Estão de joelhos durante a consagração, excepto se.... Aqueles, porém, que não estão dejoelhos durante a consagração, fazem uma inclinação profunda enquanto o sacerdote genuflecteapós a consagração. [43]

O silêncioJá antes da própria celebração é louvável observar o silêncio na igreja, na sacristia e nos

lugares que lhes ficam mais próximos, para que todos se disponham com devoção e devidamentepara celebrar os ritos sagrados. [45]

Leituras bíblicasNa celebração da Missa com o povo, as leituras proclamam-se sempre do ambão. [58]

Salmo responsorialConvém que o salmo responsorial seja cantado, pelo menos no que se refere à resposta do

povo. ... Se o salmo não puder ser cantado, recita-se do modo mais indicado para favorecer ameditação da palavra de Deus. [61]

Aclamação antes da leitura do EvangelhoA aclamação constitui um rito ou um acto com valor por si próprio, pelo qual a assembleia dos

fiéis acolhe e saúda o Senhor, que lhe vai falar no Evangelho, e professa a sua fé por meio docanto. É cantada por todos de pé. [62]

NOVIDADES SOBRE A MISSA

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Rito da pazA Igreja implora a paz e a unidade para si própria e para toda a família humana, e os féis

exprimem uns aos outros a comunhão eclesial e a caridade mútua, antes de comungarem no Sa-cramento.

Cada um dê a paz com sobriedade apenas aos que estão mais perto de si. [82]

Outras funções ministeriaisNa falta de acólito instituído, podem ser destinados para o serviço do altar e para ajudar o

sacerdote e o diácono ministros leigos. [100]Na falta de leitor instituído, podem ser designados outros leigos para proclamar as leituras da

sagrada Escritura, desde que sejam realmente aptos para o desempenho desta função e se tenhamcuidadosamente preparado. [101]

[Exerce uma função litúrgica:] O sacristão, que prepara com diligência os livros litúrgicos, osparamentos e tudo o que é preciso para a celebração da Missa. [105, a)]

As funções litúrgicas, que não são próprias do sacerdote ou do diácono, também podem serconfiadas a leigos idóneos, escolhidos pelo pároco ou reitor da igreja, mediante uma bênçãolitúrgica ou por nomeação temporária. [107]

Coisas a preparar para a MissaO altar deve ser coberto pelo menos com uma toalha de cor branca. ... Igualmente, sobre o

altar ou perto dele, haja uma cruz, com a imagem de Cristo crucificado. Os castiçais e a cruzornada com a imagem de Cristo crucificado podem ser levados na procissão de entrada. Tambémse pode colocar sobre o altar o Evangeliário, distinto do livro das outras leituras. [117]

Adorno do altarHaja moderação na ornamentação do altar.No tempo do Advento ornamente-se o altar com flores com a moderação que convém à índole

deste tempo, de modo a não antecipar a plena alegria do Natal do Senhor. No tempo da Quaresmanão é permitido adornar o altar com flores.

A ornamentação com flores deve ser sempre sóbria e, em vez de as pôr sobre a mesa do altar,disponham-se junto dele. [305]

Sobre a mesa do altar, apenas se podem colocar as coisas necessárias para a celebração daMissa, ou seja, o Evangeliário desde o início da celebração até à proclamação do Evangelho; edesde a apresentação dos dons até à purificação dos vasos, o cálice com a patena, a píxide, se forprecisa, e ainda o corporal, o sanguinho, a pala e o Missal.

Além disso, devem dispor-se discretamente os instrumentos porventura necessários paraamplificar a voz do sacerdote. [306]

Sobre o altar ou junto dele coloca-se também uma cruz, com a imagem de Cristo crucificado,que a assembleia possa ver bem. Convém que, mesmo fora das acções litúrgicas, permaneça juntodo altar uma tal cruz, para recordar aos fiéis a paixão salvadora do Senhor. [308]

Outras alfaias destinadas ao uso da IgrejaHá-de procurar-se de modo particular que os livros litúrgicos, principalmente o Evangeliário

e os Leccionários, destinados à proclamação da Palavra de Deus e que por isso gozam de venera-ção especial, sejam de facto, na acção litúrgica, sinais e símbolos das coisas do alto e, por issoverdadeiramente dignos, de boa qualidade e belos. [349]

INFORMAÇÃOINFORMAÇÃO

LIVROS LITÚRGICOS OFICIAIS

Situação em Julho de 2002

Missal– Formato maior – (1ª ed.) ................................................................................... Disponível– Formato menor – (1ª ed.) .................................................................................. Esgotado– (A 2ª ed. aguarda a publicação da edição típica latina)

Leccionário:– I. Ano A (2ª ed.) – Edição revista ................................................................ Disponível– II. Ano B (2ª ed.) – Edição revista ................................................................ Disponível– III. Ano C (2ª ed.) – Edição revista ................................................................ Disponível– IV. Ferial I: Advento, Natal, Quaresma, Páscoa ............................................ Disponível– V. Ano II: Anos ímpares ............................................................................... Disponível– VI. Ano III: Anos pares .................................................................................. Disponível– VII. Santoral e Comuns .................................................................................... Disponível– VIII.Missas Rituais, Diversas e Votivas .......................................................... Disponível

Evangeliário ............................................................................................................... DisponívelOração dos Fiéis (2ª ed. revista e com formulários para o santoral) ......................... DisponívelLiturgia das Horas [foi revista e actualizada]

– Vol I. Advento e Natal (4ª ed.) ..................................................................... Disponível– Vol II. Quaresma e Páscoa (4ª ed.) ................................................................. Disponível– Vol III. Tempo Comum (4ª ed.) ....................................................................... Disponível– Vol IV. Tempo Comum (4ª ed.) ....................................................................... Disponível– Abrev. Edição abreviada [Laudes-H. Int.-Vésp. e Completas] (3ª ed.) .......... Esgotado– Abrev. Laudes e Vésperas [Laudes-Vésp. e Completas] (1ª ed.) ................... Disponível

Celebração do Baptismo ............................................................................................ DisponívelIniciação Cristã dos Adultos ...................................................................................... DisponívelCelebração da Confirmação (2ª ed.) .......................................................................... DisponívelSagrada Comunhão e Culto do Mistério Eucarístico Fora da Missa ........................ DisponívelRitual do Ministro Extraordinário da Comunhão (4ª ed.) ......................................... DisponívelCelebração da Penitência (2ª ed.) .............................................................................. DisponívelUnção e Pastoral dos Doentes ................................................................................... DisponívelCelebração das Exéquias ........................................................................................... EsgotadoOrdenação do Bispo, dos Presbíteros e Diáconos (2ª ed.) ........................................ DisponívelCelebração do Matrimónio (nova edição) ................................................................. DisponívelDedicação da Igreja e do Altar .................................................................................. DisponívelBênção de um Abade e de uma Abadessa ................................................................. DisponívelRitual da Profissão Religiosa .................................................................................... DisponívelRitual dos Exorcismos ............................................................................................... DisponívelConsagração das Virgens .......................................................................................... DisponívelCelebração das Bênçãos ............................................................................................ DisponívelInstituição dos Leitores e dos Acólitos ..................................................................... DisponívelBênção dos Óleos dos Catecúmenos

e dos Enfermos e Consagração do Crisma (2ª ed.) .............................................. Disponível

144 BOLETIM DE PASTORAL LITÚRGICA

PUBLICAÇÕES DO SNL

A celebração do Tempo do Natal (2ª ed.) .................................................... € 3,50A Religiosidade Popular e a Celebração da Fé ........................................... € 2,00Adaptação das Igrejas segundo a Reforma Litúrgica ................................ € 3,50Akathistos ...................................................................................................... € 2,00As bênçãos ..................................................................................................... € 3,50Bênçãos da Família ....................................................................................... € 3,50Cânticos de Entrada e de Comunhão I

(Advento, Natal, Quaresma e Páscoa) ............................................... € 6,00Cânticos de Entrada e de Comunhão II (Tempo Comum) ......................... € 6,00Cânticos instrumentados para Banda ............................................................. € 10,00Directório para as celebrações dominicais na ausência do presbítero ........... € 0,50Directório Litúrgico 2002 ............................................................................. € 4,50Agenda – Directório Litúrgico 2002............................................................ € 6,00Enquirídio dos Documentos da Reforma Litúrgica .................................... € 25,00Guião do XXVI Encontro Nacional Pastoral Litúrgica .............................. € 5,00Guião do XXVII Encontro Nacional Pastoral Litúrgica ............................ € 5,00Introduções aos Salmos e Cânticos de Laudes e Vésperas ........................ € 4,00Instrução Geral do Missal Romano (6ª ed.) ................................................ € 5,00Instrução Geral sobre a Liturgia das Horas (2ª ed.) ................................... € 2,00Liturgia das Horas – Edição para canto (Tempo Comum) ......................... € 10,00O Ministério do Leitor .................................................................................. € 5,00O Tríduo Pascal ............................................................................................. € 2,50O Tempo Pascal (2ª ed.) ................................................................................ € 3,50Orar cantando – Carlos da Silva .................................................................. € 12,50Ordenamento das Leituras da Missa ............................................................ € 2,50Ritual do Ministro Extraordinário da Comunhão (4ª ed.) .......................... € 4,00Salmos Responsoriais – Organista – (2ª ed.) – P. Manuel Luís ................. € 17,50Salmos Responsoriais – Salmista – (2ª ed.) – P. Manuel Luís .................. € 14,00

EM PREPARAÇÃO:Colectânea de textos litúrgicos antigos

Liturgia das Horas – Ed. para canto (Advento, Natal, Quaresma e Páscoa)

Secretariado Nacional de LiturgiaSantuário de Fátima – Apartado 31 — 2496-908 FÁTIMATel. 249 533 327 Fax 249 533 343Sítio: www.liturgia.ptE-mail: [email protected]

SECRETARIADO NACIONAL DE LITURGIA

A Liturgia é simultaneamentea meta

para a qual se encaminha a acção da Igrejae a fonte

de onde promana toda a sua força.(SC 10)