introdução de diana krall · 2013. 11. 22. · introdução de diana krall* * cantora e pianista...

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XI E u ainda era pequena quando descobri Peanuts. Uma das minhas primeiras lembranças é a de meu pai desenhando o Snoopy em uma camiseta minha. Aos quatro anos de idade, minha roupa preferida era um moletom do Charlie Brown – meu pai deve ter alguma foto minha com ela. Porém, nem tudo era glamour. Acho que sou parente do Charlie Brown em algum grau. Até hoje uso a expressão “Eu ganhei uma pedra”, que ele imortalizou em um especial de Dia das Bruxas, e sem nenhum cinismo. Acho que a primeira vez que ouvi alguém falar em “sarcasmo”, “cinismo” e “depressão” foi no mundo do Charlie Brown, um mundo em que as crianças são inteligentes e os adultos só dizem “blá, blá, blá”. Os “Cinco centavos, por favor” que Lucy pedia quando resolvia os problemas dos demais ainda fazem parte das minhas conversas do dia a dia, ainda que o preço tenha aumentado consideravelmente ao longo dos anos. introdução de diana krall * * Cantora e pianista canadense de jazz. Com sua carreira musical, conquistou dois Grammy, além de inúmeros outros prêmios.

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Page 1: introdução de diana krall · 2013. 11. 22. · introdução de diana krall* * Cantora e pianista canadense de jazz. Com sua carreira musical, conquistou dois Grammy, além de inúmeros

XI

Eu ainda era pequena quando descobri Peanuts. Uma das minhas primeiras lembranças é a de

meu pai desenhando o Snoopy em uma camiseta minha. Aos quatro anos de idade, minha roupa preferida era um moletom do Charlie Brown – meu pai deve ter alguma foto minha com ela. Porém, nem tudo era glamour.

Acho que sou parente do Charlie Brown em algum grau. Até hoje uso a expressão “Eu ganhei uma pedra”, que ele imortalizou em um especial

de Dia das Bruxas, e sem nenhum cinismo. Acho que a primeira vez que ouvi alguém falar em “sarcasmo”, “cinismo” e “depressão” foi no mundo do Charlie Brown, um mundo em que as crianças são inteligentes e os adultos só dizem “blá, blá, blá”. Os “Cinco centavos, por favor” que Lucy pedia quando resolvia os problemas dos demais ainda fazem parte das minhas conversas do dia a dia, ainda que o preço tenha aumentado consideravelmente ao longo dos anos.

introdução de diana krall*

* Cantora e pianista canadense de jazz. Com sua carreira musical, conquistou dois Grammy, além de inúmeros outros prêmios.

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XII

O restante da turma do Charlie Brown também tinha lá seus problemas. Charlie era o protagonista da tira, mas todos os seus amigos tinham personalidades bem definidas e expressavam sem temores suas neuroses. Todo mundo conhece uma Lucy, um Linus, uma Patty Pimentinha, uma Sally e um Snoopy. Meu marido diz inclusive que se parece muito com Chiqueirinho. Minha esperança é que todos tenhamos aprendido com esses personagens o senso de compaixão e a capacidade de perdoar.

Charles Schulz, porém, não os retratava como criancinhas ingênuas, criaturinhas inocentes à espera de instruções por parte dos adultos. Eles têm seus próprios questionamentos e suas próprias fontes de encantamento, que se manifestam na forma da crença na Grande Abóbora ou no Cãozinho da Páscoa. Essas belas histórias são carregadas de uma espiritualidade sutil e divertida.

Apenas em um de seus especiais de televisão, O Natal de Charlie Brown, Schulz fez com que

Linus contasse a história da natividade lendo diretamente nas escrituras. Ele faz isso para consolar Charlie Brown, depois de ele ter à primeira vista fracassado na missão de comprar a principal peça de decoração para a encenação natalina das crianças ao trazer uma árvore de Natal pequena e acanhada em vez das opções mais chamativas e exuberantes oferecidas no comércio.

Schulz, que como eu foi criado na igreja luterana, mais tarde se declararia um “humanista secular”. Ele claramente foi buscar algumas respostas em outras crenças, mas sempre manteve consigo aqueles primeiros ensinamentos.

A música é outro tema recorrente em Peanuts. Não preciso nem dizer que me identifico principalmente com o muitas

vezes irritadiço pianista Schroeder. Para mim foi mais fácil começar as aulas de piano na infância, pois por sua causa eu já tinha intimidade com nomes como Beethoven e Chopin, apesar de provavelmente preferir o busto de Fats Weller sobre o meu piano.

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XIII

Depois de tantas alusões e referências musicais nas tiras, sua melodia enfim se tornou audível na animação O Natal de Charlie Brown, vencedora do prêmio Emmy, com uma trilha sonora jazzística charmosíssima e bacanérrima composta por Vince Guaraldi e executada pelo seu trio. Desde criança eu já gostava de jazz – não havia nada melhor do que aquilo para mim. Isso é uma prova de que não é preciso tocar apenas temas infantis para as crianças. Elas são capazes de absorver qualquer coisa. O número de dança em O Natal de Charlie Brown tem suingue de sobra. Aqueles pequenos hipsters só bebem leite com chocolate, mas mesmo assim sabem muito bem como curtir um bom jazz!

As brincadeiras musicais com Schroeder também puderam ser ouvidas pela primeira vez nesse filme. Gosto principalmente da cena em que Lucy pede para Schroeder tocar “Jingle Bells”, e ele apresenta versões belíssimas, inclusive

uma tocada num órgão, antes de se render, todo emburrado, e tocar as notas uma por uma em seu pianinho de brinquedo... “plim, plim, plim... plim, plim, plim... plim, plim, plim, plim, pliiiiiiiiim”, e enfim obter a aprovação de Lucy: “É isso!”. Isso acontece comigo muitas vezes na vida real.

Esses personagens faziam parte do dia a dia da nossa família, eram citados com frequência, mesmo que fosse só para dizer que às vezes só o que a gente ganha é uma pedra. Charlie Brown e seus amigos continuam populares porque Charles Schulz confiou na inteligência e na sensibilidade até mesmo de seus leitores mais novinhos para entender os dilemas sutis retratados em suas ilustrações e as

verdades simples e diretas expressas em suas tiras. Suas criações apelam para nossa criança interior, mas sem deixar de nos tratar como adultos. Espero ansiosa pelo dia em que poderei compartilhar essas experiências com meus próprios filhos.

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ajuda psiquiátrica

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11961

por

pensei que ela não fosse

conseguir fazer o spare!

que bola de neve enorme!

ela é grande demais...

essas meninas fazem cada

coisa idiota...

ela fez uma bola de neve que nunca

vai conseguir jogar!

ha ha ha ha ha

baam!

você nunca vai conseguir arremessar isso aí, lucy...

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2 Janeiro

está começando

um novo ano, certo? certo!

é o momento ideal para abandonarmos os nossos

maus hábitos, certo? certo! carregar esse cobertor idiota por aí é um mau hábito, certo?

certo!

então escute bem... tenho uma sugestão para você...

de repente me bateu um frio...

já chega!muito bem, está fe ito!

missão cumprida!

eu enterrei o seu cobertor!

me conta! me conta! me conta! me conta!

vai, me conta!

você enterrou

o meu cobertor?

você não pode fazer isso! eu vou morrer sem aquele cobertor! vou ficar que

nem um pe ixe fora d’água! eu vou morrer! morrer!

me conta onde você enterrou! me conta!

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31961

ela fezo quê?!

elaenterrou o

meu cobertor, charliebrown!

disse que ia me curar desse mau hábito de uma vez por todas e enterrou

o meu cobertor!

como é que eu vou fazer para encontrar?

agora eu se i o que as pessoas querem dizer quando falam que é

preciso escavar o solo!

o linus falou que você

enterrou o cobertor dele...

tem certeza de que era a coisa certa a fazer?

claro que tenho! eu

sempre tenho certeza em tudo o que

faço!

onde é que você vai?

o linus me pediu para

passar a noite com ele...

a primeira noite sem o cobertor vai ser a mais

difícil!

ohhhhhh

ele está atécom febre!

vai ser mesmo uma noite bem longa...

não deve ser fácil para uma criança que sempre

dependeu do seu cobertor de repente se ver sem ele...