introdução ciências da natureza. pelo perfil dos alu

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16 Física na Escola, v. 17, n. 1, 2019 Bioquímica e termodinâmica na educação Introdução A Educação de Jovens e Adultos (EJA) não é um tema que mobi- lize a comunidade acadêmica internacional. Trata-se de um problema específico de algumas nações pertencentes ao que se costuma denominar Terceiro Mundo. A Unesco tem um programa dedicado à Educação de Adultos, aplicável a qualquer país, desenvolvido ou não [1], mas a EJA como a conhecemos no Brasil é basicamente um problema de país do Terceiro Mundo [1-3] , e cabe a esses países encaminhar soluções apropriadas às suas necessidades e potencialidades, incluindo- se aí iniciativas referentes à pesquisa educacional atinente ao contexto da EJA. Vista na perspectiva de um cenário abrangente, a EJA tem de um lado que considerar a tradição sociocultural de um país dependente, algo que Paulo Freire já discutia no início dos anos 1960 [4], e de outro lado enfrentar os desafios para o novo milênio [2]. Essas duas partes, por assim dizer, apresentam zonas de super- posição, mas com objetivos educacionais e realidades sociais diferentes. Por exemplo, uma coisa é definir estratégias educacio- nais para jovens e adultos que não tiveram a oportunidade de escolaridade na faixa etária própria, e outra coisa bem diferente é definir estratégias de educação continua- da de adultos escolarizados para adapta- ção a uma sociedade em rápida evolução tecnológica. Não é objetivo deste trabalho discutir a questão da interdisciplinaridade no En- sino Médio regular, mas chamar a atenção e mostrar que, dadas as circunstâncias socioeducativas, a EJA é um espaço espe- cialmente apropriado para a abordagem interdisciplinar de conceitos básicos das Felipe Rodrigues da Silva Mestrado Nacional Profissional em Ensino de Física, Mossoró, RN, Brasil Escola José de Borba Vasconcelos, Maracanaú, CE, Brasil Carlos Alberto dos Santos Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte, Natal, RN, Brasil E-mail: [email protected] Apresenta-se uma proposta didático-pedagó- gica para abordar tópicos de bioquímica e ter- modinâmica na Educação de Jovens e Adultos (EJA). O conteúdo da proposta pode ser usado em sala de aula no formato de uma unidade de ensino potencialmente significativa (UEPS), a partir de um referencial pedagógico com ele- mentos da teoria de aprendizagem significa- tiva de Ausubel, da concepção freireana do ensino de adultos e das ideias de Vygotsky para o processo de socialização durante a aprendi- zagem. Noções e práticas do método científico podem ser explicitamente tratados como UEPS para o planejamento e execução de experimen- tos com o cozimento de ovos, durante os quais são abordados conceitos de enzima, proteína e lipídio e suas transformações bioquímicas e ter- modinâmicas. ciências da natureza. Pelo perfil dos alu- nos, geralmente em faixa etária superior a 30 anos e com grande intervalo de tem- po sem frequentar ambientes formais de escolaridade, consideramos um equívoco querer tratar conceitos de biologia, física e química da mesma forma como são tra- tados com adolescentes do Ensino Médio. De um modo ou de outro, essa é uma ques- tão que há muito tempo foi discutida por Paulo Freire [4]. Por outro lado, a experiência de vida social dos indivíduos que frequentam a EJA torna cada um receptivo à meto- dologia vygotskiana [5]. Nesse cenário, é possível e desejável organizar uma estratégia de ensino que também tire proveito dos ensinamentos ausubelianos [6-8]. Embora a literatura brasileira perti- nente ao tema apresente propostas com essas três abordagens pedagógicas [9–15], ao nosso conhecimen- to apenas Ramos e Queiroz [16] e Re- kovvsky [17] refe- rem-se a abordagens interdisciplinares co- mo alternativa peda- gógica. Todavia, tais abordagens interdisciplinares não aten- dem ao requisito mais restritivo do processo de ensino-aprendizagem inter- disciplinar, qual seja o tratamento de con- ceitos transversais, aqui considerados como aqueles conceitos presentes em mais de uma das ciências, geralmente com abordagens disciplinares diferentes, ou métodos e técnicas de uma das ciências que facilitem a compreensão conceitual em outra ciência. Um exemplo muito interessante, referente a biologia e física, é apresentado por Thompson e cols. [18]: O curso ensina aos alunos os princípios físicos clássicos que levam a uma com- preensão mais profunda dos fenôme- nos biológicos, incluindo aqueles neces- sários para entender os processos que A Educação de Jovens e Adultos é um espaço especialmente apropriado para a abordagem interdisciplinar de conceitos básicos das ciências da natureza

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Page 1: Introdução ciências da natureza. Pelo perfil dos alu

16 Física na Escola, v. 17, n. 1, 2019Bioquímica e termodinâmica na educação

Introdução

AEducação de Jovens e Adultos(EJA) não é um tema que mobi-lize a comunidade acadêmica

internacional. Trata-se de um problemaespecífico de algumas nações pertencentesao que se costuma denominar TerceiroMundo. A Unesco tem um programadedicado à Educação de Adultos, aplicávela qualquer país, desenvolvido ou não [1],mas a EJA como a conhecemos no Brasilé basicamente um problema de país doTerceiro Mundo [1-3] , e cabe a esses paísesencaminhar soluções apropriadas às suasnecessidades e potencialidades, incluindo-se aí iniciativas referentes à pesquisaeducacional atinente ao contexto da EJA.

Vista na perspectiva de um cenárioabrangente, a EJA tem de um lado queconsiderar a tradiçãosociocultural de umpaís dependente, algoque Paulo Freire jádiscutia no início dosanos 1960 [4], e deoutro lado enfrentaros desafios para onovo milênio [2]. Essas duas partes, porassim dizer, apresentam zonas de super-posição, mas com objetivos educacionaise realidades sociais diferentes. Por exemplo,uma coisa é definir estratégias educacio-nais para jovens e adultos que não tiverama oportunidade de escolaridade na faixaetária própria, e outra coisa bem diferenteé definir estratégias de educação continua-da de adultos escolarizados para adapta-ção a uma sociedade em rápida evoluçãotecnológica.

Não é objetivo deste trabalho discutira questão da interdisciplinaridade no En-sino Médio regular, mas chamar a atençãoe mostrar que, dadas as circunstânciassocioeducativas, a EJA é um espaço espe-cialmente apropriado para a abordageminterdisciplinar de conceitos básicos das

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Felipe Rodrigues da SilvaMestrado Nacional Profissional emEnsino de Física, Mossoró, RN, BrasilEscola José de Borba Vasconcelos,Maracanaú, CE, Brasil

Carlos Alberto dos SantosInstituto Federal de Educação, Ciênciae Tecnologia do Rio Grande do Norte,Natal, RN, BrasilE-mail: [email protected]

Apresenta-se uma proposta didático-pedagó-gica para abordar tópicos de bioquímica e ter-modinâmica na Educação de Jovens e Adultos(EJA). O conteúdo da proposta pode ser usadoem sala de aula no formato de uma unidade deensino potencialmente significativa (UEPS), apartir de um referencial pedagógico com ele-mentos da teoria de aprendizagem significa-tiva de Ausubel, da concepção freireana doensino de adultos e das ideias de Vygotsky parao processo de socialização durante a aprendi-zagem. Noções e práticas do método científicopodem ser explicitamente tratados como UEPSpara o planejamento e execução de experimen-tos com o cozimento de ovos, durante os quaissão abordados conceitos de enzima, proteína elipídio e suas transformações bioquímicas e ter-modinâmicas.

ciências da natureza. Pelo perfil dos alu-nos, geralmente em faixa etária superiora 30 anos e com grande intervalo de tem-po sem frequentar ambientes formais deescolaridade, consideramos um equívocoquerer tratar conceitos de biologia, física equímica da mesma forma como são tra-tados com adolescentes do Ensino Médio.De um modo ou de outro, essa é uma ques-tão que há muito tempo foi discutida porPaulo Freire [4]. Por outro lado, a experiênciade vida social dos indivíduos que frequentama EJA torna cada um receptivo à meto-dologia vygotskiana [5]. Nesse cenário, épossível e desejável organizar uma estratégiade ensino que também tire proveito dosensinamentos ausubelianos [6-8].

Embora a literatura brasileira perti-nente ao tema apresente propostas comessas três abordagens pedagógicas [9–15],

ao nosso conhecimen-to apenas Ramos eQueiroz [16] e Re-kovvsky [17] refe-rem-se a abordagensinterdisciplinares co-mo alternativa peda-gógica. Todavia, tais

abordagens interdisciplinares não aten-dem ao requisito mais restritivo doprocesso de ensino-aprendizagem inter-disciplinar, qual seja o tratamento de con-ceitos transversais, aqui consideradoscomo aqueles conceitos presentes em maisde uma das ciências, geralmente comabordagens disciplinares diferentes, oumétodos e técnicas de uma das ciênciasque facilitem a compreensão conceitualem outra ciência. Um exemplo muitointeressante, referente a biologia e física,é apresentado por Thompson e cols. [18]:

O curso ensina aos alunos os princípiosfísicos clássicos que levam a uma com-preensão mais profunda dos fenôme-nos biológicos, incluindo aqueles neces-sários para entender os processos que

A Educação de Jovens eAdultos é um espaço

especialmente apropriado paraa abordagem interdisciplinar

de conceitos básicos dasciências da natureza

Page 2: Introdução ciências da natureza. Pelo perfil dos alu

17Física na Escola, v. 17, n. 1, 2019 Bioquímica e termodinâmica na educação

ocorrem nas energias térmicas e noslíquidos. Além de fornecer uma com-preensão básica dos princípios físicos,o curso enfoca o desenvolvimento dehabilidades científicas gerais, incluindomodelagem científica, resolução deproblemas, movimentação entre múlti-plas representações científicas e projetoexperimental. [Tradução nossa].

Não surpreende que propostas inter-disciplinares como essa apresentada porThompson e colaboradores sejam tão re-centes. A compartimentalização das ciên-cias da natureza como hoje a conhecemosresulta de processos reducionistas determi-nados pela incapacidade humana em tratara natureza holisticamente. Nas últimasdécadas isso vem sendo superado no nívelda pesquisa científica, mas tem enfrentadonotável oposição no contexto pedagógico.Todavia, a literatura educacional brasileiraapresenta algumas possibilidades deabordagens pedagógicas interdisciplinares,e em se tratando da EJA, a ciência na cozi-nha parece ser um tópico especialmenteapropriado [17, 19-21].

Descreveremos, neste trabalho, expe-rimentos realizados com alunos da EJApara abordar tópicos de bioquímica e ter-modinâmica a partir do cozimento deovos. Todos os experimentos são apresen-tados em vídeos disponíveis em endereçosda seção Outras Fontes.

Temos boas razões para a escolha des-se objeto de trabalho. Em primeiro lugar,experimentos com ovos cozidos permitema abordagem de conceitos importantes debioquímica e termodinâmica. Em segundolugar, o ovo é um dos alimentos mais pre-sentes em nossa dieta. Difícil encontrarum adulto que jamais tenha feito um ovocozido ou frito. Em terceiro lugar, osexperimentos com ovos são suficiente-mente simples para serem executados naslimitadas condições disponíveis na escolaem que a sequência didática foi aplicada.Finalmente, mas não menos importante,uma referência culinária importante: emseu livro Um cientista na cozinha, HervéThis [22, p. 52] citauma frase de Grimodde la Reynière: “O ovoé para a cozinha o queos artigos são para odiscurso, isto é, deuma tão indispen-sável necessidade queo cozinheiro mais há-bil renunciaria à sua arte se lhe fosse proi-bido o uso do ovo”.

Todavia, é importante ter em menteque havendo condições materiais na es-cola, existem inúmeros experimentos culi-

nários apropriados para a discussão deconceitos básicos de bioquímica e termo-dinâmica. Para iniciantes no assunto, valea pena uma leitura da Wikipedia em OutasFontes.

Bioquímica e termodinâmica nocozimento de um ovo

A Fig. 1 exibe o cenário conceitualpara o qual elaboramos a presente sequên-cia didática. Iniciemos pela apresentaçãodos conceitos básicos no contexto experi-mental em que eles foram abordados. Aclara do ovo contém 10% de proteínas(globulina, ovalbumina, ovomucina,conalbumina) e 90% de água. Por outrolado, a gema contém50% de água, 15% deproteínas e 35% delipídios, entre os quaislecitinas e colesterol[22, p. 52-56]. Veja-mos como esses com-ponentes bioquímicosatuam nos processosde cozimento de ovos.

Para o ovo e paraqualquer outro ali-mento, o processo de cozimento tem a verprimordialmente com a transferência decalor da fonte térmica para a superfíciedo alimento, e sua consequente transmis-são para o seu interior. Os cozinheirosexperientes adquirem na prática conheci-mento de como lidar com os parâmetrospertinentes a cada caso. Para determinadotipo de proteína e determinado volume doalimento, eles sabem a temperatura e otempo necessários para a obtenção doponto de cozimento desejado. É assim quesurge a surpreendente regra do descansode grandes peças de carne depois de umcerto tempo de cozimento [23, p. 20].

A energia transferida em função daalta temperatura produz aumento naenergia cinética das moléculas do alimen-to. Esse movimento vibracional é trans-ferido de molécula em molécula, até atin-gir todo o volume do alimento. Esse pro-cesso de transferência de energia sob a for-

ma de calor é bemdescrito pela equaçãode Fourier [24]. Quan-do o cozinheiro expe-riente desliga a fontede calor e aguarda umcerto tempo para des-canso do alimento co-zido, ele age de acordo

com a equação de Fourier, mesmo que nãoo saiba. A partir do momento em que afonte de calor é desligada, a temperaturana superfície começa a diminuir, mas nascamadas internas o processo de trans-

ferência de calor prossegue, e é o tempode descanso que vai determinar o pontodo cozimento.

Vejamos como esse processo se dá nocaso do cozimento de um ovo [22, p. 52,23, p. 11, 25, p. 61]. Existem três modosde cozimento de um ovo popularmenteconhecidos como: ovo frito; ovo cozidoem água fervente, com casca, e ovo pochê,ou ovo cozido em água fervente, sem cas-ca. Qualquer que seja o processo de cozi-mento, o mecanismo tem a ver com adesnaturação das proteínas, que em tem-peratura ambiente encontram-se enrola-das em uma forma mais ou menos esfé-rica. Essa estrutura quase esférica é devida

às forças atômicas nointerior das molécu-las. Quando se fritaou se cozinha umovo, essas proteínas sedesnaturam sob oefeito do calor, ou seja,a temperatura vence abatalha com as forçasmais fracas e as pro-teínas se desenrolam etomam a forma de

fitas [22, p. 53, 25, p. 64]. Essas fitas jun-tam-se e formam uma estrutura sólida;é quando o ovo endurece. Vejamos issomais detalhadamente para cada um dosprocessos mencionados acima.

Bioquímica e termodinâmica doovo cozido

Uma pessoa que vai cozinhar um ovopela primeira vez seguindo a receita clás-sica retira o ovo da geladeira, coloca naágua fria, liga o fogo e aguarda o tempoque lhe disseram ser suficiente, entre 10 e12 min depois que a água começar a fer-ver. O tempo depende do volume de águafervente. Costuma-se também marcar otempo, em torno de 3 min, depois que aágua começa a borbulhar. A primeira coisaque a pessoa pode eventualmente observaré a rachadura da casca. A razão disso éque o ovo foi colocado na água logo depoisde sair da geladeira, alguém lhe ensina. Apessoa apanha outro ovo, tira da geladeiraalguns minutos antes de colocar na água,e mesmo assim poderá observar o mesmodesagradável e inconveniente fenômeno.Por quê?

Além de proteínas e água, o ovo con-tém ar, sobretudo na sua extremidademais larga. Tudo que relatamos noparágrafo anterior tem a ver com a dila-tação térmica do ar no interior do ovo ecom a natureza estrutural da sua casca.Algumas são mais flexíveis e resistentesdo que outras. Colocar ovo gelado oumuito frio na água produz uma expansão

A compartimentalização dasciências da natureza como hoje

a conhecemos resulta deprocessos reducionistas deter-

minados pela incapacidadehumana em tratar a natureza

holisticamente

Experimentos com ovos cozidospermitem a abordagem deconceitos importantes de

bioquímica e termodinâmica.Em segundo lugar, o ovo é umdos alimentos mais presentes

em nossa dieta. Difícilencontrar um adulto quejamais tenha feito um ovo

cozido ou frito!

Page 3: Introdução ciências da natureza. Pelo perfil dos alu

18 Física na Escola, v. 17, n. 1, 2019Bioquímica e termodinâmica na educação

rápida do ar e, dependendo da resistênciada casca, ela pode rachar em vários pon-tos.

Qualquer que seja o caso acima, háduas soluções para se evitar o desagra-dável surgimento daqueles tentáculosbrancos saindo pela casca do ovo (vídeo 1).A solução aerodinâmica é fazer um pe-queno furo na extremidade larga do ovo.Basta um furo de agulha. A solução bio-química é colocar sal e/ou vinagre naágua para aumentar a rapidez de coagu-lação das proteínas da clara. Ao tentar sairpela rachadura, a proteína rapidamentecoagula e fecha a rachadura.

Se o tempo de cozimento ultrapassaros clássicos 15 min, geralmente aconteceuma reação bioquímica de visual e paladardesagradáveis, começando na interfaceentre a clara e a gema e se espalhando portoda a gema. As proteínas da clara liberamum gás chamado sulfeto de hidrogênio[22, p. 56], com aquele odor de ovo podre.Quando esse gás penetra na gema, elereage com o ferro ali presente e se trans-forma em sulfeto de ferro, que tem a coresverdeada.

Bioquímica e termodinâmica doovo pochê

Para fazer do modo como os grandescozinheiros preconizam, o ovo pochê tal-vez seja o mais complicado entre os trêsmodos de preparar ovo que estamosconsiderando aqui. Mas, nosso objetivonão é preparar algo com o refinamento

técnico de Paul Bocuse [26, p. 83) nemdas inúmeras alternativas disponíveis nainternet. Nosso objetivo é inteiramentepedagógico, ou seja, tão somente discutiras reações bioquímicas induzidas pelatemperatura no cozimento de um ovo semcasca em água fervente

A regra básica é colocar o ovo na águaem ebulição. Que fenômenos térmicos ebioquímicos podemocorrer em tal situa-ção? A energia cinéticadas moléculas daágua, aumentada pelatemperatura, é trans-ferida às moléculas doovo, cujas proteínascomeçam a se desna-turar nas tempera-turas típicas de cadauma. Em princípio,esse processo é idêntico ao que ocorre noovo cozido com casca e no ovo frito. Deacordo com Golombek e Schwarzbaum[25, p. 64], “na clara, as proteínas se des-naturalizam a temperaturas entre 61 °Ce 82 °C, enquanto as da gema o fazem auma temperatura intermediária”. Assim,as primeiras proteínas a se desnaturali-zarem são algumas da clara. Depois as dagema e finalmente as outras da clara.

Quando o ovo é colocado na água emebulição, a tendência da clara é se espalhar,antes que suas proteínas se desnaturali-zem. A prática de fazer um redemoinhona água é para forçar a clara a ficar pró-

xima à gema. Outra forma é realizar ocozimento em um meio ácido. Por exem-plo, colocando um pouco de vinagre naágua. As proteínas da borda da claradesnaturam-se rapidamente e impedem aexpansão da clara na água (vídeo 2). Épor isso que o ovo pochê deve ser prepa-rado em uma mistura de água, sal evinagre.

Talvez a caracte-rística mais populardo ovo pochê seja ofato de a gema ficarenvolvida pela clara,de modo que é possí-vel obter a clara com-pletamente desnatu-rada e a gema emdiferentes graus dedesnaturação ou detextura (vídeo 2). O

redemoinho contribui para esse resultado.Uma alternativa mais simples é fazer oovo com uma frigideira tampada. O va-por produzido pela água fervente resul-tará em uma gema envolta por uma ca-mada de clara desnaturada. A textura dagema varia com o tempo de descanso de-pois que a fogo é desligado, como se podever no vídeo 2. Quanto mais tempo sobvapor, com o fogo desligado, mais sólidaficará a gema.

Não custa lembrar que estamos tra-tando de experimentos realizados emcondições precárias, sem termômetro paramedir temperatura. Mesmo assim, os

Figura 1: Mapa conceitual sobre tópicos de bioquímica e termodinâmica do cozimento do ovo.

Para fazer do modo como osgrandes cozinheiros

preconizam, o ovo pochê talvezseja o mais complicado entre os

três modos de preparar ovoque estamos considerando

aqui. Portanto o leitor não podese esquecer de que nossoobjetivo é inteiramente

pedagógico

Page 4: Introdução ciências da natureza. Pelo perfil dos alu

19Física na Escola, v. 17, n. 1, 2019 Bioquímica e termodinâmica na educação

resultados, do ponto de vista pedagógico,são amplamente satisfatórios. Usamos ascondições físicas visíveis para definir ascondições experimentais. Por exemplo,colocar o ovo em água borbulhando inten-samente, para definir temperatura pró-xima de 100 °C. Colocar o ovo quandosurgirem as primeiras bolhas na água,para definir temperatura em torno de70 °C1 .

No caso do ovo pochê em frigideirafechada, definimos o tempo de cozimentopelas condições do vapor d’água, ou sejadesligamos o fogo quando o vapor conti-ver quantidade visível de proteínas da cla-ra desnaturada (vídeo 2). Depois marca-mos diferentes tempos de descanso, como fogo desligado, para obter diferentes tex-turas.

Um experimento interessante paraverificar o efeito da temperatura na desna-turação das proteínas da clara é o seguinte(vídeo 2): colocar o ovo em água fria. Umaparte da clara é observada como uma regiãomais densa em volta da gema. Outra parteestá espalhada na panela. Essa parte que seencontra mais afastada da gema não podeser identificada a olho nu porque se tratabasicamente de água e encontra-se embaixa densidade nesses pontos maisafastados da gema. À medida que atemperatura da água aumenta, as pro-teínas da clara começam a se desnaturar,tornando-a mais den-sa e visualmente bran-ca. No vídeo 2 exibi-mos uma situação es-pecialmente impor-tante para a discussãoem sala de aula. Notempo de gravação4:41, observa-se umasuperfície branca pra-ticamente homogênea,exceto em uma peque-na região acima dagema. Isso significaque a parte externa da clara está comple-tamente desnaturalizada, exceto aquelasobre a gema. Esse fenômeno é exatamenteo mesmo relatado a seguir para o caso doovo frito. A região próxima à gema se des-natura mais tarde por causa da proteínaovomucina que fica na interface entre aclara e a gema. Na sequência do vídeo,observa-se toda a clara desnaturada, inicial-mente com aparência homogênea, que sedesfaz pelo fato de a água entrar em ebu-lição.

Bioquímica e termodinâmica doovo frito

Não há unanimidade entre comensaissobre o que significa ovo frito perfeito. Para

alguns, essa classificação aplica-se ao ovocom clara opaca, homogeneamente bran-ca e gema mole. Para outros, a clara deveter a borda levemente queimada, e há osque preferem a gema bem dura. E porincrível que pareça, há também aquelesque apreciam o ovo frito com a clara com-pletamente queimada. Vamos ver como abioquímica e a termodinâmica determi-nam cada uma dessas condições.

No ovo cru (vídeo 2), a clara é umlíquido transparente por causa da suacomposição (90% de água). Ao passar poralgum procedimento térmico, e dependen-do da temperatura e do tempo de fritura,a clara passa a ter uma consistência sólida,podendo apresentar três regiões bem defi-nidas (Fig. 2). Uma borda castanha, umagrande região completamente sólida ebranca e uma pequena região, adjacenteà gema, branca e macia, ou seja, menosrígida que a parte externa. Vejamos porque essas três regiões apresentam esses as-pectos (vídeo 3).

Com o aumento da temperatura, aágua presente na clara evapora e o açúcarcombina-se com as proteínas formandoa camada castanha, popularmente conhe-cida como clara queimada. Esse processocomeça na borda externa do ovo e evoluipara o centro. Uma forma de evitar isso éacrescentar um pouco de água na frigi-deira no meio do cozimento e tampá-la.

Uma vez que a águatem grande capaci-dade de absorver ca-lor, esse procedimentofaz com que a claraseja cozida homoge-neamente e sem quei-madura [25, p. 66].

Na interface entrea clara e a gema, háuma proteína cha-mada ovomucina,cuja função é aumen-tar a viscosidade da

clara naquela região. E por causa dessafuncionalidade ela coagula mais dificil-mente que as outras proteínas da clara.Colocando água como no caso anterior, épossível deixar a clara homogeneamentecozida, mas, para quem prefere um ovocom a gema mole, a borda da clara leve-mente queimada e o resto da clara homo-geneamente cozida, com a interface clara-gema completamente coagulada, é precisoter paciência e habilidade para seguir umprocedimento que baixe a temperatura dedesnaturação das proteínas da clara. Issoé feito com sal ou algum ácido (vinagreou suco de limão). Para ter um ovo fritonessas condições, é necessário colocar maissal na interface clara-gema [22, p. 65].

UEPS para abordar os tópicosmencionados acima

Uma unidade de ensino potencial-mente significativa (UEPS) foi elaborada,de acordo com a metodologia sugerida porMoreira [27], para abordar os tópicos dis-cutidos acima em uma turma de alunosda EJA, no horário noturno da Escola Joséde Borba Vasconcelos, em Maracanaú,Ceará. De acordo com o INEP, a escola temIndicador de Nível Socioeconômico (INSE)médio. A turma continha 19 homens e13 mulheres, na faixa etária de 19 a 50anos, sendo que apenas 18 alunos fre-quentaram as aulas regularmente.

De acordo com as diretrizes curricu-lares do Estado do Ceará, os conteúdos debiologia, física e química são tratados naEJA por meio da disciplina Ciências da Na-tureza. O professor que aplicou a UEPS,co-autor do presente trabalho e narradordos vídeos (FRS), organizou o conteúdoda disciplina de modo a enfatizar osconceitos pertinentes ao tema da UEPS.Ou seja, antes da aplicação da UEPS osalunos estudaram os conceitos básicos debiologia, física e química, com especialatenção aos conceitos de energia, proteína,calor, temperatura e leis da termodinâ-mica.

O conteúdo da UEPS foi distribuídoem 16 aulas com o objetivo de abordar osconceitos a partir de procedimentos simi-lares a uma pesquisa científica, utilizandoexperimentos com o cozimento de ovos,reproduzidos nos vídeos 1, 2 e 3, apresen-

Figura 2: Aspecto da clara de um ovo frito.A borda externa encontra-se carameliza-da. A região intermediária está totalmentedesnaturada, enquanto a interface gema-clara está parcialmente desnaturada.

Não há unanimidade entrecomensais sobre o que significa

ovo frito perfeito. Para cadapessoa pode haver um ponto

ótimo: clara homogeneamentebranca e opaca com gemamole; clara com a borda

levemente queimada ou aindaa clara completamente

queimada. A bioquímica e atermodinâmica determinamcada uma dessas condições

Page 5: Introdução ciências da natureza. Pelo perfil dos alu

20 Física na Escola, v. 17, n. 1, 2019Bioquímica e termodinâmica na educação

tados acima. Detalhes da aplicação daUEPS, como situações-problema e as aná-lises dos alunos são apresentados na dis-sertação de mestrado de um dos autores(FRS) [28]. Apresentaremos na sequênciaapenas as informações mais relevantes daaplicação da UEPS e destacaremos algunsrelatos dos alunos.

É importante res-saltar o que foi men-cionado acima: as si-tuações-problema ini-ciais da UEPS emulamos procedimentosgeralmente adotadospor cientistas ao le-vantarem suas hipóte-ses e questões de tra-balho no início de umprojeto de pesquisa.Além desse objetivoemulador, as situa-ções-problema servem para a definiçãodaquilo que Ausubel chama de organi-zadores prévios, ou organizadores avan-çados [27-29].

Para discutir as situações-problema erealizar os experimentos planejados naUEPS, a turma foi dividida em quatro gru-pos, cada um com um líder eleito entre seuspares e que foi o responsável por falar pelaequipe. Como os conceitos básicos tinhamsido discutidos no semestre anterior, assituações-problema da UEPS restringiram-se aos tópicos pertinentes à bioquímica e àtermodinâmica no processo de cozimentode um ovo. Ao longo das quatro primeirasaulas, os grupos discutiram e relataramsuas experiências e conhecimentos arespeito das situações-problema.

Depois dessas quatro aulas, os grupospassaram a realizar experimentos (todosreproduzidos nos vídeos supramencio-nados) em torno das situações-problemaexperimentais, e mais uma vez o profes-sor chamou a atenção para o fato de queesse procedimento, de discutir as situa-ções-problema, simula uma etapa da ati-vidade de pesquisa científica na qual ocientista reflete sobre suas hipóteses emtorno da questão a ser investigada.Salienta-se também que, na prática, nemsempre a questão a ser investigada foi pla-nejada pelo cientista - muitas vezes elasurge por acaso, como resultado de algumexperimento ou cálculo realizado poralguém, nem sempre o próprio cientista.Enfim, aproveita-se a oportunidade parauma breve discussão a respeito da natu-reza da ciência [30-32].

Por que a casca do ovo poderachar durante o cozimento?

Após uma breve discussão sobre

dilatação térmica do ar, tema que já haviasido abordado no semestre anterior, osalunos realizaram experimentos com ocozimento de um ovo para abordar aquestão que dá título a esta seção. Paraauxiliar os alunos em suas discussões, oprofessor apresentou aspectos básicos da

biologia do ovo, taiscomo os compostospresentes em suacomposição e suasrespectivas funções.

Em nenhum dosexperimentos realiza-dos pelos alunosobservou-se a racha-dura das cascas dosovos. Os alunos logoconcluíram que issotem a ver com a con-sistência das cascasdos ovos utilizados e

com o fato de que em todos os experi-mentos o ovo foi colocado em água fria enão em água fervente. Por causa disso, oúnico aspecto analisado pelos alunos nessaparte inicial dos experimentos foi a libe-ração de gases através da casca do ovo(vídeo 1). Com uma agulha, os alunosfizeram um furo na extremidade maislarga do ovo. Observaram que o númerode bolhas é maior nessa extremidade doque em qualquer parte, como era de seesperar.

Conforme já discutido acima, paraevitar a saída da clara pelas rachadurasda casca do ovo, uma alternativa é realizaro cozimento em meio ácido, com adiçãode sal e/ou vinagre.Optamos por testar osal. O efeito sobre aclara não foi obser-vado porque nenhumovo teve a casca ra-chada. No entanto, oexperimento resultouem uma observaçãoque não havia sidoprevista pelos profes-sores, nem sua discus-são fazia parte do pla-nejamento da UEPS.Todos os grupos no-taram que, ao colocarsal na água, demoroumais a aparecerem asbolhas. O Grupo 2afirmou que “O sal interfere no tempo decozimento do ovo.” Eles não tinhamelementos experimentais para fazer essaafirmação, que foi apresentada por umaaluna, cozinheira profissional. Ela sabia,de sua experiência na cozinha, que o saleleva o ponto de ebulição da água, sem

conhecer esse conceito. A discussão emsala sobre essa questão foi muito enrique-cedora.

Embora não estivesse prevista naUEPS, o professor aproveitou a oportuni-dade para fazer um experimento para de-monstrar o efeito do sal no ponto de ebu-lição da água, reproduzido no vídeo 1, notempo 0:46. Foi um reforço de autoestimavisível no semblante dos alunos.

Bioquímica e termodinâmica doovo cozido

Inicialmente, cada grupo cozinhouum ovo seguindo um procedimento defi-nido pelos seus componentes. Os procedi-mentos foram detalhadamente registra-dos em apontamentos e fotografias. Osapontamentos foram apresentados oral-mente pelo líder do grupo. Depois decozidos, os ovos foram descascados e cor-tados ao meio para o exame de sua textu-ra. Em um processo dialógico, toda aclasse discutiu os resultados obtidos pelosdiferentes grupos.

Depois de realizarem e discutiremseus procedimentos usuais, os alunos pas-saram a realizar os procedimentos defi-nidos na UEPS [28].

Os procedimentos experimentaisdefinidos na UEPS envolveram a combi-nação de três variáveis: temperaturainicial da água, tempo de cozimento etempo de resfriamento do ovo cozido. Ouseja, são procedimentos que simulam ati-vidades de pesquisa científica, comdefinição de parâmetros relevantes e for-mas adequadas de controle. Todavia, como

se trata de um expe-rimento pedagógico,não há necessidade desubmeter os parâ-metros envolvidos auma ampla faixa devariação, nem de tra-balhar com valoresprecisos. Por exemplo,as temperaturas sãoestimadas a partir doestado físico da água.Temperatura de águagelada, de água cor-rente e de água emebulição. Da mesmaforma, resfriamentorápido ou lento é de-terminado pelo esta-

do físico do ambiente no qual o ovo cozidoé imerso. Resfriamento rápido se dáquando a água é gelada. Resfriamento me-nos rápido se a água é corrente e res-friamento lento se o ovo resfria ao ar. Oimportante em uma intervenção didáticaé que o experimento propicie a

As situações-problema iniciaisda UEPS emulam os

procedimentos geralmenteadotados por cientistas ao

levantarem suas hipóteses equestões de trabalho no início

de um projeto de pesquisa.Além desse objetivo emulador,as situações-problema servempara a definição daquilo que

Ausubel chama deorganizadores prévios, ouorganizadores avançados

Os procedimentosexperimentais definidos para o

cozimento envolveram acombinação de três variáveis:temperatura inicial da água,

tempo de cozimento e tempo deresfriamento do ovo cozido. Astemperaturas são estimadas apartir do estado físico da água.Temperatura de água gelada,

de água corrente e de água emebulição. Resfriamento rápido

se dá quando a água é gelada.Resfriamento menos rápido se

a água é corrente eresfriamento lento se o ovo

resfria ao ar

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21Física na Escola, v. 17, n. 1, 2019 Bioquímica e termodinâmica na educação

apropriação conceitual pertinente, e queisso resulte em aprendizagem signifi-cativa.

Os experimentos anteriores mostra-ram que cozimento durante 15 min a par-tir da água fria deixa as proteínas da gemacompletamente desnaturadas. Vimosacima que as proteínas do ovo se desnatu-ram em temperaturas entre 61 °C e 82 °C.Portanto, teoricamente, se deixarmos umovo em temperatura abaixo de 70 °C, suasproteínas não se desnaturam completa-mente, a menos que algo aconteça noambiente em que ele se encontra, porexemplo, se mudar o pH, ou se houvervigorosa agitação.

Uma situação-problema foi definidapara examinar essa questão. Sabe-se queas primeiras bolhas são liberadas pelaágua por volta de 70 °C. Então, se umovo for deixado em água fervente semborbulhar, suas proteínas terão dificul-dade para se desnaturalizarem completa-mente. Os alunos fizeram três experimen-tos (usaremos as notações da UEPS):

A9a: Cozimento durante 10 min, apósa água começar a borbulhar, com res-friamento em água corrente.

A9b: Repetir o procedimento A9a, com15 min, com resfriamento em águacorrente.

A9c: Cozimento durante 15 min combaixa temperatura, ou seja, tempera-tura inferior à temperatura de naturali-zação das proteínas da gema, com res-friamento em água corrente. Umaaproximação dessa temperatura podeser alcançada colocando água fria sem-pre que as primeiras bolhas surgem naágua. Isso faz com que a temperaturaseja mantida em torno de 70 °C.

O experimento A9b serviu como con-trole, e como tal forneceu resultado simi-lar àquele obtido na aula anterior. Um re-

sultado típico do experimento A9c éapresentado na Fig. 3.

O aspecto da gema na Fig. 3 sinalizaduas situações no processo de cozimento.A maior parte da gema tem coloraçãovermelha e textura gelatinosa, indicandoque as proteínas não estão completamentedesnaturadas. Uma pequena parte,observada na lateral esquerda da fotogra-fia, tem coloração amarela clara, associadaàs proteínas desnaturadas. Ou seja, o pro-cedimento de colocar água fria sempre quea água fervente começasse a borbulhar,de fato produziu temperatura média emtorno de 70 °C. Outra conclusão impor-tante extraída desse resultado é que, mes-mo com longo tempo de cozimento(15 min), as proteínas não se desnaturamse a temperatura for inferior a 75 °C.

Bioquímica e termodinâmica doovo pochê

Os experimentos com o ovo pochêpossibilitam ao mesmo tempo a explora-ção de várias questões importantes sobrea bioquímica e a termodinâmica envolvi-das no cozimento e a discussão de questõesrelacionadas com o controle de variáveisno método científico.Os parâmetros ter-modinâmicos que de-terminam os resulta-dos bioquímicos sãoessencialmente tem-peratura e tempo. Arigor, será necessárioter algum equipamento para medir a tem-peratura, por exemplo, um termômetro.Mas, não tendo esse equipamento, o quefazer? Sabe-se que a temperatura dependedas condições físico-químicas em que sedá o cozimento e sua elevação provocaefeitos visuais. Por exemplo, quando aágua fervente começa a apresentar asprimeiras bolhas, a temperatura estápróxima de 70 °C. Quando ela entra emebulição a temperatura é aproximada-mente 100 °C. Então, temperatura entre70 °C e 100 °C pode ser estimada peloaspecto da água borbulhando. Por exem-plo, para realizar um experimento emtemperatura próxima de 70 °C, podemosusar o artifício de colocar água fria sempreque aparecerem as primeiras bolhas naágua fervente.

No caso do ovo pochê com frigideiratampada, o único parâmetro controlável éo tempo, pois o ambiente de cozimento nãoé visível, a menos que a tampa da frigideiraseja de vidro. Empiricamente, sabe-se queé possível controlar a textura da gema se ofogo for interrompido quando o vapor deágua que ocupa todo o ambiente contiverquantidade visível de proteínas da clara

desnaturadas. Isso se manifesta pela pres-são que o vapor faz na tampa. Se a tampafor suficientemente leve, o efeito é visível.Se houver uma fresta entre a tampa e afrigideira isso é visível pelo vapor que es-capa. Se não houver nem uma nem outracondição, o cozinheiro terá que deter-minar por tentativa e erro o momento emque o vapor contém proteínas desna-turadas. Em alguns dos nossos experi-mentos usamos como tampa uma fri-gideira menor, porque permite a visua-lização do estado físico-químico desejado.

Depois de interrompido o fogo, o ovopermanece no ambiente fechado duranteum intervalo de tempo necessário para aobtenção da textura desejada. Deve-sedeterminar esse tempo empiricamente, ouseja, repetir o processo com diferentestempos de resfriamento e observar atextura obtida. Por exemplo, texturas queconsideramos interessantes foram obtidascom tempos de resfriamento entre 60 s e120 s.

Portanto, esses experimentos com ocozimento de ovos possibilitam a discus-são do que significa procedimento cientí-fico. Ou seja, no procedimento científico

há necessidade de defi-nir as variáveis impor-tantes do fenômenosob investigação, osprocessos de medida eseus níveis de apro-ximação e as tenta-tivas empíricas para

controlar as variáveis.

Bioquímica e termodinâmica doovo frito

De modo similar ao caso do ovo cozi-do, na aula sobre o ovo frito os alunosfritaram ovos de acordo com procedi-mentos definidos por cada grupo. Consi-derando o que muitos cozinheiros classifi-cam como ovos fritos perfeitos, nenhumgrupo obteve bons resultados. Todos osovos ficaram com as claras caramelizadas.Um dos grupos virou o ovo na metadedo procedimento. Três grupos fritaram osovos em menos de 2 min. Apenas um gru-po ultrapassou esse tempo. Nesse caso,depois de 1,5 min eles furaram a gema edeixaram o ovo fritando por mais2,5 min. Justificaram o furo para obteruma gema dura, mas a gema abriu emisturou-se com a clara. No vídeo 3 mos-tramos como obter gema intacta, comdiferentes texturas.

Durante duas aulas os alunos reali-zaram experimentos com as receitasdefinidas na UEPS. Os três primeiros expe-rimentos tiveram como objetivo discutira questão da clara queimada. Conforme

Figura 3: Textura de um ovo cozido emtemperatura de aproximadamente 70 °C,durante 15 min.

Mesmo com longo tempo decozimento (15 min), as

proteínas da gema não sedesnaturam se a temperatura

for inferior a 75 °C

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22 Física na Escola, v. 17, n. 1, 2019Bioquímica e termodinâmica na educação

discutimos no vídeo 3, essa caramelizaçãoé consequência da evaporação da águapresente na clara. Isso implica em umareação química do açúcar (sempre presen-te nos organismos biológicos) com as pro-teínas.

Durante os experimentos, os alunosaprenderam como obter ovo frito com ge-ma intacta e com textura variando decremosa a endurecida, mas não embran-quecida. Ou seja, é possível obter umagema dura com tonalidade na faixa dovermelho. Todos osovos foram fritos mis-turando um pouco deágua ao óleo fervente.Para obter uma claralivre de caramelização,o ovo pode ser retiradoao final de 3 min, ouao final de 4 min,sendo que, neste caso, o fogo é mantidodurante 2 min com a frigideira destam-pada, e o ovo permanece mais 2 min nafrigideira tampada. Esse tempo de descansocom a frigideira tampada define a texturada gema. Outra possibilidade é manter afrigideira tampada durante todo oprocesso (vídeo 3).

Nesses experimentos com ovo frito,três parâmetros são muito importantes:temperatura, tempo e ambiente de cozi-mento. Diferentes valores e condiçõesdesses parâmetros definem a textura doovo frito. Todavia, são as condições quedefinem o sabor o que mais interessou aosalunos. Discutiremos isso mais adiante,depois que discutirmos os aspectos maisaparentes e controláveis dos experimentos.

Os ovos foram fritos em dois ambien-tes diferentes. Um com a frigideira desco-berta e o outro com a frigideira coberta.Portanto, duas condições de vapor sobreos ovos. Quando a frigideira é tampada,surge uma camada branca sobre a gema(vídeo 3, no tempo 3:58), resultante dadesnaturação das proteínas da clarapresentes no vapor. Isso não acontecequando a frigideira está descoberta porqueo contato com o ar não permite que atemperatura superficial atinja o valormínimo para a desnaturação das proteínasda clara, isto é, 60 °C.

A questão do sabor, que suscitou pro-longada discussão durante a aplicação daUEPS, é um assunto antigo e complexo.Vem lá da Grécia de Aristóteles, mas nuncadeixou de ocupar os chefs e cientistasmodernos [22, p. 16-30, 23, p. 122-141].Embora interessante e pertinente, nãoachamos conveniente abordar esse assun-to, em toda a sua extensão, na UEPS queaqui estamos propondo. Apenas os aspec-tos mais relevantes do ponto de vista da

bioquímica e da termodinâmica foramtratados.

O sabor vem de uma reação bioquí-mica que se processa quando o alimentoentra em contato com as nossas papilas.As células das papilas possuem receptoresdas moléculas sápidas, ou seja das molé-culas que dão a sensação de sabor. Quemoléculas são essas? São moléculas volá-teis ou solúveis na água. Só é sápida amolécula que tem essas propriedades. Ditode outro modo, uma molécula só provoca

a sensação de sabor seela puder se ligar a re-ceptores presentes nasuperfície de nossaspapilas. É assim quese processa a reaçãobioquímica. Porexemplo, o sabor sal-gado vem principal-

mente por causa do íon sódio. O cloro,que forma o sal de cozinha (cloreto desódio, NaCl), tem o papel de estimular osreceptores, mas a reação que provoca asensação de salgado é com o sódio. Damesma forma, o vinagre, CH3COOH, pro-voca o sabor ácido por causa da reaçãodos receptores com íons de hidrogênio.

É importante ter em mente que o pro-cesso da sensação de sabor é mais com-plexo do que uma simples reação bioquí-mica. Ao lado da reação, o cérebro contacom o aroma para formar a sensação desabor. É por isso que óleos e gorduras dãosabor aos alimentos. A maioria dasmoléculas aromáticas dissolve-se facil-mente em óleos e gorduras, mas não emágua [23, p. 132-141].

Teste surpresa e testemunho dosalunos

Em uma das últimas aulas de apli-cação da UEPS, o professor surpreendeuos 11 alunos presentes solicitando que es-crevessem o que tinham aprendido atéaquele momento. Os três melhores relatossão resumidamente apresentados a seguir.

Relato 1

O ovo contém proteínas e gorduras ne-cessárias ao corpo humano. A compo-sição do ovo é de cerca de 85% de água,e o restante é formado por proteínas.Quando o ovo é aquecido, as moléculasse movimentam mais rápido e osátomos de ferro da gema e de enxofreda gema começam a reagir. Quantomais aquece o ovo, mais verde fica agema. A casca do ovo quebra porqueno aquecimento o ar dentro do ovo sedilata e essa dilatação pode romper acasca. Quanto mais se aquece maior

será a dilatação. Uma das propriedadesda clara, por causa de suas proteínas éa de absorver o ar. Outro detalhe é quecada raça de galinha possui uma colo-ração diferente na casca do ovo. Agoracomecei a compreender a ciência doovo. A transmissão de calor e dilataçãodos materiais e dos gases. As substân-cias químicas e a biologia do ovo.

Relato 2

Com relação ao nutriente do ovo, ne-nhum ovo possui carboidratos. Ovopossui somente água (mais de 80%),gordura boa, muita albumina e ovo-mucina. Existe muita física no cozi-mento do ovo. Com certeza a propa-gação de calor. Pois o fogo conduz calorpara a panela e a panela para água ouo óleo e assim por diante. A gema de-mora mais tempo pra cozinhar porqueo calor específico dela é maior que o daclara (acho que é isso). A química tam-bém está presente no ovo. O ovo possuimuito enxofre e ferro. A maior quanti-dade de nutrientes está na gema.Quanto mais vermelha for a gemamaior é a quantidade de ferro. Comcerteza a biologia também está. Lem-brando que na formação da galinha edo ovo, ovo é o óvulo.

Relato 3

O ovo possui muito zinco, sódio e ferro.Todo o colesterol que está no ovo ficana gema. Esse colesterol não é tão peri-goso. O ovo é praticamente água e pro-teína. O ovo auxilia também na perdade massa. Com relação ao cozimentodo ovo, a clara cozinha aos 60 °C e agema aos 70 °C. A biologia do ovo éfundamental. Nesse curso aprendimuita física e química. Apesar da mi-nha idade. Entendi desnaturação, dila-tação, propagação, substâncias quími-cas, proteínas, enzimas, lipídeos,fenômenos físicos e químicos utilizan-do o ovo. Muito bom. É muito impor-tante juntar a minha prática na cozi-nha com a teoria da ciência.

Comentários finais

Na última aula do curso, o professorsolicitou que os grupos respondessem asquestões que lhes foram apresentadas noinício da aplicação da UEPS. As respostasna íntegra são apresentadas na dissertaçãode FRS [28], mas achamos interessantedestacar algumas delas, pela relevânciaque têm como indicadoras do nível deaproveitamento da turma. Por exemplo,o Grupo 4 relatou:

Nesses experimentos com ovofrito, três parâmetros são muito

importantes: temperatura,tempo e ambiente de cozi-mento. Diferentes valores e

condições desses parâmetrosdefinem a textura do ovo frito

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23Física na Escola, v. 17, n. 1, 2019 Bioquímica e termodinâmica na educação

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Outras fontes

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Vídeo 2: https://www.youtube.com/watch?v=5U9WXk3iRWI&feature=youtu.be

Vídeo 3: https://www.youtube.com/watch?v=DGbX_rHFCeo&feature=youtu.be

Wikipedia: https://en.wikipedia.org/wiki/Molecular_gastronomy

Dizer o que é um ovo perfeito ou fazerum ovo perfeito é complicado. Dependemuito de quem faz ou de quem sabo-reia. A primeira dica é vedar a panela emanter a temperatura. O ar influencia(é o que a gente acha). Outro detalhe éo tipo de panela (faz a diferença). Agente percebeu que o ovo deve ficarcom a gema nem mole e nem dura. Poisfica mais saborosa e esteticamentebonita (é a nossa opinião).

Os grupos 1-3 apresentaram respos-tas muito interessantes sobre o porquê daeventual rachadura da casca do ovo du-rante o cozimento:

Grupo 1: Quando a gente aquece aágua, o que é relativamente rápido,ocorre um choque térmico com o ovo.A casca é delicada e acaba trincando. Aclara não está cozida e acaba escorrendopara fora do ovo, o que explica a ba-gunça que se forma dentro da panela.

Grupo 2: Ocorre a expansão térmica.A clara e a gema que estão dentro dacasca, como tudo que é aquecido vãose expandir, ou seja, vão aumentar devolume ao se solidificar. Porem, a cascado ovo não se expande da mesma for-ma. Isso faz com que a casca muitasvezes rache.

Grupo 3: A parte mais larga do ovocontém ar. Se esse ar tiver comoescapar, vai sobrar mais espaço paragema e para clara. Então, com o aque-cimento ocorre a dilatação e o ovo nãoracha porque terá espaço para a gemae para a clara.

Sobre a função do calor no cozimento,o Grupo 3 respondeu:

O calor do cozimento faz com que asmoléculas de albumina e as outrasproteínas que compõem o ovo sedesnaturem. O calor rompe as ligaçõesquímicas das moléculas do ovo.

Com a aplicação dessa UEPS paraabordar tópicos de bioquímica e termodi-nâmica na Educação de Jovens e Adultos(EJA), estamos convencidos da exequibi-lidade de projetos pedagógicos interdisci-plinares dirigidos a essa população, tendocomo referencial teórico a teoria da apren-dizagem significativa de Ausubel, comelementos importantes da concepção frei-reana para o ensino de adultos, bem comodas ideias de Vygotsky para o processo desocialização durante a aprendizagem. Osalunos apropriam-se de conceitos impor-tantes para o seu cotidiano, de um modolúdico que supera o cansaço de um dia de

trabalho, e tomam conhecimento por meio de exercícios práticos de noções do métodocientífico.

Nota1https://www.if.ufrgs.br/novocref/?contact-pergunta=bolhas-saem-da-agua.