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16 Introdução 0.1 ‘Aÿeÿe a jù wön lô nán’ ou a identidade em pauta Quando os yorubanos fazem músicas como a seguinte cantiga popular, com suas letras aparentemente inocentes: ‘Aÿeÿe a jù wön lô nán o è/Aÿeÿe a jù wön lô nán,/Igba iròré o ò, kò t’okan àparò/Aÿeÿe a jù wön lô nán’ – o que, em tradução livre, significa algo assim: O nosso saber-fazer é tão bom, que acabamos nos saindo melhor do que eles. Duzentos grilos nunca vão igualar a um único perdigão. Por isso que somos melhores do que eles! quer se admita, quer não, eles estão deixando clara a sua noção de alteridade. Essencialmente 1 , toda identidade é pautada sobre a questão da alteridade. Isso vale para dizer que, a identidade negra é pautada sobre a alteridade dos negros e das negras, sejam quais forem as especificidades do tempo e do espaço nas quais se procura definir tal identidade. Dentro do espaço que hoje ficou consagrado como ‘O Atlântico Negro’ (Gilroy, 1994), há três categorias de identidade negra. A primeira corresponde à identidade negro- africana, composta de uma riquíssima diversidade étnica e cultural que marca o próprio continente africano. A segunda categoria diz respeito à identidade afro-latina e afro-caribenha, dotada, também, de uma rica diversidade. A última categoria é aquela que se pode chamar, por falta de uma nomenclatura melhor, de identidade afro-metropolitana. Essa se refere à identidade de indivíduos negros e negras que habitam as ‘periferias do poder’ nas grandes metrópoles do primeiro mundo – Nova York, Berlim, Londres, Amsterdã e Paris, dentre outros. Embora haja uma ligação histórica, de escravidão e de colonialismo, que perpassa a formação da identidade das três categorias, observa-se uma diferença fundamental na maneira pela qual cada categoria encara a sua condição identitária. Vale lembrar, em primeiro lugar, que, enquanto a primeira categoria é composta por negros que moram em 1 Aqui, e em qualquer outra parte da tese, o meu uso da palavra “essencial”, ou seus derivados adjetivais ou adverbiais, nada tem a ver com o conceito de “essencialismo”, especificamente, no que diz respeito à sua acepção como denotando “pureza”, uma categoria que tenha continuado intocada ao longo do tempo e/ou do espaço, enfim, que seria imutável.

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Page 1: Introdução 0.1 ‘Aÿeÿe a jù wön lô nán’ ou a ... Félix... · religiosas, mas também de outras expressões culturas e literária. Pelo fato de a cosmovisão e a filosofia

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Introdução

0.1 ‘Aÿeÿe a jù wön lô nán’ ou a identidade em pauta

Quando os yorubanos fazem músicas como a seguinte cantiga popular, com suas

letras aparentemente inocentes: ‘Aÿeÿe a jù wön lô nán o è/Aÿeÿe a jù wön lô nán,/Igba

iròré o ò, kò t’okan àparò/Aÿeÿe a jù wön lô nán’ – o que, em tradução livre, significa algo

assim: O nosso saber-fazer é tão bom, que acabamos nos saindo melhor do que eles.

Duzentos grilos nunca vão igualar a um único perdigão. Por isso que somos melhores do

que eles! – quer se admita, quer não, eles estão deixando clara a sua noção de alteridade.

Essencialmente1, toda identidade é pautada sobre a questão da alteridade. Isso vale

para dizer que, a identidade negra é pautada sobre a alteridade dos negros e das negras,

sejam quais forem as especificidades do tempo e do espaço nas quais se procura definir tal

identidade.

Dentro do espaço que hoje ficou consagrado como ‘O Atlântico Negro’ (Gilroy,

1994), há três categorias de identidade negra. A primeira corresponde à identidade negro-

africana, composta de uma riquíssima diversidade étnica e cultural que marca o próprio

continente africano.

A segunda categoria diz respeito à identidade afro-latina e afro-caribenha, dotada,

também, de uma rica diversidade. A última categoria é aquela que se pode chamar, por falta

de uma nomenclatura melhor, de identidade afro-metropolitana. Essa se refere à identidade

de indivíduos negros e negras que habitam as ‘periferias do poder’ nas grandes metrópoles

do primeiro mundo – Nova York, Berlim, Londres, Amsterdã e Paris, dentre outros.

Embora haja uma ligação histórica, de escravidão e de colonialismo, que perpassa a

formação da identidade das três categorias, observa-se uma diferença fundamental na

maneira pela qual cada categoria encara a sua condição identitária. Vale lembrar, em

primeiro lugar, que, enquanto a primeira categoria é composta por negros que moram em

1 Aqui, e em qualquer outra parte da tese, o meu uso da palavra “essencial”, ou seus derivados adjetivais ouadverbiais, nada tem a ver com o conceito de “essencialismo”, especificamente, no que diz respeito à suaacepção como denotando “pureza”, uma categoria que tenha continuado intocada ao longo do tempo e/ou doespaço, enfim, que seria imutável.

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sociedades reconhecidamente africanas, a segunda e a terceira categorias são compostas de

negros e afro-descendentes em situações diaspóricas2.

Além disso, por mais que essas diásporas se assemelhem em termos de atitudes e

comportamentos marcados pelo sincretismo e pelo hibridismo, forjados e “reforjados”,

como diz Hall (2003:40), “na fornalha do panelão colonial”, existe ainda outra diferença

marcante entre as duas categorias que compõem a diáspora africana no Atlântico Negro.

Essa diferença diz respeito à maneira pela qual cada qual encara a sua ‘negritude’ ,

isto é, o seu ‘blackness’. Por um lado, os indivíduos da segunda categoria, ou seja,

portadores da identidade afro-latina, procuram viver e alimentar, no seu cotidiano, os

aportes e as heranças da sua origem africana, através de pensamentos ideológicos e práticas

culturais, verificáveis em todos os ramos de suas atividades, seja na vida política,

econômica, social e religiosa, seja no lazer ou na vida afetiva e moral. Enfim, pode se

afirmar que, no caso de indivíduos afro-latinos, existe uma preocupação em viver uma

negritude étnica.

Por outro lado, na maioria dos casos, os indivíduos da terceira categoria são

caracterizados por uma preocupação apenas ideológica a respeito da sua condição. A

identidade negra de grande parte dos indivíduos que moram nas periferias das grandes

metrópoles é, muitas vezes, comprovada e assumidamente, sem grandes vínculos diretos

com as matrizes africanas. A maioria dos estudiosos desse contingente sempre fala, a seu

respeito, de ‘identidade fragmentada’ (Hall, 1999) ou de ‘negritude sem etnicidade’ –

blackness without ethnicity – (Sansone, 2004).

0.1.2 O que vale uma identidade?

Como consta no projeto de pesquisa para a presente tese, a palavra mais central ao

estudo é o termo yorubanidade3. Com este termo, procuro analisar histórica e culturalmente

2 Aqui e em outras partes da tese, uso o termo diáspora, no sentido já consagrado por autores como StuartHall (2003 [1999]: 25ss), onde se refere à Diáspora como o deslocamento ou o desterro dos povos africanos,primeiro, através da escravidão para o Novo Mundo, e depois, através de movimentos migratórios, desdediferentes pontos do Novo Mundo, para as grandes metrópoles.3Em vários estudos e trabalhos anteriores meus, a minha preocupação, até agora, foi no sentido de insistir nodireito do termo “iorubá” à declinação gramatical, como se faz para as culturas européias. Ou seja, em vez decontinuar a usar o termo sem declinação em expressões como “a língua iorubá, o povo iorubá, a culturaiorubá, os textos iorubá”, recuperei o uso das desinências adequadas conforme os casos e funçõesgramaticais. Assim, passei a falar em meus trabalhos de “o idioma iorubano”; “a língua, a cultura e acivilização iorubanas”; “povo iorubano e visão-de-mundo iorubana” etc. Na presente tese, resolvi levar esse

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a identidade étnica de grupos e ‘nações’ étnicos, espalhados pelo mundo atlântico, que têm

como sua maior referência coletiva a cosmovisão e a expressão religioso-cultural, oriundas

do povo nagô-yorubano da África Ocidental.

Portanto, ao me referir a uma Yorubanidade Mundializada, estou pensando na

presença da cultura, a filosofia, na visão-de-mundo e, enfim, na gnose yorubana no espaço

que Matory (1999) descreve como o Yorubá Atlantic Complex, ou seja, o Mundo Atlântico

Yorubano. Este mundo ou ‘nação’ atlântica yorubana abrange os três continentes atlânticos

– África, Europa e as Américas –, contando como grupo matriz os nativos nagô-yorubanos

que hoje se encontram nas atuais repúblicas africanas da Nigéria e do Benin (antigo

Daomé), no Golfo do Benin, além daqueles focos que constituem uma presença marcante

de povos yorubanos em outros países da África Ocidental – no sudeste da República do

Togo e na região ao sul do Rio Volta no atual Gana.

Em um segundo plano, o termo inclui outros grupos espalhados pelas várias

diásporas do povo yorubano, tanto no próprio continente africano como nas Américas. A

lista inclui, pois, os que ficaram conhecidos desde a época da escravidão como Nagô no

Brasil e no Haiti, Lucumí em Cuba, Akú na Serra Leoa e Yarriba ou Yorubá em Trindade e

Tobago, alem de novos focos na América Latina – Argentina e Uruguai no cone sul,

Venezuela, México e Panamá na América Central. A partir dos focos yorubanos na

América do Sul e no Caribe, e graças a vários atores, a gnose yorubana hoje se verifica na

opção de vida de uma parcela cada vez mais crescente no mundo globalizado,

nomeadamente nos Estados Unidos e na Europa, notadamente Espanha, França, Itália e

Portugal.

Além da força do complexo religioso implantado pelos yorubanos nesses diversos

pontos do mundo atlântico, a oralidade vem sendo uma das marcas mais constantes de sua

presença. Do Brasil a Cuba, de Haiti às Ilhas Barbados, verifica-se a presença dos contos e

cantos yorubanos na base da estrutura sócio-cultural das diversas sociedades Afro-Latinas.

As mesmas cantigas são entoadas nos cultos lucumí da santería cubana, no candomblé e

exercício um passo mais adiante, recuperando a grafia original do próprio termo étnico, grafando o yorubácom letra inicial “y” em vez da “i” que tem sido o comum em textos brasileiros, devido à ausência do ipsilonno alfabeto português. Muito além da normatização ortográfica do vocabulário afro-brasileiro proposta porYeda Pessoa de Castro, minha adoção da grafia inicial de yorubá com “y” visa a padronização do etinónimoatravés do resgate da “forma consagrada pelo uso” intercontinental, uniformizando a sua grafia para que seconforme ao que se diz e se escreve no resto do Mundo Atlântico Yorubano.

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outros cultos de matriz africana no Brasil e no culto denominado Sango em Trinidad e

Tobago.

Acima de tudo, a verificação da preocupação com uma fidelidade científica na

transmissão e preservação de muitos dos textos de origem yorubana nos diversos pontos do

mundo atlântico, fazendo com que se possa falar de fidelidades textuais de maior ou menor

graus em certos textos como as narrativas e “livros” do sistema oracular de Ifá, transmitidos

e preservados praticamente verbatim de Ile-Ife na Nigéria a Havana em Cuba, apesar das

distâncias, não só em termos de tempo e espaço, mas também em heranças lingüísticas

coloniais – inglês, português, espanhol e francês – me permite postular o que chamo de

oralitura no presente estudo.

Defino essa oralitura como a presença de certos mecanismos embutidos nos

diversos gêneros literários praticados pelos povos yorubanos, fazendo com que sua

transmissão no tempo e no espaço seja realizada com a mesma preocupação que norteia os

textos escritos nas sociedades alfabetizadas. De modo específico, a presente tese se

consagra a uma analise da concepção, preservação e uso de textos como Oriki e Çsç Ifá na

sociedade yorubana, debruçando-se sobre a transmissão dos mesmos nas culturas afro-

latinas, sobretudo a prática de oriquí (loas usadas para os orixás) e os itans do corpo

oracular de Ifá, narrativas conhecidas no Brasil como caminhos de odu,4 também

conhecidas como patakin em Cuba.

Como objetivo principal, essa abordagem se insere no projeto amplo que visa a re-

aproximação das duas margens do Atlântico Yorubano através, não somente de práticas

religiosas, mas também de outras expressões culturas e literária. Pelo fato de a cosmovisão

e a filosofia yorubanas se terem tornado, desde o século XIX, um importante referencial,

nas culturas e identidades diaspóricas, a gnose yorubana pode ser considerada um bom

candidato para o projeto que o teórico argentino Walter D. Mignolo denomina como a

recolocação de epístemes e saberes subalternizados na conjuntura da globalização, em prol

a uma verdadeira democratização e total descolonização cultural do mundo contemporâneo.

Ao longo desses dois séculos e meio de estudos yorubanos no mundo atlântico, a

grande maioria das abordagens tem se concentrado na área de antropologia religiosa,

sobretudo nas diásporas americanas onde a preocupação sempre tem sido a verificação de

4 Título do livro de Agenor Miranda sobre a prática de Ifá no Brasil.

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um continuum cultural, da África ao Novo Mundo. De fato, poucos são os pesquisadores

que conseguiram fugir dessa abordagem. Entre as raras exceções conta-se o etnólogo

cubano Fernando Ortiz que estudou a música yorubana, ao lado da sua conterrânea Lydia

Cabrera, que fez alguns estudos das narrativas yorubanas como o caso dos contos de noites

de lua. Aqui no Brasil, Mestre Didi se destaca como o único a se consagrar quase que

exclusivamente a reproduzir as narrativas orais nagô-yorubanas tais como os oriquís e os

itans que circulam nas comunidades-terreiros sob forma de textos do sistema oracular

chamado erindinlogun.

Do lado africano, a situação é bem melhor. Além de Wande Abimbola que, desde os

anos sessenta do século passado, se dedica ao estudo sistemático dos textos oraculares

chamados Odù Ifá, e Adeboye Babalola que consagra a maior parte de seus trabalhos ao

estudo de gêneros literários como ìjálá e oríkì orílê, existe hoje toda uma geração de

pesquisadores yorubá-africanos que estudam os diversos gêneros da literatura yorubana.

No entanto, dos dois lados do Atlântico Yorubano, não se tem verificado até agora

nenhum estudo que se consagre a uma aproximação das letras, textos e narrativas de matriz

yorubana produzidas nas duas margens do Atlântico. A presente tese pretende ser pioneira

nesta direção. Sem precisar se deter sobre temas polemizadas como a ‘pureza’ e a

‘tradição’ que tem ocupado muitos outros estudiosos da yorubanidade na diáspora afro-

latina, sobretudo, aqui no Brasil, o presente estudo analisa o fortalecimento da identidade

coletiva negro-mestiça na Bahia, de onde acaba sendo exportado para o resto do Brasil e do

Mundo Atlântico Yorubano.

No fundo, uma preocupação fundamental que norteia o presente estudo vem a ser a

construção da identidade “africana” no Brasil, aqui estudado como parte integrante do

processo identitário que ocorre no resto do mundo globalizado. Procuro analisar o papel da

cultura yorubana nesta construção. Como afirma Stefania Capone em A busca da África no

Candomblé: tradição e poder no Brasil (2004 [1999]:7-8), resumindo o pensamento de

gerações de pesquisadores e estudiosos: “A Bahia, com seu candomblé nagô que concentra

em si o ideal da africanidade” sendo que, no imaginário popular e, até, de uma grande

parcela de intelectuais que atuam na área, conforme o consenso comum: “Na Bahia como

no resto do Brasil, nagô (ou iorubá, se preferirem) é, mais do que nunca, sinônimo de

“africano”, bem como o qualificativo obrigatório do que está ligado à reafirmação das

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raízes africanas da identidade negra brasileira”. É claro que, além da Bahia e do Brasil, o

mesmo se pode dizer de um conjunto de ‘centros’ que participam desta articulação de

valores cosmogônicos yorubanos, tais como Havana, Santiago e Matanzas em Cuba, Port-

au-Prince em Haiti assim como vários pontos de irradiação da cultura yorubana nos

próprios Estados Unidos e Trinidad e Tobago.

Entretanto, embora procure dialogar constantemente com as diversas obras dos

vários estudiosos que se têm debruçado sobre a temática do legado nagô-yorubano no

Brasil e em outras diásporas afro-americana, em momento algum me entreguei à tentação

de cair no essencialismo étnico-religioso que continua imperando nos estudos

antropológicos brasileiros a respeito da dicotomia degenerescência-tradição. De fato, longe

de trilhar o caminho polemizado que polarizou e ainda polariza os estudos da antropologia-

cultural e religiosa com suas categorias exclusivas (nagô = tradição = pureza etc.), a tese se

empenha em sustentar, o tempo todo, que não importa o grau de “degenerescência”, do

sincretismo cultural e religiosa, não interessa que o culto se chame Candomblé, Umbanda,

Batuque, Xangô ou mesmo Santería ou Orisha-Voodoo, o que importa é o denominador

comum, ou seja, a presença e o papel da yorubanidade no processo da construção de cada

um desses processos civilizatórios e identitários. Acima de tudo, vale muito mais a

prontidão com a qual a cultura nagô-yorubana empresta e partilha com cada um desses

universos religiosos seus orixás e seus simbolismos religiosos, enriquecendo-se cada vez

mais com tais processos de troca.

Por exemplo, no capítulo que consagro à presença da yorubanidade na construção

da identidade baiana, o foco não é transformar a yorubanidade na expressão exclusiva da

baianidade senão em analisar as diversas maneiras pelas quais a yorubanidade vem

servindo de modelo étnico, ético e estético na construção da baianidade, dando fôlego para

as diversas ações afirmativas empreendidas pela parcela negro-mestiça da sociedade,

fornecendo-lhes termos, expressões e conceitos como a famosa Odara, capazes de fazer

subir a auto-estima étnica, dando-lhes condições de reivindicar e obter uma participação

cada vez maior nos processos da consolidação da cidadania, direitos e igualdade.

Mais uma vez, vale ressalvar o caráter holístico da tese. Caráter esse que se verifica

na sua abordagem que abrange tanto a religião quanto outros aspectos como a cultura, a

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história, a língua, a literatura e a civilização yorubanas no mundo contemporâneo. Para

tanto foi preciso dividir a tese em duas partes.

A primeira parte consiste num mapeamento histórico-cultural da presença nagô-

yorubana no mundo globalizado. Composto de três capítulos, esse segmento da tese aborda

a questão da definição da própria identidade nagô-yorubana, desvendando algumas de suas

manifestações dentro do tempo e espaço mundializados.

Assim é que o primeiro capítulo se consagra a um levantamento histórico de dados

sobre a construção da identidade yorubana, tanto na África como no Brasil. Apoiado nas

diversas teorias da etnicidade (Phillippe Poutignat & Jocelyne Streiff-Fenart, 1998; Fredrik

Barth, 1969), procurei definir o que significa o pertencimento étnico à chamada “nação”

yorubana na África e a “nação” nagô no Brasil. Na medida do possível, tratei de demonstrar

como a construção da identidade yorubana não poderia ser pensada como algo totalizante

ou exclusivo para o conjunto de seus integrantes, uma vez que a mesma identidade

yorubana, que se ancora na estrutura de linhagens familiares do patriarcado na África

yorubana, acaba sendo traduzida em um modelo do matriarcado, no contexto baiano, e,

conseqüentemente, no brasileiro.

Dentro do projeto da descolonização do saber postulado e contemplado como um

dos principais objetivos da tese, empreende-se neste primeiro capítulo uma tentativa de

desconstrução da história da nação yorubana contada desde a ótica do colonizador e

legitimada através de uma série de intervenções tele-guiadas ao longo dos últimos quatro

séculos.

No segundo capítulo, detive-me, longamente, na definição da oralitura yorubana.

Partindo duma análise profunda do conceito da oralidade, refutando, sobretudo, a maneira

como ela tem sido associada nas literaturas eurocêntricas, tanto da época colonial como na

contemporaneidade, a idéias preconceituosas com as quais se procura comprovar o estágio

“primitivo”, “pré-lógico” e “pré-científico” das culturas não-européias, procurei argumentar

o contrário, trazendo vários gêneros da literatura yorubana para mostrar a especificidade da

oralidade yorubana e os mecanismos mnemotécnicos que a tornam mais próxima ao ideal

da escrita na sua concepção e transmissão. Centrado num diálogo intenso com a obra de

Walter J. Ong (2000 [1982]), o capítulo contesta o tempo todo a definição que se costuma

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dar à oralidade como forma de expressão quase-exclusiva de sociedades “primitivas”, ou

seja, não-européias e não-ocidentais.

De fato, não se pode negar que a oralidade permeia toda e qualquer expressão das

sociedades africanas na sua grande maioria, inclusive a yorubana, tanto na sua versão

continental quanto nas versões diaspóricas, seja ela no âmbito da música, na literatura, nos

contos, cantos e histórias, ou mesmo nos filmes, na religiosidade e na filosofia. Porém, em

vez de pensar a oralidade como um conceito limitado que comprova supostas deficiências

de expressão nos povos não-europeus, prefiro pensá-la a partir de novos paradigmas,

procurando desconstruir a própria idéia de deficiência que se procura legitimar pela sua

aplicação a tais povos.

Daí o meu investimento no conceito da oralitura yorubana, descrita como um

conjunto de mecanismos embutidos na concepção, tratamento e armazenamento do saber e

do saber-fazer yorubá-africanos que facilitam a sua codificação e decodificação, permitindo

que vença os maiores desafios de tempo e espaço sem perder a sua essência. O que, nas

análises que faço dessa oralitura no segundo capítulo da tese, a aproxima do modelo da

escrita, representada principalmente nos diversos signos e textos do saber yorubá-africano,

inscritos de várias formas em diversos corpos e superfícies, tanto em tábuas e bandejas

como no caso dos textos oraculares de Ifá, como nos corpos e na memória das pessoas,

facilitando sua transmissão sem perda do conteúdo e da forma.

O terceiro capítulo da tese se consagra a uma análise do papel da yorubanidade na

construção da identidade baiana. Dialogando com a tese de Milton Araújo Moura (2001),

assim como a obra de diversos pesquisadores e estudiosos da baianidade, o capítulo procura

avaliar a importância da gnose nagô-yorubana na edificação da Bahia como a Roma Negra.

Fugindo da clássica abordagem antropológica religiosa, o capítulo focaliza a totalidade da

identidade baiana, fazendo uma leitura de seus ícones e suas simbologias apreensíveis nas

letras, na música, nas artes (cênicas e plásticas), na gestação e valorização dos espaços

públicos baianos, nas mentalidades das diversas parcelas da sociedade baiana – as massas

negro-mestiças, a mídia, os integrantes dos grupos e agremiações sócio-culturais etc.

Enfim, debruçando-se sobre as obras e pronunciamentos de vários protagonistas da

baianidade tais como os vários intelectuais da baianidade: desde o clássico trio Amado-

Carybé-Caymmi às falas dos doces bárbaros; desde as leituras de Antônio Risério aos

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discursos étnicos dos afoxés e blocos afro-carnavalescos da Bahia, o capítulo desvenda o

processo que levou ao surgimento de uma identidade passível a ser chamada de

yorubaianidade.

Como fundamentos teóricos para a tese, considero as propostas de vários teóricos da

contemporaneidade, sobretudo, os vários críticos da globalização, que consagram seus

estudos teóricos a analisar e desmistificar a Globalização, denunciando suas tendências, e

as conseqüências nefastas dessas tendências, de procurar homogeneizar culturalmente o

mundo contemporâneo através da hegemonia cultural, possibilitada tanto pelos avanços

tecnológicos da pós-modernidade ocidental, assim como pela sua ideologia capitalista e seu

pretexto universalista. Teóricos cujos estudos têm relevância à tese incluem especialistas

em estudos culturais e diaspóricos como Stuart Hall, Paul Gilroy, Homi Bhabha, Anthony

Appiah e Wole Soyinka, assim como teóricos da mundialização como Walter D. Mignolo,

Édouard Glissant e Renato Ortiz dentre outros.

De fato, a segunda parte da tese começa com uma abordagem da teoria da

subalternidade proposta por diversos pensadores pós-modernos (Walter D. Mignolo, (2003

[2000]; Ramon Grosfoguel & Ana Margarida Cervantes-Rodrigues (2002); Immanuel

Wallerstein (1990), assim como da teoria da descolonização do saber e do poder (Karl-Otto

Apel (1996), Enrique Dussel (1993, 1995 [1992]), para situar a questão da hegemonia

cultural do Ocidente no mundo globalizado. Hegemonia essa que se legitima pelo mito da

modernidade e outros mitos ligados à superioridade da civilização européia. A partir da

desconstrução desses mitos empreendida pelos diversos pensadores analisados no breve

intervalo teórico, a tese desemboca na análise das obras de dois intelectuais extra-

canônicos, escolhidos para exemplificar o projeto da inserção dos valores e da cosmovisão

yorubana no espaço-mundo.

Sem precisar trilhar o caminho tradicional da literatura comparada, a segunda parte

da tese traz a obra e a trajetória intelectual de Mestre Didi e as de Ifayemi Elebuibon, numa

tentativa de, através delas, exemplificar o processo da mundialização da yorubanidade.

À luz das abordagens teóricas feitas na parte introdutória que intitulo “intervalo

teórico”, o capítulo quatro se consagra a estudar a obra e a própria trajetória intelectual do

escultor-escritor baiano, Descóredes Maximiliano dos Santos, mais conhecido como Mestre

Didi Alapini. Em termos específicos, o capítulo estuda o seu papel de guardião da memória

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coletiva da nação nagô-yorubana na Bahia, dedicando-se a analisar alguns dos contos por

ele publicado em diversas coletâneas. Contos esses que fazem parte de um conjunto de

narrativas orais que fundamentam a cosmovisão nagô-yorubana e a sua preservação no

imaginário cultural afro-baiano.

Por outro lado, o último capítulo se dedica a fazer a mesma análise como foi feita no

capítulo anterior. Desta vez, o quinto capítulo escolhe como objeto de estudo a trajetória

intelectual de outro guardião da yorubanidade, oriundo da outra margem do Atlântico

Yorubano, na pessoa de Ifayemi Ayinde Elebuibon, poeta, escritor, dramaturgo e babaláwo

(sacerdote de Ifá) yorubá-nigeriano. O capítulo faz uma análise de suas atuações no mundo

atlântico em prol a uma descolonização do saber yorubá-africano, avaliando suas produções

teóricas e práticas em forma de livros sobre diversas temáticas da cultura e civilização

yorubanas, seus discos de ewì (poesia musicalizada), seus filmes e as demais atividades

intelectuais que ele vem realizando nos diversos pontos do mundo. Através de uma análise

mais demorada de um disco de ewì por ele produzido em 2002 e de alguns poemas tirados

de uma coletânea de 1999, torna-se possível apreender o pensamento de Elebuibon a

respeito da necessidade da deshomogeneização cultural do mundo a favor das culturas

subalternizadas, um tema que atravessa a quase totalidade de sua rica obra.

Neste ponto, um aviso se faz necessário: não é intenção minha fazer uma

comparação da obra nem da trajetória intelectual de Mestre Didi e Ifayemi Elebuibon, isso

fica claro na desigualdade do comprimento e no conteúdo dos respectivos capítulos que

dedico a cada um dos dois. Na verdade, a minha intenção é inserir simplesmente os dois na

rota do Atlântico Yorubano, ligando as suas respectivas obras em um continuum que inclui

também outros atores e protagonistas presentes e atuando em diversos pontos do espaço

globalizado em prol da valorização da identidade cultural yorubana e seu papel e crescente

importância e visibilidade na esfera mundial.

A respeito da metodologia que orienta a tese, talvez, possa dizer que o maior desafio

que tive que enfrentar, foi a conceituação do próprio ato de tradução cultural, envolvida em

uma tese como esta. Consciente, o tempo todo, do meu papel de simples operário na

construção de uma complicadíssima Torre de Babel, procurei seguir, com todo cuidado, o

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conselho de Derrida (1985)5, de manter aquela ‘pérfida fidelidade’, diante das necessidades

da ‘dupla escrita’, que se torna inevitável, quando se quer navegar entre culturas. O

primeiro indício dessa dupla escrita se torna evidente na necessidade de usar duas fontes

distintas na confecção da tese. A fonte Times New Roman, usada para escrever as partes

em português, cede o lugar para a fonte YorubaOK, quando preciso escrever ou citar textos

em yorubá. A escolha não surgiu de nenhuma vontade de marcar a diferença entre as duas

línguas, embora isso esteja presente o tempo todo na tese, senão porque, sem essa fonte

YorubaOK, não iria conseguir escrever em yorubá correto, uma vez que, os sinais

diacríticos, sobretudo, os pontinhos colocados debaixo das letras “O”, “E” e “S”, usadas em

profusão na grafia do yorubá, ainda não foram contemplados por nenhuma das fontes

convencionais, disponíveis no computador. Por isso, agradeço a Dr. Onayemi, da

Tavultesoft Keyman Developper, quem não só disponibilizou a fonte YorubaOK na web,

mas ainda se deu o trabalho de me explicar o passo a passo do seu uso.

Outro problema com que me deparei na elaboração da tese é a ‘intraducibilidade’

de alguns termos e expressões yorubanos para as línguas européias. Embora se costume

afirmar que yorùbá kìí gùn to èèbó, ou seja, que uma frase em yorubá costuma ser menos

comprida do que o seu equivalente em inglês, descobri que as minhas traduções para o

português acabam sendo mais compridas do que os originais em yorubá, devido,

justamente, às dificuldades criadas pela intraducibilidade.

Confesso que não foi sempre fácil, nem totalmente possível, como queria Sarat

Maharaj na citação anterior, “ser leal à sintaxe, sensação e estrutura da língua-fonte (neste

caso, o yorubá) e fiel àquelas da língua de tradução (neste caso, o português)”. Porém,

graças ao constante questionamento da minha orientadora, que me obriga a ser cada vez

mais explícita nas minhas traduções, consegui tornar o texto menos cansativo para quem

ler. Também, graças à dedicação da bibliotecária Luzia Macedo Leal, e da lingüísta Anna

Maria Nolasco de Macedo, que, sem cobrar nada, revisaram comigo a tese inteira, consegui

limpar, na medida do possível, as marcas mais graves de ‘infidelidades’ – sintáxicas e

estruturais – ocasionados pela dupla escrita. Agradeço a valiosa orientação que recebi

dessas três especialistas mais do que competentes no manejo da língua portuguesa, e

assumo plena responsabilidade para qualquer erro que possa se encontrar ainda no texto. 5 Cf. DERRIDA, Jacques, Des tours de Babel. In Difference in Transition. Ithaca : Cornell University Press.

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PRIMEIRA PARTE

A YORUBANIDADE E SUAS MARCAS NO MUNDO ATLÂNTICO

CAPÍTULO I

IDENTIDADE E MEMÓRIA DA YORUBANIDADE: A cultura milenar yorubanadentro do processo de globalização

I.0 “Ò ñr`Õyö ò þkánjú ” ou a diasporização do povo yorubano

Na altura do apogeu do poder dos Aláàfin, reis e senhores supremos da extensa

construção geopolítica yorubana (c.1250 – 1846), teria surgido o seguinte ditado popular:

“Ò ñr`Õyö ò þkánjú, Aláàfin ò re’bi kan!6” com o qual se afirmava que nada faria o

Aláafin abdicar seu ààfin, isto é, seu palácio, ou, melhor dizendo, da sua terra. Isto vale

para dizer que, a combinação da força dos orixás do povo yorubano, a fé na sua supremacia

militar sobre os povos vizinhos e a confiança nas instituições sócio-políticas que

caracterizavam esse povo descendente do grande Odùduwà representavam a garantia

máxima de que o reino subsistiria para sempre. Porém, enquanto se vivia essa euforia,

pouco se imaginava que dentro de poucos séculos, o povo yorubano transformar-se-ia em

povo diaspórico por excelência, tendo seus filhos e filhas dispersados pelos quatro cantos

do globo, conforme foi determinado pelo sortilégio de um de seus últimos soberanos, o

Aláàfin Aólê Arógangan, que, em desespero da sua impotência perante a revolta de Àfõnjá,

o comandante-mor do exército de Õyö , que se deixou seduzir pelas instigações dos

jihadistas islâmicos de Ilorin. O soberano Aólê acabou amaldiçoando o seu próprio povo,

jurando que o povo Õyö -yorubano seria levado como escravo às quatro direções para as

quais ele atirara suas flechas fatídicas antes de se submeter a um regicídio ritual.

De acordo com historiadores, foi graças a essa maldição do Aláàfin Aólê que a

nação yorubana se expandiu literalmente aos quatro ventos, tendo que recompor sua

identidade étnica em pontos tão variados, cobrindo vastas e tão diversas regiões, indo da

Serra Leoa ao Haiti, da Jamaica a Tobago, da Bahia a La Habana.

Apud MAHARAJ, Sarat. Perfidious Fidelity. Citado por Stuart Hall, 2002. p.41.6 Tradução: Ninguém precisa ter pressa quando vai à cidade de Õyö , pois o Aláàfin não vai a lugar algum .

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Ao longo da presente tese, as principais perguntas que nortearão o nosso estudo

serão as seguintes: Quem são os yorubanos? Qual a sua origem étnica? Quais as suas

marcas civilizatórias? O que levou a sua cultura e religião à proeminência nas sociedades

Afro-Americanas? Que elementos da sua cultura estão presentes no processo identitário

dessas sociedades diaspóricas?

Neste primeiro capítulo, localizarei o povo yorubano no tempo e no espaço. Ou

melhor, como diz Valentin Mudimbe (1988), tratarei de definir a Yorubanidade histórica e

antropologicamente, aproveitando para fazer um mapeamento rápido do mundo cultural

yorubano, isto é, a cosmovisão desse povo, a sua filosofia e as suas instituições culturais.

Falarei, também, da sua atuação tanto em solo africano como no Novo Mundo e da sua

contribuição para a construção das identidades étnicas coletivas na América Latina, assim

como da edificação daquilo que Matory (1994) designou como o Yoruba Atlantic Complex,

isto é, uma espécie de Império Atlântico Yorubano).

Dialogando com diversos teóricos da identidade étnica e estudos culturais dentro da

pós-modernidade, com destaque para as teorias de Stuart Hall, Poutignat et alii., Anthony

Appiah, Paul Gilroy e Homi K. Bhabha, abordarei as teorias da trans-modernidade

proposta por teóricos da geração de Immanuel Wallerstein, tais como Ramon Grosfoguel,

Enrique Dussel, Walter D. Mignolo, Octavio Ianni, Jesús Martin-Barbero, J. Lorand

Matory, e com o insight de teóricos ‘nativos’ como Wole Soyinka, Valentin Mudimbe,

Milton Santos e Muniz Sodré dentre outros, procurarei definir e situar a cultura yorubana

nas questões de raça, etnicidade, globalização e hegemonia cultural, memória coletiva e

outros conceitos chaves que tanto preocupam os estudiosos da pós-colonialidade e da pós-

modernidade.

Definirei, também, o tipo de análise que será usada no corpo do estudo que

focalizará a vida e a obra de dois intelectuais orgânicos dos dois lados do Atlântico

Yorubano, quais sejam, o yorubá-nigeriano Ifayemi Ayinde Elebuibon e o afro-baiano

Deoscóredes Maximiliano dos Santos, mais conhecido como Mestre Didi Alapinni,

definindo a sua qualificação como guardiães da memória cultural coletiva dos povos

yorubanos na contemporaneidade e mostrando seu comprometimento em levar os valores

culturais yorubanos ao conhecimento do mundo global através de suas atividades

pluridisciplinares e pluridimensionais.

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Como deixa claro o tema da tese, um dos pontos de encontro dos textos produzidos

nas duas margens do Atlântico yorubano é o emprego da memória coletiva da nação

yorubana para dialogar com a hegemonia cultural nas respectivas sociedades – yorubá-

nigeriana e afro-baiana. Assim, procurarei, pois, investir em uma compreensão e análise

desta memória coletiva, sobretudo no tocante ao seu papel primordial em colocar sob rasura

o cânone ocidental que erigiu a oposição absoluta e exclusivista entre a oralidade e a escrita

como marcas da civilização humana.

Matory (1999) e Cohen (2000), ao estudarem a expansão cultural e a importância

que têm assumido, nos últimos dois séculos, as religiões de matriz africana, sobretudo, a

religião dos orixás, implantada no Novo Mundo pelos descendentes de homens e mulheres

yorubanos escravizados, que ficaram conhecidos no Brasil e no Haiti como Nagôs, em

Trinidad e Tobago como Yarribas ou Yorubas e em Cuba como Lucumís, demonstram-se

convencidos do papel importante que teve, e continua tendo, a tradição religiosa e cultural

desse povo, na construção da identidade da maior parte dos enclaves afro-americanos,

inclusive, e, sobretudo, no Brasil (que, aliás, segundo Matory (1999: 72), tem se tornado, ao

longo dos últimos séculos, um lócus classicus nos estudos da memória, sua retenção e

continuidade como mecanismos de formação comunitária e transmissão cultural por

excelência nessas diásporas).

1.1.0 Algumas teorias da etnicidade

Neste estágio do nosso estudo, vale a pena investir na teorização para melhor definir

o nosso objeto. É preciso definir o conceito chave que representa a etnicidade e o papel que

ela tem na configuração e nos estudos da formação da identidade, seja ela individual ou

coletiva. Para Philippe Poutignat e Jocelyne Streiff-Fenart (1998 [1995]), a passagem da

noção de “tribo” para a noção de “grupo étnico”, possibilitada pelo Esquema de Cohen

representa um grande avanço que, presumo eu, não só torna menos míope a relação de

sociólogos e antropólogos com os povos estudados, mas torna mais fácil ainda que os

próprios povos se estudem, sem serem culpados de atos de narcisismo ou essencialismo

barato. Em teorias da etnicidade (1998: 64), os dois autores franceses mostram como, de

acordo com esse esquema de Cohen:

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A unidade tribal considerada isoladamente como uma unidade discreta,característica do mundo não-ocidental, estudada de acordo com uma abordagemobjetivista e sistemática, é substituída por uma concepção do grupo étnico comounidade potencialmente universal, contextualmente definida por seus limites eestudada segundo uma abordagem dinâmica e “subjetivista”, este termo retomandoo foco colocado sobre os processos de identificação e de categorização.7

A meu ver, essa mudança de noção é muito importante porque marca o fim, ou

melhor, aponta em direção ao fim do reinado das abordagens que só conseguiam enxergar

os povos não-ocidentais como meros objetos a serem analisados, sem que lhes seja

permitida a possibilidade de falar por si mesmos. Principalmente, considero de suma

importância essa mudança de conceituação, na medida em que tal mudança permite que

termos como tribo, dialeto e aldeia deixem de ter as mesmas conotações antropológicas nos

estudos sérios de contatos entre povos e civilizações. Conotações do tipo, só para

exemplificar, ao que a apresentadora da Rede Globo, Gloria Maria, desafortunadamente

manteve, na série de cinco reportagens semanais sobre os povos da Nigéria, apresentado no

Programa Fantástico, em abril de 2005, nos quais a jornalista mostrou para o seu público

suas descobertas de tribos nigerianas – entre as quais o yorubás de Lagos!, ‘descobrindo’

para o público brasileiro os costumes dessas tribos, cujos hábitos, segundo ela, as fazem

parecer como um povo parado no tempo, naquele país de 140 milhões de habitantes, entre

os quais se falam, conforme noticiou, até 250 dialetos!8. Note-se que essa reportagem

‘especial’ foi preparada pela apresentadora para ser exibida a milhões de telespectadores de

um país como o Brasil, onde o que não faltam são textos sérios de vários estudiosos, tanto

nacionais como estrangeiros, sobre os valores e todo um conjunto de saberes e práticas que

a cultura brasileira herdou das diversas culturas de matriz africana, sobretudo, a yorubana.

Mas deixemos essa chatice e voltemos à nossa teorização.

No que tange às teorias da etnicidade propriamente ditas, Poutignat e Streiff-Fenart

(2002: 84) fazem um mapeamento dos diversos aspectos do conceito da etnicidade, ao

longo da história de sua atuação nos principais domínios de estudo. O quarto capítulo de

Teorias da etnicidade se dedica a analisar as diversas abordagens do conceito, realizadas

por vários estudiosos, explorando a enorme bibliografia acumulada sobre o tema.

7 COHEN, R. “Etnicity: Problem and Focus in Anthropology” in Annual Review of Anthropology, v. 7, p.379-403, 1978. apud Poutignat P. e Streiff-Fenart, op. cit..8 Programas FANTÁSTICO exibidos nos domingos dias 10, 17 e 24 de abril de 2005.

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Desse modo, ao longo do livro, o que parece nortear a análise dos autores acima-referidos

são duas perguntas-chave:

• O que é um grupo étnico? e

• Quais são os fatores (políticos, econômicos, culturais, psicológicos) que permitem

que os especialistas possam dar conta da emergência e da persistência das

diferenciações étnicas?9

Para responder a essas perguntas, os autores tomaram como seu ponto de partida as

diversas definições propostas pela revista editada pelo sociólogo Isajiw a partir de 197410.

No referido trabalho de Isajiw, assim como nas definições propostas por outros estudiosos

dos anos 70, predomina a noção de etnicidade como “pertença involuntária”, além de idéias

que em muito aproximam a noção de grupo étnico à noção de raça. No entanto, foi a partir

da obra de Burgess (1978) que surgiram definições, resumindo os diversos aspectos e

critérios que caracterizam os grupos étnicos. São esses critérios como:

• pertença de grupo;

• identidade étnica;

• consciência da pertença e/ou das diferenças de grupo;

• ligações afetivas ou vínculos baseados num passado comum e putativo e nos

objetivos ou interesses étnicos reconhecidos;

• vínculos elaborados ou simbolicamente diferenciados por “marcadores” (uma

tradição, emblemas, crenças culturais, territoriais ou biológicas).

Um pouco mais tarde, na década de 80 do século passado, surgiram outras tendências

teóricas que dividiram os estudiosos em partidários das chamadas noções antagônicas de

etnicidade, ou seja, culturalismo versus instrumentalismo, primordialismo versus

circunstancialismo, teorias assimilacionistas versus teorias do conflito étnico, teoria

difusionista versus teoria reativa (POUTIGNAT e STREIFF-FENART, (1998: 85-7).

9 POUTIGNAT e STREIFF-FENART, p. 84.10 Cf. ISAJIW, W. Definitions of ethnicity, Ethnicity, n.1, p. 111-124. 1974 apud POUTIGNAT e STREIFF-FENART. op. cit.

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Segundo os autores há pouco citados, os defensores da teoria primordialista da

etnicidade apresentam como justificativa da pertença étnica a “similaridade intrínseca entre

aqueles que, sem tê-lo escolhido, compartilham a herança cultural transmitida por

ancestrais comuns, a fonte de ligações primárias e fundamentais”. Os laços primordiais que

ligam os membros de um grupo étnico seriam dos tipos dotados de uma significação

inefável, tais como “o vínculo de sangue presumido, os traços fenótipos, a religião, a

língua, a pertença regional ou o costume” (p.89).

A insatisfação da maioria dos teóricos com a teoria primordialista, tal qual fora

desenvolvida até Bentley (1987), sublinhando-lhe, entre outros elementos, o caráter

inefável e seu aspecto coercitivo, levou estudiosos posteriores a pesquisarem o lado

comportamental da etnicidade. Com efeito, os teóricos comportamentalistas postulam que a

pertença étnica decorreria, de um lado, de dados que remetem aos aspectos biológicos e à

ascendência comum putativa, enquanto, por outro lado decorreria, ao mesmo tempo de uma

opção comportamental e expressiva. Isso foi o que Fishman (1977) propôs como a

dualidade oposicional de paternity/patrimony (p. 92).

Em resumo, cogita-se que as teorias da etnicidade oscilam entre as teses primordialistas

e instrumentalistas. Ou seja, uma série de teorias que considera a pertença étnica seja como

algo dado a priori, algo que se herda, seja como um instrumento de negociação por uma

classe ou um grupo de indivíduos para melhorar suas chances políticas, econômicas e/ou

sociais.

Dessa teoria da dualidade da identidade étnica derivam várias outras teorias como as

chamadas teorias sociobiológicas desenvolvidas a partir das abordagens de Van der Berghe

(1976); as teorias instrumentalistas ou mobilizacionais; as teorias de escolha racional ou

mesmo as chamadas teorias neomarxistas e neoculturalistas que são todas tidas como

derivadas da grande teoria instrumentalista que toma a etnicidade como um meio de

barganhar não somente a cidadania, mas também direitos políticos, econômicos e sociais

em sociedades pluralistas e pluri-étnicas.

1.2.0 A etnicidade yorubana ou a yorubanidade

Quando se fala em etnia yorubana, torna-se imprescindível definir a partir de que

posição teórica se pretende abordá-la. Será que podemos definir a pertença à etnia

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yorubana desde o ponto de vista primordialista, ou seja, como algo dado a priori, uma

identidade herdada? Ou será que a pertença à etnia yorubana pode ser considerada uma

estratégia de sobrevivência, uma “escolha racional” como quer a teoria instrumentalista?

Para responder a essas perguntas e outras afins, precisar-se-á voltar no tempo e no espaço

para estudar a própria origem dos povos que hoje se autodeclaram yorubanos.

1.2.1 As origens históricas e míticas da nação yorubana

Existem duas vertentes sobre a origem do povo yorubano. As duas vertentes

correspondem ao que se costuma classificar respectivamente, como relato mitológico e

histórico. Visto que, em princípio, historiadores ocidentais preferem classificar como mera

e pura mitologia todo relato oral da história da origem de qualquer povo não-ocidental, faz-

se necessário deixar claro que os sujeitos de tais histórias sempre saberão distinguir entre o

que é história e o que é mitologia, quando abordam a questão de seu passado. No que diz

respeito ao povo yorubano, os historiadores nativos yorubá-africanos distinguem entre

relatos mitológicos e a história oral propriamente dita, isso porque, no caso do primeiro, a

sua construção e veiculação se apóia, apenas, em mitos e lendas, sem nenhuma pretensão à

datação histórica.

Por outro lado, é necessário deixar claro que, de modo geral, há uma interpenetração

e interdependência entre as duas formas de constituição do passado. Ou seja, a mitologia e

a história oral partilham vários elementos constitutivos de forma que se torna difícil para

quem não tiver a mínima familiaridade com os textos hermenêuticos como, por exemplo os

textos do sagrado sistema Odu Ifá – que reúnem vários gêneros textuais como lendas,

mitos, contos, referências históricas etc. – saber enxergar a linha tênue que separa a

mitologia da história autêntica propriamente dita.

No último capítulo do seu valioso livro Um Rio chamado Atlântico, Alberto da

Costa e Silva (2003: 229) documenta uma declaração bastante surpreendente atribuída a um

cavaleiro britânico, feita em uma época que nos é tão próxima, o que acaba aguçando ainda

mais o peso do preconceito veiculado, justamente porque ninguém suporia que um

professor de Oxford repetiria o mesmo genocídio histórico, nesse caso duplamente culposo,

cometido pelo filósofo alemão W.F. Hegel, já nos meados do século XIX, ou seja, em plena

época em que as potências européias procuravam qualquer justificativa, por mais absurda

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que fosse, para fundamentar sua invasão e dominação política da África ao sul do Saara

para poder sugar-lhe a força econômica.

De acordo com o escritor brasileiro que foi por muitos anos Embaixador do Brasil

na Nigéria, esse Sir Hugh Trevor-Hoper teria declarado, em 1963, que não havia “uma

história da África subsaariana, mas tão-somente a história dos europeus no continente,

porque o resto era escuridão, e a escuridão não é matéria da história”.11 Repito: isso foi em

1963, quase meia década depois da independência política da maior parte dos países

africanos, a grande maioria tendo ganhado suas Independências da própria Inglaterra.

Ainda bem que, já naquela mesma época, existiam, conforme nos informa ainda

Silva, grupos institucionalizados de estudiosos europeus como Roland Oliver e J. D. Fage,

da editora da Universidade de Cambridge, que se dedicaram a publicação de The Journal of

African History, convencidos que estavam de que “as antigas nações africanas, tão

diferentes entre si na organização política e nos modos de vida, podiam ter suas histórias

investigadas e contadas com técnicas e procedimentos semelhantes aos aplicados aos povos

da Antiguidade mediterrânica e da Idade Média européia”12.

E, de fato, era justamente isso que se fazia nas diversas sociedades da África pré-

colonial.

Basta a gente lembrar não somente a tradição das dinastias de Abomey, no antigo

Daomé, cujos historiadores desenhavam uma grande tela de pano sobre a qual costuravam

as imagens alegóricas com as quais documentavam os grandes eventos de cada reinado das

dinastias dos senhores do Danxome13, mas também a instituição de historiadores oficiais,

chamados arökìn, em cada corte yorubana, correspondendo à casta dos famosos griots14

nas sociedades sahelianas, cuja única função na corte era fazer-se depositários de toda a

história do reino, decorando e reproduzindo, incessantemente, os fatos históricos da sua

terra, às vezes em forma de versos musicalizados, outras vezes simplesmente recitados.

11 SILVA, Alberto da Costa e, 2003, p. 229.12 Ibid, ibidem.13 uma dessas telas, contendo os dados de todos os rei de Abomey encontra-se na sala principal do MuseuAfro-Brasileiro, no antigo prédio da Faculdade de Medicina da UFBA, no Terreiro de Jesus no CentroHistórico de Salvador – Bahia- Brasil.14 Uma casta hereditária que servia de historiadores, músicos da corte, contistas e, enfim, memória ebibliotecas da nação, nas sociedades agrárias do Sahel, sobretudo, na região que hoje abrange países como,Senegal, Costa de Marfim, Mali, Burkina Faso, Guiné, Gâmbia, e Níger, na África Ocidental francófona.

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Portanto, as sociedades africanas em geral, e particularmente a sociedade yorubana

possuem várias maneiras de documentar suas histórias, de forma a distinguí-las dos mitos e

lendas. Até porque, a existência de topônimos, etinónimos, oríkìs e outras formas de provas

arqueológicas, materiais e orais espalhadas pelo território yorubano podem ser, e de fato, já

foram apresentadas como substitutos de documentos históricos escritos, para distinguir

entre o que é fato e o que é ficção, no esforço da reconstituição do passado coletivo

histórico da nação yorubana.

Além do mais, como já foi dito, a existência obrigatória de historiadores oficiais,

cuja função hereditária era, exclusivamente, a de documentar os acontecimentos durante

cada reinado dos monarcas yorubanos, por meio de composições codificadas em lendas,

poesia cantada, oriqui (loas) e vários outros meios técnicos de preservação da memória

coletiva, garante que a história do povo yorubano seja cuidadosamente empacotada para ser

transmitida de geração a geração por esses historiadores reais que eram grande

conhecedores, também, da linguagem codificada dos tambores. Isso além do uso das artes

plásticas, mediante a fabricação de peças artísticas como réplicas de coroas e cabeças reais

em terracota, bronze, cobre e outros metais preciosos, feita por artistas paladinos para

perpetuar a memória de cada reinado, da mesma forma que era feita pelas grandes dinastias

do Antigo Egito.

Por razão de conveniência, a isso tudo podemos dar o nome de história oral e

visual15. Portanto, em vez de duvidar da validade ou não dos vários tipos de relatos

históricos, melhor seria investir em uma leitura historicamente adequada de tais relatos. A

pergunta que deve ser colocada é, pois, desta ordem: o que dizem esses relatos não escritos

sobre a história do povo yorubano? Quais os pontos de convergência e divergência entre o

relato histórico e mitológico da fundação da nação yorubana?

1.2.1 Oòduà Atêwõnrõ e a fundação do mundo yorubano

Na historiografia da origem da nação yorubana, a vertente mitológica atribui a

fundação da nação à pessoa de Odùduwà, personagem místico por excelência que foi um

15 Há quem pense em usar o rótulo de histórias alternativas. Sintomaticamente, a fundação holandesa SEPHIS(South-South Exchange programme for Research on the History of Development) começou a voltar o olhar deestudiosos e historiadores a este tipo de fontes históricas alternativas. No início de 2005, organizou umencontro de historiadores sobre o tema de memória visual como fonte de história em Moçambique.

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dos ‘ìránsë Olódùmarè’, uma espécie de colegiado de conselheiros e ministros do Deus

Criador que o assessoravam tanto na criação do mundo como na sua gestão. De acordo com

o mito da criação yorubana, sob as ordens de Olódùmarè, esse Odùduwà teria descido à

terra por meio de uma cadeia de ferro, daí o seu apelido de Atêwõnrõ 16, levando consigo

uma concha de caracol que continha um punhado de areia. Conforme relata esse mito,

Odùduwà levava também nessa viagem de exploração terrestre uma galinha de cinco dedos.

Ao chegar no mundo, Odùduwà teria encontrado a face da terra toda coberta de água sobre

a qual ele teria despejado a areia que levava na concha. Depois, ele teria soltado a galinha

para que essa o ajudasse a espalhar a areia sobre a superfície das águas. Em seguida, ele

teria regressado ao ‘Õrun’ (o habitat celestial) mediante a mesma corrente pela qual viera.

Passado sete dias, Odùduwà teria voltado à terra para inspecionar o trabalho feito

pela galinha. Ele teria descoberto, ao chegar à terra que uma grande parcela da superfície já

havia se transformado em terra firme. Ao olhar esse resultado de seu lavor, Odùduwà teria

exclamado: “Ah ç wo ilê tó fê!”17. Daí nasceu Ile-Ifê a primeira cidade do universo

yorubano, também conhecido como “Ifê oòdáyé – nibi ojúmö ti í mö-ön wá”18.

Dentro da escritura sagrada de Odù-Ifá, consta uma segunda vertente desse mito da

criação, que afirma ter sido Ôbàtálá, o famoso Òrìÿà-Þlá conhecido no Brasil como Oxalá,

orixá-mor dos yorubanos, a quem Olódùmarè, o Deus-criador teria confiado primeiro a

criação da terra, mas que esse teria se tornado vítima, a caminho da terra, do engodo de

Exu, a quem ele teria recusado uma oferenda propiciatória antes de embarcar na missão.

Por conseguinte, Exu teria induzido Oxalá a beber em excesso o vinho de palmeira, o que

teria acarretado sua perda de consciência a caminho da terra. Entretanto, Odùduwà se

mostrou mais simpático para com Exu, dando-lhe a oferenda requisitada. Como

16 Com efeito, atêwõnrõ literalmente significa “aquele que desce mediante uma cadeia”.17 Tradução: Olhem a terra tão vasta que surgiu!18 Trad.: Cidade da criação do mundo, de onde sai o alvorecer. Este último apelido de Ile-Ifê aponta para ofato de que os yorubanos consideram Ile-Ifê, não somente como a origem da sua nação, mas também, como aorigem de toda a humanidade. No entanto, havia historiadores que não hesitavam em interpretar esse apelidocomo uma referência que apóia a vertente histórica que atribui aos yorubanos uma origem localizada nooriente. Ou seja, que seus ancestrais teriam migrado desde o leste, desde a região da “nascença do sol”.Veremos isso mais adiante. Em contrapartida, é preciso mencionar ainda aqui, que um outro apelido de Ile-Ifê, referido em outra versão do mito como Ifê oòyé lagbò (cidade dos sobreviventes), costuma serapresentado, não somente como prova da antiguidade de Ile-Ifê, mas também como prova de sua qualidade decidade pós-diluviano. Por sinal, o que não falta na rica mitologia yorubana são referências que testemunham acoincidência da origem da nação yorubana com os acontecimentos contados no livro bíblico do Gênesis. Cita-se até a existência de um local, chamado èdènà, na cidade de Ile-Ifê, nome que evoca o jardim de Éden,paraíso terrestre citado na Bíblia e associado à criação do mundo.

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recompensa dessa prova do bom senso de Odùduwà, Exu teria aconselhado a Olódùmarè

que confiasse a missão a Odùduwà, tirando a incumbência de Oxalá que, desde o episódio,

teria decidido que o vinho de palmeira fosse proibido para ele e para seus devotos, como,

de fato, continua sendo até o dia de hoje.

O certo, porém, é que foi Odùduwà quem acabou criando a terra em Ile-Ifê, tendo

recebido inclusive, uma cabaça sagrada chamada Igbá-Ìwà [cabaça da existência], que se

tornou, até hoje, um dos elementos rituais usados na hora de coroar os reis yorubanos. Por

isso que um dos muitos apelidos dos reis yorubanos é Aláyélúwà. Ou seja, o dono do aiyê

[o mundo], e do ìwà [a existência]. Também, como fundador, Odùduwà passou a usar,

como atributo de sua realeza divina, o título de Ôlöfin, isto é, o dono do Àwõfin [aposentos

reais]. Título esse, que seu neto – Õrànmíyàn – mais tarde passou a usar, exclusivamente,

sob a forma dialética de Aláàfin, ao fundar a dinastia de Õyö.

A vertente da história oral diverge do supracitado relato mitológico num ponto

fundamental: omite a parte da descida do céu do herói fundador da nação yorubana –

Odùduwà, mediante a cadeia de ferro. De fato, a ausência ou a omissão deste detalhe pode

ser considerada diretamente responsável pela divergência interna entre as diversas versões

posteriormente apresentadas sobre a verdadeira origem histórica dos yorubanos.

Com efeito, no que diz respeito à história oral da origem real do povo yorubano,

existem alguns detalhes sobre os quais os historiadores nunca chegaram a se por de acordo.

O ponto de maior divergência entre os historiadores concerne, justamente, ao lugar de

origem dos yorubanos. Ou seja, o ponto específico da divergência entre a vertente histórica

e a mitológica que já foi discutida. Torna-se, pois, inevitável perguntar:

• Qual foi o verdadeiro ponto de partida da nação yorubana?

• Qual seria o verdadeiro marco zero da existência desse povo?

• Será que a nação yorubana nasceu na madrugada de criação, como reza a

sua mitologia, ou será que seu núcleo fundador era formado de imigrantes de

outras bandas?

• De que parte do globo vieram?

• Do Egito ou da Núbia, da Mesopotâmia ou do Oriente Médio?

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Uma coisa é certa, existem dois momentos, distintos um do outro, na relação

historiográfica da fundação da nação yorubana. O primeiro corresponde à fundação de Ilé-

Ifê, a cidade sagrada dos yorubanos fundada por Odùduwà. A dúvida que resta concerne

apenas ao como e quando se deu essa fundação. No tocante ao segundo momento, diz

respeito à expansão da nação yorubana a partir de Ilé-Ifê, fato esse que se deu por conta da

migração dos sete príncipes, netos de Odùduwà, que saíram da cidade ancestral para ocupar

outras terras e fundar outros estados yorubanos, sempre mantendo e preservando, porém, o

laço simbólico, religioso e cultural, que os une à cidade ancestral. Este segundo momento

está bastante documentado na historiografia oral do povo yorubano, quer através da

memória viva dos historiadores das cortes de cada novo estado yorubano, quer pelos

esforços de historiadores modernos que resgataram esses documentos, oralmente

transmitidos de geração em geração, reduzindo-os a textos escritos, como foi feito no caso

da história do ramo Õyö-Yorúbá, pelo missionário Samuel Johnson (1931), e a história do

ramo dos Ànàgó, abrangendo, entre outros, o espaço cultural Kétu, Sàbç e Idaissa (Dassa),

cuja história foi recentemente resgatada por Biodun Adediran (1994).

Até os dias atuais, os detalhes do primeiro momento permanecem numa certa

obscuridade, devido a inconclusividade das evidências histórica e mitológica. A única

prova científica possível se encontra nas evidências materiais descobertas pela arqueologia

a partir de peças da antiguidade yorubana, que começaram a ser escavadas em diversos

pontos da cidade de Ilé-Ifê, desde a época do pesquisador alemão, Léo Frobenius, no início

do século passado, nomeadamente, entre 1910 e 1913, peças essas que comprovam o

florescimento em época remota, de uma civilização cuja fundação remonta, no mínimo, aos

primeiros séculos da era cristã, antes, portanto, da fundação do Islamismo. Diante das

vigentes limitações, o melhor que se pode fazer é tentar reconstituir o que se sabe dessa

história até agora.

De acordo com uma versão da historiografia oral, Odùduwà era filho ou

descendente de Lámúrúdu19 que, em certas versões, era tido como um dos antigos reis de

19 Alguns historiógrafos afirmam que esse foi o mesmo personagem Ninrode, cujo nome figurou no livrobíblico do Gênesis. Conforme a informação fornecida numa edição do panfleto da Sociedade Torre de Vigiade Bíblias e Tratados, publicado em 1998, sobre a temática da imortalidade, intitulado O que acontececonosco quando morremos?, esse Ninrode, bisneto de Noé, foi o fundador da cidade de Babilônia ou Babel.De acordo com o panfleto, “Pela fundação da cidade e pela construção duma torre nela (Torre de Babel),Ninrode iniciou outra religião. O registro bíblico mostra que, depois da confusão de línguas em Babel, os

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Meca no Oriente Médio. Quando o Islã foi introduzido naquele país pelos seguidores do

profeta Maomé (c. 670 depois de Cristo), houve uma guerra entre os islamitas e os

seguidores de Lámúrúdu que, além de ser rei era também o alto sacerdote dos orixás que

eram cultuados naquela terra antes da revelação do livro sagrado – O Alcorão – ao Profeta

Maomé. O triunfo dos muçulmanos, e a conseqüente derrota dos seguidores de Lámúrúdu,

teria obrigado seu filho, Odùduwà, a sair de Meca, acompanhado dos simpatizantes de seu

pai, depois que esse último teria perecido naquela guerra. Ao sair de Meca, o bando de

Odùduwà teria tomado o rumo sudoeste e, depois de muito tempo, teria chegado a Ilé-Ifê,

onde teriam encontrado uma civilização antiga. O líder dos habitantes originais de Ilé-Ifê

chamava-se Àgbônnìrègún e era ele o detentor dos segredos de Ifá (BABALOLA et alii,

1998: 82).

Uma outra versão dessa mesma vertente histórica conta que a terra original se

situava nas imediações do rio Nilo, na região de Núbia, no atual Egito, e que foi de lá que

Odùduwà teria saído junto com seus simpatizantes à procura de terra mais propícia para o

culto aos orixás de seu pai (OLUMIDE, 1948; BIOBAKU, 1955).

Ainda outros pesquisadores que não queriam procurar a origem dos yorubanos de

tão longe procuram sustentar a tese de que o ‘oriente’ ao qual se refere na história oral

yorubana não passa da região nordeste da atual república nigeriana, apoiando o seu

argumento em semelhanças culturais entre o povo yorubano e algumas etnias nigerianas,

tais como os Bawa Yorubawa e os Gògòbiri no estado de Kano na Nigéria moderna, assim

como os Beribéri, no estado nigeriano de Jigawa. Na opinião de Babalola et alii, arrumar

uma explicação para essa redução da distância da migração yorubana não seria tão difícil

quanto possa parecer. Na sua opinião, a explicação mais lógica seria que, durante o largo

período da migração, alguns dos seguidores de Odùduwà teriam decidido ficar no caminho

à medida que iam chegando a lugares que achavam convenientes para se fixar, deixando

que o grupo principal, chefiado por Odùduwà, continuasse até chegar em Ilé-Ifê. Uma das

versões da história até chega a precisar que Odùduwà e seus seguidores teriam levado 90

dias para chegar a Ilé-Ifê, o que deixa supor que os outros grupos, como aqueles liderados

pelos fundadores dos Gogobiri e Kukawa teriam ficado pelo caminho, talvez devido ao

malogrados construtores da torre se espalharam e empreenderam novos começos, levando consigo a suareligião...” (Gênesis 10:6-10; 11:4-9).

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cansaço, sendo que, na simbologia yorubana, o algarismo nove representa a idéia de

infinitude.

Entre a década de cinqüenta e os anos setenta do século passado, intensificaram-se

as pesquisas arqueológicas para se chegar a uma datação cronológica que permitisse

determinar a idade exata da cidade de Ilé-Ifê, reconhecida como o lugar de fundação da

nação yorubana. Segundo o historiador alemão Dierk Lange (1995ª: 46), peças ou vestígios

arqueológicos, todos localizados na cidade de Ilé-Ifê, tais como os monumentos em pedra,

cemitérios e santuários rituais dos reis de Ilé-Ifê e dos monarcas do império vizinho dos

Binis20, assim como as figurinhas em terracota; contas e colares, feitos de vidro e bronze,

escavados diversamente em Igbó Olókun, Ita Yemòó, Wúnmôníjê e Wálodè, dentro do

perímetro da cidade de Ilé-Ifê, atestam para o fato de que a fundação da cidade-mãe dos

yorubanos antecedeu a introdução do Islamismo (século VII), e que a civilização yorubana,

que florescia em Ilé-Ifê, atingiu sua idade clássica bem antes do século XI.

O que parece evidente nesses e outros relatos históricos é que os yorubanos tinham

chegado na sua região atual vindos do oriente. Todos os relatos estão em acordo sobre este

fato. A disputa, entretanto, reside na questão da definição desse ‘oriente’. Enquanto uns

acham que ‘oriente’ assim referido se reporta a Meca ou a região do Oriente Médio –

Núbia, Egito etc. – (BIOBAKU, 1955; JOHNSON, 1931), outros acham que os yorubanos

teriam vindo de mais longe ainda, citando, até, certos costumes dos japoneses, como apoio

para o seu argumento de que o grupo de Odùduwà teria vindo da terra do levante. [“...nibi

ojúmö ti í mö-ön wá”].

Conforme as interpretações das escolas migratórias, seja qual for a origem real, o

detalhe mais importante, que sobressai da história oral, continua sendo o fato de que o povo

yorubano chegou ao seu local atual depois de uma, ou, várias levas de migrações, desde

20 A história da conexão entre o reino Yorubá e o reino dos Edos cuja capital se situa em Benin está ligada aÒrànmíyàn, um dos príncipes descendentes de Odùduwà que viria a ser mais tarde fundador do estado Òyó-Yorùbá. Esse Òrànmíyàn teria sido enviado à terra dos Edos, a pedido desses últimos que necessitavam dealguém para ajudá-los a instituir a monarquia naquela terra. Òrànmíyàn teria reinado naquela terra durantealgum tempo, deixando mais tarde o trono nas mãos do filho que teve com uma mulher nativa do local. Porisso que até o dia de hoje, o título do rei dos Binis é Ômônöba, ou seja, filho-do-rei. Também se conta que sedata daquele mesmo período a tradição de levar os restos mortais dos reis de Bini para serem sepultados emum cemitério específico em Ilé-Ifè. O bairro em que se situa esse cemitério se chama, em Ilé-Ifè, até hoje, deÕrun Ôbaàdó, forma aglutinada da expressão õrun Ôba-Êdó, ou seja, o céu-(jazigo)-final-dos-soberanos-do-povo-Edo (Bini).

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leste para oeste. Por sinal, o historiador beninense A. Félix Iroko (1998:24 ff.) já conseguiu

provar que a maioria das migrações dos povos africanos ocorreu na direção leste-oeste.

No entanto, talvez seja necessário questionar essa suposta história da origem do

povo yorubano como sendo resultado de uma migração vinda do oriente, principalmente,

na vertente sustentada por Samuel Johnson, que ostenta um parentesco entre os yorubanos e

o povo do antigo Egito. Hoje, considera-se um exercício quase fútil e desnecessário

procurar conectar os povos da África ao sul do Saara, ao Egito Antigo, em busca de uma

valorização tardia que faria de tais povos herdeiros da alta civilização da antiguidade

egípcia. Alguns teóricos das relações raciais, na conjuntura da modernidade tardia,

consideram tal hipótese como algo prejudicial às próprias culturas africanas assim descritas,

haja vista que, conforme raciocinam, tais procedimentos ‘egiptocêntricos’, que visam o

resgate da glória do passado africano, diante da negação eurocêntrica, não passam, na

melhor das hipóteses, de uma extravagância pitoresca, e na pior das hipóteses, não passa de

uma outra maneira de eclipsar a grandeza das outras civilizações africanas, contemporâneas

da civilização egípcia21.

Em primeiro lugar, vale a pena deixar claro que a historiografia, que procura fazer

dos yorubanos ‘descendentes’ do povo egípcio já tinha desenvolvido essa idéia, baseando-

se em provas, como o conhecimento de vários ramos científicos, tais como a matemática, a

astrologia e a ciência oracular, além de técnicas de trabalhar pedras, vidros e bronze,

comum às duas civilizações, bem antes do surgimento da teoria dos egiptólogos, oriunda

dos Estados-Unidos no primeiro quartel do século XX.

Mesmo assim, sou da opinião que não se pode descartar a possibilidade de um

movimento inverso, na busca pela autêntica história dos povos africanos. Ou seja, mesmo

quando não existe o medo de cair no rótulo de afrocentrismo pró-kemético22 há um sentido

no qual se pode postular um fluxo, e refluxo, por quê não, de idéias do sul para o norte,

conforme o próprio fluxo direcional do Rio Nilo23. Acho, portanto que não seria ilícito

21 Sobre essas críticas ao afrocentrismo egiptófilo, ver, por exemplo, P.F. De Moraes Farias: “Afrocentrismo:entre uma contranarrativa histórica universalista e o relativismo cultural”, in Afro-Ásia, no. 29/30. (2003), p.317-343.22 Segundo Molefi Kete Asante, pensador ganense radicado nos Estados-Unidos, os egípcios antigoschamavam sua terra carinhosamente de Kemet. Cf. ASANTE, 1994.23 Novamente, é Kete Asante que nos informa que o Rio Nilo sai do centro do continente africano e corre emdireção ao norte do continente para desaguar no Mar Mediterrâneo que separa a África da Europa e do

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pensar que, ao invés de aceitar que toda originalidade e invenção da antiguidade africana

fluía do Egito para o sul, poderia ter havido na verdade, uma troca de idéias em direção

inversa, partindo dos povos do sul rumo ao norte, influenciando os núbios e os egípcios. É

bem provável, também, que tivesse havido um aprimoramento de idéias partindo do sul

pelo povo egípcio, passando tais idéias a fazer o caminho inverso em momentos

posteriores, antes de recomeçar, novamente, o fluxo rumo ao norte e assim por diante. Ou

seja, que, em última estância, é possível considerar a troca de idéias entre os diversos povos

africanos da antiguidade como um fluxo circular ao invés de uma expansão unidirecional

como imposta pelos historiadores da egiptologia.

Com essas conjecturas estou tentando desarticular a teoria da evolução dos povos da

África ao sul do Saara, neste caso específico, do povo yorubano, a partir do Egito. Em vez

de achar que a civilização yorubana, sobretudo naqueles traços culturais e científicos que

aproximam o povo yorubano dos egípcios da antiguidade, teriam partido do Egito,

proponho um caminho inverso. Até porque existem provas de que a civilização yorubana

não teve a possibilidade de desenvolver-se tão plenamente quanto a egípcia, o que poderia

fazer supor que algumas das idéias partiram originalmente de lá e foram aperfeiçoadas

pelos egípcios. Além do mais, é um fato histórico que a comunicação entre as regiões norte

e sul da África sofrera uma grande ruptura devido ao avanço progressivo da desertificação

na região do Saara, acabando por cortar as duas Áfricas, por volta do quinto ou sexto século

da era cristã, o que teria interrompido o fluxo de idéias entre as duas partes, acarretando

quedas em padrões de vida e aprofundando níveis diferenciados de desenvolvimento nas

duas partes devido às novas influências e experiências vividas com novos parceiros e

vizinhos emergentes.

Outra possível evidência para sustentar esta teoria do fluxo de idéias das

civilizações do sul para as paragens do Nilo é o próprio fluxo direcional do sistema trans-

saariano da escravidão, um sistema que precedeu o trato trans-Atlântico e através do qual

foram levados trabalhadores do sul do Saara para as terras do norte, sobretudo os países do

Oriente Médio, como o Egito e a Arábia Saudita. Não se pode descartar a possibilidade de

ter sido esse o mesmo caminho do fluxo dos saberes e da ciência, que foram aperfeiçoados

no Antigo Egito, de onde foram transportados para o resto do mundo. Oriente Médio. Conforme deixa claro Asante, o norte do Egito era considerado a região sul, e o sul era

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Para mim, a teoria que procura a origem da nação yorubana em Meca ou no Egito

não deve ser aceita ao pé da letra. Sobretudo, porque, por trás da difusão original dessa

idéia estão intelectuais islâmicos, como o sultão Mohammad Bello, filho e herdeiro político

de Uthman dan Fodio, o clérigo muçulmano e primeiro sultão de Sokotó que protagonizou

a guerra santa islâmica, que serviu de ponta de lança para a propagação do Islamismo, na

área que corresponde ao norte e sudoeste da atual República da Nigéria24. Não poderia

haver dúvida de que essa versão da história do povo yorubano tinha algo de proselitismo

islâmico. Sobretudo quando se leva em conta o fato de que, para o jihad, declarado por

Uthman dan Fodio contra o povo yorubano, se fazia necessária uma prova de que os

yorubanos eram descendentes de povos kafir (termo muçulmano para designar gentes que

não acreditam em Alá, o Deus do Islã) e que o seu destino era ser islamizado e inserido no

Califado de Sokotó. Pelo menos isso se infere, facilmente, no seguinte depoimento

recolhido por Lange (1995ª: 42):

As early as the beginning of the 19th century, the question of the origin of theYorùbá had already attracted the interest of Muhammad Bello, son of Uthman danFodio and later ruler of the Sokoto Empire. He committed to writing the traditions,related to him by Muslims from the North, according to which the Yorùbá weredescendants of the Canaanites, belonging to the family of Nimrod (Bello 1964: 48)

Tradução:[Desde o início do século XIX, a questão da origem dos Yorùbá tinha interessado aMohammad Bello, filho de Uthman dan Fodio e futuro dirigente do Reino(Califado) de Socotó. Ele escreveu os relatos orais que lhe foram contados pormuçulmanos oriundos do norte, segundo os quais os yorubanos seriam descendentesdos cananeus, pertencendo à família de Ninrode]. (Bello, 1964:48)

Pela mesma razão, torna-se, igualmente, suspeita a versão de Johnson (1937: 6-7),

que propõe uma origem egípcio-cristã para o povo yorubano, procurando sustentar, com

provas materiais, existentes dentro da própria civilização yorubana, que os yorubanos eram

descendentes de um grupo cristão-cóptico, cuja origem se localizaria entre o antigo Egito e

a Etiópia, praticando ‘uma espécie corrupta do cristianismo oriental’. Para Johnson, a

conexão entre os yorubanos e essa região era mais do que provada, já que, para ele, não

chamado norte, devido ao fluxo do Rio Nilo.24 É sintomático que foi essa versão da origem dos yorubanos apresentada por Bello, que serviu de ponto departida para a história de Samuel Johnson. O grupo Òyó-Yorùbá, ao qual pertencia Johnson, foi a primeiravítima dessa ideologia do Jihad, ou seja, da guerra santa. Na época em que Johnson reunia matérias para o seulivro, esta já era uma versão escrita difundida da ‘história’ dos yorubanos.

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haveria, de modo contrário, como explicar tantas referências na mitologia yorubana a

eventos bíblicos. O nosso missionário cumpriu com entusiasmo seu papel, conforme essa

amostra da sua obra seminal, History of the Yorubás:

(...) It might probably then be shown that the ancestors of the Yorubás hailing fromUpper Egypt, were Coptic Christians, or at any rate that they had some knowledgeof Christianity. If so, it might offer a solution of the problem of how it came aboutthat traditional stories of the creation, the deluge, of Elijah, and other scripturalcharacters are current amongst them, and indirect stories of our Lord, termed “sonof Moremi (…)(...) That they (the Yorubás) emigrated from the Upper Egypt to Ilé-Ifè may also beproved by those sculptures commonly known as “Ifè Marbles”, several of whichmay be seen at Ilé-Ifè to this day, said to be the handiwork of the early ancestors ofthe race. They are altogether Egyptian in form. The most notable of them is what isknown as the “Òpá Orañyan”, (Orañyan’s staff) an obelisk standing on the site ofOrañyan’s supposed grave, having characters cut in it which suggests a Phoenicianorigin. Three or four of these sculptures may now be seen in the Egyptian Court ofthe British Museum, showing at a glance that they are among kindred works of art.

Tradução:

[...] Portanto, é possível afirmar que os ancestrais dos Yorubas, sendo descendentesdos povos que habitavam a parte superior do Egito eram cristãos cópticos, ou , dequalquer maneira, tinham certos conhecimentos do cristianismo. Assim sendo,tornar-se-ia mais fácil solucionar o enigma de como esse povo conta como parte desua história acontecimentos como a tradicional história da criação do mundo, oepisódio do dilúvio, a história do profeta Elias e de outras personalidades da Bíblia,assim como histórias indiretas da vida do nosso Senhor (Jesus Cristo), que eleschamam “filho de Moremi.[...] A prova de que os yorubanos teriam migrado desde a região superior do Egitoaté Ilé-Ifè pode ser encontrada nas esculturas em mármore conhecidas geralmentecomo “Ifè marbles” (mármores de Ifè) muitos dos quais ainda podem ser visto atéhoje na cidade de Ilé-Ifè reputadas como tendo sido fabricados pelos primeirosancestrais da raça. Não há dúvida de que essas esculturas em mármore sejam deinspiração egípcia. A mais notável dentre elas é o que se chama de ‘Òpá Orañyan’,ou seja, o bastão de Òranyan, um obelisco que fica plantado no local que é tidocomo o tombo de Òranyan25, tendo na sua superfície algumas inscrições incrustadasna pedra que parecem de origem fenícia. Uns três ou quatro deste tipo de esculturasencontram-se atualmente na Corte egípcia do Museu Britânico, e vê-se logo de cara,que se trata de espécies da mesma origem].

25 O caçula dos netos de Oduduwa que herdou o reino de Ile Ife e foi também fundador das dinastias de Òyó eBenin, isto é, do povo Bini ou Êdo.

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Não é isso, porém, que sugere a historiografia que partiu de Ilé-Ifè, o centro

histórico-espiritual dos yorubanos. Tanto as evidências arqueológicas quanto as mais

antigas tradições populares, inclusive os nomes de linhagens e de lugares na cidade

ancestral de Ilé-Ifè, apontam para uma origem in-loco para o povo yorubano. Vários

apelidos e cantigas atestam para fato de Ilé-Ifè ser a própria origem, não só da nação

yorubana, mas também da própria humanidade, pelo menos do ponto de vista das suas

tradições mito-históricas. Tudo indica que o peso da memória, carregada pela mitologia e

por outras fontes pseudo-históricas no tocante à origem da nação yorubana, é maior do que

aquilo que a epistemologia histórica ortodoxa pretende lhe conceder.

O fato é que, dentro da tradição yorubana, a mitologia e aquilo que a ortodoxia

ocidental classificaria como “autêntica história” parecem ser muito intimamente ligadas.

Como afirma um ditado yorubano: “Bí ômôdé kò mô ìtàn, á bá àröbá, àröbá baba ìtàn”,

ou seja, mesmo quando se desconhece a história (ìtàn), a mitologia (àröbá) estará sempre ao

alcance. Na ótica da historiografia tradicional, essa àröbá representa, na realidade, o

verdadeiro “pai” (baba), isto é, o fundamento, da própria história.

O que isso que dizer é que a tradição yorubana leva muito a sério aquilo que a

ortodoxia eurocêntrica costuma desqualificar como mera invenção mitológica. Até porque

ainda é possível encontrar em Ilé-Ifè pessoas dispostas a mostrar o ponto onde Odùduwà

teria descido, mediante a cadeia de ferro, e indicando, inclusive, o suposto paradeiro

daquela corrente de ferro, que teria servido de ponte aérea para o poderoso fundador da

nação, carinhosamente lembrado em Ilé-Ifè como Oòduà Afêwõnrõ26.

Embora a história ortodoxa universal só tenha notícia da palavra Osíris como sendo

uma referência ao deus do além-mundo nos cultos do Antigo Egito, divindade que se

cultuava, também por aquele povo antigo, como a divindade da morte, do renascimento e

da agricultura (ASHANTE, 1994: 27),27 na realidade, longe de considerar ou aceitar a

cogitação de que sua cultura um dia fora, talvez, na remota antiguidade, tributária da

cultura egípcia, a tradição de Ifê apresentaria, como sinal corroborativo de sua condição de

primeira civilização do mundo, a peculiar existência da orquestra chamada Òsírìgí, formada

26 Até hoje, um obelisco erigido dentro do palácio do rei de Ilé-Ifè mostra todos os detalhes desse episódiohistórico protagonizado por Odùduwà. .27 Vale lembrar ainda que um dos oriquis do rei de Ile-Ife é: ikú bábá yèyé, ou seja, alguém que representa aprópria morte.

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de um conjunto de agogôs gigantes, tocados com uma vara, para produzir um ritmo único e

singular, ao qual só pode dançar o Ôõni-Àdìmúlà, rei de Ilé-Ifê, na sua condição de

Ôõnirìsa (rei e orixá).28

Portanto, como já foi citado anteriormente, a cidade de Ilé-Ifê ganhara, desde a

conclusão da missão de Odùduwà, o apelido de Ifê Oòdáyé, quer dizer, a terra da criação, o

ponto onde o ayé (mundo) teria começado. Lembremos que um dos oriquís que

acompanham este apelido é: nibi ojúmö ti í mö wá, ou seja, a terra de onde raia o dia.

Historiadores da corte de Ilé-Ifê, como Ajayi Fabunmi, costumam explicar esse e outros

apelidos da terra, inclusive esse outro que se refere a ela como Ifê Oòyè l’agbò, isto é, a

terra dos sobreviventes. Quando se pergunta, sobreviventes de que, a resposta que se

costuma dar é que ganhou este apelido depois de uma enchente que matou muita gente,

sendo que os sobreviventes dessa catástrofe passaram a perguntar uns aos outros quando as

águas começaram a baixar, ÿ`óoyè bí o?, quer dizer, você sobreviveu?

Esses e outros dados históricos, preservados pela mitologia yorubana até hoje, se

conservam-se na memória coletiva através de vários ditados, lendas e até cantigas como

essa que passo a reproduzir, tendo-se transformado hoje em verdadeiro hino nacional da

terra de Ilé-Ifè:

Ilé-Ifê ni orírun Ayé, (Ilé-Ifè é a origem do mundo)Ilú Oòduà baba Yorùbá, (Cidade de Odùduwà, pai dos

yorubanos)Èdùmàrè tó dawa s`Ífê (Ó Deus que nos criou nesta terra)Kó máÿe ba`fê jë mö wa l`öwö (não deixe que ela se desintegre nunca)K`Ólúwa kó máa rànwá ÿe (Que Deus nos ajude a sustentá-la)

Refrao: Ifê-Oòyè ç jí gìrì (Acordais ó povo de Ifè-Oòyè, acordais)Ç jí gìrì këç gbé Ifê ga (Acordais para cumprir o vosso dever para

com a terra)Olórí ayé n`Ifê Oòyè (Ifé-Oòyè foi a cabeça do mundo)Kámúra lati tê síwájú, (Nunca devemos deixar que periclite)Õramfê onílé-iná, (Ó Oarmfe-da-casa-de fogo29)Oòduà a wêrìrì jagun, (te rogamos, ó Odùduwà terrível na guerra)Õkànlénírún irúnmôlê (Ó vós 401 irunmoles (orixás))

28 Ressalte-se que, uma das cantigas que acompanha a música produzida pela orquestra de Osirigi apresentaum refrão, que afirma a anterioridade da civilização de Ilé-Ifê: Ifê Oòyè, ólorí ayé gbogbo!.29 Na mitologia yorubana, Oramfe era o orixá original investido com os poderes de controlar o fogo e otrovão, poderes esses que viriam a tornar-se atributos de Xangô, quarto rei de Òyó que foi divinizadoposteriormente.

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Ç gbé`fê lékè ìÿòro gbogbo. (Não nos abandonem nunca!)

Ilé-Ifê `bojúmö tímö wá, (Ilé-Ifè terra da aurora)Ìlú àÿà òun ìlú êsìn, (cidade da cultura e da religião)Gbogbo Yorùbá ç káre`fê (vinde a Ifé o vós yorubanos)Ká lô w’ohun àdáyébá tó jôjú, (vinde ver as primeiras maravilhas do

mundo)Õpá Õrànmíyàn, Ifê lówà, (o obelisco de Òránmíyàn30 está em Ifè)Bojì Môrèmi, Ilé-Ifê ni, (O túmulo de Moremi31 também se

encontra lá)Ará ç káre`Fê Oòdáyé. (Ò vinde todos a Ifè-Oòdáyé!)

Defendo, pois, a minha tese, que se deve prestar mais atenção aos mitos de origem

da nação yorubana do que tem sido feito até agora, porque, uma coisa parece certa, mesmo

na opinião dos historiadores mais conceituados do nosso tempo, a história da antiguidade

yorubana continua a rivalizar com a do Antigo Egito. (Lange, 1995:48).

On the other hand, these momentous signals of African creativity do not rule out thepossibility that basic elements of statehood, the cult of the dead, the prime mythicalconcepts, as well as urbanity, which formed the background of the artistic creationsadmired worldwide, were rooted much earlier among the Yorùbá. Ife flourished inthe late middle ages, there is no doubt about that, but with the datings available to ustoday, the problem of the founding of the city is far from being resolved (…)

Tradução:Por outro lado, esses sinais significativos da criatividade africana (como aquelaspelas quais ficou famoso o Antigo Egito) não excluem a possibilidade de que oselementos básicos de instituições como o Estado, o culto aos mortos, os conceitoschaves da mitologia, assim como o princípio do urbanismo que formavam o pano defundo para as criações artísticas admiradas no mundo inteiro, tenham sidodesenvolvidos entre os yorubanos muito antes (do que qualquer outro povo). De quea civilização de Ifè floresceu até a alta Idade Média não poderá mais haver dúvidas,

30 Foi justamente as inscrições feitas na superfície desse obelisco que Samuel Johnson descreve comohieróglifos egípcios.31 Moremi era uma rainha de Ilé-Ifè que sacrificou seu filho único para salvar a terra durante uma invasão,passando ela e o filho, Olúorogbo, a serem divinizados em seguida. O culto a esses dois orixás é exclusivo aopovo de Ilé-Ifè, e, o fato de sua ausência absoluta em todos os pólos da diáspora yorubana faz-me crer nahipótese de que não deveriam ter saído muitos escravizados de Ilé-Ifè, até porque, historicamente, a cidade,como santuário espiritual da nação yorubana sempre foi protegida de toda agressão externa durante as guerrasde secessão provocadas pela queda do poderoso reino de Òyó no primeiro quartel do século XIX. Consta nahistória que a única vez que um outro estado yorubano chamado Òwu declarou guerra contra Ilé-Ifé, os outrosestados yorubanos foram quem defenderam a terra sagrada, a represália investida contra Òwu sendo tão forteque a cidade acabou sendo totalmente destruída para nunca mais ser re-erguida como estado independente.Hoje, Òwu faz parte da confederação Ègbá-yorubana.

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mas com a possibilidade de novas datações de que dispomos hoje, a questão dafundação da cidade está longe de ser resolvida...

Talvez, a maior garantia que temos de que exista de verdade uma conexão inegável

entre o que se dá como mitologia yorubana e o que se aceite como ‘autêntica história’32

(Johnson, 1931) seja a existência de muitos pontos de convergência entre as duas vertentes

da narrativa da origem da nação yorubana. Senão vejamos:

(i). tanto a vertente mitológica quanto a histórica oral demonstram que Odùduwà foi

o herói-fundador da nação yorubana, e

(ii). as duas vertentes mantêm a referência a Ilé-Ifê como berço da civilização

yorubana de onde nasceram os outros Estado-nações do povo yorubano.

Com efeito, ambas as vertentes do relato da origem do povo yorubano estão de

acordo sobre o fato de Odùduwà ter tido um filho único chamado Õkànbí e que foi esse

Õkànbí quem gerou os sete príncipes que mais tarde se tornariam os reis-fundadores dos

principais Estado-nações dos yorubanos, com direito a usar a coroa de Odùduwá, chamada

Adé ìlêkê, feita de contas preciosas (com franjas para ocultar o rosto do rei) que os

distingue de outros soberanos posteriores yorubanos, tidos como reis de segunda classe a

quem a tradição proíbe o uso de coroas, a não ser aquelas chamadas Akoro, meia coroa feita

de cobre. (Johnson, 1931: 8).

Assim foi graças aos netos de Odùduwà que o reino Yorùbá se expandiu ocupando

a extensa região que abrange hoje vários países da África Ocidental, indo de Ilé-Ifè, na

atual República da Nigéria, a Grand Popo, na atual República de Togo, de Õyö-Alààfin, no

centro-oeste da Nigéria a Ketu na atual República do Benin (antigo Daomé). Johnson, (

1930) na sua versão pró-Òyò33, deu a lista completa dos sete netos de Odùduwà como

sendo na seguinte ordem:

The first-born was a princess who was married to a priest, and became the mother ofthe famous Olowu, the ancestor of the Owus. The second child was also a princesswho became the mother of the Alaketu, the progenitor of the Ketu people. The third,

32 Essa expressão “autêntica história” é de Samuel Johnson.33Samuel Johnson nasceu em Òyó, se tornou pastor da igreja anglicana na mesma cidade. O fato é que, osmissionários de origem Òyó-yorubá foram proeminentes na transformação da história oral dos yorubás emhistória escrita. Um outro Samuel, também missionário, primeiro negro-africano a ser consagrado bispoanglicano iniciou o processo da escrita de língua yorubána, completando a primeira tradução da Bíbliayorubana em torno do ano 1856.

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a prince, became king of the Benin People. The fourth, the Orangun, became king ofÌlá; the fifth, the Onisabe, or king of the Sabes; the sixth, Olupópó, or king of thePopos; the seventh and last born, Orañyan, who was the progenitor of the Yorubasproper, or as they are better distinguished Oyos

Tradução:O primogênito foi uma princesa que se casou com um sacerdote (de orixá) e setornou mãe do famoso Olowu, o ancestral dos Owu (êgbá). O segundo filho tambémera uma princesa que mais tarde se tornara mãe do Alaketu, progenitor do povoqueto. O terceiro, um príncipe se tornara rei dos Bini. O quarto foi Orangun, rei deÌlá; o quinto foi o Oníÿàbç rei de Savé; o sexto, Olúpópó, rei de Pópô; o sétimo queera o caçula Õrányàn, aquele que se tornara progenitor dos Yorubás propriamentedito, ou seja, os Õyö.

Neste segmento, procurei provar que, embora se costume argumentar que a natureza

oral tanto dos mitos como dos relatos históricos, oralmente transmitidos, dificulte a

verificação de sua autenticidade e baseada nisso, a epistemologia ocidental muitas vezes

prefira desqualificar tais relatos como inválidos, acontece que, como já frisamos neste

capítulo, provas arqueológicas, surgidas das escavações de sítios em diversos pontos da

iorubalândia, sobretudo em Ilé-Ifê, trazidas corroboram grande parte da história oral das

origens do povo yorubano. Desde a publicação do livro do etnólogo alemão, Leo Frobenius

(1912ª? 323-351), que visitou a cidade ancestral de Ilé-Ifê no ano de 1910. Onde realizou

várias pesquisas arqueológicas, que resultaram na escavação de uma das obras mais

conhecidas da arte africana no mundo inteiro, a escultura chamada ORÍ OLOKUN, cabeça

ornamentada de um antigo rei de Ilé-Ifè – o que levou Frobenius a declarar ter descoberto a

terra perdida da lendária Atlântida – nota-se que historiadores e arqueólogos modernos

passam a falar da existência de uma idade arqueológica da nação yorubana, ou mais

especificamente, de Ilé-Ifê , a sua cidade-berço.

Além do mais, cada Estado-nação yorubano ainda consegue reconstruir a história de

sua fundação através de nomes de linhagens, oriquís e tradições que os ligam à cidade

ancestral de Ilé-Ifè. Isso tudo fez Lange (1995ª:39) concluir que: ‘Entre os povos da África,

os Yorùbás se destacam como um povo particularmente rico em testemunhos de seu

passado (...)’.

Portanto, quando Walter J. Ong (1982) afirma que “Literacy ... is absolutely

necessary for the development not only of science but also of history, philosophy,

explicative understanding of literature and of any art, and indeed for the explanation of

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language (including oral speech) itself...”34, reforçando, deste modo, a epistemologia

hegeliana, que desqualifica a toda sociedade que desconhecia o alfabeto euro-ocidental até

o momento do contato fatal da África com os agentes do imperialismo europeu,

considerando-a incapaz de produzir ou desenvolver sua história. Ong e outros que pensam

desse modo parecem desconhecer os verdadeiros recursos da memória que representam os

oríkì, ìtàn e outras formas de textos orais, comum em muitas das sociedades africanas.

Contudo, no caso dos yorubanos, já houve quem os descrevesse como o povo mais

notável da ‘África Negra’, devido à riqueza de seus mitos, (Baumann, 1936, apud Langes,

1995ª), além de ainda outro historiador que descreveu Ilé-Ifê , capital espiritual e berço da

civilização yorubana, como o mais importante sítio arqueológico da África ao sul do Saara.

(Mauny, 1961, apud 1995ª). Aliás, em matéria de textos ‘escritos’, a mitologia yorubana

ainda faz crer que alguns dos orixás do panteão yorubano eram conhecedores dessa arte.

Pelo menos, Olúorogbo, o orixá da inocência, cujo sobrenome é dado como Êlà, ou seja, ‘o

salvador’, (porque foi o seu sacrifício altruísta, para cumprir a promessa feita por sua mãe

Môrèmi-Àjàsorò, que salvou o povo de Ilé-Ifê, durante um período de crise nacional Abiri,

1970), costuma ser descrito como o inventor de livros e grande conhecedor da arte da

escrita35 como comprova um dos oriquís do orixá que o descreve como ‘Oníwèéõrun’, ou

seja, o dono celestial dos livros. Eis o que afirma Bolaji Campbell (1995ª:28) a respeito

desta divindade cujo único templo fica em Ilé-Ifê, e é considerado o mais importante orixá

em Ilé-Ifê, depois de Ôbàtálá (Oxalá):

Indeed, it cannot be ascertained which of the two divinities invented the art ofwriting. Neither can the devotees establish which of them has sacred paintingsbefore the other on their shrine walls. Suffice to say that a version affirms thatOluorogbo was always writing in codes not only on house walls but also on treesbarks during his life time…It is this tradition of Oluorogbo that his wives, theÌyawo’le are trying to perpetuate by copying some of his images and symbols inveneration and glorification of his memory. The Oluorogbo painting is usually intwo segments of about fourteen vertically spaced sections with the sacred imagescarefully arranged within the sections.

Tradução:

34 Tradução: A escrita ... é absolutamente necessária, não somente para o desenvolvimento da ciência, mastambém da história, filosofia, compreensão explicativa da literatura ou de qualquer outra arte, e até mesmo aexplicação da própria linguagem inclusive a fala oral35Cf. FABUNMI, M.A., 1969 apud CAMPBELL, op. cit. p. 28.

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De fato, é difícil saber qual desses dois orixás (Obàtálá e Olúorogbo) inventou a arteda escrita. Tampouco os devotos conseguem informar com clareza qual dos dois foio primeiro a ter pinturas sagradas feitas nas paredes de seu templo. Basta dizer,porém que uma versão das legendas afirma que, durante a sua vida, Olúorogbosempre costumava escrever em códigos e símbolos [hieróglifos?], não somente nasparedes das casas, mas também nos troncos de árvores... É, pois essa tradição deOlúorogbo que as mulheres da linhagem consagrada a ele, as chamadas ìyàwó’lé,procuram perpetuar reproduzindo as imagens e símbolos inventados por Olúorogboem veneração e glorificação de sua memória. As pinturas de Olúorogbo costumamser traçadas, em dois segmentos de quatorze colunas verticalmente arranjadas comas imagens sagradas do orixá cuidadosamente colocadas dentro das colunas.

Além do mais, muitos etnógrafos ocidentais, ao descobrir o rigoroso e longuíssimo

processo da formação dos arökìþ (bardos), òpìtàn (historiadores), babaláwos e outras castas

de historiadores-intelectuais tradicionais nas sociedades africanas, [essa classe que

representa o arquivo vivo e ambulante da nação, constituindo linhagens de verdadeiras

bibliotecas humanas altamente qualificadas para guardar minuciosamente e reproduzir (nas

tradicionais ocasiões de praxe como a instalação de um novo rei) os acontecimentos

principais da sua nação,[ não hesitam mais em atribuí-lhes a qualidade dos mais

prestigiados ‘escritores-intelectuais’ da pré-modernidade yorubana}.

É análoga e pertinente a afirmação do escritor maliense, Tierno Boukar (apud

Hampaté Bâ, 1972:22) sobre a casta de griot, homólogos dos arökìþ (bardos) e òpìtàn

(historiadores) yorubanos nas sociedades sahelianas, cuja arte o filósofo maliense se fez

defensor quando informa que A escrita é uma coisa e o saber é outra. A escrita é a

fotografia do saber, mas não é o próprio saber. O saber é uma luz que existe no homem. É

a herança de tudo o que os ancestrais aprenderam e que nos transmitiram em germe, assim

como o baobá está potencialmente contido na semente.

Além do mais, no caso yorubano, não se pode dizer que o povo sempre foi ágrafo.

Embora o povo não tenha conhecido o alfabeto romano antes da chegada dos europeus, a

classe intelectual dos babaláwos sempre usava (e o fazem ainda hoje) uma forma de escrita

nas suas consultas do oráculo de Ifá. O jogo oracular de Ifá consiste em traçar no ôpön ifá,

uma bandeja previamente coberta de um pó especial chamado Ìyêròsùn, a assinatura do

Odù Ifá que se apresenta para cada consulente. Esta assinatura traçada consiste em imprimir

no pó com os dois dedos principais um par de linhas conforme a disposição do õpêlê

(corrente de adivinhação) ou ikin (os caroços sagrados) que se usam no processo oracular.

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Sobre esse assunto, terei ocasião de dizer mais a respeito deste processo divinatório no

capítulo II.

Basta dizer que essa assinatura representa o título do Odù, que, talvez, pode ser

comparado aos títulos de salmos na Bíblia. Da mesma forma que se torna fácil lembrar o

conteúdo do respectivo salmo a partir de uma assinatura como Sl. 23 (24), permitindo ao

cristão recitar de cor os versos do Salmo 23: “O Senhor é meu Pastor, nada me faltará...”,

basta aparecer no ôpön ifá, por exemplo, as seguintes “letras” ou assinatura de Õbàrà òtúá

(Salami, 2002: 383):

() ()

() () () ()

() () ()

() () ()

e um babaláwo competente não teria dificuldade em fazer a leitura dos textos do odù,

recitando um texto análogo como esse:

Õbàrà túa tùa Obàrà túa tuaAwo itu ló díá fún Itu Assim se chamava o babaláwo de Itú (pardalní kùtùkùtù òwúrõ desde o início da sua vida (predestino)Wön ní kó rúbô kó lè O babaláwo pediu que fizesse uma obrigaçãobaà ríre gbé jó láyé para que a sua vida seja boa e repleta de bensÒún le láya báyìí? Queria saber se teria uma esposa digna na sua vidaKóun ó bímo? Indagava ao Ifá se ele poderia ter filhos na vidaWön ní kí Itú ó rúbô … Ifá pediu que fizesse uma oferenda ...

É verdade que no caso do babaláwo yorubano, o seu texto não é escrito no papel,

mas sim, na sua própria memória, como estão bem escritos na sua memória todos os 256

Odùs que teria apreendido ao longo do seu aprendizado. Voltarei a tratar deste tema no

próximo capítulo. Aqui, tão-somente limito-me a dizer que o babaláwo, assim como todas

as outras classes de intelectuais yorubanos e africanos em geral, deve ser visto como dono

de uma memória prodigiosa, bem como de uma técnica de preservar a memória, capacidade

essa que alimenta por toda vida.

Foi isso que fez com que outro pensador da África moderna, o senegalês Hampaté

Bâ afirmasse Na África, quando morre um velho, é como uma biblioteca que se perde em

incêndio. Se isso é verdade, para qualquer velho africano, torna-se mais verdade ainda no

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caso específico dos babaláwos yorubanos que, realmente, se vêem obrigados a decorar,

durante seu longo aprendizado, diversos textos que abrangem mitos, lendas, cantigas,

fórmulas de manipulação de plantas e outros produtos para fins farmacêuticos, além da

história da fundação das principais instituições do povo yorubano. Por isso que Òrúnmìlà, o

orixá inventor do sistema oracular de Ifá é conhecido e descrito como: “Akéré f’inú

ÿ’ôgbön, òpìtàn Ifê”, o que quer dizer literalmente: Dono da sabedoria, detentor-mor da

história que escolheu como moradia a cidade de Ilé-Ifê.

Tendo discursado, demoradamente, sobre a origem da nação yorubana, ainda se faz

necessário um mapeamento dos atributos que definem a pertença a essa etnia, seja como

identidade primordial seja como identidade estratégica, como se viu antes,quando da

abordagem das teorias da etnicidade.

1.2.2 Definindo a yorubanidade

Eis as perguntas fundamentais: Como se pode definir a yorubanidade? O que é ser

yorubá? Quem se pode dizer yorubano, e quem não?

Inumeráveis historiadores e etnólogos da modernidade euro-ocidental demonstram

muita pressa em afirmar que, até o início do século XVIII, não existia (um)a “nação

yorubá” propriamente dita36,

Embora provas materiais arqueológicas e outras amostras proto-históricas atestem

que o povo yorubano tem uma existência de pelo menos mil anos37. Muitas vezes, deixam

de mencionar as relações diretas de parentesco e identidade religiosa e cultural que uniam

os diversos Estados-nações fundados pelos descendentes de Odùduwà. Muitos falam como

se a balcanização arbitrária da África na Conferência de Berlim entre 1884-85, fosse o

início da verdadeira história dos povos e nações africanos. Muitos historiadores da época

escravocrata, ao nomear a procedência dos africanos escravizados, privilegiando quase

sempre os portos de embarque, no continente africano, nunca se preocuparam com a real 36 Cf. Cohen, 2000; Matory, 1999; Thompson, 1993; Ellis 1894 e Dalzel, 1793 dentre outros.37 Cf. MURPHY, J. 1989. É lícito afirmar que esta datação só se refere á idade da fama e proeminência dosreinos yorubanos. Renato da Silveira, o pesquisador baiano que há muito se dedica ao estudo da nação decandomblé Ketu afirma, em um trabalho sobre as mais antigas casas de candomblé da Bahia, que “Ketu, umdos antigos reinos criados durante as migrações do povo de Ifé, que é a mais antiga capital e centro espiritualdos iorubás deve ter sido fundado, segundo as datações mais recentes, por volta de 931, por um filho ou netode Oduduá...”. Cf. Silveira R. da: “Jeje-Nagô, Iorubá-Tapá, Aon Efan, Ijexá: Processo de constituição do

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identidade étnica ou das culturas, de que poderiam ser portadores tais indivíduos

escravizados.

Se não fosse pelos próprios africanos desterrados, que souberam reconstituir seus

parentescos e identidades étnico-culturais, no desterro da escravidão, para refletir as

heranças culturais trazidas da África, é bem provável que hoje ninguém soubesse que não

foi ao chegar no Novo Mundo que os ‘Queto, Aon Efan, Ijexá, Oió, Nagô, Egba e Ijebu’

descobriram que eram todos descendentes de Odùduwà, oriundos dos diversos Estados-

nações da federação yorubana, todos mantendo estreitas ligações culturais e religiosas com

a cidade de Ilé-Ifè, berço dos povos yorubanos.

Com efeito, o que existia, antes do século XIX, era um federalismo de povos

yorubá-falantes espalhados no vasto território que cobre hoje pelo menos cinco países da

África Ocidental. Como já foi referido nas seções precedentes, as diversas (sub)nações,

descendentes dos príncipes que saíram do reino ancestral de Ilé-Ifê, espalharam-se no

território que hoje vai da maior parte do sudoeste da Nigéria ao antigo Daomé, atual

República do Benim, estendendo-se em várias levas de migrações até as atuais República

de Gana e Togo (Ellis,1894 e Fadipe,1970).

Em cada um desses países, existem vários povos pertencentes a essa federação,

cada um guardando sua soberania política, todos, entretanto, estando ligados à terra

ancestral de Ilé-Ifê apenas por laços espirituais e culturais. Para se ter uma idéia, só no

território que hoje é a República da Nigéria um mapeamento como aquele que o sociólogo

Fadipe apresenta mostra a pluralidade política dos yoruba-falantes, cujo único elo de

conexão étnica é sua identidade coletiva de serem todos Ômô Odùduwà (descendentes de

Odùduwà), dentre os quais os principais reis usam a coroa de contas preciosas, ou seja, Adé

Odùduwà:

O mundo yorubano é povoado pelos Egbado e Awori, da divisão Ilaro da provínciade Abeokuta, na Nigéria; pelos Egba da província de Abéòkúta; pelos vários gruposÌjèbú da província Ìjèbú,; pelas províncias de Òyó e Ìlorin; por Ifè e Ìjexá, daprovíncia de Òyó; por Ondo, Idoko, Ikale e Ilaje da província de Ondo; pelos váriosgrupos de povos aparentados e coletivamente conhecidos como Ekiti, dos quais osmais importantes são Otùn, Adó, Ìkòlé e Èfòn; pelos Yagba e Igbomina dasprovíncias de Ìlorin e Kàbà. Todos estes povos falam uma língua conhecida comoyorubá que pertence à família sudanesa ...” (Fadipe, 1970)

candomblé da Barroquinha – 1764-1851” – Revista Cultura Vozes, N.º 6, Vol. 94, Ano 2000 – Petrópolis, p.80 a 100.

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Aos grupos supracitados, que constituem os povos yorubanos residindo na atual

Nigéria, deve ser acrescentada a lista dos descendentes de Onípopô, grupos de origem

yorubana que teriam formado o primeiro núcleo de netos de Odùduwà que emigrou de Ilé-

Ifè para se estabelecer o mais longe possível (a palavra Pópó significa efetivamente em

yorubá: longe, muito distante) se fixando em localidades ainda hoje denominadas

simplesmente de Ifè e Aná na atual República de Togo (IROKO, 1998). Porém, o maior

grupo de populações yorubanas emigradas de Ilé-Ifê era constituído pelos povos

comumente denominados Anagô, na atual Républica do Bénin, grupos de origem yorubana

que se instalaram nas regiões sul e no planalto central do antigo Daomé, em várias levas

migratórias, vindos tanto do ponto original de Ilé-Ifè, como saindo em migrações

secundárias desde o núcleo Tado que se fixara na migração anterior na já referida região de

Pópó (IROKO, 1998: 97ss). A essas populações espalhadas nos reinos yorubanos de Ketu,

Savé, Pobè, Savalu, Idaissa, mais os Adjatchè e os Ègùn de Porto-Novo, os seus vizinhos

do grupo étnico fon denominaram coletivamente nagonou, ou seja, gente de língua e cultura

nagô.

Logo, o que caracteriza a pertença de todos esses grupos à yorubanidade é sua

identificação endógena que exclui todo e qualquer dúvida quanto à origem comum que une

a todos como descendentes do mesmo herói fundador, ou seja, todos se consideram Omo-

Odùduwà. A marca unificadora corresponde ao que Poutignat et alii chamam de “critérios

definicionais”, ou seja, o uso coletivo da língua yorubá, a religião dos orixás e todo um

conjunto de costumes e tradições que partilham, mais o fato de que todos reconhecem Ilé-

Ifè como sua cidade santa e origem étnica38.

No entanto, também devemos estar atentos, para o papel decisivo advindo das

definições exógenas na cimentação dessa identidade étnica yorubana. Embora sempre

existissem os índices ou critérios definicionais acima referidos, o uso do nome coletivo

“Yorùbá” só se transformou em identidade coletiva a partir de relações de átrio que os

Omo-Odùduwà começaram a viver com seus vizinhos do norte a partir do século XVII,

fazendo com que o termo étnico Yorùbá, que teria sido a maneira mais eficaz achada pelos

vizinhos hauças do norte e outros vassalos do reino de Òyó para descrever os representantes

38 Ver. COHEN, 2001; ELLIS, 1894 e ABIMBOLA, 1976 dentre outros.

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arrogantes do Aláàfin (rei de Òyó) que costumavam xingar a todos com a expressão Yóò

bá... em expressão do tipo:“‘yóò bá baba yín, yóò bá ìyá yín’, ou seja, “para o inferno com

seus pais, para o inferno com suas mães”.

Em uma segunda instância, igualmente da mesma forma outras definições exógenas

para designar esse mesmo conjunto de povos “yorubanos” em outras situações de contato

intenso com outros povos que não partilham os mesmos valores simbólicos que definem os

Omo-Odùduwà. O estudioso norte-americano Matory (1999ª) mostra nas suas pesquisas

como a necessidade do uso de uma identidade coletiva para o povo yorubano teria surgido

pela primeira vez em Serra Leoa, colônia fundada, no século XVIII, pelos britânicos, para

abrigar as populações de libetados africanos na campanha antiescravista nos altos mares do

Atlântico. Segundo informa esse capítulo da sua história, foi nesse meio pluriétnico e

multicultural que, pela primeira vez, os diversos grupos oriundos da federação yorubana

ganharam o nome identitário de Akú devido à fórmula mais comum em suas copiosas

saudações39

Mais tarde, depois que sua população teria dos Yorubanos crescem bastante nas

diásporas americanas, outras identidades coletivas viriam a ser usadas para esses mesmos

povos, identidades essas que fazem referência à sua origem étnica ou a algum traço cultural

predominante descoberto nos novos meios. Assim ficaram conhecidos no Brasil como

Nagôs, etinónimo já trazido da África pelos membros da federação yorubana que eram

vizinhos dos daomeanos, mas cujo uso só era reservado aos yorubanos da região leste. Em

Cuba, ficaram conhecidos como Lucumís devido à prática comum a todos os que usavam a

mesma língua yorubana de se tratarem mutuamente como “Olùkù mi” (meu companheiro,

meu amigo, meu irmão)40.

Destaque-se que, o uso do próprio termo yorubá antes era reservado para designar

apenas os grupos que falavam o dialeto yorubano de Òyó, uso posterior para designar o

conjunto dos descendentes-de-Odùduwà se deveu, historicamente, ao fato de terem sido

oriundos desse grupo os primeiros missionários que fizeram a transição da língua yorubana

39 Com efeito, no idioma yorubano, a arte da saudação se consagra pelo uso da expressão coletiva “a kú”.Assim, quando dois yorubanos se encontram, sempre se cumprimentam usando essa fórmula que relacionam àsituação atual naquele momento. Ou seja, se estiver chovendo naquele momento, trocam entre se a saudação:“a kú òjò”, e, se for na feira que se encontram, a saudação seria: “a kú ôjà” etc.40 O termo olùkù é peculiar ao grupo que fala o dialeto yorubano de Ifê, entre os quais esse termo significauma amizade de grau superior.

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para a escrita, usando seu próprio dialeto para catequizar no idioma (A. B. Ellis, 1894;

Samuel Johnson, 1921).

Não é muito surpreendente que hoje, a tendência seja forjar uma nova identidade

partindo de uma designação étnica mais endógena, capaz de reunir a todos os yorubanos

sob uma bandeira mais simbólica, bandeira essa que remete, justamente, à qualidade de

todos serem Omo-Odùduwà. Tanto na literatura como na política yorubá-nigeriana

contemporânea, a ressonância do termo “Oòduà”, diminutivo do nome próprio Odùduwà

cujo uso era antes prerrogativa dos Ifê-Oòduà, hoje se privilegia como nome étnico mais

apropriado para todos os “káàrõ-oò-jíire”41 em todo e qualquer canto do globo. Benedict

M. Ibitokun, escritor e crítico-literário de origem ketu-yorubana se apresenta como um dos

pioneiros desta re-definição étnica em suas obras recentes como o romance Sopaisan:

Westing Oodua (2002) e no ensaio The Word and the World: Reflections on Life as

Literature (2003). Ele prefere, e, de fato, prega em suas obras, o uso do nome coletivo

Oòduà ao etinónimo Yorùbá. Da mesma forma, o maior grupo militante, que faz

reivindicações políticas em nome das populações dos oito estados da zona ocidental da

Nigéria, tais como Õyö, Õÿun, Ògùn, Oñdó, Èkìtì, Kogí, Kwara e Lagos (Èkó), privilegia,

desde a época da ditadura do General Sani Abacha, a denominação de Oòduà People’s

Congress (Confederação de descendentes de Oòduà).

Por outro lado, em termos de identificação exógena, muito acima dessas marcas

identitárias atreladas a uma nomenclatura particular(ista) ou à expressão lingüística de

“káàrõ-oò-jíire”, a identidade religiosa sempre foi de longe o que mais impressionava os

seus vizinhos, tanto na África, como na diáspora. Como documentou, no caso do Brasil, a

antropóloga Juana Elbein dos Santos:

Os Yorubá do Daomé, de onde provém a maior parte dos Nàgô brasileiros, estãoconstituídos de populações que se consideram descendentes de Ifè, irmanados porum mesmo mito genético. São conhecidos com o nome genérico de Nàgô, Nagónuou Anagónu, pessoa ou povo ànàgô, nome constituído de Ànàgó + nu, sufixo que,em Fon, significa ‘pessoa’. Por extensão, chamam-se Ànàgónu, no Daomé, todos osiniciados e os sacerdotes praticantes da religião que cultua as entidadessobrenaturais de origem Nagô42.

41 Qual a expressão Akú, “káàrõ-oò-jíire?” é fórmula de saudação. Literalmente, significa, bom dia, comovai?42 Santos, Juana Elbein dos, op. cit. p. 29 -30, grifos meus.

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Logo, a partir do que já vimos até aqui, podemos resumir os traços que definem a

identidade étnica dos yorubanos como sendo constituído das seguintes características:

• Crença no mesmo herói-fundador – Odùduwà;

• Crença na cidade de Ilé-Ifè como o berço da nação e centro espiritual;

• Crença nos orixás, ou seja, os “Irúnmôlê” e os “Igbamôlê”;

• Utilização da língua yorubana descrita como “káàárõ-oò-jíire?” em suas

diversas formas dialetais;

• Utilização de certas marcas faciais chamadas escarificações, distintas das de

outros povos da África Ocidental;

A essas características gerais podemos acrescentar certos aspectos filosóficos e o

caráter urbano das sociedades yorubanas, somado à organização da sua sociedade sob as

autoridades de um rei supremo com atributos semidivinos. Como documenta Bolaji Idowu

os yorubanos se caracterizam pela marca distintiva de seus reis que: têm usado, desde um

passado muito remoto, valiosas coroas de pedras, empunhando cetros reais. E, ninguém se

lembra de um tempo em que os yorubás não usavam roupas (IDOWU, 1996:36)

1.2.3 Marcas identitárias da yorubanidade: Ser yorubá na África e ser nagô noBrasil

Para definir a yorubanidade, nas diversas espacializações geopolíticas, não há como

evitar uma volta à definição teórica de próprio conceito do grupo étnico. No seu ensaio

Grupos étnicos e suas fronteiras, hoje considerado ensaio clássico em estudos étnicos, o

especialista norueguês Fredrik Barth, (apud POUTIGNAT e FENART, 1998:187ss) partiu

da definição que entende por grupo étnico, uma população que:

• perpetua-se biologicamente de modo amplo;• compartilha valores culturais fundamentais, realizados em patente unidade

nas formas culturais;• constitui um campo de comunicação e de interação;• possui um grupo de membros que se identifica e é identificado por outros

como se constituísse uma categoria diferenciável de outras categorias domesmo tipo43.

43 BARTH, Fredrik, “Grupos étnicos e suas fronteiras”, introdução de Ethnic Groups and boundaries. Thesocial organization of culture difference, apud Poutignat, P. e Streiff-Fenart, J. op. cit. p. 187ss.

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Porém, logo em seguida, o próprio Barth questiona alguns aspectos dessa definição

levantando dois pontos que vão ser muito úteis no presente estudo para a nossa definição e

descrição do que representa a yorubanidade nos dois lados do Atlântico. Em primeiro

lugar, Barth sugeriu que seria melhor considerar o fato de membros do grupo étnico

partilharem uma mesma cultura mais ‘como uma implicação ou um resultado’, do que

‘como uma característica primária e definicional’. Como veremos mais adiante ao

considerar a pertença de populações diaspóricas a determinadas etnias, cuja matriz cultural

encontra-se fora do seu território imediato, esta pequena modificação proposta por Barth

tem muito mérito e propriedade, visto que, para tais populações (ou indivíduos), uma tal

identidade étnica é resultado de uma escolha consciente que precisa para sua validação

daquilo que Barth chamou de ‘suportes de cultura’.

Barth questiona, também, a perenidade das formas culturais patentes com as quais

se costuma sustentar a validade da identidade étnica. Levantando a questão da adaptação ao

meio ambiente, ou outras ‘circunstâncias externas’ como a colonização (e, no caso da

diáspora yorubana no Novo Mundo, a escravidão), que possam levar à perda do domínio

para certas formas ou instituições culturais, Barth abordou um ponto importante: a

possibilidade de o grupo étnico abrir mão de certos símbolos culturais ao longo de sua

história étnica. Pretendo trazer alguns exemplos deste tipo de desvio de importância

cultural, quando abordarei, no próprio contexto africano, a evolução dos símbolos da

yorubanidade.

Voltando ao tema das marcas identitárias da yorubanidade, como já vimos, além da

partilha da mesma língua, evidenciada na expressão “káàárõ-oò-jíire”44 comum a todos que

fazem uso do idioma nas suas diversas variantes dialetais como as de Ifê, Ìjêÿà, Oñdó, Õwõ,

Õyö, Ìgbómìnà, Àkókó, Ìkálê, Èkìtì, Ìlôrin, Ìjêbú, Êgbá, Adjatchè, Ketu, Mênigii (Daomé),

Èkó etc (Babalola et alii: 1989), a marca da yorubanidade se verifica também na partilha da

uma série de filosofias que traduzem o modo de ser yorubá. Como aponta Wole Soyinka, a

cosmovisão yorubana pode ser resumida pela crença na existência de três mundos distintos,

mas sempre interligados: o mundo dos vivos; o mundo dos mortos e o mundo dos que hão

de nascer (Soyinka, 1975, Abimbola, 1976, Isola, 1994).

44 Sobre a relação entre essa expressão “káàárõ-oò-jíire?” e a fórmula ‘Akú’ ver Félix Ayoh’OMIDIRE:Àkögbádùn: ABC da língua, cultura e civilização yorubanas, 2004, Salvador: EDUFBA. capítulo 1.

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No contexto africano, além do idioma anagô/yorubá, usado em suas variantes sub-

nacionais e da instituição monárquica na qual a autoridade do rei-supremo de cada sub-

nação nagô-yorubana é legitimada através de sua descendência direta ou indireta de

Odùduwà – repita-se o primeiro Ôõni Àdìmúlà, rei-supremo de Ilé-Ifè, sem Odùduwà não

teria o direito de usar nem o Adé nem o Õpá ìlêkê, ou seja, coroa e cetro feitos de contas

reais. As outras marcas de identidade étnica nagô-yorubana são mais individualizadas,

embora sua legitimação continuasse como distintivo coletivo.

Por exemplo, no que diz respeito à crença e adoração das divindades, coletivamente

denominadas orixás, a partir das dispersões dos sucessivos grupos yorubanos da cidade

ancestral de Ilé-Ifè documentadas na história oral, cada núcleo passou a identificar-se sob o

signo de um determinado orixá, provavelmente o orixá patrono que cultuava a linhagem do

príncipe-líder de cada grupo que emigrou de Ilé-Ifê. Portanto, enquanto os templos e

santuários de todos os principais orixás nagô-yorubanos permaneceram em Ilé-Ifê , que era

(e, ainda é) o centro espiritual da nação, cada sub-nação se identifica pelo culto de um

orixá-patrono.

Assim, foi que, como se verificou aqui no Brasil, e, também, em Cuba, os Ijexás se

identificam com o culto de Oxum, a mãe d’água cujo rio percorre toda a região onde o

dialeto ijexá-yorubá é falado e onde o título dos reis permanece Ôwá. A nação Ondo/Õwõ,

por sua vez, se coloca sob a proteção de Ogum, o deus da guerra. Os Ìjêbú e seus vizinhos

Ìlàjç se identificam com Ayélála, um orixá funfun da família de Ôbàtálá, mais conhecido

no Brasil como Oxalá. Os grupos Êgbá e Êgbádò, cuja vida cultural e econômica dependia

do rio Yewa, tinham como orixá patrono Yemônja, enquanto seus vizinhos nagôs de Ketu

se identificam com o culto de Õÿöõsì (Ôdç). Os yorubanos de Õyö e todos os seus vassalos

tinham como orixá patrono o poderoso ßàngó, e sua esposa favorita, Ôya, mais conhecida

no Brasil como Iansã.

Além da identidade ligada aos orixás, patronos das diversas sub-nações nagô-

yorubanas, uma outra marca identitária que caracteriza os diversos sub-grupos nagô-

yorubanos entre si e os distingue de outras populações africanas, como quer o terceiro

ponto da nossa definição inicial de grupo étnico, são as escarificações faciais geralmente

denominadas na literatura colonial como marcas tribais, porque permitiam a identificação

étnico-nacional do portador, sem que fosse necessário que o indivíduo abrisse a boca para

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se identificar. Assim, vários textos literários muitas vezes se limitam a identificar as

personalidades pelas marcas faciais como pélé Ifê, àbàjá Olówu, këkë Õyö, bààmú Ìlôrin45

etc. Essas marcas faciais, que hoje se encontram quase em total extinção em terras yorubá-

africanas por razões da natureza dinâmica geral das marcas de identidade (HALL, 2003;

POUTIGNAT et alii, 1998 etc.), eram consideradas uma espécie de carteira de identidade,

ou seja, o famoso RG (Registro Geral) dos portadores.

Ainda no continente africano, certas instituições de ordem sócio-religiosa servem

como marcas identitárias adicionais para os diversos sub-grupos nagô-yorubanas. São

associações que cumprem várias funções na sociedade como a justiça, a moralidade, a

manutenção da ordem social etc. Tais instituições correspondem às associações de adeptos

e praticantes do culto aos orixás, ou seja, os chamados çgbë descritos por Santos (1986:

32), como associações bem organizadas onde se mantém e se renova a adoração das

entidades sobrenaturais, os òrìsà, e a dos ancestrais ilustres, os égun.

No contexto africano, essas instituições variam de uma nação para outra, conforme

sua atuação na sociedade. Por exemplo, entre os Òyó e seus vassalos, instituição de

Egúngún (chamada égun no Brasil) é a mais conhecidab, Os egbas têm a sociedade Oro, os

Ijebu Agemo, enquanto a instituição Gêlêdë funcionava entre os Ketu. Em Ilé-Ifè as

sociedades Irò e Ogboni são as mais proeminentes.

Ainda tratando da identidade étnica dos nagô-yorubanos em solo africano,

sobretudo no que diz respeito a como eles são vistos pelos demais povos africanos que os

rodeiam, podemos salientar a identidade política e moral. Desde a já referida época de sua

primeira experiência diaspórica na Serra Leoa, no início do século XIX, os yorubanos,

conhecidos então como Akú, eram visto como gente astuta. Ellis (1894) e Cohen (1999)

lembram que os Akus eram considerados os judeus da África. Aliás, nos meios yorubanos

contemporâneos, a astúcia é tida como a melhor arma para garantir a sobrevivência. Um

provérbio yorubano, a respeito dos líderes feudais do antigo império de Õyö, afirma bem

essa marca da sua astúcia: Õyö dõbálê, inú ê lósòó!46 Tal característica acaba se refletindo

45 De fato, essas marcas corporais representavam, ao mesmo tempo, uma marca de identidade étnica e umamarca de resistência à escravidão, uma vez que, conforme afirmam alguns relatos da época da escravidão, noinício do trato, os negreiros que compravam os negros escravizados nas costas africanas costumavam rejeitaros cativos portadores de marcas corporais, com a explicação de que, os compradores de escravos, no outrolado do Atlântico, não gostavam de “mercadorias estragadas”.46Tradução: Quando um Òyó parece está prostrado, submisso, o seu interior está em estado de alerta máxima.

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na participação dos yorubanos na vida política da Nigéria contemporânea. Eles

caracterizam-se por certa inconstância, como veremos na obra de Elebuibon, que

abordaremos na última parte deste estudo.

Portanto, na presente tese, o termo yorubanidade pode ser resumido pelos diversos

aspectos da identidade étnica dos grupos yorubanos, como também pelos traços

epistemológicos que permitem distinguir a filiação cultural nagô-yorubana, na maneira de

ser dos vários povos da diáspora latino-americana, como pelos Nagôs do Brasil, os Lucumí

de Cuba, os Nagôs de Haiti e os Yarriba de Trinidad, assim como os habitantes da

comunidade recém-fundada de Õyötunji, no estado da Flórida, nos Estados Unidos.

1.3.0 Ser nagô no Brasil

Apesar do clima de acusações e contra-acusações entre pesquisadores, estudiosos,

historiadores, antropólogos, etnólogos e outros interessados afins, de que os nagô-

yorubanos seriam culpados de terem praticado ou de terem deixado praticar em seu nome

e/ou a seu favor uma certa hegemonia cultural que teria excluído as outras nações africanas

da cena religiosa-cultural afro-brasileira, apesar da polêmica em torno da tão badalada

pureza nagô como sendo uma artimanha inventada pelas casas de candomblé nagô como

meio de escapar à perseguição policial que fechava, ou, pior ainda, arrombava as portas de

outros terreiros não-nagôs e não-ketus, no início do século passado, não há como negar uma

certa topicalidade da cultura nagô-yorubana no complexo simbólico e religioso-cultural

construído pelos descendentes das antigas populações africanas escravizadas no Brasil entre

os séculos XVI e XIX.

De fato, a tendência, em certos estudos da presença africana no Brasil, é argumentar

que a polêmica em torno da hegemonia nagô nada mais fez do que manter, por muito mais

tempo nas pautas dos debates acadêmicos dos estudos sociais e antropológicos, a herança e

a prática cultural e ritual nagô-yorubanas, tornando os nagô-yorubanos um dos mais

conhecidos e discutidos grupos étnicos na corrente atual da globalização, ou melhor, da

mundialização das culturas. Como afirmou Matory (1999: 75), não há como negar o fato de

que a nação nagô-yorubana tem se mantido, desde o século XIX, a mais conhecida das

nações africanas do mundo afro-latino, sendo ela deveras “a mais estudada, a mais

documentada em diversos textos e imitada mais do que qualquer outra, não somente por

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praticantes das religiões de origem africana, mas por antropólogos, historiadores de arte,

romancistas, e críticos literários...”.

Para explicar tamanho prestígio e tamanha influência, abrangendo toda a extensão

dos três continentes do chamado Atlântico Negro (THOMPSON, 1983; GILROY, 1993),

várias hipóteses foram conjeturadas, a começar pela muito polemizada teoria evolucionista

proposta pelo médico-etnógrafo brasileiro Nina Rodrigues (1935; 1977) postulando que, no

caso do Brasil, no momento da sua inserção dentro do sistema escravocrata, os chamados

povos sudaneses, oriundos da África Ocidental, sobretudo os Nagôs, já possuíam um culto

mais organizado, com um sacerdócio bem hierarquizado, uma cosmovisão bem mais

elaborada, uma mitologia mais rica e, um panteão infinitamente mais rico, do que qualquer

outro que possuía qualquer outra nação africana entre os povos importados para, e

escravizados no Brasil.

Outros dizem que a proeminência nagô-yorubana era devida ao fato de terem sido

eles os últimos a chegar no Novo Mundo, concentrando-se nos meios urbanos e sofrendo

um menor grau de vigilância senhorial, o que teria permitido um menor apagamento de sua

cultura de origem, levando a um certo renascimento de suas idiossincrasias em solo

diaspórico47.

O fotógrafo-etnógrafo francês Pierre Verger (1976; 1999) preferia explicar o

sucesso nagô-yorubano no Brasil pelo grande número de escravos nagôs que se

encontraram no Brasil, sobretudo na Bahia, na virada do século XIX e ainda pela qualidade

intelectual dos indivíduos e dos sacerdotes nagô-yorubanos que foram importados no meio

desta população escravizada. Verger pleiteia ainda o caráter urbano e o nível de civilização

com os quais os nagô-yorubanos eram já familiares na sua terra de origem como

favorecendo a sua integração e destaque no Novo-Mundo.

Nos últimos tempos, alguns participantes tardios desses debates surgiram com

argumentos diferentes dos de seus predecessores, afirmando que toda a grandeza cultural e

religiosa nagô-yorubana não passava de uma invenção de alguns intelectuais e que a

proeminência do culto e das instituições sócio-culturais nagô-yorubanas na diáspora não

47 Ver, por exemplo, Bastide, 1971; Ramos, 1946; Herskovits,1948

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tinham quase nada que ver com uma originalidade nagô-yorubana importada da África para

o Novo Mundo48.

Quanto a Matory (1999), ele parece bastante convencido de que a edificação daquilo

que ele mesmo denominou, num trabalho anterior (1994), como The Yoruba Atlantic

Complex, ou seja, um tipo de império atlântico yorubano, devia-se às atividades de uma

classe de pioneiros yorubanos que ele chamou: “The English Professors of Brazil”, ou

seja, os professores de inglês (de procedência yorubana)49 no Brasil, dentre os quais ele

destacou alguns indivíduos yorubá-africanos, com livre acesso às sociedades afro-latinas no

início do século XX. Indivíduos como os babaláwos Martiniano Eliseu do Bonfim, o

Rudolfo Martin Bamgbose (Esa Obitikô), Felisberto Sowzer, e a família Alakija, no Brasil.

Do lado de Cuba, Matory incluiu entre tais intelectuais lucumís do início do século XIX,

membros de uma certa família Adechina, assim como uma mulher, provavelmente uma

sacerdotisa de Oxalá, cujo nome é lembrado na memória oral popular cubana como La

Funche, ou Efunsetan50.

Matory (1999) e Cohen (2000) ainda falam da contribuição dos Krios e Akús da

antiga colônia britânica de Serra Leoa e de seus descendentes conhecidos como Saros na

sociedade colonial de Lagos. Esses, ao lado de seus rivais históricos51, os Agudás que

48 Ver Dantas, 1988 e Gonçalves da Silva, 1995, Patrícia Birman, Peter Fry e Stefane Capone dentre tantosoutros.49 Volta e meia, essa atuação de indivíduos de origem yorubana que se dedicam ao ensino do idioma inglêsprossegue ainda hoje, não somente na Bahia, mas no resto do território brasileiro, porém a ironia do casocontemporâneo é que esses não se erigem, de forma alguma, como agentes de sua cultura de origem, comofizeram os protagonistas da história referida por Matory. Com certeza trata-se aqui de uma outra dimensãodos jogos da identidade dentro da atual conjuntura da globalização.50 Essa personagem parece ter saído diretamente da história da dispersão dos yorubanos no século XIX, após aqueda do poderoso reino òyó-iorubano, ao lembrá-nos a Iyálóde Efunsetan Aniwura, uma das lideranças doestado quilombola de Ibadan cuja notoriedade no comércio negreiro foi documentada na literatura clássicayorubana. Cf. Efunsetan Aniwura (Peça) de Akinwumi Ishola.51 A rivalidade entre os Saros, descendentes de yorubanos educados pelos britânicos em Serra Leoa, e osAgudá, grupos de retornados que regressaram do Novo Mundo, sobretudo, do Brasil e de Cuba, e se fixaramno litoral da África Ocidental, deve-se à relação que teve cada grupo com os colonizadores ingleses emLagos. Os Saro, por terem sido preparados pelos missionários britânicos em Serra Leoa, não tiveramdificuldades em ocupar os cargos administrativos subalternos dentro da máquina colonial, tendo deste modomaior acesso ao poder colonial do que seus rivais Agudás. Enquanto isso, esses últimos se consideravam maisexpertos devido à experiência acumulada no continente americano onde tinham aprendido vários ofícios queos tornavam independentes dos britânicos. Cf. Alberto da Costa e Silva (2003). Uma das expressões que maisexemplifica essa rivalidade provocada, na verdade, pela preferência da administração colonial para os Sarosvem a ser o ditado seguinte: “Àgùdà ò jç lcbë Gêësì, iÿë ôwö ô wa l`àwá njç!”, com o qual os Agudás,mais conhecidos em Lagos como “brasileiros”,costumavam afirmar, na época, que eles, como umgrupo social, não dependiam dos britânicos para a sua sobrevivência, uma vez que os diversosofícios que aprendiam no Brasil, como mestres de obra, pedreiros, comerciantes, pintores etc.

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voltaram do Brasil e de Cuba, depois das revoltas antiescravistas, que culminaram no

levante histórico dos Malês da Bahia, em 1835, teriam sido os principais responsáveis pela

a construção da grandeza cultural nagô-yorubana no mundo atlântico.

Sejam quem forem os protagonistas identificados e identificáveis para a grande

atuação da cultura e cosmogonia nagô-yorubana no mundo Afro-Atlântico, o fato é que os

valores culturais e religiosos do sistema, por eles implantados, nunca mais cessaram de

ocupar a pauta, nas discussões étnico-culturais do Atlântico Negro. De fato, do ponto de

vista das conjunturas culturais contemporâneas, muitas das procuras históricas e indagações

antropológicas pela gênese e pelos possíveis agentes da implantação de valores culturais e

religiosas nagô-yorubanos nas sociedades afro-latinas, aparentemente, deixaram de lado as

questões mais importantes. Uma pergunta chave que se impõe nesta direção é a seguinte:

Qual é a margem efetiva do poder de intervenção e de capacitação que o uso e a prática de

valores e de identidade nagô-yorubanos têm propiciado às populações que faziam, e ainda

fazem, uso dessa identidade nas sociedades latino-americanas contemporâneas?

No caso do valor real ou dos benefícios que possam ser tirados da adoção e

afirmação de uma determinada identidade étnica nas sociedades latino-americanas, há

quem reduza tudo a uma simples estratégia de sobrevivência, ou seja, que a valorização da

cultura e das práticas religiosas yorubá-africanas, na diáspora, se deu em função dos

agentes de tal valorização serem negros escravizados e, portanto, membros dos grupos

oprimidos e subalternizados pela sociedade hegemônica.

Porém, Cohen (2000) é de opinião que o projeto cultural yorubano ultrapassa uma

simples estratégia de sobrevivência de um povo sob opressão (escravocrata ou (neo--

colonial) e que tal projeto demonstra uma forte indicação da afirmação de uma cosmogonia

que se comprova na sofisticação de sua religião e filosofia. Porém, nem todos os estudiosos

do campo da influência da cultura religiosa das matrizes africanas no mundo

contemporâneo compartilham essa opinião. Dantas (1988) insiste em afirmar que “o permitiam, não somente, que eles vivessem bem no meio lagosiano, mas, também, os permitiadesprezar os Saros que, naquela época eram tratados de “òyìnbó dúdú” (negros brancos) devido àssua atitudes subservientes perante os ingleses, que eles imitavam em tudo. Em casos extremos, os‘brasileiros’ até podiam se permitir o luxo de desafiar à própria administração colonial britânica ,como fizera o agudá João Esan da Rocha, que, conforme consta nas crônicas daquela época, teriausado notas bancárias, recém-introduzidas na economia lagosiana pela administração colonial, para

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pertencimento étnico nas sociedades do Novo Mundo pode ser interpretado como parte de

um processo de construção de identidade que deveria ser entendido, independentemente de

qualquer origem histórica”.

Com tal argumento, ela procura, assim, desmantelar a hegemonia nagô construída

sobre a suposta superioridade cultural nagô-yorubana no Brasil, postulada desde Nina

Rodrigues (1957). Na lógica dessa opinião, que Dantas partilha com uma escola de

estudiosos do eixo sul-sudeste do Brasil (São Paulo-Rio de Janeiro), tal idéia não passa de

uma invenção, para sustentar e legitimar a pureza nagô, que reinava supremo no mundo

simbólico do Candomblé no nordeste brasileiro, sobretudo na Bahia e cujo padrão se impõe

na região sul-sudeste para definir a autenticidade das práticas religioso-culturais.

No entanto, Cohen advertiu que este posicionamento, que tinha sua origem nos

argumentos de Hobsbawm, fundamentado na crença de que, para entender os

pertencimentos e as origens étnicos, não era preciso procurar mais além dos campos sociais

contemporâneos dentro dos quais operam tais etnias, vai acabar ofuscando detalhes de

suma importância, nos estudos das heranças africanas no Novo-Mundo, sobretudo no papel

que tais heranças possam vir a ter na reconfiguração de identidades, e no jogo de poder, nas

sociedades contemporâneas. Nesta mesma direção, outros estudiosos, como Thompson,

Matory, Gilroy, Hall e o próprio Cohen, têm conseguido demonstrar as vantagens de uma

abordagem mais comparatista para definir e melhor entender o poder de intervenção e

inserção das culturas periféricas, em qualquer sociedade, sob uma ideologia dominante.

Pensando com Cohen, é fácil entender que o projeto hobsbawmiano e de seus

sucessores, embora represente uma melhoria sofisticada das tentativas iniciais de procurar

as origens africanas das culturas do Novo Mundo, ainda não leva em conta outros fatores

pertinentes que, inclusive teria começado com Herskovits e a sua procura sistemática pelos

vestígios e as estratégias de “sobrevivência” das “Africanidades” no Novo Mundo, algo que

teria levado um de seus críticos a tratá-lo de ‘Gallus Africanus’, acusando-o de “invenção

de tradição” nos esforços conscientes da construção de identidades e da memória africana

na diáspora.

acender seu charuto (provavelmente cubano), no intento de mostrar aos ingleses a sua opulência eseu desprezo para a administração colonial.

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Cohen acha, portanto, que o tipo de análise e a metodologia favorecida por

Herskovits e seus seguidores costuma limitar o entendimento de todo tipo de discurso que

aborde o passado africano meramente sob o contexto das lutas locais, para a sua

legitimidade e poder dentro da sociedade contemporânea, sem procurar enxergar o

conteúdo cultural de tais lutas, nem a intenção daqueles que foram agentes de sua

preservação e desenvolvimento, dentro de um âmbito mais amplo.

Outra escola sócio-antropológica associa a remanescência de traços culturais

africanos nas sociedades latino-americanas e no Brasil, de modo específico, à ‘resistência’

das populações afro-americanas à hegemonia cultural e a toda forma de opressão, resultante

dos jogos de forças entre os centros globalizados e as periferias.

No entanto, observa-se que, muitas vezes, todas essas considerações não levam em

conta a dinâmica das culturas africanas para criar novos rumos, fora das antigas conjunturas

de escravidão, opressão e resistência, nem contemplam a possibilidade das culturas

africanas querendo, simplesmente, participar das negociações sócio-culturais em escala

mundial, algo que poderia levar, ultimamente, à ‘deshomogeneização’ da cultura, dentro

das atuais conjunturas da globalização.

Eis, portanto, um possível ponto de partida para novas abordagens do papel das

culturas consideradas periféricas, no atual sistema-mundo, que teremos ocasião de trabalhar

em capítulos posteriores. Contudo, o que importa para o nosso intento atual é o lugar de

destaque e o papel que os nagô-yorubanos e seus agentes, passados e contemporâneos

vieram a ter na construção daquilo que Mignolo (2003:48) denominou, com ênfase, o

imaginário do sistema mundial colonial/moderno. A esta altura, uma série de perguntas se

impõem:

• quem foram os nagôs no Brasil?

• que fatores ou aspectos de sua cultura os habilitou para a grandeza que

vieram a ter na cultura (afro)brasileira?

1.3.1. A yorubanidade na diáspora: a nagofilia no Brasil

Num trabalho apresentado em 1999, durante o Congresso da Société Internationale

de la Sociologie des Religions, em Paris, o estudioso norte-americano Peter Cohen,

descreveu o culto aos Orixás como uma ‘tradição trans-nacional e pan-étnica”, ou seja, um

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veículo cultural que tem ultrapassado os limites geográficos originais do povo yorubano na

África, para assumir dimensões universais no Novo Mundo, conseguindo manter, todavia, o

cerne de sua identidade étnica.

Historicamente, a deslocação dos nagôs de seu território africano para o Novo

Mundo seguiu o mesmo processo clássico que foi a experiência de outros povos africanos.

Vieram primeiro como negros escravizados e logo foram transformados em mão-de-obra

gratuita, para a edificação do império europeu no Novo Mundo. Entretanto, como deixou

claro o sociólogo Muniz Sodré durante uma fala pública em homenagem ao escultor-

contista-babalorixá baiano Mestre Didi Alapini, a implantação de valores nagô-yorubanos

no Brasil e no resto do Novo Mundo se deveu a uma qualidade fundamental do povo nagô-

yorubano, na sua atuação dentro do perverso regime da escravidão. Nas palavras de Munis

Sodré, “embora escravizados, os nagô-yorubanos se mostraram como um povo sem a

mentalidade de escravos”52. Conseguiram deixar claro este atributo através da sua vontade,

ousadia e habilidade em preservar a sua memória étnica, cultural e religiosa, onde quer que

a fortuna os levasse.

Um consenso entre os historiadores é que a primeira atuação de escravos nagô-

yorubanos no Brasil (tendo a Bahia como o principal ponto de desembarque) está datada do

início do século XIX, época que corresponde à decadência do poderoso reino yorubá cuja

capital ficava em Õyö-Ilé. As guerras de sucessão e secessão que a queda do reino

ocasionou levaram à destruição de muitas comunidades no interior da iorubalândia e

forneceu milhares de escravos para o Novo Mundo. Porém, de acordo com vários

historiadores, a migração em massa do povo yorubano não se limitou apenas ao contexto da

escravidão, visto que o comércio de escravos estava entrando já na agonia da abolição,

devido a uma série de fatores como a campanha britânica pela abolição e o crescente medo

e insatisfação generalizada nas sociedades escravocratas do próprio Novo Mundo (Cohen,

I999), decorrente, em parte, do triunfo da Revolução Haitiana.

É, à luz destes e de outros fatores, que deveria ser lida a presença do povo yorubano

e, sobretudo da sua cultura, religião e cosmovisão, em sociedades diaspóricas, como o

próprio Haiti da pós-revolução e, portanto, da pós-escravidão. Em Cuba, como em outros

países caribenhos, nos quais existe não somente a sobrevivência da cosmogonia e do modo

52 Palestra de Muniz Sodré na Reitoria da UFBA, 04/06/2004.

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de ser yorubano de uma forma mais completa, mas também uma maior aproximação entre

esses traços na diáspora e seus equivalentes nos meios yorubá-africanos contemporâneos,

torna-se evidente que tais presenças não se limitaram apenas ao contexto da escravidão.

Para citar alguns exemplos, podemos falar da presença nesses locais diaspóricos (Cuba e

Haiti dentre outros), de elementos da memória material do povo yorubano como o

complicadíssimo conjunto orquestral de bàtá, usado no culto aos ancestrais egúngún,

conhecidos no Brasil como baba egun, e do orixá Xangô.

Outro elemento marcante dessa memória material é a prática oracular mediante o

uso do Õpêlê Ifá (espécie de rosário divinatório usado no lugar de ikin para desvendar os

segredos oraculares de Òrúnmilà contidos nos 256 volumes conhecidos como Odù-Ifá dos

quais os 16 primeiros são considerados principais). Esse sistema se contrasta com o

processo oracular comum no Brasil, onde se emprega um conjunto de cauris, ou seja,

búzios da costa, chamados êrìndínlógún, sistema esse que é tido como incompleto, devido

ao fato de que existem dois Odùs dentre os dezesseis signos principais do processo

oracular, que são tidos como fora da competência de quem joga o êrìndínlógún, sendo que,

em meios yorubá-africanos, quando aparecer qualquer um desses dois signos, o babaláwo-

olhador deveria mandar seu consulente procurar um babaláwo para a plena explicação do

seu sinal.

Portanto, a presença desses elementos da memória material e intelectual, que teriam

sido impossíveis de ser introduzidos na diáspora pelos africanos escravizados, deixa

presumir que sua introdução na diáspora caribenha, sobretudo em Cuba, deve ter sido

resultado de uma migração mais voluntária do povo yorubano a alguns desses pontos a

determinadas alturas da história da modernidade global, conforme sugere também a leitura

feita por Cohen (2000: 1)53.

Além do mais, no caso específico do Brasil, relatos de nagólogos do quilate de

Pierre Verger e yorubáfilos como Édison Carneiro e Arthur Ramos, correligionários do

médico-legalista Nina Rodrigues sempre nos lembram da eficácia de contatos quase

ininterruptos que os nagôs (escravizados, livres ou alforriados que circulavam, com maior

53 De acordo com os depoimentos que obtive de Cory Bascom, um descendente de yorubanos de origemguianesa, historicamente, conserva-se nos registros das famílias de descendentes dos yorubanos em paísescomo a Guiana, a Jamaica, Haiti, Trinidad e Tobago, que a maioria de seus ancestrais foram parar no Caribenão como resultado direto da escravidão, senão como trabalhadores contratados “indentured workers” queforam mandados para os países do Caribe depois da Revolução Haitiana.

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ou menor grau de liberdade na Bahia novecentista, formando inclusive os famosos cantos

de trabalho, etnicamente organizados na cidade do Salvador) conseguiam manter desde o

século retrasado neste lado do Atlântico com seus parentes na terra natal, criando, entre

outros, o famoso correio nagô54 na Bahia.

Do mesmo modo, o maior historiador da Revolta do Malês de 1835 na Bahia, João

José Reis (1986:202) não hesitou em registrar a existência de uma provável ligação entre a

organização dos cantos de ganhadores, e costumes yorubá-africanos, mais especificamente,

as feiras livres yorubanas, conhecidas popularmente como ôjà, da mesma forma que era

também de origem e inspiração nagô-yorubana a prática da caixa comum que servia de

fonte de fundo para a compra de alforria para muitos negros escravizados, conhecida em

yorubá como àjô ou èsúsú55.

Por sua vez, o pesquisador norte-americano Matory (1999) se permitiu a descrever

os nagô-yorubanos como a nação africana que mais deixou marcas superlativas de sua

cultura na construção da história-cultural do mundo moderno:

Since the nineteenth century, one such Afro-Latin nation has risen above all the rest– preeminent in size, wealth, grandeur, and international prestige. It is studied,written about, and imitated far more than any other, not only by believers but byanthropologists, art historians, novelists, and literary critics. The origin andhomeland of this trans-Atlantic nation is usually identified as Yorùbáland, which isnow divided between southwestern Nigeria and the People’s Republic of Benin onthe Gulf of Benin

Tradução:Desde o século XIX, uma dessas nações afro-latinas tem crescido muito acima dequalquer outra – preeminente em tamanho, riqueza, grandeza e prestígiointernacional. Ela é estudada, tornou-se objeto de muitos livros e é imitada mais doque qualquer outra, não somente pelos adeptos (da religião dos orixás), mas,também, por antropólogos, historiadores de arte, romancistas e críticos literários. Aorigem e terra natal dessa nação trans-Atlântica costuma ser identificada como aYorubalândia, que hoje está dividida entre a região sudoeste da Nigéria e aRepública Popular do Benim, ambos localizados no Golfo do Benin.

Sejam quais forem as circunstâncias de sua ‘diasporização’ e a maneira da sua chegada no

Novo Mundo, o fato é que, a partir do século XIX, o povo nagô-yorubano se tornou uma

54 Cf. VERGER, Pierre, Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o Golfo do Benin e a Bahia de Todos osSantos, dos séculos XVII a XX São Paulo: Corrupio, 1976 ; SERRA, Ordep, Águas do rei, Rio de Janeiro:Editora Vozes Ltda, 1995.55 Vide, entre outros, BRAGA, Júlio Santana, 1995 e LIMA, Vivaldo da Costa, 1976.

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nação diaspórica por excelência, exportando aos cantos triangulares da concentração global

da época não somente a sua filosofia étnica, mas também a cosmovisão yorubana veiculada

sobretudo pela prática do culto aos orixás.

A propósito do uso do termo ‘diaspórico’ para descrever a existência de povos,

idéias e valores nagô-yorubanos no espaço globalizado, o teórico jamaicano Stuart Hall

(2003:26) nos deu um insight ao descrever o uso da palavra em função “da luz que ela

lança sobre as complexidades, não simplesmente de se construir, mas de se imaginar a

nação e a identidade, numa era de globalização crescente”. No caso da yorubanidade, o

termo diáspora se torna mais compreensível ao considerar o fato de que, cada vez que se

encontravam a milhares de quilômetros de casa, tanto os Akús da colônia britânica da Serra

Leoa do início do século XIX, como os seus contemporâneos - os Nagôs da Bahia e os

Lucumís de Cuba – sempre procuraram e conseguiram manter uma unidade étnica à base da

sua língua, cosmogonia, mitos de origem comum e, sobretudo, o culto aos orixás.

Ao mesmo tempo, essa mesma noção da diáspora yorubana no Brasil e no resto da

América Latina ainda remete àquela ‘qualidade de ser’ descrito por Hall que se

compartilha entre os afrodescendentes e que se celebra maciçamente no seu

‘pertencimento’ a um passado africano, muitas vezes indefinido, mas sempre concretizado

nas suas tentativas de “cavar um lugar junto” à sua ‘afro-identidade’ para mais uma vez

tomar emprestado a expressão de Hall.

Logo, prefiro definir a yorubanidade diaspórica como aquela qualidade, aquele

sabor indefinível, evidenciada nos valores e nas características distintamente africanos, ou

seja, aquilo mesmo que fez o próprio Hall (2003: 32) afirmar que: ‘senti a ‘África’ mais

próxima da superfície no Haiti e na Jamaica’, e com certeza, teria dito Hall, com maior

força ainda a respeito dessa presença africana no Brasil e em Cuba, se ele tivesse conhecido

essas diásporas yorubanas tão intimamente quanto conhece o seu Caribe nativo. Sabor esse

que se consegue apreciar mesmo em meio ao que o próprio Hall tinha chamado na página

anterior de ‘maior entrelaçamento e fusão, na fornalha da sociedade colonial, de diferentes

elementos culturais africanos, asiáticos (indígenas) e europeus’. Afinal, apesar de todo o

hibridismo cultural e sincretismo religioso que caracterizam o ser latino-americano da

contemporaneidade, o raio fulgurante de Xangô continua fascinando a todos, sob as suas

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diversas simbologias nas diversas regiões do Brasil,56 como também no Caribe, da mesma

forma que nunca deixou de fazer na própria iorubalândia.

Estudando a atuação dos yorubanos no Novo Mundo, Thornton chegou a falar na

instituição de uma “cultura Afro-Americana em termos braudelianos”, enquanto que

Matory (1994) por sua parte identificou a implantação de um “Edifício Atlântico

Yorubano” (The Yoruba-Atlantic Complex), baseando-se na uniformidade da atuação dos

yorubás nos diversos pontos das Américas e do Caribe, onde os seus descendentes ficaram

conhecidos até hoje sob diversos nomes étnicos.

Voltando o nosso olhar exclusivamente para o papel que os nagô-yorubás vieram a

ter no Brasil, não resta mais dúvidas que, malgrado as polêmicas que conceitos como a

“hegemonia nagô” ou “imperialismo yorubá” (Serra, 1995) têm suscitado em meios etno-

sociológicos e antropológicos brasileiros, o aporte cultural da presença dos nagôs a partir

do século XIX foi suficiente para mudar o rosto e o destino cultural do Brasil, em muitos

aspectos, obrigando o Brasil a experimentar pelo menos uma democracia cultural e

religiosa, bem antes da invenção da tão gabada democracia racial apadrinhada por

pensadores como Gilberto Freyre.

1.3.2 ‘Ají ÿebí Õyö làárí’: para uma apologia tardia da hegemonia culturalnagô-yorubana na diáspora brasileira

Quer pelo fato de terem sido os nagôs protagonistas de vários movimentos culturais

tal como as irmandades – Nossa Senhora de Boa Morte (Cachoeira) e Senhor Bom Jesus

dos Martírios dos Crioulos da cidade da Bahia em Salvador – entre outros, quer pela sua

participação mais que determinante na (re)organização do sistema de crenças das matrizes

africanas que culminaram na formação do Candomblé tal qual se conhece hoje, os nagôs se

tornaram verdadeira referência da identidade africana, na Bahia, como em outros pontos do

Brasil novecentista. Por isso que os nagôs acabaram sendo descritos como verdadeiros

inventores daquilo que Vivaldo da Costa Lima (1977) descreve como ‘um modelo

ideológico e ritual’ porque, afinal, como reconhece efetivamente Roberto Motta (2003)

“invocar a tradição de uma etnia africana envolve toda uma reivindicação de antigüidade e

56 A este respeito, vale lembrar aqui que, em diversas regiões brasileiras, do Recife a Porto Seguro, aexpressão religiosa de matriz africana se chama simplesmente Xangô (LODI, 2003)

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ortodoxia”57. E, no caso do Candomblé do Brasil, é justamente em relação a esses conceitos

de suma importância cultural e religiosa que se destaca a herança nagô-yorubana.

Motta (2003:135) deixou claro que, mesmo dentro da estrutura do sincretismo

oficial, tanto aquilo que faz corresponder os orixás e outras divindades africanas aos santos

da devoção popular do catolicismo brasileiro, como aquele que o historiador baiano

Ubiratan Castro descreveu, em um artigo apresentado na ilha senegalesa de Gorée, em

2002, como o original ‘sincretismo cultural’ das nações africanas em solo diaspórico e

concretizado, entre outros, no culto afro-brasileiro, na passagem do século XIX para o XX,

não há como negar a predominância da tradição nagô em toda e qualquer comunidade-

terreiro do culto afro-brasileiro. É significativa a percepção do pesquisador pernambucano,

que vem corroborar a observação de vários estudiosos da religiosidade afro-brasileira, a

respeito da preponderância nagô-yorubana, algo que, contra toda evidência de sua

concretização, ainda provoca bastante incômodo em certos estudiosos do assunto a ponto

de querer polemizá-lo. Eis o depoimento de Roberto Motta (2003: 138) :

(...) De modo geral, a tradição nagô, isto é, yorubá, prevaleceu sobre as outras e veioa afetar todo o domínio afrobrasileiro, independentemente de como os terreirospreferem denominar-se. É assim que, no Recife, não havia marca banto observávelem casa do falecido pai Apolinário Gomes da Mota, o qual, embora declarassepertencer à nação congo, utilizava o nagô como língua litúrgica e só se diferenciavade outros terreiros por certas sobrevivências da mitologia jeje (...)

Que assim tenha sido o resultado das atuações nagô-yorubanas na diáspora não

poderia ter causado grande espanto para um yorubá-africano, nem para os próprios

protagonistas nagôs que legaram tal herança para a posteridade afro-brasileira, haja vista

que, durante séculos, o lema que parecia impulsionar o povo yorubano como uma

motivação congênita sempre foi a verdade do ditado reproduzido no título desta seção: ‘Ají

ÿebí Õyö làárí, Õyö kìí ÿebí baba çnì köõkan!’, ou seja, são os outros povos que têm a

vocação de imitar os yorubanos (Òyó), os yorubanos não precisam imitar a ninguém!

Mesmo quando não pretende perder de vista a questão do sincretismo, que ocorreu

entre as diversas nações africanas, na formação do Candomblé brasileiro, Serra (1995: 11),

ao se referir ao:

57 Cf. MOTTA, Roberto, “Continuidade e fragmentação nas religiões afrobrasileiras”, in SCOTT, Parry eZARUR, George (org). 2003. p. 133 – 146.

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(...) fenômeno interessantíssimo acontecido neste país (e em diferentes partes daAmérica): o rico diálogo que envolvendo outros interlocutores, travaram aquioriundos de povos e culturas do sul da África com representantes de povos eculturas da costa ocidental africana, em sua terrível diáspora(...)

Com efeito, o antropólogo Serra (1995: 32) não deixou nenhuma dúvida quanto ao

resultado dessa negociação e o peso da responsabilidade que acabou cabendo aos nagôs e

jejes ao afirmar que: ‘Vale insistir: os nagôs e os jejes, que muitas coisas aproximavam,

foram protagonistas de um movimento cultural de enormes repercussões neste país...’.

Como se para dar uma prova definitiva, que mesmo assim não deixa de ser

paradoxal, da importância de sua atuação nas sociedades diaspóricas latino-americanas,

sobretudo no Brasil, foi demonstrado, recentemente, como se esvazia a polêmica que surgiu

ao redor da pureza do culto nagô, e o questionamento da eficácia de seus orixás, da

autenticidade de seus costumes e, enfim, da profundeza de suas tradições quando, durante

um seminário organizado às instâncias da Associação Brasileira da Antropologia em

homenagem dos 80 anos do antropólogo baiano Vivaldo da Costa Lima, o antropólogo

inglês, Peter Fry, fez uma intervenção que mostra como até os mais obstinados

protagonistas da acirrada polêmica a respeito da hegemonia nagô parece que hoje se estão

dando conta de que, ultimamente, a presença maciça das iconografias yorubanas no Brasil

se tem consolidado cada vez mais como a verdadeira base da referência cultural africana no

Brasil.

Com efeito, Fry comenta o fato de que parece que, no imaginário do povo afro-

brasileiro, qualquer que seja suas filiação litúrgico-religiosa, toda e qualquer referência ao

resgate de sua identidade, através de heranças culturais africanas a serem usadas como

orgulho e modelo, nas reivindicações das massas negro-mestiças à plena cidadania, sempre

acaba sendo voltada à cosmovisão yorubá-africana. Nas suas próprias palavras, Fry assim

afirmou: ‘É como se, quando o Brasil pensa sua africanidade, dirige o seu olhar para o

lado yorubano da África, e nunca para os países da África-Equatorial’58

Por sua parte, etno-lingüísta baiana Yeda Pessoa de Castro, arguta defensora dos

chamados povos bantos no Brasil, chegou a confessar na mesma ocasião que, de fato, de

modo geral, no meio do próprio povo-de-santo, existem duas referência lingüísticas de uso

58 FRY, Peter, intervenção durante o Seminário “Vivaldo da Costa Lima 80 Anos”, Salvador, Anfiteatro daAntiga Faculdade de Medicina, 27 – 28 de julho de 2005.

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desigual. Ela afirmou que todos os praticantes da religião de matriz africana, seja de que

nação forem – ketu, nagô, jêje ou congo-angola – usam as terminologias e expressões ketu-

nagô, dentro do mundo sagrado, sendo que, os termos de origem bantos ficam consignados,

apenas, para designar o contexto profano, isto é, usados apenas em contextos não rituais.

A etno-lingüísta baiana estendeu-se a exemplificar a sua constatação, ao citar o

exemplo do uso do vocábulo yorubano ‘orúkô’, por todos, para designar o nome ritual,

dado pelo orixá a uma pessoa, no momento de sua iniciação, enquanto se usa o equivalente

do mesmo termo em kimbundo – ‘digina’ – para designar nomes do dia-a-dia. Da mesma

forma, segundo ela, se inter-trocam os termos “orí” em yorubá, e “mutue” em kimbundo

(cabeça); “èèwõ” (yorubá) e “quizila” (kimbundo) respectivamente, para designar tabus e

proibições, conforme se o contexto for ritual ou profano59.

Deste modo, observa-se um esvaziamento da polêmica que dividiu os intelectuais e

estudiosos do campo da antropologia religioso-cultural do Brasil. Polêmica essa que

consumiu boa parte do século passado e acaba demonstrando que a hegemonia não é

sempre prerrogativa absoluta do grupo dominante numa sociedade poliétnica

(POUTIGNAT e STREIFF-FENART, op. cit).

Como se pode verificar pela rica produção bibliográfica que lhe é dedicada, o

interesse pelo império atlântico cultural e religioso nagô-yorubano, assim como a

repercussão da grande marca cultural e religiosa deixada pelos nagô-yorubanos nas

sociedades escravistas latino-americanas não se limitou a estudiosos e intelectuais

brasileiros, como se pode ver na participação de intelectuais franceses – Roger Bastide,

Pierre Verger – os norte-americanos Melville J. Herskovits, Donald Pierson, J.M. e L.

Turner, Franklin Frazier e, mais recentemente, Lorand Matory e Peter Cohen, o inglês Peter

Fry, ou mesmo os cubanos Lydia Cabrera e Fernando Ortiz, além dos próprios intelectuais

brasileiros – Nina Rodrigues, Artur Ramos, Édison Carneiro e a geração relativamente

nova, composta de pesquisadores, como Gonçalves da Silva, Manuela Carneiro da Cunha,

dentre muitos outros.

Portanto, quando se repara que a despeito da desconfiança que teria tomado conta de

bom número de antropólogos, etnólogos, sociólogos e, até o próprio povo-de-santos, a

respeito do suposto imperialismo dos nagôs na Bahia de onde estendiam o seu domínio ao

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resto do Brasil, sobretudo o eixo sul/sudeste (São Paulo-Rio de Janeiro), os protagonistas

nagôs que ousei denominar em outro trabalho meu de akëhìnde-gb’êgbön,60 conforme a

teoria postulada por Pierre Verger (1968) a seu respeito, nada mais fizeram do que manter a

tradição da visibilidade étnica que os caracteriza em outras diásporas do mundo, tornando a

‘etnia’ nagô-yorubana o grupo étnico mais estudado, o mais discutido e o mais imitado de

todos.

Além do mais, observa-se que a guerra das nações e a rivalidade alimentada pelos

discursos acadêmicos de legitimação e contestação contra-hegemônicas parecem não ter

repercutido o suficiente no meio do povo-de-santo para tirar o destaque do sistema nagô-

yorubá no culto afro-brasileiro, que, aliás, nada mais é do que um reflexo do que se passa

em outras terras latino-americanas, onde não houve tais polêmicas. Mesmo o confronto

mais vulgar e precário entre a estrutura e o universo religioso-cultural onde a batalha da

tradição Nagô versus a não-Nagô sempre acaba apontando para o óbvio, deixando que o

mais sofisticado texto dos que procuram derrubar a hegemonia nagô com o confronto

Candomblé Nagô versus Macumba, ou ainda a luta entre os cultos de Umbanda e

Quimbanda dos estados do sul acabam reforçando o lugar central da concepção nagô-

yorubana no horizonte religioso-cultural afro-brasileiro, que, aliás, parece ter mudado

pouco desde a época em que o yorubá era usado como língua franca no meio da população

escravizada da Bahia novecentista (Roberto Motta, 2003; Ordep Serra, 1995; Renato Ortiz,

1978).

Mais uma vez, o antropólogo Serra (1995:30) reitera a conclusão à qual têm

chegado muitos outros estudiosos da área, ou seja, que, devido às provas hoje

incontestáveis, é impensável falar em qualquer expressão autêntica da religiosidade afro-

59 CASTRO, Yeda Pessoa de, intervenção durante o Seminário “Vivaldo da Costa Lima 80 Anos”, Salvador,Anfiteatro da Antiga Faculdade de Medicina, 27 – 28 de julho de 2005.60 Tradução: O-último-a-chegar-que-acabou-virando-o-mais-prominente. A propósito, ver FélixAyoh’OMIDIRE. prefácio de ÀKÓGBÁDÙN (2004). Aliás, essa parece ser a mesma conclusão de MunizSodré que, recentemente, em fala pública para homenagear Mestre Didi Axipá Alapini, na Reitoria da UFBA(09-06-2004), chegou a reiterar que o que mais explica a ascensão da visão do mundo nagô-yorubana naDiáspora em geral, e no Brasil em particular, é que, embora os Nagôs tenham chegado aqui em condição decativos, chegaram sem a moral de escravos, o que os teria incentivado à possibilidade de encarar a suasituação de forma bem diferente da dos outros. Também, o escritor A.B. Ellis (1894), administrador colonialbritânico na África Ocidental no final do século XIX fez a mesma constatação a respeito dos yorubanos,quando, além de descrevê-los como um povo que “exibe maior independência de caráter”, e como um povo,em cujo comportamento se verifica “rara demonstração de servilismo”, afirma que: “os yorubanosrepresentavam para os seus vizinhos na África Ocidental, o que os ingleses representam para outroseuropeus”.

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brasileira, sem falar da grande dívida que essa tem para com a matriz nagô-yorubana.

Trazendo o exemplo do fato que “[os] teônimos e a nomenclatura religiosa predominante

no coloquial do povo-de-santo de todas as nações vêm a ser, em larga medida, de origem

nagô”, tal qual foi demonstrado largamente pelos depoimentos de Peter Fry e Yeda Pessoa

de Castro, a análise de Serra acaba lembrando um provérbio yorubano que resume melhor a

referência inevitável à herança nagô-yorubana no Candomblé brasileiro: Ao níí perí ajá,

kámá perí ìkòkò ti a fi ÿèé. Ou seja, que a mera menção da religiosidade, e mesmo, da

cultura afro-baiana, evocará inevitavelmente a matriz nagô-yorubana da mesma forma que

qualquer referência ao ato insólito de comer a carne do cachorro sempre acarretará uma

lembrança da panela usada61 para cozinhar sua carne.

Portanto, como já vimos o medo à suposta hegemonia nagô parece não ter sido álibi

suficientemente forte para consignar o modelo cultural e religioso nagô-yorubano fora da

ordem sócio-religiosa afro-brasileira, tanto no caso específico da Bahia, e no Brasil como

um todo, como também em muitos outros pontos do continente americano, onde tal

polêmica nunca teve força. É que as evidências a favor do sistema nagô-yorubano parecem

demasiadamente fortes. E, como adverte Serra (1995: 31), no seu capítulo intitulado

“Defesa risonha de um imperialismo imaginário”:

(...) não dispensa ninguém de refletir sobre o alcance do vigoroso impacto dosaportes yorubás, a força de sua marca no Brasil e especialmente na Bahia. Ignorá-lo,por medo da acusação de rabo-preso com o imperialismo nagô, seria tapar o sol comuma paranóia.

Prova irrefutável desse impacto vigoroso que ainda se verifica entre a geração

contemporânea se pode ver numa experiência inédita que aconteceu recentemente. Trata-se

da experiência que teve uma professora baiana e que não deixa de ser reveladora do status

do yorubá no Brasil contemporâneo. A pedagoga e pesquisadora do Programa

Descolonização e Educação (PRODESE) da Universidade Estadual da Bahia (UNEB), Léa

Austrelina Ferreira Santos, testemunhou no seu artigo intitulado “Ética da coexistência:

uma referência fundamental à proposição de uma educação pluricultural” que alguns

alunos, integrantes do Projeto Odemodé Egbé Asipá, idealizado por Mestre Didi dentro do

61 Visto que a carne de cachorro é considerada inadequada para consumo humano, no caso de se produzir umato de consumir carne de cachorro, ninguém vai querer mais se servir da panela com a qual o cachorro foicozido, daí a referência obrigatória a essa panela cada vez que se toque no assunto do consumo do ajá(cachorro).

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espaço do Terreiro Ile-Asipá, no âmbito das atividades comunitárias da SECNEB –

Sociedade de Estudos da Cultura Negra no Brasil – e em parceria com o Núcleo de

Educação e Tecnologias Inteligentes, NETI da UNEB, tiveram a ousadia de “pescar em

Yorubá” durante uma avaliação de um dos cursos ministrados por certas professoras

canadenses do NEC – Núcleo de Estudos Canadenses, também da referida universidade. De

acordo com o relato da professora:

Na iminência ou com receio de uma nota baixa, os jovens não viram uma outraalternativa senão “pescar”, mas eles foram criativos, não poderiam “pescar” emportuguês ou inglês, pois as professoras conheciam essas duas línguas, então com aintenção de burlar a tentativa de controle exercido pelas professoras, elescomeçaram a “pescar”62 em yorubá63.

1.4.0 Identidade e etnicidade: nação ketu-nagô ou as políticas de intervenção naBahia

À luz do que já foi discutido a respeito do povo yorubano, torna-se possível ler a

identidade étnica yorubana, a partir da definição de A. D. Smith (1981), como:

(...) um grupo social cujos membros compartilham um sentimento de origemcomum, reivindicam uma história e um destino comuns e distintivos (sic), possuemuma ou várias características distintivas e sentem um senso de originalidade e desolidariedade coletivas”64.

Por outro lado, seria interessante comparar essa noção de identidade yorubana com

a identidade, também nagô-yorubana, que se pretende quando se refere ao chamado

‘Candomblé ketu, nação nagô’, freqüentemente utilizado para explicitar o que representa a

autodefinição de identidade negra no Brasil contemporâneo (GONÇALVES, 1995).

No primeiro caso, é oportuno ecoar aqui os propósitos do teórico ganês Kwame

Anthony Appiah (1997 [1992]), para afirmar que a questão racial nunca foi uma

preocupação endógena dos povos africanos, embora a distinção étnica seja uma

preocupação perene nos discursos dos vários povos. Apesar do fato de não existir nenhuma

distinção morfossintática na língua yorubana para marcar a diferença entre ìran como

significando a raça ou ìran como etnia (ou ainda com o significado de “linhagem”), nem o

62 Nota: a gíria escolar no Brasil, “pescar” significa, “fazer batota”, ou seja, fazer práticas desonestas duranteuma prova.63 Cf. Sementes: Caderno de Pesquisa, Salvador, v.2 n. 3/4 jan./dez. 2001, p.47.64 apud Poutignat et alii. Op. cit. p.83

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sentido do vocábulo êyà (literalmente análogo ao sentido do mundo da (xero)cópia, que é

também sinônimo de ìran, parece haver em determinadas situações uma grande

preocupação com o conceito da raça, como se poderia verificar no termo çlëyàmêyà

comumente usado para descrever conflitos interétnicos, e não inter-raciais, no contexto

contemporâneo africano.

Porém, estudando mais de perto o conceito de ìran na sociedade yorubá-africana,

pode-se inferir dele uma decorrência biogenética, visto que são pessoas pertencendo à

mesma linhagem familiar que se auto-declaram membros do mesmo ìran e tais identidades

se comprovam na partilha do mesmo oríkì-orílê, ou seja, conjunto de loas acumulando a

essência do cerne histórico-social da determinada linhagem. De acordo com Adeboye

Babalola (2000: viii), é através do oríkì-orílê que se torna possível distinguir os diversos

ìran (linhagens) e sub-nações, que compõem a grande nação yorubana. Assim, é possível

falar de ìran Olúfê ômô ojúrabçsá, como formando uma linhagem, distinta de ìran Ajèjé

môdç-Ìrçsà, dentre outras dezenas ou centenas de ìran yorubanos.

Contudo, essa distinção histórico-social entre as diversas linhagens cristalizada nos

oríkì-orílê não chega a apagar a afiliação de todas elas à mesma supra-nação yorubana,

sendo que, como já foi mencionado neste mesmo capítulo, a origem e denominação comum

de Ômô Odùduwà (descendentes de Odùduwà) prima sobre qualquer outra identidade sub-

étnica.

O que importa reter no conceito de ìran, do lado yorubá-africano, é a sua implicação

congênita: ninguém poderia pertencer ao ìran Olúfê, ou a qualquer outro ìran yorubano,

por adoção. Principalmente, porque o pertencimento a tais linhagens implica, antes de mais

nada, que os membros sejam sujeitos a determinadas regras de comportamento social e à

observância de certos tabus, impostos pelo orixá patrono da linhagem. Isso se traduz na

teoria de etnicidade como parte do dado primordial, que o duo de teóricos franceses,

Poutignat e Streiff-Fenart (1998: 89) resume como uma qualidade primária da etnicidade:

(...) uma vez que o indivíduo nasce com (ou adquire desde o nascimento) oselementos constitutivos de sua identidade étnica: as características físicas, o nome, aafiliação tribal ou religiosa, todos estes elementos que o ligam a ancestrais putativoscuja herança é transmitida de geração a geração...é essa ancoragem da identidadeétnica em um grupo de parentesco ampliado, fictício ou real, que confere “asligações étnicas a força coercitiva derivada do dever moral de solidariedade paracom “os seus” e a força dos sentimentos emocionais que é atraída pelo simbolismodos vínculos de sangue e da família (...)

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Um exemplo vívido, no contexto da yorubanidade, é o que representam os deveres e

as proibições (tabus), que acompanham a filiação a qualquer um dos orílê, ou seja,

linhagens yorubanas. Por exemplo, enquanto é permitido aos descendentes de ìran Olúfê, e

a algumas outras linhagens, comer carne de cobra, qualquer descendente de Alápá (uma

linhagem cujo ancestral fundador foi o lendário Olúmõmí, um poderoso caçador que

costumava se transformar em jibóia, para caçar na floresta, até que um dia não conseguiu

mais retornar à forma humana, depois que seus inimigos teriam virado o caldeirão, no qual

costumava entrar para se transformar), que se atrever a comer a carne de qualquer espécie

de cobra estaria correndo grande risco de envenenamento místico e ritual.

Como já foi amplamente demonstrado com apoio da teoria primordialista,

apresentada no início deste capítulo, o pertencimento à nação yorubana (ou a qualquer

outra ‘nação’ africana), do lado africano, é uma questão de sangue, ou seja, decorre daquilo

que Fishman (1977: 17) chama de paternity (paternidade)65. Porém, verifica-se o contrário

deste processo, do lado diaspórico, uma vez que a primeira violência moral que o sistema

escravocrata praticou contra os africanos escravizados, foi tentar apagar as suas identidades

étnicas originais, começando pelos nomes e sobrenomes étnicos, trocados obrigatoriamente

por nomes de origem euro-católica, o que, certamente, acarretou a perda dos respectivos

oríkìs de linhagem no caso de indivíduos nagô-yorubanos.

Desse modo, os descendentes de antigos africanos escravizados, que hoje se

denominam afrodescendentes no Brasil, são impossibilitados de continuar a linhagem de

seus ancestrais paternais, porque essa já foi perdida na longa noite da escravidão. Portanto,

os afrodescendentes que queiram reivindicar a ancestralidade africana, afiliando-se a

qualquer uma das nações africanas, precisam passar, rigorosamente, pelo viés da adoção.

Ou seja, para tomar emprestada, mais uma vez, a terminologia de Fishman (1977: 17), para

qualquer afrodescendente da diáspora poder ascender à etnicidade africana, precisa passar

pelo viés de “patrimony” (aquisição consciente), caracterizada pela “dimensão

comportamental e expressiva” que “deixa parte para as interpretações e estratégias

individuais”, como a única opção que o possibilitaria a se identificar com determinados

valores patrimoniais do grupo étnico de sua escolha.

65 Apud. Poutignat et alii. Op. cit, p. 92.

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Salvo por exceções raras, como é o caso de algumas famílias-de-santo tradicionais

da Bahia, tais como a descendência da famosa Marcelina dos Santos Obatossi, trisavô de

Maria Bibiana do Espírito Santo, Oxum Muiwá, a venerada Mãe Senhora do Opô Afonjá,

mãe biológica do escritor Mestre Didi Alapini, que conseguiu guardar, na memória

familiar, os atributos da linhagem nagô-africana da família Asípa, à qual pertence,

conservando ao longo dos anos de escravidão o essencial dessa identificação no famoso

brasão oral de sua linhagem (Aÿípa Bòrògún çlëÿê kan góþgó), permitindo que se tornasse

fácil para o Alákétu (Rei de Ketu) identificar e mandar levar o tataraneto de Obatossi,

Mestre Didi ao Agbo-ilé (compound-terreiro-território), da família Asipá em Ketu, quando

da visita desse ao reino africano em companhia de sua esposa Juana Elbein e do etnólogo

francês Pierre Verger em 196766.

De maneira semelhante, ocorreu também a reconstrução da descendência deixada na

Bahia pela figura legendária de Otampê Ojarô, fundadora do famoso Terreiro do Alaketo,

cujos zeladores atuais conseguiram remontar a história do seu terreiro, a vinda ao Brasil,

das princesas gêmeas da família Arô do reino yorubano de Ketu, que foram seqüestradas e

vendidas como escravas na Bahia, onde uma das duas – Otampê Ojarô – acabou fundando o

Axé do Alaketo67.

Mesmo assim, verifica-se ainda que mesmo a pertença historicamente comprovada

dessas famílias à nação ketu-nagô, foge da verdadeira concepção nagô-yorubana-africana

de filiação, já que, em ambos os casos, a linhagem assumida foi, na realidade, a linhagem

materna, e não paterna, devido ao fato da proeminência das personagens femininas na

organização e na liderança do Candomblé brasileiro, o que acaba dando a impressão

inexata, no mundo da religiosidade afro-brasileira, de que a sociedade yorubana é

matrilinear e matriarcal (cf. MATORY, 2005:188ss).

Afora os casos isolados das duas famílias-de-santo acima-mencionadas, a filiação

do resto dos afrodescendentes baianos ao chamado candomblé ketu, nação nagô teve que

passar, obrigatoriamente, pela adoção, e, por uma escolha livre e espontânea. Desse modo,

para poderem validar tal identidade, os pretendentes precisavam aprender e cultivar o modo

66 Cf. Um negro baiano em Ketu, em SANTOS, Deoscóredes Maximiliano dos (Mestre Didi), 1994 e 2003,p. 9-11. Ver também SANTOS, Juana Elbein dos, 1986; e LUZ, marco Aurélio, 2002.67 Cf. Renato da Siveira, “Sobre a fundação do Terreiro do Alaketo” in, Afro-Ásia, nº. 29-30, p.345-379.

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de vida e outros elementos e comportamentos étnicos, que representam o “patrimônio” da

sua etnia de escolha.

Portanto no caso dos grupos de afrodescendentes que hoje fazem uso da herança e

identidade cultural nagô para validar suas reivindicações, em busca de uma plena cidadania

brasileira, torna-se válida a afirmação de Moerman (1965: 1222) de que: ‘Alguém é lue pelo

fato de se crer e denominar-se lue e agir de modo a validar sua lue-tude’68. Aliás, de

acordo com Stuart Hall, essa já constitui uma das características constitutivas de qualquer

diáspora. Ou seja, a filiação étnico-religiosa na diáspora acaba sendo um conceito de

identificação nascido longe da terra mãe, e cujo conteúdo é, muitas vezes, retrabalhado,

para responder às necessidades imediatas do grupo diaspórico.

Desse modo, se é verdade que, como afirma Poutignat et alii, ecoando Cohen

(1978), ao reiterar que ‘o que diferencia em última instância a identidade étnica de outras

formas de identidade coletiva (religiosas ou políticas), é que ela é orientada para o

passado e tem sempre uma “aura de filiação’, as designações de candomblé ketu, nação

nagô, vigentes nas classificações do sistema religioso-cultural afro-brasileiro, acabam se

tornando uma forma de filiação étnica, ultrapassando uma simples adoção religiosa. Aliás

quando o Bloco Cultural Ilê-Aiyê, pioneiro dos Blocos Afro-carnavalescos da Bahia, canta

entusiasticamente o refrão ‘sou África, jeje-nagô, sou África, Ilê-Aiyê Salvador’, fica

incontestavelmente claro, a vontade, pelo menos da parte de seus dirigentes que estão,

diretamente, sob a tutela da ialorixá Mãe Hilda Jitolu, de assumir uma identidade étnica

específica, que seria a da guia espiritual do grupo, que também é mãe biológica do

presidente vitalício Antônio Carlos dos Santos Vovô.

Como teria afirmado Weber, citado por Poutignat et alii (1998: 162), ‘a crença na

(e não o fato da) origem comum constitui o traço característico da etnicidade’ . Da mesma

forma, A. D. Smith (1981) deixa claro que ‘é (ess)a crença na origem comum que justifica

e corrobora as outras dimensões ou signos da identidade e assim o próprio sentido da

unicidade do grupo’.

É lícito concluir, portanto, que, na configuração da identidade étnica afro-brasileira,

verifica-se que, no caso específico da Bahia, sempre tem existido uma certa cumplicidade,

da parte de todos os atores e agentes sociais, de dar o realce à visão do mundo, assim como

68 Apud Poutignat et alii. P. 84.

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às práticas religioso-culturais nagô-yorubanas. Mesmo quando se faz questão de manter na

mira a presença de outras matrizes culturais e religiosas africanas dentro do mesmo espaço,

os principais emblemas e ícones da baianidade, tais como monumento públicos – Memorial

à Baiana, Dique do Tororó – ; as festas de largo e eventos da religiosidade popular, como as

festa de Yemanjá, Bomfim e Santa Bárbara, assim como as manifestações artísticas, tais

como a música popular – Axé-Music, Afoxé etc. vêm a ser quase todos de origem nagô-

yorubana, apoiados em um uso cultivado, de léxicos yorubanos, com os quais se procura

comprovar o ‘pertencimento’ étnico-racial de afro-descendentes baiano. Além do mais,

como veremos no capítulo três, o reconhecimento oficial das autoridades municipais e

estaduais que se verifica através de apoio a projetos, oriundos dos segmentos nagôs das

expressões culturais baianas, atesta para a ascensão da cultura nagô a uma certa hegemonia,

no que diz respeito à versão oficializada da baianidade. Cita-se de passagem o tombamento

de terreiros nagôs que, constituem a maioria quase absoluta neste reconhecimento oficial de

valores culturais de matriz africana na Bahia, sendo que, segunda as Estatísticas do Instituto

do patrimônio artístico e cultural da Bahia (IPAC), até o momento atual, de um total de oito

terreiros tombados na Bahia, sete pertencem à nação ketu-nagô.

Resumindo, podemos repetir, com muitos especialistas do assunto, que, no caso da

identidade étnica de descendentes de antigos africanos escravizados no Novo Mundo, a

definição da etnia não poderia ser a mesma que aquela descrita anteriormente, para os

povos africanos, que permaneceram no continente mãe. Parafraseando a antropóloga

Manuela Carneiro da Cunha, o antropólogo baiano, Jéferson Bacelar (1989: 21), deixa claro

que, enquanto, de modo geral, no caso africano, por exemplo: ‘a definição vigente de etnia

concede primazia à identificação do grupo em relação à cultura que ele exibe’, o que

também parece estar de acordo, de certa forma, com a identificação dos Nagôs no Brasil e

dos Lucumís em Cuba, no uso (exclusivo) do mesmo padrão cultural.

Por outro lado, é desaconselhável a aplicação cega dessa definição, na definição das

etnias de certas outras diásporas, sobretudo, aquelas que identifiquei, na introdução da tese,

como sociedades negras pertencendo à terceira categoria de identidade negra, visto que

Barth (1969), tem avisado, a propósito, que a etnia, dentro da conjuntura moderna, é melhor

entendida como um tipo de organização por adscrição (acréscimo), antes que por algum

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tipo de atribuição ou imputação69, visto que o indivíduo pode assumir, ou deixar de assumir

determinados aspecto de ‘sua identidade’, conforme a situação. A propósito disso, Hall

(1999) adverte que, na maioria dos casos, “a identidade é uma festa móvel”.

A seguinte definição de Barth, citada no inglês original, por Bacelar (1989: 22) nos

esclarece bastante este aspecto: ‘Etnic groups are categories of ascription and

identification by the actors themselves, and thus have characteristics of organizing

interaction between people,’ ou seja, que os grupos étnicos são essencialmente categorias

de auto-atribuição e identificação, escolhidos pelos próprios atores, servindo pois, para

organizar interações entre tais atores e os ‘ outros’.

Mesmo assim, não se deve confundir essa adscrição com o voluntarismo, pois,

como afirmam Poutignat e Streiff-Fenart (1998: 1000) na sua abordagem da teoria da

“escolha racional”:

Os membros dos grupos étnicos não são definidos como tais em razão de suapertença involuntária e de sua interiorização inconsciente dos valores do grupo.Mas, ao contrário, os grupos étnicos se formam quando os indivíduos desejamadquirir bens (a riqueza, o poder) que não chegam a conseguir segundo estratégiasindividuais.

Portanto, sobretudo em sociedades poliétnicas ou multi-raciais, como é o caso do

Brasil, nos quais as diversas ‘etnias’ se rivalizam para obter os ganhos da cidadania que

precisam ser disputada, das mãos da classe dominante, a filiação a uma etnia, como a nação

nagô na Bahia, pode resultar, muitas vezes, de um processo de inclusão, nascendo da

vontade de ‘racionalização ou reforço de interesses’, como dizem tão bem os teóricos

franceses.

Este raciocínio fica mais claro, se considerarmos, por exemplo, a estratégia do

discurso étnico, de grupos e agremiações culturais de afrodescendentes, como os blocos Ilê-

Aiyê, Olodum, O Bando Teatro Olodum do Teatro Vila Velha, dentre tantos outros na

Bahia. Como já foi demonstrado, a pertença do grupo à nação África, como afirma na já-

citada música do Ilê Aiyê: ‘Eu sou África/ Jeje-Nagô/ sou África/Ilê Aiyê, Curuzu!’, pode

ser lida como uma estratégia de inclusão, por parte de muitos dos indivíduos que aderem a

esse credo, visto que a trajetória dos últimos trinta e um anos do Ilê-Aiyê, e o sucesso

69 Na verdade, existe uma sutilidade de sentido entre a “ascription” do inglês, e a “adscrição”, do português.

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relativo que o grupo teve em arrancar das mãos da classe dominante os benefícios da

cidadania para “os seus”, constitui um bom argumento para quem quiser “subir na vida”.

Florentina Souza (2002:96) destaca esse papel preponderante nas intervenções do

Ilê-Aiyê na construção da identidade e no resgate da auto-estima de afrodescendentes

baianos, através de sua luta pluridimensional, abarcando, tanto a ressignificação do corpo

negro, quanto o resgate do passado africano e afro-brasileiro, através de letras de suas

músicas carnavalescas, dotadas de uma pujança reivindicativa, apoiando-se, ainda, com os

textos informativos sobre as diversas temáticas da identidade africana e afro-brasileira,

publicados no seu Caderno de Educação. Como sintetiza a pesquisadora baiana:

Tanto os textos dos Cadernos quanto as letras das músicas mesclam diferentesníveis de experiência: a experiência cotidiana de enfrentamento da discriminaçãoracial e a experiência de imaginar e construir uma versão da história, utilizando osdiversos elementos culturais, arranjando-os de modo a estabelecer elos depertencimento gerados a partir da crença na possibilidade de se traçar umaascendência/origem comum a africanos e afrodescendentes70.

E, como se antecipando o objetivo visado pela promulgação da Lei Federal 10.639

que o Governo Lula baixou em janeiro de 2003, para reconhecer a importância, não

somente do resgate da história da atuação das populações africanas e afro-descendentes na

formação do Brasil, mas também para colocar os alicerces de uma possível re-aproximação

entre o Brasil e as populações do continente africano, através da inclusão de elementos da

história e das culturas africanas no currículo de vários níveis da educação brasileira,

Florentina Souza (2002: 96) reconhece a eficácia potencial dos projetos do Ilê-Aiyê, como

experiências que, ao longo ou médio prazo, podem ‘mostrar-se produtivas como políticas

culturais de intervenção social que viabilizam a formação de redes transnacionais de

conexão cultural’.

Em conclusão, podemos afirmar que a pertença ao ‘candomblé Nagô’ ou ‘nação

Ketu’ no Brasil, assim como aos Blocos Afro-carnavalescos, tais como Ilê-Aiyê, Olodum,

Araketu, e tantos outros, que ostentam a cosmovisão nagô-yorubana na cena político-social

da Bahia, se caracteriza, antes que mais nada, pela adscrição e, talvez pelo que se pode

chamar de uma filiação estratégica, como se vê na adoção de diversas práticas e

associações, assumidamente usadas no meio sócio-cultural da Bahia, por indivíduos e

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grupos negro-mestiços, para garantir a possibilidade de usufruir as vantagens de uma

pertença étnica, reconhecido como gerador de imagens positivas no mercado de bens

simbólicos.

Pensa-se aqui, no mercado da música e da estética de inspiração africana, onde o

‘look’ africano, seja aquele que é garantido através do uso de turbantes, tranças ou batas

africanas, seja aquele que o é pelo uso de trajes tipicamente africanos e contas coloridas que

atestam para uma intimidade com o mundo religioso dos orixás.

Enquanto tudo isso se desdobra, não é difícil constatar que, nos processos da

definição da identidade e do resgate da memória africana e afro-brasileira, que acontecem

nos dois lados do Atlântico Yorubá, um dos instrumentos indispensáveis sempre foi a

oralidade. Tanto nas comunidades yorubá-africanas quanto nas comunidades yorubá-

diaspóricas, tais como o Brasil e Cuba, onde a força da palavra e das expressões yorubanas

se tornou tão predominante que acaba predominando, e, muitas vezes, excluindo qualquer

outra língua ou expressão africana, da configuração simbólica de um mundo africano

dentro das sociedades afro-americanas, com suas vocações obrigatoriamente híbridas.

Com efeito, a força da palavra yorubana se faz sentir na reconfiguração da

sociedade afro-brasileira como um mundo de forte herança africana, o que faz com que,

quer nos recintos sagrados das comunidades-terreiros, quer nos domínios populares da

cultura afro-brasileira, a oralidade yorubana sobressaia como elemento indispensável. Na

busca das populações afrodescendentes por elementos culturais das matrizes africanas, para

definir e legitimar seu lugar de fala na sociedade brasileira, a oralidade yorubana vem

sendo convocada cada vez mais, para nomear as palavras e as coisas, para exprimir em

letras de músicas, os sentimentos e anseios da população, para cantar as dores e as

reivindicações das massas; ela vem sendo convocada nas letras das diversas composições

musicais que vão do contemporâneo samba-de-raíz de cantores-compositores como Jota

Velloso e Mariene de Castro, até o Axé-Music cantada no alto dos trio-elétricos por

diversos astros, para celebrar as alegrias e esperanças do povo baiano, inventando para as

populações afro-brasileiras, uma cidadania digna, através da divulgação das expressões de

suas verdades sintetizadas, que outrora só podiam circular nos terreiros, mas que hoje se

sentenciam nas ondas de rádio, nas antenas da televisão e outras mídias que, embora 70 Cf. SOUZA, Florentina, “Discursos identitários afro-brasileiros: o Ilê-Aiyê”, em Maria do Carmo Laura

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controladas pelas classes dominantes, são obrigadas a reconhecer a força simbólica dessa

oralidade, e acabam conferindo-lhe o espaço que antes era negado a tudo quanto era do

negro, porque era considerada de influência péssima. É essa oralidade que constituirá o

foco do próximo capítulo.

Figueiredo e Maria Nazareth Soares Fonseca (org.), 2002. p. 96.

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Estátua de Odùduwà (Oòduà Atêwõnrõ) fundador da nação yorubana.Matéria: madeira.Escultor: Lamidi Olonade Fakeye.

Iconografias da identidade nagô no Brasil1. Símbolos sagrados do culto afro-brasileiro

(Museu Afro-Brasileiro da UFBA)

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Yorubanidade sem fronteiras (COMTOC Rio 2005)

Eparrei Iansã! – “Que viva Shango! (Santa Bárbara bendita!)”

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CAPÍTULO II

Oralitura ou uma outra escrita

The Artist who performs in the medium of thespoken word is engaged in the same creativeprocess as the modern writer who createsthrough the written word. Thus, while engagedin the process of story telling as in the folktale,or legend, or in the evocation of imagery whenreciting poetry or creating rhythm and melodyin his lyrical self expression, the oral artistshares with the modern writer the sameelement of creativity and languagemanipulation…

- F.B. O. Akporobaro

2.0 Teorias da escrita

A história precolonial nigeriana conta um episódio que teria acontecido no século

XIX, na região sudeste da atual Nigéria, conhecida como Delta, região de onde hoje sai o

petróleo que enriquece a moderna nação nigeriara. Foi no auge da revolução industrial, e as

máquinas britânicas pecisavam de muito óleo de palma, aquele óleo que, no Brasil, se

chama de dendê, para funcionar. Tal o petróleo que sua terra fornece em abundância, os

Itxekiris eram guardiões das palmeiras de ouro naquela época. O rei do povo Itxekiri

chamava-se Jajá Opobo. Durante largo período recusou-se a ceder o direito de exploração

aos ingleses. Por isso acabou se tornando vítima de um golpe real. A história conta que Jajá

Opobo teria sido enganado pelo almirante inglês, mandado para representar os interesses da

Coroa britânica. Eis como o episódio foi contado:

Depois de uma longa resistência da parte do rei Jajá e o povo Itxetiri à empresa

colonial britânica naquela região, travando uma guerra sangrenta contra os ingleses, uma

guerra que os britânicos não conseguiam vencer tão facilmente, como tinham feito em

outras partes do continente africano, devido tanto à bravura e à coragem do povo Itxekiri,

como também ao aliado natural, que esse povo tinha no mangue e no pantanal da região

que oferecia proteção contra ataques surpresas da temida marinha de guerra britânica, numa

certa ocasião, o almirante inglês teria convidado o rei Jajá Opobô, para participar de um

encontro de reconciliação, no seu navio de guerra, ancorado na baía daquela região.

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No início, o rei itxekiri se teria recusado a aceitar esse convite, alegando que, como

soberano do seu povo, só poderia tratar de assunto de tamanha importância, com o soberano

inglês que ele considerava seu igual.

O almirante teria voltado mais tarde para repetir o convite, acrescentando que, desta

vez, o convite vinha da parte do seu soberano, ou seja, do próprio rei Eduardo da Inglaterra.

O rei Jajá teria procurado examinar essa afirmação do almirante, querendo saber se se podia

acreditar na palavra do almirante inglês. Para ganhar mais tempo, o rei Jajá teria procurado

saber do almirante se, caso ele concordasse em ir ao encontro no navio dos ingleses,

haveria algo que garantisse a sua segurança nas mãos dos ingleses, uma vez que ficaria sem

a proteção do seu exército e de seus súditos que ele seria obrigado a deixar atrás. Nisso, o

almirante teria tranqüilizado o rei dos Itxekiris jurando sobre a palavra de honra de seu rei,

que nada de mal lhe sucederia.

Por fim, o rei Jajá de Opobo teria consentido em ir a esse encontro, dizendo aos seus

ministros e seu povo, que procuravam dissuadi-lo, que ele acreditava na palavra de honra

do soberano inglês, uma vez que, segundo a tradição mais antiga do seu povo, um rei não

poderia descumprir a sua própria palavra.

Segundo a história, no minuto que o rei Jajá pôs os pés no navio britânico, o

almirante teria dado ordem para que fosse preso, julgado e deportado, acusando-o de

impedir a implantação e o bom andamento dos interesses comerciais de sua majestade o rei

da Inglaterra naquela região. Em vão o rei Jajá teria procurado evocar a palavra de honra

dada pelo seu homólogo britânico de que nada de mal iria lhe suceder. O rei Jajá de Opobo

acabou sendo deportado a uma das ilhas da região do Fernando Pó onde, mais tarde, morreu

de desgosto. Seu reino foi em seguida anexado ao Protetorado de Lagos, que, mais tarde,

formaria parte da colônia britânica, batizada de Nigéria em 1914, por inspiração da esposa

do primeiro governador geral britânico Lord Fredrick Luggard.

Ao contrário do que se pode supor, o rei Jajá de Opobo não foi ingênuo neste

episódio. Pelo contrário, ele foi, simplesmente, vítima do maior golpe e cara de pau do

almirante inglês. Evidentemente, mesmo sem saber ler nem escrever, o rei Jajá poderia ter

exigido um documento devidamente assinado pelo seu homólogo britânico antes de se

aventurar ao navio inglês. Era prática comum, mesmo naquela época, os reis locais

trabalharem com tradutores de corte, que os assessoravam nas relações com os estrangeiros,

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sobretudo, os britânicos que, naquela altura, estavam procurando aberturas comerciais e

acesso ao interior do país, em busca de matérias-primas para sua crescente indústria, que os

tinha obrigado a substituir a negócio em peças humanas, por produtos agriculturais nas

terras africanas.

A partir desse episódio, podemos inferir duas conclusões: uma, que o rei africano

acreditava que uma palavra dada, seja ela de honra ou de que outra natureza for, valia

qualquer documento escrito. Segundo, que o almirante britânico não dava nenhum peso,

nem tinha fé, na palavra falada. É muito provável que, mesmo se o rei africano tivesse

conseguido apelar para o seu homólogo britânico, denunciando a vergonhosa ‘manque de

parole’ do cavaleiro inglês, o seu apelo teria sido derrubado, por falta de ‘documento

comprobatório’, já que todo o trato fora feito oralmente. A maior moral desse episódio é

que, não é de hoje que a palavra falada sofre desprezo e vem sendo inferiorizada em relação

à escrita nos negócios do mundo globalizado, ou, melhor dizendo, do Ocidente.

Utilizando-me deste episódio do infortúnio do rei dos itxekiris como pano de fundo,

pretendo abordar neste capítulo o conceito da dicotomia oralidade-escrita. Trazendo

argumentos teóricos e empíricos, tratarei de analisar e desarticular o mito da superioridade

da escrita sobre a oralidade. O objetivo geral do capítulo é mostrar a existência de vários

textos e gêneros literários na cultura yorubana, que fogem da classificação exclusiva da

polaridade oralidade-escrita, dando origem à categoria que seria classificada como textos de

oralitura.

2.0.1 Da lettera à literatura: o culto à escrita

O latim legou ao mundo ocidental não somente o alfabeto romano, mas também o

seu conceito de literatura. Da raiz lettera, ou seja, o sinal básico da escrita, representado

pelas letras do alfabeto, nasceu a idéia de literatura. Daí a associação automática entre

literatura e o sinal ou ‘texto’ escrito (Akporobaro, 2004, p. x).

A maior parte do início do século XX foi gasta por grande número de agentes da

literatura colonial na tentativa de provar que os povos colonizados, além do fato de não

terem ‘nem fé, nem rei, nem lei’, ainda careciam de literatura, porque desconheciam o

segredo da escrita. Quando mais tarde surgiu o conceito de “literatura oral”, inúmeros eram

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os ‘especialistas’ que muita tinta gastaram para provar quão absurda era tal idéia, uma vez

que o próprio termo encontrava-se já comprometido pela sua contradição interna.

Voltando ao nosso conceito de partida, a partir do conceito de lettera, se

desenvolveu uma série de teorias a respeito das línguas humanas. A ênfase foi posta sobre a

classificação de línguas humanas como pertencendo a uma das duas categorias mutuamente

exclusivas: línguas orais ou línguas escritas. Daí surgiu termos como ‘povos da escrita’ e

‘povos ágrafos’. Este último conceito reportando-se a povos cuja língua não pertence ao

grupo elitizado de línguas escritas.

Ora, o papa da moderna lingüística ocidental, Ferdinand de Saussure, no seu Cours

de linguistique générale, nunca deixou ninguém na dúvida sobre a real relação existindo

entre a oralidade e a escrita. O antropólogo-cultural Luiz Gonzaga de Mello (2000:457)

resume o pensamento de Saussure a respeito da relação entre língua (palavra) falada e

escrita:

Língua e escrita são dois sistemas distintos de signos; a única razão de ser dosegundo é representar o primeiro; o objeto lingüístico não se define pelacombinação da palavra escrita e da palavra falada; esta última, por si só, constitui talobjeto. Mas a palavra escrita se mistura tão intimamente com a palavra falada, daqual é imagem, que acaba por usurpar-lhe o papel principal; terminamos por darmaior importância à representação do signo vocal do que ao próprio signo. É comose acreditássemos que, para conhecer uma pessoa, melhor fosse contemplar-lhe afotografia do que o rosto.(...) A língua tem, pois, uma tradição oral independente da escrita e bemdiversamente fixa; todavia, o prestígio da forma escrita nos impede de vê-lo

A colocação de Saussure, tal o argumento do filósofo maliense, Tierno Bakry,

mostra quão equivocado é o culto arraigado que o Ocidente estabelece em torno do texto

escrito. Pode-se ir mais longe ainda para afirmar que esse culto demonstra uma falta de fé

do Ocidente na palavra falada. O que pode ser uma desculpa para não ‘cumprir’ suas

próprias palavras, como aconteceu no episódio trágico do rei Jajá Opobô.

Porém, acredito que teria sido menos mal se fosse só isso, mas o fato é que, desde o

Iluminismo, o discurso ocidental tem demonstrado um apego mais do que passageiro à

escrita, usando-a para legitimar e universalizar a civilização, a cultura e a epistemologia

ocidentais em detrimento de outros pensamentos humanos, como os de povos não-

europeus, sobretudo africanos e asiáticos (Mignolo, 2003 [2000]p. 23-76; Wallerstein,

1990)

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Volta e meia, o Ocidente acusa os povos africanos de idolatria. Ora, é mais do que

óbvio que o culto à escrita nada mais era do que pura idolatria: idolatria da aparência e do

simulacro que, aliás, é uma prova da superficialidade que muitas vezes se revela na

epistemologia européia quando se trata de estabelecer e sustentar seu mito de superioridade

racial (Grosfoguel et alii, 2002, p.xi-ix).

Até momentos muito recentes, textos antropológicos e históricos ainda

incorporavam termos como primitivo, pre-literate (pré-letrado), ágrafo, pré-lógica, e

muitos outros termos ofensivos, na descrição da literatura de povos não-ocidentais e/ou

colonizados. Da mesma forma que se negava a existência do que se poderia chamar de

cultura ou civilização entre povos não-letrados, havia dificuldades em acreditar que tais

povos possuissem suficiente inteligência ou engenho criativo para fazer literatura.

No seu Introduction to African Oral Literature, Akporobaro (2004:40-1) resume

essa preocupação de antropólogos eurocêntricos, que formavam a base do pensamento de

seus representantes mais notáveis, como os dois antropólogos francófonos – Lucien Lévy-

Bruhl e Claude Lévi-Strauss – cujo foco de pesquisas eram os povos colonizados que

antropologia eurocêntrica rotulava de primitivos:

Are primitive people – that is non-literate people creative? Are they inventive? Dothey have literature? What sort of literature do they have? Is it comparable in anyway to the literature of the civilized world? That of the Whiteman? The issuesinvolved in these questions are extremely important in the specific respect that theybring into question the humanity, dignity and creative capacities of the so-calledprimitive man. Such questions seek to establish whether the primitive man is thesame human being endowed with the same creative capacities as the Whiteman orwhether the primitive man is a lower creature, a man of lower intelligence, rationalfaculty, and creative capacities scientifically and politically.... In asking this question of whether the primitive man has a literature there is alsothe implied question of what sort of mind the primitive man has. Is his intelligencethe same as the Whiteman’s? Has he the same rational as well as creative capacitiesas the Whiteman? Are his verbal utterances without meaning and pathetic qualities?

TraduçãoSerá que os povos primitivos – isto é, os povos não-letrados – são criativos?Seráque possuem a capacidade de fazer invenções científicas, será que são engenhosos?Será que possuem algum tipo de literatura? Que tipo de literatura seria? Será quepoderia ser comparada à literatura do mundo civilizado, ou seja, aquela produzidapelo homem branco? Essas perguntas são de extrema importância na medida em quedizem respeito à própria humanidade, dignidade, assim como à capacidade criativado chamado homem primitivo. Tais indagações procuram saber se na verdade o

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homem primitivo é mesmo um ser humano, dotado da mesma capacidade dohomem branco, ou se ele não passa de um ser inferior, de menor inteligência, menoraptidão racional e menor capacidade criativa científica e política do que o homembranco....Ao se perguntar se o homem primitivo possui ou não uma literatura, existe umavontade implícita de querer saber que tipo de mente ele possui. Será que suainteligência é igual à do branco? Será que tem capacidades racionais e criativasiguais às do homem branco? Ou, será verdade que as expressões verbais do homemprimitivo não passam de mero barulho sem significações e de qualidade patética?

Para reforçar o ponto, Akporobaro citou o texto do antropólogo francês, Lucien

Lévy-Bruhl, que teria afirmado, em The Primitive Mentality, que o homem primitivo era

um ser pré-lógico, ou seja, que o homem primitivo era incapaz de fazer prova de um

raciocínio lógico, e que era incapaz de ordenar racional e inteligentemente as idéias e

experiências da sua realidade cotidiana. Isso porque, de acordo com o antropólogo,

faltavam-lhe a coerência e qualidades intelectuais que caracterizavam o homem branco.

De modo geral, nos séculos XVIII e XIX, que correspondem ao momento em que o

europeu estava começando a sentir a necessidade de uma dominação mais direta sobre os

povos africanos, foram desenvolvidas uma infinidade de teorias que ‘atestam’ a

inferioridade do negro. Sem dúvida alguma, o imaginário europeu dos séculos do

Iluminismo foi profundamente marcado pelos relatos pouco simpáticos, feitos sobre a

África e seus povos, por vários exploradores, missionários, administradores coloniais,

comerciantes, viajantes, aventureiros europeus e outros caçadores do exótico em geral, que

invadiram o interior do continente africano, para abrir caminho para a implantação da

máquina da dominação colonial dos povos africanos pelas nações européias, conforme fora

determinado por unanimidade absoluta das potências européias, quando da partilha dos

territórios africanos, ocorrida na Conferência de Berlim em 1884 e 1885.

A impotência que sentiam tais exploradores diante da imensidão do continente, e a

perplexidade e o medo que lhes inspiravam a flora e fauna africanas, tornaram-se ainda

mais insuportáveis pela sua incapacidade de compreender e de se relacionar com os

habitantes da terra. Diante da perfeita harmonia que exibiam os africanos em relação à

natureza que os rodeava, o europeu, que via os seus companheiros de aventura morrerem de

malária a cada simples picada de mosquito, não quis aceitar a hipótese de que o africano

sobrevivia nesse meio, graças às suas culturas e civilizações que lhe permitiam uma melhor

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adaptação à natureza à sua volta, partindo naturalmente para a conclusão de que, tal a

natureza que o rodeava, o negro só poderia ser, ele também, um selvagem.

Daí foi que surgiu, a respeito dos negros, uma leitura cada vez mais

desqualificadora de suas culturas e civilizações – sobretudo suas artes, suas religiões, sua

músicas e suas línguas. A língua, principalmente, é vista como a maior marca da

inferioridade dos negros. Akporobaro (2004:42) cita as palavras de um explorador inglês a

este respeito, ao se referir a um povo pastoral da região da África Austral:

(…) The savage custom of going naked, has denuded the mind, and destroyed alldecorum in the language. Poetry there is none: the songs are mostly repetitions of afew hyperbolical expressions. There is no meter, no rhyme, nothing that interests orsoothes the feelings, or arrests the passions: no admiration of the heavenly bodies,no taste for the beauties of creation (…). Finally, the massiveness and bulkiness ofthe languages, – which bear the stamp of the people who use them, – has causesweakness in the intellect of the native

Tradução:

(…) O costume que esse povo tem, de andar nu, acabou desnudando também a suamente, destruindo todo decoro nas suas línguas. Eles desconhecem a arte poética:mesmo as suas músicas não passam da repetição de algumas expressõeshiperbólicas. Não sabem o que significa a metrificação ou a rima, a sua literaturanão tem nada que interesse ou acalme os sentimentos, nem mesmo, algo quealimente as paixões: eles não têm nenhuma admiração pelos corpos celestes, nemgosto pelas belezas da criação (...) Enfim, a grossura de suas línguas, que portam oselo do povo que as usam, acabou provocando a fraqueza intelectual desses nativos.

Esses exploradores nem sequer falavam as línguas desses povos. Como poderiam

falar de falta de decoro em suas línguas ou de rimas em suas poesias? Na verdade, trata-se

daquele mesmo jogo de esconde-esconde, que Stuart Hall flagrou, entre os apologistas da

modernidade perante o que chamam do estado primitivo. Em outras palavras, erigir uma

fossa tão grande entre a oralidade do homem ‘primitivo’ e a escrita do homem ‘moderno’

não passava de um delírio do homem europeu. Segundo afirma Stuart Hall (2003: 338):

“Hal Foster escreve: “o primitivo é um problema moderno, uma crise na identidade

cultural”, daí a construção modernista do primitivismo, o reconhecimento fetichista e a

rejeição da diferença do primitivo”.

Felizmente hoje, graças ao avanço tecnológico que viabiliza outras formas

duradouras de fazer subsistir a palavra, tais como o gravador, que permite registrar a

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performance do griot e do apàló (contadores tradicionais), o disco compacto que garante a

presenvação e transmissão mecânica da arte do cantor tradicional, do akéwì (poeta), do

contador de histórias, permitindo que vençam o desafio da limitação imposta pelo tempo e

pelo espaço, graças à Internet e à Televisão à cabo, que possibilitam a transmissão em

tempo real e virtual, das produções orais de qualquer canto do mundo, a oralidade já

recuperou o seu lugar de destaque nas expressões humanas.

Em outras palavras, hoje mais do que nunca, pode-se dizer que estamos cada vez

mais perto da total desconstrução da escrita, possibilitada, paradoxalmente pelas invenções

tecnológicas pós-modernas que acabei de citar. Ou seja, a TV à cabo, a Internet, o Disco

Compacto, dentre outros, que minimizam a dependência do homem pós-moderno à escrita,

pelo menos, à escrita na sua forma tradicional, idolatrada pelo Iluminismo e pelo

Modernismo. Na compreensão de Stuart Hall (2003: 342), hoje estamos sendo “deslocados

de um mundo logocêntrico – onde o domínio direto das modalidades culturais significou o

domínio da escrita...”.

2.0.2 A teorização da polaridade oralidade-escrita

Quando se refere à literatura dos povos não-europeus, o termo que mais se usa é a

literatura oral. Superado o choque inicial provocado pela contradição do termo, uma vez

que, como já foi visto em segmento anterior, literatura sempre pressupõe aquilo que se

escreve, e o que se escreve já deixa de ser oral, torna-se necessário analisar e avaliar os

valores literários dos produtos da imaginação dos povos não-ocidentais, para justificar seu

direito a serem chamados também de literatura.

• Como se define, pois, a literatura oral?

• Quais as suas características?

• Como se relaciona essa literatura com a expressão escrita?

Para começar, podemos nos servir da definição de Akporobaro (2004:32):

Oral literature or folk-literature refers to the heritage of imaginative verbalcreations, stories, folk-beliefs and songs of pre-literate societies which have beenevolved and passed down through the spoken Word from one generation to another.

(O termo literatura oral ou literatura folclórica refere-se à herança de criaçõesverbais e imaginativas, tais como estórias, crenças e cantigas populares, de povos

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pré-letrados, que foram desenvolvidas e transmitidas, de uma geração a outra,através da palavra oral)

O principal problema que vejo com esta definição é o fato de Akporobaro

aparentemente conceber a literatura oral como um fenômeno exclusivo de povos ‘pré-

letrados’, como se outros povos, inclusive os europeus, não possuíssem também essa

modalidade literária, como se as expressões trovadorescas da idade média européia nada

tivessem de oralidade.

Felizmente, o próprio Akporobaro, como se pressentindo o embaraço que causaria

essa sua definição decidiu expandir o conceito de forma mais abrangente, apresentando

uma série de definições, que, me parece, foram colhidas de várias propostas de diversos de

seus alunos ou colaboradores71. O autor propõe as seguintes modalidades como elementos

que compõem e caracterizam o corpus de literatura oral:

1. The corpus of artistically significant verbal expressions evolved by a groupof people and transmitted orally from one generation to another

2. the creative expressions (such as folktales, myths and proverbs and songs)composed in traditional or primitive (sic) societies and passed on from onegeneration to another by word of mouth.

3. The totality of verbal expressive forms and beliefs evolved in tribal (sic)societies for social entertainment and for the ordering of society and passedon orally from one generation to another

4. The imaginative compositions distinguished by their beauty of forms ofexpression and local ideas developed over the years by a people and handeddown from one generation to another by word of mouth.

5. Songs, stories, beliefs and legends which have artistic merit and culturalvalues and which form the cultural traditions of a people and are handeddown from one generation to another.

6. The unwritten traditions of a nation; their religious beliefs, stories, mythsand legends which express the artistic life and moral belief of the people (p.32-3).

Tradução:(1. O corpus de expressões verbais, artisticamente significativas, desenvolvido

por um povo e transmitido oralmente de geração em geração(2. Toda expressão criativa, tal como contos, mitos, provérbios e cantigas,

composta nas sociedades tradicionais ou primitivas (sic) e transmitidaoralmente de geração em geração

71 Sabe-se que o autor é profesor da Universidade de Lagos, na Nigéria.

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(3. O conjunto de gêneros e crenças de natureza verbal, desenvolvidos pelassociedades tribais (sic) para fins de entretenimento social e organização dasociedade destinados a serem transmitidos oralmente de geração em geração

(4. Quaisquer composições imaginativas que se distingam por sua beleza deforma, de expressão e idéias locais, desenvolvidas ao longo do tempo eoralmente transmitidas de geração em geração

(5. Cantigas, estórias, crenças e lendas que possuam qualidades e valoresartísticos e culturais representando a tradição cultural de um determinadopovo e que são oralmente transmitidas de geração em geração

(6. As tradições não escritas de uma nação, suas crenças religiosas, suasestórias, seus mitos e lendas que demonstram a vida artística e a visão moraldo seu povo).

Essa definição mais abrangente parece mais em sintonia com aquela reunida, das

propostas de diversos folcloristas brasileiros, e ampliada pelo antropólogo-cultural Luiz

Gonzaga de Mello (2000: 483):

Literatura oral é termo genérico para todas as manifestações culturais, de cunholiterário transmitidas por processos não gráficos, ensina Câmara Cascudo. Mas omestre reconhece que há formas escritas dessa literatura oral – os livrinhos vindosda Espanha e Portugal, que são convergências de motivos literários dos séculos XIIIe XIV, como Donzela Teodora, Imperatriz Porcina, etc. De maneira que estamosdiante de uma literatura oral, que também se apresenta de forma escrita, o queparece um paradoxo.Na verdade, tudo no começo se transmitia de forma oral, pela boca e ouvido dopovo. Nesse sentido é que, sem dúvida, queria ensinar Paul Sébillot, ao cunhar otermo, em 1881. Posteriormente, com a invenção da imprensa (século XV), certasmodalidades daquela chamada literatura oral reapareceram escritas. É a parte quehoje chamamos de literatura de cordel – os folhetos de feira – poesia narrativapopular imprensa, condensando o desafio de viola, suas variações, sextilhas sobretemas atuais, etc.Assim – continua o professor Veríssimo – modernamente, a literatura oral setransmite ainda oralmente, através dos contos, fábulas, lendas, mitos, cantigas deroda, danças coletivas, adivinhas, autos e folguedos populares. E se transmite porescrito, através da literatura de cordel, que engloba desde os versos da temáticamedieval (Carlos Magno e os doze Pares de França, etc), até os desafios, folhetosdiversos sobre o Padre Cícero, Lampião, assuntos da atualidade72

O próprio Luiz Gonzaga de Mello (483-4) equaciona literatura oral com ‘sabedoria

popular’, que serve para veicular ‘sábias intuições e muito conhecimento empírico’.

A partir dessas definições, fica claro que a relação entre literatura oral e escrita é

mais íntima do que as teorias ideológicas eurocêntricas pretendem admitir. De fato, na

72 MELLO, Luiz Gonzaga de, op. cit. p.483.

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cultura yorubana, como em várias outras culturas não-européias, admite-se que sempre

exitia algo da escrita em toda literatura oral, da mesma forma que existe sempre algo de

oral em toda literatura escrita.

Hoje, a dicotomia e a polaridade entre oralidade e escrita continuam a ser abordadas

por vários estudiosos de várias formas. Embora muitos entendam as duas modalidades da

palavra como complementares, parece-me que subsiste ainda no imaginário do Ocidente

muita incredulidade em relação à palavra falada, sobretudo no tocante a suas capacidades

sócio-literárias. O terceiro capítulo do livro Orality and Literacy de Walter J. Ong parece-

me um texto ideal para demonstrar alguns dos equívocos desse posicionamento ideológico.

O livro de Ong (2000 [1982]), se preocupa com a evolução da palavra. O autor

analisa a marcha da palavra desde o seu estágio puramente oral, passando pela sua

transformação na escrita, para desaguar na sua ‘tecnologização’, fato que, conforme relata

o autor, veio a se consumar no último quartel do século XX.

Ao longo do livro, Ong deixa o leitor com a impressão de que o estágio da oralidade

das línguas é semelhante à fase pré-adulta nos seres humanos. Em vários trechos do livro, o

autor sugere que a língua oral é inferior à expressão escrita, porque ela não fornece aos

usuários da língua a possibilidade de desenvolver suas capacidades analíticas. A oralidade

seria, pois, um índicio do estágio em que os usuários daquela língua são menos aptos para

lidar com categorias científicas. Descrevendo a oralidade em termos quase que eugenistas,

Ong (2000:3) deixa claro que a palavra falada carece de condição de precisão analítica,

portanto, o povo da oralidade seria incapaz de pensamento abstracto. Embora reconheça a

existência do que ele mesmo denomina de ‘outras escritas diferentes da escrita alfabética’

e de ‘outras culturas que não as ocidentais’, Ong não chegou a demostrar uma

compreensão da existência de categorias, que aqui tratarei como textos da oralitura, que

poderiam vir a ter o papel da escrita em sociedades tidas como puramente orais.

Na sua tentativa de explicitar o conceito de cultura oral, Walter J. Ong (2000: 31)

deixa claro que se pode falar na existência de mais de uma categoria de culturas orais. Ele

discrimina o que chama de ‘primary oral culture’ (cultura oral primária), ou seja, ‘cultura

sem nenhum conhecimento qualquer da escrita ou possibilidade da escrita’. Na sua

definição, essas seriam culturas ‘inteiramente intocadas pela escrita’. De acordo com a sua

compreensão, em culturas como essas, seria impossível a existência de uma expressão

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como ‘to look up something’, ou seja, ‘checar alguma coisa, alguma palavra ou termo’

(por exemplo, num dicionário). Prosseguindo esta linha de raciocínio, Ong afirma que,

numa cultura como essa, carecendo do suporte visual, fornecido pela estrutura das línguas

escritas, só seria possível ‘recordar’, ‘chamar para memória (recall)’ tais termos e

palavras, que, aliás, segundo ele, não seriam palavras como tais, senão acontecimentos e

eventos.

Para fundamentar essas afirmações a respeito de culturas orais primárias, Ong

(2000:32) recorre a uma análise da natureza do som. Ele postula que, pela sua própria

natureza, o som produzido na fala é algo perecível, algo que se esgota, que se apaga, no

exato momento do seu nascimento. Segundo afirma:

Sound exists only when it is going out of existence. It is not simply perishable butessentially evanescent, and it is sensed as evanescent. When I pronounce the word‘permanence’, by the time I get to the ‘-nence’, the ‘perma’ is gone, and has to begone…

(O som existe apenas no exato momento que está saindo da existência. Ele não éapenas perecível, mas essencialmente evanecente, e é percebido como tal. Quandofalo a palavra ‘permanência’, no momento que chego aos fonemas finais “-nência”,os fonemas que formam a primeira parte ‘perma-’ estariam já dissolvidos no ar, oudeveriam estar...)

Antes que sua atenção fosse chamada para o fato de que, muitas sociedades e

culturas orais não consideram a palavra como algo perecível, o próprio Ong (2000:32) se

retificou, afirmando que:

Malinowski has made the point that among ‘primitive’ (oral) peoples generallylanguage is a mode of action and not simply a countersign of thought… Neither is itsurprising that oral peoples commonly, and probably universally, consider words tohave great power. Sound cannot be sounding without the use of power. A hunter cansee a buffalo, smell, taste, and touch a buffalo when the buffalo is completely inert,even dead, but if he hears a buffalo, he had better watch out: something is going on.In this sense, all sound, and especially oral utterance, which comes from insideliving organisms, is ‘dynamic’… The fact that oral peoples commonly and in alllikelihood universally consider words to have magical potency is clearly tied in, atleast unconsciously, with their sense of the word as necessarily spoken, sounded,and hence power driven.

Tradução:(Malinowski foi quem chamou atenção para o fato de que, entre os povos‘primitivos’ (orais) (sic) o ato da fala é tido geralmente como uma forma de ação enão simplesmente como um externalização do pensamento... tampouco devemos nos

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surpreender sobremaneira, de que, os povos orais, geralmente, e, provavelmente, nomundo inteiro, acham que as palavras são dotadas de grandes poderes. (O raciocíniode tais povos seria que) é impossível que o som soe sem que haja um poder que oimpulsione. Um caçador pode ver um búfalo, pode sentir seu cheiro, pode saboreá-lo e mesmo, pode tocar o búfalo, quando esse estiver completamente semmovimento, talvez, morto, porém, se o caçador chega a ouvir o búfalo, é melhor queele tome cuidado, porque algo pode estar errado. Neste sentido, todo ruído,sobretudo, ruídos oralmente produzidos oriundos de seres vivos, são tidos comoalgo ‘dinâmico’... O fato que povos orais, geralmente e, provavelmente, no mundointeiro, acham que as palavras possuem poderes mágicos, está claramente ligado,pelo menos, inconscientemente, à sua percepção da palavra como algo que só podeser produzido oralmente e, conseqüentemente, impulsionado por uma energia).

Demorei-me bastante nestas argumentações de Ong, não porque concorde com o seu

raciocínio a respeito de culturas orais, mas com o intuito de poder melhor mostrar os

equívocos que detecto no mesmo. Primeiro, pela própria definição que ele deu ao que

chama de ‘primary oral cultures’, não acredito que exista hoje em dia uma cultura que

possa ser considerada como tal, isto é, ‘uma cultura sem qualquer conhecimento da escrita

ou mesmo da possibilidade da escrita’. Sobretudo, quando Ong afirma que tais culturas são

assim classificadas, porque desconhecem a ‘possibilidade da escrita’, acredito que

podemos estar novamente perante a velha síndrome de banalização de culturas alheias,

comum à teorização eurocêntrica.

Quando Ong afirma que a expressão ‘to look up something’ seria uma oração vazia

para as culturas orais, não posso resistir à tentação de citar-lhe o velho ditado yorubano que

assim afirma: àì gböfá là þ wòkè, ifá kan kò sí ní párá!73. O que vale para dizer que a

metáfora de ‘checar uma coisa, um termo ou um conceito’ não é alheia a uma cultura como

a yorubana, na qual não somente existe o sistema da pára-escrita dos Odù-Ifá, como

veremos mais adiante, mas também onde o ato de ‘olhar para cima’, num ato de

concentração, para trazer à memória uma palavra, um termo ou uma idéia, pode sugerir que

tais elementos, que estão sendo procurados na memória, podem ter sido organizados na

memória de modo quase mecânico, visto que a mesma raiz “kô s’órí”, sustenta o “kö s’órí”,

ambos significando, respectivamente, ‘escrever na cabeça (memória)’, e, ‘fixar ou gravar

na cabeça (memória)’, mediante processos específicos da memorização.

73 Tradução: é apenas para quem não entende (sabe ler ou interpretar) os signos do oráculo de Ifá queaparecem na bandeja oracular durante o processo de consulta, que olha para cima, como se para buscarinspiração ou ler as explicações do caso no teto.

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Portanto, quando um especialista de certos gêneros da literatura oral yorubana,

mesmo sem conhecer a escrita alfabética, resolve ‘look up’ (checar) uma palavra, o seu

procedimento não estaria muito distante daquele de qualquer sujeito alfabetizado que checa

a mesma palavra ou termo num livro ou num dicionário.

A maior evidência da banalização do pensamento de culturas orais no argumento de

Ong se apreende quando ele reduz a concepção comum a muitas culturas orais, de que as

palavras estão carregadas de força, a uma interpretação de simples energia de articulação,

necessária para a produção das palavras. Vale dizer aqui que, na cosmovisão yorubana, o

poder ou a força da palavra não está na energia física com que ela é articulada, mas na

energia mágica chamada Àÿç (Axé), que provocaria a realização do resultado desejado, isto

é, os efeitos físicos, psicológicos ou mágicos almejados, na pessoa a quem for dirigida tal

palavra. Mais adiante, ainda neste capítulo, teremos ocasião de falar desse axé carregada

por certas palavras yorubanas.

Na sua caracterização do pensamento oral, Ong recai no velho argumento que

Soyinka (1990 [1976]: 127) faz questão de denunciar, como uma fraqueza ideológica, que

ele descobriu no pensamento acrítico da Negritude. Ong (2000:34) fala da impossibilidade

de uma pessoa oriunda de uma cultura primariamente oral de formular um argumento

analítico. Daí sua pergunta retórica: ‘How, in fact, could a lengthy analytic solution ever be

assembled by a ‘primitive’ (oral) mind in the first place?’

Um raciocínio como este não pode deixar de trazer à tona o falso silogismo

denunciado por Soyinka na crítica à Negritude, quando o escritor nigeriano acusa os

pensadores desse Movimento, de terem cometido o grave erro de deixar intacto o silogismo

racista desenvolvido pelo pensamento eurocêntrico, a partir da famosa afirmação de

Descartes – ‘Je pense, donc j’existe’ (penso, logo existo), que Soyinka flagra e denuncia no

discurso tanto de Sartre, ao apoiar a Negritude, quanto do próprio príncipe da Negritude – o

poeta e ex-presidente senegalês Léopold Sédar Senghor, na sua própria defesa da

Negritude. Para Soyinka (1990 [1975], 128-9), o silogismo ofensivo que teria sido

elaborado por Sartre, a partir de Descartes, era desse teor: ‘O pensamento analítico é prova

de alto padrão de desenvolvimento humano: o europeu possui a capacidade de pensamento

analítico; o africano não a possui, logo, o europeu é altamente desenvolvido, mas o

africano não o é. De acordo com Soyinka, ao afirmar por sua vez o silogismo ‘L’émotion

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est nègre comme la raison est hélenique’, Senghor estaria sancionando tacitamente o

pensamento maniqueísta eurocêntrico que deu origem ao tipo de silogismo reproduzido

anteriormente. Soyinka acusa Senghor de que, em vez de contestar tal preconceito, que

compartimentaliza a capacidade intelectual humana, colocando o homem negro em posição

inferior, na hierarquia da racionalidade, ele se teria limitado, apenas, a propor um adendum,

no qual procura comprovar o indício do desenvolvimento do povo negro, apenas a partir de

sua capacidade de ‘sentir’, como se esse desvio ideológico pudesse diminuir o cargo

preconceituoso do silogismo eurocêntrico original, que procura excluir o não-europeu,

sobretudo, o africano, da ‘academia’, uma vez que ele não ‘pensa’, apenas ‘sente’.

Ora, parece que é justamente esse tipo de raciocínio que Ong (2000: 39) está

reproduzindo, quando considera que as pessoas oriundas de culturas orais só seriam

capazes de uma forma de pensamento que ele chama de ‘agregativo’ e ‘não analítico’, já

que, como afirma: ‘Without a writing system, breaking up thought – that is, analysis – is a

high-risk procedure. As Lévi-Strauss has well put it in a summary statement ‘the savage

[i.e. oral] mind totalizes’. Ou seja, que indivíduos oriundos de uma cultura oral seriam

incapazes de dividir seus pensamentos em segmentos, isto é, ‘fazer um raciocínio analítico’

desde que, conforme afirma, Lévi-Strauss não se teria enganado ao deduzir que ‘o homem

selvagem (isto é, de expressão oral) só consegue raciocinar através da agregação de

fragmentos do seu pensamento’.

Ainda segundo Ong, as fórmulas, ditas aides-mémoire, que ele denomina como

recursos mnemônicos em culturas orais, tais como provérbios e expressões idiomáticas, não

seriam nada mais que simples fórmulas redundantes.

A mim me parece duvidoso o nível de familiaridade que Ong tem com as culturas

orais que procura descrever com tanta autoridade, pelo menos, no que tange à cultura

yorubana. Seria difícil apreender onde ficaria essa tal redundância quando se compara, por

exemplo, um ditado popular do tipo “Yorùbá kìi gùn tó éèbó”, com a sua tradução em

língua ‘não oral’, que seria da seguinte ordem: “Custa menos palavras explicar um conceito

em yorubá do que seria necessário para explicitá-lo em inglês”. Este mesmo equívoco é

repetido quando Ong (2000:40) afirma que:

In some kinds of acoustic surrogates for oral verbal communication, redundancyreaches fantastic dimensions, as in African drum talk. It takes on the average

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around eight times as many words to say something on the drums as in the spokenlanguage.

Tradução:

Em algumas práticas de usar substitutos acústicos no lugar de comunicação verbal,observa-se que a redundância atinge um grau fantástico, como se verifica no sistemade usar o tambor falante, para imitar a fala humana em certas sociedades africanas.(Geralmente), leva, em média, algo como oito vezes mais palavras, para dizer com otambor aquilo que se diz em linguagem verbal.

Não vejo porque ou como assim poderia ser, se a experiência com o uso de notas

musicais, em qualquer língua humana, já comprova como é fácil reduzir qualquer texto oral

a uma equivalência de tons de igual duração.

De qualquer modo, se é verdade que, como Ong procura nos fazer crer, o que o

tocador do tambor falante diz, que, em èdè Àyàn, ou seja, a linguagem do tambor em

yorubá, não corresponde em tempo real ao ritmo da pronúncia normal – não vejo como

seria possível, em primeiro lugar, afirmar que o tambor está falando. Pelo menos em

yorubá, ninguém aceitaria tal ‘fala’ como autêntica èdè Àyàn. Portanto, no caso yorubano,

não tem cabimento algum, afirmar que ‘leva oito vezes mais palavras para dizer a mesma

coisa com a linguagem do tambor’, como Ong quer nos convencer no trecho acima citado.

Estudiosos da cultura yorubana como A.B. Ellis (1894), Samuel Johnson (1937),

Babalola (1989) e tantos outros, já deixaram claro a exactidão da correspondência entre o

que se diz pela linguagem normal em yoruba e o que o tocador de tambor diz com seu

tamtam.

Só para citar o primeiro exemplo que me veio à memória: Ellis (1894) documentou

sobre o reinado do Aláàfin Àjàgbó (c. 1780), um dos reis da cidade ancestral de Õyö, cuja

biografia foi codificada no seguinte ritmo da orquestra de Ògídìgbo: [Gbo | Ajàgbo | - | gbo

| oba gbo | - | ki emi ki osi | gbo.]. Além do mais, basta escutar qualquer disco de qualquer

músico contemporâneo yorubano, como King Sunny Ade, para ver como a linguagem dos

tambores da orquestra yorubana, como dùndún e bàtá, são usadas para reproduzir a fala

humana.

Na verdade, o fato de a língua yorubana pertencer à família de línguas tonais afasta

qualquer necessidade de ter que usar ‘oito vezes mais palavras’ para dizer uma frase na

linguagem dos tambores. Basta o tocador aplicar a regra dos três tons existentes na língua

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yorubana e adaptá-los à fala de seu tambor. Ou seja, quando, durante o enterro de uma

pessoa importante, o tocador de dùndún quer consolar a todos que lamentam a perda, para

lembrar a todos que a morte é uma realidade para todos os mortais, o tocador reproduz,

simplesmente, com seu tambor, a seqüência de toques /d:m:r:m:d:m:m:m/, cada toque

representando uma sílaba da frase “kò s’ëni tí kò níí kú!”74. Contrário à afirmação de Ong,

o tocador de tambor yorubano não precisa de rodeios para “falar” com o seu tambor. Cada

tom que emite com o tambor corresponde a uma sílaba em língua yorubá falada. Quem

quiser se dar o trabalho de comparar a fala do tambor, com o ditado acima citado descobrirá

que ambos possuem o mesmo número de sílabas: kò/s’ë/ni/tí/kò/ ní/í/kú/ =

/d:m:r:m:d:m:m:m/75. Portanto, está mais do que provado que, neste respeito, a teorização

de Ong falha lamentavelmente.

Em contrapartida das culturas orais, Ong (2000:80) classifica as culturas escritas em

três categorias básicas:

(i). culturas quirográficas (chirographic cultures) nas quais se usam signos

lingüísticos escritos (unicamente) à mão;

(ii). culturas tipográficas (typographic cultures) nas quais as palavras são escritas,

ou melhor, impressas, por meio de tipos, ou seja, letras;

(iii). culturas eletrônicas, nas quais imperam as palavras em formas já

‘eletronizadas’.

Na análise de Ong, essas culturas já podem ser consideradas, de formas e graus

diferentes, como culturas ‘tecnologizadas’ pois, como afirma: ‘writing and print and the

computer are all ways of tecnologizing the word’.

Portanto, aparentemente, qualquer sistema que exteriorize a palavra constitui uma

forma de escrita. Porém como Ong (2000:84) toma o cuidado de deixar claro, embora seja

possível considerar como ‘escrita’ ‘qualquer marca (sinal) semiótico, ou seja, qualquer

sinal visível ou sensível feito por uma pessoa e ao qual ele associa um sentido’, isso seria,

no fundo, uma banalização da escrita, já que não haveria nenhum sistema que torne tal sinal

compreensível a outros indivíduos, a não ser o próprio inventor do sinal.

74 Tradução: A morte é uma realidade à qual ninguém escapa.75 Com efeito, os três tons em iorubá correspondem às três primeiras notas musicais – do::re::mi – sendo que“dò” representa o tom grave (`); “re” o tom médio (-) e “mí” o tom agudo (´).

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Pelo contrário, o que marca a existência da ‘escrita’ é a existência de um código

partilhado por várias pessoas ou grupos de pessoas. Nas palavras de Ong (2000: 84):

The critical and unique breakthrough into new worlds of knowledge was achievedwithin human consciousness not when simply semiotic marking was devised butwhen a coded system of visible marks was invented whereby a writer coulddetermine the exact words that the reader would generate from the text. This is whatwe mean today by writing in its sharply focused sense.

(O ponto crítico que representa o marco singular da descoberta de novos horizontesdo saber foi atingido pela consciência humana, não quando foram inventados osrudimentares sinais semióticos, senão, no momento em que foi inventado umsistema codificado de sinais visíveis cujo uso permite que alguém que escrevedefina as palavras exatas que serão usadas pelo eventual leitor no momento dedescodificar o texto. Eis o que significa hoje a palavra escrever no seu sentido maisfocalizado).

2.2.1 A expressão literária yorubana: entre a ‘escritura’ e a fala

A partir da longa abordagem que fiz das idéias de Walter Ong (2000) sobre o que

são, e como funcionam, as culturas orais e escritas, me é possível analisar a cultura

yorubana, à luz das próprias definições de Ong, para poder classificá-la devidamente.

Como já cheguei a apontar, não acredito que seja correto considerar a cultura yorubana

como uma cultura de oralidade primária, pelos menos no seu estágio atual, já que além do

fato de que existe desde meados do século XIX o alfabeto yorubá, desenvolvido pelo ex-

escravo e missionário, Samuel Ajayi Crowther, a partir de sua experimentação com os

textos bíblicos, usados na sua pregação, por volta de 184476, existe, desde sempre, na

prática oracular dos yorubanos, a arte de inscrever os textos de Ifá sobre uma bandeja,

textos esses que o babaláwo (sacerdote de Ifá) precisa decodificar para poder descobrir a

preocupação do seu consulente.

Isso faz com que seja possível descrever a cultura yorubana como possuindo uma

mistura das diversas modalidades identificadas por Ong. Ao mesmo tempo que pode ser

classificada como uma cultura ‘verbomotora’, no sentido de que, ainda subsiste no

cotidiano de seus usuários, uma presença preponderante de práticas orais, a cultura

yorubana ainda pode ser considerada também como uma cultura quirográfica, na medida

em que os signos de Odu-Ifá continuam sendo ‘impressos’ à mão, na bandeja oracular, até

76 Cf. BABALOLA, Adeboye et alii, 1988. vol II., p. 5.

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os dias atuais. Daí o uso do verbo “tç Ifá”, que significa, escrever os versos de Ifá, usando a

técnica de ‘impressão’ com o uso do dedo.

Por outro lado, a cultura yorubana é hoje uma cultura tipográfica, visto que, com a

existência do alfabeto, e o uso da língua em vários níveis do ensino na Nigéria

contemporânea, existe uma intensa prática de transmissão e aquisição de saberes e

conhecimentos através da língua yorubana. Com efeito, desde os finais do século XIX,

publicam-se livros nos diversos ramos do saber humano em idioma yorubano.

O alfabeto yorubano é derivado do alfabeto romano, porém, inclui letras que não

estão presente em qualquer uma das línguas neolatinas, tais como: “gb”, “ç”, “ô”, “ÿ”. Em

contrapartida, o alfabeto yorubano não tem algumas letras como “c”, “q”, presentes no

alfabeto europeu. Porém, em yorubá os sons dessas letras são produzidos por outras letras,

como “s” e “k”. O único caso de ausência total de um fonema no alfabeto yorubano é o

caso das letras “v” e “z”, únicas letras cuja articulação é totalmente ausente na língua

yorubana.

Entretanto, é na análise dos diversos gêneros da literatura oral yorubana que se

evidenciam as maiores provas da capacidade da cultura yorubana para processar o

pensamento analítico de seus usuários. Faz-se necessária uma abordagem detalhada de

alguns desses gêneros literários para se ter uma idéia clara da qualidade analítica da cultura

yorubana.

Para podermos situar melhor e justificar a tese da oralitura yorubana, é preciso

fazer uma análise de diversos gêneros literários do povo yorubano. Um possível ponto de

partida é o ensaio de Ôlatunde Ôlatunji (1982), intitulado “Classification of Yoruba Oral

Poetry” (A classificação da poesia oral yorubana), publicado em Yorubá language and

literature, que foi editado por Adebisi Afolayan. O ensaísta começa reconhecendo a

validade da classificação feita, respectivamente, por Ulli Beier (1959) e S. A. Babalola

(1966), a respeito dos diversos gêneros da literatura oral yorubana. De acordo com Olatunji

(1982: 57):

Two major attempts have been made at classifying Yoruba oral poetry. Ulli Beierrecognizes oríkì, çÿç Ifá, òwe, rara, ìjálá, ewì, çkún ìyàwó and àlö àpamõ as genresof Yoruba poetry. His classificatory criterion appears in his work of 1959: ‘Yorubapoetry is classified not so much by the contents or the structure but by the group ofpeople to which the reciter belongs and the technique of recitation he employs’.Babalola, using the same criterion for classification, adds as genres of Yoruba

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poetry ôfõ or ògèdè, êsà and ìyêrê Ifá. The list of Yoruba poetic genres classifiedaccording to the way they are chanted would therefore, according to Beier andBabalola, consist of oríkì, çÿç Ifá, òwe, rara, ìjàlá, ewì, çkún ìyàwó, àlö àpamõ, ôfõor ògèdè, êsà and ìyêrê Ifá.

Tradução:

(Até agora), duas tentativas principais têm sido feitas para classificar a poesia oralyorubana. Ulli Beier classifica como pertencendo ao corpus da literatura oralyorubana os seguintes gêneros oríkì, çÿç Ifá, òwe, rara, ìjálá, ewì, çkún ìyàwó e àlöàpamõ. Os critérios por ele usados são apresentados em uma obra de 1959 na qualafirma: ‘A poesia yorubana se classifica não tanto pelo seu conteúdo senão pelogrupo de indivíduos ao qual pertence o autor de tal poema assim como a técnica derecitação que ele usa’. Babalola, usando esses mesmos critérios de classificaçãoacrescentou aos gêneros já identificados por Beier quatro novos gêneros: ôfõ ouògèdè, êsà e ìyêrê Ifá. Portanto a lista de gêneros da poesia yorubana, classificadosconforme seu modo de recitção como foi dada por Beier e Babalola incluem: oríkì,çÿç Ifá, òwe, rara, ìjàlá, ewì, çkún ìyàwó, àlö àpamõ, ôfõ ou ògèdè, êsà e ìyêrê Ifá.

Porém, embora concorde em parte com essa identificação dos gêneros classificados,

Olatunji discorda de Beier e Babalola, sobre a questão do modo de execução identificado

para os respectivos gêneros. Entretanto, não vou entrar nessa polêmica agora, porque tal

discussão encontra-se fora do âmbito da presente tese.

O que interessa ao nosso propósito atual é chamar a atenção para o fato de que a

descrição pormenorizada dos principais gêneros da literatura oral em yorubá, e suas

funções e propriedades, conforme são apresentados pelos três estudiosos, torna-se muito

útil para refutar certos equívocos que já se tornaram estereótipos quando se fala de

‘literatura’ africana na acepção ocidental do termo.

Em primeiro lugar, a listagem fornecida tanto por Olatunji quanto pelos seus

predecessores, que ele próprio citou, mostra a riqueza do povo yorubano em gêneros

literários, sobretudo no que diz respeito à poesia, que é o gênero mais erudito, reconhecido

pela própria tradição canônica européia. Antes da descoberta, por vários estudiosos, dessa

rica variedade poética, praticada pelos yorubanos da África Ocidental, o estereótipo

europeu mais comum era considerar todos os povos africanos como incultos, portanto,

incapazes de fazer aquilo que a epistemologia eurocêntrica classifica como ‘alta literatura’.

Com os contatos dos europeus com a Yorubalândia, houve, porém, uma

reconhecível mudança de atitude a respeito da literatura yorubana, primeiro, entre alguns

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dos próprios europeus, que chegaram a conhecer com bastante intimadade o povo

yorubano, durante a época pré-colonial e durante a colonização (Wood. J.P. (1879); Ellis A.

B. (1894); Baudin, N. (1885); De Gaye e Beecroft (1914), assim como o já citado

pesquisador alemão Ulli Beier (1959). De fato, esse último chegou a estudar tão

profundamente a literatura yorubana, que ele mesmo acabou escrevendo romances e peças,

baseados na literatura oral yorubana, como no caso da adaptação de um dos mitos de Oxalá,

que ele escreveu sob o pseudônimo de Õbötúnde Ìjímèrè, com o título The Imprisonment of

Ôbàtálá (a encarceração de Oxalá) em 1972, texto este que trata da mesma temática

abordada por Zora Seljan, escritora brasileira e Embaixadriz do Brasil na Nigéria nos anos

setenta, que também se interessou pela cultura yorubana acabando por publicar uma peça,

intitulada Oxalá, também em 1972. O premiado escritor nigeriano Wole Soyinka insinua a

possibilidade de que um desses dois escritores, ambos apaixonadíssimos pela cultura

yorubana, teria escrito sua peça como uma maneira de contestar a interpretação, feita pelo

outro, a respeito das paixões dessa arquidivindade yorubana que é Ôbàtálá ou Oxalá, como

se conhece no Brasil77. Teria sido bastante instrutivo e interessante analisar aqui essa

perspectiva, sobretudo, por seu valor etno-religioso e sócio-antropológico, se tal

preocupação não fosse situada fora das propostas do presente estudo.

Em compensação, voltando à análise dos gêneros da literatura oral yorubana, um

olhar mais atento, sobre as descrições acima-fornecidas, por Olatunji, para os diversos

gêneros da literatura yorubana, nos revelaria a verdadeira natureza da poética yorubana.

Isso, sem dúvida alguma, se torna necessário para a compreensão da tese da oralitura

yorubana. Por exemplo, como vimos no trabalho que acabamos de resenhar. Enquanto a

preocupação de Olatunji, Beier e Babalola, era classificar os gêneros literários segundo os

três critérios: ‘modo de execução’, ‘grupo social ao qual pertence o executor do gênero

literário’ e as ‘características da estrutura interna de cada gênero literário’, o meu propósito

será outro. Pretendo avaliar, a partir das definições de Olatunji, elementos da própria

natureza de cada gênero para descobrir os fundamentos epistemológicos que me permitem

falar da possibilidade de suportes, característicos da escrita, dentro dessas artes yorubanas,

oralmente executadas. Pretendo investir no que chamo da ‘textualidade’ de cada gênero da

literatura oral yorubana.

77 Cf. SOYINKA, Wole, 1976. Vide principalmente “Morality and aesthetics in the ritual archetype”. P. 7-25.

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Proponho uma classificação que leve em conta o grau de oralidade e de flexibilidade

do repertorio que caracteriza o primeiro grupo anteriormente citado, contra a rigidez e

impossibilidade de mudar o cerne do repertório, que se verifica no outro grupo. Portanto,

em vez de um bloco monolítico de gêneros da literatura oral, a minha proposta terá dois

grupos distintos: o primeiro grupo de gêneros literário yorubanos será composto de gêneros

como Ìjálá, rárà, ewì, êÿà, çkún ìyáwó, òwe, àlö àpamõ e ìyêrê Ifá. Esses gêneros são

aqueles que considero de orientação puramente estética. Quanto ao segundo grupo, será

composto de oríkì, ôfõ (ògèdè), Odù e çÿç Ifá e, àlö àpagbé, gêneros esses que considero de

alta carga histórica e epistemológica, necessitando de vários suportes mnemônicos e

gráficos.

Convém dizer que o último gênero nesta segunda categoria não foi incluído por

nenhum dos estudiosos anteriormente citados. Isso não foi devido a algum erro de omissão

da parte dos três estudiosos, mas porque àlö àpagbé é prosa e não poesia.

Para fazer a minha abordagem, as perguntas de partida são:

• Como se constrói o ‘texto’ de gêneros literários do grupo A, isto é, Ìjálá, rara,

ewì, êsà, çkún ìyáwó, êfê, ègè, àdàmõ e òwe?

• Como se constrói o ‘texto’ de gêneros literários do grupo B: ôfõ (ògèdè, àyájö),

Odù e/ou çÿç Ifá, oríkì e àsàyàn õrõ?

• Qual é o papel da memória ou quais os recursos mnemônicos necessários para a

execução de cada grupo?

2.3.1 Oralitura em textos poéticos I: Ìjàlá

Como deixou clara a definição esboçada por Olatunji (2000:57), o gênero poético

conhecido como Ìjálá se refere à arte performativa, usada, exclusivamente, por caçadores,

durante momentos específicos, como parte de certos ritos que fazem em homenagem a

Ògún, orixá patrono de caçadores e de todas as pessoas que trabalham, de uma forma ou de

outra, com o ferro. Os que praticam essa arte se chamam geralmente de Áláré-Ògún ou

oníjàlá, ou seja, os que trovadores de Ògún.

Ìjálá se pratica como entretenimento durante qualquer festividade ou comemoração

social, quando os protagonistas de tais festas pertencem à profissão de caçadores. Isso

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significa que, quando tem uma festa de casamento, rito de batizado, festa do investimento

de um jovem caçador com as ferramentas da profissão, ou quando um dos membros da

profissão é investido de um oyè, isto é, quando ele é nomeado a um cargo de importância

na comunidade profissional ou mesmo na sociedade em geral, o modo de festejo vai ser

ìjálá. De modo geral, embora existam alguns casos raros de mulheres caçadores, os

praticantes da arte de ìjálá são homens, já que só caçadores têm direito a tal festa.

A festa de ìjálá pode acontecer a qualquer momento do dia, já que a performance de

ìjálá é apenas usada para animar qualquer outra cerimônia. Quando há uma dessas

cerimônias, os caçadores se reúnem na casa do homenageado ou em qualquer outro local

onde a festa vai acontecer. Eles trazem seus tambores de acompanhamento. A orquestra de

ìjálá é única e específica, chama-se àgêrê e é composta de um conjunto de três tambores

principais com tonalidades diferentes. Além dos tambores, os cantores de ìjálá ainda

acompanham seus cantos, com idiofones improvisados, reproduzindo ritmos adequados,

com a parte metálica de suas enxadas e facãos, que tocam com pedaços de metal.

Ìjálá não é um canto qualquer, a performance sempre toma a forma de um amigável

desafio repentista. Cada membro da sociedade dos caçadores participando da festa tem seu

momento de destaque, quando ele toma o centro da arena para demonstrar seu talento na

arte poética de Ògún. Ele canta em versos hermenêuticos, e o sentido de muitas de suas

expressões podem se tornar difíceis de entender para quem não fizer parte do grupo de

caçadores. Tal poesia, porém, sempre obedece a uma certa ordem. Cada oníjàlá, ou seja,

poeta de ìjálá, começa por fazer a ijúbà, que é uma fórmula de abertura, na qual ele se

apresenta, dando detalhes de seus progenitores, sua linhagem e declamando um pouco do

oríkì de sua linhagem. Ainda na ìjúbá, o oníjàlá pede a bênção ao seu orixá e aos que ele

considera seus superiores, tanto no exercício da profissão, como no domínio do saber, que

rege a sobrevivência dos caçadores nas expedições de caça.

Em seguida, o oníjàlá pode introduzir o tema daquela festa, homenageando o

membro em cuja honra a festa está sendo realizada. De acordo com Babalola et alii (1989:

19), o universo poético explorado pelo poeta de ìjálá sempre engloba toda a cosmogonia

yorubana, explicitando a visão-do-mundo e as crenças yorubanas, através de referências ao

ambiente da caça e da agricultura, dois domínios nos quais normalmente atuam os

caçadores. Tudo isso será feito em linguagem poética muito colorida, e de vez em quando,

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o oníjálá convida a platéia a participar da sua arte, mediante uma cantiga improvisada que

ele introduz e que todos cantam com ele até ele decidir continuar com a sua poesia

performática. Com a difusão das técnicas de gravação, existem hoje alguns especialistas em

ìjálá, que se tornaram cantores profissionais do gênero, produzindo discos que hoje podem

ser ouvidos por qualquer pessoa que deseje ter uma performance de ìjálá em sua casa ou

em sua festa, sem precisar ser membro da sociedade de caçadores. Um dos grandes artistas

de Ìjálá na contemporaneidade é Àlàbí Ògúndépò, originário da cidade yorubana de Shakí,

no sudoeste da Nigéria.

Passo a reproduzir, em seguida, uma performance de Ìjálá, transcrita por Babalola et

alii (1989:19) para mostrar os elementos constitutivos do gênero. Dois oníjàlá participaram

da gravação e, embora os autores do livro não forneceram detalhes da identidade dos

artistas, a estrutura do próprioìjálá preenche essa lacuna. Outro detalhe que ainda precisa

ser colocado é que a gravação foi feita durante a festa de ìyô-ara, ou seja, quando os

caçadores estavam comemorando a recuperação de um de seus membros, depois de uma

longa enfermidade:

Õkôrin kinní: Primeiro caçador-poeta:

Èmi Ôdëníyì Apõlçbíeji. Eu Odeniyi Apolebieji78

Ôdëníyì a-pà-mõ-sàsè. Eu Odeniyi apamosase79

Ajífowómõl`öjà Eu Ajofowimoloja80

Baba Adéyçmô n`ilé Ôdçòmu. O pai de Adeyemo em Odeomu

Pópóýdó lómi tëlê k`ójò ó tôo dé. Popondo-tinha-água-antes-da-chuva

Elétìkó töba tëlê k`ó tôo wáá jôba. Eletiko já possuia atributos de rei antes

de ser coroado.

Adéyçmô Ètìkó Baálê Ôdçòmu. Foi assim com Adeyemi,

rei de Odeomu81

78 O nome próprio do poeta aqui é Odeniyi. O complemento “Apõlçbíebi” não passa de um apelido, com oqual os colegas costumam tratá-lo. Trata-se, pois, de um oríkì ìnagijç, cujo sentido indica o comportamentoda pessoa. Literalmente, Apõlçbíebi significa, aquele-que-castiga-o-homem-pregiçoso-pior-do-que-a-fome.Ou seja, ele se vê como alguém que policia as pessoas que não querem trabalhar porque tais indivíduos sãoconsiderado parasitários na sociedade yorubana.79 Apàmõsàsè é ainda outro oríkí. Significa: o-caçador-que-faz-uma-grande-festa-com-recursos-insignificantes.80 Ainda outro oríki. Tradução: aquele-que-faz-um-show-da-sua-riqueza-em-público.

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Olúkòyí ni wön Somos da linhagem de Onikoyi,

ômô-ôn àádörin êÿö. Filhos de grandes guerreiros

Êÿöõ mi ômô a-pa-lölölö-wogun. Somos êÿös, hábeis guerreiros

K`ára ó le, àjínde òó jë. Te saúdo meu amigo,

Olórí aÿô ò níí fàya. Que tua melhor roupa não se rasgue

Ômô l`olórí aÿô çni. Os filhos da gente são nossa melhor roupa

Õdúndún ò níí jë `bi ó lee Que Odúndún82 não deixe que

dún þléè rç. nenhum mal aconteça em tua casa83

Têtê ò ní í jë `bi Que tètè não deixe o mal

ó tçlê l`öõdêç rç. pousar em tua casa.

Dómìnrìn l`orúkô t`ílê ë jë. A terra chama-se Dómìnrìn,

Amúnimì l`ó bílê. e a mãe da terra é Amúnimì84

Ôba Olódùmarè ò ní í jë Que Deus não deixe que

k`ámúnimì Ó yanjúù rç Amúnimì engula você e teus filhos

tômôtômô bí ènì àkàrà. Como se fossem bolinhos de acarajé)85

Orin lílé: Ômô kóóÿà l`ômô o. (cantiga): Melhor ter filhos vigorosos

Ômô kóóÿà l`ômô o. Filhos que não morreriam jovens

K`á bimo kópõ kö º Porque não tem graça gerar muitos

filhos se todos acabam morrendo na

juventude.

Ègbè: Ômô kóóÿà l`ômô o. (refrão) Melhor tê-los vivos!86

81 Odeòmu é um vila perto de Ile-Ife.82 Odundun é nome de uma planta medicinal. Uma característica deste tipo de literatura é fazer um jogo desons e semânticas com os nomes de plantas e animais. Aqui o som principal de Odundun é “dún” (ressoar).83 Essa é a linguagem própria dos caçadores, o oníjalá vai associando as plantas e animais da floresta a cadaoração que formula para lhe imprimir a força do axé da coisa/entidade citada. Assim, usa aqui o verbo ‘dún’ressoar ou (metaforicamente), acontecer. Esse som rima foneticamente com a planta ‘òdúndún’. A mesmaassociação é feita entre o legume “têtê” e o verbo ‘tç ilê”, ou seja, pousar, na próxima estrofe.84 Amunimì é nome que se dá a um tipo de armadilha. Significa literalmente aquilo-que-apanha-para-engolir.85 Esse jogo de palavras é uma forma de oração, rezando para que nem o colega, nem seus entes queridosmorram prematuramente.86A cantiga-refrão que o oníjàlá introduz aqui faz referência ao medo da mortalidade precoce entre osyorubanos. Ou seja, quando alguém morre antes de qualquer um dos pais, é considerada uma maldição,porque os pais teriam perdido alguém poderia ter perpetuado seu nome na vida.

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Além deste tipo de ìjálá que é marcado por expressões de alegria e muito regozijo,

existe ainda um outro tipo de ìjálá que se reserva unicamente para os ritos fúnebres de um

membro caçador. A esse se dá o nome de ìrèmõjë eré ìÿípà ôdç. As características desse

último modelo são idênticas às de ìjálá comum, salvo pelo detalhe de que o ìjálá de ìrèmõjë

envolve a invocação do membro falecido, para lhe entregar ‘as chaves’ que lhe dariam

acesso à comunidade dos ancestrais, libertando, desta forma, sua alma da comunidade dos

vivos. Isso para que ele deixasse de interferir nas expedições de caça de seus colegas vivos,

o que poderia em muito prejudicar esses últimos, física e espiritualmente.

Dentro do nosso propósito original de analisar o grau de oralidade e oralitura que

possui o gênero de íjálá, é possível afirmar o seguinte: visto que se trata de apenas uma

modalidade festiva e profana, o gênero de ìjálá não precisa de nenhuma ordem interna

preestabelecida, basta que o oníjálá – o poeta, respeite as regras de concordância rítmica, e

siga o bom senso, para garantir uma rima aceitável para sua performance. Pode-se dizer,

portanto que ìjálá é um gênero oral, por excelência, não tendo nada de oralitura.

O que se diz a respeito do gênero poético de ìjálá é também válido para os demais

gêneros do grupo A, acima identificado. Quer dizer que, esses gêneros funcionam

puramente ao nível da oralidade, os artista-poetas que os reproduzem não sendo obrigados a

seguir rigorosamente nenhuma ordem preestabelecida. Isso é justamente porque se trata de

formas poéticas espontâneas, usadas nas diversas festas e comemorações profanas dos

vários grupos profissionais e religiosos yorubanos. Assim, da mesma forma que os

caçadores fazem um show de ìjálá, quando um deles comemora algum festejo, os elégun

(os egun) fazem êsà ou ìwí e os babaláwo cantam ìyêrê ifá.

Por outro lado, alguns desses gêneros são regionalizados entre os diversos

subgrupos yorubanos. Por exemplo, enquanto predomina o gênero de òlélé entre os ìjêÿà-

yorubanos, canta-se àdàmõ entre os Ifê, ìgálá ou ariwo entre os Ègbá, bõlõjö entre os povos

de Shaki e outras partes da região yorubana da chamada Òkè-Ògùn. Do mesmo modo, Õrõ-

êfê é a arte poética entre os povos de Ketu, e por aí vai.

Feita assim a classificação e a descrição das formas poéticas do grupo A, agora, só

me resta abordar e analisar os gêneros do grupo B, para ver como se diferenciam em

estrutura dos gêneros pertencentes à categoria precedente.

2.3.2 Oralitura na poesia yorubana II: Oríkí

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A termo oríkì se conhece, e, de fato, se usa muito no meio do povo de santo

brasileiro. Costuma ser usado em relação aos orixás, mas, poucos são os afro-brasileiros

que seriam capazes de dar uma definição ou uma descrição adequada do termo. Torna-se,

pois, pertinente colocar as perguntas seguintes:

• O que é orikí?

• Qual é a finalidade do oríkì?

• Quais são os tipos de oríkì que se usam entre os yorubanos?

• Quando, e como, se usam oríkìs?

2.3.2.1 O que é orikí?

No prefácio do seu livro Àwôn Oríkì Orílê Mëtàdínlôgbõn (2000), Adeboye

Babalola deixa claro a relação íntima que existe entre o costume de orúkô (nomes) e a

prática de oríkì, entre os yorubanos. Conforme aponta o especialista, oríkì é uma espécie de

orúkô, usada, geralmente, para dar destaque a um atributo, ou a uma façanha relacionada à

pessoa a quem se dá o oríkì. O objetivo do oríkì, na tradição yorubana, é, pois, o de ‘kì’,

isto é, “saudar” o orí (a cabeça íntima), considerada como a essência de uma pessoa

yorubana. O oríkì de alguém se faz em yorubá, para produzir nela um sentimento de

orgulho e levantar a sua auto-estima.

De fato, existem vários tipos de oríkì. Os mais usados são:

• Oríkì àlàjë, também chamado de ìnagijç, que é de uso pessoal.

• Oríkì ìdílé, que é partilhado por membros da mesma família extensiva.

• Oríkì orílê, que é relacionado com a linhagem mística e histórica dos

grandes clãs yorubanos.

• Oríkì ìlú é o compêndio da história de cada cidade yorubana.

• Oríkì òrìÿà é aquele oríkì que é usado para exaltar e elogiar um determinado

orixá.

De modo geral, os mais significativos são Oríkì ìdílé, Oríkì orílê e Oríkì òrìÿà. A

primeira categoria fornece a principal identidade para cada yorubano, uma identidade que é

herdada apenas da parte do pai. Quanto à segunda categoria – Oríkì orílê – , ela também é

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patriarcal, ligando a pessoa yorubana aos grandes heróis-fundadores de clã e linhagens. A

última categoria está diretamente ligada ao culto dos orixás, dentro do qual cada orixá é

saudado, exaltado e elogiado, com trechos de sua história e atributos místicos.

A respeito dos Oríkì Orílê, Babalola (2000:ix ss) deixa claro que o mais importante

valor deste tipo de literatura entre os yorubanos está no seu conteúdo que faz deste tipo de

orikís um compêndio da história dos povos yorubanos. Por definição, conforme afirma,

Oríkì Orílê pertence a um gênero da literatura yorubana que tem a principal função de

documentar os acontecimentos principais – tanto positivos como negativos – que

constituem a história de cada subgrupo yorubano. O autor assim o define:

Oríkì Orílê jë oríkì jàþtìrçrç t`ó júwe ìwà, ìÿe àti àrà àwôn baba-þlá ati ìyá-þlá.Àýfààní pàtàkì jùlô t`aa rí nínú aáyan kíka Oríkì Orílê wõnyí nísisìyìí ni pé êköìjìnlê nípa èdè Yorùbá, nípa ìtàn ilê Yorùbá, àti nípa àÿà ilê Yorùbálóríÿiríÿi...Òkúta ìpìlê ni àwôn oríkì orílê já sí nínú lítíréÿõ Yorùbá.

(Oríkì orilè são textos poéticos compridos, que falam do comportamento, dos feitos

e dos jeitos dos antepassados yorubanos. Uma grande vantagem que o estudo e a

reprodução de tais oríkì orílè nos propicia é a possibilidade de apreender fatos e

conhecimentos profundos sobre a língua yorubana, o resgate da história do povo

yorubano e informações valiosas sobre a cultura e os diversos costumes dos

yorubanos. Além do mais, tais textos representam a pedra angular para o estudo da

literatura yorubana).

Babalola (2000: viii) inclui os Oríkì Orílê na segunda de duas grandes categorias

que ele descreve como oríkì ÿókí e oríkì jàáýtirçrç, sendo a primeira uma outra maneira de

chamar os oríkìs pessoais enquanto a última abrange os outros oríkìs, que, normalmente,

são bastante compridos (jàáýtirçrç). O que diferencia a primeira categoria de oríkìs da

segunda é que a primeira, ou seja, oríkì ÿókí, nada mais é que os vários tipos de cognomes

ou apelidos especiais, que se usam entre os yorubanos. Existe ainda dois tipos dentro dessa

primeira categoria. A categoria pode incluir tanto os apelidos de carinho inventados pelas

mães para enaltecer os filhos, como também certas alcunhas adotadas por certos indivíduos

para se distinguir na sociedade. Exemplos do primeiro tipo são:

Àjíkë - aquela que é objeto do carinho logo ao acordar de manhã.

Àdùkë - todos (na comunidade) se rivalizam para agraciá-la.

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Àbêfë - é tão especial que torna-se objeto de culto para seu esposo.

Àkànjí - aquele cuja presença faz renascer a força e a esperança.

Àjàó-õkín - aquele cuja beleza rivaliza a do pavão.

Os seguintes oríkìs representam exemplos do segundo tipo que são conhecidos entre

os yorubanos como oríkì àlàjë, ou seja, oríkìs que o indivíduo escolheu como seu lema

pessoal, usado às vezes no lugar do próprio nome da pessoa. Esse tipo de oríkì tem uma

natureza descritiva, pois resume um traço comportamental da pessoa.

Àjëìbôn - caçador bom-de-pontaria .

Ajíÿafë - aquele que adora a elegância.

Olówópõrõkú - nada é impossível para quem possuir recursos em abundância.

Márìndõtí - aquele que detesta a impropriedade e falta de higiene.

Quanto à segunda categoria de oríkìs, Babalola afirma que “O mais importante entre

os chamados oríkì jáàþrçrç (oríkì comprido e extensivo) são oríkìs dos reis yorùbanos e das

diversas linhagens dos povos yorubanos (oríkì àwôn orílê Yorùbá). Um detalhe

importantíssimo que Babalola não deixa de salientar é que essa categoria de oríkì é o que

corresponde aos textos históricos na tradição yorubana.

Babalola afirma ainda que tais oríkìs são tidos entre os yorubanos como verdadeiros

documentos históricos cuja objetividade não se questiona, já que todos reconhecem que a

preocupação primordial desse tipo de oríkì é preservar a história do grupo, de forma fiel e

objetiva. Isso se comprova, muitas vezes, pela inclusão de algumas passagens ou

‘capítulos’ que gerações futuras possam considerar com vergonhosos, nos relatos de Oríkì

Orílê. Um exemplo disso pode ser visto no seguinte trecho do oríkì dos Oníkòyí, uma

linhagem de guerreiros entre os yorubanos. O trecho deixa claro que, no passado, os

fundadores desta linhagem não costumavam hesitar em cometer atos de furto de patrimônio

alheio, cada vez que a ocasião permitia. O trecho ainda documenta uma das maiores

derrotas históricas sofridas pelos antepassados de Oníkòyí: Eis um extrato, tirado de

Babalola (2000: 42-43),

2.3.2.2 Oríkì Oníkòyí

Òngbêëþlá Çlëgbà Ongbeenla Elegba (o-que-toma-de-força)

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Ab-ìjagun-tían-rére O-guerreiro-que-não-respeita-nadaAb-ìjagun-gbõrõrõrõ-bí-çÿê-olè Faz-guerra-como-quem-roubaÈnìyàn ò níí jagun bí Oníkòyí Ninguém poderia guerrear como Onikòyíkí ç má f`olè diê kún un sem praticar alguns furtosÕràn Ìkòyí ò l`olé þ`nu. Que ninguém nos chame de ladrão.Olúgbön ní þ Nós não somos iguais aos Olúgbón87

já olè ni kõrõ tiwôn. Que preferem roubar às escondidas.Tí ý bá þ lô ilé àwôn baba mi. O nosso ancestral era assim mesmoYánbínlólú lô ogun ó lô. Uma vez ele foi guerrearrèé mërú, K`Íkòyí ó tóó dé, com a expectativa de trazer escravos,

mas, antes da sua voltaolè ko`lé àwôn baba wôn lô. Um outro mais esperto foi roubar sua

própria casa.Ó pàdé baba olè lönà. Quando nosso ancestral voltou e deu de

vistas com o ladrãoNi wôn bá bë Yánbímlólú lórí. pelejou, mas acabou sendo decapitado.Orí Olúkòyí ro fìrìpò þ lê. A cabeça dele rolou no chãoMo m`çni tí Ìkòyí bë lórí, Sei quem foi que Ìkòyí decapitoumo mçni ó bë `rí ê. e também quem decapitou ÌkòyíMo m`çni tí Ìkòyí kó þ`lé, Sei a identidade dos que Ìkòyí roubou.mo m`çni ó kó `lé . E, sei também quem saqueou aàwôn baba wôn lô. casa de Oníkòyí na sua ausência.Àrõnì gbônra jìgì Ó grande ancestral forte em poderesd`çrù oògùn nù mágicos.Àÿàýÿà Aÿölémásàfôwörá... Àsànsà o-grande-ladrão-destemível.Un ló kó`lé Yánbímlólú. Foi quem roubou Yánbínlólú (Ìkòyí)Êsà Ògbìn n baba wá jà l`olé... E foi a Èsà-Ògbìn que ele também roubou88.

Um simples exercíco de comparação entre o oríkì que acabamos de ver, e a seguinte

versão do mesmo oríkì, revelaria fortes índices da oralitura que sustenta a composição,

armazenamento e transmissão deste gênero literário. O seguinte trecho é tirado de outra

versão do Oríkì Oníkòyi, cantada por outro poeta Àdìgún Alógùn-ún-löfun, originário de

Ibadan, e reproduzido por Babalola (2000: 44-46)

Olúgbön Àgbé, ômô Olè-lósì, Olúgbon-Àgbé, descendantes-do-ladrãoÔmô Erelú abç descendante-de-Erelú que fazia cirurgia para crianças.Jëni õbçbç, ogun l`ç rí Descendentes-de-Obebe, que se alegral`ç fi bëra bí aÿô cada vez que se fala em guerra.Àjàkërú ômô olè Descendentes do-intrépido-ladrão-tí í jë tèfètèfè. que rouba sem deixar rastros.

87 Olúgbón é outra linhagem yorubana.88 Este primeiro trecho foi recitado pelo poeta Abíonà Àjàlá, originário da cidade yorubana de Ògbómõÿö.

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Ômô ogun lösàn-án, Descendentes daquele que guerreia de dia,ômô olè lóru.. e rouba de noiteOgun ò le pó tó báyìí Dizendo que quando tem uma grande guerra.Kí ç má f`ômô olè díê é impossível não aproveitar para roubarkún um nem se fosse só um pouco.Ni `ön bá þ jagun lötùn-ún Por isso Olúkòyí resolveu guerrear com a mão direita.Ni `ön bá þ jalè lósì e roubar com a esquerda.Àwôn Olúkòyí ní í jë báun. Assim era o ancestral dos Ìkòyí.

Comparando esses dois trechos do oríkì da linhagem do Olúkòyí, é fácil constatar e

reconhecer a qualidade objetiva que norteia a composição e transmissão desse tipo de texto

em yorubá. Como já afirmei, trata-se de um texto histórico que se preocupa com a

documentação e transmissão objetiva de dados históricos, acontecidos em épocas remotas.

Conforme est´amplamente demonstrada pelos trechos transcritos, relatos como esses não

procuram esconder as falhas nem as derrotas do passado. Nisso a sua concepção difere

muito dos poemas épicos da tradição grego-européia, que costumavam documentar, apenas

os feitos gloriosos dos heróis nacionais.

Outra característica dos oríkì orílê que, também precisa ser salientada aqui, é a

seqüência dos relatos. Embora não exista nenhuma datação explícita dos relatos

documentados que possa indicar quando, exatamente, os fatos teriam acontecido, até

porque os acontecimentos aos quais se refere nos oríkìs remontam aos tempos primordiais

(Babalola fala de circa do ano 1250 da era cristão)89, são embutidos nos oríkìs alguns

recursos que tornam possível a datação dos acontecimentos vividos pelos ancestrais de cada

linhagem yorubana. São esses, nomes próprios de pessoas que foram contemporâneas do

acontecido relatado, como por exemplo, rei e soberanos, durante cujo reinado os fatos

teriam acontecido.

Portanto, quando se recita no oríkì da linhagem de Oníkòyí, o trecho onde se refere

aos Oníkòyí como ‘Ômô gböin, ômô gbõin/ômô gbõìn-gbõin t`o dì mësin l`örùn þ Kòyí/Tí ò

jëkí çsin ó jçko...’ (linhas 19-20), quem domina a história do grande reino Õyö-Yorùbá

saberá que se refere à época em que os yorubanos tiveram que enfrentar o exército

muçulmano dos jihadistas oriundos do norte. Entre o final do século XVIII e o início do

89 Op. cit. p. ix.

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XIX, os muçulmanos Haussa-Fulani, querendo dominar aquele reino a qualquer custo,

despacharam um poderoso exército, montado a cavalo, contra o reino de Õyö-Yorùbá, mas

seu avanço foi efetivamente barrado pela coragem dos Êÿö Ìkòyí (Oníkòyí) que contavam

com a ajuda providencial das moscas tsé-tsé (gbôin-gbôin) cuja picada dava a doença do

sono aos cavalos e cavaleiros do exército muçulmano.

Em termos de datação, com esse trecho, torna-se possível datar o capítulo referido

no oríkì, aos finais do século XVII, antes do complô de Àfõnjá, o general do exército de

Õyö, cuja ambição em se tornar senhor daquele reino o levara a fazer um pacto com Alimi,

o general do exército muçulmano acampado em Ilörin para juntos derrubarem o Aláàfin

Àólê Arógangan, rei de Õyö, o que acabou desencadeando a crise que levou à queda

daquele poderoso reino yorubano nos meados do século XIX (JOHNSON, 1973 [1921]:

188-222 e ELLIS, 1894).

Vale mencionar ainda que nem por isso se poderia dizer que o oríkì representa um

gênero de narrativa linear. De fato, o tempo neste tipo de relato é cíclico. Isso porque,

embora as referências dentro dos Oríkì orílê remontem, diretamente, aos antepassados

fundadores da linhagem, o homenageado que possibilita a recitação do oríkì em

determinado momento, é sempre alguém presente, portanto o poeta que recita tal oríkì

estaria sempre voltando para o presente, para fazer as ligações necessárias entre esses

antepassados da linhagem e a(s) pessoa(s) que estariam sendo homenageado(a)s no

presente.

Tudo isso indica que o gênero de oríkì, sobretudo o Oríkì orílê, pertence a um

gênero literário, que possui um caráter histórico consistente. Nada poderia comprovar

melhor tal afirmação do que o famoso depoimento de Mestre Didi intitulado ‘Um negro

baiano em Ketu’, quando foi recitar o Oríkì orílê da família Aÿipá, que aprendera de sua

Mãe (Maria Bibiana do Espírito Santo – Mãe Senhora, Oxum-Muiwá) e “várias pessoas

mais velhas descendentes de africanos” afirmando que a família dos Asipás da Bahia é

descendante de ‘uma das sete famílias reais do reino de Ketu’. Conforme relata o próprio

Mestre Didi, a simples recitação de uma das linhas do oríkì da família Asipá (Asipá

Borogun elese kan góngó), na presença do Alaketu (Rei de Ketu), durante a visita de

Mestre Didi àquela terra africana, em 1967, culminou no reencontro histórico entre os

Asipá do Brasil e os Asipá de Ketu. Mediante a recitação do oríkì, o rei pôde reconhecer a

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autenticidade da filiação de Mestre Didi àquela terra. Essa experiência levou Mestre Didi a

chamar o gênero de Oríkì orílê de “brasão oral”90.

Deve se dizer ainda que a forma mais comum de se fazer a transmissão do Oríkì

orílê é através da sua repetição ou ‘interpretação’ pelas pessoas mais velhas de cada

linhagem, sobretudo as ‘ìyáálé’ ou seja, as esposas mais antigas da linhagem, que usam o

oríkì, como forma de animação e entretenimento, durante festejos familiares. Isso faz com

que se perpetue a prática, tornando mais natural sua transmissão de uma geração para outra

(ADEOYE, 1985)

No entanto, é importante advertir que dentro do gênero de oríkì em geral, existem

dois tempos distintos. Como já foi dito no caso dos Oríkì orílê, esses se inserem em um

tempo histórico. Porém há outro tipo de oríkì cujo tempo é tido como mitológico. O

principal subgênero desse tipo são os oríkìs usados na invocação dos orixás. Quando se

recita, por exemplo, no oríkì de Ògún, orixá yorubano de ferro e patrono das guerras e

invenções tecnológicas, loas como a seguinte oríkì, que passo a reproduzir, fica claro que o

tempo ao qual se refere é mitológico.:

Ògún ni onile iná (Ògún é aquele que habita uma casa de fogo)Ògún ni ôlödêdê imo, (Ògún é aquele cujo pátio é feito de ráfia)N’íjö tí Ògún þti, (No dia em que Ògún descia do orum

orí òkè é bõ , para o aiyê)91

Aÿô iná ló mú b’ora, (O seu traje era de fogo)Êwù êjê ló wõ s’örùn... (e sua roupa era confeccionada de sangue).

Como já cheguei a frisar, a categoria de oríkì orixá acaba sendo aquela que mais se

usa e se conhece nas diásporas yorubanas do Novo Mundo, inclusive, no Brasil. Isso não

deveria nos surpreender sobremaneira, uma vez que as condições adversas da escravidão

acabaram apagando, quase por completo, as marcas de parentesco e da hereditariedade

consangüínea entre os africanos escravizados, subsistindo no seu lugar, apenas a chamada

família-de-santo, graças à reconstrução e reconfiguração das culturas africanas, efetuadas

dentro das religiões afro-americanas tais como o Candomblé brasileiro e a Santería cubana.

Por essa mesma lógica, que substituiu o parentesco religioso pelo parentesco da

chamada família-de-santo, os Oríkì orílê cederam seu lugar para os oríkìs dos diversos 90 Cf. SANTOS, Descóredes Maximiliano dos, Mestre Didi, 2003, p. 9-12.

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orixás do panteão yorubano. No caso específico do Brasil, o uso de oríkì está muito

difundido dentro do mundo do Candomblé.

De modo geral, pode-se falar em dois tipos de oríkìs usados no Candomblé. O

primeiro tipo consiste dos oríkì-saudações, usados para saudar os orixás. Durante as festas

de Candomblé, mais conhecida entre o povo-de-santo como o Xirê, o oríkì de cada orixá é

usado para saudá-lo, quando o orixá baixa em alguma iaô, ou seja, filha-de-santo. Nesses

momentos, as pessoas iniciadas, que reconhecem a chegada do orixá, costuma gritar o

oríkì-saudação do orixá, como uma forma de acolhê-lo e de pedir sua bênção.

Em História de um Terreiro Nagô, Mestre Didi (1994: 67) reproduz vários oríkì-

saudações de vários orixás, como esses que aparecem no trecho da festa da segunda-feira

de Omolu ou Obaluaiyê:

No preceito de sua segunda-feira, faz-se uma saudação para Omolu e nana, e,depois, o Osé. Em seguida, vem a oferenda de diversos galos e um bode paraOmolu, várias galinhas para sua mãe Nanã (mulher de Oxalá), e um galo paraOxumarê [...]Começam então as obrigações com os cânticos, toques e gritos de “Atôtô!” – asaudação para Omolu –, “Salubá!” – a saudação para Nana – e “Arrôbôbô!” –saudação para Oxumarê ...92

Os demais orixás também recebem este tipo de oríkì-saudações. No seu livro A

Lenda dos Orixás (1981), Pierre Verger fornece o oríkì-saudação usado para cada orixá do

panteão yorubano. Assim Oxalá é aclamado com o grito de “Epâ! Orixá!, Epâ Baba!”,

Xangô é conclamado com gritos de “Kawo Kabiesile!” enquanto Oxóssi, o orixá da caça e

rei de Ketu, nas tradições afro-brasileiras, recebe o oríkì-saudação de “Okê Arô!”. Ogum, o

orixá do ferro recebe dos seus devotos o protesto de “Ogun iê!”. Enquanto Oxum é

aclamada aos gritos de “Ora yêyê o!”, Iansã, orixá das tempestades é saudada com gritos de

“Eparrei!”, e Iemanjá, a rainha dos mares, é conclamada com brados de“Odo yá!”. Destas

saudações-oríkì, Exu não é deixado de lado, pois recebe por sua parte os brados de

“Larôiê!”.

Além dessa primeira categoria de oríkìs, usados para os orixás no Candomblé

brasileiro, existe uma segunda categoria que pode ser comparada àqueles oríkìs que 91 A mitologia yorubana conta que os quatrocentos e um orixás do panteão yorubano desciam do orum, omundo espiritual para o aiyê, o mundo físico, com o axé de Olórun, Deus-criador e sob a liderança deOrúnmilà. Isso foi logo depois que Odúdùwa teria criado a terra firme em Ile-Ife.

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Babalola classifica como Oríkì jáñtirçrç, ou seja, orikìs mais compridos. Como no caso dos

Oríkì orílê, os orikìs mais compridos usados no culto aos orixás servem para presentificar a

história e os atributos de cada orixá. Esse tipo de orikì comprido costuma ser incorporado

às cantigas de preceito, usadas na liturgia de cada orixá.

Volto a recorrer à Crônica Histórica de Mestre Didi (1994) para exemplificar o

caso, usando uma das cantigas de Oxalá. Durante a festa denominada ‘As águas de Oxalá’,

quando os filho de Oxalá fazem um bori anual, especificamente para “limpar” e renovar o

axé do orixá, usando água sagrada de Oxalá, catada em potes e moringues, todos se

apresentam no Balué, lugar improvisado para assentar o orixá. Conforme relata Mestre Didi

(1994 : 55-55):

Cada pessoa que chega ajoelha-se sobre aquela esteira em sinal de reverência.Algumas pessoas, os que têm orixá masculino, dão Dodobalé, deitando-se de fio aocomprido, tocando a cabeça no chão. As demais dão o Iká otun iká osi, virando-sede um lado e do outro, tocando o chão com a cabeça – são as que têm orixáfeminino. Depois dessa cortesia, a Iyalorixá, juntamente com todos os seus filhos eassociados, começa a cantar uma saudação para Oxalá (Oriki):

Babá êpa ôBabá êpa ôArá mi fo adieÊpa ôArá mi ko a xekêAxekê koma do dun ôÊpa Babá!

Na verdade, quase todos os cantos usados para louvar cada orixá possuem diversos

elementos do oríkì de determinado orixá. Recentemente, tive a ocasião de colaborar em um

filme do produtor baiano Lázaro Faria, intitulado Cidade das Mulheres, filme que retrata o

mundo das mulheres que dominam o candomblé da Bahia, seguindo o percurso traçado na

tradição dos anos 1930 e 40 pela visão feminista da antropóloga norte-americana Ruth

Landes, autora do livro original que traz esse título. Das cantigas que transcevi e traduzi,

entoadas em louvor dos diversos orixás pelas personagens do filme documentário, extraio o

seguinte canto a Ogum. Tal qual a cantiga reproduzida por Mestre Didi, essa também

incorpora um orikì do orixá:

Eh! Ògún Onírè, - Viva Ogum Onirê, Onírè Ògún! - Viva o rei de Irê

92 SANTOS, D.M. (Mestre Didi), 1994, p. 67.

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Akòró Onírè, - O rei coroado de Akorô em Irê Àgbêdç Õrun! (2x) - Salve o ferreiro dos céus!

(oríkì) Ògún yè! - Ogun iê! Viva Ogum! Pakoto orí aÿebi! - Aquele que arranca a cabeça de

malfeitores.

Vale chamar atenção para a qualidade ‘histórica’ dessa cantiga. De fato, a cantiga é

um bom exemplo daquilo que denominei de “tempo mitológico” em um segmento anterior.

Porém, esse tempo não deixa de fornecer alguns dados históricos da “vida” de Ogum,

salientndo seus atributos como “o rei que foi coroado de Akoro, na cidade de Irê” e

louvando sua qualidade de “Àgbêdç Õrun”, ou seja, ferreiro celestial.

A prática de oríkì para saudar, louvar e até para pedir graças aos orixás, não se

limita aos momentos do culto dentro dos santuários, de fato, é mais comum entre os

adeptos dos diversos orixás na sociedade yorubá-africana saírem pelas ruas, percorrendo,

sobretudo, as feiras livres para angariar fundos para qualquer festejo do orixá, cantando os

louvores e os oríkìs de seu orixá, para animar os feirantes. Alguns desses adeptos que já

profissionalizaram esta arte itinerante de fazer as cantigas e orikìs de orixás em público

costumam ir de feira em feira. Entre os mais comuns hoje, em terra yorubana, são adeptos

de Xangô (Oníÿàngó) e uma classe de egungun, chamado eégún aláré. Esses últimos são

verdadeiras bibliotecas itinerantes, em matéria da recitação dos oríkìs dos orixás yorubanos,

pois tais egunguns costumam cantar para qualquer orixá que se incorporar no elégùn

(incorporado). Hoje, existem gravações de tais profissionais em forma de discos. Um

exemplo é o grupo de elééguns profissionais, chefiado pela cantora Foyèkë Àjàngìlá Ômô

Baalê Arêkú Eléégún, que chegou a levar essa arte para a Europa nas décadas de 1980 e 90,

levando, dessa forma, essa arte yorubana ao palco global.

De fato, mais do que qualquer outro gênero literário yorubano, o oríkì tem servido

de fonte de inspiração e banco de dados, para a composição de músicas populares, tanto na

própria sociedade yorubá-africana quanto nas diversas sociedades da Diáspora yorubana.

No Brasil, o oríkì é campeão nos repertórios da MPB, como se verifica no caso de várias

composições, inspiradas nos cântico-oríkìs do candomblé, apropriadas por várias gerações

de cantores e compositores, tais como a geração dos doces bárbaros – Caetano Veloso,

Gilberto Gil, Gal Costa e Maria Bethânia –, passando pela geração de Carlinhos Brown,

Daniela Mercury e os diversos cantores do Axé Music, os afoxés e as bandas afro-

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carnavalescas como Ilê Aiyê, Ara Ketu e Timbalada dentre outros, para desaguar na

geração de jovens cantores e compositores das novas modalidades do samba de terreiro.

Desta última geração destaco o disco Abre Caminho de Mariene de Castro e o disco Aboio

para um Rinoceronte de Jota Velloso, ambos produzidos em 200493.

Da mesma forma, em Cuba, Haiti, Trindade e Tobago, como em vários outros

pontos do Atlântico Yorubano, cantores e compositores como Lázaro Rós, Papo Angarica,

e, até orquestras nacionais, como o famoso Conjunto de Percusión de Danza Nacional de

Cuba, têm levado os diversos cantos, rezos y toques dos orixás yorubanos para os quatro

cantos do mundo globalizado.

Uma última palavra que merece ser dita a respeito dos oríkìs em yoruba é que,

conforme deduziu Walter Ong (2000: 34), o fato de os oríkìs possuirem uma estrutura

equilibrada em ritmos, repetições, teses e antíteses, aliterações e assonâncias, ou seja, toda a

gama de recursos que Ong chama de suportes mnemônicos ajuda na sua retenção e

transmissão.

Entretanto, ao contrário da insinuação de Ong, isso não retrai de sua qualidade

histórica ou objetiva. Muito pelo contrário, minha tese é que esses recursos acabam

servindo como a melhor forma de preservar a fidelidade das ‘anotações’, gravando-as na

memória, como se fossem textos escaneados, ou seja, escritos na memória. Afinal, como já

tive ocasião de apontar, o termo genérico que se usa para tais textos é “àkösórí”, isto é, ‘o

que se escreve na cabeça (ou melhor, na memória).

Isso me leva, pois a considerar o gênero de oríkì em yorubá, como textos que

pertencem tanto à categoria de literatura oral, porque sua (re)produção é essencialmente

oral, quanto à categoria que se pode chamar de proto-escrita yorubana, porque a seqüência

de sua memorização que ocorre, como imaginou Ong (2000: 34), em blocos mnemônicos,

facilita que sejam transferíveis de maneira tal, que torna-se possível descrevê-los hoje, em

linguagem da tecnologia do computador, como “modo move disk”. Por isso que prefiro

classificar os oríkìs como textos da oralitura, qualidade essa que partilham com outros

gêneros da literatura yorubana como ôfõ (ògèdè) e çsç-Ifá.

93 O disco de Jota Velloso é digno de menção especial, não só porque nele tive a felicidade de colaborar comuns versos numa das faixas principais, dedicada a Oxóssi, reproduzindo um trechinho do oríkì do orixá, mas,também, porque o próprio disco é uma homenagem a Oxóssi, consistindo vários oríkì-saudações e invocaçõesao Odé das terras de Ketu.

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2.3.3 Oralitura na poesia yorubana III: Ôfõ , Ògèdè e Àyájö (textos mágicos)

O gênero literário que se conhece entre os yorubanos como ôfõ, ògèdè e àyájö, se

refere, na realidade, ao que se pode chamar de textos mágicos por excelência. Além dessas

três terminologias, existem vários outros nomes que se dão a esse tipo de textos entre os

diversos subgrupos yorubanos, pois, de fato, como a prática de se servir desses textos é

comum a todos os grupos yorubanos sem exceção, cada dialeto yorubano tem seu nome

próprio para designar tais textos. Por exemplo, enquanto o dialeto Õyó-Yorúbà prefere o

termo “ògèdè”, os Êgbá-Yorùbás usam o termo “ôfõ”; os Ìjêbú-Yorùbás chamam o mesmo

fenômeno de “èpè” enquanto os Èkìtí-Yorùbás usam o nome genérico de “gbètu-gbètu”.

Entre os Ifê-Yorúbás, prefere-se o termo ‘àyájö’. Entretanto, alguns termos, cujo uso

transcende as fronteiras dos diversos dialetos do Yorùbá para designar esse fenômeno, são

“õrõ/ohùn”, “ata”, ou mesmo, simplesmente “àÿç”.

Esses três últimos termos chamam atenção para o componente atômico que constitui

a essência dos textos mágicos entre os yorubanos. Esse componente é nada menos que a

palavra falada que carrega e desencadeia o axé, a força ou energia mágico-ritualística que

produz efeitos imediatos. A esse respeito, os textos se aproximam do conceito do ‘verbo’

catalisador, ou seja, o Fiat, com o qual o mundo foi criado, conforme relata o primeiro

capítulo da Bíblia.

Sejam quais forem os termos usados em determinados pontos da yorubalândia,

todos acreditam na eficácia destes textos falados para transformar instantaneamente a

realidade. M. Ajayi Fabunmi, alto dignitário na hierarquia tradicional da corte do rei de Ilé-

Ifê onde tem o cargo de ‘Õdôlé Atöbaÿe’, no prefácio à primeira edição de sua coletânea de

Àyájö Ìjìnlê Ohùn Ifê (1972), nos fornece a seguinte definição:

Àyájö, Ohùn Ifê, jë ìgèdè tàbí ìjìnlê ôfö çnu tí àwôn ará àtijö máa þ lò lati ÿeõpõlôpõ nkan ní ilé aiyé... Lati àárõ ôjö ni àwôn Yorùbá ti mõ wípé bí gbólóhùn õrõkan bá ti jade lënu ènìyàn, ibi tí atëgùn lè gbé iro õrõ náa dé kò l`ópin rara ni. Nwônmõ wípé àwôn êdá Ôlörun míràn wá púpõ tí a kò lè fi ojú lásán rí, àti pé oníkálùkùgbogbo àwôn êdá Ôlörun wõnyí ni ó ni orúkô tirê, títí kan’ra àwôn çranko àti çyç àtikoríko àti bëê bëê lô. Gbogbo wa náà la sì mõ wípé bí a bá pe çnìkan ní orúkô àbísôrê, olúwarê yíò dáhùn ní. Wàyí ò, àwôn Yorùbá àtijö mô orúkô tí nwön máa fi þpeõpõlôpõ àwôn êdá Ôlörun ní à-pè-dáhùn.94

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(Ayájó, Ohùn Ifè, são “ògèdè” ou “ôfõ”, textos de natureza oral, que as pessoasantigas costumavam usar para produzir muitos efeitos prodigiosos nas diversassituações existenciais... Desde os tempos primordiais, os yorubanos sabiam que,uma vez que se profira uma palavra, não há limite para o seu alcance, nem se sabeaté onde o vento poderia levar tal palavra. Além do mais, os yorubanos acreditamainda, que existem certos entes invisíveis, dotados de poderes sobrenaturais, cadaum dos quais possui um nome próprio (ao qual não pode deixar de responder,quando pronunciado da maneira íntima), o mesmo é verdade também para todas asoutras criaturas vivas, como os animais, os pássaros, as plantas etc. Ora, sabemostodos que ninguém deixa de responder a seu nome próprio quando esse forpronunciado de maneira íntima. Portanto, os anciãos yorubanos possuem o segredode conhecer e saber usar o nome íntimo de cada ser vivo, para produzir efeitosprodigiosos).

A partir desta definição, torna-se fácil apreender o pleno significado dos textos

mágicos yorubanos. Falta agora exemplificarmos os diversos usos de textos mágicos entre

os yorubanos, enquanto se tenta analizar o processo de composição e reprodução de tais

textos:

• como são ‘compostos’ textos de Ògèdè e Ôfõ?

• como, e, em que circunstâncias devem ser reproduzido os mesmos?

• quais os ‘suportes tecnológicos’ necessários para o seu efetivo

armazenamento e reprodução para garantir sua eficácia?

No que diz respeito aos diversos usos de textos mágicos entre os yorubanos, posso

dizer, apoiando a minha afirmação na definição fornecida por Fabunmi (1972) e outros

especialistas no assunto95 que os ôfõ, ògèdè, àyájö , e outros textos mágicos, são usados

entre os yorubanos para toda finalidade que requeira um domínio metafísico sobre a

vontade de qualquer tipo de ser vivo, sejam eles humanos ou não-humanos, visíveis ou

invisíveis, para que se possa ter o controle do axé de tais criaturas. Esse axé passará a ser

usado para o proveito da pessoa que o obtiver, mediante o uso desses textos mágicos.

Convém acrescentar que a composição de tais textos normalmente faz parte de um

processo mais amplo que envolve a confecção de dispositivos mágicos, conhecidos em

yorubá pelo nome genérico de oògùn, ou seja, dispositivos investidos de força mágica,

destinada a ser desencadeada com a recitação dos ôfõ, ògèdè, àyájö e outros textos

94 FABUNMI, 1972. p. vii.95 Entre outras obras que abordam o assunto ver: Olanipekun Bamikiya “Ìdèyún àti Ìgbêbí” in OLAJUBU,Oludare (org). 1978. p.61-68. Ver também BABALOLA et alii, Vol. II e III. 1989.

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mágicos. Isso quer dizer que, quase sempre, os ôfõ, ògèdè, àyájö e outros textos mágicos

não são usados isoladamente, constituem, muito antes, um estágio no processo de

desencadeamento das forças invisíveis. Fabunmi (1972 : vii) explica melhor este processo:

Ní ìgbà púpõ ni àwôn õjõgbön wônyí máa njç ataare l’ënu lati pe ôfõ, nwôn a sì túnmáa ta epo, êjê, tàbí omi ìdí ìgbín tàbí çmu àti nkan míràn sílê, nítorípé ataare a máapô oro sí ènìyàn l’ënu, àwôn nkan yókù wõnyí a sì máa ÿisë gëgë bí agbára tí o lètètè pe àwôn êdá àìrí wá (Ectoplasm).

Tradução:

Em muitas situações, os conhecedores dessa arte oculta costumam mastigar(determinado números de) sementes de ataare (pimenta da costa), no momento deproferir os textos de ôfõ. Também, costumam despejar no chão azeite de dendê,sangue de animal, o líquido (sangue) do caracol, vinho de palmeira ou qualqueroutro ingrediente. Isso porque a ataare possui o poder de ativar o axé que fica naboca de quem a mastigue enquanto os outros ingredientes têm o poder de agir sobreo ente invisível cuja força vital está sendo convocada naquela situação. Ou seja,esses ingredientes agem como substâncias ectoplásmicas.

Além dessas substâncias, Fabunmi deixa claro que existe, ainda, uma série de

procedimentos que os conhecedores dessa arte podem usar, conforme a situação e a

finalidade. Ele adverte que esta última categoria de substâncias, e a maneira de manipular

as mesmas, não pode ser escrita de forma explícita em qualquer livro. Isso para evitar que

pessoas despreparadas tenham acesso a tais artifícios potentes. Quem reforça ainda mais

esta medida de precaução é o historiador Adeagbo Akinjogbin, que chega a afirmar, no

prefácio que fez para o livro de Fabunmi que:

Õpõlôpõ (àwôn ôfô ni nwön ni èròjà tí a ní lati fi kún wôn kí nwön tó ÿiÿë, sùgbön amõímõ ÿe àìfi àwôn èròjà yçn sí i96.

Tradução:

Existem outros ingredientes chaves que devem ser preparados antes do uso dostextos de ôfô, porém esses ingredientes foram omitidos, propositadamente, dapresente publicação.

Visto que o nosso interesse nos textos mágicos yorubanos nesta tese se limita a uma

análise de elementos de sua confecção que os tornem susceptíveis a serem considerados

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como textos que fogem à oralidade pura, é oportuno passar em seguida a um análise textual

de alguns ôfô e ògèdè, para pudermos apreender a sua construção e coesão textual. Para

tanto, proponho o seguinte exemplo:

2.3.3.1 Ôfõ Àrísõyìn97

Gbé mi gbígbé níí ÿe (Me-leve-me-leve-no-colo)awo wôn l’ode Êgbá; (assim se chamava o babaláwo dos Egbá)Rù mí rírù níí ÿe (Me-carregue-me-carregue-na-tua-cabeça)awo wôn l’ode Ìjêÿà: (era o nome do babaláwo dos Ijexá)Olúborí l’awo Ode Ìddo; (Olubori (o-vencedor) era o nome do

babaláwo dos Iddo))Õpayèyè-mejì l’awo: (Opayeye-meji era babaláwo dosOde Ìbàdàn Ibadan)Èsúrú ò d’öjà kó kùtà rí, (O-inhame-esuru-nunca-é-desprezado-

na-feira)Awo wôn l’óde Ìmójùdó. (Assim se chamava o babaláwo

de Imojudo)Ó dá ko ÿônÿo ôwö (Assim foi o oráculo de Sonso Owoa fíí ka’wo que-é-a-maneira-de-contar-moedas)Kùrù-kçrç à á sún ‘ÿê ç bàtà. (E também de Kuru-kere, maneira-de-

-calçar-sandálias)Ìlú mo bá dé ng ka (Que eu seja famoso, onde quer queÿàì j’énìyàn. eu for neste mundo)Ó dá ko kúkúñdùkú tíí (Oráculo de kukunduku, rei dosÿ’ôlöjà isu, tubérculos)Òun ìrùkêrê tíí ÿ’ômô. (e também de Irukeré, filhoOlókun Sêníadé de Olokun Seniade (Orixá dos Oceanos)Nwôn ní b’ó bá yç (O oráculo diz que, quando‘rùkêrê tán, Irukere ficar famoso)Tó dê’rùkêrê l’örùn, (Quando Irukere98 ficar confortável,Ó d’çni à-gbé-jó, ó todo o mundo há ded’çni à-gbà-yêwò. querer brincar com ele)À-gbé-jó l’à á gbe ‘rù çÿin; (Porque o rabo de cavalo só dá graça

quando se dança com ele na mão)

96 Cf. “Õrõ Àkôlé’, Prefácio de Adeagbo Akinjogbin ao livro de FABUNMI. 1972. p. xi.97 Este tipo de ôfõ se usa para conjurar para si o poder de gozar da boa vontade de pessoas que podem nãogostar da pessoa. Por exemplo, quando alguém se aventura para terras estrangeiras, onde não conheceninguém ou onde ele pode correr risco de vida e qualquer outro risco. O objetivo deste ôfõ é garantir a talpessoa, a boa vontade de todos com quem ele terá ocasião de encontrar e lidar no seu caminho.98 Ìrùkêrê, conhecido no mundo do candomblé brasileiro como ‘eruqueré’ é um adorno, feito com o rabo decavalo, e decorado com contas, para ser levado na mão, na hora de dançar o xirê. Na sociedade yorubana,Ìrùkêrê é símbolo da realeza, sendo uma insígnia que o rei leva na mão esquerda, com o qual faz sinais àspessoas, como se fosse uma extenção de sua própria mão. Os babaláwo yorubanos, sacerdotes de Ifá, tambémusam Ìrùkêrê, para afastar poderes maléficos durante o jogo oracular.

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À-gbà-yêwò ni ti ‘rùkêrê. (Irukere é sempre um adornomaravilhoso na mão das pessoas)

T’orí t’ìrù l’ajá fi í (O cachorro demonstra suayõ m’oluwa rê; afeição ao seu amo sacudindo

com alegria a cabeça e o rabo )Gbogbo ara l’Òrìÿà fi í (Os orixás nunca desprezam afëràn çtù; oferenda feita com a galinha

d’Angola)Gbogbo ara l’Òrìÿà fi í. (Oxalá nunca despreza albinos)fëràn àfín, Gbogbo õtõkùlú (Os sábios nuncakì í pejo s’awô çkùn nu, desprezam a pele do leopardo)Ohun rere ni nwôn fi í ÿe: (Porque tem grande valor para os

poderosos)Gbogbo õtõkùlú kìí. (Ninguém se faz inimigo do sal)bá ‘yõ ö ÿ’õtá,Ojú kìí. (nenhum homem galante vê umar’árçwà kó má kí i mulher bonita sem olhar duas vezes

para ela)Gbogbo esinsin. (As moscas sempre procuram aní í pé e bo ‘yín companhia das fezes )Gbogbo çiyç níí (Os pássaros sempre disputamÿìkìtì í b’çyìn; frutas do dendezeiro)T’igbó t’ijù níí gbõn (A floresta toda ajuda a árvore arabá ‘wúêçgun. a espalhar seu algodão)Esinsin kìí mô ni (A mosca não precisa conhecerk’ó tó f’ôwö ôlá kó’ni möra; uma pessoa, antes de querer

visitar suas feridas)ßêÿê l’ômôdé í yõ m’ëiyç; (Toda criança se anima quando

vê um pássaro)àrí-jó, àrí-yõ ni t’ômô ojo. (O neném recém-nascido sempre recebe

carinho e cuidado de todos)Gbogbo ire níí ÿ’ojú Ajé; (Tudo o que é bom chama

a atenção do dinheiro)Gbogbo çni rere ní í là’nà (Toda pessoa de boa vontadekan obì. não se separa de obí)Àfëká ni à á fë’ná; (Um fogo se sopra por todos os

lados )À-làk’áiyé l’oòrùn í là. (O sol nunca deixa de percorrer

o mundo inteiro durante a suaperegrinação diária)

B’óÿùmàrè bá là ní’lê (Cada vez que aparece o arco-ÿe níí kàn’run. íris na terra, sempre atinge

o céu)B’ilù gángan bá wõ’lú, (Cada vez que o tambor det’çrú-t’ômô níí jó o gangan entra a cidade, todos têm

vontade de dançar)B’íkòrikò bá ké ní’gbó, ÿe níí (Quando o lobo grita na floresta

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gba’yì láàrín àwôn çranko; outros animais lhe dão respeito)B’Ólórìÿà-oko bá wô’jà, (Cada vez que um sacerdote deÞÿe ní nwôn í ké Orixá-Okó entra na feira, todo ohàà-hin-in-í yõ mö ôn. mundo lhe trata com muita

reverência)Ôlöÿun kìí wo idç ë ro’jú ; (Uma iaô de Oxum nunca

despreza os adereços de cobre)Olórìÿà kì í w’òjé é pòÿé. (Um sacerdote de Oxalá nunca

despreza os adereços de latão)Ènìyàn kíí põ l’öjà (Por mais que uma feira fiquek’á má m’àfín lotada, nunca é difícil

reconhecer um albinos namultidão)

Orí kìí põ l’öjà. (Por mais que tenha gente nak’á má mô ti yèyé ôni99 feira, um filho nunca tem

dificuldade em reconhecer suaprópria mãe)

O que se pode dizer a partir deste exemplo de textos mágicos ôfõ e àyájö? De fato,

muita coisa. Por exemplo, é fácil observar a ausência de qualquer tipo de coerência e

coesão – pelo menos, não na acepção convencional de coerância e coesão – entre os

componentes de textos como esse que acabamos de ver. Um leitor incauto diria

apressadamente que tais textos não passam de ‘blá-blá-blá’ e, que, falta-lhe qualquer

propósito de comunicação.

Na verdade, autores de tais comentários teriam plena razão, se tal texto fosse

proferido fora de contexto, ou se o mesmo tivesse sido recitado sem que fosse

acompanhado de determinados gestos, capazes de acelerar a reação ‘química’, que ativaria

o axé visado pelo autor de tais palavras de encantação. Vale lembrar que um texto como

esses precisa daquilo que Fabunmi (1972: vii) chama de ectoplasma, para se tornar eficaz.

Além do mais, não devemos perder de vista a advertência de Fabunmi, de que, a finalidade

de ôfõ e àyájö é conjurar a energia de entes invisíveis, daí a necessidade de respeitar as

regras de sua reprodução para que o ato seja bem-sucedido.

Durante uma palestra intitulada “Extracting Relevant Cultural Content from

Traditional Practices and Values”, proferida na Faculdade de Letras da Obafemi Awolowo

University, Ile-Ife, Nigéria em 24 de setembro de 2000, o cientista nigeriano, E.E. Balogun,

diretor do Centro Regional Africano para a Ciência e Tecnologia Espaciais (SPACE

99 FABUNMI, op. cit. p. 7-8.

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CENTRE), apontou para o caráter obrigatório da repetição em textos mágicos yorubá-

africanos. Ele afirmou que, por mais comprido que possa ser um texto desses, se o oráculo

mandar que se repita durante um determinado número de vezes, a pessoa que queira se

servir dele deve respeitar esse número exato de repetições, para garantir sua eficácia. O

pesquisador beninense, Igue Akanni Mahmoud fez a mesma constatação em seu trabalho

intitulado: “Le pouvoir du mot: èpè et àyájó” (O poder da palavra: èpè e àyájó) quando

afirma entre outros que:

Il convient de souligner que leur efficacité nécessite deux conditions; ils doiventêtre recités un certain nombre de fois dans des circonstances appropriées, et par despersonnes investies de pouvoirs supérieurs100

Tradução :Convém reiterar que a eficácia desses textos precisa de duas condições; eles devemser recitados um número determinado de vezes em cincunstâncias adequadas, e porpessoas investidas de poderes extraordinários.

Para o nosso propósito atual, torna-se necessário fazer uma análise pormenorizada

das regras de funcionamento dos textos de ôfõ e àyájö. Isso nos permitirá apreender os

elementos de sua configuração interna, o que me possibilitará justificar a classificação de

tais textos, como gêneros literários que fogem da simples oralidade, beirando a escrita.

A primeira regra que deve ser observada é que, além de respeitar o número de

repetições determinado para cada tipo de ôfõ e àyájö, o texto inteiro, por mais comprido

que seja, deve ser recitado sem tropeço, do início até o fim, para que se torne eficaz. De

igual importância é também a advertência de que, não se deve omitir nem misturar nenhum

fragmento do texto. De fato, uma condição imprescindível para o uso eficaz de ôfõ e àyájö

é o que se chama de ìgboyà em yorubá. Ou seja, para não tropeçar na hora de recitar os

textos mágicos, é preciso ter sangue frio. Como afirma um ditado yorubano: bí o ní oògùn,

tí o kò ní àyà, òtúbáþtë: àyà níní jà ju oògùn!. Ou seja, se você conhece os textos de ôfõ e

àyájö apropriados para cada situação, mas não tem o sangue frio na hora de usá-los, não te

seriam de valia alguma.

O que isso quer dizer é que, quem procura se servir de textos de ôfõ e àyájö , para

conjurar forças invisíveis com o intuito de se apropriar do seu axé, para um fim

determinado, deve tomar todo cuidado para dizer os textos na exata seqüência determinada

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desde a origem. O ditado yorubano ‘Sàá bí olóògùn ti pèé!’,101 chama atenção para essa

necessidade absoluta de seguir à risca o procedimento, tanto em relação à utilização das

substâncias adequadas, quanto no que diz respeito à reprodução dos textos relevantes de

forma pré-estabelecida – com as pausas e modulações de voz, nos intervalos determinados.

A questão que não pode calar nesta altura vem a ser a seguinte:

• Como se pode garantir que um texto bastante longo, de estrutura muito

eclética e sem grande coesão nem coerência entre as suas partes

constituintes, pode ser aprendido e reproduzido oralmente, em momentos

diversos, sem que se corra o risco de tropeçar ou misturar seus elementos?

Quando Walter Ong (2000:39) se coloca esta mesma pergunta, a conclusão à qual

chegou foi que: ‘na ausência de um sistema de escrita, o processo de fragmentar o

pensamento – ou seja, construir unidades analíticas – é muito arriscado’. O que ele quer

dizer na realidade é que tal exercício intelectual é impossível para sujeitos oriundos de uma

cultura oral, uma vez que ele mesmo já chegou a afirmar, com todas as letras, que as

culturas orais são incapazes de elaborar um pensamento analítico. Um dos argumentos

usados por Ong para apoiar sua afirmação é que, em culturas orais, é impossível que

alguém seja capaz de atingir um nível que o permita fazer ‘absolute verbatim repetition’,

ou seja, repetir, palavra por palavra, um texto analítico, sem cometer nenhuma falha. Ora, é

exatamente isso que é a regra principal que garante a eficácia de textos de ôfõ e àyájö da

maneira que são usados entre os yorubanos.

Para Ong (2000:58), é impossível imaginar que isso aconteça em uma cultura oral,

já que, na sua opinião, não há nem sequer quem garanta que o sujeito repetiu o texto

integral, sem tropeço e sem erro. Sua pergunta retórica já diz tudo:

How such repetition could be verified before sound recordings were known wasunclear, since in the absence of writing the only way to test for verbatim repetitionof lengthy passages would be the simultaneous recitation of the passages by two ormore persons together. Successive recitations could be checked against each other…

Tradução:

100 IGUE, Akanni Mahmoud, trabalho apresentado durante o 14.º Congresso da Associação Lingüística daÁfrica Ocidental, Cotonou, 14-18 de abril de 1980. inédito.101 Significa, literalmente, que um texto mágico deve ser reproduzido exatamente como foi ensinado pelosábio que o confeccionou.

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Como tais repetições poderiam ser verificadas antes da invenção de gravadores,continua sendo uma questão em aberto, já que, na ausência da escrita, a únicamaneira de verificar a repetição correta – palavra por palavra – de trechoscompridos, seria a reprodução simultânea do mesmo trecho por duas ou maisindivíduos. Assim, recitações posteriores poderiam ser verificadasconsecutivamente(...)

O meu conhecimento das regras de funcionamento, e da natureza dos textos de ôfõ e

àyájö , da forma que se usam entre os yorubanos, me permite contestar estas afirmações de

Ong. Em primeiro lugar, acredito que, pelo menos, o texto de ôfõ e àyájö acima transcrito,

qualifica para ser considerado como aquilo que Ong classifica como ‘lengthy passages’

(longos trechos) e ‘analytic thought’ (pensamento analítico). Resta saber agora se na

verdade, como sugere Ong, não há como verificar a fidelidade ao texto original durante a

reprodução consecutiva de tais textos.

A este respeito, a minha resposta é simples: quem verifica se o texto foi reproduzido

da maneira exata ou não, é a entidade sobrenatural, cujo axé está sendo solicitado ou

conjurado, mediante o uso do ôfõ e àyájö. Ou seja, sendo que tais textos são usados em

situações de extrema urgência e perigo, como por exemplo, se alguém for picado por uma

cobra e o veneno da cobra precisa ser retirado do seu corpo, a eficácia do ôfõ ejò (usado

para extrair veneno de cobra), será comprovada se, após o uso do ôfõ, a pessoa que foi

mordida fica boa, sem ter que ir ao hospital, ou se ela acaba por morrer do veneno da cobra.

Ficando assim comprovada a possibilidade e a realidade de memorizar e reproduzir

em determinadas eventualidades determinados textos de ôfõ e àyájö entre os yorubanos

para se apropriar do axé de certas entidades invisíveis, a minha tese é que, seja qual for a

técnica usada para atingir tal feito, considerado impossível ou improvável pela

epistemologia ocidental tal qual está sustentada por Ong e outros, tais textos não devem

mais ser considerados como textos de pura natureza oral, senão como textos da oralitura.

Como procurei afirmar a respeito dos textos de oríkì, visto que tais textos são,

virtualmente “escritos” na memória ativa de seus usuários, não devem mais ser chamados

de textos puramente orais.

Uma cena análoga se torna possível hoje, com a técnica de escrever com o

computador. Quando se digitam as palavras no teclado, os textos aparecem na tela do

computador conforme a formatação prévia da página virtual. Tais textos podem ser salva na

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memória do computador, para que possam ser recuperados em momentos posteriores. Um

texto assim produzido pode ser reproduzido posteriormente, sem que seja necessário

imprimi-lo no papel. A fidelidade da memória do computador garante que o texto não

sofreu nenhuma alteração desde que tenha sido salvo de maneira correta.

Além do mais, o uso de certos ôfõ e ògèdè, que se chamam de Oògùn Ìÿõyè, usados,

especificamente, para que qualquer coisa que uma pessoa guarde na memória, nunca mais

se apague, atesta para o uso maciço de certa ‘tecnologia’, mágica ou não, cuja eficácia

ultrapassa os simples ‘aides-mémoire’, aos quais Ong se refere no seu texto. O que isso

prova é que a dúvida que atormenta investigadores da palavra, como Walter Ong, não é

fundamentada nem justificada, uma vez que, como ele próprio citou, culturas (como a

yorubana) que desenvolvem, ao longo dos séculos, a prática que ele mesmo denomina de

‘verbalização ritual’, são capazes de reproduzir palavra-por-palavra qualquer texto bastante

comprido, memorizado para ser usado em determinadas circunstâncias e de maneiras

específicas. Não tem cabimento, portanto, o cepticismo e a incredulidade com que Ong

(2000: 62-3) se refere ao trabalho de outros especialistas como Joel Sherzer (1982) e

William Johnson (1979a, 1979b) que conseguiram comprovar, usando a tecnologia da

gravação, que a arte de memorizar e reproduzir ‘verbatim’ textos mágicos entre os Cuna, da

costa de Panamá, e a poesia clássica, entre os Somalis da África Oriental, é uma realidade.

De fato, fica difícil não se irritar com a obstinação com que Ong (2000: 64-5) cai na

contradição quando, se apoiando em Chafes (1982) insiste em contestar a prova definitiva

da eficácia do mecanismo de memorização e reprodução exata de textos como ôfõ, àyájö e

ògèdè. De fato, à luz do que já vimos a respeito da funcionalidade de tais textos, não há

como não perder a paciência com a polarização desnecessária entre os códigos da oralidade

e da escrita, implícita em afirmações como essa:

(…) Ritual language as compared to colloquial language is like writing in that it hasa permanence which colloquial language does not. The same oral ritual is presentedagain and again: not verbatim, to be sure, but with a content, style, and formulaicstructure which remain constant from performance to performance. There can belittle doubt, all in all, that in oral cultures generally, by far most of the oral recitationfall toward the flexible end of the continuum, and even in ritual (…)

Tradução:Comparada com a linguagem coloquial, a linguagem ritual se parece com a escritana medida em que possui uma permanência que a linguagem coloquial não tem. Omesmo ritual oral se repete sempre: não palavra por palavra, claro, mas com um

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conteúdo, estilo, e estrutura ‘formulaica’ que permanece constante de uma recitaçãoa outra. Não há dúvida alguma que, no fundo, em toda cultura oral de modo geral, amaioria das recitações orais caem na faixa da flexibilidade dentro do esquema docontinuum (que vai do mais rígido ao mais flexível). Isso é verdade mesmo paratextos ritualísticos (...) (grifos meus).

Hoje, mais que nunca, afirmações como essas deixam de ter cabimento, já que o

avanço da tecnologia permite vivenciar as realidades que antes se limitavam ao chamado

‘mundo mágico de povos primitivos’. O uso de senhas para ter acesso a arquivos restritos

no computador hoje facilita uma plena compreensão da ‘tecnologia avançada’ que sempre

existia entre povos como os yorubanos, como o que se verifica na concepção de textos

como ôfõ, àyájö e ògèdè. Da mesma forma que o acesso a um arquivo protegido é negado a

quem não saiba a senha; da mesma forma que o acesso é negado também, quando quem

sabe a senha se confunde na hora de digitá-la, a mínima falha na hora de reproduzir os

textos de ôfõ, àyájö e ògèdè, ‘gravados na memória’, acabará travando o sistema de

comunicação, tornando impossível a execução de arquivos secretos que representam as

forças ocultas cujo axé se procura acessar na hora de fazer uso de tais textos.

Levando mais adiante essa analogia, digo ainda que, da mesma forma que a

linguagem da informática não permite nenhuma ‘flexibilidade’ na hora de digitar as senhas,

ou seja, não se pode digitar em maiúsculas uma senha que foi criada em minúsculas,

descarta-se da mesma forma, a possibilidade da flexibilidade na reprodução de textos de

ôfõ, àyájö e ògèdè como insinua Ong no trecho citado acima.

Portanto, não seria nenhum exagero afirmar que, através de mecanismos que se

evidenciam no armazenamento e na reprodução exata dos textos de ôfõ, àyájö, ògèdè, e

outros textos do mesmo gênero, é lícito afirmar que o processo da ‘tecnologização da

palavra’,102 já foi iniciado e aperfeiçoado, dentro da cultura yorubana, desde os tempos

primordiais, bem antes da invenção das escritas quirográficas, tipográficas e todo o mais,

que tanto ofuscam e impressionam Ong e seus semelhantes.

Com efeito, uma análise da terceira e última categoria de textos, que denomino de

corpus da oralitura yorubana, deixará mais claro o meu argumento. Passarei, pois a abordar

em seguida os textos oraculares do odù-Ifá, um sistema yorubano todo-abrangente, dotado

de sua própria escrita.

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2.3.3.2 Odù Ifá: sistema ontológico e compêndio do saber yorubano

Muitos foram os pesquisadores yorubanos e estrangeiros que se tem dedicado ao

estudo de Ifá. Quase sempre os que se interessam ao estudo da cosmogonia yorubana

começam suas pesquisas a partir de Ifá. Porém, é necessário perguntar:

• O que é Ifá?

• O que significam os textos de Odù Ifá?

• Como se usam?

• Para que servem?

2.3.3.2.1 O que é Ifá, e, o que significa Odù Ifá?

Uma primeira definição de Ifá pode ser apreendida na Introdução do livro Ifá: A

Complete Divination de Ayo Salami (2002: ix):

Ifá can simply be said to be the religion or divinity brought into the world byÕrúnmìlà. He is the custodian of the Deity, moral, economic, language, origin, andmetaphysical orders of the Yorùbá nation and of its believers throughout the world.

Tradução:Ifá pode ser definido simplesmente como a religião ou a divindade introduzida aomundo por Õrúnmìlà. Trata-se da verdadeira divindade zeladora da moralidade, daeconomia, da língua, da origem e das forças metafísicas da nação yorubana e deseus seguidores espalhados pelo mundo inteiro.

Da sua parte, em The Healing Power of Sacrifice (2000:9), Ifayemi Elebuibon

define e explica a centralidade de Ifá, em tudo que diz respeito à cosmovisão yorubana:

Ifá is highly placed and referred to among the major divinities not only within theYorùbá native land but also in the Diaspora. Spates of modernity not-withstanding,Ifá continues to flourish and to remain the supreme authority on Yorùbá culture,socio-ethics, arts and religion. It encompasses the Yorùbá World-view, cosmology,faiths and values. Succintly put, Ifá is a very deep and broad knowledge about thereligious and mundane life of the Yorùbá both in the past and in the present. It alsoforecasts the future.

Tradução:Ifá é uma divindade que goza de alta estima entre as principais divindades do povoyorubano, tanto na África como na Diáspora. A despeito da incursão da

102 O subtítulo do livro de Ong é efetivamente: “The Technologizing of the Word” (A tecnologização dapalavra).

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modernidade na vida desse povo, Ifá continua florescendo e permanece como amaior autoridade em tudo que diz respeito à cultura, ética social, arte e religião dopovo yorubano. É o sistema que mais engloba a sua visão do mundo, suacosmologia, sua fé e seus valores. Resumindo, Ifá é um sistema profundo de saberextensivo sobre a vida religiosa e mundana dos yorubanos, tanto no seu passadocomo no presente. Seu alcance também se extende ao futuro).

Essa definição deixa claro que Ifá é, de fato, a maior autoridade em todo e qualquer

aspecto da vida entre os yorubanos. A opinião é corroborada por vários outros estudiosos

do tema, entre os quais podemos citar o duo de Olu Daramola e Jeje (1975:250), os quais

fizeram a seguinte afirmação na sua obra, publicada pela primeira vez em 1967:

Ní ayé àtijö, ka sí ohunkohun tí a lè ÿe ní ilê Yorùbá láì lô bèèrè lodo Ifá. Tí a bá fëfë ìyàwó; a ó lo bèèrè bóyá wúñdíá tí ôkàn wa ÿô ni yóò jë ìyàwó rere tàbí bëêkö. Bía bá fë dá ôjö ìyàwó, ôwö Ifá ni a ó ti wádìí. Bí a bá bimo, a ní lati lô bèèrè Çÿê-m-`bàlê ômô náà lodo Ifá. Eléyì ni çÿê çni tí ômô náà to wá sáyé àti orúkô tí yóo máajë...Bí ara çnìkan kò bá dá, ôwö Ifá ni a ó ti bèèrè bóyá çni náà yóò là tabí kò níílà...Bí a bá fë múlê ilé, a ó bèèrè löwö Ifá, ti a bá fë kàn ilé, Ifá ni yío ba wa yan ôjötí ó bá dára. Àwôn ohun tí à þÿe ní ilê Yorùbá tí a kìí fi ti Ifá si kò wöpõ tí ó bá tilêwà, nítorí ôwô Ifá ni a ti ðbèèrè çni tí o máa jôba, ôwö rê ni a ti mbèèrè àwôn tí amáa fi jç oyè yóókù láàrín ilù...Eleyí yóò fihàn wá kedere irú ipò tí àwa Yorùbá fiIfá sí.

(Antigamente, entre os yorubanos, não existia ramo da vida humana que nãoenvolvia uma consulta obrigatória ao oráculo de Ifá. Na hora de procurar uma futuraesposa, era necessário inquerir de Ifá pra saber se a moça dos nossos sonhos fariauma esposa perfeita ou não. Quando se quer fixar o dia do próprio casamento, eraimprescindível procurar saber de Ifá o dia mais propício. Quando nasce um filhopara uma família, os pais do recém-nascido terão que consultar Ifá para saber “seucaminho” na vida, ou seja, saber qual ancestral da família se reincarnou no recém-chegado, que nome dar ao filho etc. Se alguém se adoece, era necessário procurarsaber de Ifá que procedimentos seguir para curá-lo ou saber se aquela doença levariaà sua morte. Quando alguém pretende construir uma casa, era junto de Ifá que secostumava pedir a escolha do dia mais propício para iniciar ou concluir tal projeto.De fato, são raras as coisas que se empreendem na sociedade yorubana sem aparticipação e o consentimento de Ifá. Excusa dizer que quando uma cidade precisaeleger um novo rei, a indicação do candidato perfeito deveria partir do oráculo deIfá... Tudo isso deixa claro o papel primordial de Ifá na vida dos yorubanos)

Podemos citar estudiosos como Wande Abimbola (1969, 1975, 2005), William

Bascom (1969), Pierre Fátúmbí Verger (1954) e C.L. Adeoye (1985), entre vários

especialistas que também se debruçaram sobre o tema e a pertinência do sistema de Ifá

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entre os yorubanos. De fato, o sistema oracular de Ifá representa o principal elemento

cultural que o povo yorubano legou para os diversos povos, com os quais tiveram relações.

De acordo com Abimbola e Ishola (2005):

Ifá [is] a West African geomantic system popular among several West Africangroups like the Yoruba, Igbo, Edo, Bete, Bariba, Eve, Fon, Ebira, Jukun amongothers. It is stated that "among some of these groups like the Eve of Togo andGhana, the Fon of Benin Republic, the Bete of Cross River State and others, Ifa hasbeen playing an important role in their social, political, and cultural lives.

Tradução:[Ifá é um sistema geomântico bem difundido entre diversos povos da ÁfricaOcidental, tais como os Yorubanos, os Igbo, Edo, Bete, Bariba, Ewe, Fon, Ebira eJukun, dentre outros. Afirma-se que, entre os ewe do Togo e Gana, os fons daRepública do Benin, o povo Bete do estado nigeriano de Cross Rivers e muitosoutros desses povos africanos, Ifá tem tido, ao longo do tempo, um papel importantena vida social, política e cultural de suas respectivas comunidades]

Entre os Fons (Jeje) do antigo Daomé e o povo Ewe das atuais Repúblicas de Togo

e de Gana, Ifá se conhece como Fá e Afã respectivamente (Verger, 1954, Hounwanou,

1997). Do lado de cá do Atlântico Negro, vários são, também, as sociedades afro-

americanas e caribenhas, onde Ifá tem um papel primordial no dia-a-dia das populações de

ascendência africana. De Cuba temos os seguintes propósitos a respeito de Ifá, fornecidos

por Martínez e Potts (2003:56-7)

El oráculo de Ifá es todo um complejo religioso con una independência bien

marcada respecto a la Regla de Osha, aunque es respectado por todos los creyentes

de esta religión. Es, sin duda, el más complejo de los três sistemas adivinatorios

empleados por los yorubá...

En el oráculo de Ifá están presentes interrogaciones ontológicas que el hombre seplantea siempre: la búsqueda de la verdad, el origen de la vida, su razón de ser, eldestino de la humanidad y el destino individual.Lo consideramos un complejo socio-filosófico-cultural dentro de una concepciónreligiosa del mundo. Es también un compendio de poemas, leyendas, parábolas,fábulas, cuentos, mitos, enigmas y refranes, en los cuales se postula una visión delmundo, de las relaciones entre los hombres y de cómo formular y enfrentar tanto losproblemas trascendentales como los cotidianos…La sabiduría de Orula (Õrúnmìlà) refleja un pensamiento conceptual de profundasignificación, las reflexiones y la sapiencia milenaria del pueblo yorubá (…).

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Do lado brasileiro, embora o sistema oracular que vingou dentro do culto de matriz

nagô-yorubana não seja o complexo Ifá-Õrúnmìlà, senão a versão simplificada, derivada do

mesmo, e que se costuma chamar de Erindilogun, no qual o processo oracular se faz

mediante o uso de dezesseis búzios, que podem ser manipulados tanto por homens como

por mulheres, permitindo desta maneira que as ialorixás do Candomblé brasileiro possam

deles se servir, para as necessidades divinatórias, uma vez que, conforme nos informam

pesquisadores do Candomblé brasileiro, os poucos babaláwos – sacerdotes de Ifá – que

por aqui passaram, não deixaram discípulos (Verger, 1954, p. 103-104), a tradição de Ifá

ainda se conhece, através desse sistema de erindinlogun, e seus textos, chamados Odú, se

usam pelo povo-de-santo. Até o momento atual, alguma literatura significativa ainda está

disponível a respeito de Ifá no Brasil103. Agora, a nossa próxima tarefa é saber como

funciona o sistema de Odù-Ifá.

2.3.3.2.2 Odù: textos sagrados de Ifá

Ifayemi Elebuibon (2000:17) refere a Ifá ‘como um sistema intelectual que encerra

um corpus bem organizado de pensamento profundamente analítico.’ Com isso, ele está se

referindo, aos textos sagrados de Ifá, ou seja, os Odù-Ifá104.

De acordo com os vários autores já citados, o sistema de Ifá se personifica em

Õrúnmìlà, o irúnmôlê conhecido como baba Ifá (pai de Ifá). Apoiado na mitologia acerca

de sua pessoa, os yorubanos acreditam que Õrúnmìlà era o mais sábio de todos os 401

irúnmôlê (orixás) que desceram ao mundo, logo após que o mundo foi criado em Ilé-Ifê.

De acordo com a mitologia yorubana da criação do universo, Õrúnmìlà foi um dos

dessesseis orixás principais que, de fato, participaram ativamente na criação do mundo,

sendo ele o assessor principal de Olódùmare, o próprio Deus criador, no momento em que

cada ser criado se apresenta diante desse para receber o seu destino. Por isso que Õrúnmìlà

ficou conhecido como Çlërì ìpín, ou seja, única testemunha do destino de todos. Este fato

103 Ver, dentre outros BRAGA, Júlio, O jogo de búzio...; MIRANDA, Agenor, Os Caminhos de Odu eSANTOS, Juana Elbein dos, 1986.104 Com efeito, Kola Abimbola, um dos agentes da divulgação do sistema de Ifá no espaço globalcontemporâneo, secretário de Orisaworld (Congresso Mundial da Tradição e Cultura dos Orixás), chegou aafirmar que há sete diversos campos do saber humano, contemplados no sistema de Ifá. Conforme enumeroudurante uma intervenção acadêmica aquando do IX Congresso Mundial de Tradição e Cultura Iorubá queaconteceu na Universidade do Estado do Rio de Janeiro em agosto de 2005, o sistema de Ifá engloba osseguintes aspectos da vida humana: história, mitologia, filosofia, literatura, religião, medicina e música.

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singulariza Õrúnmìlà entre todos os outros orixás e o transforma em uma espécie de

primus-inter-pares, através de quem os outros orixás se comunicam com seus adeptos.

Também devido ao fato de ele ter sido o único que testemunhou o ato individual, feito por

cada indivíduo, na hora de escolher o destino que orientará sua vida terrestre, desde o

mundo espiritual, Õrúnmìlà tornou-se o melhor conselheiro para cada ser no mundo, que

queira saber o que está ‘escrito’ no orí que foi escolhido durante aquele ritual primordial de

àkúnlêyàn. (Ayoh’OMIDIRE, 2004: 128-131; LAWAL, 2005; ELEBUIBON, 2000).

Acredita-se, na ontologia yorubana, que cada ser, ao se apresentar para esse ritual

que precede sua vinda ao mundo físico, ajoelha-se em frente de Olódùmarè, o Deus-

Criador, para que esse lhe assentasse o orí contendo seu destino. Mas, uma vez assentado o

destino, a pessoa esquece, obrigatoriamente, o conteúdo do orí que acaba de escolher,

fazendo com que, quando chega ao mundo, a pessoa vive sua existência sem a vantagem de

saber o rumo que lhe foi determinado pelo destino.

Assim, se por acaso, a pessoa fica desiludida com o rumo de sua vida, o único jeito

seria procurar saber daquele que presenciou o ritual da escolha de seu destino, isto é, do

próprio Õrúnmìlà, para que esse lhe revelasse o que o destino lhe reserva, indicando-lhe

também a melhor maneira de remediar as suas desavenças com seu orí nesse mundo105.

De igual modo, como já foi dito, os outros orixás dependem de Õrúnmìlà, para se

comunicarem com seus adeptos no mundo. Isso porque, quando os indivíduos se

apresentam diante de Õrúnmìlà, para pedir socorro sobre seus problemas no mundo, esse

tem a autorização de indicá-lhes o orixá que estaria responsável para solucionar aquele

problema para o indivíduo. Portanto, Õrúnmìlà serve de intermediário entre tal orixá e o

consulente, indicando a vontade do orixá e o sacrifício que esse exige do indivíduo para lhe

dar o apoio necessário.

Ao cumprir essas diversas funções junto aos seres humanos e junto aos outros

orixás, Õrúnmìlà acaba se tornando a maior autoridade sobre todos os ramos do saber,

podendo seus sacerdotes cumprir, destarte, a função de intelectual por execelência entre os

yorubanos. Portanto, como aponta o duo de estudiosos cubanos no texto já citado, o sistema

de Ifá, através do qual os babaláwos, sacerdotes de Õrúnmìlà, interferem na vida dos

homens e dos orixás, é reconhecidamente o mais completo sistema epistemológico,

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filosófico, religioso e cultural entre os yorubanos, através de quem o sistema foi divulgado

para outros povos africanos e diaspóricos. Cito mais uma vez Elebuibon (2000: 19):

However, despite the terrible torrents of evangelisation by foreign religions, Ifácontinues to flourish and prosper. This is due, according to Abímbólá (1975) to itsvery good organization and its rigorousity as an intellectual discipline. Thisstructural organization and the long term training which it entails make quackpriests to be discernible and ill-prosper within the system.

Tradução:Porém, não obstante o estrago provocado pelas campanhas de proselitismo dasreligiões importadas, Ifá não pára de crescer e está cada vez mais procurado nasociedade yorubana. Este fato é devido, conforme afirma Abimbola (1975), à suaorganização bem estabelecida e ao rigor de seus ensinamentos intelectuais. Essaorganização estrutural, e o fato de que a formação de seus sacerdotes leva tantotempo, acaba tornando difícil para pessoas despreparadas poderem sobreviver eprosperar dentro do sistema.

Essa afirmação nos leva a voltar a colocar a série de perguntas com as quais

iniciamos este segmento:

• O que é, e como funciona o sistema de Ifá-Õrúnmìlà?

• Que tipo de intelectual é o babaláwo yorubano?

Wande Abímbólá, um dos pioneiros do estudo sistemático do corpus de Ifá , e autor

dos três volumes de Ìjìnlê ohùn çnu Ifá (A voz misteriosa de Ifá), foi quem nos fornece a

resposta para a primeira pergunta:

The Ifá literary corpus is by far the richest genre of Yorùbá oral poetry. It is dividedinto two hundred and fifty-six categories known as Odù out of which the firstsixteen are styled major, and the remaining two hundred and forty, minor Odù. EachOdù contains an unspecified number of poems known as çsç. The work of thepresent investigator over the past six years has revealed that there are severalhundreds of extant çsç in each Odù106.Tradução:O corpus literário de Ifá é com certeza o mais rico gênero da poesia oral yorubana.Ele se divide em duzentos e cinqüenta e seis categorias chamados Odù, entre osquais os primeiros dezesseis Odùs são conhecidos como Odùs principais enquantoos restantes duzentos e quarenta são chamados Odùs segundários. Cada Odù estácomposto de um número indeterminado de poemas chamados çsç. Os estudos do

105 É justamente esse que é o sentido da reza feita para o orí durante o ritual de bori, quando o orí é rogado,entre outros, com o seguinte oríkì: Orí Àpéré, orí ayàn mô mõ.106 Cf. ABIMBOLA, Wande, “Notes on the Collection, transcription, Translation and Analysis of YorubáOral Literature”, in Afolayan, Adebisi (ed.), 1982, p. 74.

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presente pesquisador ao longo dos últimos seis anos têm demonstrado que, paracada Odù, ainda existem hoje centenas desses çsç em circulação.

Portanto, os Odùs representam o cerne do sistema de Ifá. Conforme relata a

mitologia, o termo Odù decorre de Ôlöfin-Odù, que era o nome da mulher do próprio

Õrúnmìlà. A mesma que o assessoriava em todos os seus trabalhos e que acabou se

transformando na própria força com a qual Õrúnmìlà conseguia cumprir as suas funções

oraculares entres os humanos e os orixás (ELEBUIBON, 2000:18). Por isso que o

derradeiro ritual com o qual se confirma o babaláwo, sacerdote de Ifá envolve a revelação

do segredo de “Odù”, ritual esse que o aprendiz-babaláwo vivencia no bosque sagrado,

chamado justamente “Igbódù”. Assim, a formação de um babaláwo é tida como incompleta

enquanto ele não passe por este estágio. Quem o fizer, passa a ser chamado de Awo-Olodù,

ou seja, sacerdote supremo de Ifá. (ELEBUIBON, 2000; DREWAL, 1992).

A formação de um babaláwo é, essencialmente, uma formação intelectual. Os

especialistas do assunto estão todos de acordo de que, na verdade, trata-se de uma formação

que pode durar longos anos, senão a vida inteira107. Elebuibon divide essa formação em

nove estágios que não são separáveis, mas que formam um processo contínuo. Passo a

transcrever esses estágios, conforme foram apresentados por Elebuibon (2000:19-21):

One major rudiment in the training of the Ifá priest is the memorization ofthe 256 chapters of Odù Ifá. These chapters are of varying lengths and linguisticcomplexities. The first assignment is how to manipulate Õpêlê (the divinationchain) in order to identify the sixteen major Odù. This process is technically knownas sísí õpêlê (the art of opening the divination chain).

(…) In the próess of divination, (the Ifá apprentice) is instructed to be veryobservant so that he can master the corresponding sacrifice to be offered (for eachOdù). He listens and choruses Ifá chants after his master. He is also invited to assistin the preparation of herbal medicine for the clients. He can be sent to the bush to goand fetch animates and inanimates that would be used in the preparation of herbalmedicine. His duties also include helping to make sacrifices prescribed. Throughthis involvement he gradually becomes knowledgeable in plant identification,naming and their uses. Having learned the sixteen major Odù, the next step is toconcentrate on Ikin Ifá. This process is technically referred to as Dídá Ôwö.At this stage, the Ifá apprentice is taught the various signatures of Odù and theircorresponding names and verses. He will be encouraged to manipulate instrumentsof divination by himself so as to refresh his memory from time to time.

107 Wande Abimbola e Akinwumi Ishola falam de uma média de vinte anos para formar um babaláwo. Cf.Texto apresentado à Comissão da Proclamação das Obras-primas dos Patrimônios Orais e Intangíveis daHumanidade da UNESCO, 2005.

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The next stage following dídá ôwö is Õñtê alê. This process involves how toknow the correct finger with which to imprint a signature on Ifá board. This processalways preceeds the recitation of Ifá verses. And is closely followed by Ìbò Gbígbà.Ìbò Gbígbà can be through divination chain or through ikin Ifá. What ìbo gbígbàstands for is the identification of which proposition is to be assigned the right or lefthand. Each opposing side stands for either Yes or No respectively (…)

Next is Ifá ríran. This is the repetition and the subsequent committing tomemory of the Ifá verses. It also includes the interpretation of God’s will to theclient as contained in the Ifá corpus. In this learning process, a trainee starts withtwo verses from the major Odù so that he can master at least four withing a periodof five days. As a process of evaluation, he is expected to recite them to his master.Then, necessary corrections are made before he could be allowed to proceed to thenext verse (...)

Having achieved some level of mastery in the recitation of a number of Ifápoems within the 256 Odù (scriptures) of Ifá, he will then move to the acquisition ofthe technicalities involved in sacrificial offering. This stage presupposes hisknowledge of what Ifá says at a particular point in time. This is referred to as ÀÿçIfá Pípa. Here, he would learn how to contextualize a particular verse to theproblem and situation on ground. Àÿç Ifá Pípa is almost a concommitant stage withÕkàràrà Çbô stage. This stage is when he is able to apportion sacrifice according tothe specific nature of problems.

Initiation caps the training stages up. Having passed through the preceedingstages to the satisfaction of his master, different Ifá priests will now be invited fromvarious locations according to the popularity and the fame of the master on the onehand and the influence and wishes of the parents of the graduate on the other. Thisceremony often lasts for seven days. A major part of this ceremony is done atIgbódù (the Odù grove).

However, the graduate being able to enter and complete Igbódù rites doesnot terminate his training. In fact, the training of Ifá priest involves a continuouslearning process. He still has to go from one priest to another seeking knowledge.This is however based on the suggestions of his master who would point to thosethat are adepts in some specialized areas to him… Thus the Aköÿë Ifá’s quest forknowledge, wisdom and versatility is a life-long encounter (…)

Tradução:

Uma fase importante na formação do sacerdote de Ifá é a memorização dosduzentos e cinqüenta e seis volumes108 que compõem o corpus de Odù-Ifá. Esseslivros são de comprimentos e complexidades variáveis. A primeira tarefa (doaprendiz-babaláwo) é saber manipular o Õpêlê (o rosário oracular), de forma apoder identificar os dezesseis Odùs principais. Essa fase se chama tecnicamente desísí Õpêlê (abrindo o rosário oracular.

108 Sempre prefiro traduzir a palavra Odù por “livro” ou “volume”. Isso porque, cada Odù aborda umatemática diferente e sua interpretação não é decorrente de nenhum outro Odù. Além do mais, a tradução dosentido lato de Odù em yorubá seria “livro cheio”, ou seja, texto voluminoso, como se pode inferir pelopróprio nome que se dá ao Deus-Criador em yorubá, isto é, Olódùmarè – aquele que possui o odù mais cheioe indesvendável. (Cf. IDOWU, 1967).

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(...) Cada vez que seu mestre faz um jogo oracular, (o apprendiz-babaláwo) tem queficar atento para poder aprender o sacrifício que corresponde a cada Odù. Ele aindatem a obrigação de participar ativamente da cantiga que seu mestre puxa, paraacompanhar todo o processo. O aprendiz deve ajudar seu mestre na preparação deervas medicinais, para os clientes. Seria ele quem vai ter que ir ao mato para buscarplantas e animais necessários para preparar tais medicinas. É também o dever deleajudar a realizar o sacrifício prescrito por Ifá. A través deste envolvimento, oapprendiz se torna cada vez mais apto na identificação de plantas, seus nomes e usosdiversos. Tendo conseguido aprender os dezesseis Odùs principais, o próximo passopara o aprendiz-babaláwo é concentrar-se no processo de familiarização com o ikinIfá. Esse processo se conhece tecnicamente como Dídá Ôwö.Neste estágio do seu aprendizado, o aprendiz é ensinado as assinaturas dos diversosOdùs, aprendendo ao mesmo tempo seus nomes respectivos e os diversos ‘poemas’usados para interpretá-los. De vez em quando, o aprendiz seria incentivado amanipular, sozinho, os instrumentos oraculares, para que possa atualizar osconhecimentos que vem acumulando.O próximo passo depois de dídá ôwö é Õñtê alê. É neste nível que o aprendizaprende a identificar o dedo correto a ser usado para imprimir as assinaturas de Ifásobre a bandeja oracular. Este processo sempre precede a fase da aprendizagem darecitação dos poemas de Ifá, mas é seguida imediatamente pelo estágio de aprendercomo se faz ìbo gbígbà, que pode ser feita seja com o rosário oracular ou com ikinIfá. O que se aprende nesse estágio de ìbo gbígbà é, essencialmente, a identificaçãode qual ‘resposta’ associar respectivamente à mão direita ou a esquerda, já que cadamão oposta representa ‘sim’ ou ‘não’...O próximo estágio seria o Ifá ríran. Trata-se do estágio da repetição e memorizaçãodos versos poéticos de Ifá. É ainda neste módulo que o aprendiz aprende ainterpretar a vontade de Deus aos seus consulentes, conforme a leitura que se faz daassinatura e do corpus de Ifá. Neste processo, o aprendiz começa com dois livrosdos principais Odùs. Assim, seria possível para ele memorizar até quatro Odùs, numespaço de cinco dias. Para avaliar seu progresso, o mestre lhe pedirá que recite seusversos para ele, afim de poder corrigir quaisquer falhas, antes de deixá-lo passaradiante.Tendo dominado suficientemente a arte da recitação de um número razoável dosduzento e cinqüenta e seis Odus (escrituras) de Ifá, o aprendiz já poderá começar oprocesso da aquisição das técnicas de fazer sacrifícios. Este estágio presupõe que elejá teria dominado completamente a doutrina de Ifá e saber como proceder a cadainstante. É isso que se refere como Àÿç Ifá Pípa. Assim, o aprendiz aprenderá nestenível como contextualizar os textos de Odù Ifá para cada situação e problema deseus consulentes. Àÿç Ifá Pípa é quase um estágio concomitante com o de ÕkàràràÇbô, no qual quando o aprendiz aprende a decidir sobre o tipo de sacrifícioadequado para cada situação.O último estágio é a iniciação do aprendiz-babaláwo. Tendo cumprido todas asexigências dos estágios necessários, seu mestre convidará vários sacerdotes dediversas localidades, conforme sua própria popularidade, e conforme a afluência e avontade dos pais do aprendiz. A cerimônia de iniciação costuma levar sete dias. Aparte mais importante do ritual de inciação acontece no Igbódù, ou seja, o bosquesagrado de Odù.

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Entretanto, o aprendizado de um babaláwo não termina com sua iniciação noIgbódù, antes deve ser dito que sua formação é um processo sem fim. Após ainiciação, o babaláwo recém-formado ainda precisará procurar diversos outrosbabaláwos mais experientes, que seu mestre lhe indicará, para deles aprender osegredo de vários outros aspectos de Ifá, nos quais cada um deles é especialista [...]Portanto, é lícito dizer que a formação de um Aköÿë Ifá é uma procura eterna doconhecimento, da sabedoria e da competência (…) .

Demorei-me na transcrição desse compridíssimo relato do não menos comprido

processo da formação do babaláwo, para poder colocar em evidência, não somente a sua

postura de intelectual, mas também, para justificar a minha discordância da corrente que

interpreta o termo ‘babaláwo’ , simplesmente como pai do segredo. Como gosto tanto de

argumentar, o que faz um sacerdote de Ifá, não é o segredo per se, mas o acúmulo do saber

que ele teria aprendido, ao longo da sua formação e vida sacerdotal. O único segredo que

sua arte envolve é guardar o sigilo, sobre certos aspectos e, sobretudo, o conteúdo do

Igbádù, ou seja, a sagrada cabaça de Odù, que lhe fora descoberta, durante o ritual no

bosque sagrado. Talvez se possa dizer ainda que, na medida que ele entra na confiança de

seus consulentes, tornar-se-ia também necessário, que ele mantivesse em sigilo os detalhes

da vida pessoal das pessoas que procuram seu serviço. Uma situação análoga seria a do

padre católico que se vê obrigado a guardar o segredo da confissão. Para mim, o babaláwo

é, pois, mais do que qualquer outro, um pai do saber, um intelectual, ou, se quiserem, um

detentor da ciência, da metafísica, do saber-fazer oculto e, do conhecimento esotérico,

como sugere Margaret Thompsom Drewal (1982). De resto, Elebuibon (2000) já diz tudo

ao afirmar que: “Ifá priests are the custodians of wisdom and knowledge”109.

Dito isso, gostaria de trabalhar, em seguida, a questão da ‘escrita’, dentro da minha

tese de oralitura no que diz respeito ao corpus de Ifá, isto é, o Odù Ifá.

2.3. 3.2.3 Nem ideografia, nem pictografia, senão criptografia

Como já vimos a partir da definição, fornecida por Elebuibon e Abimbola, Odù-Ifa

é o nome que se dá aos duzentos e cinqüenta e seis “livros” da ‘escritura’ (Scripture), que

servem para explicitar e interpretar o sistema oracular de Ifá. Conforme Abimbola ainda

109 Tradução: Os sacerdotes de Ifá são depositários por excelência do saber e do conhecimento. Op. cit. p. 23.

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tomou o cuidado de apontar, cada um desses Odùs é composto de inúmeros trechos ou

poemas110 chamados çsç.

Elebuibon (2000: 20) nos informa ainda que na formação do sacerdote de Ifá, o

chamado babaláwo, uma das etapas mais importantes é o Ifá ríran, ou seja, o processo da

identificação da assinatura de cada Odù principal, o nome do respectivo Odù e os poemas

que lhe dizem respeito. Conforme afirma Elebuibon, o aprendiz-babaláwo procura

memorizar os poemas de cada Odù que aprende de seu mestre através da repetição

constante, trabalhando dois poemas de cada vez.

O que isso quer dizer é que o aprendiz-babaláwo começa com a memorização de

uma disposição gráfica, que representa cada Odù principal, escrita no Ôpön-Ifá. Isso mostra

claramente que há um suporte visual neste aprendizado. O que acontece é que, para se

chegar ao Odùs principais, o babaláwo precisa de alguns instrumentos técnicos cuja lista é

fornecida por Elebuibon em um capítulo homólogo. Os principais instrumentos da consulta

oracular são dados como:

1. Ìyêrê Òsùn: um tipo de pó ou ‘farinha’ amarela, obtida da árvore chamada

Igi ìrosùn – Baphia Nítida (Papilonaceae)111. O pó é produzido pela ação de

insetos que fazem furos no tronco da dita árvore. O babaláwo procura essa

árvore e dela tira o pó.

2. Ôpön Ifá: uma tábua ou bandeja circular, escultada de madeira com desenhos

esotéricos feitos no seu bordo e nas suas extremidades, para representar as

principais divindades envolvidas no jogo oracular, ou seja, Ifá e Èÿù112.

3. Õpêlê Ifá, uma espécie de rosário de dezessseis contas, oito de cada lado da

corda. Usa-se como substituto de ikin ifá.

4. Ikin Ifá: são os caroços sagrados de dendê, usados no jogo de Ifá. São

preciso dezesseis caroços para cada jogo. Apenas os caroços com quatro ou

110 Ayo Salami (2002) cita o mesmo Abimbola, como tendo afirmado em um trabalho anterior intitulado OjúOdù Mërìndínlógún, que o número exato desses poemas são oitocentos. Portanto baseado nessa afirmação,pode-se dizer que existem 256 X 800, ou seja, um total de 204.800 çsç, dentro dos Odùs do corpus literário deIfá.111 Cf. Abraham 1958, apud, Drewal. 1982, p. 210.112 Um babaláwo chamado Ositola, entrevistado pela pesquisadora norte-americana Margaret ThompsonDrewal, afirma que a forma circular da bandeja de Ifá representa a dimensão física do globo, ou seja, adimensão total do espaço dentro do qual um indivíduo poderia viver e agir. Cf. DREWAL, op. cit. p.53.

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cinco furos são considerados ikin e esses são produzidos por um tipo

específico de dendezeiro, cujos frutos não servem para fazer azeite.

5. Ìbo: são dois pedacinhos de ossos, usados no jogo de Ifá, para saber se a

resposta exata para uma determinada pergunta que se faz ao Ifá é “sim” ou

“não”.

6. Ajere Ifá: é um baú ou uma caixa de madeira esculpida que serve para

guardar os diversos instrumentos de Ifá, como os já mencionados.

7. Ìrökë Ifá: esculpido de madeira ou marfim, esse instrumento tem a forma de

um chifre e é usado pelo babaláwo para chamar a atenção de Ifá, batendo de

leve com o mesmo, os cantos da bandeja oracular, enquanto recita os poemas

de Ifá.

8. Àpò Abirà: serve a mesma função que o ajere, mas é usado quando o

babaláwo sai para jogar Ifá, fora de seu templo habitual.

O que ocorre, pois em um jogo determinado é que, o babaláwo, primeiro coloca e

espalha um pouco do pó de Ìyêrê Òsùn sobre o Ôpön Ifá. Em seguida, ele seleciona os

dezesseis ikin (caroços) a serem usados no jogo e os entrega ao consulente, depois de

recitar sobre eles certas palavras de encantação e oração a Ifá. O consulente aceita os

caroços e fala baixinho seu desejo e a razão da consulta para os ikin, sem, porém, deixar

que o babaláwo ouça esse dialogo. Em seguida, o consulente sela o dialogo que acabou de

ter com Ifá , tocando os caroços à sua testa, ou seja, a seu orí, antes de entregar os caroços

ao babaláwo.

O resto do processo fica por conta do babaláwo, que deve procurar desvendar o

objeto da consulta, interrogando Ifá, mediante a manipulação dos ikin. Primeiro ele roga a

Ifá, pedindo que esse lhe revelasse o problema que o consulente teria apresentado. Naquele

momento, o babaláwo reconhece que o seu papel não passa do de simples mediador entre

Ifá e o consulente, com quem o Ifá agora partilha um segredo (awo), por isso, o babaláwo

afirma com humildade: “Ifá o gbo o, ìwô awo, ohun awo, èmi õgbërì”113. O próximo passo

é crucial para o sucesso do jogo, eis como Elebuibon (2000: 24-25) o descreve:

113Tradução: Ifá me atenda, por favor. Enquanto vocês dois são awo neste momento (conhecedores da mesmaverdade, detentores do mesmo segredo), eu não passo de um ignorante, desconheço o que esta pessoa tepediu, mas, por favor, Ifá, não deixe de me revelar a verdade.

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(…) Ifá priest, having completed all the above (initial) rituals, would hold the ikin-Ifá with his two hands and touch them to the client’s head. Next, he would try asmuch as possible to take ALL the Ikin at the same time with just his right palm.Meanwhile, if one ikin remains inside his left hand palm, he would make twoupright marks with (his) right finger on (the) board (Ôpön Ifá) that contains (the)yellow Ìyêrê Òsùn.However, if there are two that remain, he would make just one upright finger-markon the tray. This process will continue until the priest has four marks on each side.(i.e. two rows of finger printed marks). The marks at (sic) each side would definitelydepict an Ifá signature. That is, the marks will give a feature that will signify aparticular Ifá verse. He then goes ahead to chant the verse. The semantic nuances ofthe verse so chanted should provide an eye-opener to the solution of the client’sproblem (…)It should be noted that all the signatures of the major Odù carry the names méjì-méjì. The names are based on the sixteen possible patterns of arranging the fourperpendicular lines. This is how all the sixteen principal Odù and the rest minor twohundred and forty, totalling two hundred and fifty-six, are derived.Tradução:Após os rituais iniciais, o sacerdote de Ifá segura os ikin em suas mãos e os põemem contato com a testa (orí) do consulente. Feito isso, com a mão direita, ele vaitentar pegar TODOS os 16 ikin que se encontram na sua mão esquerda. Se nesteprocesso fica um ikin na palma esquerda que ele não conseguiu pegar, ele inscreveduas marcas verticais, com o dedo maior, sobre o Ôpön Ifá, a bandeja oracular,previamente coberta de Ìyêrê Òsùn, o pó amarelo.Porém, se ficar dois caroços de ikin na sua mão esquerda, ele só inscreve uma únicamarca vertical com dedo maior. O sacerdote continua esse processo até queapareçam na bandeja duas colunas de quatro marcas verticais. Cada colunarepresenta a assinatura de um Odù. Isso quer dizer que a coluna de marcas vaicorresponder a um texto determinado de Ifá. Em seguida, o sacerdote passa a recitaresse texto. É através das associações desse texto que ele descobrirá o problema doconsulente e sua possível solução (...)Convém mencionar aqui que as assinaturas dos principais Odùs têm o nome deméjì-méjì. Tais nomes se baseiam sobre as dezesseis maneiras possíveis dadisposição das colunas de marcas perpendiculares. É assim que se derivam osnomes e identificação de todos os 265 Odùs (...)

Essencialmente, este processo mostra como o babaláwo se serve, de fato, de uma

forma de escrita, para cumprir seu papel de mediador oracular. Ele tem que primeiro

escrever os sinais, para chegar a desvendar a assinatura do Odù que lhe revelaria a

mensagem de Ifá e sua resposta ao problema do consulente. Para que se tenha uma idéia

clara de como funciona essa escrita, reproduzo, a seguir, as assinaturas dos dezesseis Odù s

principais:

2.3. 3.2.4 Os dezesseis Odùs principais:

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1. Èjì Ogbè: () () 2. Õyêkú meji: () () () ()

() () () () () ()

() () () () () ()

() () () () () ()

3. Ìwòrì méjì: () () () () 4. Òdí méjì: () ()

() () () () () ()

() () () () () ()

() () () () () ()

5. Õbàrà méjì: () () 6. Õkànràn méjì: () () () ()

() () () () () () () ()

() () () () () () () ()

() () () () () ()

7. Ìrosùn méjì: () () 8. Õwönrín méjí: () () () ()

() () () () () ()

() () () () () () () ()

() () () () () ()

9. Ògúndá méjì: () () 10. Õsá méjì: () () () ()

() () () ()

() () () ()

() () () () () ()

11. Irçtê méjì: () () 12. Otúá méjì: () ()

() () () () () ()

() () () () () ()

() () () ()

13. Otúrúpon méjì: () () () () 14. Ìká méjì: () () () ()

() () () () () ()

() () () () () ()

() () () () () () () ()

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15. Õsë méjì: () () 16. Õfún méjì: () () () ()

() () () () () ()

() () () () () ()

() () () () () ()

Convém lembrar que esses representam apenas dezesseis dos duzentos e cinqüenta e

seis textos escritos, possíveis dentro do sistema oracular de Ifá. O processo, conforme foi

descrito por Elebuibon (2000), não deixa subsistir dúvida alguma: trata-se de uma escrita

incontestável. O babaláwo, seguindo rigorosamente as regras do processo oracular vai

escrevendo, ou melhor, imprimindo os sinais de cada símbolo, usando seus dedos, para

escrever no pó de ìyêrê òsùn, que se encontra espalhado na bandeja de Ifá.

Portanto, sem que se escreva primeiro esses símbolos, seria impossível para o

babaláwo reconhecer o Odù do consulente, tampouco saberá interpretar o desejo dos

orixás, para que se garanta ao consulente o socorro necessário para resolver seu problema.

Não se pode chamar esse tipo de escrita nem de ideografia (pois não são idéias

propriamente ditas que estão sendo representadas pelos sinais dos Odùs); nem de

iconografia ou pictografia, porque os símbolos de Odù-Ifá não são imagens nem icónes.

De fato, a escrita de Ifá é vista, entre os babaláwos, e na sociedade yorubana em

geral, como uma escrita criptográfica. A relação que existe entre os símbolos de cada Odù-

Ifá, e os textos que o babaláwo recita a seu respeito, é semelhante àquela existindo entre as

letras do alfabeto usadas para elaborar um texto, seja ela uma carta, um romance ou,

mesmo, uma história. Em outras palavras, trata-se da mesma convenção que rege a leitura

de qualquer texto alfabético. Da mesma forma que se pode verificar o grau de alfabetização

de uma pessoa, dando-lhe um texto para ler, é possível verificar o conhecimento de um

babaláwo, dando-lhe o símbolo completo de qualquer Odù, para que ele o interprete,

fornecendo o texto correspondente. Da mesma forma que uma pessoa alfabetizada pode ler

uma carta, ou qualquer outro texto, escrito por um terceiro, quer por ele conhecido ou não,

sem que haja diferença entre sua leitura e a de qualquer outro que domine o mesmo código,

uma vez que o texto for corretamente escrito, não deveria haver dificuldade da leitura dos

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textos de Odù-Ifá, por qualquer babaláwo, mesmo quando o texto não tenha originado de

sua própria bandeja oracular.

De fato, há quem prefira interpretar os textos de Odù-Ifá como textos matemáticos.

O fato de serem as assinaturas dos Odùs, representados com caráteres binários, faz com que

certos cientistas os comparem aos logaritmos matemáticos. Alguns pesquisadores já

conseguiram provar, não somente a relação entre o logaritmo binário do Odù-Ifá e o

pensamento analítico que sustenta a configuração do computador que usa a mesma base

binária, mas sustentam, ainda, que a divisão dos principais Odùs em grupos de dois (méjì-

méjì), para formar os logaritmos de 8, 16 e 256, indica um conhecimento profundo das leis

matemáticas, pelo povo yorubano114. Prova irrefutável disso encontra-se na composição da

memória do computador, que só funciona à base do quadrado do algaritmo quatro, ou seja,

o número dois elevado à terceira potência: 2 X 2 X 2 = 8.

Com efeito, hoje, a memória de qualquer microcomputador só vem em múltiplos de

oito megabytes, começando com o mínimo de 8MB de onde vai para 16MB, 32MB, 64MB,

128MB e 256MB. Vale ressalvar a bela ‘coincidência’ entre essa configuração da memória

interna do computador e o sistema completo de Odù-Ifá, ou seja, o ikin Ifá possui quatro

furos (o número dois elevado à segunda potência), e são necessários dezesseis ikins para

fazer um jogo oracular. No jogo oracular, as ‘assinaturas’ que aparecem na bandeja,

representam qualquer um dos dezesseis ‘livros’ principais (Odù Ifá), gerando uma das

dezesseis ‘leituras’ possíveis. Cada livro é multiplicável ainda por dezesseis (çsç Ifá),

obtendo-se, desta forma, uma estrutura de 256 Odùs, a partir dos 16 Odùs principais.

Por outro lado, podemos chamar de ‘alfabetos’ os dezesseis símbolos do Odù-Ifá,

uma vez que, um número finito de ‘sinais’ (assinaturas), são suscestíveis a serem

combinados em um número quase infinito de “textos” (poemas, çsç Ifá), para serem

aplicados a um número infinito de situações humanas.

Porém, convém deixar claro que, dentro do sistema oracular de Ifá, os dois sistemas

distintos, ou seja, a combinação de escrita e da oralidade, entra em jogo para que o

babaláwo consiga ler e interpretar o Odù-Ifá que aparecer na sua bandeja oracular. O que

estou procurando deixar claro aqui, é que, no sistema oracular de Ifá, os dois modelos estão

obrigatoriamente usados juntos, para que haja uma ‘leitura’ clara da vontade do orixá que

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vai solucionar o problema do consulente, a cada jogo oracular. Em outras palavras, sem a

escrita dos símbolos de Ifá na bandeja, não haverá como o babaláwo vai saber qual Odù

está querendo aparecer, nem qual texto oral deveria ser recitado para explicitar o caso.

Portanto, dentro deste sistema, não estamos diante de um caso de exclusão mútua – ou a

escrita, ou a oralidade –, muito pelo contrário, trata-se de uma complimentariedade entre os

dois modelos de textos.

Talvez, seja necessário abrir um parêntesis aqui, para esclarecer que a chave da

peculiaridade da oralitura dos textos de Ifá está na ordem e na maneira de recitar os poemas

chamados çsç Ifá. O uso obrigatório da língua yorubana para recitar determinados

segmentos do çsç Ifá, durante o jogo oracular aponta para uma preocupação com a

fidelidade ao texto original. Isso fica claro no já-citado texto de Abimbola e Ishola (2005)

quando afirmam que:

"Everywhere the Ifa divination is practised, the language of ese Ifa is Yoruba, andthat is why the first three parts of ese Ifa are chanted in pure Yoruba. However,among non-Yoruba communities, other parts of the ese Ifa are chanted in their locallanguages or dialects (sic). For example, in Cuba, the first three parts of ese Ifa arechanted in Yoruba while the other parts are chanted in Spanish. In other words, thecontents of the story remains the same but explanation in prose by the babalawo tothe client are rendered in local languages or dialects and based on their experiences.However, Ifa literature is not fully developed among the non-Yoruba speakingcommunities because of lack of competence in the Yoruba language (…)

Tradução:Em todas as sociedades nas quais se usa a prática oracular de Ifá, a língua derecitação dos çsç Ifá é, invariavelmente, o yorubá. Por isso que os três trechosiniciais são sempre recitados em yoruba fluente. Porém, nas comunidades nãoyorubáfonas, outros trechos do çsç Ifá podem ser recitados nos idiomas ou dialetos(sic) locais. Por exemplo, em Cuba, os três primeiros trechos costumam serrecitados em yorubá, enquanto o resto se recita em espanhol. Em outras palavras, oconteúdo dos textos oraculares continua o mesmo (em yorubá), mas a interpretaçãodos mesmos pode ser transmitida aos consulentes, pelo babaláwo, de formaprosaica, no idioma vernacular, conforme os conhecimentos do babaláwo. De fato,a dificuldade que certas sociedades vêm tendo para aproveitar ao máximo aspotências do sistema de Ifá pode ser imputada à falta de domínio da língua yorubana(...)

Talvez, essa seja a razão da nova onda de interesse de jovens adeptos de candomblé

no Rio de Janeiro, que, tendo sido iniciados ao sistema de Ifá por babaláwos cubanos, 114 Cf. Odejobi O., “Ifá and the computer language”, seminário apresentado no Instituto de Estudos Culturais

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procuram os cursos de língua yorubana, para melhorar seus aprendizados dos textos

sagrados.

Tendo dito tanto a respeito dos textos de Odù-Ifá, nada mais justo do que trazer um

Odù, para exemplificar a peculiaridade do casamento perfeito que une a memória

visual/escrita à memória oral/ritual na prática dos Odù-Ifá. Para tanto, escolho da coletânea

de Ayo Salami (2002: 826-7) o Odù Õsë Ìwòrì.

Odù Õsë Ìwòrì

(a) Assinatura (texto impresso)

() () () () () () () ()() () () ()

É importante reparar que o arranjo da assinatura deste Odù não é à toa, mas que, de

fato, ele corresponde a um sistema, ou, se quiserem, uma convenção de ‘escrita’ pré-

estabelecida. Õsë representa o Odù principal aqui, por isso, imprime-se à direita (löwö

õtún) enquanto ìwòrì, que representa o Odù menor, se imprime à esquerda (löwö òsì)115.

Isso vai influenciar a leitura do Odù, principalmente, concernando a escolha do texto com o

qual o babaláwo procuraria interpretar esse jogo particular, um texto determinado que deve

ser escolhido entre as centenas de çsç-Ifá, que Abimbola afirma como existindo para cada

Odù .

Eis, portanto, um dos possíveis textos de çsç-Ifá, que podem ser recitados para essesigno específico:

(b). Texto oral (recitado)

Õsë pàá bí ôkö (Ose-que-soa-como-um-golpe-de-enxada)Ìwòrì jòwòlò bíi rádùn (Ìwòrì-que-se-deita-como-se-estivesse-morto)Àrõ ré re réè (Àrò-do-corpo-sem-medidas)Awo ilé Õrúnmìlà (Assim se chamavam os três babaláwos de Òrúnmìlà)Ló díá fún Õrúnmìlà (que fizeram o jogo de Ifá para Òrúnmìlà) da Obafemi Awolowo University, Ile-Ife, 1999.115 Dentro da configuração do jogo oracular, as duas forças que respondem ao apelo do babaláwo, durante ojogo oracular, são Õrúnmìlà e Èÿù, cada uma destas divindades aparece no texto do Odú, tomando seu lugarpré-estabelecido. Ou seja, o texto que aparece à direita (löwö õtún), pertence a Õrúnmìlà ,enquanto aquele queaperecer à esquerda (löwö òsì,) pertence a Èÿù. De acordo com Salami, essa dupla presença indispensável nojogo oracular serve para enfatizar o equilíbrio do poder com o qual o babaláwo resolve as situaçõesexistenciais de seus consulentes.

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Yóó yç ikú kúò lórí ômôô rê (Quando esse queria evitar a morte de seus filhos)Yó lô rèé gbé e körí igi lóko (Transferindo essa morte para uma árvore no mato)Wön ní kó rúbô (Os babaláwos pediram que ele fizesse um sacrifício)Wön ní bó bá ti rúbô (Que uma vez feito esse sacrifício)Ikú yê .............................10 (Não teria mais nada que temer da morte)Õrúnmìlà rúbô (Òrúnmìlà fez o sacrifício prescrito)Ikú ò pa ômô ê mö (E a morte não pode mais matar seus filhos)Àrùn ò ÿe ômô ê mö (Também afastou as doenças de seus filhos)N ní wá ñjó n ní wá ñyõ (Aí Òrúnmìlà começou a dançar de alegria)Ní þ yin àwôn Babaláwo (Ele agradecia aos seus babaláwos)Àwôn Babaláwo þ yin Ifá (Enquanto esses agradeciam a Ifá)Ó ní bëê làwôn Babaláwo (Òrúnmílà disse que os seus três famosostòún wí babaláwos acertaram no jogo que fizeram)Õsë pàá bí ôkö (Ose-que-soa-como-um-golpe-de-enxada)Ìwòrì jòwòlò bíi rádùn (Ìwòrì-que-se-deita-como-se-estivesse-morto)Àrõ ré re réè (Àrò-do-corpo-sem-medidas)Awo ilé Õrúnmìlà (Esses três que eram os babaláwos de Òrúnmìlà)Ló díá fún Õrúnmìlà (os mesmos que fizeram o jogo de Ifá para Òrúnmìlà)Yóó yç ikú kúò lórí ômôô rê (Quando ele queria evitar a morte de seus filhos)Yó lô rèé gbé e körí igi lóko (Transferindo essa morte para uma árvore no mato)Wön ní kó rúbô (Os babaláwos pediram que ele fizesse um sacrifício)Ikú ti ön ní ó pçnì ó mçbô (A morte que alguns queriam que matasse quem fez o

sacrifício)Ikú ò leè pçnì ó mçbô mö (A morte desistiu de matá-lo porque tinha feito seu

sacrifício direitinho)Awo rere (É óbvio que o babaláwo que prescreveu o sacrifício

era bom e eficaz)N l’Àrõ ré re réè (Aro-ré réè é um babaláwo competente)Awo rere (Ele é um bom babaláwo)Àrùn ti ön ní ó pçnì 30 (A doença que alguns queriam que matasseó mçbô ....... quem fez seu sacrifício)Àrùn ò leè pçnì ó mçbô mö (A doença desistiu de matá-lo, porque fez direitinho o

sacrifício que lhe fora prescrito)Awo rere (É óbvio que o babaláwo que prescreveu o sacrifício

era bom e eficaz)N l’Àrõ ré re réè (Aro-ré réè é um babaláwo competente) Awo rere (Ele é um bom babaláwo)Òfò ti ön ní ó ÿçnì ó mçbô (A desgraça que alguns queriam que matasse

quem fez seu sacrifício)Òfò ò leè pçnì ó mçbô mö (A desgraça desistiu de matá-lo, porque fez seu

sacrifício direitinho)Awo rere (É óbvio que o babaláwo que prescreveu o sacrifício

era bom e eficaz)N l’Àrõ ré re réè (Aro-ré réè é um bom babaláwo)Awo rere (Ele é um bom babaláwo)Gbogbo Ajogun ti ön ní (Todas as forças do mal que algunsó ÿçnì ó mçbô ....40 queriam que matassem quem fez seu sacrifício)

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Ajogun ò leè pçnì ó mçbô mö (Elas desistiram de matá-lo, porque fez seu sacrifíciodireitinho)

Awo rere (É óbvio que o babaláwo que prescreveu o sacrifício era bom e eficaz)

N l’Àrõ ré re réè (Aro-ré réè é um babaláwo competente)Awo rere (Ele é um bom babaláwo)

Num jogo determinado, é só depois de ter feito a soma do conteúdo escrito e das

referências poéticas desse çsç-Ifá que o babaláwo teria a possibilidade de desvendar a

origem e a possível solução para o problema do consulente, servindo-se de vários outros

mecanismos da ciência oracular.

Para concluir, acho que se torna supérfluo repetir que, à luz do que procurei provar

ao longo deste capítulo, quando se classifica uma cultura como a yorubana, se deve tomar

cuidado com as categorias fechadas que polarizam as culturas e as limitam apenas a

categorias exclusivas do tipo ‘ou a escrita, ou a oralidade’, uma vez que uma análise

cuidadosa dos vários gêneros da literatura yorubana, tais como os ofõ, ogèdè, àyájö e Odù-

Ifá, dentre outros, revela que esses textos possuem vários mecanismos que os permitem

comportar-se não como simples textos orais, sendo também possível detectar no processo

de sua elaboração, armazenamento e reprodução, traços de uma forma de escrita, escrita

essa que é feita ‘na cabeça’, ou seja, ordenada na memória, igual ao procedimento hoje

tornado possível e cada vez mais aperfeiçoado pela tecnologia da informática, com o uso de

vários tipos de discos e várias técnicas. Isso nos permite classificar os textos desta categoria

da literatura yorubana, como textos da oralitura.

Além do mais, como aponta a já-citado texto de Abimbola e Ishola (2005), não há

dúvida de que, pelo menos antigamente, entre os povos da África Ocidental, que sempre

recorriam ao sistema de Ifá no seu dia-a-dia, os textos de Odù-Ifá acabam assumindo o

papel reservado à literatura escrita em outras sociedades.

Since traditional Yoruba society was non-literate, going to Ifa priests for divinationtherefore represented an important medium of contact with such a highly developedform of poetry. The contact which the traditionally minded Yoruba makesconstantly with the Ifa literary corpus therefore enriches his aesthetic values andsatisfies his imaginative instincts in the same way as modern novels, poems andfilms educate, satisfy and enrich the city dwellers. Studies have shown that the oraltexts of Ifa divination contain valuable hints on Yoruba history including the historyof the Yoruba language. In addition to their roles as experts of Yoruba mythology,divination and sacrifice, Ifa priests also play the role of historians, counselors, andphysicians up till today in the communities where they still exist. Studies have also

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revealed that Ifa textual materials contain deep philosophical themes which can beregarded as West Africa's contributions to philosophical ideas. The Ifa literarycorpus is the storehouse of Yoruba culture, inside which the experiences of theYoruba people and some of their neighbours have been preserved throughout theages. This demonstrates that non-literate people can preserve, maintain, transmit anddisseminate important ingredients of their own culture without knowing how to reador write (…)

Tradução:[Uma vez que a sociedade tradicional yorubana não conhecia o alfabeto ocidental, avisita a um babaláwo sempre representava um contato importante com asexpressões de alta poesia. Portanto, o contato constante que os yorubanostradicionais costumavam ter com os textos literários de Ifá enriquecia seus valoresestéticos e satisfazia seus ânimos imaginativos, da mesma maneira que os romances,os poemas e os filmes modernos educam, satisfazem e enriquecem o conhecimentodos indivídios hoje. As pesquisas mostram que os textos orais recitados durante ojogo oracular de Ifá contêm dados valiosos sobre a história do povo yorubano, assimcomo o desenvolvimento diacrônico da língua yorubana. Além de serem especilistasem matéria da mitologia yorubana, processos oraculares e sacrificiais, os sacerdotesde Ifá ainda têm o papel de historiadores, conselheiros e médicos, papeis quepreenchem até os dias de hoje nas sociedades onde existem. Diversos estudostambém revelaram que os textos de Ifá incorporam, ainda, pensamentos profundosque são considerados as principais contribuições dos povos da África Ocidental aocampo da filosofia. O corpus literário de Ifá representa o verdadeiro depósito dacultura yorubana, dentro do qual as experiências do povo yorubano, assim como asde seus vizinhos, vêm sendo acumuladas ao longo dos séculos. Isso demonstra quepovos ágrafos são também capazes de elaborar, preservar, transmitir e divulgarcomponentes importantes de sua cultura, sem que saibam ler ou escrever comalfabetos ocidentais (...)

Esta afirmação é válida, também, para as sociedades afro-americanas, já que textos

como esses também fizeram a travessia do Atlântico, gravadas na memória dos africanos

escravizados. De fato, uma análise dos textos oriundos da tradição oral das comunidades-

terreiros espalhadas pelo Brasil afora mostrará como os africanos escravizados conseguiram

se proteger contra o apagamento total de sua memória cultural através do uso de tais textos

da oralitura. No caso da Bahia, não seria exagero algum afirmar que os terreiros, sobretudo

os da nação ketu-nagô, souberam fazer o maior uso desses textos. Um exemplo concreto

seriam os vários textos da tradição oral que circulam em tais terreiros, como os diversos

contos, estórias, crônicas-históricas e diversos outros, que foram recolhidos e publicados

por indivíduos ligados a esse mundo religioso, tais como a ialorixá carioca Mãe Beata de

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Iemanjá e o sacerdote dos Eguns, o escritor baiano Deoscóredes Maximiliano dos Santos

(Mestre Didi Alapini)116. Mas isso já é assunto para o capítulo IV.

Porém, antes do quarto capítulo, no qual pretendo abordar e analisar,

pormenorizadamente, o reinado da oralitura yorubana em textos afro-baianos, mais

especificamente, na obra de Mestre Didi, preciso abordar primeiro a questão da

bahianidade, analisando os contornos da própria Bahia, assim como a construção e a

alimentação da sua identidade cultural, processo esse que, de certa forma, está, quase

sempre, atrelado à ascendência africana de boa parte de sua população. Para tanto, pretendo

focalizar no próximo capítulo a baianidade e suas diversas expressões, dentro das quais a

visão do mundo nagô-yorubano tem um lugar de destaque.

116 Vale lembrar que uma das obras de Mestre Didi – História de um terreiro nagô (1994) leva entre outrossubtítulos – “Crônica Histórica” e “Notícias históricas de um terreiro nagô da Bahia”. Também MarcoAurélio Luz mencionou em uma entrevista recente que grande parte dos contos reunidos nos diversosvolumes de Mestre Didi “fazem parte do acervo oracular do erindinlogun”, ou seja, os textos do jogo oracularque substitui Ifá na Diáspora brasileira. Cf. “Contos/Sabedoria: Ética da tradição”, Jornal A TARDE, Salvador12/06/2004.

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A força da oralitura yorubana: Odù Ifá Ìrosùn-Meji

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Odù Ifá ou uma outra “escrita”: Os dezesseis livros oraculares de Ifá

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Instrumentos da arte oracular yorubana

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Capítulo III

A YORUBANIDADE DENTRO DA BAIANIDADE

“Aquilo que é socialmenteperiférico pode sersimbolicamente central”

- Babcock, B.117

Um conceito central com o qual trabalho neste capítulo é aquilo que chamo de

Yorubaianidade. Trata-se do casamento de dois conceitos identitários: a identidade cultural

yorubana e a baiana. Não me parece um casamento forçado, já que, como veremos ao longo

do presente capítulo, na construção da identidade baiana, a herança nagô-yorubana constitui

uma marca que não é nada perfunctória. Afinal, não se pode desprezar o alcance semântico-

ideológico das diversas expressões identitárias, assumidas por vários grupos de

protagonistas e formadores de opinião na Bahia, quando se afirmam conceitos voluntários

como odara, baianidade nagô, carnaval ijexá e tantos outros.

A adoção dos diversos símbolos da yorubanidade como ícones da baianidade não

parece ser uma coisa tão recente. Vivaldo da Costa Lima, em recente depoimento, contou

como a prática de vendedoras de rua foi elevada a uma identidade dos negros baianos,

desde que as antigas baianas de acarajé percorriam as ruas e ruelas da cidade, apregoando

suas quitutes com pregões do tipo: Ç fi àkàrà jêkô yó o!118, pregão esse que, segundo o

antropólogo baiano, acabou dando origem à ligeira mudança no registro da maior ícone da

baianidade, o acarajé, cujo nome original (àkàrà) acabou sendo fusionado para sempre com

o verbo “jç” (comer em yorubá). Em outras palavras, vale investigar a presença insistente,

desde o século retrasado, de iconografias nagô-yorubanas, como emblemas de preferência

na definição da baianidade.

De igual peso seria o apoio incondicional dos poderes públicos da Bahia para esse

casamento da baianidade com a yorubanidade. Casamento esse que une no posto

centralizado da Bahiatursa no alto do famoso Elevador Lacerda, outro ícone da Bahia, a

imagem da baiana com a identidade da Bahia, sendo que, a imagem que domina esse posto

117 Cf. The Reversible World, Ithaca, NY: Cornell, 1978, p. 32. apud. STALLYBRASS, P. e WHITE, Allon,The Politics and Poetics of Transgression, Ithaca, NY: Cornell, 1986, citado em HALL, Stuart, “Para AllonWhite, Metáforas de transformação”.118 Literalmente, significa: venham usar akara (acarajé) para acompanhar eko (acaçá).

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é um mapa da cidade de Salvador, com uma baiana, vestida a rigor, sentada, literalmente,

acima do mapa, ou seja, acima da Bahia, como se reafirmando o lema oficial de Salvador

como a capital da negritude.

Falando desse lema, quando Dona Cici de Oxalá, uma das coordenadoras da

Fundação Pierre Verger, afirma, no depoimento que fez no vídeo Salvador, A Capital da

Negritude, produzido pela Prefeitura de Salvador em 2003, que: ‘A Bahia é, sem dúvida

nenhuma, aquela que guardou os costumes, no modo de vida, nas comidas, na vestimenta,

no penteado, no trançado. Ela está muito próxima à África, e, sem dúvida nenhuma, a

Bahia é uma África falando português’119, é mais do que óbvio que ela está se referindo à

África jeje-nagô, ou seja, à África dos orixás e voduns, uma vez que, a única outra África

presente no horizonte cultural brasileiro, ou seja, a África dos inquices, a chamada África

bantu, já vem falando português desde o século XIV.

Portanto, está mais do que claro que, no imaginário oficial e popular da baianidade,

as referências culturais e religiosas remetem quase sempre à África da fala yorubá. O

objetivo do presente capítulo é, pois, fazer um mapeamento e uma análise dos elementos

constitutivos da yorubanidade presentes na construção da identidade baiana, ou seja, na

baianidade.

Não há como negar o caráter sintomático da acirrada polêmica acerca da hegemonia

nagô que, desde a época de Nina Rodrigues e seus discípulos antropólogos, etnólogos,

sociólogos e outros intelectuais afins, opõe, de um lado e outro, os que se pode chamar de

bantófilos aos nagôfilos, devido à insistência desses últimos, sobre o impacto maior da

cultura nagô-yorubana na Bahia, levando até a implantação de uma mal-contestada teoria

de hegemonia cultural nagô sobre as outras expressões culturais africanas na Bahia,

sobretudo aquelas oriundas do pólo Congo-Angola. O fato de essa polêmica ainda ter

repercussões nos meios intelectuais e sócio-culturais, não só da Bahia de hoje, mas de

grande parte do Brasil, sobretudo, em áreas de influência dos cultos afro-brasileiros, mostra

o alcance desses debates e embates no imaginário cultural do Brasil contemporâneo.

Além do mais, o não tão-recente fenômeno do interesse das diversas mídias, locais e

nacionais, nas expressões identitárias do domínio popular na Bahia, levando à reinvenção

da própria Bahia na indústria carnavalesca e nas derivadas indústrias culturais, artísticas e,

119 A ênfase é minha.

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principalmente, musicais – nos quais se verifica o uso cada vez mais freqüente de termos e

conceitos yorubanos cuja utilização antes costumavam se limitar ao mundo hermético do

candomblé –, se revela como mais uma prova de que a yorubanidade nunca saiu da pauta

na Terra do Axé, desde a irrupção dos Afoxés da Bahia, na última década do século XIX.

Melhor dizendo, a procura cada vez mais urgente, da parte da mídia baiana, de relacionar,

quase sempre, toda expressão da tradição popular baiana ao domínio yorubá, aponta para a

possibilidade de estarmos diante do fenômeno de uma cultura, que é longe de ser

dominante, se tornar uma verdadeira cultura hegemônica, isto é, uma fonte de referência

obrigatória.

3.1.0 Compreendendo a força diaspórica da yorubanidade

Quando o teórico jamaicano Stuart Hall (2003:40) afirma com aparente júbilo que:

‘A África passa bem, obrigado, na diáspora,’ parece que está resumindo o sucesso da

yorubanidade na diáspora afro-americana. Com efeito, quando Hall aborda a questão das

‘sobrevivências’ africanas nas diásporas, espalhadas pelo Novo Mundo afora, afirmando,

entre outros, que: ‘Os sinais e traços dessa presença (africana) estão, é claro, por toda

parte’, uma vez que, conforme garante, ‘A “África” vive, não apenas na retenção das

palavras e estruturas sintáticas africanas na língua ou nos padrões rítmicos da música,

mas na forma como os jeitos de falar africanos têm estorvado, modulado e subvertido o

falar do povo caribenho (...)’, não podia estar mais de acordo com pesquisadores e

estudiosos brasileiros, como Yeda Pessoa de Castro (2001) que, desde muito, fala em

falares africanos no Português brasileiro.

Porém, a diáspora, na concepção de Hall (2003:41), ultrapassa as meras

sobrevivências do passado da África em outros solos do globo. De uma significação

importante para ele ‘é a forma como essa “África” fornece recursos de sobrevivência hoje,

histórias alternativas àquelas impostas pelo domínio colonial e as matérias-primas para

retrabalhá-las de formas e padrões culturais novos e distintos’, levando ao que ele

denomina ‘processo de tradução cultural’.

Ao mesmo tempo em que nos lembra da obrigatória referência hifenizada que

constitui a marca do ‘funcionamento do processo de diasporização’ da África na conjuntura

global, – um bom exemplo dessa hifenização é a presente tese que fala em textos afro-

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baianos –, Hall nos adverte que devemos atentar para o processo de tradução cultural

implícito em tais referências, afim de nunca cairmos no erro de aceitar que a África fosse

reduzida a uma referência antropológica fixa. Portanto, quando se fala de cultura afro-

brasileira, candomblé nagô, música afro-pop, ou outros termos semelhantes, não se deve

esquecer do caráter maciçamente híbrido dos conceitos assim denominados que apontam

para a constante negociação da africanidade, em solo diaspórico.

Prova disso é o modo pelo qual, muitas vezes, a forma da yorubanidade se tem

mudado nos vários pontos da diáspora afro-americana, mesmo quando o conteúdo

permanece reconhecivelmente yorubano. Por exemplo, em matéria de linguagem, tive a

oportunidade de conferir pessoalmente o fato de a língua yorubana, usada nos meios

Lucumís, em Cuba, ser muito mais compreensível, porque está muito mais próxima ao

yorubá contemporâneo falado na Yorubalândia, do que a versão preservada no candomblé

brasileiro. Porém isso não quer dizer, de modo algum, que uma seja mais ‘pura’ do que a

outra. No que tange à religiosidade, que é o aspecto que mais salta aos olhos como o nexo

de sobrevivência africana na diáspora, não se pode dizer que as formas e elementos que

entram nos rituais do culto aos diversos orixás continuem sendo os mesmos nas diversas

diásporas. Até porque, mesmo na terra natal dos orixás, o seu culto não pode ser – e, de

fato, já não é – o mesmo que era há 150 anos.

A começar pelas comidas rituais oferecidas aos diversos orixás, constatei que, aqui

no Brasil, seja devido à falta dos ingredientes originais que costumam compor certas

comidas rituais em meios yorubá-africanos, ou, devido a influências do meio diaspórico, os

orixás têm tido que habituar os seus paladares a outras dietas que aquelas que

costuma(va)m comer na África. Talvez o exemplo mais característico seja o caso do orixá

Xangô, e o famoso amalá, que costuma ser preparado em sua honra aqui na Bahia. À

primeira vista, pude perceber que, no contexto brasileiro, o que se preserva é apenas o

conceito do repasto comunitário partilhado pelos adeptos, o próprio amalá já perdeu a sua

composição original no contexto baiano, sendo reduzido apenas ao quiabo, que acontece ser

apenas um acompanhamento do amalá africano, mas que, no contexto brasileiro, é o

elemento mais fácil de se encontrar por aqui, dentre os ingredientes do amalá yorubá-

africano. Na verdade, como pude comprovar, come-se de tudo no amalá brasileiro, menos o

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próprio amalá120. Aliás, um provérbio yorubano já deu conta de tais substituições e

modificações quando afirma que: báà r`ádàþ, a f`òdìdê ÿçbô, ou seja, na ausência do

morcego, pode-se usar outra ave mamífera para substituí-lo como ingrediente de oferenda.

Da mesma forma, o fato de elementos como sabão perfumado, água de cheiro,

flores, e outros produtos de beleza, entrarem na oferenda de muitos dos orixás na diáspora,

sobretudo, na oferenda a Iemanjá, na famosa festa do dois de fevereiro, mostra o quanto as

divindades têm sido obrigados a mudar de gosto, nos seus novos habitats.

Porém, mesmo assim, como afirma outro provérbio yorubano odò tó bá gbàgbé

orísun rê, gbígbç ni yío gbç!, ou seja, qualquer rio que se esquecer da sua nascente, estará

prestes a secar. Por isso que, na diáspora, existe sempre uma preocupação de manter a

essência, mesmo em face das contingências que tornam inevitável os trocadilhos, as

práticas sincréticas e as substituições. Como afirma Mestre Didi em um de seus

pronunciamentos, o importante é saber ‘evoluir sem perder a essência’. Isso apóia o ponto

que Hall (2003:44) procura esclarecer, quando proclama, parafraseando Gilroy (1993), que:

A cultura é uma produção. Tem sua matéria prima, seus recursos, seu “trabalhoprodutivo”. Depende de um conhecimento da tradição enquanto “o mesmo emmutação” e de um conjunto efetivo de genealogias.

Com efeito, no que diz respeito à yorubanidade no Brasil, como em muitos outros

pontos do mundo latino-americano, essa consciência tem levado a uma série de ‘trabalhos

produtivos’ que, muitas vezes, implicam a necessidade de retrabalhar o conteúdo africano.

No caso da Bahia, podemos dizer que o próprio conceito da baianidade representa uma

cristalização das reinvenções da africanidade nos trópicos brasileiros enquanto se esforça

120 No contexto yorubá-africano, o àmàlà, também conhecido como ôkà, é uma pasta ou uma massa,preparada à base de inhame. O inhame é cortado em pedaços finos, e depois, deixado em água quente durantealgum tempo. O mesmo é retirado da água, antes que comece o processo de fermentação, e espalhado ao arlivre, sobretudo em cima de rochas, para que seja secado pelos raios de sol. Depois de ficar totalmente seco, oinhame é pulverizado, primeiro no pilão, e depois, passado na peneira, para retirá-lhe quaisquer grãos. Desteprocesso resulta uma farinha amarronzada, a farinha assim obtida se chama èlùbö, e é essa èlùbö que é usadapara preparar o àmàlà. Na hora que se vai comer àmàlà, basta colocar uma quantidade de água para ferver. Aessa água adiciona-se a quantidade adequada de èlùbö (farinha de inhame), e, ainda com o fogo acesso, amassa é misturada com cuidado, sem deixar que embole. A pasta assim obtida é o que se chama àmàlà.Agora, o àmàlà yorubá-africano se come com vários molhos, tipo moquecas. Tal moqueca pode ser preparadacom peixe, carne, lagosta, frango ou, até, uma mistura de tudo, mas deve conter também algum tipo delegume. É aí que entra o quiabo, chamado ilá em yorubá, que é cortado e preparado de várias maneiras,inclusive, com todos os ingredientes do famoso caruru baiano. Na hora de comer o àmàlà, um pedacinho dapasta previamente preparada é pego com a mão, e um bocado da moqueca é colocado encima, e ambos viajamjuntos para a boca.

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em preservar algo da essência, para não perder de vista os valores originais importados da

África.

Em Nossos colonizadores africanos, Ildásio Tavares (1996: 86-7) não deixa dúvida

alguma sobre a identidade desses africanos que teriam colonizado a Bahia, nem se omitiu

em precisar de que canto do continente africano teriam saído os mesmos. Afirma o autor

baiano:

Aqui na Bahia, mais do que em qualquer outro lugar do Brasil, a presença culturalnegra na religião, na culinária, no vestuário, na música, na dança, na forma de ver etransar o mundo, foi, e é tão forte que os africanos assumem papel de colonizadores(...) Boa parte dos africanos trazidos como escravos, eram presos políticos, por lutashegemônicas na África, e já pessoas de alto nível. Enquanto da Europa vinhamdegredados, da África vinham príncipes e princesas, como Otampê Ojaró, filhagêmea do Alaketu, do rei de Ketu, que descende em linha reta de Oxossi, OlgaRegis (em latim, do rei), fundadora do seu terreiro (...)

De fato, existe uma constante que, aparentemente nunca, ou pouco mudou desde a

conquista do título de Roma Negra pela Bahia da época da poderosa ialorixá Eugênia Ana

dos Santos, mais lembrada como Mãe Aninha do Ilê Axé Opó Afonjá. Essa constante diz

respeito ao conjunto de ícones que representam o que mais tarde seria consagrado como a

baianidade, ou seja, os traços culturais e ideológicos, isto é, aquilo que Mignolo (2003

[2000]: 34) teria classificado como a gnose liminar, que possibilitaram a ascensão da

Bahia, e, sobretudo, sua capital metropolitana e Recôncavo da Baía de Todos os Santos, ao

nível dos mais procurados pontos turísticos, tomando hoje cada vez mais um aspecto de

verdadeira peregrinação cultural, não somente a nível nacional, mas principalmente,

internacional, tirando-a assim do anonimato de uma periferia americana e levando-a a uma

visibilidade estratégica no mercado de produtos culturais à escala global.

A este ponto, torna-se oportuno determos um pouco o nosso olhar sobre o conceito

de baianidade, defini-la, sondá-la e contextualizá-la, para podermos flagrar como funciona

esse importante discurso identitário.

3.2.0 A baianidade, seus ‘textos’ e contextos

Na sua tese de doutorado, o sociólogo baiano Milton Moura (2001) parte da

seguinte pressuposição geral para definir a baianidade:

A baianidade é entendida como um texto identitário, ou seja, que realiza a asserçãodireta de um perfil numa dinâmica de identificação. É compreendida como um ethos

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baseado em três pilares: a familiaridade, que supõe a ambivalência numa sociedadetão desigual, a sensualidade, associada à naturalização de papeis e posturas; e areligiosidade, que costuma acontecer como mistificação numa sociedade tãotradicional (...)

Em seguida, ele foi mostrando como a imagem da Bahia foi construída para se

tornar ‘o estado étnico brasileiro’ (MOURA, 2001:141), ou seja, aquilo que, nas palavras

da jornalista Perla Ribeiro, seria o estado mais étnico do Brasil, ‘uma espécie de

nascedouro da pátria, o paraíso místico almejado por todo e qualquer filho do país121.

Segundo a jornalista, de acordo com Darwin Brandão e Motta e Silva:

Todo brasileiro, do sul ou do norte, sente vontade de conhecer a Bahia, suas “365”igrejas, e seus candomblés, tem vontade de subir no Elevador Lacerda; de comer osquitutes gostosos da cozinha baiana (...). Vontade de ver a rampa do Mercado, ouvirhistórias dos saveiristas, rezar na “igreja toda de ouro”, visitar seus monumentoscívicos e religiosos, como se estivesse assistindo ao desenvolvimento cultural ehistórico do nosso povo”122.

Isso bem antes de Caymmi cantar “O que é que a baiana tem?”

Segundo as fontes citadas por Ribeiro (2004), o conceito de baianidade tornou-se

tão importante que mereceu até uma entrada no dicionário Aurélio, que a define como ‘um

amor intenso à Bahia, à sua gente e aos seus costumes’. Como fazem questão de esclarecer

todos os que se dedicam à questão, essa baianidade diz respeito apenas à cidade de

Salvador e ao Recôncavo da Baía de Todos os Santos. Ou seja, além da cidade

metropolitana, fala-se de cidades matrizes como Santo Amaro da Purificação, Cachoeira,

São Felix, Maragojipe e outras terras do Recôncavo. Essa área corresponde justamente ao

pólo de influência da cultura jeje-nagô, ou melhor, jeje-yorubá123, como preferem muitos

autores contemporâneos.

Tamanha é a fascinação de todos por esta singular expressão identitária chamada

baianidade, que tem merecido o investimento de vários autores, entre os próprios baianos, e

diversos outros, que não podiam resistir aos encantos desta terra: viajantes desde o Século 121Cf. RIBEIRO, Perla, “Mitos da baianidade/Emblemas da identidade”, postado emwww.correiodaBahia.com.br/2004/08/30/notícias, acessado em 05/01/2005.122 Cf Cidade do Salvador – Caminho de encantamento, 1958. apud Ribeiro, 2004.123Ver entre outras referências, CUNHA, Eneida Leal; BACELAR, Jéferson; ALVES Lizie, “Bahia:Colonização e culturas” in VALDEZ, Mario e KADIR, Djelal. Literary Cultures of Latin-America: AComparative History, Vol II. New York: Oxford Univ. Press, 2004. p 551-565; MOURA, op. cit.; e

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XIX, aventureiros, antropólogos, etnológicos, sociólogos e mesmo filósofos e grandes

pensadores do quilate do existencialista francês Jean-Paul Sartre.

Moura (2001) foi quem nos forneceu uma das mais completas análises da

baianidade, abrangendo a visão dos baianos que vigora no exterior da própria Bahia, ou

seja, no Rio de Janeiro e em São Paulo, onde, conforme a necessidade da hora, a imagem

da Bahia oscila entre o naturalismo do estado edênico vendido no exterior pelas atuações da

inesquecível Carmem Miranda e o estigma de uma terra atrasada, flagelada capital dos

nordestinos. Assim, em um primeiro momento, na época do início da industrialização nos

estados do sul e sudeste brasileiro, os baianos tinham a fama de ‘retirantes vadios e

preguiçosos’, enquanto toda baiana era tida como a própria reencarnação da personagem

Rita Baiana, criada pelo romancista Aluísio de Azevedo em O Cortiço.

Para um segundo momento, Moura (2001: 142) apresenta a imagem da baianidade

segundo os próprios baianos, sobretudo aquilo que chamou do ‘perfil do artista no texto da

baianidade’ ao longo do século XX. O sociólogo reuniu em uma discussão magistral dos

ícones da baianidade, os textos de vários profissionais notáveis que se têm concorrido para

fixar no imaginário popular a imagem da Bahia como se conhece hoje, nacional e

internacionalmente. Entre os músicos da terra, se destacam Dorival Caymmi, Caetano

Veloso e Gilberto Gil e outros que, mesmo sem ser da Bahia, cantaram o encanto da Boa

Terra, dos quais citou as músicas de Vinicius de Moraes, Ari Barroso, Antônio Carlos

Jobim, Pixinguinha, entre muitos outros, que compunham sucessos eternos para consagrar

as grandes marcas da Bahia e da baianidade, ou seja:

(...) as comidas que levam dendê, sobretudo caruru, acarajé e vatapá..., asensualidade do povo baiano, sendo que da baiana se ressalta o dengo, a faceirice ea brejeirice, associados aos trajes, com insistência nas saias rodadas, torços esandalinhas, enquanto do baiano se sublinha a malandragem, a manha e por vezes odengo...; a religiosidade (da qual) o campeão absoluto de citações é o Senhor doBonfim. As canções se refer(indo) também a Nossa Senhora e (...) aos orixás, quasesempre Xangô e Yemanjá (...)

Além dessas características gerais, Moura nos oferece ainda um catálogo geral do

texto da baianidade, conforme construído por cada um dos cantores/compositores baianos

MARIANO Agnes, “A arte de ser baiano segundo as letras de canções da música popular”. Dissertação deMestrado, FACOM/UFBA, 2001.

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Dorival Caymmi, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa e Maria Bethânia, itens estes

que passarei a analisar detidamente no decurso do presente capítulo.

No âmbito das artes plásticas, Moura destacou o artista-desenhista Carybé e o

fotógrafo Pierre Verger, ambos estrangeiros natos que se fixaram na Bahia. O que mais

chama a minha atenção no depoimento de Moura (2001: 153) sobre a arte e a visão destes

dois artistas da baianidade é este ‘resumo’ que fez da obra de Pierre Verger: ‘A mensagem

de Verger, numa palavra, é a realeza do povo baiano. A maneira com que associa o

afrodescendente baiano ao yorubá afirma que a altivez do primeiro é a mesma do

segundo’, acrescentando ainda em nota de rodapé o seguinte testemunho pessoal: ‘escutei,

em vários pontos da África Ocidental, anedotas sobre o orgulho e o narcisismo do yorubá,

do tipo: eles estão abaixo de Deus, sim. Um pouquinho só (...)’. Mais adiante no presente

capítulo, terei ocasião de voltar a comentar este depoimento assim como a própria obra de

Pierre Verger.

O sociólogo baiano encerra a seção com uma riquíssima análise da obra de Jorge

Amado, delineando-lhe momentos e temáticas ‘que se fazem visíveis no texto da

baianidade’, entre, de um lado, o que chama de benignidade do mundo e da natureza

(baiana), e, do outro, a sensualidade que levou ao que se costuma denominar como o ‘culto

à mulata’ nas obras de Jorge Amado. Terei ainda ocasião de demorar a minha pena sobre a

obra do romancista Jorge Amado mais adiante. Por ora, gostaria de analisar a tese de Moura

a respeito dos três vetores da baianidade, quais sejam: a familiaridade, a sexualidade e a

religiosidade.

Hoje, torna-se desnecessário dizer que mais de oitenta por cento dos ícones e da

linguagem que possibilitam a expressão identitária que se conhece como a baianidade se

deve, direta ou indiretamente, à yorubanidade. Os diversos especialistas reiteram esse

débito da baianidade para com a yorubanidade. Antes mesmo da chegada de artistas-

intelectuais nagófilos estrangeiros da qualidade de Pierre Verger e Carybé, os principais

estudiosos do fenômeno singular que é a Bahia, sempre davam os devidos créditos ao

complexo cultural jeje-nagô, cuja influência social e religiosa mudou para sempre a cara da

Bahia desde que aqui chegaram esse povo no Século XIX.

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Além de pioneiros como Nina Rodrigues e Edson Carneiro, que, ultimamente,

foram acusados de instituir e/ou alimentar uma real ou imaginada hegemonia nagô124,

muitos estudiosos contemporâneos da baianidade não parecem ter medo de seguir esse

mesmo rastro dos yorubanos na diáspora brasileira, ligando a importância cultural, estética,

religiosa e civilizacional de que goza a Bahia, no conjunto dos estados brasileiros, à

presença maciça, no seu corpus, de elementos da cultura yorubana.

Assim afirma o cronista baiano Antônio Risério, autor de vários textos magistrais

sobre a baianidade. Tanto em Bahia com “H”, quanto em Uma Teoria da Cultura Baiana,

ambos de 1988, ele elogia as ‘práticas culturais’ que ‘se articularam no sentido da

individuação da Bahia no conjunto brasileiro de civilização’, ambos decorrentes da

presença jeje-nagô na Bahia.

Milton Moura até criticou o que denuncia como algo de essencialismo na insistência

de Risério em louvar a homogeneidade etnodemográfica da Bahia, na qual o cronista não

hesitou em destacar a importância do povo yorubano, cuja efetividade na cena baiana se

explica pela ‘sua urbanidade anterior (à chegada no Novo Mundo), sua chegada massiva e

o comércio que manteve com o Golfo do Benin’. Sem deixar claro se ainda prosseguia na

sua leitura de Risério, Moura (2001:123) afirma, como quem conclui o raciocínio de outro,

que:

Este africano não se des-socializou, como ensina Kátia Mattoso sobre o negrobrasileiro em geral, tendo sido capaz de reinventar sua trama cultural e erigindo-seem paradigma do negro brasileiro (...)

De qualquer modo, Moura (2001:61) não parece contestar, o fato de que a familiaridade,que se costuma dar como um dos pilares da baianidade, tenha sido uma herança destatradição jeje-nagô que predomina na Bahia, ou seja, na região soteropolitana e noRecôncavo. Ele parece resumir esta herança nagô-yorubana neste breve parágrafo:

O Recôncavo é uma sociedade fortemente ancorada em valores patriarcais, quecostuma se ver como uma imensa família, integrada em função dos papeis,atribuições e atuações que fazem sentido – ou se legitimam, talvez seja melhor dizer– na lógica política do patriarcado. Não se trata de uma simples dominação dehomens sobre mulheres, mas de um padrão de sociabilidade em cuja teia homens emulheres podem ser integrados e encontrar seus nichos de atuação e representação

124 Vem sendo cada vez mais comentado o propósito racista com o qual o médico-legista Raimundo NinaRodrigues singularizou os nagôs em suas obras e suas pesquisas, seu interesse não passando, segundo dizem,de uma tentativa de procurar provas para corroborar sua ideologia evolucionista.

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sob a égide do poder patriarcal. Homem e mulher têm importância e valor adepender de como se situam nesta teia.

É fato curioso que o sociólogo tenha mencionado o tratamento reservado a

homossexuais nesta teia, sendo que a sua explicação se resulta como mais um indicativo da

decorrência da prática baiana da visão do mundo yorubá-africana, como fiz questão de

afirmar no livro ÀKÖGBÁDÙN: ABC da língua, cultura e civilização yorubanas.

(Salvador: EDUFBA, 2004), onde comparei o tratamento de homossexuais àquele

reservado para os chamados çni òrìÿà, ou seja, pessoas com deficiências físicas, que são

tidas como frutos da ‘falha’ de Oxalá, orixá yorubano da criação, cuja lenda conta que, um

dia, depois de ter abusado do vinho de palmeira, induzido pelo orixá Exu, as suas mãos

vacilaram na argila da criação e daí resultou pessoas deformadas. Como ‘castigo’ desta

falha do orixá, seus adeptos são proibidos de provar vinho de palmeira. E, por consideração

ao orixá, os deficientes físicos passam a ser tratados com ‘delicadeza’ e ‘solicitude’, na

sociedade yorubana125. Em troca, tais indivíduos se vêem obrigados a incorporar a primeira

ala no desfile da festa de Oxalá, seu orixá protetor que homenageiam com danças e gestos

lúdicos, que também servem para divertir o público. É como se fossem uma espécie de

palhaços de Oxalá126. É nesta mesma direção que aponta a afirmação de Moura (p.61) a

respeito do tratamento reservado para homossexuais na sociedade baiana do Recôncavo,

onde:

O homossexual, visto como desvio, é assimilado desigualmente, sendo o tipo decomicidade associada à sua apresentação uma forma de demarcar e confinar suaparticipação na sociedade àqueles papeis e desempenhos tolerados como numaconcessão.

Voltando à relação entre a baianidade e a yorubanidade, é possível trazer o

depoimento de muitos outros estudiosos para sustentar o casamento dos dois conceitos, mas

125 Em “Para Inglês Ver: Sex, Secrecy, and Scholarship in the Yorùbá-Atlantic World”, capítulo 5 do seu livromais recente (2005), o antropólogo norte-americano Lorand J. Matory aborda essa questão dehomossexualidade e seus desdobramentos dentro do mundo do Candomblé brasileiro, mostrando como, apartir de uma intensíssima negociação entre os representantes da burguesia euro-brasileira, tais como ArthurRamos e Édison Carneiro, e a concepção feminista da antropóloga Ruth Landes, surgiu, nos anos 1940, anecessidade de demonstrar para o mundo como a religião dos orixás se quer, por um lado, não-excludente,absolvendo e até estimulando a participação de homossexuais e lésbicas, enquanto, por outro lado, rebaixavae negava a “pureza” de casas de Candomblé dirigidas por homens tidos como “homossexuais passivos”, ouseja, os chamados adé.126 O filme documentário Obàtálá in Praise de Ifayemi Elebuibon mostra claramente esta relação dedeficientes físicos com Oxalá.

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por ora, prefiro seguir a trilha de Milton Moura para ver como essa herança da

yorubanidade se deixa entrever nos diversos textos da baianidade, tecido pelos principais

protagonistas da sua construção como marca registrada do povo baiano:

3.3.0. A baianidade segundo os protagonistas baianos

Lívio Sansone, antropólogo italiano radicado em Salvador, fala em diversos de seus

textos,127 de como o processo de ‘re-africanização’ da cultura afro-brasileira que ocorreu no

Brasil, começando pela Bahia, na segunda metade do século passado, ocasionou a

redefinição ‘oficial’ da baianidade, levando, cada vez mais, a uma aproximação da Bahia (e

do Brasil) à África Ocidental, ou seja, às terras nagô-yorubanas, com o etnólogo e fotógrafo

francês Pierre Verger servindo de ‘padrinho’ e facilitador de tais reencontros entre os dois

lados do Atlântico Yorubano. Foi assim que, de acordo com Sansone (1999:27):

El término Cultura afro-baiana implica por lo general una definición estrecha de lacultura como algo centrado en la práctica y los símbolos del sistema religioso afro-brasileño. Esta se encuentra articulada en las prácticas culinarias, caracterizadas porel uso del aceite de palma y por las asociaciones mágicas de cada plato e ingredientecon un santo del panteón candomblé, y en la música percutida, con cada toque detambor dedicado a convocar a un santo en particular o a una parte de la liturgia delcandomblé (…)

Cabe afirmar aqui que as outras características da baianidade mencionadas por

Moura (2001), sobretudo a sexualidade, também é decorrente desta definição. Sansone

(1999:24) constata novamente que, desde o século XIX, as baianas de acarajé eram

campeãs da composição da iconografia da baianidade. Elas que já eram vistas ‘durante

séculos’ como o ícone mais visível e mais autêntico de africanismo na Bahia. Segundo

informa:

Los viajeros extranjeros y luego los antropólogos, fotógrafos y turistas, se han vistoseducidos por estas mujeres, ataviadas con sus sofisticados y caros panos da costa(de los cuales se dice que son tan genuinamente africanos, que en la actualidad unono puede encontrarlos siquiera en Africa), bien conocidas por sus relaciones con elcandomblé (las mas ‘auténticas’ Baianas muestran esta relación con el candombléusando collares de colores de una deidad específica y poniendo en un lugarapartado, en su pesebre, alguna comida para su ‘santo’ u orixá personal) (...)128

127 Ver sobretudo, De África a lo Afro: Uso y abuso de África en Brasil, Sephis/Codestria, 1999.128 Aliás, este tipo de oferenda depositado no tabuleiro ou no chão da tenda continua como prática comumentre vendedoras, não só de comida, mas também de colares e outros artigos relacionados ao cultostradicionais e ancestrais em muitas cidades yorubanas contemporâneas. Uma senhora com quem costumocomprar colares no bairro de Iremo em Ile-Ife (Nigéria) sempre ostenta este tipo de oferenda em sua tenda.

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Hoje, mesmo diante dos perigos da folclorização desta iconografia baiana, o que

muitos pensadores baianos vêm denunciando, no surto de interesse oficial e especulações

políticas, turísticas e mercadológicas, que tornou novamente as baianas – como todos os

demais elementos culturais da baianidade, oriundos do passado africano – em peças a serem

exibidas com orgulho aos estrangeiros, há um sentido em que deveria ser considerado uma

homenagem bem merecida a construção do Monumento à Baiana e o tributo feito às

Baianas de acarajé no carnaval de 2003, ambos idealizados pelo governo municipal de

Salvador, durante a administração de António Mbassahy, tirando, claro, a desnecessária

proposta do tombamento do acarajé, até porque, conforme afirma o octogenário

antropólogo baiano Vivaldo da Costa Lima, ‘ele (o acarajé) não precisa de promoção’.129

Constatação que me levou a afirmar em um trabalho recente que, de fato, o processo

da ‘re-africanização da cultura afro-brasileira’, á qual se refere Sansone (1999:15), não

passou de uma yorubanização por excelência130.

Basta olharmos um conjunto desses ‘produtos’ culturais, que vão da música

mediaticamente denominada axé-music, que, de acordo com vários estudiosos (Sansone e

Teles dos Santos (1997); Godi (1997); Guerreiro (1997); Schaeber (1997); Lima (1997); e,

Veiga, 1997),131teria amadurecido da arte dos ogã alabés dos terreiros de candomblé,

perpassando as reinvenções percussivas de grupos como os blocos afro-soteropolitanos Ilê

Aiyê, Olodum e Araketu, dentre muitos outros. Grupos esses que ainda fazem questão de se

identificarem com as raízes e matrizes afro-yorubanas como apontam os seus nomes. O

mesmo continua válido para outros artistas da cena musical baiana, inclusive os que

preferem usar como seu rótulo a denominação mais abrangente de World Music. Isso, a

despeito da ambigüidade aparente por parte de alguns protagonistas do momento musical

baiano como Carlinhos Brown em assumir plenamente essa yorubanidade, talvez porque,

no seu caso, a expressão da africanidade/yorubanidade já vem diluída por outras fontes132

129 Vivaldo da Costa LIMA, entrevista a Ceci Alves, A Tarde, 02/04/2005.130 Vide Félix Ayoh’OMIDIRE, “CarnavÁfrica à la Baiana de Acarajé: of the Uses and Abuses of Africanityin Bahia”, trabalho apresentado no 8.º Congresso Mundial da Tradição dos Orixá, editado em formato CD-Rom, La Habana, Cuba. 2003.131 Refiro aqui a um conjunto de trabalhos publicados por SANSONE, Lívio e Jocélio TELES DOS SANTOS(org.) Ritmos em Trânsito: Sócio-Antropologia da Música Baiana. 1997.132 Só para contrariar, gostaria de evocar a propósito, uma dessas aparentes contradições identitárias que, àsvezes marcam o discurso desse filho de Ogum Xoroquê. Foi no Carnaval de 2004, quando uma música deCarlinhos Brown fez o maior sucesso no carnaval daquele ano. A música era Maindê danda e os repórteres da

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ou porque todas as expressões culturais já se fundiram na sua identidade brau, o que não

apaga, porém, o fato de que o mesmo Carlinhos vem cada vez mais trabalhando a temática

da yorubanidade em suas músicas e apresentações recentes133. Quem sabe se o seu interesse

não seria, justamente, uma tentativa de retrabalhar as inspirações que lhe vieram da fonte

yorubaiana, para compor o seu perfil, já que Hall (2003) fez questão de afirmar, a respeito

de agentes diaspóricos, que ‘Retrabalhar a África ... tem sido o elemento mais poderoso e

subversivo de nossa política cultural do século vinte’.

Convém, pois, investir, no próximo segmento, um olhar mais atento para as diversas

formas em que as manifestações da yorubanidade vêm surgindo no espaço do último meio

século, para sustentar o sonho da África, projetado por vários protagonistas da baianidade.

Em termos específicos, pretendo analisar como a visão do mundo yorubano, sobretudo, sua

ética e estética, vêm sendo embutida no texto da baianidade.

3.3.1.0 A Yorubanidade na música da baiana

De acordo com os que entendem bem o assunto, desde os já citados pesquisadores

do tema aos próprios profissionais da área, a música baiana pode ser dividida em três áreas

distintas e, muitas vezes conectadas. Ou seja, fala-se da Bahia como o berço, não somente

do samba e seus desdobramentos (samba de raiz, samba de roda, samba-reggae, pagode,

etc), como também dos novos ‘gêneros’ musicais que, desde os anos oitenta, tomaram o

mundo de assalto, através de seus sucessos no carnaval baiano. Estou me referindo a Axé

Music e o seu soul-brother, a chamada World Music. Existe, ainda, outro ‘gênero’ que é,

cem por cento, nativo da Bahia: a música dos grupos de Afoxé. Comecemos por este último. TV Aratu queriam saber de que falava a música. Chegaram para mim, e eu expliquei que, embora o título nãoseja de origem yorubana, o conteúdo da música tinha, sem dúvida, uma ligação ao mundo yorubano. Apoiei aminha afirmação com o fato de que a música se abre com uma invocação explícita aos erês, ou seja, espíritosde orixá-mirims, comum no candomblé ketu, que se encontram personificados no conceito yorubano dosgêmeos, nomeados Tayewo e Kehindê (e seus caçulas imediatos, Idowú e Alabá) sincretizados com os santoscatólicos Cosme e Damião. No entanto, segundo a jornalista que me entrevistou, o próprio Carlinhos Brown,teria negado, na entrevista que deu aos mesmos repórteres, essa ligação da sua música com o conceitoyorubano, afirmando que sua composição nada tinha de yorubá, apesar da sua abertura dizer assim: “CorreCosme chegou/Doum Alabá/ Damiã Jaçanã/ alegria do erê (...)”133 Nota-se que a banda Timbalada, da qual Carlinhos é o grande idealizador, vem trabalhando temáticas emúsicas em yorubá, como atestam discos recentes como Motunbá Bless (2003) e sua regravação em 2004,assim como o novo disco de 2005, chamado sintomaticamente Candombless. Da mesma maneira, o próprioCarlinhos Brown não deixa de projetar uma imagem de si, como um chefe de ‘tribal’, seja quando aparecetrajado de conjunto vestuário yorubá (agbádá de renda e costura yorubana) dentro do seu ‘reino’ no Candeal,

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3.3.1.1 A Yorubanidade dos Afoxés da Bahia

Conforme a historiografia, os primeiros afoxés, de que se tem notícia na Bahia, na

passagem do século XIX para o XX, eram formados por negros que, também, queriam

brincar o carnaval. Já que o carnaval antigo, do jeito que se apresentava, não admitia a

participação de negros como grupos organizados. Isso no início do século passado. A crer

no depoimento do romancista Jorge Amado, parece que o aparecimento dos afoxés já

datava de, pelo menos o período da Procalamação da República, já que o romancista citou

em Tenda dos Milagres (2001:66) que a proibição do aparecimento público do afoxé data

de 1904. É dele também a data de 1895, citada como ocasião do primeiro aparecimento do

Afoxé Embaixada Africana que, segundo afirma o narrador, teria mostrado na Bahia ‘a

corte mirífica de Oxalá.’

Nina Rodrigues, que era contemporâneo desse período longínquo, completou a lista

dos afoxés da época: Além do já-referido Afoxé Embaixada Africana, havia também,

segundo o médico-legalista que virara etnólogo, os afoxés Filhos da África, A Chegada

Africana e, Pândegos da África, dentre outros. Nas palavras do próprio Nina Rodrigues,

citadas por Risério (1981) , este último teria feito o maior sucesso em 1899, quando levou

às ruas da Bahia ‘As danças e cantigas africanas, que (na verdade) ... são as danças e

cantos dos candomblés, do culto jeje-yorubano, fortemente radicado na nossa população

de cor’.

No seu livro de título revelativo, Carnaval Ijexá (1981), Antonio Risério, na sua

procura para a etimologia e o significado do termo Afoxé, aproveita a seguinte explicação

‘gramatical’ dada por Olabiyi Babalola Yai:

A = prefixo nominal

fo = verbo = pronunciar-se, dizer

xé = realizar-se, verificar-se

Ou seja, ‘a fala que faz’, conforme a ‘tradução poética’ que dele fez Risério. Ele cita o

próprio Yai, somando os elementos constitutivos do termo, para concluir que: ‘Afoxé, em

yorubá, significa, pois, encantamento, palavra eficaz, operante’.

ou quando leva músicas de invocação a Obaluaiê ou uma louvação a Santo Antônio de Ogum Mejê para assuas diversas aparições em programas de televisão, como fez no APROVADO de 02-04-2005.

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Considerando o contexto em que apareceram os primeiros afoxés, em meio a

restrições e proibições das manifestações de cunho africano no carnaval baiano, a adoção

do termo afoxé, para designar as agremiações de negros no carnaval baiano, pode ser

entendido como um desafio e/ou uma ameaça da parte dos negros, demonstrando a sua

vontade de desafiar e enfrentar as reações preconceituosas das classes dominantes, valendo-

se da força mágica e do poder místico de seus orixás para meter medo nos perseguidores de

sua cultura. Logo adiante, veremos como o surgimento espontâneo do Afoxé Pai Burokô,

protagonizado por Mestre Didi e seus companheiros do Axé Opo Afonjá, se encaixa neste

tipo de configuração.

De todos os Afoxés que a Bahia já conheceu, se pode dizer que aquele que mais

conseguiu resistiu ao tempo e às vicissitudes de todas as ordens foi o Afoxé Filhos de

Gandhi (Anísio Félix, 1987), fundado desde 1949 e cuja marca registrada é a sua afiliação a

Oxalá, orixá nagô-yorubano de vestuário branco, assim como o estilo musical

generosamente referido por aqui como ritmo ijexá com cantorias em nagô134.

Em diversos depoimentos sobre este afoxé, vários intelectuais e artistas (baianos e

não baianos), tais como Gilberto Gil, António Carlos dos Santos Vovô, João Jorge,

Carlinhos Brown, assim como o americano Clyde Morgan, afirmaram o seu cuidado de se

manter fiel à tradição religiosa da África Negra do candomblé, pois, como diz Risério, os

Afoxés representam os ‘Orixás no carnaval’, em referência explícita à música de Gilberto

Gil: ‘afoxé/ candomblé de rua/ ijexá de folguedo’. Casamento perfeito do sagrado com o

profano, construído sobre os alicerces da religiosidade nagô, como reiterou o próprio

Gilberto Gil no DVD A Bahia dos Filhos de Gandhy (2005):

(O Afoxé Filhos de Gandhy) é ligado profundamente, desde seu início até hoje àscomunidades afro-brasileiras no sentido profundo que é o compromisso, o costumee o hábito que essa gente tem, a cultura que essa gente tem implantada no solo dareligiosidade, da religião africana. Do panteão negro do Olimpo Yorubá, essa coisatoda. Os deuses, os orixás. O bloco é muito ligado a isso. Na verdade, diz-se até queos precursores do Gandhy, precursores dos afoxés, no início deste século, foramblocos que saíram diretamente dos terreiros, autorizados a cantar ijexá [...]

Decorrente da sua ‘dupla dimensão’ como ‘o candomblé de rua’ que mistura o

sagrado ao profano, António Risério atribui ao afoxé o papel de ‘bálsamo..., oásis,

capoeira de calma e serenidade, em meio à loucura geral do carnaval’, principalmente

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porque o Afoxé Filhos de Gandhy reforça essa postura ao ostentar a filosofia da não-

violência do líder indiano Mahatma Gandhi, sustentado pelo culto a Oxalá, principal orixá

funfun do panteão yorubano. Como afirma ainda Risério (1981:56):

Enquanto todos, literalmente, pulam atrás do trio elétrico, os integrantes de afoxés,suingada e pacificamente, entregando o corpo e a cabeça aos ilus ou atabaques, emtoques de Oxum e Oxalá. E tudo como se fosse possível haver uma ordem no caos.

Por seu lado, Carlinhos Brown, no depoimento que deu no DVD A Bahia dos Filhos

de Gandhy (2005), salienta a linguagem dos Filhos de Gandhy como mais uma herança

inegável da yorubanidade:

Essa imagem de estrangeiro que nós temos, pelo lado pejorativo, pelo fato de nãosermos reconhecidos como brasileiros, mas como negros, africanos e pobres, noFilhos de Gandhy, a gente torna-se mais ainda estrangeiro, mas pela forma positivaque é quando a Bahia é bilíngüe: fala yorubá, forma uma corte (...)

Posso multiplicar ao infinito, as citações que demonstram as particularidades

sagradas do afoxé ligando-o à yorubanidade, como fez António Risério (1981),

mencionando-lhe os rituais de Padê de Exu, que precede qualquer uma das suas

manifestações públicas, além de sua música e dança que ‘fazem parte do repertório

litúrgico yorubá’, e sua filiação obrigatória a um terreiro de candomblé, sob as proteções de

um babálorixá ou uma ialorixá. Detalhes que, de acordo com a crônica de Risério, não se

achando presentes na constituição do Afoxé Badauê, foram motivos de muitos desencontros

entre seus fundadores e a velha guarda do afoxé da Bahia.

O que vale ressaltar nesta breve abordagem dos afoxés da Bahia, é seu papel como

uma das forças da continuação dos valores culturais e religiosos nagô-yorubanos na Bahia,

como se pode verificar, não apenas no comportamento e gestos dos integrantes dos afoxés,

mas também no seu zelo em reproduzir uma gramática própria, afirmando a sua ligação ao

mundo yorubano. Seja pelos instrumentos musicais como agogô e xequerê, que os ligam

diretamente ao orixá funfun135 tais como Oxalá e Õrúnmìlà, seja pelas próprias letras das

134 Cf. GODI, 1997, p. 74.135 No uso corrente das religiões de matriz yorubana, orixá funfun significa orixás da pureza, sobretudo, osque costumam se vestir de cores claras (funfun, quer dizer branco em yorubá). São assim chamados orixáscomo Oxalá, Orunmilá e Oxum, nas suas essências como geradores do axé e da paz. O que fica evidente nasaudação que hoje se torna cada vez mais popular na Bahia “Muito Axé para você!”, o que remete a uma dascantigas de Oxalá em yorubá: ç wàÿç òrìÿà lara mi ò, ç wôwô òrìÿà lárà mi (...), ou seja, quem me vê, vestidode cor branca não poderá deixar de reconhecer o axé do orixá que me protege.

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suas músicas, que parecem verdadeiras aulas práticas de conversação em língua yorubá,

como apontam muitos dos refrões reproduzidas na pequena antologia musical, apresentada

na antepenúltima seção do texto de Risério (1981), explicitamente intitulada de Poemúsica

yorubaiana136:

“afoxé lê-ilê-i, i-lê-oafoxé lê-ilê-i, i-lê-o

O negroNa batida do agogôTa dançando, ta gingando,

Se virando, se enroscando,Na batida do agogô

Quilofé137

Abebê no abebê (...)Ou ainda esta Patuscada de Gandhi, onde o modelo de diálogo em yorubá aparece mais

explícito: Aonde vai papai Ojô138

Vou depressa por aíVou fazer minha foliaCom os Filhos de Gandhi

Que a nossa turmaÉ alinhadaSai no meu blocoPra fazer a patuscada

Emori moriô babáBabá ô kiloxêjocô139

Ou, ainda esta outra, cantada por Carlinhos Brown no DVD A Bahia dos Filhos de Gandhy: 136 Qual não foi a minha surpresa, ao descobrir que Risério já me precedeu com mais de vinte anos, nainvenção e uso de termos que remetem ao conceito da yorubaianidade.137frase interrogativa em yorubá “o que você quer?”138 Parece que o Afoxê Filhos de Gandhy tem uma fascinação especial para a prática de nomear entre osyorubanos. Os integrantes costumam repetir em suas intervenções coletivas, uma chamada vocativa: “Ajayiô!” cuja origem parece difícil de se saber, embora tenha descoberto na historiografia baiana que o primeirodos integrantes da famosa Revolta dos Malês de 1835, liderada pelos nagôs se chamava Ajayi. Acontece queAjayi é nome yorubano para quem nasceu em posição de “rosto para a terra”. Em contrapartida, Ojô é nomedado à criança que nasce com as cordas umbilicais enroladas em volta do pescoço. O interessante é que, nasexpressões correntes em yorubá, os nomes Ojô e Ajayi formam um par complementar. Os dois denominando,no imaginário yorubano, qualidades heróicas nas pessoas assim chamadas.

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O Gandhy saiu na ruaAbafou!O Gandhy saiu na ruatocando seu agogôQuem falou assimfoi um nagôQuem falou assimfoi um nagô!

Sem dúvida alguma, os chamados Blocos Afro-carnavalescos são herdeiros e

continuadores, mesmo quando não simples e fieis imitadores, da tradição dos Afoxés. Tudo

indica que o seu ponto de partida já não é exatamente o mesmo que o dos Afoxés.

Entretanto, não há como negar o seu interesse em valorizar os legados estéticos e auto-

afirmativos dos primeiros. Está mais do que na hora de falar um pouco desse fenômeno

baiano, que são os Blocos Afro-Carnavalescos.

3.3.1.2 A Yorubaianidade dos Blocos Afro-Carnavalescos

A passagem de 1974 para ’75 foi um marco na historiografia da identidade afro-

baiana. Foi a ano em que Gilberto Gil voltou do seu exílio em Londres, passando, conforme

documenta Risério (1981), a incentivar o renascimento do Afoxé Filhos de Gandhy no

carnaval de 1975, prestando-lhe seu prestígio de artista e militante conhecido nacional e

internacionalmente. Foi ainda nesse período que nasceu o primeiro bloco afro-carnavalesco

da Bahia, batizado de Ilê Aiyê, pelos jovens fundadores, liderados pelo filho da ialorixá

Hilda Jitolu, Antonio Carlos dos Santos Vovô, mais conhecido hoje na sociedade baiana

como Vovô do Ilê. Ao evocar esse período, Antonio Risério (1981) fala muito do processo

da reafricanização do carnaval baiano. Foi bom ele tem esclarecido que não entende por

reafricanização, o fato de que tenha ocorrido anteriormente alguma “desafricanização”, no

sentido sugerido por Darcy Ribeiro, no seu livro O povo brasileiro: A formação e o sentido

do Brasil (São Paulo: Companhia das Letras, 1998 [1995]). Ao contrário do quadro

desolador do negro, evocado por Ribeiro (1998:220), na sua explicação desajeitada do mito

equivocado da desafricanização do negro em solo brasileiro, algo que, na sua opinião foi

uma condição sine qua non para o negro ‘saber viver’ na sociedade brasileira. Vale citar o

seu texto:

139 estrutura conversacional em yorubá elementar: o que vejo?/ vejo o pai/ o que está fazendo?/ está sentado.

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[A] Luta mais árdua do negro africano e de seus descendentes brasileiros foi, aindaé, a conquista de um lugar e de um papel de participante legítimo na sociedadenacional. Nela se viu incorporado à força. Ajudou a construí-la e, nesse esforço, sedesfez, mas, ao fim, só nela sabia viver, em razão de sua total desafricanização. Aprimeira tarefa cultural do negro brasileiro foi a de aprender a falar o português queouvia aos berros do capataz. Teve de fazê-lo para comunicar-se com seuscompanheiros de desterro, oriundos de diferentes povos. Fazendo-o, se reumanizou,começando a sair da condição de bem semovente, mero animal ou força energéticapara o trabalho (... ) (ênfase minha).

O primeiro equívoco de Ribeiro nesta citação foi ele ter afirmado que o negro só

soube viver no Brasil a custo de sua total desafricanização, pois, sabemos todos que nunca

houve tal ‘desafricanização’. O negro nunca se ‘desafricanizou’ totalmente. Nas senzalas

onde tiveram que morar, em situações subumanas, os negros sempre reconstituíram e/ou

reinventaram, o quanto lhes era possível, a sua memória cultural: nos pratos e nos modos de

preparar a comida, nos seus hábitos e seus comportamentos, na religião, na música etc.,

como afirma, aliás, Dona Cici de Oxalá, no já-citado vídeo Salvador, A Capital da

Negritude (2004).

Mesmo a questão do aprendizado e uso da língua portuguesa, frisada pelo sociólogo

Darcy Ribeiro, não chega a ser um indício da ‘desafricanização’ do negro brasileiro. Pelo

menos, no caso dos escravos Nagôs, Pierre Verger (1999:118) documentou em várias

ocasiões que nunca eles deixaram de fazer uso da sua língua, seja nos cantos de ganhadores

de rua, seja nas irmandades, ou mesmo no dia a dia, como atesta esta citação feita pelo

próprio Verger, do comentário de Mr. De Saint Priest, ministro da França no Rio de

Janeiro, a 13 de maio de 1835, ou seja, nos momentos que seguiram à revolta dos Malês na

Bahia:

...Hoje, a ordem parece restabelecida, mas não se tem dúvida que a aglomeração depretos da nação Nagô coloca a todo momento esta província em perigo pela perfeitaunanimidade de língua, de votos, de saudades e de ódio que liga estes homensinteligentes, fortes e corajosos. (grifos meus).

Além do mais, o próprio Ribeiro (1998) admitiu que o negro, no seu contato com o

português, não ‘conseguiu’ dominar o idioma do dominador, mas acabou por refazê-lo,

‘emprestando singularidades ao português do Brasil’, gerando o que pesquisadores como

Yeda Pessoa de Castro chamariam de falares africanos no português brasileiro. De fato,

não se deve subestimar a força de línguas africanas que, de fato, tiveram ocasião de se

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tornar verdadeiras línguas francas, em determinados momentos da vida colonial brasileira.

O etnólogo e fotógrafo francês, Pierre Verger nos dá o exemplo do nagô na sociedade

baiana.

Tudo indica que, ao falar de ‘desafricanização’, Darcy Ribeiro acreditou demais na

pretendida eficácia do estágio de ladinização, ao qual alguns escravos costumavam ser

submetido pelos portugueses nas Ilhas de Cabo Verde, onde eram supostamente ensinados

os ‘bons modos’ de gente civilizada, antes de serem levados ao Brasil, onde eram vendidos

a preços especiais, para servir de escravos domésticos.

Vale lembrar que dados históricos140 deixam claro que tais escravos eram

procedentes de áreas de influência portuguesa na África, como o antigo Reino do Kongo,

onde já era freqüente algum tipo de convívio das gentes da terra com a Lusitana gente, e

onde, mais tarde, os mesmos portugueses instauraram a política colonial de ‘assimilação’,

através da qual, para se qualificar a ter direito aos poucos privilégios que os portugueses

concediam aos negros nas suas colônias africanas – tais como, acesso à escola para os

filhos de negros, e isenção do trabalho forçado para os adultos – os negros que aspiravam

ao status de assimilado, deveriam dar prova de que não subsistia mais nada das práticas

indígenas na sua vida cotidiana.

Segundo relatos da época colonial, os portugueses costumavam fazer visitas

surpresas às habitações de candidatos ao status de assimilado, para comprovar se não

comem mais com as mãos, se as mulheres usam vestidos em casa, em vez de amarrar os

panos tradicionais, se a família fala português, em vez de usar as línguas vernaculares, se a

família come pratos ‘portugueses’, em vez de pratos locais como o fubá, etc., enfim, o

objetivo era verificar se a família já se ‘desafricanizou’ o suficiente, para deixar de ser

tratado como indígena e ascender ao status de assimilado.

De qualquer modo, o cronista baiano Antonio Risério fez questão de deixar claro

que, ao falar da ‘reafricanização’ do carnaval baiano, não pensava nas mesmas linhas que a

‘desafricanização’ de Ribeiro. Deixou claro que o seu uso do termo ‘reafricanização’ não

140 Entre outros, o livro, Fluxo e Refluxo ... de Pierre Verger, deixa claro que, a vinda de contingentes denegros escravizados do Golfo do Benin coincidiu com o período do tráfico clandestino, sendo que, nem osportugueses, nem as outras nações negreiras, poderiam mais se dar esse tal luxo de ladinização que, aliás,como todos concordam, era desnecessária no caso dos povos daquela parte da África, devido ao seu hábito deurbanismo e ao nível de sofisticação cultural de que eram portadores, na sua grande maioria. Mas, é melhorparar, antes de ser acusado de ‘essencialismo’ étnico.

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implicava a busca de algo que já tinha sido, alguma vez, perdido. Pelo contrário, Risério

(1981: 19) deixa claro que está se referindo à imposição súbita de valores de matriz

africana a toda a sociedade brasileira, através das transformações da sociedade, trazidas

pela nova atuação dos negros no carnaval. Deixemos falar o cronista:

Trata-se de um processo bem mais geral: o da “reafricanização da vida baiana (ebrasileira, evidentemente; a particularidade vai por conta da perspectiva regionalaqui adotada). “Reafricanização” que está tendo, no carnaval, seu clímax, suaexpressão mais densa e colorida, mas que de modo algum se resume aí (...)

Voltando aos blocos afro, Moura (2001) vê neles uma continuidade, tanto na

tradição dos afoxés, quanto na dos blocos de índio. Esses últimos cujas fantasias, naqueles

anos de transição, na passagem da década de sessenta para a setenta, segundo informa

Antonio Risério, consistia principalmente em pintar o corpo, numa implícita adoção dos

comportamentos, não das tribos indígenas do Brasil, mas sim, dos índios norte-americanos

do chamado far-west. Para Risério, a conexão e o fascínio que tinham os negros brasileiros

para com estas tribos, pode ser compreendida a partir da vontade da rebelião. Ou seja, da

mesma forma que os índios norte-americanos desafiavam a sociedade hegemônica ao seu

redor, os blocos de índio que aqui surgiram também queriam registrar, através de

comportamentos agressivos, assumidos durante o carnaval baiano, seu descontentamento

com a sociedade.

Todos que conheciam os blocos de índios, tais como os Apaches do Tororó, os

Comanches, Navajos, Sioux, Peles Vermelhas, Cheyennes e tantos outros, testemunham que

os seus comportamentos desordeiros no carnaval davam o maior realce aos afoxés,

confirmando à natureza pacífica destes e corroborando aquela descrição desses últimos

como bálsamos e oásis.

A historiografia que Moura conseguiu reunir sobre os blocos afro-carnavalescos

situa o aparecimento de modelos anteriores em blocos de negros como Gangazumba Dengo

Negro, fundado em 1973 em Pau da Lima, blocos como o Viu Não Vá e Puxada Axé,

ambos originários do bairro da Federação. Outro é o bloco Melô do Banzo, oriundo do

Tororó, fundado entre 1972 e 1974. De acordo com o sociólogo, o que esses blocos tinham

em comum era ‘a forte presença do candomblé como referência identitária, não

necessariamente como culto ou vinculação litúrgica (...)’, mas, de qualquer modo, todos

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‘assimilaram com muita desenvoltura as novidades no universo do samba e do reggae, e

referiam-se eventualmente aos orixás”, completa Moura.

Ele nos forneceu, também, outra lista de blocos de negros que, além de manter essas

características, ainda acentuaram a sua filiação ao mundo mítico da africanidade, ou

melhor, da yorubanidade ao adotarem nomes que remetem diretamente à esfera da

influência nagô. Desses, ele nos deu notícia de apenas três: o bloco Alafin Rei de Oyó,

formado no bairro de Cosme de Farias. O nome do bloco faz alusão a Xangô, o quarto

soberano daquele reino yorubá. (para quem não sabe, Alafin, ou seja, Oni + Aafin, (senhor

dos aposentos reais), é o título oficial dos reis de Õyö). Moura aponta que Xangô era

sempre homenageado nos hinos do bloco. Outro desses blocos, identificado pelo sociólogo,

foi o Omolu Ilê, ligado, sem dúvida ao orixá Obaluayê. Esse teria tido sua origem em

Barros Reis. O terceiro bloco citado por Moura (2001: 206), originário da Caixa d’Água e

que se chamava Olorum Babá Mi, parece incorporar, segundo os depoimentos reunidos a

seu respeito pelo sociólogo, tanto as características de um afoxé, quanto as de um bloco

afro. Evidentemente, deve ter havido muito mais blocos desse gênero.

De qualquer modo, esses seriam os precursores imediatos do grande bloco afro Ilê

Aiyê, surgido no bairro populoso da Liberdade, com seus fundamentos firmemente

enterrados na casa/terreiro de Mãe Hilda Jitolu, na ladeira do Curuzu.

Antonio Risério nos traz um dado curioso em Carnaval Ijexá sobre a classificação

de Ilê Aiyê como bloco afro. Ele diz que, depois dos primeiros anos de sucesso do Ilê Aiyê

no carnaval baiano, os órgãos governamentais, gerenciadores do carnaval, na tentativa de

enquadrar as agremiações negras, criaram a classificação blocos afros para diferenciá-los,

na hora de dar as notas do desfile no circuito oficial de Campo Grande. Segundo Risério,

essa manobra não teve êxito junto à diretoria do Ilê Aiyê, e o seu presidente, Antônio Carlos

dos Santos Vovô, teria se recusado a admitir tal discriminação. Resultado, o Ilê se recusou a

participar das reuniões e outras convocações promovidas pela Emtursa na época.

Comparando esse depoimento de Risério com as observações de Milton Moura,

percebe-se que, foi aos poucos que o termo afro começou a pegar nas descrições dos

blocos. De acordo com Moura (2001: 207):

O adjetivo afro surge com freqüência nos depoimentos, às vezes se substantivandosimplesmente como o afro – o clima, o enlevo, a motivação, o motivo e o enredo,tanto como a entidade, o bloco. Compositores, líderes ou simples foliões que

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transitavam de uma denominação a outra no universo dos blocos negros de então sereferem indefinidamente a qualquer deles dizendo: era um afro maravilhoso ou eugostava muito daquele afro, não devia ter acabado.

Resumindo, Moura (2001:207) interpreta o uso do termo afro, a partir da ótica daqueles que

o diziam:

Assim, entendo o afro como vetor estético que alcançou visibilidade em Salvadorno início dos anos setenta, no qual a Negritude aparece associada à beleza, à força,ao brilho, ao prazer, e à novidade. Por um lado, a força do afro repousa sobre olastro da tradição do candomblé, sendo também cumulativo com relação a outrosvetores, como aquele que configurou nos blocos de índios.

A antropóloga-social Goli Guerreiro é outra pesquisadora que se interessou pela

onda de mudanças no horizonte músico-estético e o movimento globalizado da valorização

da cultura e da prática musical negras, oriunda das atividades dos blocos afros baianos.

Blocos esses que chegaram a tomar por assalto a cena musical internacional, a partir dos

anos 1980 sob a etiqueta de world-music, sinônimo da música étnica. Em “Um mapa em

preto e branco da música na Bahia ...”141 , a estudiosa mapeia efetivamente a trajetória dos

vários blocos afro que surgiram em Salvador entre 1974, ano da fundação do bloco pioneiro

Ilê Aiyê, e 1980, ano da fundação dos blocos Ara Ketu e Muzenza.

A partir do seu texto, fica explícita a ligação entre o discurso étnico dos blocos afro,

enraizado na territorialidade que marca o lugar de fala dos integrantes de cada bloco, ou

seja, a partir dos bairros populosos e periféricos da sociedade soteropolitana, e sua

mensagem política, veiculada pelas letras das canções, a sua estética corporal que enfatiza a

adoção dos modos africanos de se vestir e trançar o cabelo. Enfim, fica evidente tudo aquilo

que Antonio Risério havia identificado em Carnaval Ijexá como comportamento da

Blackitude Bahiafro Baianagô.

Para a antropóloga, a década que viu nascer os blocos afro de Salvador, trouxe um

acréscimo importante ao vocabulário dos negros da Bahia. A frase-manifesto Eu sou negão,

surgida a partir da música do compositor Gerônimo, transformou-se, de súbito, no emblema

identitário das massas negro-mestiças da Bahia, na sua busca pela plena cidadania. Como

assinala o também ensaísta Antonio Jorge V. dos Santos Godi, foi ao redor dessa música Eu

141 O título completo do trabalho é “Um mapa em preto e branco da música na Bahia – territorialização emestiçagem no meio musical de Salvador (1987-1997), publicado em SANSONE, Lívio e SANTOS, JocélioTeles dos (org.). 1997.

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sou negão, ao lado da outra composição anterior do mesmo Gerônimo, intitulada É d’

Oxum, que se verificou o poder de transformação político-social da música afro-baiana,

sobretudo quando tais músicas passaram a ser veiculadas pelas poderosas máquinas

carnavalescas do trio-elétrico e divulgadas pelas emissoras de rádio e televisão142.

Pode-se afirmar, portanto, que, a partir do surgimento do primeiro bloco afro, isto é,

o Ilê Aiyê em 1974, a moda de se ver e de ter orgulho de si como negão tomou conta das

camadas negro-mestiças da Bahia. De acordo com Guerreiro (1997: 97), ser negão passava

a ser sinônimo de adepto do movimento musical baiano, pois, o termo negão ‘qualificava

um novo tipo de negro, que tem um pé na África e outro na Jamaica, exibe roupas

coloridas e reverencia Bob Marley, cujo linguajar está cheio de gírias em língua yorubá’.

A antropóloga deixa claro o fato de que o papel legitimador do linguajar em yorubá

foi preponderante tanto na formação como na sustentação das idéias e objetivos dos blocos

afros. A começar pela escolha do nome que cada bloco assumia, era imprescindível que

fosse tirado do yorubá. Assim, o bloco pioneiro teria sido batizado de Ilê Aiyê

(‘casa/abrigo/terreiro dos negros’ em tradução livre, feita por seus fundadores). Isso

depois de os fundadores terem recorrido ao oráculo yorubano, para determinar o nome

apropriado.

De acordo com os depoimentos do entrevistados da antropóloga, quase todos os

outros blocos seguiram esse procedimento batismal à la yorubá na hora de dar nome a suas

novas agremiações. Mesmo quem não tinha certeza do grau de pertencimento do nome

escolhido ao mundo yorubano, acabava arrumando uma ‘tradução’ conveniente em yorubá.

Assim foi que Muzenza (termo que supostamente designa o noviço no candomblé

Congo/Angola) passou a ser traduzido como significando em yorubá, ‘dança das iaôs’ e

Malê Debalê, como ‘negros felizes islamizados’.

Longe de mim de querer ler isso como usos e abusos da yorubanidade pelos blocos

afros da Bahia, antes, vejo tais práticas como uma estratégia legitimadora de seu lugar de

fala. Ou seja, como foi argumentado por diversos teóricos da continuidade de valores

africanos na diáspora, a reinvenção e a ressignificação de termos é um caminho legítimo.

Até porque, de acordo com Florentina Souza (2002:81):

142 Ver GODI, Antonio J.V.S, “Música afro-carnavalesca: Das multidões para o sucesso das massas elétricas”in SANSONE, L. e SANTOS, J. T. op. cit.

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(...) a construção de perfis identitários decorre de (uma) necessidade dearregimentação de forças e interesses, o que torna esses perfis estratégicos,relacionais e impossíveis de serem pensados fora dos contextos e injunções daeconomia do poder (...)

Importa assinalar ainda que os blocos afros não limitaram sua valorização da

herança e tradição africanas ao batismo à la yorubá. Sabe-se que, da mesma forma que

faziam, e ainda fazem, os afoxés, cada bloco afro também tem vínculos diretos com um

terreiro de candomblé. Muitos vão mais longe ainda para estender a identificação de seu

bloco com um orixá particular do panteão yorubano. Assim, o Ara Ketu tem no orixá-

caçador Oxóssi seu patrono, passando a usar seu ofá (arco e flecha) como emblema e

logotipo, tanto nos discos da Banda Ara Ketu, como no abadá usado pelos integrantes do

bloco durante o carnaval baiano. Da mesma forma, o Malê Debalê (dos ‘negros felizes

islamizados’) elege como sua orixá protetora a Oxum, deusa que ‘habita as águas doces da

Lagoa do Abaeté’, onde o bloco tem sua sede.

É lícito, pois, afirmar que não importa o grau de exatidão das apropriações que os

blocos afros fazem dos elementos da africanidade, sobretudo da yorubanidade, sendo que,

pelo contrário, mais importa que se verifique a valorização da herança africana de modo

geral. Também é possível ler o recurso às expressões e signos yorubanos em tais discursos

como uma forma de metonímia, ou seja, o yorubá sendo usado como signo representativo

de tudo quanto é da matriz africana. De fato, é evidente que, muitas vezes, esse tem sido o

caso, uma vez que já foi descoberto que, na maioria dos casos, persiste em certos

imaginários o equívoco de que a África seria homogênea143.

Porém, no caso de muitos blocos afros, sobretudo aqueles cuja liderança se dá o

trabalho de pesquisar sobre a África, sobre os aspectos do continente que gostariam de

veicular na cena baiana, torna-se claro que a sua referência e escolha de elementos do

mundo yorubano não teria surgido por acaso. Por exemplo, no depoimento de Vera

Lacerda, presidente do Ara Ketu, à antropóloga Guerreiro (1997: 105), ela deixou claro que

a preocupação do Ara Ketu, em escolher o nome, era para fazer igual ao povo yorubá da

Nigéria no que diz respeito à estética do bloco no carnaval baiano. Dizia ela:

143 Cf. “África, esse ilustre desconhecido”, reportagem realizada pelo jornal A TARDE em comemoração dodia da Consciência Negra de 2004.

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Através da ala de dança nós fizemos o Ara Ketu na rua como se fosse o cotidiano deuma aldeia da Nigéria, que é nossa referência cultural. E foi lindíssimo, nósganhamos o Carnaval.

Uma preocupação semelhante de querer sair em verdadeiro estilo yorubano foi

documentado no caso de Ilê Aiyê por Antonio Risério (1981). No depoimento de dois dos

fundadores do Ilê Aiyê a respeito da vestimenta especial com que os associados do bloco

costumam sair no carnaval, o líder Vovô pontuou que, a prática do bloco em usar roupas de

estilo africano nada tem de saudosista, sendo que as indumentárias do Ilê não são meras

cópia de roupas africanas, porque os seus estilistas sempre fazem questão de imprimir a

marca original da criatividade do Ilê, na hora de confeccionar os trajes. Segundo afirmou

Vovo no referido depoimento, o bloco fez uma exceção rigorosa dessa regra no ano em que

a Nigéria foi homenageada. Como recorda Risério (1981:42):

A única exceção, até agora, ocorreu no ano em que o tema (ou a “homenagem”,como eles preferem dizer) foi a Nigéria., quando todo o pessoal do Ilê Aiyê saiu denigeriano mesmo. Macalé (um dos líderes do bloco) tinha ido à Europa com umgrupo de dança, desligou-se do grupo e, aproveitando que já tava perto, tomou orumo da África. Daí rolou o lance, com Mário Gusmão também pintando para ofestival da arte Negra de Lagos (...)

O próprio Gusmão completa o depoimento:

Na época da homenagem à Nigéria, a gente teve a sorte do pessoal de lá da própriaNigéria ajudar na transa da indumentária. Macalé tava lá na África, trouxe muitacoisa, me deu umas coisas pra trazer e tal. As coisas vieram de lá e foram, usadasaqui, em homenagem a eles.

Foi de novo Goli Guerreiro (1997) quem soube interpretar a profundidade dessa

forma de interação entre os protagonistas dos valores afro-baianos e as matrizes africanas, e

não é por acaso que, nos dois casos de que os respectivos pesquisadores nos deram notícia,

a aproximação foi com as matrizes yorubá-africanas. Evidentemente, desde a época dos

grandes escritores da tradição étnica baiana, desde Nina Rodrigues, passando por Artur

Ramos, Édison Carneiro aos pesquisadores mais contemporâneos como Manuela Carneiro

da Cunha, Gonçalves da Silva, Vilson Caetano Júnior, dentre muitos outros, o denominador

comum vem sendo sempre a tradição religiosa. O candomblé é sempre visto como a marca

que justifica a qualificação da Bahia como o estado étnico do Brasil. Como tal, essa marca,

por sua vez só podia orientar o discurso sobre a africanidade da Bahia na direção do que é

visto como tradição, atrelando as avaliações das várias representações à preocupação com a

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‘pureza’ ou a ‘impureza’ de tais tradições, como de fato foi vivido na polêmica que opunha

a ‘pureza’ da tradição nagô às ‘mesclas’ e ‘degenerescências’ atribuídas à ‘impureza’ da

tradição banto.

Felizmente, hoje, o aparecimento de blocos afros na cena baiana ajuda a diluir essa

preocupação, deslocando a ótica da aproximação da Bahia com a África. O mérito da nova

relação dos blocos afros com a África não reside mais na busca de um passado idílico, nem

numa visão utópica da África e seus povos, que acabava na homogeneização desses, sem

que haja nenhuma distinção entre a realidade contemporânea que estaria sendo vivida pelas

diversas nações africanas. Hoje, a situação já é outra, como aponta Goli Guerreiro (1997:

111) a este respeito:

As atividades dos blocos afro apontam para uma importante mudança. A novaprodução de cultura negra na Bahia sai dos espaços tradicionais como o candomblée a capoeira e passa a atuar no mercado da música, estabelecendo uma estreita pontecom a indústria do lazer que atrai segmentos muito mais amplos da sociedade.

Desta forma, verifica-se uma crescente vontade dos negros baianos para atualizar as

suas informações sobre os diversos povos africanos, como isso se deixa entender pela

pesquisa que os blocos fazem dos diversos aspectos da vida cotidiana dos povos africanos

que pretendem trabalhar no tema de seu enredo carnavalesco.

Entretanto, não devemos perder de vista o papel de suma importância que tem o

mundo do candomblé como fonte das expressões reais que esses blocos afros trazem para a

música baiana. Como já vimos, tanto no ensaio de Goli Guerreiro (1997), quanto nos

trabalhos de Antonio Risério (1981) e Antonio Jorge V. S. Godi (1997), as grandes

composições da música que levam esses blocos à consagração popular, local e

internacional, sempre possuem uma ou outra fórmula ou expressão em idioma yorubá,

tirada diretamente do mundo do candomblé, como foi o caso de É d’Oxum de Gerônimo,

Elejibô de Margareth Menezes, assim como as diversas músicas, ditas ‘de domínio público’

como Motumbá, Ongoroci pros orixás e Iansã Balé, dentre outros tantos, aproveitados por

Carlinhos Brown nos discos da Timbalada.

Visto, portanto por este viés, pode-se afirmar que são as mesmas expressões da

yorubanidade, que se cultivam nos terreiros de candomblé, que os blocos afro-

carnavalescos e os afoxés agora trazem, via uma ampliação cada vez mais eficaz do antigo

“correio nagô”, ou seja, pela boca do povo, primeiro levando as músicas para cima dos

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trio-elétricos, e de lá para as emissoras de rádio, os canais de televisão (nacionais e

internacionais) e, nos últimos tempos, até à rede global, isto é, pela Internet.

Neste processo de consolidação mesmo que via a massificação dos vínculos da

baianidade à yorubanidade, dois protagonistas se destacam como verdadeiros formadores

da consciência da yorubaianidade. Seus respectivos perfis têm sido constantes na cena

musical desde os anos sessenta, ou seja, pré-datando tanto aos afoxés modernos, e seus

irmãos mais jovens, os blocos afro-carnavalescos, quanto a explosão efetiva dos trio-

elétricos e as novas formas midiáticas, possibilitadas pela avançadíssima tecno-cultura do

século XXI. Estou me referindo ao duo formidável de Caetano Veloso e Gilberto Gil.

3.3.1.3 A Yorubaianidade de Caetano Veloso e Gilberto Gil

Na verdade Caetano Veloso e Gilberto Gil merecem um capítulo à parte na

consideração da presença nagô-yorubana na construção da baianidade que ajudam a

divulgar em suas vastíssimas obras, individual ou coletivamente. Embora, como apontou

Milton Moura, a Bahia não seja destacada na temática do manifesto maior desses dois

baianos, que era o fenômeno discursivo-musical, conhecido nacional e internacionalmente

como Tropicália, nota-se uma súbita afirmação da baianidade, ou melhor, da

yorubaianidade, nas suas respectivas composições e interpretações a partir do momento

que os dois regressaram do 2.º Festival Mundial das Artes e Culturas Negras (FESTAC 77)

em Lagos, Nigéria em 1977, quando Caetano lançou o disco Bicho e Gil lançou seu

Refavela.

Tudo indica que, pelo menos no caso de Caetano Veloso, a visita à Nigéria rendeu

duas gírias. Uma é ‘Two Naira fifty kobo’144, referente, conforme relatou o próprio Caetano

em uma entrevista, ao preço invariável da corrida de táxi em que se deslocavam na

metrópole de Lagos, então capital da Nigéria. Essa expressão monetária viraria mais tarde o

título de uma composição homônima sua, na qual o protagonista já era um sujeito que ‘fala

tupi, fala yorubá’145, enquanto a música já era dominada pela percussão típica yorubana,

chamada gángan (tambor falante). De longe, a segunda aquisição que Caetano fez em

Lagos foi a mais duradoura. Trata-se de uma consciência identitária no sentido afirmativo.

144 Segunda faixa do disco Bicho.145 Se não me engano, houve quem sugeriu que essa referência era para apoiar a candidatura de Pelé àpresidência da República, nas eleições gerais daquela época.

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O primeiro sinal dessa afirmação identitária que aproxima Caetano Veloso à yorubanidade

na defesa da baianidade verifica-se na introdução do conceito odara como carro chefe do

seu disco Bicho.

É pena que, nas duas ocasiões que o cronista-ensaísta Antonio Risério se referiu a

esse conceito odara no seu texto magistral, não se deteve o bastante para lhe explorar os

contornos e analisar a sua importância para se trabalhar a imagem da baianidade. De fato,

quando Risério (1981:32) comenta em Carnaval Ijexá que: ‘(...)Não há nenhuma surpresa

no fato de que os analistas do panorama cultural brasileiro não tenham conseguido

compreender o alcance da música-manifesto Odara, de Caetano Veloso, ou de que estes

mesmos analistas tenham desferido ironias racistas contra as trancinhas de Gilberto

Gil(...)’ fiquei na expectativa de uma análise razoável desse conceito por parte do ensaísta,

até porque o autor lhe dedicou a segunda parte do livro que intitula: Axé Odara

(miniantologia da nova poesia afrobaiana). Para quem não conhece a música-manifesto

Odara referida por Risério, eis uma transcrição do seu conteúdo central incluída na

antologia ‘Poemúsica Yorubaiana’ do próprio Risério:

Deixa eu dançarPro meu corpo ficar odaraMinha caraMinha cuca ficar odara

Deixa eu dançarQue é pro mundo ficar odaraPra ficar tudo jóia raraQualquer coisa que se sonharaCanto e danço que dara

O mínimo que posso dizer a respeito desta música é que se trata de uma expressão

ideológica da (yoru)baianidade que não pode deixar de lembrar os melhores momentos da

carreira do falecido músico rebelde yorubá-nigeriano Felá Anikulapo-Kuti que

ambicionava derrubar do mesmo golpe transgressivo, o então regime militar de Olusegun

Obasanjo e a hegemonia ocidental que teria tomado conta da Nigéria naquele momento,

através da sua música não-conformista, com as letras inflamatórias que ele fabricava na sua

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Kalakuta Republic146. Li numa certa entrevista concedida por Caetano Veloso as

impressões que ele guardou da curta estada em Lagos depois do encerramento de FESTAC

77. Imagino o convívio intenso no Shrine Kalakuta Republic de Felá Kuti que teria

reforçado a postura de defensor da identidade étnica que já era latente em Caetano. Naquela

época, a luta de Felá Kuti ia em duas direções. Num primeiro momento, o músico lutava

para uma afirmação identitária e valorização de sua identidade yorubá-africana, cuja

consciência o teria levado no início da carreira a rejeitar o sobrenome colonial Ransome-

Kuti que lhe legara seu pai defunto, antigo pastor da igreja anglicana, para assumir o novo

sobrenome Anikulapo-Kuti, nome esse que ele queria como um desafio explícito a todos os

poderes hegemônicos (político e cultural) contra os quais ele se posicionava. O novo

sobrenome Anikulapo literalmente significa, “aquele que prende a morte no seu bolso”, ou

seja, uma pessoa que faz medo à própria morte147. Uma das lutas identitárias nas quais Felá

Kuti se emprenhava era a desmistificação da idéia da feiúra como atributo de negros.

Até a sua morte, Felá Anikulapo Kuti fazia questão de aparecer em público,

sobretudo durante os shows, vestido apenas de uma cueca. Isso, segundo ele, era para

mostrar aos brancos racistas que ele, como representante de negros-africanos, não possuía

rabo, ao contrário do que suponhava a ideologia racista que tomava o negro como parente

próximo do macaco. Em suma, nos discursos musicais de Fela Kuti, aparecia, com

freqüência, a valorização da beleza natural do homem negro como um todo, algo que

marcaria mais tarde as composições de Caetano Veloso e Gilberto Gil.

O conceito Odara é justamente uma transposição dessa idéia da beleza negra ao

mundo afro-baiano. A palavra odara vem da expressão yorubana, formada por um pronome

pessoal “ó” no qual vem embutido o verbo “ser”, ou seja, (ele/ela, é), mais o adjetivo

“dára” (lindo/a). Portanto, Caetano não deixa dúvida alguma a respeito da sua

autovalorização ao decidir ‘cantar’ e ‘dançar’ para ‘ficar dara’ de ‘corpo, cara e cuca’, e,

enfim, para fazer o mundo ‘ficar odara!’.

146Esse foi o nome do ‘território’ do músico rebelde no coração da então capital nigeriana de Lagos ondeestava terminantemente proibida a entrada de qualquer agente da ordem pública, a não ser que lá fosse depaisano.147 Felá Kuti levou esse desafio à morte até ao exagero na sua vida particular. Primeiro ao se casar no mesmodia e na mesma cerimônia com as vinte e oito mulheres que formavam o coro da sua banda em 1978, levandouma vida sexual desregulada, como quem não tivesse medo de doenças sexualmente transmitidas. Ele acabamorrendo de Aids em 1997. A segunda instância é a sua filosofia acerca da maconha cujo uso público elepregava e praticava, elogiando-a como fonte de sabedoria e saúde.

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Essa mesma preocupação percorre muitas das outras composições, suas e alheias,

que gravou em diversos discos seus. Moura (2001:150) acredita que, no que tange à

valorização da cor e da estética étnicas, o que Caetano faz nas suas composições, foi

inverter o estigma da cor e da beleza, como uma maneira de fazer ‘uma parodização

radical do estigma’. Para corroborar essa afirmação, Moura cita uma série de músicas que

incluem Beleza Pura [1979]; Sim não [1981]; Um canto de afoxé para o bloco do Ilê

[1982]; Luz do sol [1986]; Depois que o Ilê passar [1987] e Haiti [1993]. O exemplo mais

flagrante seria a música Beleza Pura (1979) na qual Caetano elogia a formosura da moçada

baiana de pele escura, que reluze de beleza pura, mesmo quando é pobre:

(...) Moça preta do Curuzu/ beleza pura/ Federação/ beleza pura/ Boca do Rio/beleza pura/ dinheiro não/beleza pura/ quando essa preta começa a tratar do cabelo/é de se olhar/ toda a trama da trança/ a transa do cabelo/ conchas do mar/ ela mandabuscar/ pra botar no cabelo/ toda minúcia/ toda delícia/ beleza pura/ moço lindo doBadauê.../do Ilê Aiyê (...)

O resgate desse conceito de Odara por Caetano Veloso teria grande repercussão nos

meios artístico-culturais da Bahia, como veremos mais adiante quando abordarei a questão

da moda e da estética yorubá-africana, como uma das expressões mais difundidas hoje no

texto da baianidade. Além do mais, o conceito sempre foi sustentado nas comunidades-

terreiros da Bahia, a crer na abordagem que dele fez o antropólogo Marco Aurélio Luz, que

chegou a defender o conceito odara como ‘cânone estético das formas de comunicação

nagô” definida no imaginário popular como “[o] bom, bonito, útil e belo’148, ou seja,

aquele mesmo atributo que se tornaria a assinatura por excelência do Bloco Cultural Ilê

Aiyê resumido no seu lema – O mais belo dos belos. O resultado disso tudo é que, o

conceito de odara é hoje tão bem incorporado ao texto da baianidade que Moura (2001:

297) soube reconhecer ‘uma louvação odara’, numa das músicas do Bloco Afro Araketu,

contido no disco Bom Demais, lançado em 1994.

Por sua parte, Gilberto Gil pode ser considerado como o maior adepto e

patrocinador da yorubaianidade, por excelência. De fato, desde a sua composição

confessional de 1965, intitulada Eu vim da Bahia, a sua produção vem sendo quase que

completamente marcada pelo binômio, religião e etnicidade. Na longa lista que Moura

(2001:149) juntou como amostra, contam-se, só nesta categoria, músicas como:

148 Cf. Prefácio de Marco Aurélio Luz à 3ª. Edição do conto Porque Oxalá usa Ekodidé de Mestre Didi.

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Batmacumba [1968], Omã Iaô [1969], Iansã, em parceria com Caetano [1972], Filhos de

Gandhi [1973], Babá Alapalá [1976], Balafon e Patuscada de Gandhi [1977], Toda menina

baiana e Logunedé [1979], Axé Babá [1980], Banda um e Afoxé é [1981], Andar com fé

[1982], Ê menina [1982], A raça humana [1982], Extra e Serafim [1983], Oração pela

libertação da África do Sul [1985], Réquiem para Mãe Menininha do Gantois [1986], Yá

Olokun e Buda nagô [1991], Mãe da manhã e Lavagem do Bonfim [1993], Opachorô

[1985].

Nestas, como em várias outras músicas de sua autoria, Gil sempre demonstra o

respeito e a fé que possui pela tradição religiosa e cultural da Bahia, sobretudo a sua

vertente nagô, que é campeã nas suas composições. Tudo indica que Gil tira um prazer

especial em infundir palavras e expressões nagôs em suas composições. De fato, de todos

os cantores/compositores da Bahia, e do Brasil como um todo, Gilberto Gil é quem mais

usa termos yorubanos, tanto como título de suas músicas, quanto no conteúdo das mesmas.

Isso é bem fácil de comprovar na listagem acima-reproduzida.

Muito acima dos temas de suas composições, Gilberto Gil continua dando prova de

sua filiação de corpo e alma à Yorubaianidade nos diversos discursos públicos que vêm

fazendo a respeito dos valores da herança negra na Bahia. A título de exemplo, cito apenas

duas ocasiões que o tenho visto falar na Bahia, desde que assumiu a chefia do Ministério da

Cultura. A primeira ocasião foi no Ilê Axé Opô Afonjá, em agosto de 2003, e a segunda foi

durante o tombamento do terreiro de Olga do Alaketu em abril de 2005.

Para demonstrar o quanto o legado da yorubanidade é valorizado por este agente

exemplar da baianidade, passo a citar o discurso proferido por Gilberto Gil, já como

Ministro da Cultura no Governo Lula, durante a edição de 2003, do festival anual de

música do candomblé, chamado Alaiandê Xirê, no centenário terreiro baiano de Axé Opô

Afonjá. Quando Gilberto Gil afirmou, ao narrar a odisséia de sua chegada à chefia do

Ministério da Cultura que, na hora em que o Presidente-eleito Luiz Inácio Lula da Silva o

convidou para chefiar o Ministério, ele fez questão de informar, antes que mais nada, ao

Presidente da República, que o seu cargo de ministro de Xangô, assim como as

responsabilidades que isso implicaria para com a comunidade do axé, iam pesar muito na

sua decisão de aceitar ou não o cargo nacional.

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Esse reportado discurso do futuro Ministro Gil com o Presidente-eleito Lula, de

muito lembra o outro discurso que teve o protagonista de Jorge Amado, o bedel Pedro

Arcanjo, com o seu amigo e confidente de improviso, o professor Fraga Neto, a quem o

Bedel da Faculdade de Medicina fez algumas das maiores confidências jamais trocadas

entre um indivíduo feito no candomblé baiano e qualquer não-iniciado.

Sem duvida alguma, o belíssimo discurso de Ojúobá: ‘Nasci no candomblé, cresci

com os orixás e ainda moço assumi um alto posto no terreiro. Sabe o que significa

Ojuobá? Sou os olhos de Xangô, meu ilustre professor. Tenho um compromisso, uma

responsabilidade’149 ainda ecoa hoje nos discursos de Gilberto Gil. No seu caso, a

referência do futuro Ministro Gilberto Gil era ao seu cargo de Aré Onikoyi, um dos doze

mongbà (ministros) de Xangô, instituição sagrada-política de matriz yorubá-africana

introduzida pela ialorixá fundadora, Mãe Aninha no Ilê Axé Opó Afonjá, com a ajuda de

um dos maiores agentes transatlânticos da yorubanidade, Martiniano Eliseu do Bomfim.

Quem sabe se essa profissão de fé não contribuiu para tornar possível a manutenção

do visual afro do ministro Gilberto Gil dentro do governo petista, permitindo que ele

conservasse seu penteado de dàda150 além, claro, do privilégio de não ter que abandonar,

nem o seu violão, nem o gingado baiano, mesmo dentro do ambiente ‘capitoliano’ do

Palácio do Planalto, desse modo cumprindo, ironicamente, a predição que Goli Guerreiro

tinha feito no já-citado texto de 1997, a respeito do presidente do Bloco Afro Ilê Aiyê,

Antônio Carlos dos Santos Vovô, que se tinha candidatado naquele ano para vereador,

profetizando que, se esse viesse a se eleger vereador da Câmara Municipal do Salvador, ia

ser ‘o primeiro vereador rastafári do Brasil’.

Isso me leva à segunda ocasião em que ouvi o Ministro Gilberto Gil fazer discurso

na Bahia. Foi durante a cerimônia do Tombamento do Terreiro do Alaketu, também

conhecido como Ilê Maroiá Láji, dirigida até muito recentemente pela ialorixá Olga

Francisca Régis, ou, simplesmente, Olga do Alaketu151. Em companhia dos altos dignitários

políticos e religiosos, inclusive da diretoria do IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e 149 Cf. AMADO Jorge, Tenda dos Milagres, p. 289-270.150 Por sinal, o penteado trançado sempre foi uma das marcas do próprio rei-orixá Xangô que, talvez, foi oúnico macho da sua época a usar o cabelo trançado como o das suas mulheres, uma fantasia que os seussacerdotes decidiram perpetuar em honra do Ôba Kòso, através, tanto do osù do Àdósù ßàngó, como tambémda trança que é obrigatória para qualquer outro Çlëgùn ßàngó, ou seja, ‘cavalo’ de Xangô.

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Artístico Nacional) e do presidente da Fundação Cultural Palmares, Ubiratan Castro de

Araújo, o Ministro Gilberto Gil começou seu discurso oficial com uma citação de um

discurso que Bernardo Pereira de Vasconcelos teria pronunciado no Senado brasileiro em

1843, afirmando, entre outro, que: ‘A África civilizou o Brasil’. Em seguida, O ministro Gil

passou a descrever como a ialorixá Olga era uma digníssima representante dessa África.

Talvez não se possa dizer ainda que já fiz jus a esta seção na qual estou estudando a

interface entre o conceito sa baianidade e o da yorubanidade no que diz respeito à música,

sem fazer menção de um outro baiano cujas composições levaram muito longe a imagem da

Bahia nagô, nacional e internacionalmente. Refiro-me ao cantor e compositor Dorival

Caymmi. Acho justo, portanto, dedicar-lhe a sub-seção seguinte, até porque, se já falei tão

demoradamente de Gilberto Gil que ocupa o cargo de Õtún Ôba Onikoyi no terreiro Ilê Axé

Opô Afonjá, seria grande desrespeito ao protocolo yorubano não falar de Caymmi, que é o

próprio Ôbá Onikoyí152, consagrado ogã de Oxalá do Axé Opô Afonjá, conforme aponta

Hermínio Bello de Carvalho153.

3.3.1.4 A Yorubaianidade de Dorival Caymmi

Nascido na cidade baiana de Nazaré em 1914, Dorival Caymmi foi talvez o primeiro

cantor baiano a levar a tradição da Bahia ao encontro do público sulista, cantando inclusive

a sua terra no rádio, lá do Rio de Janeiro, cidade que elegeu como sua morada desde 1938.

O poeta Hermínio Bello de Carvalho, diretor do show que reuniu todo o talento musical de

Caymmi em 1979, o reverenciou como ‘um pluriartista cuja representatividade extrapola o

território da Bahia de que, igual a Salvador, é também Capital’.

Por sua vez, Moura (2001:146) resume o papel de Caymmi na construção e na

consolidação da imagem da Bahia no sul do país neste belo parágrafo:

151 Dona Olga do Alaketu faleceu no último mês, sendo sucedida no cargo de ialorixá da casa centenária poruma de suas filhas naturais.152 Mãe Senhora, Oxum Muiwá, sucessor de Mãe Aninha no Axé Opô Afonjá foi quem expandiu o processoda implantação da instituição dos ministros de Xangô durante seu reinado como ialorixá do terreiro. Ao corpodos doze mongba (ministros) de Xangô (seis da direita e seis da esquerda), Mãe Senhora acrescentou maisvinte e quatro, nomeando para cada um dos doze mongbas originais, dois “adjuntos”, um à sua direita e ooutro à sua esquerda. Assim, o Obá Arolú agora tem seu “Otum Obá Arolú” e “Ossi obá Arolú”, igualmente,o titular do cargo de Onikoyí tem, também, seu “Otum Obá Onikoyí” e “Ossi obá Onikoyí”, e assim pordiante. Cf. Mestre Didi (Deoscóredes M. dos Santos, 1994, p. 17).153 Cf. Caymmi Oba de Xangô de Hermínio Bello de Carvalho, reproduzido no encarte do disco Caymmi inBahia, disco gravado ao vivo no Teatro Castro Alves em 1979 e remasterizado em 1984 para comemorar os80 anos do compositor.

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Caymmi não fala de uma visita ao mundo baiano; fala desde este mundo. Quasetodos os compositores (que falam da Bahia no Sul, naquela época) dizem que vãoou vieram da Bahia, ou reiteram o que se diz que há na Bahia, ou dos(as)baianos(as), ou ainda aos(às) baiano(as). Mesmo e principalmente quando confessanostalgia, como em saudade da Bahia [1957], Caymmi fala como baiano, como é ocaso também de Acontece que eu sou baiano [1944].

Com efeito, Caymmi tomou gosto em cantar os encantos da sua terra, desde o

sucesso de O que é que a baiana tem?, música que teve maior sucesso no Rio em 1939,

interpretada, inclusive, por Carmen Miranda, vestida de baiana, a mesma cantora que ainda

incorporou no seu repertório outra composição de Caymmi, Preta do Acarajé, do mesmo

ano. Antes mesmo da fundação, em 1968, dos órgãos oficiais responsáveis pelo turismo da

Bahia e de Salvador – Bahiatursa e Emtursa –, Caymmi já era campeão em matéria de

vender a Bahia a turistas potencias, através de diversas composições como Você já foi à

Bahia? [1941], Vatapá [1942], 365 igrejas [1946] e Lá vem a baiana [1947], músicas essas

que tanto falam da saudade do compositor, como fazem elogios à beleza dos patrimônios

físicos e culturais da Bahia, como as igrejas e a gastronomia baiana, com a sua predileção

pelos quitutes preparadas à base do azeite de dendê. As composições falavam ainda da

sensualidade das baianas, entronizadas atrás de seus tabuleiros, com as elegantíssimas

rendas, colares e balangandãs que lhes vieram das suas ancestrais nagôs.

Mais tarde, o convívio de Caymmi com outros intelectuais da Bahia, como o

romancista Jorge Amado, o poeta Vinicius de Moraes e o artista Carybé, em torno da figura

carismática da Mãe Menininha do Gantois, o levaria a uma maior intimidade com os

valores da baianidade nagô. Milton Moura se deixou contagiar pela poesia de Caymmi, ao

resumir a vocação do compositor baiano em cantar os fundamentos místico-religiosos da

Bahia, uma fascinação que culminaria na composição que homenageia a própria pessoa da

ialorixá, ‘...A Oxum mais bonita’ que ‘Olorum mandou para de tudo cuidar’, em Oração de

Mãe Menininha. Assim poetizou Moura (2001: 147) a respeito do gênio do compositor

baiano:

Caymmi fala de Oxum, Xangô e Nanã, mas Yemanjá é o mais forte em sua música,como na de Vinicius. E nenhum compositor parece ter se referido tanto ao Senhordo Bonfim, em composições como Você já foi à Bahia?, O que é que a baianatem?, 365 igrejas, Lá vem a baiana e São Salvador. Tudo é conciliado no bojo dacanção de Caymmi, à sombra da bondosa divindade. Em Festa de rua, uma

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movimentação magnífica se produz em torno da procissão do Senhor dosNavegantes, com muito batuque, capoeira e também candomblé (...)

Exageros e hegemonia nagô à parte, não é só musicalmente que se pode afirmar que

na Bahia, principalmente na cidade soteropolitana, onde, segundo a tradição dos mais

ilustres dos seus cantores-compositores, todo o mundo é d’Oxum, embora fosse óbvio que

desde a primeira experiência da gravação da música do Ilê Aiyê, através da iniciativa de

Gilberto Gil em 1984, afirmações musicais como aquela feita pelo cantor-compositor

Gerônimo, na música “Eu sou Negão”, viraram a soar cada vez mais como que afirmando

“Eu sou Nagão!”154.

Contudo, não devemos esquecer o fato de que foi justamente pelo viés desse tipo de

afirmação que a camada afro-baiana lançou definitivamente a sua contra-narrativa na luta

pela cidadania. Como diz tão bem Goli Guerreiro (1997:97), na experiência afro-baiana, a

música se transformou ‘em bandeira política com força suficiente para barganhar

cidadania para o negro baiano’.

Além do mais, isso confirma a observação feita ao mesmo propósito por outroestudioso do assunto, o baiano Godi (1997: 73ss), quando afirma que:

A música tem sido uma expressão fundamental para a aceitação e legitimação dacultura negra na diáspora, seja na saga conhecida do pioneirismo do jazz nosEstados Unidos da América, seja na Jamaica com a explosão do reggae, ou ainda naBahia com o sucesso da axé-music e do samba-reggae.

E, ninguém melhor que o presidente do Ilê-Aiyê, para reconhecer o papel

preponderante da música, na luta pela plena cidadania para as massas negro-mestiças da

Bahia, conforme afirma no depoimento que fez no DVD A Bahia dos Filhos de Gandhy

(2005):

Eu acho que a música é um elemento importante deste nosso processo civilizatório.A música que nós chamamos música-tema que é a música educativa que dáinformação sobre países africanos, sobre temáticas africanas, sobre grandesrevoluções negras, e você não encontra isso no ensino oficial, na universidade

De fato, esta opção de usar a música como marca de identidade étnica e cultural

representa o segundo domínio mais significativo – o primeiro sendo, claro, a religião –, da

154 Esta impressão está mais do que confirmada na definição que Goli Guerreiro (1997) deu do termo Negão,como sendo um termo que “qualifica um novo tipo de negro, que tem um pé na África e outro na Jamaica,exibe roupas coloridas ..., cujo linguajar está cheio de gírias inspiradas na língua yorubá”. Vide op. cit. p. 97.

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gnose liminar da crescente conjuntura da globalização, na qual a yorubanidade se faz

poderosamente presente. É oportuno lembrar que este sucesso não é apenas verificável no

Brasil, mas também em outros pontos do mundo globalizado da diáspora yorubana, tal

como Cuba, onde o Conjunto Musical, Artístico e Folclórico Nacional tem se afirmado

mundialmente através de seu rico repertório, composto, predominantemente, de músicas de

matriz yorubana, graciosamente executadas ao acompanhamento rítmico da orquestra bàtá

do imortal Xangô.

3.3.2.0 Curtindo a Baianidade Nagô... ou A Yorubaianidade contada por JorgeAmado, esculturada por Carybé e retratada por Pierre Verger

A seleção de músicas que exaltam a baianidade, reunidas num disco intitulado

Acústico Bahia, produzido, recentemente, pela cantora Patrícia Costa, não deixa nenhuma

dúvida sobre o que constitui a baianidade, nem da sua ligação estreita com a yorubanidade.

Desde a música O canto da cidade, composição de Tote Gira e Daniela Mercury,

admiravelmente interpretada por esta última em 1992, ao gosto jubiloso do Ilê Aiyê,

clamando o domínio da cidade pela cor, pelo canto e pela força do afoxé, até a música de

Evany, inconfundivelmente intitulada Baianidade Nagô, temos uma declaração mais do que

patente do que batizei de yorubaianidade. Algo que, aliás, não é novo nas letras baianas,

visto que o trio de Jorge Amado, Caymmi e Carybé tem deixado suficiente prova de tal

conceito nas suas respectivas obras.

Falando da construção por excelência do conceito de baianidade, costuma-se citar

esses três personagens chaves como diretamente responsáveis pela configuração,

sistematização e divulgação da arte de ‘ser baiano’, através de suas respectivas atuações

nas três artes de maior alcance da Pós-Modernidade, ou seja, a literatura, a música e as artes

plásticas. Em outras palavras, é comum ouvir as pessoas citarem o romancista Jorge

Amado, na área da literatura, o cantor-compositor Dorival Caymmi, na música, e o artista

plástico Carybé, no ramo da pintura, como os ‘padrinhos’ da baianidade.

São mundialmente famosos os cenários e os personagens da Bahia retratados nos

romances de Jorge Amado, trazendo a geografia baiana: das viagens de saveiros entre a

Baia de Todos os Santos e Santo Amaro da Purificação (O sumiço da Santa), ao ‘cheiro

doce fumo que viajava no eixo Cachoeira-São Félix e outros portos pequenos,

Maragogipe, Santo Amaro, Nazaré das Farinhas, Itaparica (...)’ (Jubiabá). Caracterizado

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pela mesma contradição aparente de um dos seus personagens mais famosos, o Pedro

Arcanjo de Tenda dos Milagres, e apesar da falta de fé que ele próprio confessou na

entrevista concedida a Cadernos da Literatura Brasileira,155 o romancista que ocupa a

cadeira de Otum Obá Arolu, no terreiro baiano do Axé Opô Afonjá, parecia acreditar numa

coisa certa, que ‘um dia, os orixás dançarão nos palcos dos teatros’, o que, na

compreensão de Serra (1995: 295), representa a convicção do autor de Jubiabá e Gabriela,

naquilo que ele mesmo denomina a sublimação da religião (e, acrescento eu, da cultura)

afro-baiana no domínio das artes.

Senão, como se justificaria o inquestionável gosto com o qual o autor de Tenda dos

Milagres retratou a geografia cultural da cidade metropolitana de Salvador no ‘intrépido

andarilho’ nada-turístico, que fez realizar o visitante ilustre, ninguém menos que o Prêmio

Nobel, James D. Levenson, o grande homem de ciência dos Estados Unidos, na boa

companhia da irresistível Ana Mercedes, giro esse que serviu de pretexto para o romancista

apresentar a seus leitores espalhados pelo mundo afora, a crème de la crème da baianidade,

como quem estivesse exibindo a riqueza da herança que a Bahia tem para barganhar um

lugar ao sol da globalização cultural:

Levenson correra a cidade (....) Conversou com variada gente: Camafeu de Oxossi,Eduardo de Ijexá, Mestre Pastinha, Menininha e Mãezinha, Miguel Santana ObaAré. Fugiu dos notáveis e recusou jantar de homenagem a pretexto de indisposiçãointestinal, declinando do fino menu e do discurso de saudação do acadêmico LuizBatista, uma notabilidade. Foi comer vatapá, caruru, efó, moqueca de siri mole,cocada e abacaxi no alto do Mercado Modelo, no restaurante da finada Maria de SãoPedro, de onde via os saveiros de vela desatadas cortando o golfo, e as coloridasrumas de frutas na rampa sobre o mar.No candomblé de Olga, filha de Lôko e de Yansan, no Alaketu, reconheceu osorixás dos livros de Arcanjo e, fazendo ouvidos moucos às explicações do noivo damoça, os saudou com alegria e amizade. Apoiado em seu reluzente paxorô, Oxaláveio dançando até ele e o acolheu nos braços. Seu encantado, meu pai, é Oxalufã,Oxalá velho, disse-lhe Olga, levando-o para ver os pejis. Uma rainha, aquela Olga,em seus trajes e colares de baiana, com cortejo de feitas e iaôs. Rainhas nas ruas dacidade, com seus tabuleiros de comidas e doces, duplamente rainhas nos terreiros,mães e filhas-de-santo, escrevera Pedro Arcanjo. (AMADO, 2001: 62).

Uma verdadeira exaltação, diria eu, do que a baianidade representa para o

romancista, uma homenagem que lhe valeria, a título póstumo, o reconhecimento do Bloco

155 Cf. Instituto Moreira Salles: Caderno da Literatura Brasileira - Jorge Amado, Número 3, março de 1997. p.43-57.

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Cultural Olodum, uma das mais conceituadas das agremiações contemporâneas da Bahia e,

o bloco afro mais empenhado no marketing da Bahia no mercado cultural da globalização,

que homenageou, o romancista no carnaval 2004, escolhendo como tema de sua saída na

avenida, justamente Tenda dos Milagres, esse romance mais baiano do escritor do Rio

Vermelho.

Grande defensor do sincretismo e do mito da democracia racial no Brasil, não deixa

de ser notável a predileção de Jorge Amado pela herança nagô-africana na configuração do

imaginário da sua vastíssima obra romântica. Também, não deixa de ser admirável a

maneira como ele consegue dar conta, nas suas obras, de tantos elementos que compõem o

texto da baianidade: a sensualidade, o otimismo, a alegria, a familiaridade, a religiosidade,

etc. Nas palavras de Moura (2001:160), o autor de o sumiço da Santa (1988), ‘tudo reúne e

compatibiliza: Conventos, candomblés e castelos; padres e mães-de-santo; dondocas e

prostitutas; os lugares mais diferentes da cidade, e dezenas de amigos e amigas, entre os

quais músicos, artistas plásticos, políticos e personagens muito especiais como Dona Canô

(...)’. Não é difícil entender porque o sociólogo o chamou de romancista da baianidade.

Embora conste certa ambivalência na postura de Jorge Amado a respeito dos

afrodescendentes, sendo possível até que ele seja acusado de certa demagogia e, até, de ter

praticado, nas suas obras, uma folclorização da cultura negra, até porque, como aponta o

antropólogo Ordep Serra (1995: 289ss), o projeto de Jorge Amado não seria uma exaltação

do negro na sua essência, senão a consagração do mulato, como o verdadeiro tipo nacional,

ainda se pode afirmar, a respeito de Jorge Amado, que o convívio do romancista com as

grandes ialorixás da Bahia, e com o povo de santo em geral, acabou tornando-lhe um

grande nagôfilo. Prova disso é o fato que seu maior mulato, Pedro Arcanjo Oju-Obá, se

revela, no romance Tenda dos Milagres, como o maior nagôfilo de todos.

No tocante ao que nos interessa neste segmento, isto é, a yorubaianidade de Jorge

Amado, pode se dizer que foi desde Mar Morto [1936] que aparece a predileção do

romancista pelo papel da religiosidade e a força da herança cultural nagô-yorubana, naquilo

que Moura (2001: 155) chama de ‘drama da sobrevivência’. Naquela obra, o romancista do

Rio Vermelho fez de Yemanjá a verdadeira protagonista da trama de pescadores, gentes do

cais e saveiros. Mesmo na incoerência de seu Pedro Arcanjo Ojuobá, olhos de Xangô, que

confessou ter perdido a crença nos orixás, ao buscar outras fontes que acabaram levando-no

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ao materialismo, o autor de Tenda dos Milagres (2001: 271) ainda conseguiu guardar a

melhor parte de sua convicção, nunca deixou de acreditar que ‘os orixás são um bem do

povo’.

De uma coisa o autor de Bahia de Todos os Santos (1945) não deixa dúvida, com ou

sem a crise do materialismo que atormentava o seu Pedro Arcanjo, tem mesmo uma

confiança imutável na capacidade de Ògún, orixá yorubano do ferro, da guerra e das

tecnologias, para resolver qualquer situação. Por duas vezes, pelo menos na sua obra

romântica, justamente em Tenda dos Milagres (1969) e em O Compadre de Ogun

(1964)156, Jorge Amado demonstra a capacidade de Ogum para ‘pe dan’, ou seja, fazer

prodígios, produzir milagres e realizar o impossível, conforme sua natureza de orixá da

inovação e do desembaraço.

Não sei até que ponto o próprio romancista estava consciente da homenagem que o

título do romance Tenda dos Milagres representa para Ogum157. É significativo que foi

graças à intervenção “milagrosa” do orixá do ferro – e patrono dos ferreiros, dos militares,

dos soldados, dos taxistas, dos caçadores e de todos aqueles que trabalhem, de uma forma

ou de outra, com o ferro ou com a tecnologia, sendo o orixá, ainda desta forma, patrono do

computador – que Pedro Arcanjo conseguiu livrar o povo-de-santo da Bahia da opressão e

da fúria do delegado-auxiliar Pedrito Gordo158. O prodígio de Ogum, cuja irá terrível Pedro

Arcanjo Ojuobá soube desencadear, durante a invasão do terreiro do Ilê Ogunjá do

babalorixá Procópio, foi um acontecimento determinante do romance, fechando para

sempre o capítulo doloroso do arrombamento de terreiros de candomblé na Bahia.

Uma análise sintática do sortilégio (ôfõ/àyájö) em língua yorubá, com o qual Pedro

Arcanjo transformou em instrumento da destruição virada contra seus próprios colegas o Zé

Alma Grande, maior matador da escolta assassina com a qual o chefe da polícia costumava

terrorizar os candomblés, revela uma poderosa inspiração da parte do romancista. Descobri

156 Cf. AMADO, Jorge, Os pastores da noite.157 O vocábulo “tenda” evoca a oficina de ferreiro onde se transforma o ferro bruto em ferramentas de todosos tipos.158 Fora do mundo fictício do romance, existia de verdade um delegado de polícia que respondia a esse nome.Era ele o temido Dr. Pedro de Azevedo Gordilho, perseguidor oficial das casas de Candomblé na Bahia dosanos 1930. O episódio da sua humilhação pelo povo-de-santo é contado em diversas versões, sendo que oromancista Jorge Amado privilegiou em Tenda dos Milagres essa versão que mais enaltece o poder dos orixásyorubanos a dar o cabo em qualquer adversário, por mais poderoso que possa ser o aparato oficial que osustenta. Matory (2005:185-6) sugere que esse episódio do Pedrito demonstra a capacidade do Candomblé ase impor na sociedade baiana e brasileira, quebrando a hegemonia das classes euro-brasileiras.

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um trocadilho feliz na frase mágica, reproduzida na página 264 do romance: ‘Ogun kapê

dan meji, dan meji pelu oniban!’,159 com a qual Pedro Arcanjo transformou Zé Alma

Grande em cavalo de Ogum, matando um colega seu e pondo o próprio delegado Pedrito

Gordo a correr de pânico. Duvido que o próprio romancista tinha tido consciência do

trocadilho que ocorreu na frase. O substantivo ‘dan’, usado no sortilégio, significa ‘cobra’

em língua fon, sendo que o vocábulo que significa ‘cobra’ em yorubá é ‘ejò’.

Conforme já foi visto no capítulo anterior quando analisei a composição, os

mecanismos de armazenamento e o uso de textos mágicos como ôfõ, àyájö, ògèdè etc., uma

advertência constante em yorubá é sempre, a necessidade de ‘sàá bi olóògùn ti pèé!’, ou

seja, que não se deveria mudar a estrutura interna de um sortilégio para não correr o risco

de fracassar, na hora de usar o mesmo.

Conseqüentemente, quando Pedro Arcanjo substituiu o sinônimo em língua fon pelo

substantivo yorubá, trocando ‘ejò’ por ‘dan’, no sortilégio que, sem dúvida alguma, foi

concebido em yorubá, era de se esperar que o orixá não fosse reagir favoravelmente.

Porém, o fato curioso é que, essa ‘confusão’ sintática, na realidade, serve para reforçar o

papel milagroso de Ogum no sortilégio. Um olhar mais indulgente à estrutura da frase,

justamente na altura onde a palavra ‘dan’ foi introduzida no lugar que deveria ter sido do

vocábulo yorubá ‘ejò’, revela como se produziu o resultado milagroso.

Com efeito, a expressão ‘pê dan’ se traduz, em yorubá idiomático, como ‘fazer

milagre’ ou ‘ fazer prodígios’, porém, ao pé da letra, a mesma estrutura significa ‘chamar

dan’ ou ‘conjurar dan’160. Portanto, se substituirmos o vocábulo ‘dan’ pelo termo yorubano

‘ejò’, a oração, ao pé da letra passa a significar ‘chamar cobras’ ou ‘conjurar cobras’.

Assim, ao invocar Ogum com o sortilégio: ‘Ogun kapê dan ...’, como lhe fora

passado pela ialorixá Majê Bassã no ensinamento derradeiro que dela recebeu no dia da

morte da grande matriarca, Pedro Arcanjo Ojuobá estava, inconscientemente, convidando

Ogum para ‘pê dan ... pelu oniban’, ou seja, que Ogum fizesse um prodígio para acabar

159 Na tradução do autor: “Ogun chamou as duas cobras e elas se ergueram para os soldados”.160 Aliás, é sintomático que a palavra “dan” acaba sendo repetida duas vezes no sortilégio, o que me leva ajulgar que, quando ocorreu na primeira parte junto ao verbo ‘pê’ (pê dan), tinha uma função vocativa, ou seja,convidando Ogum para “fazer prodígios”. Já a segunda ocorrência de “dan” se volta para o substantivo “dan”em língua fon, ou seja, cobras. (ejò em língua yorubana). Sem dúvida alguma, estamos diante de mais umexemplo do belo casamento entre as línguas e culturas fon e yorubá no espaço da Diáspora Atlântica.

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com os adversários armados que vieram perturbar a festa do povo do axé com suas armas

de fogo (iban).

Efetivamente, Ogum não podia deixar de responder a tal pedido de urgência,

montando, na mesma hora, o matador Zé Alma Grande, cujas mãos transformou em duas

cobras (dan), para derrotar, uma vez por todas, os policias assassinos e profanadores de

terreiros.

Quanto ao segundo episódio que prometi trazer para demonstrar o apego de Jorge

Amado aos orixás yorubanos, sobretudo, aos orixás guerreiros, neste caso Ogum, trata-se

do batizado do filho do Negro Massu, na novela O compadre de Ogum. Mais uma vez, o

romancista coloca em prova a capacidade de Ogum para desempatar as situações críticas de

seus devotos. O drama era de desespero: No embaraço de escolher um padrinho para seu

filho Felício entre os amigos, todos bem-merecidos, o Negro Massu, ogã de Ogun no

terreiro de Mãe Doninha, afamada ‘senhora das forças desconhecidas, da magia e da

língua yorubá, das palavras decisivas e das ervas misteriosas...’, recorreu a seu orixá para

resolver o impasse, trazendo galos e pombos para sacrifício, como foi determinado pelo

próprio orixá. Na maior prova que jamais se tem notícia no Brasil ao longo dos largos

séculos de convívio dos santos da igreja católica com os orixás originários do outro lado de

Atlântico, Ogun falou alto, ao baixar numa das iaôs do terreiro de Doninha, que iria ser ele

mesmo o padrinho do menino na hora desse receber o sacramento de batismo na Igreja do

Rosário dos Negros.

Depois de estudar demoradamente a melhor maneira de satisfazer esse desejo do

orixá de aparecer na igreja, ficou combinado que Ogum iria para a missa do batizado,

montado em um de seus filhos. A história se complicou, quando, no dia do batizado, Exu

resolveu roubar ‘o cavalo’ de Ogum, montando no designado filho-de-santo, para estragar a

festa.

Poderia transcrever páginas inteiras da belíssima homenagem que Jorge Amado faz

a Ogum e ao culto yorubano nessa novela, mas a escassez do espaço não me permitiria tal

luxo. Mesmo assim, em nome da yorubaianidade, peço licença para reproduzir aqui a cena

suprema do maravilhoso evento do batizado, quando Ogum teve de superar-se a si mesmo

para afastar o seu irresponsável irmão, o gaiato Exu que queria usurpar-lhe o lugar de

padrinho no ato do batizado:

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(...) Ficaram todos parados ali e em toda parte. Apenas Ogun errava pelaigreja, num desespero. E o silêncio e a imobilidade.

Foi quando se viu o mais inesperado e extraordinário. O padre Gomesestremeceu dentro de sua batina, saltou de seus sapatos, vacilou nas bases, rodopiouum pouco, semicerrou os olhos.Jesuíno Galo Doido prestou atenção. Seria verdade o que seus olhos estavamvendo? Doninha, Saturnina, Nezinho, Ariano, Jesuíno, alguns outros, davam-seconta, mas não se amedrontaram, viviam na intimidade dos orixás.

O padre murmurava qualquer coisa, Mãe Doninha, respeitosamente,colocou-se a seu lado, e disse uma saudação em nagô.

Atrasara-se Ogun naquela manhã do batizado, tivera demoradas obrigaçõesna Nigéria e uma festa de arromba em Santiago de Cuba. Quando chegara apressadoao barracão do Axé de meia Porta, encontrara seu cavalo Artur da Guima montadopor Exu, seu irmão irresponsável. Exu ria dele e o imitava, queixava-se de não lhehaverem dado o prometido, uma galinha-d’angola. Por isso preparava-se paraprovocar o escândalo e terminar com o batizado.

Como um louco, Ogun atravessou a cidade da Bahia em busca de um filhoseu em quem descer para repor as coisas em seu lugar, expulsar Exu e batizar omenino. Primeiro procurou pelo Axé, não havia nenhum. Filhas, sim, muitasestavam por ali, mas ele necessitava de um homem. Foi ao Opô Afonjá em busca deMoacir de Ogun, o rapaz andava para as bandas de Ilhéus. Foi noutros terreiros, nãoencontrou ninguém. Saiu desesperado pela cidade, enquanto Exu fazia estrepoliasno bonde. O motorneiro era de Omolu, o condutor era de Oxossi. O soldado deOxalá, Mário Cravo também de Omolu, ninguém era de Ogun. Agora no Largo,assistia aos destemperos de Exu. Vira como ele enganara a todos, como aplacara asdesconfianças de Doninha, ao levantar Veveva do chão com delicadeza e respeito.

Entrou, na maior das aflições, atrás dele na igreja. Queria falar, desmascararExu, tomar seu lugar, mas como fazê-lo se não havia um só cavalo seu, um macho,a quem cavalgar?Rodou pelos quatro cantos do templo enquanto o padre se aproximava e iniciava seuinterrogatório. E, de súbito, ao fitar o sacerdote ele o reconheceu: era seu filhoAntônio, nascida de Josefa de Omolu, neto de Ojuaruá, obá de Xangô. Nesse podiadescer, estava destinado a ser seu cavalo, não fizera as obrigações no tempo devidomas servia numa emergência como aquelas. Sagrado padre, de batina, mas nem porisso menos seu filho. Ao demais, não havia jeito nem escolha: Ogun entrou pelacabeça do padre Gomes.

E, com mão forte e decidida, aplicou duas bofetadas em Exu para eleaprender a comportar-se. O rosto de Artur da Guima ficou vermelho com a marcados tapas. Exu compreendeu ter chegado seu irmão, estar acabada a brincadeira.Fora divertido, estava vingado da galinha d’angola prometida e escamoteada.Rapidamente abandonou Artur, numa última gaitada, e foi-se esconder atrás do altarde são Benedito, santo de sua cor.

Quanto a Ogun, tão depressa entrara mais depressa saiu, largou o padre eocupou seu antigo e conhecido cavalo, no qual devia ter chegado à igreja se Exu nãoatrapalhasse: Artur da Guima. Foi tudo tão rápido, somente os mais entendidosderam-se conta. O etnógrafo Barreiros, por exemplo, nada percebeu, apenas viu opadre esbofeteando Artur da Guima por pensá-lo bêbado.

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–– Não vai haver mais batizado. O padre vai botar o padrinho pra fora ... ––concluiu.Mas o padre voltava a seu natural. Nada sabia de bofetadas, não se lembrava decoisa alguma, abriu os olhos.:

–– Tive uma tonteira ...Inocêncio acudiu aflito:–– um copo de água?–– Não é preciso. Já passou.

E, voltando-se para o padrinho.–– Como é mesmo seu nome?Não estava esse homem bêbado, há pouco? Pois curara a cachaça, agora

firme nas pernas, erguido, parecia um guerreiro, a sorrir.–– Meu nome é Antônio de Ogun.

O padre tomou do sal e dos santos óleos161.

Não deve ser difícil entender porque escolhi reproduzir esta longa passagem da

novela. Posso demorar-me muito sobre vários aspectos da yorubaianidade levantados pelo

romancista só a partir deste trecho: a ponte aérea triangular que percorreu o orixá, entre as

obrigações que teve na Nigéria, a festa em Santiago de Cuba e a chegada apressada na

Bahia, demonstrando a capacidade dos orixás de vencer os limites do tempo e do espaço,

sem terem que se preocupar com os fusos horários162; a escolha do padre Gomes para servir

de cavalo improvisado para expulsar Exu do cavalo original, Artur da Guima; a

carregadíssima implicação do empréstimo do corpo santificado do padre para resolver o

impasse do orixá, transformando-o no mais perfeito Antônio de Ogum, símbolo impecável

do sincretismo baiano...

Essa consagração da yorubaianidade nas expressões literárias de Jorge Amado deu-

se por consumado na obra artística do seu compadre Carybé, argentino de nascimento que

foi, conforme a historiografia popular da baianidade, atraído à Bahia pelos romances de

Jorge Amado, da mesma maneira que o fotógrafo-etnógrafo francês, a babaláwo Pierre

Fatumbi Verger, que viria a ser um dos maiores defensores da presença yorubana na

configuração da baianidade.

De fato comenta-se geralmente que o que Carybé pintava e esculpia correspondia ao

que Verger fotografava descrevia em seus textos. Ou seja, o convívio de um e outro com os

161 Cf. Compadre de Ogun, 26ª. Edição. p. 185-186.162 Na verdade, em O compadre de Ogun como em O sumiço da santa, verifica-se a implosão da noção datemporalidade e espacialidade pelos orixás – Ogun e Iansã respectivamente. Isso ressalta a dinâmica dosorixás e sua vivacidade que os torna dignos da veneração de seus adeptos.

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mais notáveis dos terreiros baianos e o seu cotovelar cotidiano com as diversas camadas de

baianos e baianas renderam aos dois perfeitos modelos e inspiração para a respectiva arte

de cada um. O resultado se comprova hoje em infinitas obras primas de pinturas e

esculturas produzidas por Carybé e as fotografias e textos etnográficos de Pierre Verger.

Na obra de ambos, o que predomina é um glorioso retrato da Bahia na qual

predominam elementos da cultura nagô. De Verger, diz-se que: ‘a forma com que associa o

afrodescendente baiano ao yorubá afirma que a altivez do primeiro é a mesma do segundo’

( MOURA, 2001:153).

Olhando as pinturas de gentes da Bahia e as esculturas das divindades em perfeita

sintonia com o meio baiano, sobretudo as vinte e sete painéis dos diversos orixás do

panteão yorubano, obras-primas de Carybé, que hoje adornam uma sala do Museu Afro-

Brasileiro no Pelourinho, tem-se a impressão de um artista apaixonado com o viver baiano:

o povo, seu cotidiano, sua fé e suas festas.

Do mesmo modo, o Retrato da Bahia que o fotógrafo-etnólogo Verger registrava

durantes mais de três décadas com sua poderosa Rolleiflex torna-se, hoje, um testamento da

visão que teve este bem-viajado francês do valor cultural da herança étnica predominante

na Bahia. Sobretudo os registros que documentou do uso do corpo pelos baianos e baianas,

eternizando a graça e as posturas altaneiras das populações afro-mestiças da Bahia,

descendentes de escravos marcados por aquela atitude insubmissa que tornou notáveis os

escravos jeje-nagôs na época das grandes revoltas do século XIX, atitude essa que fez o

estudioso Muniz Sodré concluir, certa vez, que os nagôs escravizados que aqui viveram

eram ‘cativos sem a moral de escravos’.

Em resumo, vê-se que a experiência de Carybé e Pierre Verger é a história de dois

estrangeiros que se etnicizaram, ou, melhor dizendo, se yorubanizaram na Bahia, depois de

terem sido encantados pelo jeito de ser do povo baiano. No caso de Verger, ele foi mais

longe ainda no seu namoro intenso com a yorubanidade, fazendo-se verdadeiro ponte entre

alguns protagonistas da cultura e religiosidade na Bahia e os da própria Yorubalândia no

continente africano. Mestre Didi me contou uma vez que a sua integração nos meios

yorubá-africanos durante a primeira visita realizada por ele e sua mulher, a antropóloga

Juana Elbein dos Santos, através de uma bolsa concedida pela UNESCO em 1967-70, foi

facilitada por Pierre Verger, que lhes serviu na ocasião, de guia e motorista, apresentando o

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casal às autoridades civis, políticas e educacionais em Ibadan na Nigéria e em Ketu, na

República do Benin.

Mestre Didi até fez questão de documentar esse serviço prestado por Verger no

depoimento que serviu de prefácio a uma recente edição que reuniu os seus Contos Negros

da Bahia e Contos de Nagô (2003: 11) quando registra que: ‘Pierre Verger, a quem todos

conhecem em toda a região por Babalaô Fatumbi e que já conhecia o Rei (de Ketu), fez a

nossa apresentação...’.

Além do mais, o mesmo Verger foi, talvez, o maior benfeitor da Casa do Benin na

Bahia e, de certa maneira, o próprio Museu Afro-Brasileiro, ambos localizados no Centro

Histórico de Salvador, sendo ele quem trouxe a grande maioria das peças oriundas da

Yorubalândia, ou seja, da região Nigéria e Daomé (atual República do Benin), tais como

máscaras de Gêlêdë, conjuntos de Ifá, cerâmicas, peças da metalurgia yorubana e outras

amostras do patrimônio artístico e material do povo nagô-yorubano da África Ocidental.

3.3.3.1 Monumentos da Yorubaianidade no espaço soteropolitano I: do Diqueao Rio Vermelho

Obviamente, essa construção de múltiplas mãos do conceito da baianidade,

elaborada por variados personagens baianos, (naturais ou naturalizados), veio a ter um forte

eco no seio da própria sociedade soteropolitana, a julgar pelo diversos edifícios privados

que se espalham pela capital baiana, tais como o shopping Orixás Center e os edifícios

Ogun Onirê, Oxóssi, Ossaim, e tantos outros monumentos arquitetônicos colocados sob a

proteção dos orixás yorubanos163. O tema encontra também grande simpatia com os

governantes baianos, sobretudo, o poder público da Bahia que dotou a cidade soteropolitana

de inúmeros monumentos autênticos, exaltando essa baianidade nagô, tais como o cetro

Òpó Baba nlá wa, escultura da arte sacra de Mestre Didi, no Rio Vermelho, e a coleção

aquática de orixás no Dique de Tororó, obra do escultor Tati Moreno, onde os orixás

yorubanos se reúnem no mais completo conselho tutelar em torno do grande Oxalá, orixá

da criação por excelência, como que para re-encenar a criação do orum e aiyê, deslocando o

163 O pesquisador e antropólogo baiano, Renato da Silveira me contou posteriormente que o idealizador desseprojeto arquitetônico que dotou a cidade do Salvador com edifícios em homenagem aos orixás yorubanos foiLuis Pereira de Araújo, filho de uma certa Dona Nola, senhora da burguesia ‘branca’ baiana que, no iníciodetestava as coisas dos orixás, mas acabou sendo salva de uma enfermidade gravíssima pela intervençãodesses. Os edifícios seriam a paga da família em reconhecimento do poder dos orixás.

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palco primordial para esta nova Ilé-Ifê diaspórica, verdadeira Roma Negra da

Globalização.164

Em Urbana baianidade, baianidade urbana (1998:63), o baiano Serpa Ângelo

assim descreve essa grande homenagem feita aos orixás pelo poder público da Bahia:

No centro do espelho d’água, que já serviu de defesa para os holandeses, 12 orixásde grande porte (com sete metros de altura), dispostos em círculo, como numacerimônia de candomblé (... )

Para justificar tamanha valorização dos orixás yorubanos, Serpa (1998:64) assim

explica o raciocínio da edificação do monumento em pleno centro da capital baiana:

O dique, como toda a cidade, é de Oxum. (uma Oxum vaidosa, terna, dengosa,

que encontra sua melhor tradução na performance teatral de Clécia Queiroz).

Ela reina soberana na companhia de Xangô, Ogum, Oxalá, Oxossi, Nanã,

Iansã, Iemanjá, Oxumaré, Ossain e Logunedé (... )’.

E, como quem procura ligar a presença dos orixás do Dique aos anseios da

baianidade, Serpa (1998: 65) afirma que, pela sua presença, ‘a natureza é humanizada... Os

orixás dão o pano de fundo, o contexto sagrado para que preocupações e tensões

cotidianas sejam superadas e harmonizadas (...)’.

Algo me faz concordar com ele que essa, na verdade, seria um dos objetivos do

Governo da Bahia, ao dotar a cidade desse monumento, uma vez que a herança dos orixás é

vista como uma força unificadora das diversas camadas étnico-raciais da Bahia. Por isso

que, não obstante as críticas iniciais e as agressões recentes dos grupos evangélicos por

causa de tanta valorização dos orixás na Bahia, a tendência ainda é ver os governantes

continuando a apoiar as expressões populares e religiosas tradicionais, sobretudo as festas

do largo, onde se mistura o sagrado ao profano, tais como a consagrada Lavagem do

Bonfim, a festa de Yemanjá do dia dois de fevereiro, e a festa de Santa Bárbara, dentre

tantas outras. A respeito desta última festa – a de Santa Bárbara –, estudiosos e

antropólogos, como Jocélio Teles dos Santos, constatam que a sua natureza sincrética vem

sendo cada vez mais acentuada, sendo que a própria Igreja Católica, que costumava se

164 É bom notar que Salvador/Bahia vem cumprindo cada vez mais esse papel de Roma Negra nesta era daGlobalização, recebendo turistas e visitantes, que parecem mais como verdadeiros romeiros, vindos dasdiversas parte do Atlântico Negro – EUA, Inglaterra, América Latina, Caribe etc. Hoje, um de cada trêsdesses ‘romeiros’ negros acaba querendo fixar residência na Bahia, de tanto que se sentem acolhido nestaterra do Axé.

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colocar contra as manifestações sincréticas como a caída em transe, comum entre as

senhoras que acompanham tanto a missa como a procissão da santa, hoje está mais

tolerante. No ano passado, durante a festa de Santa Bárbara, um dos jornais da Bahia

documentou a defesa que um clérigo católico fez do acarajé, uma das principais iguarias

usadas no candomblé para o culto de Iansã, orixá que corresponde a Santa Bárbara no

candomblé, afirmando, numa clara alusão aos grupos evangélicos que estão querendo se

apropriar dos bolinhos de Iansã para fins prosélitos, que acarajé pertence à cultura africana,

uma comida para os orixás. Portanto não adianta querer mudar sua significação.165

Falando nisso, gostaria de abrir um parêntese aqui para considerar o questionamento

de Milton Moura (2001) acerca da inclusão do sincretismo no texto da baianidade, algo que

me parece surgir diretamente de uma incompreensão ou, quem sabe, fruto de uma

interpretação puramente acadêmica, de uma questão cuja profundidade remete à própria

alma de um povo. Quando o sociólogo, ao abordar a questão do sincretismo assim afirma:

‘Não conheço um fiel que tenha as duas formas de crer fundidas ou diluídas numa só...’,

estou tentado a lhe convidar que vá prestar mais atenção às senhoras que participam de

festas populares como a de Santa Bárbara, celebrada toda 4 de dezembro em Salvador.

Em uma documentação que fiz da procissão de Santa Bárbara em 2003, consegui

filmar algumas dessas senhoras, vestidas do tradicional vermelho e branco, cores da orixá

Iansã, também conhecida como Ôya em yorubá, comandando a veneração da Santa no altar

improvisado no Quartel General dos bombeiros na Baixa dos Sapateiros, onde a imagem da

Santa católica se encontrava entronada, recebendo a veneração de milhares de fiéis, ao som

de cantigas e saudações de Eparrei!!!, gritada, intermitentemente, por essas mesmas

senhoras que seguravam firmemente um terço que não paravam de deixar cair pelos

dedos166. Em meio às periódicas aspersões de mistura de água (não sei dizer se era benta ou

não, embora me lembre que tinha visto um sacerdote católico no local, instalado em cima

165 Cf. Jocélio Teles dos Santos, op. cit.166 O pesquisador baiano Vilson Caetano de Sousa Júnior parece ter feito a mesma experiência que eu. É deleo seguinte trecho, extraído do jornal vespertino A TARDE de 4/12/2000, no qual cita o jornalista Gerson dosSantos dizendo: “A beleza do colorido, principalmente o das baianas, todas a caráter, e dos integrantes davenerável Ordem Terceira do Rosário de Nossa Senhora do Carmo, fundada há 375 anos, com um sobretudotambém na cor vermelha, deram muito brilho à festa, onde o som dos atabaques e o canto das pessoas ligadasao candomblé também tiveram espaço durante a missa”.

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de um guindaste)167, e a comida sagrada de Iansã, sobretudo, milho branco, vi uma ou duas

filhas-de-santo que caíram em transe. Aposto que seria completamente impossível

convencer essas senhoras, que, aliás, depois de seguir a procissão da santa até a igreja do

Rosário dos Pretos, voltavam para distribuir, no mercado de Santa Bárbara e vizinhanças, o

caruru preparado em honra da orixá, de que há um ponto de cisão entre Santa Bárbara e

Iansã.

Já houve um tempo em que eu mesmo discordava do sincretismo, questionando o

que considerava uma incoerência na tabulação das equivalências das identificações entre

santos católicos e orixás. Como parece ter feito o sociólogo, eu também questionava como

seria possível para um mesmo orixá ser ‘interfaciado’, (para tomar emprestada a expressão

de Moura), em dois ou mais santos ao mesmo tempo, como é de fato o caso de Santa

Bárbara que virou Xangô (orixá macho) em Cuba168 e Iansã (orixá fêmea), no Brasil, além

de São Jerônimo, que é Xangô no Brasil, ou, ainda, o caso de Ogum, que, segundo o

próprio Milton Moura, se sincretiza com São Jorge no Rio de Janeiro, e, na Bahia, com

Santo Antônio. Hoje, porém, acho que toda análise puramente acadêmica dessa ou de

qualquer outra incoerência flagrada no mundo representativo de aspectos que remetem à fé

das pessoas, só pode ser, no mínimo, um exercício subjetivo.

Continuo discordando de Moura (2001: 167) de que teria sido a imprensa, a

Bahiatursa e a Emtursa, juntamente com as agências de turismo que foram responsáveis

para a manutenção e a alimentação do sincretismo, acusando-os inclusive de terem erigido

‘uma banal correspondência biunívoca entre entidades de uma e outra religião (...)’. Por

mais que possam ser condenados pelo possível crime de exotização do candomblé e da

folclorização da cultura negra, acredito que quem estabelece a relação entre o santo e o

167 Na festa de 04 de dezembro de 2005, quem fazia as aspersões era um pai-de-santo, que, com as folhas queimergia na água, até dava banhos especiais nas pessoas que se aproximavam do canto onde ele se encontrava,diante de uma imagem da santa.168 Para explicar essa troca de sexos, eis o que a dupla de escritoras cubanas Mirta Fernández Martinez eValentina Porras Potts nos contam em seu livro de 1998: “Em outro patakin (história oral), la vinculaciónentre el aspecto y los símbolos de Santa Bárbara, viene dada porque en una ocasión, Shangó, para escapar desus perseguidores, se vistió de mujer con las ropas de su esposa Oyá”. As estudiosas cubanas continuam:“Podemos apreciar como la descripción legendaria de Shangó – el orisha “macho” por excelencia – coincidecon la imagen de Santa Bárbara venerada en Cuba. La Santa Bárbara cubana, de hermoso rostro y largocabello, porta una corona de oro, viste de rojo y blande una espada, al igual que su alter ego africano. Noobstante, la semejanza entre Shangó y Santa Bárbara no termina ahí: Santa Bárbara fue joven y bella, comojoven y bello fue Shangó; utilizan símbolos semejantes (el castillo y la espada), y en la historia de ambosexisten algunos puntos coincidentes”.

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orixá sempre foi o próprio povo de santo, ou povo-do-axé, como muitos preferem ser

chamados. Pelo menos, a Ebome Cidalia do Terreiro do Gantois não deixou dúvida quanto

a esse ponto, ao evocar a memória da saudosa Mãe Menininha para defender a doutrina da

casa, a respeito do sincretismo, durante a intervenção que fez para os integrantes do Projeto

Conexão de Saberes, sob a coordenação da professora Florentina Souza, em 3 de setembro

de 2005.

A meu ver, querer transferir o crédito da invenção e manutenção do sincretismo para

a imprensa e os órgãos de turismo seria cair no mesmo erro que cometeram alguns

estudiosos ao insinuar que quem inventara as práticas litúrgicas com as quais se legitima a

tão polêmizada pureza nagô das casas de nação queto, teria sido o médico-legista Nina

Rodrigues, alguns até chegando a afirmar que muitos dos sacerdotes e sacerdotisas de

candomblé sempre guardam um exemplar dos textos principais nos quais Nina Rodrigues

teria descrito os rituais quetos, para que possam usá-los como modelo em seus próprios

cultos.

De qualquer maneira, prefiro me posicionar ao lado de Vilson Caetano de Sousa,

para reafirmar que, não é necessário ‘diluir’ numa só, as duas fés (católica e candomblé)’,

como parece ser a proposta de Moura, uma vez que seria inútil tentar demarcar o começo e

o fim, de cada uma ou da outra, nas pessoas que possuem essa dupla identidade. Alias, será

que não se pode mais ler o sincretismo, como mais uma manifestação da profunda

mestiçagem de um povo? De resto, concordo com o sociólogo, quando ele admite que o

sincretismo é ‘um tema muito mais complexo do que podem dar a parecer’ os cincos

parágrafos que ele dedicou ao tema.

Segundo Vilson Caetano de Sousa (2003:27), talvez a melhor maneira de tratar o

sincretismo afro-católico, é tentar ‘inseri-lo na dinâmica cultural relacionada à história

concreta e à vida de cada grupo religioso’, isso, com certeza, ‘ajuda a pensar numa

identidade que não está situada entre oposições, como verdadeira ou falsa; autêntica ou

inautêntica; magia ou religião; pura ou impura; tradição ou ruptura’. Ainda de acordo

com o antropólogo, tal abordagem, como se comprova na sua adoção em seu livro, ‘aponta

também para identidades que não pressupõem mais tradições e culturas contínuas. A

identidade não se perde com o sincretismo e mais do que isso, é possível uma identidade

que se constrói da dupla pertença (...).

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Agora, fecho o parêntese do sincretismo para voltar aos orixás do Dique do Tororó,

que, a partir desse coletivo pejì (altar) aquático, parecem vigiar e proteger a cidade de

Salvador, encerrando a minha análise do valor cultura da sua presença com as seguintes

palavras do arquiteto e professor do urbanismo da UFBa, Analdino Lisboa, afirmando, que,

com a presença dos orixás do Dique do Tororó, a cidade ‘acentuou o seu caráter de

identidade da baianidade’169.

3.3.3.1 Monumentos da Yorubaianidade no espaço soteropolitano II:Pelourinho, onde o coração da Baianidade bate mais forte

Vale ainda evocar a presença da yorubaianidade no que vem a ser, talvez, o maior

de todos os monumentos da baianidade: o Centro Histórico do Salvador, popularmente

conhecido como Pelourinho ou, simplesmente, o Pelô, para os verdadeiros baianos que o

têm como um dos palcos mais emblemáticos da expressão de sua identidade. De fato, no

espaço dos últimos vinte e tantos anos, desde que o Estado decidiu investir na recuperação

desse bairro – que, desde o início da colonização, foi o marco zero da cidade do Salvador –,

verifica-se o mais concentrado e consciente esforço de erigir este espaço, que outrora era

símbolo da tortura e humilhação do povo negro, em verdadeiro baluarte da cultura negra,

ou melhor, em vitrine da baianidade.

Em Salvador: Centro e centralidade na cidade contemporânea (1995), organizado

por Marco Aurélio Gomes, o geógrafo Milton Santos se refere ao novo Pelourinho como

‘uma verdadeira ágora da cidade do Salvador’. Por sua vez, o historiador Ubiratan Castro

de Araújo chama o mesmo Pelourinho de ‘Gueto dourado’170 enquanto João Jorge

Rodrigues, o diretor do Olodum, prefere ver neste espaço simbólico da baianidade, ‘uma

espécie de Quartier Latin’171.

Desde o meado da década de oitenta, quando o Estado decidiu investir na

recuperação dos antigos sobrados e casarões do Maciel/Pelourinho, a área se tornou talvez

o lugar mais democratizado de toda a Bahia, se não de todo o Brasil. Isso porque nela os

descendentes dos antigos escravos, que costumavam ser supliciados no seu espaço

169 Cf. LEMOS, Eliana, “Histórias do Dique do Tororó”, in PARALELO 12 – Jornal Laboratório do Curso deJornalismo da Faculdade de tecnologia e Ciências, Salvador, edição de abril de 2004.170 Cf. “Repassando pelo Centro da Bahia (ou Memória em Trânsito)”, in GOMES, Marco Aurélio A. deFigueiras , 1995.171 Cf. “O Olodum e o Pelourinho” in GOMES, Marco Aurélio A. de Figueiras , 1995.

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acidentado, agora passam a ser, de certo modo, seus verdadeiros donos, tendo prioridade

quase absoluta em usufruir desse espaço, para promover a sua identidade étnica, mesmo se,

muitas vezes, sob a vigilância e um policiamento pouco benigno de agentes da classe

hegemônica172.

É claro que esse milagre cultural não se produziu de noite para o dia. Tampouco foi

um processo inteiramente pacífico. Vários são os que acham que o Centro Histórico de

Salvador pagou um preço demasiado alto para chegar a seu estágio atual. Houve quem se

queixasse da transformação desse antigo bairro aristocrático em espaço boêmio. Houve,

ainda, quem, como João Jorge do Olodum, achasse que a recuperação física, para fins

econômicos que sofreu o Pelourinho, não passava de uma expropriação dos pobres e negros

que sempre sustentaram a área, argumentando que teria sido mais preferível se a

recuperação fosse acompanhada de uma recuperação humana, em vez de agravar a

exclusão.

De fato, existem três grupos de opiniões divergentes a respeito do novo status do

Pelourinho: a começar por aqueles que, como eu, concordam com Lívio Sansone que

Pelourinho é uma daquelas áreas que se podem chamar de ‘espaço negro’ por excelência,

onde a gente vê circulando grande número de negros, sem que parecem estar sob alguma

ameaça.

Como lembram os arquitetos Marco Aurélio Gomes e Ana Fernandes, ‘Se, há 30

anos atrás, se reivindicavam um Pelourinho branco, paradigmatizado pela sinhazinha no

balcão do sobrado, hoje a negritude do Pelourinho é um trunfo para o sucesso

mercadológico da intervenção’173. Mesmo a arquiteta Ângela Franco (1995:33), apesar de

continuar achando que o que se vive no Pelourinho é uma hegemonia cultural de “não-

cidadãos”, reconhece a importância desta cultura. Como afirma ela própria: ‘Hojé, elite

baiana reconhecida no primeiro Mundo como tal é aquela que está “por dentro” dos 172 Há quem conteste esta afirmação, dizendo que, embora os negros possam ser vistos em quase todos oscantos do Pelourinho, o que eles ocupam efetivamente é apenas o espaço externo, sendo que existem muitosmecanismos usados pelos donos de bares, restaurantes, casas de espetáculos etc. para excluir os negros doespaço interior, impedindo, como afirmam certos militantes, que os negros tenham, efetivamente, o papel de“consumidores’ neste espaço, o que acaba fazendo deles, como argumentam os partidários desta óticadiscursiva, ‘não-cidadãos’, uma vez que, como teria afirmado Canclini, quem não consome não pode serconsiderado como cidadão. Porém, a este respeito, parafraseando a música de Caetano Veloso, acredito queseria difícil descobrir quem, realmente, é cidadão, no Pelô, visto que, quem mais se costuma ver,‘consumindo’ no Pelô, são os turistas.

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códigos desta cultura; estar in é saber da timbalada, da batida do Olodum, é ir aos lugares

de exercício e de espetáculo desta cultura (...)’.

Se, porém, como afirmam certas camadas da inteligentsia negra, os negros sofrem

certa exclusão dissimulada na hora de obter acesso aos requintes mais procurados do

Pelourinho, como os restaurantes, teatros, cinemas e casas de espetáculo (até do próprio

Olodum), onde muitas vezes, o preço de ingressos é colocado, intencionalmente, fora do

alcance do negro, resultando na situação de ver a platéia lotada apenas de turistas e brancos

na sua grande maioria, e ver, do lado de fora, um mar de baianos (negros na sua maioria),

tendo que se resignar a curtir a festa do lado de fora, a minha primeira interpretação disso

tende a ser que estamos diante de mais uma das características da globalização, onde as

chamadas intervenções mercadológicas acabam sendo invocadas para resolver o problema

da oferta e procura.

Além do mais, nas muitas ocasiões que tenho tido a oportunidade de passar em

frente aos recintos onde a Olodum e outras bandas famosas costumam tocar no Pelourinho,

seja no Largo Pedro Arcanjo nas terças do Olodum ou no Largo Tereza Batista, sempre

fiquei com a impressão de que muitos dos baianos (negros na sua grande maioria) que

ficam do lado de fora podem estar lá de propósito. Nunca vi nenhuma manifestação de

ressentimento da parte dos baianos que swingam e gingam do lado de fora ao som da

música que vem de dentro. Até porque, muitos parecem preferir a liberdade de poder

circular com maior facilidade para curtir outras bandas que podem estar se apresentando em

outras partes do Pelourinho, como é sempre o caso, do grande show semanal do Terreiro de

Jesus, patrocinado pelo IPAC através do Pelourinho Dia & Noite.

Por outro lado, outros pesquisadores, como a já referida arquiteta Ângela Franco,

acham que existe uma prova maior da exclusão dos negros no espaço do Pelourinho. Eles

acham que quem pratica esse segundo tipo de exclusão são os governantes que colocam

tantos postos de polícia em tão reduzido espaço, tornando impossível para os negros se

sentirem à vontade. A conclusão desse grupo de pesquisadores é que, apesar de toda a

‘vitrinização’ do negro e da cultura negra no Novo Pelourinho, os negros ainda são “não-

cidadãos” nesse espaço, uma vez que, como Caetano Veloso denunciou na música Haiti, ‘a

173 Cf. “Pelourinho: turismo, identidade e consumo cultural” in GOMES, Marco Aurélio A. de Figueiras ,1995.

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fila de soldados” continua ‘dando porrada na nuca de malandros pretos...’, para mostrar

que ali, ‘ninguém é cidadão’.

A última categoria de pesquisadores que comentam o status do Novo Pelourinho é

composta por aqueles que se queixam justamente da imagem do Pelourinho como um

imenso bairro negro, onde grupos afro-carnavalescos, como Olodum, Didá e os vários

afoxés, reinam soberanos. O ensaísta Roberto Marinho de Azevedo não se conforma com

as mudanças produzidas pela restauração do Centro Histórico de Salvador, condenando não

somente a escolha das cores com as quais foram pintadas as fachadas reformadas por

serem, ‘ou berrantes demais ou já muito pálidas (...)’174, mas também a hegemonia do

Olodum que, aparentemente, ele mal tolera.

Segundo o ensaísta, com a restauração, o Novo Pelourinho teria perdido em

qualidades tradicionais mais do que ganhou em facilidades modernas. A respeito do interior

das casas restauradas, ele queixou-se do uso do concreto, ao mesmo tempo, lamenta o que

chama de invasão do Pelourinho por restaurantes, bares, lojas de artesanato vagabundo

(com algumas exceções [retifica]), poucas galerias de arte, a falta de hotéis decentes e mil

outras ‘decadências” que resultaram da restauração do Pelourinho. Sua conclusão: ‘Do que

poderia ser reservado e bucólico, fizeram uma coisa fria e sem alma’. Seu veredicto: O

Novo Pelourinho e seus pátios, ‘rígidos e burros em seus corpetes de cimento’, faz com que

‘sonhe-se com picaretas’.

Embora pareça apreciar a música do Olodum, o ensaísta considera intolerável a

atitude jubilosa dos seus integrantes que ele descreve como ‘negros racistas e altivos, que

se afirmam “raça pura”.

Se me demorei em reproduzir a longa lista de reclamações que Roberto Marinho de

Azevedo despejou sobre o Novo Pelourinho, é para poder apontar o quanto acho seu

argumento equivocado:

Para começar, quem ver o Pelourinho hoje dificilmente concordaria com o ensaísta

sobre a questão da impropriedade das cores das sacadas. Mas, mesmo assim, o bom senso

já nos ensina que “gosto não se discute”. Também acho que a evolução das coisas e o

prestígio que o Novo Pelourinho adquiriu nestes últimos tempos já corrigiram o bastante a

falta de hotéis, galeria de artes etc. Hoje, Pelourinho tem a maior aglomeração de museus e

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galerias de toda a cidade, sem falar dos novos comércios, bancos e outros serviços que o

Novo Pelô oferece.

Acho que o mais grave das denúncias do ensaísta é a referência a lojas de

artesanatos vagabundos e ao Olodum, a quem se referiu como grupo de ‘negros racistas e

altivos’. A classificação dos artesanatos produzidos no Pelourinho como vagabundos pode

ser escusado porque gosto, que, repito, é sempre subjetivo. Mesmo assim, não se descarta a

possibilidade de os artesanatos terem merecido o rótulo de vagabundos, porque representam

um imaginário supostamente pertencendo a negros, o que pode ser lido como preconceito

da parte do ensaísta.

O que me leva à última denúncia, a do racismo do Olodum. Se o meu palpite estiver

certo a respeito da questão anterior sobre os ‘produtos vagabundos’, não seria nem

necessário procurar justificar a atitude que o ensaísta reprova no Olodum, uma vez que

Caetano Veloso teria se referido, certa vez, à possibilidade da existência de um ‘racismo às

avessas’, praticado por negros para reverter o quadro de racismo dissimulado existindo na

sociedade. Mas aí, isso não diz tudo, uma vez que, mesmo a adoção do sistema de cotas

para afro e índiodescendentes, com preferência para os egressos de escolas públicas, tem

sido denunciado por certas pessoas, como ‘racismo ás avessas’.

Quanto ao orgulho do Olodum como sendo de “raça pura”, acho que isso não

deveria incomodar quem não se sente inseguro com suas ascendências, afinal, o Brasil não

se gaba tanto de sua democracia racial? De resto, acredito que isso faz parte da construção

da identidade negra, empreendida pela banda Olodum, ao longo desses vinte e cinco anos

de sua atuação na sociedade baiana e brasileira, usando a música para barganhar a plena

cidadania. Como disse o seu vocalista no DVD de 25 anos do Olodum, são: Vinte e cinco

anos de samba-reggae e cidadania”175.

Quem conhece a trajetória do Olodum desde o início sabe que o grupo está

consciente do seu papel como fiadores para garantir o espaço do Pelourinho como herança

do povo negro da Bahia. Lembro-me, a propósito, de uma das cantigas do Olodum, talvez a

mais cantada pelos rádios no verão de 1990:

174 AZEVEDO, Roberto Marinho de, “Será o novo Pelourinho um engano?, in Revista do PatrimônioHistórico Artístico nacional, número 23/ 1994. p. 131 – 137.175 Aliás, a escolha do casal solar – o faraó Akhenaton e sua rainha, como os homenageados do Olodum nocarnaval 2005 não deixa dúvida alguma sobre o orgulho que o grupo tem a respeito de sua ascendência negra.

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Olodum PelorinhoGuinê, Moçambique, Tanzânia, Axé,Cuba, Jamaica, Brasil,Olodum na Avenida Amin o!

O negro veio da Mãe África,E trouxe tudo de bom para nós,A comida, a dança, batuque Ijexá,O samba, o reggae afoxé,Ibeluku, iki ganzá (...)

Seja qual for a ótica, ou o posicionamento, que se possa ter a respeito do

Pelourinho, um fato que não se deixa negar é que, desde que começou a sua restauração e

recuperação, o Pelourinho vive uma ebulição sem precedência da cultura negra. Pela

maneira com que as coisas evoluíram no Pelourinho, acredito que a força da cultura negra

que tomou por assalto o Pelourinho nessas últimas décadas acabou ultrapassando o limite

que sonhavam para ele, tanto os partidários da negritude baiana quanto os que

menosprezavam essa cultura. Mesmo João Jorge do Olodum acabou errando na sua

predição de que ‘brevemente’ a McDonald’s, tal como outras organizações e instituições,

‘que tradicionalmente renegam a população negra até mesmo no papel de consumidor’,

iriam chegar para ocupar e explorar os sobrados recuperados do Pelourinho.

Efetivamente, o que se verifica hoje é o contrário. A presença maciça das baianas de

acarajé, em cujo tabuleiro tanto os baianos como as legiões de turistas encontram

suficientes e satisfatórias iguarias para matar sua fome, tanto física como espiritual, acaba

afastando do Pelourinho a McDonald’s, essa gigante e poderosa máquina norte-americana

da homogeneização do paladar global. Não é por nada que Tavares (1996:37) considera as

baianas de acarajé como ‘verdadeiros McDonald’s tropicais’. Considero isso como mais

um milagre da baianidade que foi possibilitado pela yorubanidade, visto que, a atração que

tanto os baianos como os turistas têm pelas iguarias da baiana, está fortemente atrelada ao

marketing visual que representa o traje tradicional da baiana, além da assumida ligação da

sua atividade econômica à força dos orixás. Acredito que, devido à concorrência étnica que

pesa a favor das baianas e da yorubaianidade, teria sido uma estratégia mercadológica mal-

pensada, se alguém tivesse sonhado em abrir uma McDonald’s no Pelourinho. Segundo

parece, não sou o único a ter esse tipo de discernimento.

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Para não dar a impressão de que estou querendo afirmar que Pelourinho represente

um tipo de Kalakuta Republic, onde impera a lei dos negro-mestiços, gostaria de

reconhecer a presença constante da polícia no Pelourinho como uma forma de lembrar aos

negro-mestiços que, embora gozem de hegemonia cultural naquele espaço, ainda precisam

se submeter ou serem submetidos, à vigilância da classe dominante. Stuart Hall (2003: 339)

foi claro, quando avisou que: ‘os espaços ‘conquistados’ para a diferença são poucos e

dispersos, e cuidadosamente policiados e regulados’, e, ainda, que, ‘o que substitui a

invisibilidade é uma espécie de visibilidade cuidadosamente regulada e segregada’.

Porém acredito que isso não é razão suficiente para que se deixe perder a

oportunidade de intervenção étnica e social. Estou convencido de que essa vigilância se

ameniza cada vez mais, com o aumento da auto-estima dos sujeitos populares. Por isso

creio que a política de negociação intensa que ocorreu ao longo dos anos entre a

consciência (ou será que é a militância?) negra e os poderes políticos já conseguiu afastar

do palco do Pelourinho as cenas degradantes descritas em Haiti de Caetano Veloso. Hoje

em dia, a fila de PMs que patrulha o Pelourinho já não se mostra tão agressiva como dantes.

Muito pelo contrário, vejo os policiais que ‘vigiam’ a multidão de ‘pretos e quase pretos’,

nas Terças de Benção do Pelô, parecendo cada vez mais indulgentes. Inclusive, acho que

não seria mais conveniente praticar toda aquela brutalidade contra ‘pretos, mulatos e outro

quase brancos tratados como pretos (...)’, porque fica cada vez mais difícil diferenciar na

multidão, composta por um número cada vez crescente de turistas negros, mulatos e quase

brancos, oriundos de vários cantos do mundo.

Na minha modesta opinião, a classe dominante não arriscaria perder as receitas

mirabolantes que trazem para a terra os milhares de turistas do Atlântico Negro, turistas

esses que foram atraídos pelas manifestações da cultura popular baiana, vendida com tanta

competência pela propaganda veiculada pelos meios de comunicação controlados pela

mesma classe dominante. Dar, por engano, ‘porrada na nuca’, de um desses turistas,

poderia resultar na possível perda dos ganhos da classe governante e é capaz de acabar com

o sonho de ver a Bahia ocupar e permanecer no topo da cobiçada lista de destinos turísticos

nacional e internacionais.

Além do mais, acredito que os governantes estão plenamente cientes da magnitude

do alcance da cultura popular sustentada pela negritude baiana, tanto como fonte geradora

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de receitas, como também força para desestressar relações raciais e dissipar tenções. Prova

maior disso é a transformação da antiga terça-do-Olodum em grandes shows semanais com

patrocínio oficial da Prefeitura, através do Pelourinho Dia e Noite, órgão do Instituto do

Patrimônio Artístico e Cultural (IPAC). A meu ver, estratégias como esta são responsáveis

pela ausência de arrastões violentos, como aquele que Lívio Sansone contou que tinha

vivido no Rio de Janeiro em 1992176, e que lá não cessam de se repetir em uma escala cada

vez mais preocupante, o que acaba prejudicando a disposição de turistas a escolher aquela

cidade como destino de suas aventuras. Não é por nada que a administração da oligarquia

carlista que dirigia a Prefeitura Municipal de Salvador por um largo tempo, até ser

derrotada nas eleições municipais de 2004, adotou, como lema para a prefeitura o slogan:

Capital da Alegria.

A conclusão à qual chego vem a ser que, através do que se pode classificar como o

mais completo entendimento possível, entre aspirações etno-identitárias e as forças da

hegemonia glocal177, o Pelourinho se transforma no endereço ideal e eficiente, isto é, uma

espécie de outlet comercial, tanto para os blocos afros – Olodum, Ilê-Aiyê, Filhos de

Gandhy, Korin Efon e muitos outros, empenhadíssimos em ‘ver a honra dos negros

lavada’, como diz uma das mais recentes músicas do conceituado Ilê-Aiyê – como para as

instituições do estado, cujas atividades são voltadas, ostensivamente, (diriam alguns

colegas meus do Projeto Afro-Identidades), para a (re-)inserção do negro na historiografia

oficial, tal como as grandes agências de turismo (oficiais como privadas) e outros órgãos

gerenciadores da imagem do estado baiano, vendendo ao mundo a sua postura de campeão

da diversidade cultural.

Acredito que não foi por acaso que o Centro de Estudos Afro-Orientais da UFBA se

mudou, da Graça para o Terreiro de Jesus, no exato momento que se deu por completo a

fase principal da recuperação do Pelourinho. Não sobra dúvida alguma que o CEAO, como

um exemplo típico daquilo que Marco Aurélio Gomes e Ana Fernandes chamam de

‘equipamentos culturais’, foi para o Pelourinho para dar força acadêmica às novas

aspirações da negritude baiana.

Desde a sua fundação em 1959, esse órgão suplementar da Universidade Federal da

Bahia se dedica, quase que exclusivamente, ao mais intenso diálogo, entre a academia e a 176 Cf. SANSONE, em Pelo Pelô.op. cit.

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comunidade negra (tanto local como global), visando também contribuir para o resgate da

imagem da africanidade, através de cursos que vão da temática das relações raciais e

consciência étno-identitária, à oportunidade de uma reaproximação do imaginário afro-

brasileiro à cosmologia africana contemporânea, mediante uma aprendizagem de línguas

africanas, oferecida à comunidade baiana, dos quais o mais consistente tem sido o curso de

língua, cultura e civilização yorubanas, sustentado desde 1969, através da participação de

professores da Universidade de Ilé-Ifê, em intercâmbio de longa data celebrado entre a

UFBA e a referida instituição yorubá-nigeriana.

De igual modo, o Museu Afro-Brasileiro, afiliado ao mesmo CEAO, contribui, da

sua parte, para o diálogo sustentado entre a academia e a comunidade para manter viva a

memória cultural do povo negro no Brasil. É fato digno de nota que a sala principal do

Museu Afro-Brasileiro contém, quase que a título exclusivo, artefatos procedentes da

região do continente africano da tradição conhecida no Brasil como jeje-nagô, apresentando

principalmente as mais variadas instituições culturais yorubá-africanas e os paramentos da

cosmogonia yorubana, tais como as já-citadas máscaras de Gèlèdë, as indumentárias de

Xangô – o orixá yorubano da justiça –, os emblemas e instrumentação de Ifá – o oráculo da

adivinhação – e os çdan, emblemas da instituição pró-monárquica Ògbóni, uma espécie de

Senado do povo yorubá-africano.

Em suma, torna-se evidente que o Pelourinho é um dos poucos locais privilegiados

nos quais se consegue realizar o que Stuart Hall e tantos outros pensadores contemporâneos

chamam de o lado bom da globalização, inscrevendo, com a menor fricção possível, as

histórias locais dentro dos projetos globais178.

De forma muito significativa, hoje vem sendo cumprida a previsão que o romancista

Jorge Amado (2001:271) colocou na boca do famoso Bedel da Faculdade de Medicina –

prédio que, ironicamente, abriga hoje o já-referido Museu Afro-Brasileiro –, o heróico

Pedro Arcanjo Oubitikô179 Ojuobá quando, apontando ao Terreiro de Jesus, que viria a se

tornar palco central do Pelourinho moderno, chegou a profetizar de seguinte forma:

Terreiro de Jesus, tudo misturado na Bahia, professor. O Adro de Jesus, o Terreirode Oxalá, O Terreiro de Jesus(...) Amanhã será conforme o senhor diz e deseja,

177 Tomo emprestado este termo de Lívio Sansone, 2004.178 Cf. Mignolo, op. cit.179 Nome que o romancista tomou emprestado a um dos primeiros agentes da yorubanização na Bahia doinício do século passado, o Esà (Bamgboxê) Obitikô.

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certamente será (...) Nesse dia tudo já terá se misturado por completo e o que hoje émistério e luta de gente pobre, roda de negros mestiços, música proibida, dançailegal, candomblé, samba, capoeira, tudo isso será festa do povo brasileiro, música,balé, nossa cor, nosso riso, compreende?180

Portanto, é essa profecia que se cumpre de modo inconfundível, quando Daniela

Mercury proclama do alto do trio-elétrico do Ilê Aiyê no Carnaval de 1996, o que

representa a força da negritude, hoje inegável na Bahia, no seu canto da cidade que:

A força dessa cidade sou eu,O canto dessa cidade é meu, ...O toque do afoxé,E a força de onde vem, ninguém explica...Eu sou o primeiro que canta,Eu sou o carnaval ...181

E, tudo isso, muito a favor da yorubanidade, pois, justamente, como tinha previsto

Pedro Arcanjo, os orixás yorubanos nunca mais cessam de dançar neste imenso palco que

representa o Pelourinho, microcosmo mais simbólico da Bahia, onde reinam supremas as

baianas: umas como vendedoras de acarajé e outras como monumentos vivos da

baianidade, digníssimas embaixadoras de Oxalá, vestidas do seu tradicional traje branco

imaculado com as contas e outros adereços dos diversos orixás yorubanos. Hoje as

beneméritas baianas se vêem canonizadas pelo poder público baiano, através do

Monumento à Baiana, marca eterna de reconhecimento a elas consagrado em 2003, como

cúmulo da homenagem a elas prestada no carnaval que as teve como tema e ícone.

O fato de que as baianas, no seu contato diário com centenas de turistas, oriundos do

mundo inteiro, acabam por introduzi-los às delícias da culinária afro-baiana, iniciando os

delicados paladares da globalização ao gosto ardente do acarajé, abará e outras iguarias

diletas dos orixás nagô-yorubanos, hoje transformadas em símbolos supremos da culinária

baiana, faz delas verdadeiras agentes mundialização da yorubaianidade, haja vista ainda

que, muitas vezes, ao anoitecer, essas lindas baianas acabam conduzindo muitos desses

turistas aos pés dos mesmos orixás nos terreiros baianos, sendo que dessa forma, pela força

180 Não deixa de ser surpreendente a força da exatidão dessa profecia quando se vê o intenso movimento dosemblemas da baianidade que circulam hoje no Terreiro de Jesus: as rodas de capoeira, as músicas típicas queas acompanham, as trançadeiras, as lojas de trajes e artes étnicas, e, sobretudo, as baianas que se vêem portoda a parte, confeccionando nesse espaço verdadeiramente globalizado as comidas prediletas dos orixásyorubanos...181 Ver Patrícia Costa em CD Acústico Bahia, faixa 3.

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da globalização, os filhos e filhas dos orixás já não se apresentam apenas aos pés de Xangô

com as suas conquistas materiais e intelectuais, mas, arrastam consigo outros filhos, ou

quase filhos, forasteiros, vindo dos quatro cantos do mundo para curtirem a Baianidade

Nagô, se me permitem emprestar, mais uma vez, o título da música de Evany.

Não foi por nada que o personagem Pedro Arcanjo de Jorge Amado (2001:62)

chama as baianas de ‘rainhas nas ruas da cidade, com seus tabuleiros de comidas e doces,

duplamente rainhas nos terreiros, mães e filhas-de-santo’.

De fato, creio que, se antes, como sugeriu Pierre Verger (1999:163), as pessoas não-

iniciadas, ao visitarem o tabuleiro da baiana, participavam das refeições dos orixás

yorubanos sem jamais desconfiarem que: ‘participam de uma homenagem a Xangô, deus

do trovão, se comem caruru, chamado também amalá, a Iansan, divindade das tempestades

se pegam acarajé, e a Omulu (sic), deus da varíola se engolem pipoca’, hoje em dia, a

comunhão com os orixás, através das comidas sagradas, tornou-se um hábito deliberado e

cotidiano, tanto dos baianos, (iniciados e não iniciados), quanto de turistas, o que acaba por

garantir que empresas globalizadas de fast-food americanos como a já-referida McDonald’s

permanecem afastadas de centros simbólicos de irradiações culturais na Bahia, como o

Pelourinho.

Pode se abrir um parêntesis aqui para comentar o renovado interesse das igrejas

evangélicas em se apropriar das duas comidas rituais mais conhecidas do candomblé

baiano: o amalá (de Xangô) e o acarajé (de Iansã). O antropólogo baiano Vivaldo Costa

Lima chegou a afirmar a popularidade da etnoculinária nagô-yorubana, representada por

essas duas iguaria, dentro da configuração da baianidade. Durante o seminário organizado

para marcar seus oitenta anos em junho de 2005, o octogenário defendeu o que ele mesmo

tinha batizado do ‘acaracentrismo’ na Bahia, como sendo um culto que toda a Bahia presta

a essa iguaria yorubá-africana. Prova desse culto vê-se não somente no tombamento do

acarajé pelo Poder Público da Bahia em 2004, mas também na mudança de estratégia das

igrejas evangélicas a respeito do acarajé.

Com efeito, cansados de denegrir sem êxito a iguaria como comida do diabo, os

evangélicos acabam por render-se ao poder étno-identitário dos bolinhos de Iansã, passando

a organizar sessões solenes onde se reparte entre os crentes o ‘acarajé do Senhor’, além de

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incentivar muitos de seus integrantes a abrirem pontos de venda do acarajé, servidos por

evangélicos.

Longe de ser vista como uma perda, a adoção do acarajé pelos evangélicos deve ser

visto como uma vitória do acarajé como supremo ícone da baianidade, reconhecido por

todos os setores da sociedade182.

A yorubanidade ainda interfere na evolução do Pelourinho também no aspecto

físico, no uso da negritude, do corpo negro, do cabelo e da roupa. Isso se comprova,

sobretudo, na moda e na intensa procura para roupas e o estilo ‘afro’, sobretudo conjuntos

yorubanos originais, importados por algumas lojas do Pelourinho, ou cópias das mesmas,

fabricadas in loco por artesãos locais.

Talvez a moda mais yorubana que pegou, até agora, no Pelô, sejam as tranças,

popularizadas por Negra Jô e toda uma legião de trançadeiras – e, também, trançadeiros –,

que povoam cada canto do Pelourinho. Hoje a população de trançadeiras é quase maior do

que a das próprias baianas, em um Pelourinho onde todo o mundo, especialmente os

turistas, quer parecer com os tocadores do Olodum, que usam tranças com adornos de

contas coloridas.

A adoção massiva das tranças de cabelos como um dos emblemas da negritude

baiana, ardentemente desejada e cobiçada por turistas nacionais e estrangeiros – mesmo

aqueles que, normalmente, eram considerados como tendo ‘bom cabelo’, ou seja, cabelos

disciplinados e lisos, antigamente invejados pelas negras de ‘cabelo duro’ – , hoje mostra a

força da re-africanização de que falava Antonio Risério em Carnaval Ijexá. Ele que, aliás,

mostrou a sua compreensão dessas forças culturais, ao resumir que, na Bahia, a cultura

yorubana é hegemônica e predominante, mesmo se não chega a ser dominante.

A respeito da hegemonia negro-yorubana no Pelourinho, através das várias

expressões, volto a pensar na observação da antropóloga Manuela Carneiro da Cunha

(1985), sobretudo na conclusão de seu estudo sobre a formação das religiões universais. 182 Nota-se que o mesmo discurso da “pureza” africana que opõe o candomblé jêje-queto-nagô a outras naçõesde candomblés também parece estar se instaurando em torno do acarajé. Sabe-se que está se tornandoimprescindível o uso legitimador do título de baiana, por vendedoras de acarajé em outros estados do Brasil.Uma vendedora me afirmou, no Recife, em abril de 2005, que preferia ser chamada de baiana, em vez dotítulo de mucama, tradicionalmente usado por sua categoria naquela região. Outro dia, uma soteropolitana mecontou que, durante uma estada recente no estado vizinho de Sergipe, comeu um acarajé em Aracaju. Na suapalavra, o ‘acarajé de lá era uma porcaria’. O que quer dizer que, o puro, gostoso e bem-feito acarajé só se

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Com efeito, ela descobriu que existe uma combinação de mecanismos que podem

possibilitar a conquista expansionista de ‘alargar as fronteiras do grupo de culto, o

domínio social da religião’, (pensemos, sobretudo aqui no diálogo intensíssimo de

fundadores de terreiros como a saudosa Mãe Aninha, fundadora do Axé Opo Afonjá, que

soube aliar-se aos intelectuais de um lado, e do outro, a competentes agentes da

yorubanidade, vindo do outro lado do Atlântico, como o babaláwo Martiniano Eliseu do

Bonfim, cuja assessoria lhe era sempre valiosa para garantir o respeito à casa que fundara,

assegurando ao mesmo tempo o respeito do clero da religião dominante. Podemos pensar

ainda nas modernas baianas que não cessam de alargar cada dia mais, à sua maneira

própria, essa mesma fronteira).

A esse respeito, acho oportuno citar na sua integralidade a conclusão à qual chegou

a antropóloga sobre o resultado da boa aplicação desses mecanismos pelos agentes da

yorubanidade na diáspora, levando ao que viria a ser a mundialização, não só da religião,

mas de toda a gnose yorubana. Afirma ela (1985:203-4):

Na realidade, o paradoxo é que, em um período que ainda está para ser determinado,quem se universalizou, e isto no Brasil e em Cuba, foi a religião yorubá. Para tanto,usou o potencial que Bascom já havia assinalado em 1944: a possibilidade de umgrupo de culto dos orixás poder transcender linhagens. Com isso, soube alargar asbases de sua igreja. Não através da ênfase no Ser Supremo, como sustenta Horton,mas através de um recrutamento cada vez mais abrangente. Primeiro outras etniasafricanas, depois toda a humanidade tornaram-se passível do chamado dos orixás(...) Religiões politeístas também podem ser universais.

Aliás, isso não deveria nos surpreender sobremaneira, visto que, de acordo com

Ilésanmí (1995), o poder e a autoridade de Ifá-Õrúnmìlà, entidade oracular yorubana que é

o orixá conhecedor dos segredos da criação do mundo e de todos os seres, tanto no õrun

como no aiyé, tem domínio efetivo sobre os cincos continentes do mundo físico desde o

ìwáÿê, ou seja, desde o tempo da criação. Eis como Ilésanmí (1995: 32-8) conta essa parte

reveladora do mito de Ifá:

Ifá (Õrúnmìlà) is said to have lived intermittently on earth for several centuries,going to heaven at will and returning to earth for specific assignments. According tothe myths about him, he made several marks on the sand of history that still serve aspoints of reference in Ifá oralitural corpus. Hence, his advocates see his myths ashistory, and his opinion as law.

come na Bahia, feito pelas mãos milagrosas da baiana, como, aliás, canta Caymmi desde as longínquasdécadas do século passado.

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Ifá has long ago divided the globe into five regions namely:(a). Ìkõ Àwúsì (the Americas)(b). Ìdòròmù Àwúsê (Africa)(c). Mèreètélú (Europe and Asia)(d). Mêsin Àkáárúbá (Arabia, the land of the worship of Kaaba)(e). Ìwônrìn níbi ojúmö ti í mö wá (which refers to Australia)As far as the Yorùbá are concerned, all the above-mentioned parts of the world areall land of Ifá.

Tradução:

Dizem que, ao longo de muitos séculos, Ifá (Orúnmìlà) viveu por períodosintermitentes na terra, podendo subir ao céu quando quisesse e voltar à terra pararealizar tarefas específicas. Conforme dizem os mitos a seu respeito, Ifá deixouvárias pegadas na areia da história, que ainda servem de pontos de referência nocorpus oralitura de Ifá (ou seja, os Odù Ifá). Portanto, os adeptos tomam os mitos deIfá como história (autêntica) e consideram a sua orientação como lei derradeira.Desde os tempos imemoriais, Ifá tem dividido o globo em cinco regiões, a saber:(a). Ìkõ Àwúsì (O continente americano(do norte ao sul)(b). Ìdòròmù Àwúsê (África)(c). Mèreètélú (Europa e Ásia)(d). Mêsin Àkáárúbá (Arábia Saudita, a terra daqueles que adoram a Kaaba183)(e). Ìwônrìn níbi ojúmö ti í mö wá (que se refere ao continente

australiano, ou melhor, à região do levante do sol)Para os yorubanos, todas essas regiões do mundo constituem o domínio de Ifá)184.

É sintomático que hoje, esse domínio de Ifá-Õrúnmìlà sobre o mundo globalizado

vem sendo divulgado, não somente por autoridades yorubá-africanos como o Awise Wande

Abimbola, idealizador do Congresso mundial da cultura e tradição dos Orixás, mas também

por intelectuais dos dois lados do Atlântico Yorubano, dentre os quais os babaláwos e

oriatés cubanos. Nas últimas décadas, esses cubanos se encarregam de levar o saber de Ifá-

Õrúnmìlà para diversos países do “Ìkõ Àwúsì”, ou seja, do norte ao sul do continente

americano. Apesar do discurso possessivo de brasileiros iniciados nos segredos dos orixás a

prezarem a herança que lhe veio da África (com escala na Bahia), a jovem geração de

adeptos de candomblé no Rio de Janeiro e São Paulo hoje procura aprender mais sobre a

183 A Kaaba é a pedra sagrada que se encontra no lugar mais alto de Meca, os muçulmanos que vão àperegrinação têm que fazer culto ao pé da Kaaba, e durante as cinco orações diárias, todo muçulmano tem quevirar a face na direção da Kaaba.184 Essa mesma referência da soberania de Ifá-Òrúnmìlà sobre os cinco continentes pode ser verificada em umdisco recente de Ìyèrè Ifá (cânticos de Ifá) produzido por Ifayemi Elebuibon. Vide faixa 4 de ELEBUIBON,2003.

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arte e a sabedoria de Ifá-Õrúnmìlà, primeiro através de babaláwos cubanos, e hoje, através

de babaláwos e outros intelectuais nigerianos.

Concluindo, podemos afirmar, a partir das múltiplas provas do papel que vem

cabendo à yorubanidade na construção da identidade étnica baiana, que, foi desse modo

que se vai tecendo a gigantesca rede de conexões dos ‘megagrupos de pertença’, para

abranger o mundo virtual naquilo a que se refere a pesquisadora paulista Ronilda Ribeiro,

no seu artigo de 1999 intitulado “Identidade do Afro-descendente e sentimento de pertença

a Networks organizados em torno da temática racial”.185

Torna-se hoje inegável o sentimento de pertença que se alimenta nas diversas

regiões do mundo e em indivíduos das mais variadas orientações políticas, ideológicas e

sociais, em torno da religião dos orixás e dos valores culturais alternativos, isto é, da

cosmogonia yorubá-africana, por ela veiculados. O que tem levado à constituição de várias

mega-comunidades virtuais.

Na presente era de yahoogrupos.com e diversos outros tipos de comunidades

virtuais que tornam possível a troca de idéias e preocupações de relevância mundial,

possibilitando que sonhos locais se veiculem nas redes globais, as pequenas redes iniciadas

pelos contatos entre agentes culturais, como aqueles exemplificados pelo contato das

baianas com turistas do mundo inteiro, tornam-se cada vez mais fáceis de serem mantidas a

longo prazo, como se pode verificar na ascensão da Bahia nos circuitos de turismo

histórico-cultural, alimentado, através de páginas da web, abordando os vários aspectos

singulares da (yoru)baianidade, tais como o carnaval, as festas – Bomfim, Yemanjá, Santa

Bárbara etc. – , dentre tantas outras expressões e símbolos da yorubaianidade186,

transformados em ‘produtos’ culturais globais. A decisão de sediar em Salvador um Pré-

Congresso Mundial da Tradição dos Orixás e da Cultura Yorubá, que iria acontecer na

primavera de 2004, para preparar o terreno para o Congresso Mundial previsto para agosto

185 Cf Ronilda Ribeiro, in BACELAR, J. e CAROSO, C. (org.) – Brasil, um país de negros? – Rio de Janeiro:Pallas; Salvador-BA: CEAO, 1999, p. 235-252.186 Para contrariar um pouco, podemos incluir na lista de elementos constitutivos dessa ‘yorubanidade’aqueles traços identitários inseridos na lista dos chamados “só se vê na Bahia”, tais como o gosto dos baianospelo recheado acarajé e derivados, apesar do fato que muitos consideram a combinação calórica umaverdadeira bomba; e, também, a predileção hoje quase descontrolada dos baianos pelo abadá, que já virousinônimo da própria folia carnavalesca na Bahia, apesar dos queixumes em torno do preço ‘suicidal’ quemuitos têm que pagar para sair na avenida, traços esses que parecem corroborar a verdade do provérbioyorubano que afirma que ‘ohun tíí wu ômô ö jç kìí run ômô nínú’, ou seja, aquilo que apetece a uma criança,não costuma lhe provocar dores de barriga.

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de 2005 no Rio de Janeiro, é mais um indício da amplitude e relevância dessa presença

transformadora da yorubanidade na Bahia e no Brasil.

Além do mais, os grupos.yahoo.com, que tratam do tema específico da

yorubanidade, tais como YorubaGroup, hopeafricaepublishers.com/yoruba, Ifá-

OrunmilaGroup, Yorubaworld.com., e tantos outros187, vêm realizando um trabalho, não

apenas de troca de idéias, mas sobretudo, de divulgação inédita da cosmogonia yorubana no

mundo globalizado, transformando, como tinha previsto a psicóloga paulista, não somente

as antigas concepções, mas também as relações humanas.

Porém, em toda essa consideração da importância da yorubanidade na configuração

da baianidade, há um dever da responsabilidade e do politicamente correto em evitar que se

caia no essencialismo cultural. Em certo sentido, as críticas e as análises que Stuart Hall

(2003: 219-241) fez das metáforas da transformação, baseadas no livro seminal de Peter

Stallybrass e Allon White – A política e a poética da transgressão (1993) – são também

aplicáveis à yorubanidade. É claro que a presença da yorubanidade na configuração da

baianidade não está sendo pensada em termos absolutos de ‘uma metáfora de inversão’,

que teria criado o triunfo ‘absoluto’ de uma estética yorubana, sobre toda e qualquer outra

que possa imperar na sociedade baiana.

Creio que a metáfora do ‘carnavalesco’ de Bakhtin, minuciosamente analisada por

Stuart Hall, nesse mesmo ensaio, serve para compreender o papel e o valor real da

yorubanidade na baianidade. Isso na medida em que se admite que os valores da

yorubanidade não são incorporados no estado ‘puro’, nem podem conservar qualquer

rigidez dentro da nova massa onde são usados como levedura simbólica. A existência do

sincretismo, não só religioso, mas também cultural, que é tido, justamente, como resultado

do casamento de valores e práticas culturais e religiosas ditas oficiais, com as práticas tidas

como herança do tempo da escravidão, dentre os quais surgiu a própria yorubanidade, já é

suficiente para mostrar que estamos, de fato, perante um caso clássico do ‘carnavalesco’

bakhtiniano, de forma que Stuart Hall (2003: 226) o interpretou:

187 Prova de que os Orixás nunca mais vão sair da moda por aqui é a publicação de livros e revistasespecializadas que tratam do tema, acessíveis em quase todo o território nacional. De fato, só neste Brasil, acada dia, alguém algures está reunindo mais um dicionário de língua Yorubá. O mesmo acontecendo emvários outros centros do mundo globalizado de hoje. Em grandes centros como São Paulo, os orixás atécontam com antenas de rádio, como documenta o pesquisador Gonçalves da Silva em seu Orixás daMetrópole.

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[N]o carnaval de Bakhtin, é precisamente a pureza dessa distinção binária (a quecoloca o “baixo” no lugar do “alto”) que é transgredida. O baixo invade o alto,ofuscando a imposição da ordem hierárquica; criando, não simplesmente o triunfode uma estética sobre a outra, mas aquelas formas impuras e híbridas do “grotesco”;revelando a interdependência do baixo com o alto e vice-versa, a naturezainextricavelmente mista e ambivalente de toda vida cultural, a reversibilidade dasformas, símbolos, linguagens e significados culturais; expondo o exercício arbitráriodo poder cultural, da simplificação e da exclusão, que são os mecanismos pelosquais se funda a construção de cada limite, tradição ou formação canônica, e ofuncionamento de cada princípio hierárquico de clausura cultural.

A baiana, aqui pensada como figura perfeita da presença da yorubanidade no texto

da baianidade, pode ser considerada o exemplo mais perfeito dessa rasura, referida por

Stuart Hall. Devemos nos lembrar que no tabuleiro da baiana, não são apenas as iguarias

yorubanas que se encontram. Além do acarajé, do abará e do caruru, há ainda a presença de

outras iguarias de outras origens: tanto o vatapá, como também os vários tipos de cocada,

devem pertencer a outras matrizes africanas, enquanto que a salada é decididamente uma

testemunha da preferência gastronômica ocidental, quem sabe, para apaziguar os abdomens

mais delicados, capazes de passar mal com uma dose tão tirânica de azeite de dendê,

pimenta e outros dos temperos obrigatórios da culinária yorubana. Isso sem dizer nada da

maneira já padronizada de embalar e servir essas iguarias em forma que já é uma imitação

do hambúrguer americano.

Para melhor entender essa ‘metáfora da transformação’ proposta por Bakhtin,

sobretudo com referência ao carnavalesco, foi que resolvi experimentar a dose maior de um

dos principais momentos do Viver Bahia, que é o carnaval baiano, ao integrar um bloco no

Carnaval de 2005. A minha intenção primária era vivenciar a plenitude do carnaval, me

perdendo na alegria no meio de milhares de foliões. Também queria aproveitar a

oportunidade de estar dentro dos cordões protetores de um bloco carnavalesco para registrar

o que se passa dentro e fora dessas grandes cordas que, ao mesmo tempo dividem os foliões

de dentro, dos “pipocas” e outros foliões de outros abadás e fantasias, que se encontravam

fora das cordas do nosso bloco. Armado com uma câmera digital não muito sofisticada, me

posicionei cuidadosamente nos limites da corda, uma espécie de ponto que corresponderia

ao ‘entrelugar’ dos dois mundos da folia carnavalesca. A vantagem deste posicionamento é

que foi fácil registrar com a câmera o que se passa dentro do ‘meu’ bloco e ainda capturar

as impressões fotográficas dos que passam do outro lado.

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Durante quase uma hora em que o nosso bloco ficou parado na entrada da linha dos

camarotes oficiais no Campo Grande, esperando a nossa vez para pintar na avenida, pude

fotografar um número razoável de foliões que passavam por nós. Assim passaram pelo

obturador da minha máquina, gentes de várias fantasias e abadás, entre Filhos de Ghandy,

as Sapatonas e as Muquiranas (blocos irreverentes de travestis) e integrantes de bloco afro

Muzenza, Baianas de Acarajé e mesmo, alguns membros de um Afoxé, trajados de palhas e

outros adereços típicos. Esse Afoxé acabava de simular um ritual de candomblé em plena

Avenida e os membros levavam consigo entre outros adereços, alguns potes de barros

usados na simulação do ritual.

Um pouco mais na nossa frente, o trio do Ilê Aiyê, que acabava de passar pelo

camarote oficial, estava se dirigindo para a saída do circuito. Em cima do trio havia a

Rainha do Ilê, ‘atendida’ por duas dançarinas, que a acompanhavam na elegante dança que

caracteriza as batidas da experiente Banda do Ilê Aiyê. A multidão de sócios trajando as

cores vivas do Azeviche do Ilê era um outro carnaval à parte.

Sem dúvida alguma, há um sentido em que é possível analisar o encontro das

misturas, ou aquilo que Bakhtin chama de ‘combinação dos contrários’, na apresentação

desse bloco, que é tido como o mais fiel às tradições africanas. Porém, o que marca a sua

presença imponente continuará sendo a sua adoção de forma ostensiva da visão do mundo e

da estética yorubá-africanas, que procura transmitir para seus milhares de sócios e

simpatizantes. É importante lembrar que o espetáculo que Ilê Aiyê leva à Avenida durante

o carnaval baiano é resultado de longas e profundas pesquisas, conduzidas ao longo do ano,

sobre o tema a ser apresentado. Sobretudo, vale dizer que não é só o aspecto físico e

estético que o bloco pesquisa, mas também uma série de saberes e fazeres africanos que

incorporam mecanismos e tecnologias tradicionais.

Não acredito que seja um índice de narcisismo étnico ou simples ingenuidade

afirmar tanta valorização da yorubanidade na configuração e na prática cultural baiana.

Mesmo, e, ouso afirmar, principalmente, em face daquilo que Leda Martins (1995: 40)

denunciou como o projeto ideológico do poder, através do qual a classe dominante na

sociedade brasileira idealiza o negro como um signo carregado apenas de significâncias

negativas tendo sido reduzido, através de séculos de convivência desigual com o grupo

dominante branco, a uma profunda invisibilidade e indizibilidade:

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(...) invisível, porque percebido e elaborado pelo olhar branco, através de uma sériede marcas discursivas estereotipadas, que negam sua individualidade e diferença;indizível, porque a fala que o constitui gera-se à sua revelia, reduzindo-o a um corpoe a uma voz alienantes (..)

Resultado do qual, conforme afirma Leda Martins (1995:42): ‘Ridiculariza-se seu registro

verbal (...); menosprezam-se sua visão do mundo, seus costumes, crenças e religiosidade;

banaliza-se sua herança cultural e carnavalizam-se, grosseiramente, seu corpo e expressão

facial, que se tornam sinônimos de um absurdo desvio estético (...)

Na minha opinião, é justamente na desarticulação desse quadro desolador que a

yorubanidade tem atuado, no espaço Atlântico como um todo, e na Bahia, Brasil, de forma

mais do que visível, ao longo do último meio século. Pode-se afirmar sem sombra de

dúvidas que a visão do mundo e as práticas culturais de matriz yorubana vêm

transformando as marcas estereotipadas em referência cultural digna de imitação por outros

grupos ou ‘nações’ negras, como afirma, aliás, a música ‘Negrume da Noite’ do Ilê Aiyê.

De forma cada vez mais consciente, esses mesmos valores acabam sendo incorporados e

adotados pela sociedade dominante.

Pesquisas realizadas por antropólogos e sociólogos como Reginaldo Prandi (1998) e

Alejandro Frigério (2004) mostram que, nas grandes metrópoles do Brasil, a classe media-

alta branca tem uma representação maior nos cultos de candomblé do que o grupo de

negros e pardos. Verifica-se também uma procura cada vez maior de modos de pensar e da

visão de mundo yorubá-africanos no seio da população em geral. A lotação de sala nas

turmas de yorubá atesta para uma procura cada vez maior do domínio básico da língua e

cultura yorubanas, não só na Bahia, como também em outros centros de estudos africanos

no Brasil188.

Nos seus diversos projetos de Ação Afirmativa, as organizações e grupos de negros

hoje procuram aproveitar o poder da yorubanidade de reverter o quadro do aprisionamento

ideológico, confiando à matriz yorubana o direito de batizar suas entidades de reivindicação

racial, dando-lhes nomes simbólicos, tirados da cosmovisão yorubana.

188 Mais uma vez, a imprensa está querendo ficar por dentro da onda das aulas de línguas africanas no Brasil.É sintomático que, em um mês e meio da abertura do curso de língua, cultura e civilização yorubá queministro no Instituto de Letras da UFBA em 2005.2, a turma já foi objeto de 3 reportagens: duas televisivas euma de um dos jornais mais tradicionais da Bahia.

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Lá onde se costumava acusar uma banalização da herança cultural do negro em

geral, verifica-se hoje, em espaços como o Pelourinho, uma verdadeira eclosão da estética

yorubá-africana, tanto na arte das trançadeiras como na presença corporal das próprias

baianas.

Em suma, já se pode afirmar que, de uma maneira significativa, a referência nagô-

yorubana permite que negro na Bahia e no Brasil deixe de ser apenas aquele signo

despersonalizado, só tendo ‘direito ao afogamento no coletivo anônimo’189.

Pode-se concluir então que a yorubanidade despertou um renovado interesse na re-

africanização das práticas e valores da baianidade, tornando-se numa das principais marcas

reais e referenciais para todas as expressões típicas da classe popular. Assim é que a

imprensa baiana hoje procura na yorubanidade a explicação etimológica para qualquer gíria

do povo que pretende veicular e transformar em cultura de massa.

A yorubanidade torna-se, neste sentido, uma base real para equilibrar a relação de

forças existente entre a cultura popular baiana e a cultura de massa veiculada pelas

poderosas máquinas de comunicação de massas, a serviço da classe dominante. Ou seja,

desde a explosão da participação popular no carnaval e outros tropos que caracterizam a

peculiaridade do milagre baiano, os donos da moderna industria cultural, as grandes

emissoras de rádio e televisão procuram na yorubanidade um aliado para convencer a

classe popular – ‘o povão’, como é tratada carinhosamente pelos cantores mais populares –

da autenticidade ‘africana’ das ‘bacanas’ expressões do momento que eles pretendem

colocar na boca do povo como ‘grito de guerra” para o sucesso carnavalesco.

Assim é que se procura desvendar, junto às ‘autoridades’ da língua africana

(metonímia generalizada que se refere ao idioma yorubá em tais circunstâncias) na Bahia,

(quase sempre pela mediação do CEAO), o significado ou a ‘força cultural’, em yorubá de

determinadas expressões, quase sempre extraídas de refrãos de canções do momento, que

não saem mais da boca do povo. Não importa se a expressão for ‘Dandalunda’, ‘Maindê

Dandá’ ou ‘Iáiá’190.

189 Cf. MEMMI, Albert, Retrato do colonizado, precedido pelo retrato do colonizador, apud Leda Martins,op. cit. p. 43.190 Para quem não sabe, o slogan da Rede Globo para o Carnaval da Bahia de 2005 foi a expressão “Diga aí,diga aí iáiá!”, e para o próximo ano, tudo indica que vai ser “Axé pra você!”.

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Da mesma forma, a moda baiana, que já perdurou durante alguns anos agora, é para

cada empresário querer colocar em yorubá, pelo menos, uma parte da nomenclatura que vai

designar sua loja. Essa tendência parece até mais forte nas novas ONGs. Na hora de batizar

a entidade é cada vez mais comum a preferência para uma bandeira da luta que privilegie

um nome ou um conceito em yorubá.

É claro que o mecanismo deste processo de legitimação através da yorubanização

obedece a um racionalismo complexo. Pode-se falar de um jogo ou estratégia de

manipulação mútua: o povo ratifica uma expressão ou uma música como foi o case de ‘Eu

sou negão’ e ‘É d’Oxum’, de Gerônimo, nos anos oitenta e de ‘Maimbê Dandá’, de

Carlinhos Brown em 2004, e os rádios passam a tocá-las. Por sua vez, os canais de

televisão, para não serem deixado de fora no âmago do carnaval todo-poderoso, fazem uma

reportagem para ‘informar’ seus fieis telespectadores da origem, significado e contexto

cultural de tais hits populares. No processo, como acontece na maioria dos casos, tais

expressões correm o risco de sair do domínio popular para virar produtos de massa.

A lógica deste jogo de poder cultural hoje faz com que alguns cantores, para terem a

chance de ver uma música sua se tornar hit popular carnavalesco, procuram

conscientemente incluir no repertório uma ou várias faixas com letras ou expressões em

yorubá. Esta estratégia que era quase exclusiva de afoxés e blocos afros, como Filhos de

Gandhy, Olodum, Ilê Aiyê e Araketu, é hoje adotada por outras bandas como a Timbalada..

Em outras palavras, é lícito concluir que o domínio de elementos culturais da

yorubanidade aumenta o poder de inserção cultural (Hall, 2003 [1981]) da classe popular

dentro da complexa expressão da baianidade. E, pela maneira na qual as referências e as

simbologias da cultura yorubana vêm sendo naturalizadas pela mídia e pelos meios de

comunicação de massa, inclusive nas emissoras de rádio e televisão do Estado da Bahia, ou

seja, a Rede Bahia de televisão, a TVE e a Rádio Educadora, torna-se evidente a adoção,

consciente ou inconsciente, da yorubanidade como principal titular da expressão ‘cultural

afro’ na Bahia. Neste sentido, é bastante sintomático a freqüência de temáticas ligadas a

essa cosmovisão em programas televisivos como Soterópolis da TVE, enquanto que não

passa um dia sem que a Rádio Educadora não toque músicas com conteúdo e temáticas

centrados na visão do mundo yorubana e suas versões baianizadas.

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Concluindo, posso falar da Yorubaianidade como um olhar virado para uma

mundialização cultural. De acordo com Ildásio Tavares (1996:124)), seria concretamente a

partir da Terça-do-Olodum que a Bahia iniciara sua ascensão global. Ou seja, a partir da

sua música de identidade que seduziu grandes nomes da música mundial como Paul Simon

e Michael Jackson. Hoje, efetivamente, como afirma Ildásio Tavares, a Terça-do-Olodum:

‘de evento negro passou a evento baiano e de baiano a universal’, no qual se encontram

‘todas as Áfricas, todos os brasis, todas as europas (...) brancos, preto mulatos, azuis,

amarelos, verdes, todos roxos pela agitação onde assoma o Olodum (...)’.

Ao mesmo tempo, o próprio Tavares (1996: 125) não nos deixa esquecer que à

origem de tal ascensão meteórica encontra-se o Candomblé:

Principalmente o de nação de ketu, com sua estrutura em banda de rum, lé, rumpi,gan e xequeré, tocado com varetas (onde) o chão e o ar da percussão se distribuemnuma formação binária, ternária ou quaternária, mas com diferentes possibilidadesde variação rítmica e improvisação. Altamente complexo pra se falar e mais aindapra se fazer (...)

Enfim, se é verdade que, como afirma o antropólogo Jéferson Bacelar, comentando

o livro Vozes quilombolas – uma poética brasileira, do poeta baiano Jônatas Conceição da

Silva, que ‘seria a partir do Ile Aiyê que a cultura, tendo como eixo central o candomblé –

mas não só – se tornaria ideologia e política na construção da identidade social do negro

em Salvador’191, acredito que não seria exagero nenhum, à luz da yorubaianidade, fazer

uma releitura da música ‘Festa’ de Ivete Sangalo, cujo refrão proclama: ‘o povo do gueto

mandou avisar (...)’192, uma vez que ninguém mais duvida hoje que esse povo do gueto seja

ninguém menos que o povo da Liberdade/Curuzu, maior bairro negro das Américas. Afinal

a extraordinária lírica musical de Gerônimo foi explícita: ‘Eu sou negão/meu coração é

Liberdade’. Ou seja, esse povo do gueto seria o povo da Senzala do Barro Preto, os filhos

da Mãe Preta. Isto é o mesmo que dizer o povo do Queto (Ketu), nação da Mãe Hilda

Jitolu193 – e de grande parte das outras iálorixás da Bahia – sobre cujo alicerce as outras

nações ‘africanas’ e os afrodescendentes em geral pautam a sua identidade como negros e 191 Cf. BACELAR, Jéferson, “Uma poética quilombola”, A Tarde, 02/04/2005.192 Cf. SANGALO, Ivete, DVD de 10 Anos MTV.193 Sei que alguém poderia me corrigir, afirmando que a própria Mãe Hilda se diz, ou deixa dizer, que suaverdadeira ‘nação’ é Jeje-Marrin (Jeje-Mahi), mas ninguém duvida que toda a simbologia e a linguagem ritualcom os quais ela dirige o seu terreiro são de matriz yorubana. Além do mais, tanto o próprio líder-máximo do

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afrodescendentes, na luta pela plena cidadania. É, portanto, sem dúvida, esse povo do queto

que manda o aviso das verdadeiras manifestações da baianidade pelos quatro cantos do

Brasil e do mundo hoje globalizado.

Ilê quanto seus diretores, como a antropóloga Maria de Lourdes Siqueira, sempre deixam claro que, emtermos identitários, a etnia do Ilê Aiyê é yorubá. Eles nem dizem mais “nagô”, mas puro e simples, yorubá.

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AS MIL E UMA FACES DAYORUBAIANIDADE

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A baianidade do Afoxé Filhos de Gandhy (Ajai ô!)

Bloco Afrocarnavalesco Ilê Aiyê:Levando o grito da baianidade do Curuzu à Avenida