cosmovisão africana no brasil

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I.COSMOVISÃO AFRICANA: A África antes da invasão européia. A Cosmovisão Africana não surge fora do espaço e do tempo. Pelo contrário, é analisando a história da África que podemos identificar sua dinâmica civilizatória e a formação de sua Cosmovisão. A África, entretanto, é continente grande demais e múltiplo em demasia em suas expressões culturais. Por isso nos limitaremos a algumas regiões daquele continente, sobretudo ao Império do Gana, Mali e Songai que tiveram sua existência entre o século X e XV de nossa era. Não é possível aprofundar um trabalho como esse, sequer todas as nuanças destes impérios, quanto mais da África como um todo. Assim, quando nos referimos à África, é a uma porção do continente que nos referimos. Consideremos, então, os três grandes Impérios Africanos que se ergueram entre o século X e XV de nossa era. São eles: Gana (X a XII), Mali (XIII a XIV) e Songai (XIV a XV), todos localizados entre o Saara e o Sahel, obedecendo o deslocamento de ocidente para oriente. Politicamente alternaram seu domínio na medida em que um entrava em crise e o outro chegava a seu apogeu. Veremos, adiante, como estes impérios surgiram sob o domínio de algumas etnias que hegemonizaram a política e a milícia da época. Por se tratar de um período histórico muito vasto, nossa pesquisa utilizará o método macrossociológico. Privilegiando as macro-estruturas, intentaremos identificar os elementos estruturantes dessa sociedade, consolidando sua história através de uma perspectiva sócio-estrutural. Na medida em que perguntamos porque surgiram estes grandes impérios na linha geográfica ocidente-oriente, durante os séculos X e XV, sob domínio de etnias determinadas, e, qual o contexto internacional onde surgiram e, ainda, como funcionavam suas dinâmicas políticas e sociais, estaremos fornecendo as primeiras respostas à como se formou a Cosmovisão Africana. Uma análise pormenorizada dos três grandes impérios africanos é motivo para um trabalho de pesquisa que não cabe à esse livro e nem é seu objetivo. A meta é, como dissemos, ressaltar os elementos estruturantes que nos permitem dizer que existia uma unidade cultural na África antes da invasão européia. Há três barreiras epistemológicas que teremos de vencer antes de entrarmos propriamente na caracterização dos três grandes Impérios Negros. É notório o fato da África, durante séculos, ter sido excluída dos vários saberes desenvolvidos pela academia. Esta exclusão é fruto de preconceitos em relação ao continente, e não raras vezes, tal exclusão foi fruto da mais vil discriminação racial. A inferiorização que a África e seu povo vem sofrendo durante todos esses séculos constitui-se numa grande barreira epistemológica para se desenvolver pesquisas a respeito do continente do Arco-Íris[1]. Não obstante o preconceito e a discriminação racial que sofre este continente, seu povo e descendentes, a África continua sendo um continente onde a diversidade e a multiplicidade de culturas vem sendo respeitada e servindo, inclusive, de modelo de organização para a vida. Para elucidarmos alguns desses elementos, temos, portanto, que vencer algumas barreiras epistemológicas. A primeira barreira epistemológica, defendida até mesmo pelo filósofo Hegel[2], é que a África não tem história. Sendo um continente primitivo, onde 1

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I.COSMOVISÃO AFRICANA: A África antes da invasão européia.

A Cosmovisão Africana não surge fora do espaço e do tempo. Pelo contrário, é analisando a história da África que podemos identificar sua dinâmica civilizatória e a formação de sua Cosmovisão. A África, entretanto, é continente grande demais e múltiplo em demasia em suas expressões culturais. Por isso nos limitaremos a algumas regiões daquele continente, sobretudo ao Império do Gana, Mali e Songai que tiveram sua existência entre o século X e XV de nossa era. Não é possível aprofundar um trabalho como esse, sequer todas as nuanças destes impérios, quanto mais da África como um todo. Assim, quando nos referimos à África, é a uma porção do continente que nos referimos. Consideremos, então, os três grandes Impérios Africanos que se ergueram entre o século X e XV de nossa era. São eles: Gana (X a XII), Mali (XIII a XIV) e Songai (XIV a XV), todos localizados entre o Saara e o Sahel, obedecendo o deslocamento de ocidente para oriente. Politicamente alternaram seu domínio na medida em que um entrava em crise e o outro chegava a seu apogeu. Veremos, adiante, como estes impérios surgiram sob o domínio de algumas etnias que hegemonizaram a política e a milícia da época. Por se tratar de um período histórico muito vasto, nossa pesquisa utilizará o método macrossociológico. Privilegiando as macro-estruturas, intentaremos identificar os elementos estruturantes dessa sociedade, consolidando sua história através de uma perspectiva sócio-estrutural. Na medida em que perguntamos porque surgiram estes grandes impérios na linha geográfica ocidente-oriente, durante os séculos X e XV, sob domínio de etnias determinadas, e, qual o contexto internacional onde surgiram e, ainda, como funcionavam suas dinâmicas políticas e sociais, estaremos fornecendo as primeiras respostas à como se formou a Cosmovisão Africana. Uma análise pormenorizada dos três grandes impérios africanos é motivo para um trabalho de pesquisa que não cabe à esse livro e nem é seu objetivo. A meta é, como dissemos, ressaltar os elementos estruturantes que nos permitem dizer que existia uma unidade cultural na África antes da invasão européia. Há três barreiras epistemológicas que teremos de vencer antes de entrarmos propriamente na caracterização dos três grandes Impérios Negros. É notório o fato da África, durante séculos, ter sido excluída dos vários saberes desenvolvidos pela academia. Esta exclusão é fruto de preconceitos em relação ao continente, e não raras vezes, tal exclusão foi fruto da mais vil discriminação racial. A inferiorização que a África e seu povo vem sofrendo durante todos esses séculos constitui-se numa grande barreira epistemológica para se desenvolver pesquisas a respeito do continente do Arco-Íris[1]. Não obstante o preconceito e a discriminação racial que sofre este continente, seu povo e descendentes, a África continua sendo um continente onde a diversidade e a multiplicidade de culturas vem sendo respeitada e servindo, inclusive, de modelo de organização para a vida. Para elucidarmos alguns desses elementos, temos, portanto, que vencer algumas barreiras epistemológicas. A primeira barreira epistemológica, defendida até mesmo pelo filósofo Hegel[2], é que a África não tem história. Sendo um continente primitivo, onde

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não ocorre mudanças, onde as estruturas sociais sempre permaneceram “tribais”, e onde as inovações jamais existiram, muitos autores, até o século XIX, consideraram que a África era um continente a-histórico, vivendo no mais primitivo dos sistemas naturais. A segunda barreira epistemológica é a ideológica, que se resume, fundamentalmente, na tentativa de mostrar que o continente africano fica fora da história. Ou seja, que monumentos bem como outras manifestações artísticas, assim como estruturas arquitetônicas que revelavam bom nível de desenvolvimento social e político em África, foram construídos por outros povos que não africanos, e, de preferência, povos brancos advindos do ocidente (fenícios, persas etc.). Ou seja, segundo essa concepção os africanos são essencialmente passivos, incapazes de, por si mesmos, construírem a história. A terceira barreira é ainda mais racista. É o caráter da miscigenação, que diz que a obra dos grandes impérios negros e seus grandes feitos culturais e políticos foram realizados por sujeitos não negros, ou, pelo menos, por sujeitos miscigenados. Ou seja, mesmo reconhecendo que a África possui e construiu uma história, tal história, na visão dos defensores da tese da miscigenação, só foi possível porque não foram os negros – ou pelo menos não foram eles sozinhos – que a construíram. Este preconceito contra os africanos foi também formulado da seguinte maneira: os africanos do norte, miscigenados com os árabes, povo de tez branca, possui história – uma história islamizada, arabizada. Já os africanos ao sul do Saara seriam povos totalmente primitivos, vista que sua miscigenação com povos brancos era praticamente nula. Não é de hoje que o continente africano e seus habitantes sofrem com as teorias racialistas. Seja pela negação da autonomia dos africanos, seja pela desqualificação de sua história, seja pela inferiorização de sua identidade, os africanos e seus descendentes são sistematicamente negados em sua existência. A mestiçagem, na África em geral e especialmente no Brasil, tornou-se não apenas uma barreira epistemológica para a compreensão da dinâmica civilizatória dos afrodescendentes, mas também uma ideologia que embota as efetivas relações raciais neste país, que, sem dúvida, é marcado por um racismo exacerbado. O argumento binário do puro/impuro, original/mestiço, branco (puro)/ negro (impuro)/ mulato (mestiço) serviu como uma poderosa arma de dominação da elite – em sua maioria branca, masculina e católica. Nos anos 70, diz KI-ZERBO (1980), muitos historiadores africanos quanto europeus, voltaram-se a uma pesquisa mais científica da África, o que equivale a dizer que buscaram superar os preconceitos acima relacionados. Isso deve-se, pelo menos, a dois motivos: 1) subjetivo: pois existe o desejo de encontrar uma identidade africana; 2) objetivo: pois a independência de vários países africanos traz de volta ao cenário político estas questões. Estas mesmas questões são fundamentais para discutirmos a cosmovisão de matriz africana no Brasil, pois o problema da identidade africana e dos descendentes dos africanos bem como as questões políticas que permeiam a história dos negros na África e no mundo estarão sempre presentes no decorrer deste trabalho. Na verdade, esse texto estará sempre em torno da questão cultural e da questão política. Se privilegiamos analisar os três grandes Impérios Africanos foi porque eles nos dão uma exemplar idéia da dinâmica cultural africana antes da invasão européia. Estrategicamente os

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escolhemos por se tratar de um exemplo histórico, capaz de fornecer-nos dados suficientes para a tese da manutenção de uma cosmovisão africana que, muito embora a distância no tempo, é atualizada nas manifestações culturais dos afrodescendentes, bem como em seu modo de organizar suas instituições – atualizando, no cotidiano, sua cosmovisão originária. Aspectos Históricos Antes de falarmos dos Impérios Africanos, especificamente, convém contextualizar a África ao Norte e ao Sul do Saara, a fim de termos em mente a situação geográfica e política de onde surgiram os grandes Impérios Negros. O deserto do Saara é o que divide a África negra da chamada África branca. O Saara está em constante expansão, e vai obrigando os povos do Sul a recuarem. Acima do deserto do Saara ocorreu a invasão islâmica. Estes povos, de fenótipo mais claro, continuamente empurraram bolsões de população negra para o sul da África. É por isso que divide-se o continente em África do Norte (África Branca) e África Negra (ao Sul). Esta divisão ocorre, pelo menos, desde o século XVIII. Vale dizer que a relação das duas Áfricas é, por vezes, de confronto, e às vezes, complementárias. Nesta região da África (da faixa que congrega tanto a região desértica do Saara quanto a região de Savana do Sahel) a população, em sua maioria, é nômade e se dedica ao comércio. É aí que os grandes impérios africanos irão germinar e expandir-se. Antes da invasão islâmica, havia a escravização dos africanos abaixo do Saara, mas a escravização era diminuta. Com a invasão árabe este processo se intensifica e ganha uma justificativa ideológica: a conversão dos pagãos para o islamismo.

Com efeito, havia escravidão na África antes da chegada dos árabes e europeus. Porém, há diferenças notórias entre o que se chama de escravidão africana antes e depois da invasão islâmica e européia. Antes da formação dos grandes impérios, na região ao sul do Saara, tínhamos o deslocamento de populações inteiras, que procuravam outros territórios para ocuparem, o que provocava guerras étnicas entre os clãs, famílias-aldeia ou cidades-estado. Desses confrontos resultavam os prisioneiros de guerra, que, dentro da visão de mundo africana, não eram obrigados a rejeitar seus deuses, perder suas línguas ou alterar seu modo de produção. O “escravo” se integrava ao clã, família ou cidade-estado. Ou seja, havia o Patriarca, o Antepassado, os Filhos, os Empregados e os “Escravos”. A diferença da escravidão em África e na Euro-Ásia, é que na dinâmica civilizatória européia o escravo é coisificado em sua existência, passando a ser tratado como coisa (“res”) - podendo ser, por isso, explorado como a um animal ou, como foi o caso do Brasil, explorado mais que a um animal[3]. A experiência civilizatória européia teve como propulsora uma cosmovisão de mundo assentada em valores individualistas, burgueses e liberais, que privilegiava o acúmulo de capital e não a distribuição de riquezas. Assim o escravo era tido como uma mercadoria a mais na rede comercial que sustentava o processo civilizatório ocidental. Na África, por outro lado, o escravo ocupa outra função no interior do circuito escravocrata. Geralmente sendo prisioneiro de guerra, o “escravo” é integrado na dinâmica da etnia que

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dominou seu grupo de origem. Ele é incorporado dentro deste sistema. Ele não é nadificado na valorização de sua existência. Ele não é transformado em mercadoria ou instrumentalizado para aumentar o acúmulo de capital. Há, inclusive, o caso de um “escravo” que chegou a Rei em uma das monarquias africanas. Enfim, são culturas diferentes que tratam seus subordinados de maneira diferentes, resultando num grande erro o emprego equivalente da palavra “escravo” para a situação africana e para a situação européia. Defendemos, a partir de uma leitura macrossociológica, que os Impérios Africanos que se ergueram na faixa Saara, Sahel e Savana, funcionou como “parapeito” para inibir a dominação do sul da África pelos árabes. A formação dos Impérios foi uma estratégia de defesa e uma resposta crítica à islamização imposta pelos berberes. A população dessa região migrou massivamente em direção ao sul, fugindo ao processo de homogeneização do islão, que no afã de sua cruzada econômico-religiosa, dizimou muitas etnias. Era uma fuga da escravização. Tanto em Gana, como no Mali e no Songai ocorreu a islamização. Acontece que essa conversão ao islão fora superficial, pois apenas as elites governantes se converteram. A maior parte da população, sobretudo a rural, permaneceu fiel às religiões tradicionais africanas. Cronologicamente os Impérios vão surgindo no sentido ocidente-oriente, se contrapondo às rotas de escravização árabe. A dominação árabe, é sabido, não tinha apenas uma motivação religiosa para invadir aquele território, pois quem controlasse o comércio asseguraria a hegemonia política e econômica da região. A região do Sahel é uma zona de intensa troca de mercadorias. De um lado, temos a influência da África Negra, que conserva as matrizes africanas, de outro, temos a influência da África Branca[4], predominantemente árabe. Não foi por acaso que os três grandes Impérios Africanos surgiram entre o Saara e a Savana. Além dos interesses econômicos e religiosos, há explicações político-culturais. Ao sul da África temos outros tipos de organização social e política dada a tradição de povos como os yorubás, por exemplo, que organizavam-se politicamente em torno de cidades-estado. Urbanizados, os yorubás detinham a arte da metalurgia e podiam proteger-se em unidades políticas menores e independentes. Já os povos da faixa Saara-Sahel, habituados ao nomadismo, construíram os grandes impérios somente quando foi necessário combater a progressão árabe. Enquanto na África do Norte a formação dos impérios está imbuída da concepção de mundo árabe, onde existe a imposição de uma verdade religiosa (Islão) e econômica (modo de produção árabe), gerando uma política de dominação, na África ao Sul do Saara ocorreu outro processo - inédito -, onde as etnias de territórios circunvizinhos especializavam-se em funções produtivas (agricultura, caça, pesca, pastoreio, metalurgia), enquanto que a etnia autóctone era apenas dona da terra, dividindo o governo político e militar com as etnias que chegavam. Isso gerava uma política de cooperação. Os Impérios Africanos ergueram-se como construções político-sociais fundamentadas pela cosmovisão africana. Analisaremos os Impérios de maneira a ressaltar apenas os aspectos relevantes para a elucidação da cosmovisão africana, por isso não nos deteremos em detalhes ou aprofundamentos históricos importantes. Nosso interesse, neste livro, é compreender a dinâmica civilizatória africana e sua correspondente

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cosmovisão, ficando para outro momento o estudo detalhado da história africana[5].

A primeira grande resposta dos negros ao processo de islamização africana, iniciou no século VII com a soma de várias etnias para formar o primeiro Império Africano que aflorou apenas no século X. Império do Gana

O Império do Gana surge num lugar privilegiado, pois situa-se no ponto principal da travessia do Saara em direção ao Sul. A cidade principal é a capital do comércio do Gana, Walata. No entanto, o Império Ganês não surge apenas por causa da privilegiada localização geográfica e das rotas de comércio, pois tais rotas existiam a pelo menos desde o séc. III de nossa era. O surgimento do Império do Gana, portanto, como já afirmamos, surge como reação ao domínio islâmico. Na verdade, a criação do Império é uma das respostas dadas à expansão árabe, pois pode se verificar um grande movimento migratório para o sul da África neste período. A hipótese é que os povos que viviam ao sul do Sudão Ocidental fugiam do processo de escravização, seja migrando para outras regiões, ou se organizando em estruturas estatais como o Império do Gana. O Império surge a partir da convergência de elementos geopolíticos. Em termos políticos a localização do reino do Gana é bastante estratégica, pois é onde se controla importantes rotas comerciais, que definem o comércio entre o norte e o sul da África. O desenvolvimento aurífero da região, possibilitou sua concentração de renda e também o domínio e controle sobre regiões vizinhas através de cobrança de tributos e demarcação de territórios na região. Além disso, ressalta-se a busca de mão de obra escrava, empreendido pelos povos berberes que dominavam a região do Saara. Após a islamização pelos árabes, há uma reordenação do Império do Gana que passa a servir como uma “barreira” protetora, inibindo a expansão islâmica para o sul da África. Com sua localização privilegiada, Gana, situada na faixa do Sahel, tem as condições para o desenvolvimento da agricultura e do pastoreio, que são dinamizadas, criando um contingente de mão de obra especializada. Na Zona do Sahel há uma forte produção de cereais. Essa produção especializada permitiu que ocorressem dois fenômenos: 1) o surgimento das cidades; 2) as estratificações sociais. É claro que no cenário econômico existem outras rotas para o comércio. Mas é em Gana que se hegemoniza esse processo, e, por isto, também o controle político. Isto não impede que haja disputa política na região. A oeste encontramos Takrur que rivaliza com Gana. Há também o império de Bangug[6], onde se hegemoniza a extração do ouro. Gana não se preocupou em anexar Bangug ou destruir Takrur; seu objetivo principal era controlar a rota comercial. O que a região do Sahel exportava para o norte da África era mais valioso do que o que recebia, o que dá a idéia exata da fartura e da força do Império Ganês. Apenas que a dinâmica civilizatória dos árabes privilegiava a guerra, a destruição , o proselitismo e a universalização, enquanto a cosmovisão africana privilegia a diversidade, a produção (riqueza), a lógica própria de cada lugar e os valores culturais de cada clã.

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São os mandinga (etnia majoritária), através dos soninke (subgrupo da etnia), que criam o império do Gana. A cidade de Kumbi-Saleh, capital política do Gana, chega a ter nesta época vinte mil habitantes. Como vivem principalmente da agricultura e do pastoreio, numa região prodigiosa para a produção, a população ganense experimenta certa fartura, não padecendo de miséria e falta de estrutura social. O povo não passa fome - mesmo os camponeses -, e os nobres se destacam da população por causa do controle do ouro. Quanto à organização social, são as relações de parentesco consangüíneo que estruturam a sociedade, proporcionando uma conjuntura política e ideológica que evidencia relações de produção e, consequentemente, estratificações sociais. Antes, porém, da invasão islâmica, a região do Gana estruturava-se em torno de uma organização mui tradicional, ou seja, de acordo com as linhagens matriarcais – principalmente - ou patriarcais. Com a formação do Império do Gana a estrutura social passa a ser mista, coabitando o modelo tradicional e a organização “urbana” do Império. No cenário político o Imperador constitui-se na figura central do poder administrativo e religioso. Além do mais era ele quem controlava a produção e a comercialização do ouro. A riqueza do Estado provinha do comércio e da tributação, o que permitia o bem-estar social relativo da população. A política no Império está assentada numa organização central, com o poder centralizado na figura do Imperador. A periferia do império, por sua vez, ainda que considerada vassala em relação ao Imperador, tem uma estrutura de poder descentralizada, e mantém suas tradicionais formas de organização. No interior do Império (e dos reinos periféricos) não havia coerção quanto a prática de religiões diferenciadas. O espaço imperial permitia a convivência de diversas matrizes religiosas, ou seja, as etnias não precisavam subordinar-se a uma religião hegemônica.

Na região do Sahel há o cobre, a noz e o marfim. Estes produtos

interviram no modelo tradicional da estrutura social africana. Nas estruturas tradicionais a divisão dos bens de produção era de acordo com os clãs, que recebiam equanimamente, ainda que respeitando o princípio da proporcionalidade, os produtos, pois o Rei precisava distribuir igualitariamente a riqueza para manter sua autoridade e prestígio. Com a intensificação do comércio, a distribuição da riqueza passou a não ser tão igualitária e abalou a estrutura tradicional, pois chocou-se com os valores tradicionais da comunidade que, outrora, pautava-se pela lógica da abundância e, com a chegada dos árabes e o desenvolvimento do comércio, passou a ser regida pela lógica do acúmulo e concentração da riqueza. Cria-se aqui um conflito entre os nômades do deserto (pastores) e os habitantes do Sahel (povos sedentários). A rota do comércio através do Saara, com a utilização do uso do camelo, era domínio dos berberes – povo africano islamizado -, que viviam segundo os modos de vida nômades, isto é, não ocupavam território fixo, não criavam instituições estatais e viviam basicamente do pastoreio. Já os povos do Sahel organizavam-se de forma muito diferente: suas principais atividades econômicas era a agricultura – principalmente de cereais -, e construíram instituições estatais, devido a sua ocupação permanente de território.

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Por vezes essa relação é complementária, e por vezes elas são conflituosas. Com a invasão islâmica, entretanto, essa relação tensiona-se cada vez mais. Os berberes são acostumados a armar estratégias de ataque ao Sahel e voltar para o deserto. Essas são ações de rapinagem dos berberes. O conflito entre os povos nômades (berberes) e os povos sedentários (da região do Sahel) ocasionou um conflito político, pois dominaria política e economicamente a região quem controlasse a rota do comércio. Daí surgiu o Império do Gana, no entrecuzamento de interesses conflitantes de etnias locais, de povos distantes e, também, como uma reação à expansão árabe, que também tinha muito interesse na rota do comércio e no domínio da extração do ouro, um pouco mais ao sul de Gana.

O Gana se afirma como Império no séc. X d.C., no mesmo período em que os árabes consolidava o seu poderio. Ou seja, quando a poderio político e militar dos almorávidas ficou mais forte, mais forte também ficou o Império dos Malikes para lhe opor resistência.

O império era formado por diversas etnias, governados por um rei que possuía o título de Ghana – senhor do ouro. Já a terra era propriedade de todos, cabendo ao rei a administração dos conflitos, cumprindo o papel de mediador - cuja função principal era a de manter as diferenças étnicas, o que permitia a relação de troca onde interesses comuns do reino era privilegiado, não de forma consensual, mas na medida do possível garantido os princípios de justiça.

Uma característica marcante do governo no Império do Gana é o regicídio[7]. O rei é morto se ele se desvia do que foi comunitariamente determinado pela sociedade. Pode acontecer dele ser morto quando atinge uma idade avançada, quando já não consegue desempenhar eficazmente seu papel de liderança. O regicídio é uma maneira de exercer o controle político pela comunidade e obriga a seu governante cumprir o que está estabelecido pelos conselhos de anciãos que apresentam os anseios da população ao governo central. Se o governo do Rei volta-se contra o bem-estar da população, então ele será o responsável pelo mal estar social e deverá, por isso mesmo, ser eliminado.

O Império Ganês é uma organização política e culturalmente complexa. Congrega uma grande diversidade étnica em torno de um objetivo político comum: barrar o avanço dos almorávidas para o sul da África. Apesar da elite do Império converter-se ao islamismo, todo o Império mantém suas práticas religiosas tradicionais, o que nos faz crer que a islamização na região do Gana foi superficial e atingiu sobretudo as elites dirigentes. O que está em jogo, muito mais que as conquistas religiosas são as conquistas econômicas. A formação de uma brigada militar, por parte dos árabes, para dominar a exploração do ouro, as rotas de comércio do Saara e a produção agrícola do Sahel sofreu uma resistência da população africana, que só foi possível, graças às suas idiossincrasias culturais de congregação de etnias, de solidariedade continental, de fidelidade às suas religiões e de promoção do bem-estar social.

Mas o grande Império do Gana sucumbe aos ataques dos árabes. Eles fortalecem o poderoso exército almorávida e investem massiçamente contra os povos do Sahel, sobretudo a oriente de Gana. Os berberes – base do exército dos almorávidas - não atacam de imediato a região do Gana, pois ali se constitui um forte império. Estrategicamente eles investem no processo de

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conversão religiosa e alianças militares. Eles intensificam as conversões forçadas ao negro. Esta justificativa religiosa “legitima” os ataques dos árabes, que buscavam hegemonia política e econômica na região. Todo o séc. XI é o das investidas do exército almorávida, que, nesta época constitui-se de tribos berberes mais ocidentais: os azenegues, que controlavam o tráfico de escravos para o Marrocos. Para os berberes o islamismo representava a possibilidade de resgatarem a hegemonia perdida sobre os Estados Africanos. Para Takrur a aliança com os almorávidas representou a possibilidade de suplantar a hegemonia maninke e, por isso, converteu-se ao islamismo, selando uma aliança política e militar com os árabes. Em 1042 Ibn Yacine organiza um exército de 30 mil homens e invade o Gana, impondo a derrota ao Imperador. Em 1076, Abu Bakr invade e vence o Gana ao mesmo tempo que os almorávidas marcham para o norte, rumo ao Magrebe, graças à força proporcionada por largos contingentes negros do Takrur e uma revolucionária organização militar. Em 1086 Yussuf lidera a força islâmica, na Espanha, contra os cristãos. O exército almorávida é formado de árabes e de negros convertidos. Com este contingente bélico poderoso eles avançam em direção ao Sul, procurando consolidar seu domínio no Sudão Ocidental. No início do séc. XII o poder almorávida se estendia por todo litoral da costa ocidental africana, abrangendo também o território que ia desde o rio Senegal até a Espanha. Pela primeira vez na história os povos do deserto se unificaram sob uma administração permanente.

A imposição do islamismo, no séc. XI, pelos almorávidas, intensificou o deslocamento de etnias negras (os Serer, Volfo, Saracolé, Bambara) para o sul do continente. Os deslocamentos populacionais impostos pelo islamismo e o crescimento das disputas pela hegemonia na região levaram ao fim o Império do Gana.

Império do Mali

Com a decadência do Império do Gana, apareceu, no século XII, o

Império Sosso, também conhecido como Império do Mali, onde, é claro, dominava a etnia sosso, porém, com o consentimento das outras etnias da região. A formação dos grandes Impérios Negros obedecem sempre o mesmo modelo: desenvolvem-se a partir da formação de Grandes Federações Étnicas.

O sec. XII é conhecido como o século da turbulência. Os almorávidas, além de seu poderio bélico, primam pela pureza religiosa e impõem a conversão a todas etnias dominadas. Foram exatamente esses fatores que levaram à derrocada o Império de Gana, a saber: 1)formação de um exército islamizado, 2) conversões de populações negras ao islamismo.

O sossos se posicionam claramente contra o islamismo. Eles se confrontaram com os berberes, que por conhecerem a rota do comércio e pela convivência com os soninkes, quizeram dominar a política do ex-império do Gana. Se em Gana a resistência foi camuflada, no Mali a resistência foi explícita. No entanto há algo em comum na resistência à invasão árabe: ela sempre é hegemonizada por uma grande etnia - os mandingas e soninkes, no caso do Gana, e os sossos, no caso do Mali.

É importante notar que a demanda de escravização aumenta quando aumenta-se as guerras em uma região. No ato da queda do Gana, que já

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contava com uma grande população, a segurança torna-se frágil e a escravização intensifica-se. Nós temos dois tipos de reação aos árabes. 1) contraposição radical ao islamismo (os sossos do Mali); 2) a assimilação superficial do islamismo (os maninkes do Gana). Ou seja, no caso da assimilação têm-se, na verdade, a estratégia da dissimulação, pois as populações negras se revestem de um “verniz” islâmico para manterem suas práticas religiosas tradicionais. Os Maninkes, Keitas, Camarás, Konatés e Tracrés uniram-se para derrubar os sossos. Além de interesses comuns na região controlada por seus adversários (sossos) eles se reconhecem pertencentes a uma mesma linhagem, o que possibilitará relações inter-linháticas tendo, como consequência, uma organização política única – o que os torna uma grande potência na região. Eles se compõem basicamente de comerciantes, de caçadores e de exotéricos. Por isso o interesse na região do Império do Mali é imensa. Neste contexto, os maninkes – que foram islamizados pelos almorávidas - entram em guerra contra os sossos para obter a hegemonia do comércio e o domínio político na região. Na verdade, os sossos foram suplantados pelos malinkes no intuito de “aliarem-se” ao islamismo como estratégia para vencer as disputas regionais, e não para abraçarem fervorosamente a ideologia do islã. É na batalha de Querino que os sossos são suplantados pelo exército de Sundiata (Maninke). A estrutura política do Mali está centralizada no Mansa - o rei dos reis. Como no Império do Gana, existem os governos periféricos e os governos aliados. A vida do reino se baseia principalmente na agricultura, abrangendo também a pastorícia (criação de gado), as rotas comerciais do Saara e as atividades agrícolas na Savana (Sahel). O Império do Mali começa a entrar em decadência a partir do sec. XV. Isto ocorre por causa de fatos políticos relacionados a eventos no interior da própria corte. Mas há outros fatores, mais profundos, que explicam a queda do Mali. Sem dúvida, o acirramento da disputa mundial entre islamismo e cristianismo impeliu os árabes a dominar a região do Sudão, tornando mais massiça a presença islãmica no continente africano. A disputa com o cristianismo fez com que o Islão procurasse manter e expandir seu domínio na região. No entanto, como há uma disputa entre essas culturas religiosas monoteístas, também o cristianismo manifestará interesse em adentrar no Sudão. O Império do Mali, não obstante, passa a ter que se defender não apenas dos islâmicos pelo trajeto transaárico, mas também a se preocupar com os portugueses, pois eles já sobrepujam a costa ocidental africana. As brigas internas da corte aparecem como um epifenômeno, ou seja, surgem por causa da instabilidade regional provocada pela conjuntura mundial. O séc. XV é outro século de turbulência. Os conflitos se acirram. O Império do Mali resiste até o séc. XVI. Ocorrem novas brigas internas entre as etnias na tentativa de hegemonizar o comando da região. Novamente, neste período de guerras intensas, a África tornou-se uma grande fornecedora de escravos para o Mediterrâneo. Desgastadas pelas brigas internas e dilaceradas pelo tráfico de escravos, o Mali sucumbi.

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Império do Songai O império do Songai representa três deslocamentos: 1º) Territorial: no Império do Mali a área ocupada era a do Sahel, na linha da rota do comércio. Havia grandes cidades como Walata, Tombuctu, Jao e Jenné. Na formação do Império do Songai, por sua vez, houve a necessidade de avassalar os reinados do oriente. 2º) Organização do Império: o Império do Gana era muito descentralizado e disperso. Com o Songai temos uma estrutura mais burocrática e organizada. O poder queda-se, por vez, centralizado. Como há uma intensificação da islamização da nobreza, aumenta-se as contradições religiosas e culturais da população do Sudão. Frente às pressões externas há a necessidade de uma estrutura burocrática e militar para defender-se da invasão árabe. 3º) Miscigenação étnica e estratificação social: se no Gana predominava os Soninkes e no Mali os Mandingas, no Songai já não há predomínio de uma etnia sobre outra. Já não há a hegemonia de uma única etnia, mas sim a estratificação da sociedade em “classes” sociais.

A tradição política, entretanto, segue a tradição africana. Os grandes

rituais que reforçavam a organização política continuavam sendo os das religiões tradicionais da África. Mesmo com a intensificação das campanhas de conversão para a fé islâmica, as elites convertiam-se superficialmente. Do ponto de vista macrossociológico, há mais uma jogo de cena político nestas conversões, do que propriamente adesões religiosas.

A base da organização social no Império do Songai é a família extensa ou clã. Com essa estrutura de organização social explica-se porque não houve grandes desigualdades sociais entre a população camponesa do Império. Se na área urbanizada correspondente ao Império propriamente dito havia a estratificação social, no campo a propriedade segue sendo coletiva, tendo seu uso determinado pelas regras tradicionais das famílias. O que irá desestruturar estes núcleos familiares serão as guerras.

Mais uma vez as guerras regionais e a conjuntura internacional vai intensificar o número de escravizações na África, desta feita no Songai. Agora a lógica própria da escravização africana transforma-se, uma vez que “contaminadas” pela visão euro-asiática de escravidão. Os escravizados deixam de serem tratados como agregados das famílias para se tornarem propriedades do Estado (rei). Adaptando-se a seu contexto e respondendo às suas necessidades o Império do Songai burocratizou suas atividades e fortaleceu o Estado centralizado. Assim, a produção agrícola é controlada, em grande parte, pelo Estado. Ele está imerso em uma rede de tributação, o que o fará dono de um grande contingente de escravos.

Apesar das bases culturais (religião, transmissão do poder político, estrutura social baseada no clã, etc.) permanecerem ligadas às tradições africanas, o Songai precisou responder às exigências do desenvolvimento do comércio, à antiga pressão árabe e à recente opressão européia. O Império torna-se um híbrido curioso: por um lado adapta-se às exigências do comércio internacional, perdendo sua característica tradicionalista de produção; de outro mantém a forma de vida tradicional da população camponesa. Cria-se aqui um dilema que não se resolveu com a queda do Império do Songai. Até que ponto

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é possível resistir às pressões internacionais que impõem modelos de organização da vida e da produção em escala mundial? Visto de outro ponto: em que medida essa imposição destrói realmente as respostas que cada cultura dá a seus problemas sociais? O hibridismo cultural, em algum momento, pode harmonizar essa tensão contínua? Os dilemas entre formas tradicionais e atualizações modernas seguirão problematizando a compreensão da história dos africanos em seu continente e das respostas dadas pelos afrodescendentes em seus lugares de ocupação depois da Diáspora Negra, e as categorias de puro/impuro, original/misturado etc. seguirão armando armadilhas ideológicas para a compreensão da cosmovisão africana...

Aspectos Filosóficos Os Impérios Africanos, no caso de Gana, se formaram em contraposição à expansão árabe, no entanto, formavam-se de uma confederação de etnias, que representava várias culturas africanas organizadas em torno de um único Império dominado políticamente por apenas uma etnia, que hegemonizou o poder na região. No momento de constituição do Império do Gana a etnia dominante é a Soninke, do tronco dos Mandingas, no Mali são os sossos que comandam a formação do Império. É interessante notar que sob uma aparente unidade de etnia, existia uma pluralidade de concepções religiosas. Já em lugares que não houve a presença islâmica não foram Impérios que se levantaram, mas cidades-estado ou outras formas de organização social. Ou seja, o povo do Sudão Ocidental respondia às condições históricas de acordo com as circunstâncias que se lhe apresentavam. As cidades-estado eram centros de poder multidiversificados e descentralizados. Um importante elemento que encontramos na maioria das populações africanas é a não separação entre natureza e política, poder e religião, ou seja, não há uma estratificação entre estas camadas importantes da vida da sociedade. Tudo é visto de acordo com o princípio da integração, onde os vários elementos se comunicam e se complementam. Outra realidade que gostaríamos de identificar é o caráter da integração social que a visão de mundo africana possibilita. Exemplo disso é que a urbanização não é anti-ecológica – veja que os palácios centrais se situavam no meio das florestas sagradas -; outro exemplo, é que nesse tipo de organização social-religiosa, o sujeito não é individuado – como vemos por exemplo, no ocidente, a partir do esquadrinhamento da ciência -, mas faz parte de um todo integrado, isto é, o sujeito é visto como parte do todo.

Os ritos de iniciação (socialização) são coletivos, e esta é uma característica fundamental nos três Impérios Africanos pois aí, a construção do sujeito dá-se fundamentalmente no processo religioso. A iniciação forma coletivamente a pessoa para a sociedade africana. Há, nisso tudo, uma sabedoria profunda. A força sagrada é eminente à natureza. Os elementos (bioritmo) é determinado por essa conjugação. Nestas sociedades não existe a dualidade homem/natureza. Tudo está interligado, por isso tudo interage. O uno é o todo e o todo é uno. O profano

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tem sua dimensão sagrada como o sagrado manifesta-se no profano. Não há escatologia. O tempo dos ancestrais é o tempo passado e o tempo do agora.

As cidades formadas nesse período segue o padrão político do Islã mesclado à cosmovisão africana: 1) urbanização, 2)culto religioso, 3) um bosque (floresta) sagrado (O palácio central instala-se na floresta). Esse modelo de organização política no continente africano demonstra que: 1) há um hibridismo cultural entre povos de matrizes culturais diferentes; 2) que a lógica africana, dada a situação de dominação, sobrecodificou as instituições políticas islâmicas, revestindo com a religiosidade nativa as instituições estrangeiras; 3) o princípio ecológico fora preservado; 4)a resposta africana é criativa e includente, pois utillizou-se das instituições alheias para manter sua cultura de base e promover o bem-estar de seu povo; 5) que a criação das cidades-estado não podem ser vistas como uma evolução da civilização, e sim como uma forma diferenciada de organização como resposta a uma determinada circunstância.

Quanto à educação, p.e., o rei do Gana adotava os filhos de outros reis para prepará-los para o governo e serem seus conselheiros. Na ótica de pensadores ocidentais isso tratar-se-ia de um sequestro. Acontece que o filho de tal rei não era refém do soberano de Gana. Ele era um pupilo a ser preparado para as funções de mando e poder. Na ótica africana, os inimigos não são estaticamente definidos. Em tempos de guerra pode-se educar o filho do adversário. Isto é realmente extraordinário, pois a lógica, aqui, não é a da aniquilação do outro, mas a da valorização de suas potencialidades. Um elemento de caráter mais geral, que refere-se a estrutura de organização política da África é que existem diversos modelos de organização política. Existem as cidades-estado, os clãs (ypós) e ainda outras maneiras de organização como a da confederação das etnias no caso do Império do Gana, mas também do Mali e em certa medida no Império do Songai.

Gostaríamos, nesse sentido, de elencar alguns elementos que permitirão, posteriormente, a afirmação de uma identidade negra trans-histórica: Nas cidades yorubás há uma referência constante a uma ancestralidade para explicar a origem de suas sociedades. A organização dessa região é marcada por uma forte autonomia. Será, portanto, no sul do Sahel, que encontraremos a maior parte dos elementos estruturais com os quais deveremos montar nossa identidade étnica. Os chefes são escolhidos de acordo com as linhagens. Essa é a estrutura de poder nesta região. Na maioria das vezes essas linhagens organizam-se em sociedades matrilineares. O exercício do poder administrativo do Rei ou Imperador é controlado socialmente pela comunidade, através de seus conselhos e sociedades secretas (como as Geledes, por exemplo). O comércio desenvolveu-se nesta região, criando estruturas estatais (cidades-estado). Mas as cidades-estado não foram as únicas respostas políticas à realidade africana. Como a realidade é diversificada, diferentes foram as respostas sociais. Com isso queremos dizer que as comunidades africanas responderam contextualmente às necessidades e características de cada região, tecendo uma variedade muito grande de organização política, jamais impondo um modelo de organização econômico-social, mas admitindo várias expressões organizativas no continente. A cosmovisão africana, com efeito, prima pela diversidade e não pela imposição de modelos únicos.

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O exercício do poder é simbolicamente centralizado, no caso das monarquias, no Obá (Rei) e nos chefes das aldeias de sua etnia. No entanto, pragmaticamente, há uma certa descentralização do poder. Na realidade ele é dividido entre etnias variadas que se submetem politicamente à etnia preponderante, no intuito de exercer o poder político com maior eficácia. Ora, já dissemos que a finalidade do exercício do poder é a promoção do bem-estar da comunidade, havendo inclusive o regicídio como mecanismo de controle social. Sendo assim, a organização tradicional da política africana preserva a autoridade do Rei, criando uma unidade simbólica entre a população, muito embora o exercício pragmático do poder esteja descentralizado entre as etnias que compõem o reino. Aqui não há dominação por eliminação, mas hegemonia por competência. Não há uma política de destruição do outro. O que há é a promoção da alteridade. A diversidade de formas de organização política é realmente diversificada. Os Ibós, por exemplo, organizam-se em torno das aldeias, constituindo-se, portanto, em uma política de povoação - onde a aldeia é absolutamente autônoma, uma vez que nào existe poder centralizado, isto é, não há Estado. Nesta região há uma grande complexidade de organizações políticas. Quando, no séc. XV, os portugueses chegaram às cidades do Benin, tiveram de reconhecer a superioridade da urbanização das cidades africanas. Porém, três séculos de comércio de escravos desmantelaram parte significativa de sua estrutura política e de seu desenvolvimento econômico. É interessante notar que não foram as sociedades estatais aquelas que mais resistiram à colonização. Foram as organizações nômades que resistiram com afinco à dominação européia. Isto é um bom exemplo para não valorizarmos apenas um modelo de organização política, como a estatal, prestando atenção na potencialidade de outras formas de estrutura de poder. Combatemos o pensamento evolucionista que enxerga um desenvolvimento linear que vai das sociedades nômades – consideradas primitivas –, às sociedades estatais – consideradas avançadas. Destacamos a conivência de modelos políticos diferentes na perspectiva de demonstrar como a cosmovisão africana prima pela diversidade e singularidade das experiências do real, sem reificar o evolucionismo, valorizando o modo próprio de cada organização política no contexto da lógica cultural de cada grupo. Elementos estruturantes das sociedades africanas Feito um breve levantamento histórico dos Impérios Africanos, interessa-nos, agora, destacar os elementos que, em nosso entender estruturam aquelas sociedades africanas, que antes da invasão européia tinha condições de vivenciar sua cultura de maneira autônoma, apesar das muitas influências extrangeiras e das fricções internas. A identificação desses elementos é um dos eixos centrais deste livro, pois são eles que nos permitem a afirmação de que, em África, há uma estrutura comum que sedimenta a organização social, política e cultural. Esses elementos compõem a cosmovisão africana, e, apesar das modificações e rupturas, seguem estruturando as concepções de vida dos africanos e seus descendentes espalhados pelo mundo depois da Diáspora Negra.

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Universo Para o africano “o visível constitui manifestação do invisível. Para além das aparências encontra-se a realidade, o sentido, o ser que através das aparências se manifesta” (RIBEIRO, 1996, p. 39). O universo está prenhe do sagrado. O “segredo” faz parte do universo tanto quanto o revelado. Tudo que se manifesta ou oculta-se, segundo a cosmovisão africana, compõe o universo. Para estes povos o universo não pode ser entendido sem um múltiplo de correspondências, analogias e interações com o Homem e com todos os seres que compõem essa totalidade. Para explicar a interdependência de todos os seres, Ribeiro recorre à tradição bambara do Komo, no Mali, de onde extrai uma narrativa mitológica que conta a origem do homem e do Cosmos pelo grande Deus Maa Ngala.

Não havia nada, senão um Ser. Este Ser era um vazio vivo a incubar potencialmente todas as existências possíveis. O Tempo Infinito era a morada desse Ser-Um. O Ser-Um chamou a si mesmo Maa-Ngala. Então, ele criou ‘Fan, Um ovo maravilhoso com nove divisões no qual introduziu os nove estados fundamentais da existência. Quando o Ovo Primordial chocou dele nasceram vinte seres fabulosos que constituíram a totalidade do universo, a soma total das formas existentes de conhecimento possível. Mas, ai! Nenhuma dessas vinte primeiras criaturas reve- lou-se apta a ser o interlocutor que Maa-Ngala havia desejado para si. Então, tomando uma parcela de cada uma dessas vinte criaturas misturou-as. E, insuflando na mistura uma centelha de seu hálito ígneo, criou um novo ser – o Homem – a quem deu parte de seu próprio nome: Maa. Assim, esse novo ser, por seu nome e pela cente- lha divina nele introduzida, continha algo do próprio Maa-Ngala. (RIBEIRO, 1996, p. 40-41)

Esse mito ilustra como o Homem é dependente e interligado a todas as coisas existentes; ele é o resultado da interação de todos os elementos vegetais, minerais e animais. Além disso, ele participa da natureza divina, pois nele fora insuflado o hálito divino, ou seja, o Homem está intimamente ligado a todos os elementos da natureza e ao seu criador. Essa relação simbiótica com a natureza (mundo natural) e com o próprio Deus (mundo sobrenatural) compõe a própria essência do Homem, que por sua vez divide sua essência particular com a totalidade do universo. Dito de outra forma: o Homem é a

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micro-síntese de todos os elementos que compõem o universo. Ele é um micro-cosmos. Ronilda Ribeiro, citando Erny[8], refere-se ao universo africano como uma imensa teia de aranha: “não se pode tocar o menor de seus elementos sem fazer vibrar o conjunto. Tudo está ligado a tudo, solidária cada parte com o todo. Tudo contribui para formar uma unidade (RIBEIRO, 1996, p. 41). Essa unidade fundamental do universo realça o cuidado com a ecologia e com o bem-estar das pessoas. Tanto o mundo natural (ecologia) quanto o mundo social (bem-estar das pessoas) estão em harmonia no que tange a uma visão unificada do universo. Sem o respeito e a preservação aos elementos naturais não é possível ter uma vida social saudável e, inversamente, a vida social sã é impossível sem uma natureza salutar. Tudo está em tudo. Tudo participa de tudo. Tudo influencia tudo. O todo é cada uma das partes, cada parte participa do todo; é o todo. O todo é a unidade de todas as partes. As diferenças, no esquema da autora, são respeitadas. O africano tem sempre em vista o conjunto, o Universo do qual faz parte e do qual é dependente/interdependente. Ele é o Universo na medida em que faz parte de seu todo, e o Universo não existiria sem que o Homem participasse dele. O universo, segundo Yakemi[9], é sincrônico e não linear. Contrapondo ocidentais a africanos, atesta que os primeiros são lineares, pois separam o subjetivo do objetivo, acreditam em linhas evolutivas e baseiam-se no princípio da causalidade. Os africanos, ao contrário, são portadores do “pensamento sincronístico” que guarda “uma peculiar interdependência de eventos objetivos entre si, assim como dos estados subjetivos (psíquicos) do observador ou observadores” (JUNG[10], 1970 citado por RIBEIRO, 1996, p. 42). O pensamento sincrônico dos africanos constrói o universo, então, como uma “teia de aranha”, onde eventos objetivos e subjetivos estão interligados. À totalidade desses eventos corresponde a concepção de universo na tradição africana, de acordo com a antropóloga. Me referi, a pouco, que o sagrado e o profano – sempre de acordo com Ronilda Ribeiro – não formam uma dicotomia, antes, uma unidade. O sagrado, na verdade, permeia todos os espaços do universo africano. Ele impregna com sua força vital qualquer esfera da vida comunitária dos negros, tanto em África como nos outros continentes para onde tenham ido os negros da Diáspora. Esse sagrado, porém, no caso da África, emana da ancestralidade. A ancestralidade, então, está no cerne da concepção de universo. O universo interliga todas as coisas. Logo, a ancestralidade permeia todos os seres que compõem esse universo. Se a ancestralidade é a expressão do sagrado, este sagrado manifesta-se através da força vital, como demonstramos a seguir. Força Vital A Força Vital sempre foi associada aos bantos[11]. A importância dessa categoria, porém, não se restringe a eles, podendo ser encontrada entre os povos da África Ocidental e Setentrional. Fábio Leite, por exemplo, pesquisou sobre a Força Vital entre os Agni - grupo Akan - e Senufos, civilizações agrárias da África Ocidental, na região habitada pelos iorubás. Segundo LEITE (1984, p. 34), Força Vital “refere-se àquela energia inerente aos seres que faz configurar o ser-força ou força-ser, não havendo

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separação possível entre as duas instâncias, que, dessa forma, constituem uma única realidade”. A Força Vital como vitalidade universal é capaz de individualizar-se nas relações entre o homem e a natureza. A profunda relação daquele com esta está nela sedimentada, uma vez que ela é a força capaz de gerir tal relação. Essas relações não se restringem apenas à relação homem-natureza, mas também incide sobre a realidade social bem como sobre a relação do Homem com o sobrenatural. Enfim, como vimos, o universo é como uma teia de aranha, onde todos os elementos estão interligados. Assim também a Força Vital. Ela é o suporte comum para que todas as coisas se conectem e formem um elo universal, que, sem ela, jamais poderiam manter sua unidade - fundamental na concepção de mundo africana. Ela é, portanto, uma das categorias mais importantes que estruturam a cosmovisão africana, pois ela é tomada como fonte primordial da energia que engendra a ordem natural do universo e atua de maneira específica em cada sociedade deste continente. “A origem divina da força vital e a consciência da possibilidade de sua participação nas práticas históricas explicam a notável importância que lhe é atribuída e, não raro, a sacralização de várias esferas em que se manifesta” (LEITE, 1984, p. 34). A Força Vital não abrange apenas a relação do Homem com a natureza. Ela abarca todos os seres, sejam eles minerais, animais ou vegetais e “estabelece individualizações que se hierarquizam segundo as espécies e faz a natureza povoar-se de forças ligadas aos seus mais variados domínios” (LEITE, 1984, p. 35). Segundo Fábio Leite deve-se ressaltar o fato de que o preexistente é quem cria o mundo. Ao criá-lo, injeta nele sua sacralidade que é a Força Vital. Assim, cada ser criado passa a possuir a Força Vital e deve mantê-la no transcurso de sua vida individualizada. Tais desdobramentos, de certa forma, multiplicam a Força Vital inicial e dão vitalidade a todos os seres do universo. Ela constitui-se, então, como a parte mais íntima da materialidade dos seres criados pelo preexistente. Dessa forma, a “elaboração contínua do mundo é também tarefa do homem nesse intercâmbio privilegiado entre natureza e sociedade, exercendo ações transformadoras ao criar o ser humano no âmbito de sua competência, assim como aqueles elementos ligados à organização da sociedade” (LEITE, 1984, p. 35). A Força Vital não atua apenas no abstrato; não é uma generalização. Ela também age no plano imediato, cotidiano[12], pois, segundo Fábio LEITE (1984, p. 36), tal noção “não se limita às instâncias das formulações abstratas, situando-se materialmente no interior das práticas históricas e da explicação da realidade”. Retornando à concepção de universo podemos dizer que ele forma uma única rede de relações sustentada pela Força Vital. Nesta acepção, não há lugar para a dicotomia entre espírito e matéria, entre profano e sagrado. O sagrado permeia todos os espaços da vida dos africanos. “O valor supremo é a vida, a força, viver forte ou força vital” (TEMPELS[13], citado por RIBEIRO,1996, p. 39). Explica RIBEIRO (1996, p. 39) que essa força “não é exclusivamente física ou corporal e sim uma força do ser total, sendo que sua expressão inclui os progressos de ordem material e o prestígio social”. A Força Vital, como se viu, é a própria manifestação do sagrado que sustenta o universo e permeia a relação entre os homens e entre eles e a

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natureza. Presente na esfera da produção, da socialização e da família, é na palavra que a Força Vital manifesta-se com toda sua vitalidade.

Palavra

A palavra aparece visceralmente ligada à Força Vital. O detentor primordial da palavra é o preexistente, assim como é ele o detentor daquela. A palavra, com efeito, muitas vezes aparece nas cosmogonias africanas como um subsídio fundamental para a criação do mundo e, neste caso, ela é portadora da “força” que anima e vitaliza o mundo. O Homem, por sua vez, ao ser criado, recebe a Força Vital e o poder da palavra, que são equivalentes, visto que a palavra é concebida como uma energia capaz de gerar coisas. Dessa forma, “o conjunto força vital / palavra / respiração é elemento constitutivo da personalidade, emergindo plenamente quando o homem estrutura de maneira a criar a linguagem e o exterioriza através da voz” (LEITE, 1984, p. 36-37). A respiração é tida como uma espécie de manifestação da palavra, sobretudo quando estamos atados aos fatores primordiais da criação, e, conseqüentemente, da viabilização e multiplicação da vida. Portanto: “Sendo a palavra dotada de uma parcela da vitalidade do preexistente, é necessariamente uma força inerente à personalidade total, daí que sua utilização deve ser cuidadosamente orientada, pois que uma vez emitida algumas de suas porções desprendem-se do homem e reintegram-se na natureza” (LEITE, 1984, p. 37). Deve-se lembrar, entretanto, que a palavra, uma vez proferida, é uma energia nem sempre controlável e interfere na existência. Daí a necessidade de quem as pronuncia deter os conhecimentos necessários para que faça bom uso da energia-palavra, posto que ela é capaz de engendrar coisas, tanto construtivas quanto destrutivas. Tal é seu poder que se for mal utilizada, pode, inclusive, voltar-se contra seu proferidor. Além de ser expressão do préexistente, a palavra está intimamente ligada a uma dimensão histórica. É aqui que ela se liga ao conhecimento e sua transmissão. É o caso, por exemplo, dos especialistas das transformações (ferreiros e tecelões); das manifestações da vida espiritual (culto aos ancestrais e às divindades); do domínio específico da própria palavra (historiadores tradicionalistas); e das explicações de realidades determinadas (conhecimento esotérico, jogos divinatórios). Existe, não obstante, uma outra área de aplicação da palavra, onde ela joga um papel definitivo: a política. É a palavra que tem a função de fazer cumprir a jurisprudência dos ancestrais nos conselhos de família ou nas assembléias comunitárias – lugares privilegiados da prática política nas sociedades negro-africanas. “A palavra - diz Fábio LEITE (1984, p. 38) - é dotada de origem divina, mas encontra-se significativamente relacionada com as atividades humanas e não deve ser considerada somente como fonte de conhecimento”. Para ele, não há dúvida que a palavra é um instrumento do saber, porém “sua condição vital lhe garante o estatuto de manifestação do poder criador como um todo, transmitindo vitalidade e desvendando interdependências” (LEITE, 1984, p. 38). A palavra atua como criadora do universo, expressão da Força Vital, organizadora da esfera política, tanto em relação à comunidade quanto em relação às famílias. Ela gera e movimenta a energia, o que demonstra seu poder de transformação. É constituinte de quaisquer atividades no tempo, seja ele sagrado ou profano. É a energia primordial para o transcorrer da vida.

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A vida não transcorre, no entanto, apenas no mundo visível (ayê) dos homens. O universo africano correlaciona o sagrado e o profano. Sagrado e profano são interdependentes, como tudo o mais. Há, portanto, uma correlação entre o mundo dos “vivos” e o mundo dos “mortos”. O mundo dos homens e o mundo dos antepassados. Cada qual possui o seu tempo, que, não obstante, se relacionam. Tempo

Se nas sociedades modernas o tempo é orientado para o futuro, nas sociedades tradicionais o tempo é orientado para o passado. É esse precisamente o caso das sociedades africanas. Segundo Ronilda RIBEIRO (1996, p. 50): “Tudo o que certamente ocorrerá ou tudo que compõe a ordem dos fenômenos naturais, como o ritmo da natureza, por exemplo, pertence à categoria de tempo potencial ou inevitável”. Esta concepção do tempo é bidimensional, isto é, ele é “constituído pelo presente, um longo passado e uma virtual ausência de futuro” (RIBEIRO, 1996, p. 50). Dá-se mais ênfase ao passado que ao futuro quando se trata da concepção de tempo na cosmovisão africana. A referência mor é o passado. É nele que residem as respostas para os mistérios do tempo presente. É no passado que está toda a sabedoria dos ancestrais. Somente no passado o africano encontra sua identidade. A idade de ouro dos africanos é diametralmente oposta à dos ocidentais, uma vez que para os últimos os melhores tempos ainda estão por vir (no futuro), enquanto para os africanos os melhores tempos encontram-se muito vivos no passado. O passado como referência primordial da concepção de tempo africana não dá margem à imobilidade das sociedades deste continente. Muito pelo contrário! A concepção de tempo africana é dinâmica e sujeita a reformulações e mudanças. Vive-se no tempo atual. A tradição é continuamente retomada e atualizada. A “voz” do passado é ouvida e merece muita atenção, mas sempre na intenção de orientar e organizar o presente. Vive-se o agora, o hoje. O futuro tem alguma importância, é claro. Mas é o tempo atual a base do tempo vindouro. Por sua vez o tempo presente tem sua base no passado, assento comum de toda a concepção de tempo africana (RIBEIRO, 1996). Segundo Ribeiro, o tempo atual é a combinação do tempo passado com o tempo presente. Percebe-se, então, que para o africano, a “esteira do tempo move-se para trás mais do que para a frente” (RIBEIRO, 1996, p. 50). É baseada nos estudos de Mbiti[14] que Ronilda Ribeiro define o tempo na cosmovisão africana. Com efeito, Mbiti utiliza dois conceitos do vocábulo swahili para explicar a concepção de tempo. São elas: Sasa e Zamani. Sasa é o tempo vivido, tanto pelo indivíduo como pela comunidade. É o período mais significativo para a pessoa; é o tempo do agora e principalmente o tempo já percorrido pelo indivíduo. É o tempo atual; o tempo vivido. “Sasa constitui em si, uma dimensão completa do tempo, incluindo futuro breve, presente dinâmico e passado já experienciado” (RIBEIRO, 1996, p. 52). Depois que a pessoa morre seu sasa continua se a lembrança dessa pessoa permanecer entre seus familiares ou em sua comunidade. Sasa somente interrompe-se quando a pessoa, nas gerações subseqüentes, é completamente esquecida. Neste momento ela entra para outra dimensão do tempo, a Zamani.

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Sasa pode ser descrito como o micro tempo, essencial para o indivíduo e sua projeção, enquanto que zamani pode ser considerado como o macro tempo, no qual mesmo sasa está contido. Zamani é o tempo dos mitos. Nesta dimensão do tempo estão contidos o presente e o futuro. Os mitos cosmogônicos pertencem ao tempo Zamani. Enganam-se os que pensam que zamani é um tempo morto. Pelo contrário! Ele contém a explicação para as coisas que estão acontecendo. Zamani está presente, interferindo diretamente nas ações dos povos tradicionais africanos. Segundo Ronilda RIBEIRO(1996, p. 53) “zamani é o tempo do mito, que propicia firmeza e confere ‘segurança’. Todas as coisas criadas, vinculadas umas às outras, encontram-se envolvidas pelo macro-tempo”. De acordo com a antropóloga não há relatos de mitos que narrem o fim do mundo dentre os povos tradicionalistas da África. O final do mundo para o africano é impensável porque é impensável o final do tempo. A visão de futuro geralmente é restrita para os dias subseqüentes ao dia atual, no máximo aos meses seguintes. Uma concepção de final da história é absurda para o pensamento tradicionalista africano. Esta afirmativa pode ser confirmada pelo fato de que os Griots[15], segundo Obenga[16], “dificilmente trabalham com uma trama cronológica, interessando-se mais pelo homem apreendido em sua existência, condutor de valores e agindo na natureza de modo intemporal” (apud RIBEIRO, 1996, p. 56-57). Os griots, personagens sociais que têm papel destacado nas sociedades africanas, narram as histórias menos atentos à periodicidade e linearidade do tempo que à inclusão de eventos vividos pela comunidade[17]. Os griots não trabalham com o tempo linear dos ocidentais, tampouco considera a noção de final da história tão repetida entre os europeus - que disseminaram essa teoria para todo o mundo colonizado. Os griots inserem-se dentro da dinâmica própria do tempo africano, procurando apreender o significado de cada acontecimento para a pessoa ou população nele envolvido. Essa concepção de tempo é dinâmica e funciona como uma esteira que se move, como já dissemos, da frente para trás - no sentido inverso atribuídos pelos ocidentais. O tempo mítico é reatualizado nos rituais, onde os personagens heróicos dos mitos indica os comportamentos e atitudes que os indivíduos devem tomar frente a uma determinada situação. Os indivíduos encontram nos mitos o sentido da vida e descobrem como atuar frente aos mistérios que se lhes vão aparecendo. É o tempo do sagrado iluminando o tempo profano. O que diferencia o espaço sagrado do espaço profano é justamente os rituais e os acontecimentos iniciáticos que transmutam o tempo profano em tempo sagrado. Mas note-se que é o mesmo espaço, e não outro. Diferentemente, por exemplo, das igrejas cristãs, que separam da vida profana o espaço sagrado – a igreja = Casa de Deus. Nas comunidades tradicionais africanas o mesmo espaço serve tanto ao tempo profano quanto ao tempo sagrado. E, como disse Ribeiro, não existe distinção definitiva entre os dois tempos. Aliás, como vimos, o universo é concebido como uma “teia de aranha”, onde tudo está interligado; onde a parte e o todo estão profundamente conectados, o que se dá com o universo também ocorre com o tempo: o tempo é um só, porém guarda em sua unidade suas diferentes manifestações (sasa e zamani). Característica importante da contagem do tempo africano é o fato dele ser demarcado através dos fenômenos naturais. “A noite é separada do dia e

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este é dividido em partes, relacionando-se as atividades à altura do sol” (RIBEIRO, 1996, p. 60). As horas do dia são definidas por atos concretos. “Em Burundi, por exemplo, amakana é a hora da ordenha (sete horas); maturuka é a hora de saída dos rebanhos (oito horas); kuasase, hora em que o sol se alastra (9 horas); kumusase, hora em que o sol se espalha sobre as colinas (10 horas)...” (RIBEIRO, 1996, p. 60). Nesta região, as formas de cumprimentos estão baseadas - no transcorrer do dia - na luminosidade e na posição das sombras. À noite, quando não se pode contar com a luminosidade do sol, como é óbvio, o tempo é marcado através das “vozes” dos animais. O trabalho, por sua vez, é definido a partir de tarefas e não por unidades de tempo. “O relógio– diz RIBEIRO (1996, p. 60) - tem lugar [apenas] como objeto de adorno”. Ao insistir que o tempo africano não é um tempo linear e refletir que essa concepção nada tem a ver com a projeção do futuro dos ocidentais, a autora não quer dar razão às barreiras epistemológicas que sustentam que as sociedades africanas são apáticas, estáticas e que não possuem história ou dinâmica social. Ela defende a tese de que a concepção de tempo dos africanos é dinâmica e relacionada com mudanças que ocorrem em seu mundo atual. “Para o africano o tempo é dinâmico e o homem não é prisioneiro de um mecânico retorno cíclico, podendo lutar sempre pelo desenvolvimento de sua energia vital” (RIBEIRO, 1996, p. 63). Ronilda Ribeiro cita um poema do Songai para ilustrar tal concepção:

Não é da minha boca. É da boca de A, que o deu a B, que o deu a C, que o deu a D, que o deu a E, que o deu a F, que o deu a mim. Que esteja melhor na minha boca do que na dos Ancestrais (RIBEIRO, 1996, p. 63).

A relação privilegiada com o passado tem sua razão de ser: ela permite uma relação especial com os ancestrais. A preservação da memória dos antepassados não é causa de estagnação para os africanos; ao contrário, são essas as causas para o dinamismo característico de sua cultura, uma vez que a atualização deve estar sempre assentada na sabedoria dos ancestrais. Os ancestrais, no entanto, não são os atores do mundo atual. Os protagonistas do tempo vivido são seus descendentes que, ouvindo-os, respeitando e cultuando-os, devem abrir caminhos para novos tempos. A tradição, neste caso, é o fundamento da atualização e da novidade. O tempo africano é impregnado de Força Vital. É um tempo sagrado (zamani) que envolve o tempo vivido (sasa). O passado é privilegiado, pois esse é o tempo dos antepassados. O passado, no entanto, não é fossilizado. Ele é potencialmente transformador, tal como a tradição – acúmulo de tempo transcorrido. O tempo africano, tal como o universo africano, está prenhe de ancestralidade. A mesma ancestralidade que permeia todos os seres do planeta (universo africano) habita o tempo mitológico e atual. Assim como o visível não se separa do invisível na concepção de universo iorubá, assim também o tempo dos mortos não se encontra separado do tempo dos vivos. Os antepassados regulam a vida de seus descendentes. A eles distribuem sua “força”, e o conhecimento preservado pela tradição é transmitido através da

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palavra. Esse universo e esse tempo não são vazios. Além de habitados pela Força Vital (atributo do sagrado) e pela harmonizadora presença dos antepassados (que vivem numa dimensão transcendente), o universo e o tempo acolhem em suas entranhas a pessoa. A noção de pessoa, então, - de acordo com nossos autores - tem uma importância singular no desenho da cosmovisão africana. Pessoa Ronilda Ribeiro está interessada em demonstrar, apesar de admitir que cada clã ou grupo africano tem sua própria noção de pessoa, que existe uma estrutura comum entre os povos africanos. A noção de pessoa - assim como a de universo, força vital, palavra e tempo - não é uma exceção, e pode ser compreendida como mais um elemento estruturante da cosmovisão africana. Segundo Ronilda RIBEIRO (1996, p. 44): “A pessoa é tida como resultante da articulação de elementos estritamente individuais herdados e simbólicos. Os elementos herdados a situam na linhagem familiar e clânica enquanto os simbólicos a posicionam no ambiente cósmico, mítico e social”. O estudo da noção de pessoa não pode estar dissociado do estudo das instituições e dos modos de organização social que propiciam a vida para os indivíduos. Ou seja, é impossível dicotomizar indivíduo e sociedade, ou pessoalidade e coletividade. Na verdade, o indivíduo é uno, singular, porém, mesmo essa singularidade que o caracteriza é forjada no coletivo, no social. Ronilda Ribeiro, baseando-se em Mauss e Leenhardt, afirma que "o pessoal é indissociável do grupal, estudar a concepção de pessoa constitui um recurso para compreender as instituições e as representações a ela associadas” (RIBEIRO, 1996, p. 45). Segundo a autora, “ao eu transcendental, intangível e invisível associam-se componentes de ordem material formando um corpo tangível e visível e outros componentes de ordem imaterial, intangível e invisível” (RIBEIRO, 1996, p. 109). Segundo ela e de acordo com a tradição iorubá, o ser humano é constituído dos seguintes elementos: “ara, ojiji, okan, emi e ori” (RIBEIRO, 1996, p. 109). Ara é o corpo físico, corpóreo. Ojiji “é a representação visível da essência espiritual e acompanha o homem durante toda sua vida” (RIBEIRO, 1996, p. 109). O Ojiji pode ser traduzido como sombra. Okan é o órgão intimamente relacionado com o sangue – o coração. Ele representa não apenas o coração físico, mas também o okan imaterial, que representa a inteligência, o pensamento e a ação. Já o Emi é o princípio vital – a respiração. Não apenas a respiração corpórea, mas também o sopro divino, o hálito de Deus. O Ori é a essência real do ser. “O sentido literal de ori é cabeça física, símbolo da cabeça interior – ori inu” (RIBEIRO, 1996, p. 110). Daí a necessidade dos homens escolherem bem o seu ori e cuidar para que ele se conserve bom, pois o ori está sujeito a ações dos feiticeiros que podem danificar a natureza da cabeça física e espiritual. Marco Aurélio LUZ (1995) ao falar da concepção de pessoa na “filosofia” nagô prefere referir-se ao orixá da morte – Iku. A tradição nagô narra que Obatalá pediu a todos os orixás que procurassem por uma matéria prima que constituísse o ara-ayiê (ser vivo). Depois de muita procura todos concordaram que a melhor matéria prima fora a lama, encontrada por Iku.

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Porém, ao entregar a lama para Obatalá, Iku lembrou-se de lhe dizer que a lama havia chorado e se lamentado muito de sua perda. Assim, Obatalá ordenou a Iku a restituição da lama do orun tomada para fazer o ara-ayiê. “Daí por diante, Morte possui essa missão. De levar de volta matéria dos ara-ayiê para o orun” (LUZ, 1995, p. 52). Segundo o autor, a matéria com que são moldados os seres humanos chama-se ipori ou oke ipori (LUZ, 1995, p. 52). A qualidade do ipori dará as primeiras características ao indivíduo dela constituído. Porém, há um outro elemento que marcará a pessoa constituída que é o egun ipori, ou seja, as “matérias massas restituídas de seus antepassados, e agora renascido no novo ser” (LUZ, 1995, p. 53). O Oke ipori é a matéria da qual é feita a cabeça física e interna, o ori (LUZ, 1995, p. 53). De acordo com a tradição nagô cada elemento que constitui o ara-ayiê é encontrado no orun. Logo, é lúcido deduzir que existe um duplo do ara-ayiê no orun. Os rituais estabelecidos no ayê para fortalecer o destino do ori no ara- ayiê, chama-se ori-orun e ajuda a fortalecer o fluxo do destino pessoal. A cabeça (ori) é o centro das atenções dos povos nagôs. Segundo a tradição são os próprios Homens que escolhem sua cabeça no orun antes de descerem para o ayiê. Em terra devem sempre fazer oferendas para seus orixás para que mantenham uma cabeça forte, boa e restituam para ela a força através das oferendas, que, por sua vez, aumenta o axé dos oris. A cabeça, em verdade, é o conjunto de partes complexas[18] deste que é o membro principal da pessoa segundo a tradição nagô. A cabeça, apesar de ser a parte mais importante da pessoa, não é auto-suficiente. Ela necessita do bom funcionamento de todas as outras partes do corpo para seu bem-estar. O ori depende muito do orixá responsável pelo interior do corpo, que é exatamente Exu Bara, que significa o Rei do Corpo. “Ele é o princípio de movimento e circulação das vias internas” (LUZ, 1995, p. 56). Exu Bara é quem encarna no indivíduo e proporciona a este o nascimento. Por isso mesmo, Exu Bara é também responsável pelo bom fluxo do destino pessoal da pessoa. Presente nas cavidades do ser humano, Exu Bara conhece nossas entranhas e conhece nosso destino, juntamente com Ifá, o Orixá das adivinhações e da sabedoria. Para Marco Aurélio LUZ (1995, p. 57): “os seres humanos são resultado dos despreendimentos de matéria massas dos orixá e de seus ancestrais místicos e familiares falecidos, de onde é retirado o egun-ipori e que constituirá a pessoa no ayiê”. A pessoa é o resultado de forças divinas como naturais. Sua essência está indissociavelmente ligada às divindades como aos elementos da natureza. Ela é a síntese de todos os seres que compõem o universo, como vimos no mito de Maa Ngala. Ela é a expressão da vontade de Obatalá e fruto da empreita de Iku. A pessoa, no entanto, não pode ser compreendida como um ente individual. Com efeito, a pessoa é o resultado de uma ação coletiva. Não se separa, segundo Ribeiro, pessoalidade de coletividade. A identidade do indivíduo é forjada no interior das tramas sociais. Se a pessoa é resultado da interação entre o sagrado e a natureza, é no meio-ambiente social que ela encontra sua identidade. A formação da pessoa dá-se através de processos de socialização, como veremos a seguir.

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Socialização A socialização dentre os africanos é o processo de formação dos indivíduos e suas personalidades de acordo com as normas tradicionalmente estabelecidas em suas sociedades. Esse processo de formação dá-se, geralmente, com ritos iniciáticos, que são coletivos e abrangem a totalidade dos indivíduos viventes em cada comunidade. “A formação da personalidade nas civilizações negro-africanas é encargo atribuído à sociedade como um todo”. Esse humanismo, como afirma Leite, revela “que a sociedade propõe a superação, pela consciência da realidade existencial, das limitações materiais e instrumentais, harmonizando o homem com as práticas sociais suficientes” (LEITE, 1984, p. 42).

As crianças, assim que têm idade, sujeitam-se aos ritos iniciáticos, o que faz com que o grupo de pessoas chegue à maturidade ao mesmo tempo e criem vínculos de solidariedade entre si, ocupando agora seu novo papel social e, é claro, cumprindo rigorosamente suas novas funções diante da sociedade a que pertencem. Esses ritos são tão importantes que no caso de alguém se negar a passar por eles sofrerá uma série de restrições e provavelmente ficará fora da distribuição dos dotes de terra, da possibilidade de exercer algum cargo de comando etc. Ou seja, somente são excluídos nestas sociedades aqueles que se excluem do processo de socialização – sempre coletivo e sempre garantindo o bem-estar social de seus membros. A formação da pessoa africana, então, é um processo coletivo; uma responsabilidade social. Os ritos iniciáticos irmanam todos os membros de uma comunidade. A preparação da pessoa para viver no meio social é uma tarefa assumida coletivamente, obedecendo as normas dos ancestrais. Com efeito, os ritos iniciáticos responsáveis pela socialização da pessoa são baseados na tradição dos ancestrais e obedecem as regras determinadas pelos antepassados. Ou seja, a lógica que empreende a socialização dos indivíduos, em África, é a da ancestralidade. Esses ritos iniciáticos pautados no princípio da ancestralidade introduzem os indivíduos – vivos – no seio de suas comunidades ou famílias-aldeias. Há, entretanto, um outro rito, que ocorre entre os viventes, mas dirige-se aos falecidos. São os rituais da morte ou, como são comumentos chamados, os ritos funerários. A morte é um evento de fundamental importância para os africanos, e, para o que me interessa mais de perto, a ancestralidade, pois ela é o mecanismo comunitário que cria os ancestrais e, como rito de passagem, tem a função de harmonizar as tensões do grupo. Morte A crença na imortalidade do homem explica, em grande parte, a grande importância que a morte e os ritos funerários têm na cosmovisão de mundo africana. Com efeito, “a morte apresenta-se como fator de desequilíbrio por excelência, pois promove a dissolução da união vital em que se encontram os elementos constitutivos do ser humano, estado esse que faz configurar a existência visível” (LEITE, 1984, p. 43).

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A morte abrange as esferas mais importantes da vida africana, pois abarca a concepção de homem, a necessidade das restituições dos papéis sociais mais importantes, como chefes de família ou governantes políticos. Isto porque, uma vez ocorrido o evento da morte o equilíbrio da comunidade está posto em questão, pois as personagens que morreram sintetizam as ações históricas do grupo. É neste momento que os ritos funerários ganham grande importância, pois eles são capazes de reorganizar rapidamente as comunidades restabelecendo o equilíbrio social. Os ritos funerários fazem ver aos africanos os elementos que extrapolam a própria morte, ou seja, a participação do indivíduo morto no plano do sagrado - no seio dos ancestrais. Além do mais, toda a sociedade participa e é testemunha da distribuição da energia vital da pessoa que morreu para os elementos naturais, como a terra que abrigará seu corpo. A vitalidade da pessoa morta é transferida para os elementos naturais que vão contribuir para a vida da comunidade. De certa forma, a morte de um indivíduo é o aumento da força da comunidade já que sua energia volta-se para ela fortalecendo os elementos naturais essenciais para a vida do grupo. Quanto ao indivíduo que morreu ele passa, por causa da imortalidade, a fazer parte de um outro plano onde estão os ancestrais – a não ser que ele volte para a comunidade -, onde sua energia vital fará parte agora do zamani. Segundo Fábio LEITE (1984, p. 44): “Esses fatores explicam a notável importância conferida às cerimônias funerárias que, se em parte podem ser consideradas como ritos de passagem, de outra se constituem em ritos de permanência, pois delas nascem os ancestrais”. Os ritos funerários têm importância fundamental no restabelecimento do equilíbrio social. Eles não atuam somente no plano psicológico; mas revelam também “a capacidade de a sociedade dominar a desordem provocada pela morte e dar continuidade à vida ao elaborar o ancestral, fazendo com que a imortalidade do homem se configure de maneira precisa e em relação vital com o grupo social” (LEITE, 1984, p. 44). Para Marco Aurélio LUZ (1995) e BASTIDE (1989) os ritos funerários do candomblé são os responsáveis pela geração dos ancestrais - primeiro como ancestral individualizado, depois como ancestre coletivo. Julio Braga, por sua vez, descreve a criação do ancestral através do culto dos babá eguns, dando ênfase, também ele, aos ritos funerários e como esses se tornaram a matriz referencial para o nascimento dos ancestrais. “É o ritual funerário que dignifica o morto enquanto elemento indissociável da estrutura religiosa e do próprio sentido da permanência e elaboração do sistema de transferência do poder para a nova liderança que se instala na direção do grupo religioso” (BRAGA,1992, p. 99). É o ritual funerário, ainda, que permite “a elaboração social do ancestral coletivo”. Isto porque, de acordo com Fábio Leite, citado por BRAGA (1992, p. 99), é nesse ritual que “a sociedade manipula a imortalidade do homem com o pressuposto de inserí-lo no país dos ancestrais”. Podemos ver que os ritos funerários são ao mesmo tempo de passagem e de permanência. De passagem, pois direcionam o destino de seus mortos para a imortalidade entre os ancestrais. Têm a função, portanto, de harmonizar o desequilíbrio causado pela morte de um membro da comunidade. O ritual funerário transforma o morto num ancestral - aqui estamos diante de um ritual de permanência. Sua vida fora desfeita, mas sua força vital, não. Ela volta para a comunidade, alimentando-a. Sua morte é sinal menos de perda

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que de ganho. A comunidade, com efeito, perde um membro, mas ganha sua energia vitalizante. O indivíduo desaparece; a comunidade cresce. A força vital que dantes o habitava, reside agora na sua família, entre os membros de sua linhagem. A família é, sem embargo, o núcleo comum onde o africano pode vivenciar seu universo, alimentar sua força vital, interagir no tempo com as pessoas e as divindades, aprimorar seu sistema de socialização, dominar a palavra e preparar seus ritos, tanto iniciáticos como de passagem ou permanência. Família De acordo com Fábio LEITE (1984, p. 45): “A família negro-africana típica, conhecida pela denominação de família extensa, é constituída por um grande número de pessoas ligadas pelo parentesco”. As famílias se organizam ou por linhagem matrilinear, ou por linhagem patrilinear. No caso das linhagens matrilineares, que na África são maioria, é comum encontrar no seio das famílias-aldeia as ancestrais-mulheres que lhes deram origem. Para ele, “é devido a essa configuração do parentesco que os direitos e os deveres são institucionalmente transmitidos de mãe a filha, de irmã a irmã, de tia a sobrinha e, quanto aos homens, de irmão a irmão e de tio a sobrinho” (LEITE, 1984, p. 45). Esse modelo organizativo dos grupos está baseado nos laços sanguíneos e conferem grande autoridade às mulheres. A mãe é o pivô da organização familiar, e é através de sua linhagem que os postos de poder e responsabilidade são transmitidos. Esse modelo é igualmente aplicado à sociedade. Assim, as funções do governo, da administração geral dos interesses dos membros da comunidade - interesses tanto materiais quanto espirituais - passarão necessariamente pela linhagem matrilinear. “Sob o prisma de sua formulação sanguínea, a família extensa de organização matrilinear transcende, portanto, o espaço físico, abrangendo todos os indivíduos ligados pelo parentesco uterino a ancestrais mulheres comuns” (LEITE,1984, p. 45). Em relação à estrutura física, a família africana – família extensa - “compreende a família do patriarca-chefe e as famílias conjugais a ela ligadas” (LEITE, 1984, p. 45). A família do patriarca-chefe é formada por ele, sua esposa(s), filhos, irmãos e mulheres dos irmãos com sua prole e parentesco, enquanto as famílias conjugais comportam esposo, esposa e filhos. O conjunto dessas relações familiares forma a família-aldeia, unidade produtiva que se ocupa da sobrevivência da comunidade. Essa família-aldeia é a unidade familiar que garante a existência do grupo. Ela está organizada sob o modelo da matrilinearidade e tem sua estrutura baseada nas mulheres-ancestrais que lhes conferem origem e sentido. Segundo LEITE, a família é o locus privilegiado do africano vivenciar sua cultura. Dela nascem suas divindades, bem como sua subsistência. A família é o núcleo primevo da sociedade. É sua unidade mais importante. A estrutura social africana é formada pelos clãs ou famílias-aldeia e sua importância é tal que até os deuses obedecem às linhagens! Os ritos, por sua vez, refletem a organização singular de cada grupo; as etnias, ao que lhes tocam, definem suas identidades no “útero” da sociedade (a família). Útero que gesta tanto sua vida, digamos, espiritual, como sua vida material, através da produção. A produção, no entanto, não é compreendida como uma tarefa

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meramente material. Ela está intimamente ligada com a concepção sagrada do mundo, principal característica da cosmovisão africana. Por isso, mesmo na produção, uma vez mais a ancestralidade é o princípio norteador da vida dos africanos.

Produção

Nas sociedades tradicionais africanas “os processos de produção são baseados essencialmente na suficiência destinada ao atendimento comunitário de necessidades vitais e específicas” (LEITE, 1984, p. 46). Isto explica o fato de em África não serem usados meios alternativos de produção. De acordo com Fábio LEITE (1984, p. 46), “a natureza comunitária da produção formula-se materialmente enquanto elemento decisivo da realidade social”.

Como essas sociedades são basicamente agrárias, é lógico deduzir que a terra é o principal elemento da produção dentre elas. A terra é considerada “como uma divindade e sua fertilidade tomada como doação do preexistente” (LEITE, 1984, p. 47). Sendo uma divindade e tendo íntimas relações com o preexistente, o homem não pode apropriar-se da terra; ele pode somente ocupá-la[19].

Uma das principais características destas sociedades é a não apropriação individual do solo e o dever de transmiti-lo da mesma forma às próximas gerações. O homem deve ocupar o solo de acordo com os pactos com a terra selados por seus ancestrais. Esses pactos demonstram o profundo respeito e a importância arraigada na cultura desses povos no que se refere aos ancestres. Esses pactos são respeitados, o que não impede que possa ocorrer pequenas transformações nesse espaço, como por exemplo, a terra pode ser repartida com terceiros (que não fazem parte da família) desde que a unidade produtiva mantenha o sustento da família extensa. Essas transformações, no entanto, não podem desestruturar o modelo tradicionalmente existente.

Quanto aos instrumentos de trabalho, também eles devem ser confeccionados da terra, ou seja, somente pode-se utilizar os instrumentos que têm como matéria prima a própria terra e, por extensão, a natureza. Isso também é fruto do pacto estabelecido entre o Homem (sobretudo os ancestrais fundadores) e a terra (elemento natural fundamental e elemento sagrado por excelência). Os instrumentos de trabalho assim concebidos servem apenas para suprir o necessário à comunidade. Não há excedente na produção africana. O meio de produção (a terra) e os modos de produção (os instrumentos utilizados) destinam-se tão somente ao suprimento das necessidades vitais do grupo. Isso impede o desenvolvimento de tecnologias que favoreçam a acumulação do excedente a partir de técnicas artificiais de produção. O elemento natural, para Leite, é base para a manutenção de uma sociedade em harmonia com o meio ambiente e com o meio social.

De acordo com o autor: “Das alianças seladas com a terra pelas famílias nascem (...) as unidades de produção e a comunidade, elementos sintetizados na família-aldeia” (LEITE, 1984, p. 48). Tudo está interligado e tudo é interdependente. Esse é o segredo da harmonia social na África. Vê-se, assim, que a concepção harmonizante de universo presente na cosmovisão africana reflete-se na esfera da produção. O mesmo verifica-se com a noção de trabalho, posto que “ele se traduz como ação comunitária por excelência”

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(LEITE, 1984, p. 48). O trabalho transparece como mais um instrumento da produção estando vitalmente associado às regras de interdependência estabelecidas por fatores não meramente econômicos. As famílias conjugais destinam dois terços de seu tempo de trabalho ao labor coletivo, sendo que um terço de seu tempo de trabalho é ocupado em áreas privativas à família conjugal. Já os jovens solteiros trabalham todo o tempo nas áreas coletivas, até que chegue sua vez de constituir sua família conjugal.

Entre as sociedades africanas encontra-se também o trabalho em mutirão, baseado na reciprocidade. Os jovens trabalham mais do que os idosos, e as atividades são organizadas de modo a que os jovens possam prestar ajuda aos mais velhos. Quando os anciãos já não conseguem trabalhar, podem gozar sua velhice recebendo todos os donativos necessários à sua sobrevivência até que chegue o dia de sua morte. Toda essa estrutura produtiva impede que exista um grupo que passe a usufruir mais direitos e a ter privilégios. A produção suficiente, os instrumentos de trabalho forjados da natureza e destinados à produção do essencial, impedem que se formem camadas mais abastadas em detrimento de camadas desprovidas dos bens necessários à sobrevivência. Sendo o trabalho um elemento da produção essencialmente coletivo e destinado para toda a comunidade dificulta-se a formação de camadas sociais privilegiadas. Com efeito, “nessas sociedades a força de trabalho faz parte da personalidade e não se encontra separada da totalidade vital que configura os indivíduos, não podendo, portanto, ser apropriada” (LEITE, 1984, p. 49). A força de trabalho é um serviço. O trabalho é uma prática social que ajuda a definir os papéis dos indivíduos nas sociedades africanas. É por isso que LEITE (1984, p. 49) pode dizer que o “trabalho integra-se qualitativamente nas práticas ligadas à produção enquanto fator de vida social total, fazendo emergir o indivíduo historicamente consciente das ações que deve à sociedade”. O trabalho é organizado dentro dos limites territoriais da família-aldeia, seguindo o princípio da ancestralidade. A sociedade africana, porém, não se restringe ao clã familiar. Com efeito, na África, existem sociedades com e sem Estado, mas em qualquer caso o exercício do poder está centrado no seio das famílias-aldeia, obedecendo a duradoura tradição africana que tem por finalidade última o bem-estar de todos os membros dos vários grupos africanos.

Poder Já sinalizamos que em África, segundo os autores referidods, pode-se falar em sociedades com e sem Estado. Entretanto, num caso como no outro o poder está concentrado nas unidades produtivas, ou seja, nas famílias-aldeia. Em ambos os casos há mecanismos reguladores do poder, seja ele emanado dos chefes das linhagens ou da côrte do rei. Tanto no caso das sociedades sem Estado como no caso das sociedades com Estado o poder é moderado pela existência dos “conselhos de família e de comunidade, as chefias de família, os encargos ancestrais atribuídos a certos notáveis e ainda as gerações de iniciados que exercem funções políticas” (LEITE, 1984, p. 50). Nos dois casos, observa Fábio Leite: “evidencia-se uma consciência ótima acerca do território ocupado, manifestando-se a unidade cultural, dada especialmente por uma língua básica

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(não obstante suas eventuais variações regionais), origens ancestrais comuns e organização social e política semelhante” (LEITE, 1984, p. 50). Quando se trata das sociedades sem Estado a ocupação dos territórios é mais fragmentada, pois a ocupação se dá basicamente pela ocupação das terras utilizadas pelas famílias-aldeia. No entanto, os grupos conhecem as origens mitológicas e históricas de suas terras. A diferença para com as sociedades com Estado é que nestas o rei administra e tem sob sua responsabilidade o território que seu grupo ocupa, não obstante haja diferenças entre eles. O rei, na verdade, é um administrador de conflitos. Ele deve zelar pelo bem-estar de sua comunidade. Se ele não cumprir essa norma pode pagar com sua própria vida, pois em certas sociedades, como a dos três grandes impérios (Gana, Mali e Songai), se o rei não garantir prosperidade a seus súditos ele sofre o regicídio. De acordo com Fábio Leite, as mulheres e os homens ocupam determinadas funções, que lhes conferem poder frente à sociedade. Quanto às mulheres, elas “constituem fonte de legitimação na medida em que apenas elas fazem configurar as descendências e as posições dos indivíduos na estrutura da família para fins de sucessão e consequente acesso ao poder” (LEITE, 1984, p. 51). Este é o caso dos conselhos de mulheres formados pelas descendentes das mulheres-ancestrais, que determinam quem pode ser indicado aos cargos de comando, inclusive ao posto do rei. Os homens, portanto, são aqueles que têm o comando político da comunidade. Enquanto chefes mandatários, guardiões dos pactos selados com a terra “são os zeladores da ordem e também os principais elementos de comunicação entre a comunidade e os ancestrais, pois a eles cabe a direção e mesmo a execução dos atos mais decisivos relacionados com os cultos aos antepassados” (LEITE, 1984, p. 52). Temos, novamente, uma ordem tal, que apesar das diferenças entre os elementos (masculino e feminino), vê-se claramente que são complementários e fundamentais para o bom funcionamento do organismo social, pois sem os quais não haveria o bem-estar da comunidade. As funções de homens e de mulheres são complementares e benéficas à sociedade como um todo. O poder é um atributo dos viventes, mas emana dos antepassados. Os que forem mais fiéis aos antepassados e seus pactos com a terra alcançarão mais prestígio diante da comunidade. O poder é um exercício calcado na tradição para garantir o bem-estar para a sociedade. Isso justifica porque o rei, quando deixa seu povo às margens dos benefícios sociais, pode sofrer o regicídio. O poder, portanto, é um instrumento da tradição dos ancestrais para perpetuar no ayê a ordem do sagrado e a moralidade dos ancestrais. Ancestralidade

Quando Olorun procurava matéria apropriada para criar o homem todos os ebora partiram em busca da tal matéria. Trouxeram diferentes coisas mas nenhuma era adequada. Foram buscar lama, ela chorou, derramou lágrimas e nenhum ebola quis tomar da menor parcela. Então Iku, ojegbe-alaso-ona, apareceu, apanhou um pouco de lama – eerupe – e não teve misericórdia de seu pranto. Levou-a a Oludamare, e este pediu a Orisala e a Olugama que a modelassem e foi Ele mesmo quem lhe insuflou seu hálito. Mas Olodumare determinou a Iku que, por ter sido

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ele a apanhar a porção de lama, deveria recolocá-la em seu lugar a qualquer momento. E é por isso que Iku sempre nos leva de volta para a lama. (SANTOS[20] citada por RIBEIRO, 1996, p. 158).

O culto aos ancestrais é um dos elementos mais constantes na cultura africana. Pode-se mesmo dizer que é um fenômeno universal em praticamente toda a África Negra. Conforme Marco Aurélio LUZ (1995,p. 93): “Um dos aspectos invariantes da religião negra é a existência do culto aos ancestrais. Tanto a tradição nagô como a jeje e a congo-angola, que cultuam as forças cósmicas que regem o universo, se complementam com o culto aos ancestrais”. Essa constante na cultura africana e na cultura negra em geral é a pedra fundamental da cosmovisão africana, pois o culto aos ancestrais sintetiza todos os elementos que a estruturam. Aliás, aqui o movimento é o inverso: a cosmovisão africana retira do culto aos ancestrais praticamente todos os seus elementos. Desde a complementaridade dos gêneros, até o caráter coletivo dos rituais africanos, o culto aos ancestrais preserva e atualiza, da melhor maneira possível a originalidade e a genuinidade dos elementos estruturantes da cosmovisão africana. A concepção de universo, de poder , de pessoa, etc., estão nele contemplados. Sua dinâmica perpassa desde o caráter mais eminentemente religioso até seu caráter de produção. A relação entre o ayê e o orun é exemplar; a relação entre a vida e a morte é singular; a relação entre o Homem e a natureza e entre o Homem e as divindades são emblemáticas, ou seja, tudo o que se passa nos cultos aos ancestrias está presente, de maneira geral, no que estamos chamando de cosmovisão africana. O que equivale a afirmar que a cultura negra, em África ou fora dela, deve muito de sua estrutura, de seu fundamento, ao culto dos orixás. Em relação à tradição nagô no Brasil há três categorias de culto aos ancestrais: Os Esa, os Egungun e as Iya-mi Agba. Segundo Marco Aurélio LUZ (1995,p. 93) todos as três “estão englobados no conceito de ara-orun, habitantes do orun, do além”. Os Esa “são considerados os ancestrais coletivos dos afro-brasileiros. Seu culto se refere à comunidade em geral e não se caracteriza pela pertinência a uma família ou uma linhagem” (LUZ, 1995,p. 93). Apesar de tanto em África quanto no Brasil a linhagem tradicional possuir valor inestimável, os Esa se destacaram por seu trabalho junto às comunidades, e é a elas que eles vão servir e ajudar, e não às suas famílias de origem. Enquanto os Esa têm manifestação coletiva os Egungun têrm manifestação individuada. Além dessa diferença há outra: a representação do espírito individualizado, o Egungun, caracteriza-se pela aparição no aiyê. Os Esa, por sua vez, não têm essa propriedade de espírito individualizado e não se manifestam no aiyê. O culto dos Egungun é o culto dos ancestrais masculinos, “originário de Oyó, capital do império nagô, foi implantado no Brasil no início do século XIX” (LUZ,1995,p. 95). Seus principais terreiros, e hoje em dia praticamente os últimos, se encontram na Ilha de Itaparica, na Bahia. Segundo Marco Aurélio LUZ (1995,p. 95-96): “Os Egungun concretizam um valor característico da cultura negra, que é a busca da expansão da existência pelo homem negro através das homenagens e lembrança eterna

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mantida pelos seus descendentes, uma vez o espírito preparado e ritualizado através da religião”. A participação dos Egungun na vida dos seres humanos é ativa. Eles constituem-se nos protetores da comunidade e os guardiões da tradição e da moralidade. O culto aos Egungun inspira adoração, respeito e temor (LUZ, 1995,p. 96). Os iniciados no culto aos ancestrais Egungun têm a certeza de que tanto a vida como a morte é uma e a mesma coisa. Eles acreditam que vão continuar existindo em outro plano, e ligados sempre à sua territorialidade, à sua família, à sua linhagem. Há uma cantiga retirada do livro de Joana Elbein dos Santos e citado por Marco Aurélio LUZ (1995,p. 96) que explicita bem o que acabamos de comentar:

Se awo ki’ku

Awo ki run Nse é awo ma nlo so Itunla Itunla ilê awo Aqueles que fazem o mistério nunca morrem Os iniciados nunca se corrompem Os iniciados vão somente para o Itunla (lugar da vida ilimitada e verdadeira; da vida que se renova) Itunla casa do mistério. (o ilê awo), de onde os Eguns também são invocados.

Há uma grande diferença entre o culto dos Egunguns e o culto dos orixás. Tanto que os ritos religiosos não se podem fazer ao mesmo tempo e no mesmo lugar. Ancestrais Eguns e orixás estão radicalmente separados. No entanto, há muita semelhança na estrutura desses cultos, tanto no que diz respeito à ancestralidade tanto no que diz respeito à relação dessas divindades com os Homens. Não é uma questão para se adentrar agora, mas ancestrais e orixás têm relações antigas, mesmo antes da criação dos ara-aiyê. A relação, no orun, entre elas, era estreita e complementar. Só para citar um exemplo, há orixás que antes de sê-lo eram ancestrais divinizados. Por sua vez, esses ancestrais eram líderes comunitários em seu território, como foi o caso do Rei Xangô, que acabou tornando-se o orixá da justiça, do trovão. Concluindo, podemos citar Ronilda Ribeiro que assim define a diferença entre orixás e ancestrais: “Os orixás, associados a elementos cósmicos ou à natureza, significam matérias simbólicas de origem enquanto os ancestrais, significam princípios de existência genérica a nível social” (RIBEIRO, 1996, p. 166) As Geledes é o culto às ancestrais femininas. Marco Aurélio LUZ (1995,p. 102) narra a seguinte história: “No começo do mundo, era o nada. Com a criação da terra e das florestas, Olorun enviou ao aiyê sete pássaros. Três pousaram na árvore do bem, três pousaram na árvore do mal, e um voa de uma para outra árvore”. Esta história narra a ambiguidade do poder que as ancestrais femininas, também chamadas de Iya-mi-Agba, receberam de Olorun. Aqueles que não a respeitarem, morrerão; mas aqueles que a agradarem e fizerem as devidas oferendas serão protegidos e agraciados por elas.

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Segundo Joana Elbein dos Santos, citada por LUZ (1995,p. 103): “As aje ou Iya-mi constituem a representação da maternidade, fertilidade e fecundidade relacionadas ao princípio feminino da existência e Oxun, Olori-iya Agba Aje Eleye chefe suprema das mães ancestrais possuidoras de pássaros, as apresenta coletivamente”. Para LUZ (1995,p. 103): “O que caracteriza o mistério e poder das Iya-mi é a capacidade de criação e gestação da terra, Igba-nla, a grande cabaça ventre fecundada. Para tanto, ela deve ser constantemente ressarcida, restituída e umedecida, pois ela é constantemente solicitada para gerar abundância de grãos”. Ronilda Ribeiro, atenta ao culto das mães ancestrais como uma maneira de restaurar a força pela restituição, afirma que as Iya-agba, “para poderem cumprir sua função necessitam ser fecundadas, umedecidas, restituídas. A terra, associada ao que é seco e quente, precisa ser umedecida continuamente, recuperar o “sangue branco” para poder propiciar novos alimentos” (RIBEIRO, 1996, p. 165). De acordo com a autora, a sociedade das Geledes, simboliza aspectos coletivos do poder ancestral feminino é dirigida “pelas erelu, mulheres detentoras dos segredos e poderes de Iyami, cuja boa vontade deve ser cultivada por ser essencial à continuidade da vida e da sociedade, o culto tem por finalidade apaziguar seu furor; propiciar os poderes místicos femininos; favorecer a fertilidade e a fecundidade e reiterar normas sociais de conduta” (RIBEIRO, 1996, p. 159). Por fim, vemos que o culto aos ancestrais representa de maneira exemplar a cosmovisão africana, tanto porque compõe as camadas mais importantes dessas sociedades (princípio masculino, princípio feminino e o coletivo), quanto pela riqueza de funções que possuem os ancestrais. Vivendo no tempo do passado, um tempo mitológico (zamani), os ancestrais interferem e participam ativamente na vida de seus iniciados e de suas comunidades, atuando e transformando o tempo sasa, construindo e restituindo a força vital (ou axé) de seus descendentes, fazendo com que a vida seja um continuun impregnada da energia dos entes sobrenaturais, que, em outros tempos, já foram ara-aiyê, e que agora emprestam sua energia, seu ser-força, às comunidades e seus membros, tornando o universo africano um universo impregnado de energia e força. Os elementos que estruturam a cosmovisão de mundo de que estamos falando advém, quase em sua totalidade, das religiões yorubanas e jêje localizadas na costa ocidental do continente. No entanto, a África abriga centenas de milhares de religiões. Para exemplificar esta diversidade, trataremos de tecer comentários sumários e tirar conclusões filosóficas decisivas de religiões de outras regiões africanas e, ainda que sinteticamente, retirar daí lições filosóficas que contribuam para a cultura brasileira e, quiçá, mundial.

Religiões Africanas

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Certamente, na África, as religiões jogam um papel primordial na organização da vida comunitária e na estruturação das sociedades africanas. Por isso gostaríamos de fazer rápidas considerações a respeito de algumas religiões da África tradicional, mas que existem até os dias de hoje. Tais considerações serão traçadas sobre as seguintes religiões que foram sumariamente analisadas: Religião Akan[21], Banto[22], Dinca[23], Dogon[24], Fon[25], Ganda[26], Religião Iorubana[27], Lovedu[28], Mbona[29], Mende[30], Nilótica[31], Nuer[32], Shilluk[33], Shona, Zande e Zulu[34] e a veneração africana aos Antepassados.

O melhor seria relacionar cada conclusão geral com cada religião em particular. Este artifício, no entanto, deixaria ainda mais extenso o presente texto e, de certa forma, ofuscaria nosso objetivo principal que é reter justamente as conclusões de caráter mais genérico. Assim, elencaremos o que consideramos as conclusões mais importantes a respeito da análise das religiões tradicionais africanas, que vai desde a África Ocidental até o sul da África negra.

As religiões africanas são eminentemente comunitárias. A dimensão comunitária dessas religiões expressa sua concepção da vida e do universo. O importante é o bem-estar de todos os membros da comunidade. Não existe divisão de classes ou privilégios sociais. Os benefícios da religião e da religiosidade são universais (para o grupo, família, clã, ou cidade).

As religiões africanas são, ainda, pragmáticas. Os cultos visam a harmonia social e espiritual. Todo o bojo de concepções presente nestas religiões estão orientadas para a satisfação das necessidades imanentes e transcendentes de seus membros. A religião não é uma esfera desvinculada da política e da economia. Muito pelo contrário, a religião sacraliza estas esferas e com elas formam um todo. Esse todo deve ser administrado em vista da satisfação das necessidades de seus membros – necessidades estas que estão presentes tanto na esfera do sagrado como na esfera do profano.

Os resultados da eficácia da religião são medidas pragmaticamente. Se a comunidade está passando fome, morre o rei. Como dissemos, o regicídio é uma maneira de controlar o poder real, já que o rei não detém apenas o poder político-militar sobre seu povo, mas também o poder religioso. Ele não é absoluto em sua função. Seu poder é finito. Assim, se sua comunidade não vai bem, o responsável é o Rei, devendo, em muitos casos, pagar com a própria vida o preço de sua responsabilidade. Jean ZIEGLER (1972) analisou muito bem a dinâmica do poder das sociedades reais africanas ao demonstrar como o rei está associado à lógica religiosa do grupo quanto à esfera da produção, pois quando o rei morre a sociedade toda desiquilibra-se, uma vez que o rei é a representação máxima do equilíbrio e estabilidade da comunidade. Por isso a transição de poder será sempre traumática, pois o poder é o elemento que harmoniza a comunidade, e tanto a sua estabilidade, quanto sua instabilidade, serão celebradas pelo povo.

Não há salvacionismo. Não há pecado. Longe dos paradigmas cristãos, as religiões africanas estão livres de noções como a culpa, paraíso e inferno – todas tributárias da concepção de tempo ocidental, ou seja, de um tempo

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futuro. As religiões africanas vivem sobretudo o tempo do passado, tempo dos antepassados, tempo privilegiado do preexistente. São religiões que sacralizam o tempo passado e o tempo presente. O futuro é uma categoria ausente na maioria das sociedades africanas tradicionais. Nessas religiões cada um tem uma função e uma responsabilidade. Excluir-se dessas responsabilidades é excluir-se da comunidade e de seus benefícios. A socialização dos africanos é coletiva e não individual, o que dificulta, entre eles, a ramificação da idéia de culpa.

Com efeito, nas religiões africanas privilegia-se o respeito e a importância dos ancestrais. Os ancestrais, como vimos, é a base das religiões africanas; sem eles não haveria religião possível. Pedra angular dos cultos religiosos os ancestrais são ou personagens históricos que por sua notável presença no aiyê lograram um posto de antepassados divinizados transformados por suas comunidades em ancestrais, ou aspectos naturais (rios, árvores, mata, etc.) que foram divinizados por sua importância à sobrevivência do grupo humano. É bom esclarecer que os antepassados podem ou não vir a ser ancestrais, porém todo ancestral, um dia, já foi um antepassado, seja em forma humana ou em forma natural. No culto aos ancestrais, como já foi trabalhado anterirmente, está a maior parte dos elementos que formam a cosmovisão africana.

O poder masculino e feminino são complementários nestas religiões. As divindades dividem-se em masculinas, femininas ou andróginas. Há também entidades que representam o coletivo, a comunidade. Porém, o princípio da complementaridade[35] e o respeito à diferença entre os gêneros está contemplada nas religiões tradicionais da África, uma vez que em todo mito de origem e em toda significação cosmológica a figura das divindades masculinas e femininas estão presentes de maneira se não equitativa, pelo menos complementar – sendo que muitas vezes ressalta-se ou as entidades femininas ou as entidades masculinas de acordo com o contexto cultural e social de cada grupo.

As religiões africanas são fortemente marcadas por uma sacralidade profunda e por uma habilidade secular exemplares. Todo o universo está inserido dentro de uma dinâmica religiosa. Ela abarca todos os domínios da vida – produção, cultura, vida privada, vida pública, etc. – o que configura a profunda sacralidade dos africanos. Entretanto, essa sacralidade vivida em sua radicalidade não impede, e mesmo favorece, uma habilidade secular impressionante. A manutenção da tradição, por exemplo, é uma maneira de preservar a identidade do grupo – única maneira de preservar o grupo -, porém, quando é necessário transformações e modificações no seio desta tradição, elas ocorrem pois o objetivo é manter o bem-estar da comunidade. É a vida para a religião e a religião para a continuação da vida. Eis a fórmula da dinâmica cultural africana!

Outra característica dos adeptos das religiões tradicionais da África é o conhecimento profundo que detêm da realidade social e da natureza. Como vimos insistindo, não há uma separação dos níveis religiosos e seculares. Cada qual está impregnado um do outro. Assim, para que a religião seja eficiente – como exige a comunidade religiosa africana -, é necessário que os

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sacerdotes e os demais iniciados tenham um profundo conhecimento da realidade social em que vivem, pois senão como fazer para manter o bem-estar da comunidade? Na maioria dos casos, conhecimento social implica também em profundo conhecimento da natureza, posto que estas sociedades são dependentes dos elementos naturais. A natureza se constitui como fonte da vida. A relação entre o sagrado e a natureza é simbiótica. Como diz um velho provérbio africano: “Kosi ewé, kosi orisá”, isto é, “Sem ervas (lê-se natureza) não há orixás (lê-se divindades).” Natureza e divindade, aliás, muitas vezes, é o signo de uma e mesma coisa.

Em praticamente todas essas religiões existem divindades criadoras e entidades organizadoras. Respeitando a diversidade cosmogônica de cada uma delas, pode-se dizer, entretanto, que há uma estrutura comum que as unifica, ou seja, há sempre uma divindade criadora do universo, dos Homens, e criadora de divindades auxiliadoras, sendo que estas é que gerenciam o mundo para o Criador.

Se no plano cosmogônico há uma comunidade hierarquizada, na esfera secular há o controle social da religião em relação aos antepassados. Ou seja, as linhagens controlam o poder da hierarquia formada no seio das sociedades. As linhagens tem um critéiro muito bem definido para estabelecer as relações de poder, a saber: são os antepassados que legitimam a moral e os costumes que esta ou aquela sociedade assumem. Logo, as regras morais e os princípios éticos que norteiam as sociedades negro-africanas são artefatos dos antepassados.

Em todas as religiões africanas acima citadas há sempre um mito de origem (cosmogonia), rituais (sacrifícios, relações com a natureza) e sacerdócio (reis ou cidadãos consagrados). Esses elementos são constitutivos do que chamamos religião. Por isso rejeitamos as denominações de seita, animismo, primitivismo, etc., por serem tributárias de uma ideologia preconceituosa que, aliás, transformaram-se em barreiras epistemológicas à compreensão das religiões africanas e suas correlatas no Brasil.

É constante, nestas religiões, a interpenetração de culturas e a preocupação com a legitimidade. Não existe nenhuma religião pura em África ou em qualquer outro lugar do planeta. Os vários movimentos migratórios no território africano forjaram a fusão de muitos povos e muitas culturas. Porém, caso peculiar da África, as religiões africanas, mesmo sofrendo alterações, conservaram/atualizaram sua cosmovisão de mundo. Veja, por exemplo, o caso já estudado dos três grandes Impérios Negros (Gana, Mali e Songai). Apesar de ter havido uma forte influência islâmica naquela região, inclusive com a utilização de força militar (os almorávidas) , as religiões africanas permaneceram fiéis a seus mitos de origem e a suas divindades, preservando sua cultura e identidade, através, é óbvio, de fusões culturais e releituras simbólicas. Muito embora houvesse a força das armas, a dinâmica civilizatória africana soube preservar sua forma cultural.

Outra característica destas religiões é que são marcadas pela concepção da dualidade do mundo: Os poderes “bem”, “mal”, se equilibram. Na verdade a noção de bem e de mal são categorias da cultura judaico-cristã. Em África, por

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oposição, falamos em energia construtiva e energia destrutiva. Não existe o essencialmente mal e o essencialmente bom. As energias estão espalhadas pelo universo. Dependendo da maneira pela qual elas são manipuladas e para que fins sirvam, elas podem ser tanto construtivas quanto destrutivas. Talvez, um critério interessante para se saber se uma energia é ruim ou não, é saber quando ela prejudica a comunidade; neste caso, tudo o que favorece o bem-estar da comunidade é “bom”, enquanto que tudo aquilo que perturba a harmonia social é “ruim”.

Além da complementaridade entre as divindades masculinas e femininas na esfera sobrenatural, tal equilíbrio é refletido na estrutura religiosa secular. No entanto, neste plano (secular) é possível destacar a importância que as mulheres têm. Com efeito, as mulheres ocupam importantes papéis nas religiões africanas. São sacerdotisas, ocupam postos de comando político e interferem definitivamente na organização hierárquica de suas comunidades – sobretudo quando são comunidades matrilineares. No culto aos ancestrais, como já foi visto, há o culto às mães ancestres, cultuada na sociedade das Geledes. A organização por gênero é uma possibilidade muito antiga em solos africanos. Ora, a mulher esta relacionada com os grandes mistérios da vida e da morte; com a fertilidade, com a fecundidade, com as divindades. Com efeito elas participam mais interinamente dos mistérios da criação, porque elas mesmas são gestadoras. No continente africano, as mulheres mereceram o devido reconhecimento social e cultural, o que se reflete na cosmovisão africana.

O reconhecimento de personagens históricos importantes para seu povo é outra característica das religiões africanas. Os antepassados que foram significativos para sua gente são cultuados, tornando-se, inclusive, ancestrais – merecedores de cultos e templos específicos. Esta dinâmica social demonstra como os africanos valorizam àqueles que se dedicam à coletividade e, de outro lado, reflete bem o respeito e a importância conferida aos seus mais valorosos membros, que abrange reis, sacerdotes, guerreiros, agricultores, caçadores, etc.

Da Ancestralidade nasce a moralidade nas religiões tradicionais africanas. Como diz Basil DAVIDSON (1969, p. 74), em África o “bem-estar do indivíduo era função do bem-estar da comunidade, e não o contrário. A ordem moral era fortemente coletiva”. Conforme o autor, a moralidade em África é pensada a partir da comunidade, pois se pautada no bem-estar do indivíduo o que ocorreria – como ocorre nas sociedades ocidentais – é uma acumulação para o indivíduo em detrimento do bem-estar da comunidade. De acordo com ele: “Num mundo onde existe um ideal de acumulação pessoal, o bem do indivíduo opõe-se ao bem da comunidade” (DAVIDSON, 1969, p. 71).

Em sua maioria as religiões africanas são praticadas em comunidades camponeses. Isto reforça o caráter comunitário e a vinculação atávica ao Meio Ambiente.

A cosmogonia e cosmologia adaptam-se à região (cidade-estado ou território das famílias extensas) dos fiéis. Não são, portanto, religiões

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universais, mas religiões territorializadas, nascidas e forjadas pelos membros dos grupos de origem e seus descendentes.

São religiões imanentes e não transcendentes as religiões africanas. Elas não estão preocupadas com a metafísica - ao menos não na acepção ocidental do termo. Elas se relacionam com os problemas concretos de sua comunidade. Os seres sobrenaturais, sem exceção, tem relação visceral com a natureza. A natureza é imanente. O transcendental – concepção ocidentalizada - configura-se no tempo futuro. O futuro, para os africanos, é menos importante que o passado. O futuro, na África, quase sempre refere-se a cerca de dois meses depois do tempo do agora. O transcendental, algumas vezes, tem uma dimensão a-temporal, a-histórico, o que é impensável dentro da cosmovisão africana. O imanente é o que é vivido. Mesmo que este imanente seja sobrenatural, divinizado, ele está relacionado com a comunidade, com a coletividade, com o social vivenciado, visto como experimento concreto do real.

A diversidade é um dos principais aspectos das religiões africanas. Como vimos afirmando, não existe a exclusão do diferente na cosmovisão africana. Homem, mulher, homossexual (ou andrógeno) são acolhidos. A diversidade é a dinâmica própria dessas religiões. Diversidade com autenticidade. Diversidade com legitimidade. A diversidade é um princípio sem o qual não haveria religião tradicional na África, posto que sendo a África o continente do “Arco Íris”, isto é, o continente das diferenças culturais, somente o princípio da diversidade poderia congregar tantas culturas e preservar, de maneira estrutural, a identidade de um continente.

A integração é o princípio complementar da diversidade. A exclusão gera a dominação. A diversidade a integração. Sem a integração, não poderia haver harmonia social. O bem-estar social coletivo só é alcançado quando dentro desta dinâmica os possíveis excluídos são integrados, deixando de ser excluídos para serem partícipes da coletividade. A integração, também, é um componente essencial da cosmovisão africana posto que evidencia que todos os elementos do universo estão conectados, interligados, em processo dinâmico de interação. A integração desses elementos demonstra como o universo funciona tal qual uma teia de aranha, onde tudo se relaciona com tudo, e a harmonia das partes depende da harmonia do todo.

Em suma, percebemos como na África tradicional existe uma estrutura comum entre as sociedades, sobretudo dos três Impérios Negros considerados: Gana, Mali e Songai. Mas tal estrutura se verifica também em outras regiões tanto ao sul do Sahel quanto a ocidente na África Negra, seja nas regiões das savanas ou das florestas. Estas estruturas comuns das sociedades africanas, foram aqui consideradas sob o prisma religioso, que podemos dizer, hegemoniza as práticas culturais dessas populações. Considerando também aspectos econômicos e políticos, bem como aspectos da estrutura social, como a organização das famílias e o tipo de sociedade em que vivem, sejam elas famílias extensas ou cidades-estado, podemos evidenciar, apesar das flagrantes diferenças e da enorme diversidade, que existe uma estrutura (forma cultural; dinâmicas civilizatórias) baseada em princípios que sustentam a vida desse contingente negro-africano.

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Tais princípios regem os vários elementos dessa estrutura, que, por sua vez, dão fundamento à afirmação de que na África antes da invasão européia existe uma cosmovisão africana. Essa cosmovisão de mundo se reflete na concepção de universo, de tempo, na noção africana de pessoa, na fundamental importância da palavra e na oralidade como modo de transmissão de conhecimento, na categoria primordial da Força Vital, na concepção de poder e de produção, na estruturação da família, nos ritos de iniciação e socialização dos africanos e, é claro, tudo isso assentado na principal categoria da cosmovisão africana que é a ancestralidade.

Todos esses elementos, singularizados pela estrutura cognitiva do africano de organizar a vida e a produção revelam princípios organizadores de suas sociedades. São eles: princípio da diversidade, da integração, da harmonia com a natureza, princípio da senioridade – ligado à ancestralidade -, o princípio da complementaridade, da polaridade do mundo em energias destrutivas e construtivas, e o princípio comunitário, tendo o comunitário como estância maior do bem-estar social.

Como veremos, a identidade da população negro-africana é tributária da manutenção de sua tradição e forma cultural, posto que todos os elementos e princípios da cosmovisão africana são tributários da tradição destes povos. Como foi analisado anteriormente, o passado é o ponto de referência na organização da vida e da produção dessas sociedades. E, no passado, a grande referência são os antepassados, os ancestrais – patronos e fundadores da tradição africana.

Com o processo de escravização promovido pela Europa os filhos da África viram-se obrigados a reestruturarem sua cultura e tradição em várias partes do mundo. No Brasil, a partir - e, sobretudo -, das organizações religiosas, os negros africanos e seus descendentes recomporam as estruturas e princípios tributários de uma cosmovisão de matriz africana e, em solo brasileiro, reconstituiram seu universo cultural-religioso preservando, não sem rupturas e alterações, os princípios fundamentais de sua tradição, fonte suprema de sua identidade cultural.

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