influencia africana no portugues do brasil

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A INFLUÊNCIA AFRICANA NO PORTUGUÊS DO BRASIL

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Influencia Africana No Portugues Do Brasil

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  • A INFLUNCIA AFRICANA NO PORTUGUS DO BRASIL

  • Ministrio das relaes exteriores

    Ministro de Estado Embaixador Antonio de Aguiar Patriota Secretrio-Geral Embaixador Ruy Nunes Pinto Nogueira

    Fundao alexandre de GusMo

    A Fundao Alexandre de Gusmo, instituda em 1971, uma fundao pblica vinculada ao Ministrio das Relaes Exteriores e tem a finalidade de levar sociedade civil informaes sobre a realidade internacional e sobre aspectos da pauta diplomtica brasileira. Sua misso promover a sensibilizao da opinio pblica nacional para os temas de relaes internacionais e para a poltica externa brasileira.

    Ministrio das Relaes ExterioresEsplanada dos Ministrios, Bloco HAnexo II, Trreo, Sala 170170-900 Braslia, DFTelefones: (61) 2030-6033/6034Fax: (61) 2030-9125Site: www.funag.gov.br

    Presidente Embaixador Jos Vicente de S Pimentel

    Instituto de Pesquisa deRelaes Internacionais

    Centro de Histria eDocumentao Diplomtica

    Diretor Embaixador Maurcio E. Cortes Costa

  • Braslia, 2012

    A Influncia Africana noPortugus do Brasil

    Renato Mendona

  • M539

    MENDONA, Renato. A influncia africana no portugus do Brasil / Renato Mendona, apresentao de

    Alberto da Costa e Silva, prefcio de Yeda Pessoa de Castro. Braslia : FUNAG, 2012. 200 p.; 15,5x22,5 cm.

    Inclui bibliografia.

    ISBN: 978-85-7631-399-1

    1. Lngua portuguesa. 2. frica. 3. Etnografia. 4. Lingustica. 5. Escravido no Brasil. 6. Fontica e morfologia. 7. Folclore. 8. Literatura. I. Ttulo. II. Fundao Alexandre de Gusmo.

    CDU: 811.134.3

    Direitos de publicao reservados Fundao Alexandre de GusmoMinistrio das Relaes ExterioresEsplanada dos Ministrios, Bloco HAnexo II, Trreo70170-900 Braslia DFTelefones: (61) 2030-6033/6034Fax: (61) 2030-9125Site: www.funag.gov.brE-mail: [email protected]

    Ficha catalogrfica elaborada pela bibliotecria Talita Daemon James CRB-7/6078

    Depsito Legal na Fundao Biblioteca Nacional conforme Lei n 10.994, de 14/12/2004.

    Equipe Tcnica:Eliane Miranda PaivaFernanda Antunes SiqueiraGabriela Del Rio de RezendeJess Nbrega CardosoRafael Ramos da LuzWellington Solon de Souza Lima de Arajo

    Programao Visual e Diagramao:Grfica e Editora Ideal

    Impresso no Brasil 2012

  • memria do Prof. Rozendo Martins que formou a minha personalidade.

  • Apresentao

    Em 1789, no primeiro dicionrio monolngue do idioma portugus, Antnio Morais e Silva j identificava vrias palavras de origem africana, como batucar, cafun, malungo e quiabo, de uso corrente entre os brasileiros. Ao longo do sculo XIX e nas trs dcadas do seguinte, no faltaram vozes a chamar a ateno para a presena africana no portugus do Brasil, mas mesmo num estudo mais penetrante como o de Antnio Joaquim de Macedo Soares, Sobre algumas palavras africanas introduzidas no portugus que se fala no Brasil, estampado em 1880 na Revista Brasileira, essa participao era considerada ainda menor do que a do tupi e outras lnguas amerndias. Embora Macedo Soares visse com interesse quase afetuoso o contributo africano, ainda pequeno o espao que lhe reservado no seu Dicionrio brasileiro da lngua portuguesa: elucidrio etimolgico crtico das palavras e frases que, originrias do Brasil, ou aqui populares, se no encontram nos dicionrios da lngua portuguesa, ou neles vm com forma ou significao diferente, publicado em 1889 at o verbete candeeiro. Esse importante dicionrio foi completado, com base no amplo material recolhido por aquele pesquisador, por seu filho, Julio Rangel de Macedo Soares, que o ps nas estantes somente em 1954.

    A situao comeara a mudar em 1933, com o aparecimento de O elemento afro-negro na lngua portuguesa, de Jacques Raimundo, e principalmente deste livro, A influncia africana no portugus do Brasil. O autor, Renato Mendona, era um rapaz de 21 anos, que tinha como nico ttulo e o ps sob seu nome na capa e folha de rosto da 1 edio

  • ALBERTO DA COSTA E SILVA

    o de bacharel em cincias e letras pelo Pedro II. de imaginar-se a perplexidade dos que tiveram de julgar este trabalho, quando foi apresentado como tese ao concurso para o provimento da cadeira de portugus do internato daquele mesmo colgio. Os examinadores viram-se diante de uma monografia bem fundamentada sobre um tema que, surpreendentemente, se revelava mais do que relevante e que, at ento, quase no fora estudado ou o fora de modo pouco atento. As teses do ex-aluno que aspirava ascender a professor estavam, como natural, abertas polmica, mas eram convincentes e expostas com discreta erudio e seriedade.

    Renato Mendona arrolava cerca de 350 palavras de provenincia africana que se haviam infiltrado no portugus do Brasil, um nmero consideravelmente superior s 47 que Antenor Nascentes identificara como tais, no seu Dicionrio etimolgico da lngua portuguesa, que sara um ano antes. Embora ainda muito distante dos quase 3.000 termos reconhecidos, no fim do sculo XX, por Yeda Pessoa de Castro em Falares africanos na Bahia aos quais, para se formar ideia do tamanho dos aportes da frica ao portugus do Brasil, se teria de acrescentar uma boa quantidade de palavras usadas somente em outros estados , o vocabulrio que ocupava 1/3 do livro de Renato Mendona j servia de argumento contra os que subestimavam a contribuio dos povos negros s maneiras brasileiras de falar e escrever. Essa influncia africana advertiu, tambm pioneiramente, Renato Mendona no se reduzia ao enriquecimento lexical: ela se estendia fontica, morfologia, sintaxe, semntica, ao ritmo das frases e msica da lngua. O rapaz de 21 anos era ousado, e, entre as vrias propostas novas e sedutoras que se sucedem em seu livro, sustenta antecipando o que hoje se reconhece que o contributo do quimbundo fora mais importante do que o do iorub na conformao do portugus do Brasil.

    De que foi excepcional a repercusso deste livro nos meios cultos e sintomaticamente no mesmo ano em que Casa grande e senzala, de Gilberto Freyre, alterava inteiramente nossa maneira de ver o Brasil e o que devamos frica , h um indcio claro: sua segunda edio sairia, ampliada, em 1935, numa coleo de enorme prestgio, a Brasiliana, que s abrigava obras fundamentais para o conhecimento do pas. Na pgina de rosto dessa nova edio, embaixo do nome do autor, substituiu-se o ttulo com que se apresentava de bacharel pelo Colgio Pedro II para integrante dos quadros do Ministrio das Relaes Exteriores.

    Renato Mendona entrou mocinho no Itamaraty, mas, como diplomata, sua carreira no fluiu como esperava. Tinham-no como pessoa

  • APRESENTAO

    difcil de trato, rspida e impaciente. Quando o conheci, creio que em 1968, era embaixador na ndia e viera ao Brasil para o lanamento de uma nova edio de outro importante livro seu, Um diplomata na Corte da Inglaterra, sobre o baro de Penedo e a sua poca, publicado originalmente em 1942. Com o volume na mo, era todo felicidade, mas no resto do tempo parecia estar sempre irritado ou zangado. Dava-me a impresso de que se julgava trado pela vida. Quando menos, pelo Itamaraty, que no o tratara, no correr da carreira, pelas suas qualidades intelectuais, como julgava merecer.

    Alm do seminal A influncia africana no portugus do Brasil e de Um diplomata na Corte da Inglaterra, Renato Mendona foi autor de vrias outras obras, entre as quais, O portugus do Brasil: origens, evolues, tendncias, de 1936, Histria da poltica exterior do Brasil, de 1942, e Fronteira em marcha, de 1956, que tiveram pouca ressonncia.

    Esta nova edio de sua obra mais famosa, no ano do centenrio de seu nascimento Renato Mendona nasceu em 23 de dezembro de 1912 , traz uma introduo de Yeda Pessoa de Castro, que, h mais de 50 anos, estuda lnguas africanas e suas influncias sobre o portugus do Brasil, com pesquisas de campo nos dois lados do Atlntico. Sendo ela a maior especialista brasileira no assunto, respeitada internacionalmente, no conheo ningum mais capacitado para avaliar a importncia histrica e a permanncia deste livro na mesa de trabalho do fillogo e do etnolinguista.

    Ao correr os olhos sobre o vocabulrio levantado por Renato Almeida, dos verbos de origem africana, s encontrei trs de uso quotidiano, batucar, cochilar e xingar, que devem ter vindo do quicongo ou do quimbundo. Vrios outros poderiam ser acrescentados: capengar, cochichar, fungar, fuxicar e zangar, por exemplo. Dificilmente passamos um dia sem empregar pelo menos um deles, o que mostra como, no plano vocabular, o de apreenso mais rpida, a frica nos valeu para expressar gestos e aes, alm de nos ter legado os substantivos com que designamos vegetais, comidas, adornos, danas, instrumentos de msica e os mais diferentes objetos que atravessaram durante tantos sculos o Atlntico. Ao longo deles, frica entranhara-se na maneira de falar e escrever do brasileiro, e foi isso o que nos revelou, com segurana e apuro, um jovem estudioso mal sado da adolescncia, num livro que entrou para a histria da cultura brasileira.

    Alberto da Costa e Silva

  • Sumrio

    Prefcio Renato Mendona e A influncia africana no portugus do Brasil, um estudo pioneiro de africanias no portugus brasileiro

    Yeda Pessoa de Castro ......................................................................................... 15

    Prefcio de Rodolfo Garcia ........................................................................... 29

    Siglas ................................................................................................................ 31

    Captulo I Etnografia Africana

    A penetrao do continente negro. A colonizao africana e a obra dos exploradores e missionrios. Classificao antropolgica: suas falhas. Classificao etnogrfica baseada na lingustica. Os semito-camitas no Mediterrneo. O grupo cuchito-camtico. Povos primitivos da frica. A famlia negra. Repartio geogrfica dos sudaneses e bantu ............................................................................................ 33

    Captulo II Lingustica Africana Classificao tradicional de Schlegel. A classificao genealgica. Ensaios de classificao das lnguas africanas: Lepsius e Meyer. A classificao de Hovelacque. A classificao moderna de Delafosse e Homburger. A classificao mais moderna de Drexel. Opinio de W. Schmidt a respeito de Homburger. ......................................................... 37

  • Captulo III O Trfico

    Os Portugueses na Guin. Primeiros escravos introduzidos no Brasil. As Companhias de Comrcio e o contrabando. O nmero de escravos vindos para o Brasil. Estatsticas remanescentes. Crtica avaliao dos historiadores. A populao negra do Brasil atual ................................................... 45

    Captulo IV Povos Negros ImportadosInsuficincia dos dados sobre o assunto. Valor das estatsticas aduaneiras. Denominaes confusas dos negros no Brasil. Procedncias variadssimas dos negros brasileiros: sudaneses e bantu. Pernambuco, Bahia e Rio: focos disseminadores do escravo preto. A distribuio do elemento negro. Povos e lnguas predominantes ........................................... 59

    Captulo V Fontica e Morfologia do Quimbundo

    Caracteres gerais das lnguas africanas. Fontica: vogais do quimbundo e suas alteraes na passagem para o portugus. Consonncias simples e nasaladas. Os grupos consonnticos e suas transformaes na passagem para o portugus. Morfologia: prefixos nominais: classe e nmero. Prefixos pronominais: concordncia. As dez classes do quimbundo .............................................................................. 65

    Captulo VI Influncia Africana no Portugus

    O dialeto brasileiro e seus subdialetos. Fatores de diferenciao. Indistino entre o fator indgena e o africano. O mina: dialeto crioulo de existncia efmera. O negro e a fontica brasileira. Vestgios africanos na morfologia e na sintaxe. A contribuio negra para o folclore e o lxico brasileiros .............................................................. 75

    Captulo VII Folclore Totemismo e feitiaria. Teriam sido totmicos os nossos negros? O incremento da macumba no Brasil. Sobrevivncias africanas na poesia popular brasileira. A msica dos pretos e seus instrumentos. A trplice origem Ariana, indgena e africana dos contos populares. Dificuldade em discriminar o elemento indgena e o africano. A opulenta contribuio do folclore africano para o folclore brasileiro: contos populares negros ................................................................................. 89

  • Captulo VIII O Negro na Literatura Brasileira O negro na vida da famlia brasileira. Casas-grandes e senzalas. O abolicionismo e seus reflexos na literatura. O introdutor do negro na literatura brasileira. Poetas da escravido. O negro no romance nacional. Contos e peas de teatro. A lascvia do negro na veia satrica de Gregrio de Matos .............................................................................................107

    Vocabulrio .................................................................................................... 121

    Addendum ...................................................................................................... 175

    Bibliografia ..................................................................................................... 179

    Obras do Autor .............................................................................................. 185

    Anexo ............................................................................................................... 189

  • 15

    Prefcio

    Renato Mendona e A influncia africana no portugus do Brasil, um estudo pioneiro de africanias no portugus brasileiro

    A partir de uma definio da antroploga Nina Friedemann em Cabildos negros, refugios de africanias en Colombia (Revista Montalbn, Universidade Catlica Andrs Bello,1988), podemos entender africanias como a bagagem cultural submergida no inconsciente iconogrfico dos negroafricanos entrados no Brasil em escravido e que se faz perceptvel na lngua, na msica, na dana, na religio, no modo de ser e de ver o mundo, e, no decorrer dos sculos, como forma de resistncia e de continuidade na opresso, transformaram-se e converteram-se em matrizes partcipes da construo de um novo sistema cultural e lingustico que nos identifica como brasileiros.

    So essas matrizes que, na dcada de 1930, o diplomata, escritor e pesquisador alagoano Renato Firmino Maia de Mendona (23/12/1912 20/10/1990), em sua monografia sobre A influncia africana no portugus do Brasil, tratou de pontuar na formao da modalidade da lngua portuguesa no Brasil, em nossas tradies orais e na literatura brasileira.

    Em 1933, a 1 edio foi publicada pela Grfica Sauer com prefcio de Rodolfo Garcia, trazendo o mapa da distribuio do elemento negro no Brasil colonial e imperial. Em 1935, sai a 2 edio pela Companhia Editora Nacional, na Coleo Brasiliana (Srie V, Vol. XLVI), ilustrada com mapas e fotografias e aumentada em dois captulos, um esboo histrico sobre o trfico e um ensaio sobre o negro na literatura brasileira. Tambm de carter inovador so os mapas toponmicos com localidades designadas por nomes africanos no Brasil, da autoria do gegrafo Carlos Marie Canto,

  • YEDA PESSOA DE CASTRO

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    que vem em addendum, ao final do livro. A 3 edio, de 1948, publicada no Porto pela Figueirinhas. Em 1972 e 1973, a 2 edio republicada pela Civilizao Brasileira.

    Ao lado de Jacques Raimundo que coincidentemente publicou, pela Renascena, em 1933, O elemento afro-negro na lngua portuguesa, a obra de Renato Mendona um estudo de referncia obrigatria nessa importante rea de pesquisa, mas cuja repercusso no meio cientfico corresponde a menos do seu valor real, em razo da tendncia de esse conhecimento ser considerado, em grande parte por linguistas e fillogos, mais como objeto de pesquisa de interesse dos africanistas e dos especialistas no domnio dos estudos afro-brasileiros, assim denominados como uma palavra composta de acordo com a grafia consagrada e recomendada pelo recente acordo ortogrfico. Neste contexto, separados por um trao de unio em lugar simplesmente de se escrever afrobrasileiros, o termo afro, tratado como um prefixo, reflete de maneira subliminar aquela tendncia. Destaca-se como se fosse um aparte eventual no processo e no a parte afrobrasileira inscrita em nossa identidade cultural e lingustica.

    Tal tendncia foi desenvolvida em consequncia mesmo da orientao terico-metodolgica que tomaram esses estudos entre ns quanto avaliao da influncia nag-iorub e banto no Brasil e da controvrsia quanto parte de arcasmos e regionalismos em face parte de interferncia africana e amerndia na linguagem popular e nas diferenas que afastaram, na fonologia, o portugus do Brasil do de Portugal.

    Dentro desse plano de entendimento, Renato Mendona coloca e avalia a interferncia que aquelas vozes de mais de quatro milhes de negros escravizados, no decorrer de trs sculos consecutivos, imprimiram naquela lngua portuguesa que eles foram obrigados a falar como segunda lngua no Brasil. Ao mesmo tempo, Mendona enriquece e alarga suas anlises baseado em uma bibliografia ainda hoje consistente e de grande valia para os estudos atuais sobre a histria e a etnografia africanas e suas lnguas, principalmente sobre as que foram faladas no Brasil, as quais ele adequadamente chama de negroafricanas. A partir de 1966, com a classificao proposta por Joseph Greenberg em The languages of Africa, editada pela Indiana University, essas lnguas foram includas na grande famlia ngero-congolesa que se encontra concentrada na frica Subsaariana.

    Sobre a carta lingustica policromada do continente africano, uma das ilustraes do livro, feita em colaborao com Walfrido Freire, Professor do Colgio Pedro II, no Rio de Janeiro, podemos atualiz-la, levando em considerao as especificidades de seus contingentes humanos, renomeando-os de acordo com estudos mais recentes.

  • PREFCIO

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    A frica, onde so faladas mais de 2.000 lnguas, um continente que engloba quatro grupos etnolingusticos ou quatro famlias de povos com suas lnguas respectivas:

    Afroasitica, antes chamada de hamto-semtica, so as lnguas da frica do Norte, compreendendo cinco subgrupos: semtico (o rabe e lnguas etopes); cuxtico (Somlia); chdico (o hau, noroeste da Nigria); berbere (Maghreb); egpcio antigo (em ter-ritrios do Nilo).

    Khoisan, dos povos Khoi e San, com suas lnguas de clique, concentrados no deserto de Kalahari.

    Nilo-Saariana, com as lnguas nilticas do sul do Sudo e do Saara (kanure, songhai, maban...)

    Nger-Congo, a maior famlia lingustica, com cerca de 1.500 lnguas, abrange dois grandes grupos: o banto, localizado abaixo da linha do equador, e o que a oesteafricano, ao longo da costa atlntica, que vai do Senegal Nigria, na regio do Golfo do Benin, com lnguas tradicionalmente denominadas de sudanesas. Entre elas, as do grupo lingustico gbe ou ewe--fon do Togo, Gana e Benin, antigo Daom, conhecidas no Bra-sil por minas ou jejes, e o iorub falado na Nigria Ocidental e no vizinho reino de Ketu, no Benin atual, onde chamada de nag.

    Alm da famlia ngero-congolesa, a mais significativa entre todas para a nossa Histria, tambm merecem destaque os povos Khoi e San, antes chamados de hotentotes e bosqumanos. So as mais primevas populaes do mundo. Nmades, ocupavam os territrios ao longo de toda a extenso abaixo da linha do equador h 20.000.000 de anos atrs. Expulsos de suas antigas terras pelas invases seguidas do povo banto, a partir do primeiro sculo da nossa era terminaram refugiados e concentrados no deserto de Kalahari, na Nambia.

    No so negroides (Fernandes e Ntondo, Angola, povos e lnguas, Luanda, 2002), uma comprovao que vai ao encontro da concepo inadequada, mas popularizada, de que o ser humano nasceu necessariamente negro, porque a frica, que o bero da humanidade, um continente negro, como costuma ser vista em vrios meios, sem se atentar que se trata de uma generalizao que foi divulgada com propsitos colonialistas, voltada para sustentar o volume da carga humana do trfico transatlntico. A frica no um continente negro, mas um continente de populao majoritariamente negra, e essa populao encontra-se em territrios abaixo do deserto de Saara.

  • YEDA PESSOA DE CASTRO

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    Quanto avaliao em torno da influncia nag-iorub e banto no Brasil, a obra de Mendona exibe o mapa da distribuio do elemento negro no Brasil colonial e imperial baseado no equivoco metodolgico instalado por Nina Rodrigues no mbito dos estudos afrobrasileiros, a partir da publicao de Os Africanos no Brasil em 1932. No mapa, os iorubs esto concentrados na Bahia e bantos em outros Estados, como se essas duas reas de influncia estivessem em compartimentos limtrofes, mas estanques entre si. Esse tipo de entendimento tem levado pesquisadores a atribuir uma origem iorub, mesmo quando no o so, a marcas de africania em nossa identidade cultural e lingustica, a exemplo de algumas palavras de origem fon no vocabulrio de Mendona, que discutiremos adiante.

    Para Nina, os nags foram os africanos mais influentes e numerosos na Bahia, embora suas pesquisas nunca tivessem passado do mbito da Capital do Estado, chamada por ele pelo antigo nome de Bahia, sem esclarecer que se tratava da cidade do Salvador, poca, povoada de iorubs trazidos para Salvador e regio circundante do Recncavo em numerosos contingentes, na ltima fase do trfico, no sculo XIX, quando o Brasil passava por um processo de desenvolvimento urbano que exigia a concentrao de mo de obra escravizada nas cidades. A entrada dos bantos, porm, ocorreu desde o incio do trfico, ao final do sculo XVI, com um fluxo contnuo e ininterrupto at o sculo XIX, e foram dirigidos para todos os ncleos coloniais em formao que demandavam mo de obra escravizada.

    notvel a erudio demonstrada por Renato Mendona, seu conhecimento de uma bibliografia atualizada para a sua poca e o contedo das suas observaes ainda hoje relevantes para o entendimento da formao do portugus do Brasil.

    No Captulo V sobre a fontica e morfologia do quimbundo, ele comea informando que o termo bantu, plural de muntu, com o significado de povo, foi proposto em 1856 por Wilhelm Bleek em Comparative Grammar of South African Languages, para nomear a famlia lingustica que descobrira ao estudar as lnguas sul-africanas, e avanou a hiptese do enorme nmero de lnguas com caractersticas comuns terem tido origem em uma nica lngua que os bantuistas denominaram de protobanto, falada h quatro mil anos. S mais tarde, vale acrescentar, o termo banto passou a ser usado pelos estudiosos de outras reas para denominar 300.000.000 de indivduos que habitam territrios compreendidos em toda a extenso sul da linha do equador, englobando a frica Central, Meridional e Oriental.

    Dentro deste contexto, cabe esclarecer que a denominao yorub, segundo o renomado historiador nigeriano Saburi Biobaku, vem do termo rabe yariba, atravs dos haus, povo islamizado da regio norte

  • PREFCIO

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    da Nigria, que assim chamavam os seus vizinhos do antigo Imprio de Oy. Atualmente aplica-se a um grupo lingustico de vrios milhes de indivduos, que, alm do iorub como lngua comum, esto unidos por uma mesma cultura e tradio, tendo como centro religioso a cidade de Ile-If, considerada por eles como o Bero da Humanidade.

    O uso do termo com essa significao foi divulgado pelo Reverendo Samuel Ajayi Crowther no seu vocabulrio da lngua iorub A Vocabulary of the Yorub Language publicado em Londres, em 1852. At ento, eles se conheciam pela denominao dos seus respectivos grupos regionais: ifs, oys, ijexs, ondos, etc.

    Diante destes fatos pertinente observar que banto e iorub so designaes contemporneas na prpria histria da frica, consequentemente, no fazem parte da nossa histria colonial onde os primeiros eram identificados por congos, angolas, benguelas, etc., de acordo com a sua procedncia africana, enquanto os iorubs, no Brasil, ainda so tradicionalmente apelidados de nags. O termo iorub s comeou a ser divulgado e popularizado entre ns a partir de 1961, quando foi oferecido o primeiro cursos dessa lngua pelo antigo CEAO, Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade Federal da Bahia, sob a responsabilidade do professor nigeriano Ebenezer Lashebikan.

    A respeito das marcas de africania no portugus do Brasil, Renato Mendona aborda o tema atravs de anlises baseadas em estudos de renomados pesquisadores que lhe antecederam, no s brasileiros, e trata da questo de maneira exemplar, abrangendo as importantes reas de entendimento da cincia da linguagem na fontica, na morfologia, na sintaxe e no vocabulrio. No entanto, em relao s lnguas negroafricanas, h um acentuado favoritismo pelo quimbundo, que ele justifica porque exerceu no portugus uma influencia maior do que o nag devido ao seu uso mais extenso e mais antigo. Poderia ter alegado, como fez Joo Ribeiro no seu Dicionrio Gramatical (1 ed. 1988, Montenegro; 3 ed. 1906, Francisco Alves), que iria tratar apenas da influncia extensssima do ambundo (quimbundo), lngua de Angola e do Congo, por falta de outros documentos especializados.

    provvel que, por essa mesma razo, Mendona mencione os povos do grupo ewe-fon no Captulo III, dedicado ao trfico transatlntico, mas no o suficiente para lev-lo a identificar marcas de suas lnguas no extenso vocabulrio do seu livro. Conhecidos no Brasil pela denominao de minas ou jejes, entre eles, fons ou daomeanos, minas, jejes, ardras, mahis, guns, entraram no Brasil em grandes contingentes durante o sculo XVIII para os trabalhos de garimpagem nas minas de ouro e diamantes no

  • YEDA PESSOA DE CASTRO

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    interior de Minas Gerais, Bahia, Mato Grosso e Gois, simultaneamente com a produo de tabaco na regio do Recncavo baiano, nas cidades de Cachoeira e So Felix.

    Sua concentrao foi de tal ordem em Vila Rica que chegou a ser corrente entre a escravaria local um falar de base ewe-fon, registrado em 1731/41 por Antnio da Costa Peixoto em A obra nova da lngua geral de mina, s publicada em 1945, em Lisboa. o documento lingustico mais importante do tempo da escravido no Brasil, um caderno contendo mais de 700 palavras e expresses daquele falar. Por sua vez, Nina Rodrigues, ao findar do sculo XIX, tambm teve a oportunidade de registrar um pequeno vocabulrio jeje-mahi (fon) de que ainda se lembravam alguns dos seus falantes na cidade do Salvador em sua poca (Yeda Pessoa de Castro, A lngua mina-jeje no Brasil, Fundao Joo Pinheiro, 2002).

    Este povo trazido do Golfo do Benim foi responsvel pela construo da estrutura conventual de base jeje-nag do prestigioso modelo urbano do candombl nag-queto da Bahia, introduzindo, entre outros elementos sagrados do seu ritual, os tambores rum, rumpi e l que compem a orquestra cerimonial, o toque do adarrum para acelerar o transe de possesso, sua divindade anci Nanamburucu, o altar das oferendas ou peji, termos que Mendona registra no glossrio, mas equivocadamente lhes atribui uma origem iorub. O mesmo engano ele comete quanto procedncia do acaraj, do abar, do aca, do angu e do bob, comidas com que os jejes-minas enriqueceram a cozinha brasileira.

    O Captulo V dedicado a analisar a fontica e a morfologia do quimbundo, lngua falada pelos ambundos na regio central de Angola, em Luanda, sua Capital, Malanje, Bengo at Ambriz, em territrios equivalentes ao antigo reino do Ndongo que os colonizadores portugueses comearam a chamar de Angola, do ttulo Ngola, o divino, atribudo aos soberanos locais.

    Tomando o quimbundo como paradigma para falar da estrutura das lnguas do grupo banto, a anlise de Mendona est fundamentada em duas obras clssicas e tambm pioneiras no domnio dos estudos da lingustica africana: Colleco de observaes grammaticaes sobre a lingua bunda, ou angolense e Diccionario abreviado da lingua congueza, de Cannecattim (Lisboa, 1859) e Introduction to the phonology of the Bantu Languages, de Carl Meinhof (Berlim, 1932).

    De posse da lio desses afamados autores e da obra revolucionria de Bleek com a descoberta da grande famlia banto, pilares da lingustica africana moderna, sob o ponto de vista morfofonolgico, Mendona

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    analisa as adaptaes, ao sistema lingustico do portugus, dos lexemas de base quimbundo que foram incorporados pelo portugus no Brasil, para tratar das dez classes de prefixos nominais, uma caracterstica comum das lnguas do grupo banto.

    Ordenam-se em pares (cl. 1/2, 3/4, etc.) para marcar o singular e o plural dos nomes, permitindo ainda delimitar um valor semntico, como o aumentativo, o diminutivo, o locativo, o infinitivo dos verbos. Lembremos, por exemplo, da prpria denominao ba.ntu, pessoa, plural de mu.ntu, pessoas, com o prefixo nominal cl.1/2 mu/ba, que indica seres vivos, tambm observados em muitos aportes lexicais africanos ou bantuismos correntes na lngua portuguesa em geral, a exemplo dos substantivos muleque, criana, e mucama. Estudos recentes atestam que, a depender da lngua, essas classes variam entre 18 e 19 (Meeussen, Reconstructions Grammaticales du Bantou,Tervuren, 1965).

    Esse captulo quinto vai servir de subsdio para que, no captulo seguinte, Mendona procure sistematizar os fatos da nossa linguagem popular que lhe parecem resultado direto do contato de lnguas africanas com o portugus europeu antigo, a partir da anlise das transformaes e adaptaes que resultaram desse contato, ressaltando sempre a interferncia do quimbundo, qual ajuntamos a do quicongo, falado na regio de Mbanza Congo, no antigo reino do Congo. So duas lnguas muito assemelhadas dentro do grupo banto como se observa entre as lnguas romnicas diante da proximidade evidente do espanhol com o portugus, razo pela qual elas foram colocadas na mesma zona lingustica do domnio banto, a zona H, na classificao de Malcolm Guthrie em The classification of the Bantu languages (1948, Oxford).

    Com ligeiras alteraes, em O portugus do Brasil, publicado pela Civilizao Brasileira em 1936, o mesmo estudo reproduzido entre as pginas 183 e 194.

    no Captulo V em que se encontra a maior contribuio que a obra de Renato Mendona trouxe para os estudos da constituio do portugus brasileiro, ao introduzir e legitimar nessa histria a participao dos falantes negroafricanos, o que ainda hoje encontra certa resistncia por parte de fillogos e linguistas brasileiros. Preferem continuar atribuindo a fatores de ordem extralingustica o afastamento do portugus do Brasil do de Portugal, ignorando que, no isolamento territorial de trs sculos a que foi submetido pela Coroa Portuguesa, o Brasil era habitado por um contingente de negros escravizados, superior em nmero ao de portugueses, e falavam lnguas nativas articuladamente humanas. Levados a adquirir a lngua do colonizador como lngua estrangeira, terminaram

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    imprimindo, necessariamente, nesse novo falar hbitos lingusticos de seu falar materno que proporcionaram a configurao da modalidade da lngua portuguesa transplantada para o Brasil.

    Na pgina 106 da edio de 1935, Renato Mendona mostra-se contra essa postura discriminatria da parte dos estudiosos brasileiros em relao s lnguas negroafricanas, ao afirmar que, na gnese da sua constituio, o dialeto brasileiro, alm da separao do portugus do Brasil do portugus de Portugal, teve na Amrica outros fatores diferenciais.

    Referia-se participao dos falantes indgenas e africanos, mas criticando a proeminncia indevida que se conferiu ao ndio com prejuzo do negro na formao da nacionalidade brasileira. Ao final, termina por dizer que o negro, suado e esfalfado, trabalha sob o chicote, no oferece a mesma poesia do ndio aventureiro que erra pelas florestas, atribuindo essa ideia fantasiosa, ento popularizada, ao imaginrio construdo pelo indianismo da literatura de Gonalves Dias.

    No que diz respeito especificamente influncia de lnguas negroafricanas no portugus do Brasil, Mendona levanta as mesmas questes que Joo Ribeiro fizera antes dele, em 1888, seguido, anos depois, em 1946, por Gladstone Chaves de Melo em A lngua do Brasil (Agir Editora,) e, em 1963, por Serafim da Silva Neto, em Introduo ao estudo da lingua portuguesa no Brasil (Instituto Nacional do Livro/MEC). O largo intervalo entre as poucas publicaes que abordam o tema tem servido de motivo para muitos pesquisadores encontrarem uma desculpa para justificar a falta de interesse em estudar as lnguas africanas e sua influncia no Brasil, sob o pretexto declarado de que no valeria mais a pena voltar a investigar o assunto, uma vez que esse j havia sido esgotado por Jacques Raimundo e Renato Mendona na primeira metade dos anos 1930.

    Joo Ribeiro que, em 1888, inaugurou timidamente o captulo da histria da lngua portuguesa no Brasil em seu Diccionario Grammatical, define e analisa o que chama de elemento negro como toda a espcie de alteraes produzidas na linguagem brasileira por influncia das lnguas africanas faladas pelos escravos introduzidos no Brasil, afirmando que essas alteraes, ao contrrio do que se pensava referia-se ao trabalho pioneiro de Macedo Soares (1880) , eram bem mais profundas tanto no lxico quanto no sistema gramatical da lngua portuguesa. Entre elas, mencionava a reduo das formas verbais e a simplificao das flexes de plural na fala popular, o que, segundo ele, poderia ter sido reforado pela influncia das lnguas indgenas brasileiras, pelo uso, at o sculo XVIII no Brasil, de uma lngua geral de base tupi-guarani.

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    Neste momento, preciso lembrar que Renato Mendona no ignora a importncia das lnguas indgenas nesse processo, mas com certa cautela, parecendo antever a advertncia que, vinte anos depois, o foneticista brasileiro Joaquim Mattoso Cmara, em Para o estudo da fonmica em portugus (1954, Organizao Simes), faria sobre aquela lingua geral que, segundo ele, no deve ser confundida com uma suposta persistncia dos falares tupis na sociedade europeia do meio americano, uma noo ainda vigente em vrios meios. No estudo mais recente, de 1996, outro foneticista brasileiro de renome, o indianista Aryon DallIgna Rodrigues, em um artigo sobre As lnguas gerais sul-americanas (Papia 4:2: 6-18), categrico ao esclarecer que j no sculo XVIII, essa lngua no era nada mais do que um tupi-guarani simplificado devido a convivncia com diversos povos e respectivas lnguas, mas sem explicitar quais eram esses povos, eximindo-se, assim, de ressaltar a participao das lnguas negroafricanas na constituio da denominada lngua geral.

    Em 1946, Gladstone Chaves de Melo, em A lngua do Brasil, comea o Captulo III A influncia africana, chamando a ateno para o fato da bibliografia sobre a questo ser bastante pobre e que geralmente a paixo tem obscurecido o senso crtico dos pesquisadores. Depois de fazer uma avaliao crtica na obra de Renato Mendona, Melo admite que a influncia mais profunda das lnguas africanas no portugus brasileiro se processou na morfologia, na simplificao e reduo das flexes de plural e das formas verbais na fala popular. Alm desse tipo de influncia que ele chama de vertical, considerando-a mais profunda que a do tupi, reconhece ainda uma influncia horizontal, a da contribuio ao lxico, nas suas palavras, menos extensa que a do tupi, mas igualmente significativa para o enriquecimento da lngua portuguesa.

    Seguindo essa linha de pensamento, Serafim da Silva Neto, no estudo j mencionado, admite que a influncia africana na lngua de Brasil se fez sentir por ao urbana e por ao rural, a primeira foi exercida nas cidades do litoral pelas mucamas e negros de servios domsticos, enquanto a segunda operou-se nos campos do interior em face da numerosa escravaria carreada para as fainas agrcolas. E complementa, dizendo que no tocante aos ndios, que cedo saram da cidade, s podemos falar em influncia rural.

    Tanto Silva Neto quanto Melo retomam e confirmam a observao de Mendona sobre o carter arcaizante e conservador da lngua no Brasil que a tornou diferenciada da de Portugal, destacando na concluso que a lngua portuguesa nunca deixou de ser ideal lingustico no Brasil. No entanto, ao contrrio de Mendona, ambos terminam por atribuir o

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    peso maior das razes que deram lugar a toda essa discusso quase que exclusivamente aos emprstimos africanos ao vocabulrio brasileiro, uma alegao muito popularizada e acolhida em grande parte pelo nosso meio acadmico.

    Em 1979, publicado pela Padro, no Rio de Janeiro, A unidade lingustica do Brasil, da autoria de Slvio Elia, outro conceituado fillogo brasileiro, que, a exemplo de Melo e de Silva Neto, diminui a importncia da influncia africana no portugus do Brasil e aventa a hiptese de crioulizao. Esse tema, que pela primeira vez foi tratado pelo portugus Adolfo Garcia em A lngua portuguesa, editada no Porto, em 1880, levanta uma questo que Mendona descarta, ao afirmar que no Brasil, deve ter surgido dialetos crioulos, porm de existncia efmera e cedo desapareceram, uma opinio compartilhada pela maioria dos pesquisadores brasileiros da atualidade.

    Quanto tentativa para justificar a diferena entre a pronncia da lngua portuguesa no Brasil e em Portugal, sem dispor dos recursos de dados de pesquisas cientificamente mais elaboradas, Mendona no passou de uma explicao muito simplificada, a de que a pronncia portuguesa possui mnima complexidade das slabas, gerada pelo enfraquecimento das vogais e o acmulo das articulaes. Em outros termos isso implica em dizer que a proximidade relativa entre a estrutura fonolgica do portugus antigo e das lnguas do grupo banto, entre elas, o quimbundo ressaltado por Mendona, potencializou a continuidade do tipo prosdico de base voclica do portugus antigo na modalidade brasileira, afastando-a do portugus de Portugal, cuja tendncia a de eliminar vogais tonas, criando grupos consonnticos impronunciveis pelos brasileiros (Yeda Pessoa de Castro, 2001/2005).

    Quanto aos Captulos VII Folclore, em grande parte dedicado a discutir totemismo e feitiaria na frica e suas importaes nas macumbas do Brasil, e VIII O negro na literatura brasileira, ambos esto arraigados das teorias preconceituosas e europeizantes vigentes poca e devem ser vistos como lugares de memria dos estudos afrobrasileiros.

    O Vocabulrio registrado por Mendona contm 375 termos, segundo ele, de origem africana, usados no Brasil ou empregados por escritores brasileiros, entre os quais a maioria proveniente do quimbundo, como ele acentua, mas tambm do quicongo, comprovado por pesquisas recentes, as quais tambm apontam os termos fon identificados por engano como de timo iorub, sobre o que j comentamos e justificamos. Outro fato positivo e inovador a indicao das reas geogrficas de ocorrncia

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    de cada termo e as de uso associado a diferentes contextos socioculturais de linguagem, bem assim daqueloutros que j eram de uso geral e correntes no Brasil a ponto de tomarem o lugar de seus equivalentes em portugus, sem conscincia, por parte dos falantes brasileiros, de que se tratavam de palavras africanas, muito menos de origem banto. Entre eles, registrados por Mendona, caula por benjamim, cachaa por aguardente, cochilar por dormitar, xingar por insultar, marimbondo por vespa, mulambo por trapo que ainda so desconhecidos ou pouco usuais no linguajar lusitano.

    Ao contrrio dos bantuismos que circulam em diferentes contextos socioculturais de linguagem, os termos do iorub, em nmero relativamente menor no glossrio, procedem da linguagem religiosa afrobrasileira, ou seja, de uso entre os terreiros de candombl. Trata-se, principalmente, de nomes de suas entidades Oxum, Ogum, Oxssi, Xang que comearam a ser conhecidos a partir do momento em que passaram a gozar de certo prestgio sociocultural no Brasil e divulgados por compositores da msica popular brasileira, entre eles, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Vinicius de Morais.

    Destaque para mandinga, mianga, senzala e jimbo porque j se encontram registrados no sculo VII, na obra satrica do poeta baiano Gregrio de Matos e Guerra (1633-1696). No sculo seguinte, como termos do vulgo no Brasil, mereceram verbetes no Vocabulrio Portugus Latino de Raphael Bluteeau, publicado na primeira metade do sculo XVIII, em Lisboa (1 vol. 1712 e 10 vol. 1728), e, ao final do mesmo sculo, em 1889, no dicionrio de Joo Ribeiro, entre os 57 verbetes que ele classifica de africanismos.

    Entre tais exemplos, s a palavra jimbo, com o sentido de dinheiro, no foi incorporada pelo uso geral ao portugus do Brasil, no passando da categoria de gria, enquanto cabao e mataco, que nomeiam partes do corpo humano e funes sexuais, tambm continuam marginalizados como termos chulos, de baixo calo. No entanto, graas a sua incluso em recentes repertrios da nossa msica popular, o bantuismo bunda passou a ser um termo usado por todos os brasileiros, sem nenhum constrangimento. Por outro lado, senzala, assim como bangu, banzo, mucama j so termos de aspecto arcaizante, por associados ao tempo da escravido, mas que tambm denunciam a antiguidade do povo banto no Brasil, tese defendida por Mendona e reconhecida por parte dos pesquisadores que se dedicam a estudar as marcas de africania no portugus brasileiro.

    Outra informao importante da anlise do vocabulrio de Mendona, que vale comentar, a definio de samba como dana

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    de negros, seguida da explicao de que hoje termo bem vivo no sentido de composio musical. A palavra samba, do timo quimbundo/quicongo kusamba, significa rezar, orar para os deuses e ancestrais, sempre festejados com danas, cnticos e msicas, celebraes que certamente eram vistas com estranheza e de carter ldico pela sociedade catlica circundante. Contagiado pela cadncia rtmica e gestual da dana, o que antes era dana de negros foi esvaziado do seu contedo religioso original e o samba-orao negroafricano foi apropriado na categoria de gnero musical-danante para se tornar mundialmente reconhecido como a mais autntica e representativa expresso da musicalidade brasileira.

    No Vocabulrio, merece reparo algumas etimologias incorretas, mas resultado, obviamente, da limitao da bibliografia de que Mendona dispunha poca. No entanto, essa mesma bibliografia fez com que ele atribusse origem tupi palavra banto mocot, com certeza levado por aquela onda do indianismo brasileiro que ele criticava. O mocot ou mo de vaca, iguaria muito popular no Brasil, banto. Jamais poderia ser de origem indgena. Os indgenas brasileiros desconheciam o gado bovino. curioso, porm, observar que os grandes dicionrios brasileiros da lngua portuguesa, Aurlio e Houaiss, insistem em cometer o mesmo erro.

    Enfim, procurei fazer uma anlise criteriosa do campo conceitual da sua obra, que faltou nas edies anteriores, reinterpretando os conceitos vigentes sua poca luz de novos conhecimentos, com o objetivo de salientar a importncia de um estudo que no foi valorizado como deveria em razo de preconceitos epistemolgicos e histricos que ainda hoje permeiam e o domnio da filologia e da lingustica em relao influncia africana no portugus do Brasil.

    Enfim, devo confessar que, ao reler esta monografia de Mendona, que h alguns anos passados despertou em mim o propsito de levar adiante a pesquisa sobre a participao de falantes africanos na formao da lngua do Brasil e buscar entender onde se encontram essas contribuies que afastaram o portugus do Brasil de Portugal, compreendi que nossos pesquisadores ainda tm uma dvida a pagar a Renato Mendona, cobrada por ele pgina 103 da edio j mencionada, ou seja, seguir novos trilhos e organizar planos de pesquisas dialetolgicas por todo o pas. Em outras palavras, os dados assim obtidos permitiro uma correta interpretao das culturas negroafricanas, dos seus cdigos, do seu resgate do mbito meramente folclrico ou ldico, da sua valorizao e adequada difuso, cujo avano, alm de subliminar passe a ser explcito e visvel no Brasil.

    A influncia africana no portugus do Brasil um estudo de notvel viso antropolgica e lingustica, mas que deve ser lido com senso crtico,

  • PREFCIO

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    levando-se em considerao o contexto histrico e sociocultural da poca em que foi escrito. Do contrrio no estaremos fazendo historiografia, nem cincia.

    Pela vontade de saber que nele se expressa, pelo esprito inovador e pelo seu comprometimento com as grandes questes do seu tempo, ainda atuais, muito bem-vinda e merecida esta nova edio de A influncia africana no portugus do Brasil, comemorativa dos cem anos de Renato Firmino Maia de Mendona.

    Cidade de So Salvador da Bahia, setembro de 2012.

    Yeda Pessoa de CastroDoutora em Lnguas Africanas

    Autora de Falares africanos na Bahia(Rio de Janeiro: Topbooks/Academia Brasileira de Letras, 2001/2005)

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    Prefcio de Rodolfo Garcia

    O Prof. Renato Mendona estuda nesta monografia a influncia que as lnguas africanas tiveram no portugus falado no Brasil. O tema dos mais interessantes, a exigir competncia especial e investigao acurada. Uma e outra, cumpre adiantar, se revelam nestas pginas pelo mtodo adotado e pela bibliografia, que abona as concluses estabelecidas.

    Os estudos de lingustica africana no tm sido cultivados no Brasil como sua importncia est a pedir. Afora algumas contribuies lexicogrficas de Macedo Soares, de Neves Leo, citadas por Beaurepaire- -Rohan, e deste por conta prpria, pouco mais pode ser trazido colao. Entretanto, o negro contribuiu tambm, menos que o ndio, certo, para a formao do vocabulrio brasileiro, como demonstra o avultado nmero de nomes designativos, de muitas espcies de iguarias, de plantas, animais, etc., a ele incorporados.

    O inventrio desses nomes, seu exame etimolgico, faz o autor com segurana no vocabulrio que fecha seu livro. Nos primeiros captulos estuda a Etnografia africana, a penetrao do continente negro, a obra dos exploradores e missionrios, para abordar a classificao etnogrfica daqueles povos baseada na lingustica, desde os ensaios de Lepsius e Meyer, at as classificaes modernas de Delafosse, Homburger e Drexel. Em seguida passa a tratar dos povos importados pelo trfico negreiro para o Brasil, com os seus trs centros principais de atrao: Pernambuco, Bahia e Rio.

    De modo geral, pode-se dizer que para essa imigrao concorreram apenas dois grupos tnicos: o Bantu, com as suas diversas denominaes

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    RODOLFO GARCIA

    tribais, para o Norte e para o Sul; o Joruba, ou Nag, tambm inado de designaes vrias, para o Centro. As necessidades da lavoura, como depois as necessidades da minerao, determinaram, ou melhor, foraram a imigrao, bem assim a consequente distribuio dos negros por onde eles se faziam precisos. Nos dois primeiros sculos, Pernambuco e Bahia foram os grandes centros de condensao africana disse Oliveira Viana, e repete o autor; a minerao, no sculo seguinte, erigiu o Rio de Janeiro em um terceiro centro, porventura mais importante do que os outros dois. Este recebeu em maior poro os representantes do grupo Bantu, principalmente, os quimbundos, que j figuravam no Norte, em Pernambuco, ao passo que na Bahia foi o Joruba com os nags, o grupo predominante.

    Seria para lembrar que na rebelio servil de 1835, nessa ltima provncia, entre os duzentos e trinta e quatro processos-crimes dos sediciosos, se encontram cento e sessenta e cinco em que os nags eram implicados.

    Para o autor, o quimbundo exerceu mais funda influncia no portugus do Brasil do que o nag. Assim deve ter sido efetivamente, e o vocabulrio at hoje recolhido prova-o de certo modo. Entretanto, possvel que investigaes mais demoradas venham a apurar maior contingente joruba do que se conhece. Observe-se que o quimbundo, desde Canecatim at Oliveira e Francina, C. da Mata, Pereira do Nascimento e outros, sempre mereceu melhores cuidados; do nag, que chegou a ser lngua geral entre a multido negra do Brasil, bem pouco ficou, alm dos vocabulrios tomados pelo pintor alemo Rugendas e impressos por A. Baldi, em seu Atlas Ethnographique du Globe (Paris, 1822), e pelo viajante francs Douville, em 1833, esse comunicado a DAvezac pelo capito Sandes Ranger e por ele includo em sua Notice sur le Pays et le Peuple des Ybous en Afrique (Paris, 1844).

    Nos captulos seguintes o autor estuda a fontica e a morfologia do quimbundo, a influncia africana no portugus, o folclore e o vocabulrio. Quanto deles se pode dizer que representam, com os que os precedem, uma soma considervel de pesquisas, servidas de erudio e crtica apreciveis. Em resumo, o trabalho do jovem Professor no tem a pretenso de ser definitivo, como ele prprio declara; , porm, contribuio pondervel, que o tempo e o estudo tero de ampliar, para o melhor do conhecimento do nosso idioma.

    1948

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    Siglas

    A. Antropos.

    B. M. N. R. J. Boletim do Museu Nacional do Rio de Janeiro.

    B. S. C. A. S. L. Boletim da Segunda Classe da Academia das Cincias de Lisboa.

    R. A. B. L. Revista da Academia Brasileira de Letras.

    R. B. Revista Brasileira.

    R. I. G. H. B. Revista do Instituto Geogrfico e Histrico da Bahia.

    R. I. H. G. B. Revista do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro.

    R. F. H. Revista de Filologia e Histria.

    R. L. P. Revista da Lngua Portuguesa.

    R. S. S. G. L. B. Revista da Seo da Sociedade de Geografia de Lisboa no Brasil.

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    Captulo I

    Etnografia Africana

    A penetrao do continente negro. A colonizao africana e a obra dos exploradores e missionrios. Classificao antropolgica: suas falhas. Classificao etnogrfica baseada na lingustica. Os semito-camitas no Mediterrneo. O grupo cuchito-camtico. Povos primitivos da frica. A famlia

    negra. Repartio geogrfica dos sudaneses e bantu.

    O serto da frica permaneceu at meados do sculo XIX um enigma geogrfico. So clebres as afirmaes de Aristteles sobre a inabitabilidade deste continente, as quais, apesar de desmentidas pela experincia, parece se fixaram com o peso dos anos na mentalidade europeia.

    Povos, lnguas, costumes, religies, geografia, histria da frica, tudo em suma foi desconhecido ou confundido nas denominaes imprecisas herdadas dos romanos

    Os primeiros conhecimentos seguros datam do sculo X quando escritores rabes, depois de excurses pelo Sudo, assinalaram ali a existncia do poderoso e antigo Estado negro, o imprio de Ghana1.

    Com os descobrimentos do sculo XV, continuou a explorao do litoral africano e regies prximas, e assim perdurou a situao at meados do sculo XIX2.

    Os primeiros exploradores desta regio iam levados pela caa ao negro, j escasso no litoral para o trfico de escravos. No incio do sculo XVII, as atenes dos portugueses voltaram-se para o reconhecimento das estradas interiores da frica, com tal objetivo3.

    Os missionrios que, na piedosa obra da catequese, se empenharam, contriburam grandemente para a penetrao do continente negro. E j

    1 M. Delafosse, Los negros, 1931, p. 27.2 Konrad Kretschmer, Historia de la Geografia, Barcelona, 2.a ed., p. 142.3 O. Martins, O Brasil e as colnias portuguesas, Lisboa, p. 236.

  • RENATO MENDONA

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    em 1643 e 1697, os jesutas Francisco Porcnio e Pedro Dias publicavam trabalhos sobre o quimbundo.

    Com efeito, a obra ento iniciada continua at os nossos dias em que se citam, entre missionrios, linguistas e etngrafos especializados em assuntos africanos como Frobenius, A. Le Roy, Courtois, Seligman e inmeros outros.

    Todavia, as causas determinantes da explorao do interior da frica foram variadas. Por um lado, econmicas com o desenvolvimento da indstria europeia, que carecia mais e mais de matria-prima, e o aumento de populao que absorvia as terras necessrias ao cultivo destes materiais. Da a procura de novas terras para estas satisfaes. Tambm devemos tomar em considerao o impulso dado pela African Association de Londres, a qual organizou um plano cientfico de penetrao. Procurou-se a soluo de problemas geogrficos como os do Zambeze e do Congo, e outrossim das questes do curso do Nger e das fontes do Nilo.

    Desta maneira, exploradores de nacionalidades vrias cruzaram os recnditos do continente e depararam os tipos tnicos mais diversos.

    Descritos primeiramente pelos gegrafos, em seguida pelos antroplogos, entre os etngrafos que os povos africanos despertam o mais vivo interesse.

    E diante das centenas de nomes de povos, avulta o valor de uma classificao baseada na lingustica sobre a firmada na antropologia, que exige, para um resultado pequeno, uma soma avultada de dados.

    Guiados pela ocupao lingustica e seguindo a distribuio geogrfica, podemos na etnografia africana distinguir vrios grupos: o semito-camtico, o etope ou cuchito-camtico, o negrilho e o hotentote- -boximane e, sobretudo, a famlia negra4.

    Os semito-camitas ocupam a faixa mediterrnea e compreendem os berberes de Marrocos (mouros mestiados com rabes e sudaneses), da Arglia (cbilas), de Tnis (zuavos) e Trpoli. A populao camtica do Egito formada pelos fellahin do Baixo Nilo e pelos coptos que vivem nas cidades. Convm notar no Alto Egito os bedya ou berberines nbios. Atrs dos povos do litoral, vivem ao oeste do Saara os tuaregues, e abaixo deles, os fulbi ou peul5.

    O grupo cuchito-camtico ou etope se estende pela Abissnia onde a influncia milenar do rabe se reflete at na antiga lngua sagrada, o geez, tronco de vrios dialetos atuais; pela Nbia de populao constituda pelas

    4 J. Deniker, Les races et les peuples de la terre, Masson, 2 edio, 1926, p. 513.5 Michael Haberlandt, Etnografia, Barcelona, 2.a ed., 1929, pp. 300-303.

  • ETNOGRAFIA AFRICANA

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    tribos bedsha, e finalmente os galas, somalis e danakil, povos do nordeste africano, e os massai, de feio etope, tambm se prendem a este grupo.

    Os negrilhos ou pigmeus habitam as florestas equatoriais da frica e mais especialmente a bacia do Congo. Tm sido eles alvo principal dos estudos da escola Histrico-Cultural e so compreendidos num dos crculos culturais organizados por Schmidt6.

    Os hotentotes e boximanes consideram-se os povos mais primitivos do continente. Os boximanes, antigamente espalhados em quase toda a frica do Sul, limitam-se hoje ao deserto de Kalahari, enquanto os hotentotes vivem no sudoeste7.

    A famlia negra bifurca-se em ramificaes muito distintas: sudaneses e bantu. No confronto de ambas, saltam diferenas de lnguas, de populaes e de cultura. Os sudaneses apresentam uma grande fragmentao lingustica oposta unidade substancial das lnguas bantu. Enquanto as camadas tnicas dos sudaneses so influenciadas pelos elementos hamticos (berberes e tuaregues) e semtico (rabes) homogeneamente, a influncia hamtica (galas) predomina nos povos bantu8.

    As diferenas de cultura inclinam-se favoravelmente para os sudaneses, graas ao contato com os rabes, e tornou-se muito conhecida no s a arquitetura sudanesa bem como a Arte negra de Benin.

    Os etngrafos repartem os negros do Sudo em ocidentais, centrais e orientais.

    Os negros ocidentais, quase todos habitantes do litoral, estendem-se pela costa ocidental at o Nger no interior, pelas costas da Guin, dos Escravos, do Ouro e da Pimenta, e compreendem mais algumas tribos da Senegmbia e do Senegal. A estavam os clebres reinos africanos Dahom, Mandinga, Achanti e Benin. Vivem nesta regio os yolof, mandingas, felup, achanti, kru, ewe e yoruba.

    Sudaneses centrais so os hausss, e os quatro reinos negros Born, Baghirmi, Wadai e Darfur. Tambm h os kanuri, songhai e yedina.

    Finalmente, os orientais se constituem das populaes dinka, bari, shiluk, nuer e nuba9.

    Os povos bantu possuem uma homogeneidade caracterstica. Alargam-se do Congo at o norte no Kalahari no sul da frica. Nesta gigantesca rea geogrfica salientam-se trs grandes grupos: os povos do Congo, as tribos da frica oriental e as tribos do sul.

    6 Fernando Pires, A forma, primitiva da famlia, Rio de Janeiro, 1930, pp. 64-78.7 A. C. Haddon, Ls races humines et leur repartition gographique, Paris, Felix Alan, pp. 34-36.8 A. H. Keane, Man past and present, Cambridge, 1920, p. 44.9 Keane, Man past and present, pp. 78-83.

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    Os povos do Congo compreendem cerca de cinquenta tribos diversas, mais ou menos importantes, a que pertencem tambm os povos kassai10.

    Dentre as tribos da frica oriental, as mais relevantes so os waniamwesi e os dshaga, povos dos lagos; os wahehe, zulus e watussi, entre os lagos e o litoral, e junto ao litoral os suaheli, completamente arabizados. No sudeste, ainda encontramos uma tribo bantu, os wangoni.

    As tribos bantu do sul mais conhecidas so os cafres do sudeste, os matabele, bechuanas e os cafres do norte. Ainda notveis no sudeste h os ovaherero, os ondonga e os ovambo, alm dos povos do Zambeze.

    10 M. Harberlandt, Etnografia, p. 310.

  • 37

    Captulo II

    Lingustica Africana

    Classificao tradicional de Schlegel. A classificao genealgica. Ensaios

    de classificao das lnguas africanas: Lepsius e Meyer. A classificao

    de Hovelacque. A classificao moderna de Delafosse e Homburger. A

    classificao mais moderna de Drexel. Opinio de W. Schmidt a respeito de

    Homburger.

    Friedrich Von Schlegel, autor da monumental obra que exerceu grande influncia no domnio lingustico em princpios do sculo passado Ueber die Sprache und Weisheit der Indier (1808), dividiu as lnguas do mundo em duas classes: uma constituda pelo snscrito e suas con gneres e a outra por todas as demais lnguas.

    As primeiras possuem um crescimento orgnico das razes por meio da flexo e nas segundas este crescimento se realiza com o acrscimo de afixos (prefixos e sufixos)11.

    Mas, como afirma Jespersen, Schlegels bipartion of the languages of the world carries in it the germ of a tripartion12.

    Com efeito, Schlegel teve sua classificao alterada pelo irmo A. W. Schlegel e linguistas posteriores, que a transformaram na tradicional diviso das lnguas em isolantes, aglutinantes e flexivas13.

    Seguindo esta classificao, as lnguas africanas dos negros estariam compreendidas no grupo das aglutinantes.

    Esta classificao tradicional, porm, j prestou bons servios e hoje no satisfaz mais s exigncias cientficas.

    Sem dvida, classificao de valor e utilidade em nossos dias h somente a genealgica que se baseia sobre a histria das lnguas. Nela sobressai um critrio slido qual o ditado pela continuidade morfolgica14.

    11 O. Jespersen, Language, its nature, development and origin, London, 1934, p. 35.12 Idem, p. 36.13 Idem, pp. 36 e 37.14 Meillet et Cohen, Les langues du monde, Champion, p. 1.

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    A classificao genealgica grupa as lnguas como ramos de um tronco primitivo de que so alteraes. Este tronco, quando no conservado, reconstitudo de acordo com as lnguas cuja comunidade de origem se revela pela comparao. o caso do germnico comum e do eslavo comum reconstrudo pelo mtodo comparativo, ao passo que o latim foi conservado pelos monumentos literrios15.

    Por este modo, estabeleceram-se as grandes famlias de lnguas, entre as quais situou o grupo bantu ao lado do indo-europeu, do semtico, do camtico, do fino-ugriano, do dravdico, do indo-chins e do malaio-polinsio.

    Todavia, apenas as lnguas bantu so contempladas nesta classificao. Como, porm, deixar de lado as numerosas lnguas sudanesas?

    A dificuldade aumenta se estas lnguas so mais ou menos desprovidas de gramticas, ou se o lxico oferece uma mobilidade estonteante, como as lnguas mand da frica ocidental16.

    A ausncia de documentos e a ignorncia dos estados anteriores destas lnguas, cujo conhecimento histrico no vai alm de cinquenta anos, so lacunas que deixam as classificaes numa lamentvel insegurana.

    Da, no estado atual da lingustica africana, ser uma classificao provisria a mais aceitvel.

    As primeiras tentativas neste sentido fizeram-se no sculo passado. Lepsius, ao publicar sua gramtica da lngua nuba, lanou uma classificao geogrfica em que a frica era dividida em trs zonas lingusticas: a) uma zona do norte, entre o Saara e o Mediterrneo com as lnguas camticas; b) uma zona do centro, entre o equador, o Saara e o Sudo, com as lnguas centrais ou sudanesas; c) uma zona austral com as lnguas bantu.

    Meyer, em seguida, discriminou as lnguas africanas em cinco grupos: rabe e camita ao norte; lnguas centrais, no classificadas; bantu e hotentote.

    Esboos imperfeitos, com nomes vagos que encobriam a misria de conhecimentos, estas classificaes j representam uma iniciativa.

    A velha diviso de Hovelacque repartia os idiomas do continente negro em: a) lnguas da frica meridional, com a lngua dos hotentotes e a dos boximanes; b) lnguas dos negros no bantu, com o wolof, o mand, felpio, o sonrai, o hauss, o bornu, o kru, o egb (de que parente o ioruba ou nag), o ibo, o mitchi, o mosgu, o maba, o baghirmi e as lnguas do alto Nilo, shiluk, dinka, nuer e bari; c) lnguas do grupo bantu com

    15 J. Vendryres, Le language, 1921, p. 354.16 Idem, p. 365.

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    trs ramos: ocidental (principais: congo, quimbundo e herero), central (tekeza e setchuana), e oriental (tte, zulu, cafre e macua); d) o pui ou fula; e) lnguas nubianas, com o nbio, o dongolavi, o tumal, o koldadji e o kondjara17.

    oportuno acrescentar aqui o quadro das 601 lnguas e dialetos da frica, segundo traou Cust. Seu interesse e curiosidade sobretudo para dar ideia da vastido e complexidade da matria so tais que Blaise Cendrars na magnfica edio da sua Anthologie ngre (Paris, 1947), verdadeiro Decameron africano, julgou o esquema de Cust merecedor de citao.

    Ei-lo em poucas linhas:

    Lnguas Dialetos

    1o Grupo Semita 10 9

    2o Grupo Camita 29 27

    3o Grupo Nubio-Fula 17 17

    4o Grupo Negro 195 49

    5o Grupo Bantu 168 55

    6o Grupo Hotentote e Boximane 19 6

    A predominncia da famlia bantu com suas 168 lnguas assim esmagadora, principalmente devido sua unidade, e empregada por milhes de Africanos da Cafraria ao golfo da Guin. So lnguas excessivamente ricas, e at cada modo de andar se exprime por um nome especial...

    Ultimamente Maurice Delafosse, africanista de renome, fez uma classificao das lnguas sudanesas que se torna completa com as das lnguas bantu da autoria de Homburger.

    Ambas pertencem a especialistas de apurado cunho cientfico, sendo que Delafosse insiste muitas vezes sobre o carter provisrio do seu esforo.

    Reconhecendo que na lingustica africana s se projetam duas individualidades fortes: lnguas bantu e lnguas no bantu, divide Delafosse as lnguas do continente negro em dezessete grupos, dos quais um o bantu, constituindo os demais as lnguas sudanesas e guineanas18.

    17 Abel Hovelacque, La Linguistique, 4 ed., p. 474.18 M. Delafosse, in Les langues du monde, pp. 479-556.

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    Com efeito, as lnguas do Sudo e da Guin compreendem os dezesseis grupos seguintes que vamos enumerar rapidamente19:

    I. Grupo nilo-chadiano (30 lnguas) o mais setentrional e sem dvida o mais vasto pois se estende pelo vale do Nilo de Issuan at perto de Fachoda, contornando o lago Chad. A este grupo, pertence o kanuri ou lngua dos Bornus falada no Brasil.

    II. Grupo nilo-abissnio (15 lnguas) ocupa o vale do mdio Nilo Azul e o do Nilo Branco. So deste grupo as lnguas dos chilucos, nuer e dinka a que j nos referimos.

    III. Grupo nilo-equatoriano (26 lnguas) subsequente ao grupo nilo-abissnio, comea ao norte na altura de Lado, estendendo-se at a 6o de latitude sul. A lngua dos massai pertence a este grupo.

    IV. Grupo cardofoniano (10 lnguas) forma geograficamente uma espcie de tampo isolador, entre o grupo nilo-chadiano e o nilo-abissnio. Meinhof foi quem estudou esse grupo.

    V. Grupo nilo-congols (19 lnguas) de rea muito estreita, insinua-se entre as reas dos grupos nilo-abissno, nilo- -equatoriano e bantu.

    VI. Grupo ubanguiano (25 lnguas) o limite setentrional deste grupo o alto Mambr e o meridional, o Ituri. Deriva seu nome do rio Ubangui.

    VII. Grupo chari-uadiano (12 lnguas) seu domnio estende-se ao sul da parte ocidental do grupo ubanguiano.

    VIII. Grupo chariano (15 lnguas) forma ao longo do mdio e alto Chari um encravo entre as lnguas norte-ocidentais do grupo anterior.

    IX. Grupo ngero-chadiano (31 lnguas) segue-se ao Oeste aos grupos nilo-chadiano, chari-uadiano e chariano. Faz parte deste grupo o hauss falado por quase 4.000.000 de negros espalhados pelas provncias de Sokoto, Gober, Talma, Katsena. O hauss foi lngua muito falada na Bahia.

    X. Grupo ngero-cameruniamo (66 lnguas) dentre os grupos do Sudo e da Guin o que maior nmero contm de lnguas distintas. Convm notar neste grupo o nup ou nif ou tapa, o iebu ou idjebu, e principalmente o ioruba ou egba ou nag, lnguas essas j faladas no Brasil, havendo a ltima sido lngua adotada pelos sudaneses da Bahia.

    19 M. Delafosse, in Les langues du monde, pp. 479-556.

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    XI. Grupo do baixo-ngero compreende uma nica lngua, djo ou ido, falada no delta do Nger por uma populao negra ou Idjo.

    XII. Grupo voltaico (53 lnguas) ocupa toda a bacia superior dos diversos braos do Volta. Um de seus subgrupos, o gurunsi, compreende oito lnguas entre as quais o nuruma ou nubuli ou guresi grusi ou gurunsi ou grunsi, lngua que foi falada no Brasil pelos negros Galinhas.

    XIII. Grupo ebrneo-dahomeano (48 lnguas) acompanha a costa do golfo da Guin, a Oeste, e confina ao Norte com os grupos ngero-cameruniano e voltaico, tem ainda um encanto na Libria formado pelo gola. Este grupo de todos o mais notvel para ns, porquanto a maioria das lnguas sudanesas faladas no Brasil a ele pertence: mahi (ao Norte de Abome), mina ou g ou gegbe ou popo, hu ou ewe, que era a lngua dos Gges, fanti e tchi ou asanti ou achanti, que usavam respectivamente os negros Fantees e Achanti.

    XIV. Grupo Ngero-senegals (36 lnguas) pela sua extenso territorial ocupa o terceiro lugar depois dos grupos bantu e nilo-chadiano. Salientam-se neste grupo as lnguas: mandinga ou mand ou mali, idioma de grande expanso e tende a ser a lngua de toda a frica ocidental pois j falada por cerca de 4.500.000 naturais; e o sussu ou soso, ambas j foram faladas no Brasil deixando de si vestgios20.

    XV. Grupo brneo-liberiano (24 lnguas) limitado floresta densa situada entre Bandama e Saint-Paul.

    XVI. Grupo guneo-senegals (24 lnguas) possui como mais notveis o peul ou fula, wolof e pepel, que tiveram representantes nos Fulas, Jalofos e Ppeis do Brasil.

    Homburger, mulher de excepcional cultura das lnguas bantu, traou-lhes uma classificao que comparada mais moderna de Drexel no deixa muito a desejar.

    esta a opinio de W. Schmidt: Die Gliederung von Homburger, obwohl auch der geographischen Verbreitung folgend, stimmt durch in einer Reihe von wichtingen Einzelheiten mit der von Drexel ueberein21.

    Portanto enumeraremos esquematicamente os seus trabalhos. Ao lado de uma diviso geral das lnguas bantu em: a) lnguas do grupo 20 Ver Vocabulrio.21 A classificao de Homburger, apesar de tambm obedecer propagao geogrfica, est de acordo com a linha de

    importantes particularidades e em harmonia com a diviso de Drexel. W. Schmidt, Die Sprachfamien und Sprachenkreise der Erde, Heidelberg, 1926, p. 92.

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    sudeste, b) lnguas do grupo sudoeste, e c) lnguas do grupo nordeste22, esmia outra diviso pormenorizada dos falares bantu:

    I. Grupo norte ou ganda, a noroeste do lago Vitria Niansa, de que so falares mais importantes: ganda, nioro, kerewe.

    II. Grupo ruanda, a sudeste do grupo ganda e a nordeste do lago Tanganika; representantes notveis: ruanda e kirundi.

    III. Grupo do nordeste, que se estende pela regio do Kilimandjaro; falares mais conhecidos: kikiu, kamba, tchagga, mochi e siha.

    IV. Grupo norte da costa oriental e pases limtrofes, falares principais: tawetai, tata, tchssu, pokomo.

    V. Grupo da frica oriental, lnguas: nyamwezi, gogo, heho, pogoro, konde.

    VI. Grupo do sudeste compreende a frica oriental portuguesa e o nordeste da Unio Sul Afri cana: lnguas de importncia: tchuana, soto, kololo.

    VII. Grupo zulu com as lnguas: cafre ou xosa, zulu, tbele.VIII. Grupo do centro com as lnguas bemba, senga, tonga.IX. Grupo ocidental, para ns o mais importante, pois contm o

    mbunda, quimbundo, umbundo, lunda, ndongu.X. Grupo congols com os falares hanioka, kele.XI. Grupo nordeste com as lnguas bangui, galoa, benga23.

    Drexel, nos seus trabalhos, vindos luz na conceituada revista Anthropos, classificou as lnguas da famlia negra em trs sries: a) sudanesas, b) bantu e c) bantudeas.

    As bantudeas formam uma espcie de transio entre o bantu e as lnguas sudanesas24.

    Esta classificao como a mais moderna e de base cientfica incontestvel, acha-se ilustrada com uma Carta lingustica que acompanha o texto.

    As lnguas sudanesas so repartidas por Albert Drexel em cinco divises25:

    I. Lnguas wule que compreendem vrios grupos: oriental, central, ocidental e o grupo fang e yaund.

    22 Homburger, Les langues du monde, pp. 575-576.23 Homburger, Les langues du monde, pp. 578-587.24 Kieckers, Die Sprachstamme der Erde, 1931, p. 165.25 W. Schmidt, Die Sprachenfamilien und Sprachenkreise der Erde, pp. 92-110 e Kieckers, op. cit., pp. 153-165.

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    II. Lnguas -ngo e -nke, assim chamadas por ser -nke o sufixo masculino e -ngo o sufixo empregado para designar animais; os principais grupos so bambara, soninke e songai.

    III. Lnguas manfu com um grupo ocidental ou kru, outro central ou egba (a que pertencem o achanti, o ioruba e iebu) e um terceiro oriental ou adamaye.

    IV. Lnguas kanuri das quais as de maior re levo so kanuri e maba.V. Lnguas nilticas, onde avulta o grupo nuba.

    As lnguas bantu distribuem-se por sete ramificaes constitudas pelas:

    I. Lnguas teke que possuem os grupos duala, bongo, lolo, kuba.II. Lnguas songo.III. Lnguas ndonga, em que h os grupos herero, nyamwezi.IV. Lnguas suaheli, que possuem o nika.V. Lnguas konde com os falares sena-nyandja, yao-bemba,

    pokoro-kinga.VI. Lnguas makua das quais sobreleva o tugula.VII. Lnguas sotho com os subgrupos xosa, zulu, tchuana, peli26.

    Finalmente, Drexel estabelece cinco grupos para as lnguas bantudeas:

    I. Grupo norte por sua vez subdividido num grupo norte- -oriental e norte-ocidental.

    II. Grupo norte central que contm o gola e as lnguas zurma.III. Grupo central meridional compreende os subgrupos mossi e

    grussi.IV. Grupo meridional (togo) subdivide-se em lnguas do norte, do

    sul e isoladas.V. Grupo oriental com as lnguas tagoy e kanderma27.

    Assim fica a uma perspectiva rpida e imperfeita sobre o estado atual da lingustica africana no que toca ao elemento negro.

    26 W. Schmidt, op. cit., pp. 85-92 e Kieckers, op. cit., pp. 144-153.27 W. Schmidt, op. cit., pp. 110-114 e Kieckers, op. cit., pp. 165-168.

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    Captulo III

    O Trfico

    Os Portugueses na Guin. Primeiros escravos introduzidos no Brasil. As

    Companhias de Comrcio e o contrabando. O nmero de escravos vindos para o Brasil. Estatsticas remanescentes. Crtica avaliao dos historiadores.

    A populao negra do Brasil atual.

    Os descobrimentos da escola de Sagres, orientada pelo famoso Infante D. Henrique, contaram entre uma de suas consequncias a introduo de escravos pretos em Portugal.

    Foi Anto Gonalves que, em 1441, levou a D. Henrique alguns mouros aprisionados no rio do Ouro.

    O mesmo Anto trocou dois desses mouros por dez negros, na sua volta s costas da frica. Com mais alguns outros capturados na ilha de Arguim, e foram eles os primeiros negros transportados diretamente para Portugal.

    este, na opinio de Fortunato de Almeida, o ponto de partida da Companhia de Lagos, fundada em 1444, cujo objetivo era desenvolver o comrcio e as exploraes no continente negro28.

    Com efeito, a viagem inicial do trfico negreiro foi empreendida por esta Companhia, em uma expedio composta de seis caravelas ao mando do escudeiro Lanarote, a qual transportou duzentos e trinta e cinco cativos.

    J de 1450 at 1455, o suprimento anual de pretos introduzidos em Lisboa orava de setecentas a oitocentas peas, e por volta de 1530, subiam a dez e doze mil os escravos entrados no Tejo, quer para uso da metrpole e colnias, quer a fim de exportao para pas limtrofe29.

    O forte de Arguim, na Guin, construdo desde 1452, facilitava e assegurava as relaes comerciais dos portugueses e foi seguido de outras fortificaes.

    28 Fortunato de Almeida, Histria de Portugal, Coimbra, 1923, tomo H, p. 76.29 Perdigo Malheiro, A escravido no Brasil, Rio de Janeiro, 1867.

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    Pouco depois se iniciava a remessa direta de escravos para o Brasil e os primeiros negros da Guin vieram em 1538 trazidos por um navio pertencente a Jorge Lopes Bixorda, arrendatrio da colnia. Tambm, Duarte Coelho, donatrio de Pernambuco, se interessava na importao de tais peas e a El-Rei escrevera em 1539, rogando iseno de direitos para aquela mercadoria.

    Desta forma, se nos guiarmos pelas Informaes do padre Jos de Anchieta, em 1585, havia na colnia uma populao de 57.000 almas, das quais 14.000 escravos da frica, sendo 10.000 em Pernambuco, 3.000 na Bahia, e cerca de uma centena no Rio30.

    Ferno Cardim, referindo-se ao perodo de 1583 a 1590, cita algarismos bastante diferentes porquanto coloca 2.000 em Pernambuco e perto de 4.000 escravos na Bahia31.

    Atendendo poca, em que a posio geogrfica devia favorecer o Recife, bem como aos algarismos de Anchieta, preferimos os clculos deste, com uma ligeira reduo para 10.000, nmero que menos se afasta do apresentado pelo padre Ferno Cardim.

    Eis por que nos fins do sculo XVI, pensamos que a populao negra do Brasil devia orar por 10.000 pretos, dos quais 6.000 em Pernambuco, 3.000 na Bahia e o restante esparso pelos outros ncleos coloniais.

    At meados do sculo XVII, o trfico permanece entre as mos de particular, que obtinham da Fazenda Real a concesso dos asientos ou privilgios para a importao das peas da frica.

    O Regimento e Ordenaes da Fazenda dEl-Rei, de 17 de outubro de 1516, e o Farol da Alfndega de Lisboa, de 15 de outubro de 1587, estipulavam todos os meios necessrios ao pagamento da dzima aduaneira correspondente venda de negros, ordenando o primeiro que todos os navios com pretos da Guin transitassem por Lisboa, enquanto o segundo regimento facilitava aos que seguissem para o Brasil, a percepo do imposto, no porto de destino.

    Em breve, porm, a concesso de licenas de favor, para fazerem o trfico, a outros que no os detentores do asiento, trazia a runa aos assentistas, que muitas vezes abriam falncia.

    Com o tempo, o trfico passa a ser feito administrativamente e pagos os impostos, existe inteira liberdade para fazer o comrcio de escravos.

    Rumos diversos seguia o Brasil holands que abatecia seu mercado pela Companhia das ndias Ocidentais, a qual no decnio de 1636 a 1645, introduziu 23.163 peas32.

    30 Baro do Rio Branco, Histria do Brasil, Rio de Janeiro, 1930, p. 29.31 Narrativa epistolar.32 Calgeras, A poltica exterior do Imprio, I, p. 307.

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    verdade que a poltica dos asientos, criada por Carlos Quinto, deixa de existir com a completa emancipao de Portugal, no mais orientado ou dominado pela Espanha.

    O xito que tiveram as Companhias de Comrcio da Holanda, assim como o tino poltico do padre jesuta Antnio Vieira indicavam a El- -Rei novas diretrizes. Deu-se a fundao da Companhia Geral do Comrcio do Brasil, criada pelo alvar de 10 de maro de 1649, a qual se no fazia o trfico de escravos, iniciava o sistema do monoplio. A anulao posterior de favores especiais como o monoplio da farinha, vinhos e bacalhau, malgrado o aumento dos fretes para o acar, trouxe a extino da Companhia, em fevereiro de 1720.

    Esta primeira e til tentativa teve suas vantagens, quais a entrada no Brasil de capitais arredios, e mereceu muito ser seguida de outras.

    As guerrilhas das vrias feitorias da frica que se entrechocavam no fornecimento de escravos, as incurses devastadoras dos corsrios e piratas, as queixas vindas do Congo e de Angola, motivaram a formao de vrias companhias negreiras.

    Constituiu-se ento, em 1675, por contrato com o Conselho Ultramarino, a primeira Companhia de Cacheu, que durou at 1680. Negociava em gneros de Cacheu e Cabo Verde, em negros para o Reino e colnias, e para as ndias de Castela. A perseguio dos negociantes de Cabo Verde provocou a falncia da Companhia. Volta o perodo de anarquia at a organizao da nova Companhia, em 1690.

    Desta vez, procurava-se reconciliar os interesses dos entrepostos de Cacheu e Cabo Verde e surgia a Companhia de Cabo Verde e Cacheu de Negcios dos Pretos. Esta logo originou, trs anos depois, a Companhia Real de Guin e das ndias, com licena para introduzir negros nas ndias da Espanha. Tal Companhia vrias vezes teve sua vida renovada at que foi extinta em 1706.

    Ainda em 1679 se fundou a Companhia do Estanco do Maranho, destinada a fornecer escravos s Capitanias do Norte. De sua insuficincia diz a revolta de Beckman, em que muito se clamava contra a escassez de pretos.

    Todavia, esta navegao relativamente intensa para o Norte, no correspondida no Sul e ao findar o sculo XVII, o Rio somente recebia de Angola trs navios por ano. Da a enorme procura de negros nas Minas Gerais, cujas entradas recm-descobertas atraam aventureiros.

    Eis por que cedo se esboa um grande movimento de escravos, que eram mandados buscar na Bahia para as Minas Gerais, a ponto de se fazer uma Carta Rgia em 1701, com proibio da ida de escravos das capitanias do Norte para as Gerais.

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    Esta exigncia de escravos para a minerao crescia sempre, e, cinco anos depois, se pediam mil homens de Angola e umas trs ou quatro levas da Costa da Mina.

    A necessidade crescente do brao africano para a lavoura da terra e a indstria das minas requeria aproximao cada vez maior entre o Brasil e a frica. Esta a razo por que, em maio de 1723, o Conselho Ultramarino entregava ao vice-rei do Brasil a construo da fortaleza de Ajud, hoje Widah, na costa da Guin.

    Ainda no mesmo ano se fundava a Companhia da Costa de frica, destinada a exportar negros para o Brasil. Esta sociedade teve a concesso do trfico durante quinze anos e muito contribuiu para a sua regularizao.

    Mas acabada a concesso, volta a balbrdia no trfico a qual apenas se atenuara, e, em meio da confuso, prossegue o comrcio negreiro.

    Mesmo assim, as relaes entre compradores do Brasil e vendedores da frica se estreitavam sempre. Rgulos africanos enviam suas embaixadas Bahia. O vice-rei recebe explicaes de chefes de cubatas pelas incurses em territrio luso. H trocas de presentes e desculpas. Mestios que negociam na Guin recebem dos reis africanos ttulos pomposos como de Irmo. Tais os mulatos Felix de Sousa e Domingos Martins, negociantes de escravos em Ajud e Kotonu que merecem do rei de Dahomey o ttulo de Primeiro dos Brancos33.

    Pombal ainda tenta normalizar o trfico, j ento em larga escala entregue ao contrabando e aos desmandos dos particulares. Datam de ento a Companhia do Gro-Par e Maranho bem como a Companhia de Comrcio de Pernambuco e Paraba, organizada e iniciada em 1760. Esta ltima fornecia as capitanias do mesmo nome com escravos vindos de Angola e da Costa da Mina. Nos dezoito anos que funcionou de 1760 a 1777, fez baixar o nvel das importaes precedentes.

    Com efeito, de 1742 a 1760, entraram em Pernambuco e Paraba, trazidos pelo trfico 54.981 negros, ao passo que depois de estabelecida a Companhia, na sua durao s entraram 38.157 peas34.

    A insuficincia do comrcio organizado em Companhias fez com que tal sistema fosse abandonado. E depois da queda de Pombal, tais Companhias foram extintas em 1778, com a retirada do monoplio.

    Voltou, e desta vez at acabar o trfico, a liberdade das navegaes e, com ela, a grande confuso, bem favorecedora do contrabando.

    o sculo XVIII a poca em que o trfico alcana maior intensidade. Nele a importao atingiu cifra bem alta, que permitiu haver no Brasil,

    33 Nina Rodrigues, Os africanos no Brasil, p. 46.34 P. Calgeras, op. cit., I, p. 319.

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    em 1800, segundo o Baro do Rio Branco, cerca de 1.600.000 escravos negros. E pouco tempo depois, em 1817, este nmero ainda subia a 1.930.000 escravos35.

    Mas a campanha de Wilberforce iniciada to brilhantemente na Inglaterra vem refletir no Brasil, que, no seu tratado de comrcio com a Gr-Bretanha, em 1810, se compromete a extinguir gradualmente o comrcio da escravatura36.

    Criam-se os Tribunais Mistos da Serra Leoa para atender s nossas relaes com a frica, a respeito da represso do trfico.

    Abolido o trfico pela lei de 7 de novembro de 1831, a qual o declarava extinto no Brasil, proliferou a obra do contrabando. Foi preciso a energia de Eusbio de Queirs para extingui-lo definitivamente, em 1850.

    Continuaram, porm, os desembarques clandestinos, e segundo narra o eminentssimo historiador Baslio de Magalhes, verdadeiro mestre da nossa histria, o ltimo desembarque clandestino se deu a 13 de outubro de 1855. Foram duzentos e nove africanos que desembarcaram em Serinhaem, no Estado de Pernambuco37.

    Mas j tempo de saber em todo este longo perodo, quantos africanos entraram no Brasil? Qual o total? Qual o coeficiente anual de entradas? Quais as tribos?

    Quanto s tribos, veja o leitor o captulo seguinte, em que analisamos as principais, bem como sua procedncia e distribuio no mapa histrico junto.

    Vejamos agora os resultados numricos de cerca de trezentos anos de trfico.

    Os mercados da Serra Leoa, de S. Lus, da Gmbia, de Angola e de Benguela, protegidos por outros tantos fortes, abasteciam os navios negreiros, que a buscavam sua triste mercadoria.

    Eram embarcaes miserveis, sem ideia do que fosse higiene, com a preocupao exclusiva de amplos e bojudos pores, a fim de permitir maior acmulo de negros. Ficou-lhes clebre o epteto de Tumbeiros...

    Os processos primitivos usados para conservar um pouco a vida a estas criaturas so-nos descritos por vrios escritores que deles nos deixaram a narrativa, como Melo Morais Filho, cujas descries das soturnas viagens e seus portos de destino ainda merecem leitura38.

    35 Baro do Rio Branco, Histria do Brasil, 1930, p. 88.36 Evaristo de Morais, A escravido africana no Brasil, So Paulo, 1933.37 Histria do comrcio, indstria e agricultura, So Paulo, 1934, p. 423.38 Festas e tradies, captulo Na terra e no mar, pp. 375-392.

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    Relato mais fiel ainda conhecemos o do capito ingls Guilhaume Snelgrave, comandante de navio ingls, que numerosas travessias fez no trfico de escravos. A se narram pormenores curiosos de como se mantinha a disciplina a bordo e quo frequentes eram as revoltas, s vezes tragicamente dominadas39.

    preciso, portanto, ter em vista que na travessia martima muitas vidas se perdiam. E por isso valem pouco as raras estatsticas subsistentes de embarques na frica.

    Quanto s nossas, sabido o destino romntico que tiveram, queimadas como cartinhas de namorados.

    Analisemos os dados remanescentes e vejamos o clculo dos historiadores.

    Sigamos os resultados numricos que apresenta o preclaro historiador Pandi Calgeras, em sua notabilssima obra sobre A poltica exterior do Imprio, bem como os dados coligidos por outros autores.

    Pelo Relatrio de Domingos de Brito a Filipe II de Espanha, datado de 1592, teriam ido de Angola para a Amrica portuguesa e ndias de Castela:

    de 1575 a 1591 52.053 negros ou cerca de 3.100 por ano

    Segundo Oliveira Martins, o trfico apresentou os seguintes algarismos, de Angola para o Brasil:

    de 1759 a 1803 - 624.000 negros de 1817 a 1819 - 66.000 negros

    Ou respectivamente uma mdia anual de 14.500 e 22.000 escravos.

    Acrescenta o mesmo autor, embora vagamente, que nos primeiros anos, a Companhia Gro-Par teria levado at 100.000 cabeas, das quais 42 ou 43.000 se destinavam ao Rio.

    Manuel Barata, em suas Efemrides paraenses, afirma que em vinte e dois anos chegaram, apenas ao Par, cerca de 12.600 pretos.

    Waetgen, para o Brasil holands, enumera especificadamente por ano um total de 23.163 peas no decnio 1636 a 1645.

    Para Pernambuco, existem algarismos oficiais entre 1742 e 1777, graas a uma certido passada a 7 de maio de 1778 pelo escrivo da alfndega do Recife.39 Nouvelle relation de quelques endroite de Guine, Ams terdam, 1735.

  • RENATO MENDONA

    52

    Assim, antes do estabelecimento da Companhia de Pernambuco e Paraba, durante 18 anos, de 1742 a 1760, as entradas foram:

    de Angola ........................................................ 38.787 cabeasda Costa da Mina ........................................... 16.194 cabeas

    Total ................................................................. 54.981

    Depois do seu estabelecimento, a Companhia, de 1760 a 1777, importou:

    de Angola ........................................................ 30.202 cabeasda Costa da Mina ........................................... 7.955 cabeas

    Total ................................................................. 38.157

    Portanto neste perodo de 1742 a 1777, que abrange trinta e seis anos, a importao, de acordo com os dados oficiais subsistentes, foi de 93.138 escravos, ou cerca de 2.600 por ano.

    Isto no Recife.

    Lus dos Santos Vilhena, citado por Calgers, refere que pela alfndega da Bahia, em 1798, passaram vindos:

    de Angola ........................................................ 2.151 cabeasda Costa da Minas ........................................ 4.903 cabeas

    Total ................................................................. 7.054

    No Inventrio de documentos, de Castro e Almeida, precioso repositrio de informaes, existem as seguintes cifras, um pouco arredondas, sobre a importao de negros no perodo que vai de 1797 a 1806, especificadamente por ano:

    de Angola ........................................................ 10.850 cabeasda Costa da Mina ........................................... 46.930 cabeas

    Total ................................................................. 57.780

  • O TRFICO

    53

    Nina Rodrigues coligiu no jornal Idade de Ouro, primeiro publicado na Bahia, uma estatstica da importao de escravos, baseada no movimento do porto, pela qual teriam entrado na Bahia, de 1812 a 1820:

    da frica Meridional:

    (Congo, Cabinda, Angola, Moambique, Quilemane, Malambo): ................................................................20.841 escravos

    da frica Setentrional:

    (Costa da Mina, Ajud, Bissau, Camerun): .........17.691 escravos

    Total ...........................................................................38.532 escravos

    Convm notar que a partir de 1816 o comrcio de escravos j no mais lcito e comea a ser dificultado pelos ingleses40.

    No Catlogo da Exposio de Histria do Brasil tambm se encontram dois mapas e uma relao de escravos vindos para o Brasil.

    Sob o nmero 15.155 daquele catlogo, acha-se uma Relao dos escravos vindos da Costa da Mina, no perodo de 1 de janeiro de 1785 a 31 de dezembro de 1790. Por esta relao entraram na Bahia, 12.233 em cinco anos, ou seja uma mdia anual de cerca de 2.500 escravos.

    No quinqunio subsequente, outros documentos acusam uma entrada de 34.348 cabeas, com uma mdia anual de cerca de 7.000 cabeas41.

    No mesmo catlogo, o documento no 15.160 d os direitos alfandegrios pagos por 35.710 escravos entrados no Rio de Janeiro de 1799 a 1802, na mdia de 12.000 por ano.

    Ainda para o Rio, Mrs. Graham cita a estatstica oficial da alfndega que d em42:

    1821 ................................................................................ 21.199 peas1822 ................................................................................ 25.934 peas

    Em todo o Brasil, segundo Debret (ao que parece firmado em estatsticas oficiais), entraram, no ano de 1828, 43.601 escravos, e nos seis primeiros meses de 1829, outros 23.31043.40 Os africanos no Brasil, p. 40.41 Calgeras, A poltica exterior do Imprio, I, p. 326.42 Voyage to Brazil.43 Debret, Voyage pittoresque et historique, Paris 1835, vol. 30o, p. 75.

  • RENATO MENDONA

    54

    Estes nmeros parecem exatos, porquanto outros dados coligidos por Calgeras na obra de Walsh comprovam aqueles outros de Debret.

    O Rio, no perodo de 1820 a 1828, segundo estatstica aduaneira, oferecia uma mdia anual de 20 a 30 mil escravos, tendo atingido o mximo de 44.000 em 182844.

    O Baro do Rio Branco, em s