luiza mahin: uma rainha africana no brasil

76
LUIZA MAHIN: UMA RAINHA AFRICANA NO BRASIL Aline Najara da Silva Gonçalves 1ª EDIÇÃO RIO DE JANEIRO, 2011 FINAL3_Layout 1 28/06/11 15:59 Page 1

Upload: vuongtram

Post on 09-Jan-2017

229 views

Category:

Documents


6 download

TRANSCRIPT

Page 1: LUIZA MAHIN: UMA RAINHA AFRICANA NO BRASIL

LUIZA MAHIN: UMA RAINHAAFRICANA NO BRASIL

Aline Najara da Silva Gonçalves

1ª EDIÇÃORIO DE JANEIRO, 2011

FINAL3_Layout 1 28/06/11 15:59 Page 1

Page 2: LUIZA MAHIN: UMA RAINHA AFRICANA NO BRASIL

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJG624L

Gonçalves, Aline Najara da SilvaLuiza Mahin : uma rainha africana no Brasil / Aline Najara da Silva Gonçalves. - 1.ed. - Rio

de Janeiro : CEAP, 2011. il. - (Cadernos CEAP)

ApêndiceInclui bibliografiaISBN 978-85-99889-24-4

1. Mahin, Luisa. 2. Negras - Brasil - Biografia. 3. Brasil - História - Insurreição dos malês,1835. 4. Negros - Brasil - História. 4. Movimentos antiescravagistas - Brasil. I. Centro de Ar-ticulação de Populações Marginalizadas. II. Título. III. Série.

11-3168. CDD: 920.930548896081CDU: 929:316.356.4(81)(=013)

01.06.11 06.06.11 026882

Copyright © Aline Najara da Silva Gonçalves

LUIZA MAHIN: UMA RAINHA AFRICANA NO BRASILé uma publicação do Centro de Articulação de Populações Marginalizadas – CEAPRua da Lapa, 200 - gr.809 - Lapa - RJ - CEP: 20021-180Tels.: (021) 2242-0961/2232-7077E-mail: [email protected] - Site: www.portalceap.org

Editor de publicação: Astrogildo Esteves FilhoRevisão: Penha Dutra Edição e produção: Espalhafato Comunicação e Produção.Programação Visual: Stefano Figalo

FINAL3_Layout 1 28/06/11 15:59 Page 2

Page 3: LUIZA MAHIN: UMA RAINHA AFRICANA NO BRASIL

índice

5 Apresentação

7 Um breve painel da resistência negra feminina

13 Uma heroína Um poema para a mãeA lacuna na historiografia

22 Um olhar sobre o Levante dos Malês de 1835

25 Representações de Luiza Mahin na Literatura

26 Luiza princesa

33 Kehinde

38 O mito Luiza Mahin

58 Porque Luiza Mahin existe

61 Referências bibliográficas

66 Conversações Pedagógicas

71 Apêndice

Copyright © Aline Najara da Silva Gonçalves

LUIZA MAHIN: UMA RAINHA AFRICANA NO BRASILé uma publicação do Centro de Articulação de Populações Marginalizadas – CEAPRua da Lapa, 200 - gr.809 - Lapa - RJ - CEP: 20021-180Tels.: (021) 2242-0961/2232-7077E-mail: [email protected] - Site: www.portalceap.org

Editor de publicação: Astrogildo Esteves FilhoRevisão: Penha Dutra Edição e produção: Espalhafato Comunicação e Produção.Programação Visual: Stefano Figalo

FINAL3_Layout 1 28/06/11 15:59 Page 3

Page 4: LUIZA MAHIN: UMA RAINHA AFRICANA NO BRASIL

FINAL3_Layout 1 28/06/11 15:59 Page 4

Page 5: LUIZA MAHIN: UMA RAINHA AFRICANA NO BRASIL

A série Cadernos CEAP, que faz parte do Projeto Camélia da Liberdade, busca a cada edição dar

contribuições inovadoras que possibilitem a consolidação da Lei nº 10.639/03, que estabelece a obrigato-

riedade do ensino da História da África e da História e Cultura Afro-brasileira nas escolas das redes

pública e privada do país.

Nossas publicações se destinam a apoiar professores e alunos da rede pública e privada de ensino,

além de universitários, movimentos sociais, grupos do movimento negro, e a todos aqueles que têm com-

promisso com a construção de uma sociedade que prime pelo respeito à diversidade, que reconheçam os

valores e as contribuições dos afrodescendentes na vida social do Brasil.

A escola é um dos espaços privilegiados de formação do indivíduo para viver em sociedade como

verdadeiro cidadão. A cidadania para os afrodescendentes passa, necessariamente, pela compreensão,

res peito e valorização da história, da sua identidade, com os seus valores socioculturais e religiosos. Isto

é, na sociedade brasileira, um desafio educativo.

Em 2011, o CEAP homenageia Luiza Mahin, uma heroína negra que é esquecida pela história oficial

brasileira, mas que existe na memória popular. Seu filho, o poeta e abolicionista Luiz Gama, revelou a

existência da mãe em uma carta autobiográfica. A professora Aline Najara Gonçalves, mestre em Estudo

de Linguagens, escreveu o caderno “Luiza Mahin: uma rainha africana no Brasil”, que contribui para

os educadores divulgarem a história de nossas raízes africanas na formação do Brasil.

Nosso objetivo com esta publicação é contribuir para a efetivação da Lei 10.639/03 e pôr fim a mais

esta lacuna em nossa sociedade.

Luiz Carlos Semog

Secretário executivo do CEAP

apresentação

FINAL3_Layout 1 28/06/11 15:59 Page 5

Page 6: LUIZA MAHIN: UMA RAINHA AFRICANA NO BRASIL

Fonte: AtlasEscolar

Geográfico,Jesualdo

Mapas/CirandaCultural/2004.

FINAL3_Layout 1 28/06/11 15:59 Page 6

Page 7: LUIZA MAHIN: UMA RAINHA AFRICANA NO BRASIL

LUIZA MAHIN: UMA RAINHAAFRICANA NO BRASIL*

“Quando não souberes para

onde ir, olha para trás e saiba

pelo menos de onde vens.”

(Provérbio africano)

A história da escravidão brasileira se confunde – ou melhor, se

funde – com a história da resistência escrava. Os africanos sequestrados

e escravizados aqui jamais se mostraram passivos neste processo. Ne-

gros e negras lutaram, guerrearam e manifestaram insistentemente a

recusa em aceitar a coisificação à qual foram expostos, embora a histo-

riografia oficial por muito tempo tenha silenciado sobre a presença e

atuação destes homens e mulheres.

Luiza Mahin foi uma destas guerreiras, todavia, é importante res-

saltar que sua luta não foi isolada. Nomes como Aqualtune, Acotirene,

Zeferina e Maria Felipa não só merecem como precisam ser lembrados

como símbolo de resistência negra e, quando se trata da manutenção

da luta por igualdade, que configura a continuidade do projeto de re-

sistência à opressão, é fundamental referir-se a Lélia Gonzalez, Tia Ciata

e Maria Carolina de Jesus.

7Um brevepainel daresistêncianegrafeminina

*Este texto é umaadaptação da dissertaçãointitulada Luiza Mahinentre ficção e história, quefoi resultado de umapesquisa financiada pelaCAPES e vinculada aoPrograma de Pós-Graduação em Estudo deLinguagens (PPGEL) daUniversidade do Estadoda Bahia (UNEB –Campus I).

FINAL3_Layout 1 28/06/11 15:59 Page 7

Page 8: LUIZA MAHIN: UMA RAINHA AFRICANA NO BRASIL

Aqualtune: filha de um rei do Congo, viveu no século XVII. Co-

mandou um exército de dez mil homens quando os Jagas invadiram o

seu reino. Derrotada, foi levada como escrava para um navio negreiro

e desembarcada em Recife. Obrigada a manter relações sexuais com

um escravo, para fins de reprodução, já grávida foi vendida para um

engenho de Porto Calvo, onde pela primeira vez teve notícia de Pal-

mares. Nos últimos meses de gestação organizou a sua fuga e a de al-

guns escravos para aquele quilombo. Começou, então, ao lado de

Ganga Zumba, seu filho, a organização de um Estado negro, que

abrangia povoados distintos, confederados sob a direção suprema de

um chefe. Aqualtune liderou o mocambo que levava seu nome e lá

também teve filhas, a mais velha das quais, chamada Sabina, deu-lhe

um neto, nascido quando Palmares se preparava para mais um ataque

holandês. Por isso, os negros cantaram e rezaram muito aos deuses,

pedindo que o Sobrinho de Ganga Zumba, e, portanto, seu herdeiro,

crescesse forte. Para sensibilizar o deus da guerra, deram-lhe o nome

de Zumbi. A criança cresceu livre e passou sua infância ao lado de seu

irmão mais novo chamado Andalaquituche, em pescarias, caçadas,

brincadeiras, ao longo dos caminhos camuflados, que ligavam os mo-

cambos entre si. Garoto ainda, Zumbi conhecia Palmares inteiro. Pas-

sam-se os anos e Palmares tornou-se cada vez mais uma potência. Mais

de 50.000 habitantes livres, distribuídos em vários mocambos.

Acotirene: Diz-se que ela chegou à Serra da Barriga antes mesmo

de Ganga-Zumba e assumir o poder. Era a matriarca do Quilombo dos

Palmares e exercia a função de mãe e conselheira dos primeiros negros

refugiados na Cerca Real dos Macacos. Quando Ganga Zumba assumiu

o poder, Acotirene não perdeu a função de conselheira. Era sempre con-

sultada sobre todos os assuntos, desde as questões familiares, até as de-

8

FINAL3_Layout 1 28/06/11 15:59 Page 8

Page 9: LUIZA MAHIN: UMA RAINHA AFRICANA NO BRASIL

cisões político-militares. Acotirene aparecia aos chefes quilombolas

para orientá-los nas dificuldades ou nas decisões a serem tomadas. O

mocambo de Acotirene (que, assim como ode Aqualtune, também le-

vava o seu nome) ficava situado no norte do Quilombo dos Palmares,

a 21 léguas do povoado de Porto Calvo, entre os mocambos de Amaro,

Dambaranga, Zumbi e Tabocas. Pela situação geográfica, esse mo-

cambo tinha a função agrícola na organização do Quilombo.

Zeferina: No ano de 1826 Zeferina foi líder do Quilombo do

Urubu, localizado na região que hoje é compreendida entre Parque de

São Bartolomeu até o bairro do Cabula, em Salvador (BA). Segundo o

historiador João José Reis no livro Rebelião Escrava no Brasil, Zeferina foi

presa, a muito custo, após um confronto com as tropas do governo do

Conde dos Arcos. Seu perfil destemido e combativo lhe rendeu “elogios

involuntários” por parte do presidente da província que se referia a ela

como “rainha”. Em matéria publicada pelo jornal A Tarde, em 29 de

março de 2008, a socióloga Vilma Reis ressaltou que ao ser presa e le-

vada acorrentada para a Praça da Sé, a fim de servir de exemplo para

outros insurgentes, “ela sempre esteve com a cabeça erguida. Os poli-

ciais estavam chocados com a altivez dela. Quando perguntam quem

ela era, ela informou quem era, de onde veio e disse que estava ali para

libertar o povo dela”.

Maria Felipa: marisqueira natural de Itaparica, Maria Felipa foi

uma mulher de muita coragem e habilidade, que participou das lutas

pela Independência na Bahia. Maria Felipa comandou cerca de 40 mu-

lheres num ato de ousadia e muito desembaraço, onde queimaram 42

barcos da esquadra, permitindo ao povo de Salvador a supremacia nos

embates e a definição da situação, com a vitória sobre as tropas da do-

minação Portuguesa. Conta-se ainda que, numa demonstração de irre-

9

FINAL3_Layout 1 28/06/11 15:59 Page 9

Page 10: LUIZA MAHIN: UMA RAINHA AFRICANA NO BRASIL

verência e ousadia, ela e seu grupo seduziram dois vigias portugueses

e quando estes estavam desnudos, usaram galhos de cansanção e

deram uma surra em ambos.

Tia Ciata: Hilária Batista de Almeida nasceu na Bahia em 1854.

Aos 22 anos, mudou-se para o Rio de Janeiro, no êxodo que ficou co-

nhecido como diáspora baiana. Como todas as baianas da época, era

grande quituteira. Mãe de santo respeitada, Hilária foi confirmada no

santo como Ciata de Oxum, no terreiro de João Alabá, na Rua Barão de

São Félix, onde também ficava a casa de Dom Obá II. Além de celebrar

os seus orixás, Tia Ciata promovia sambas e rodas de partido alto. As

chamadas “tias” baianas tiveram um papel preponderante no cenário

de surgimento do samba no Rio de Janeiro, no final do século XIX e iní-

cio do XX. Eram transmissoras da cultura popular trazida da Bahia e

sacerdotisas de cultos e ritos de tradição africana. De todas, a mais fa-

mosa foi Tia Ciata, em cuja casa nasceu o samba. A Praça Onze ganhou

o apelido de Pequena África, porque era o ponto de encontro dos ne-

gros baianos e dos ex-escravos radicados nos morros próximos ao cen-

tro da cidade. Lá se reuniam músicos amadores e compositores

anônimos. A casa de Tia Ciata, na Rua Visconde de Itaúna, número 117,

era a capital da Pequena África.

Lélia Gonzalez: Referência no movimento feminista brasileiro por

sua oposição à violência contra a mulher, a mineira Lélia Gonzalez era

filha de um ferroviário negro e mãe de origem indígena. Pioneira nos

cursos sobre Cultura Negra, doutorou-se em Antropologia Social, em

São Paulo, e dedicou-se a pesquisas sobre a temática de gênero e etnia.

Militante do movimento negro, teve fundamental atuação em defesa

da mulher negra, participando do Instituto de Pesquisas das Culturas

Negras e do Coletivo de Mulheres Negras N’Zinga. Como consequên-

10

FINAL3_Layout 1 28/06/11 15:59 Page 10

Page 11: LUIZA MAHIN: UMA RAINHA AFRICANA NO BRASIL

cia da sua atuação no movimento feminista, foram criadas, inicialmente

em São Paulo (1985), as Delegacias de Defesa da Mulher. A Constituição

de 88 passou a reconhecer a violência doméstica e a necessidade de o

Estado criar medidas para coibi-la. Grande incentivadora das tradições

afro-brasileiras, pertenceu ao Grêmio Recreativo de Arte Negra e Escola

de Samba Quilombos, que fazia seu carnaval atendo-se às raízes do

velho samba carioca e foi uma das fundadoras do grupo Olodum, de

Salvador, Bahia. Faleceu vítima de problemas cardíacos, no Rio de Ja-

neiro, aos 59 anos.

Maria Carolina de Jesus: Nascida em 14 de março 1914, em Sacra-

mento (Minas Gerais), foi alvo de muito preconceito na infância, por

ser negra e pobre. Maria Carolina estudou por pouco mais de dois anos

11MAPA DO TRÁFICO ESCRAVO PARA O BRASIL

Fonte (www.portaldoprofessor.mec.gov.br)

FINAL3_Layout 1 28/06/11 15:59 Page 11

Page 12: LUIZA MAHIN: UMA RAINHA AFRICANA NO BRASIL

no Colégio Espírita Alan Kardec, por intermédio da patroa de sua mãe,

que era lavadeira. Diante de todas as mazelas, perdas e discriminações

que sofreu em Sacramento, Carolina revela através de sua escritura a

importância do testemunho como meio de denúncia sociopolítica de

uma cultura hegemônica que exclui aqueles que são considerados “di-

ferentes”. A sua obra mais conhecida (Quarto de Despejo) resgata e delata

uma face da vida cultural brasileira quando do início da modernização

da cidade de São Paulo e da criação de suas favelas. Trata-se de uma

“literatura das vozes subalternas” que ganhou força a partir dos anos

70, pelos testemunhos narrativos femininos. A obra de Carolina Maria

de Jesus é um referencial importante para os Estudos Culturais, tanto

no Brasil como no exterior.

É certo que várias outras mulheres igualmente importantes para a

memória afro-brasileira poderiam figurar esta lista, entretanto a alusão

às heroínas citadas tem por objetivo rememorar a trajetória de todas as

lideranças femininas que foram e continuam sendo referência no com-

bate ao escravismo e suas consequências nefastas.

12

FINAL3_Layout 1 28/06/11 15:59 Page 12

Page 13: LUIZA MAHIN: UMA RAINHA AFRICANA NO BRASIL

Uma heroína

Luiza Mahin, “uma negra, africana livre, da Costa da Mina”, mãe

do poeta Luiz Gama, é idealizada e reverenciada pela comunidade

negra e demais segmentos da sociedade brasileira associados aos mo-

vimentos negros e à valorização da história e cultura afro-brasileiras,

sendo representada pela memória histórica como uma quitandeira que

foi escrava de ganho e que sempre lutou contra a escravidão. Uma mu-

lher insubordinada, que se tornou símbolo de resistência negra, confi-

gurando um mito para a população afrodescendente.

Sem documentos ou quaisquer registros materiais que atestem sua

existência, Luiza Mahin entrou para a História pela escrita do filho, o

poeta e “precursor do abolicionismo no Brasil”, Luiz Gama, que revelou

o nome da mãe em uma carta autobiográfica enviada em 1880 ao amigo

Lúcio de Mendonça e, antes disso, dedicou-lhe os versos do poema

Minha Mãe, escrito em 1861.

Ponto de partida para o conhecimento acerca de Luiza Mahin, a

trajetória de vida de Luiz Gama oferece elementos que permitem rela-

cionar situações vividas pelo poeta a possíveis experiências vivenciadas

pela mãe. Desse modo, parece que em determinados momentos as

vidas de ambos encontram-se entrelaçadas pelas dificuldades enfren-

tadas e, consequentemente, pela superação dos obstáculos, o que ca-

racteriza o perfil destemido atribuído à personalidade dos dois. Ele,

dono de um senso de justiça invejável. Ela, uma revolucionária atuante

na década de 1830, impaciente, irrequieta e incapaz de conformar-se

com situações de injustiça.

Luiz Gama foi vendido pelo pai como escravo — apesar de ter nas-

cido livre —, afastado da mãe quando ainda era uma criança e rejeitado

13

FINAL3_Layout 1 28/06/11 15:59 Page 13

Page 14: LUIZA MAHIN: UMA RAINHA AFRICANA NO BRASIL

por possíveis compradores por ter nascido na Bahia. Naquele tempo,

os escravos baianos eram considerados provocadores e desordeiros e

muitos senhores evitavam comprá-los por medo de rebelião. Luiz

Gama também é lembrado como um vencedor, não apenas por ter se

livrado do cativeiro, bem como pelo respeito adquirido por ele numa

sociedade que discriminava e claramente diferenciava brancos e negros.

No livro Orfeu de Carapinha, Elciene de Azevedo descreveu a ceri-

mônia de sepultamento de Gama destacando que houve intensa aglo-

meração popular, solicitação de fechamento do comércio local (a fim

de garantir aos lojistas a possibilidade de prestar a última homenagem

ao morto), hasteamento de bandeiras oficiais a meio pau e a presença

de magistrados, acadêmicos, jornalistas e do próprio vice-presidente

da província em exercício (o conde de Três Rios) dentre cerca de três

mil pessoas que acompanharam o cortejo a pé entre as 16 e 19 horas da-

quele dia. Daí dá para perceber como ele era admirado, fato incomum

para um ex-escravo. Gama foi escrivão, amanuense, jornalista, poeta e

advogou (mesmo sem diploma) pela causa do povo negro, libertando,

até o fim da vida, mais de quinhentos escravos.

Na sua carta autobiográfica, Luiz Gama relatou:

Nasci na cidade de São Salvador, capital da

província da Bahia, em um sobrado da Rua do

Bângala, formando ângulo interno, em a que-

brada, lado direito de quem parte do adro da

Palma, na Freguesia de Sant’Ana, a 21 de junho

de 1830, pelas 7 horas da manhã, e fui batizado,

8 anos depois, na igreja matriz do Sacramento,

da cidade de Itaparica.

Sou filho natural de uma negra, africana

14

FINAL3_Layout 1 28/06/11 15:59 Page 14

Page 15: LUIZA MAHIN: UMA RAINHA AFRICANA NO BRASIL

livre, da Costa da Mina (Nagô de Nação) de

nome Luiza Mahin, pagã, que sempre recusou

o batismo e a doutrina cristã.

Minha mãe era baixa de estatura, magra,

bonita, a cor era de um preto retinto e sem lustro,

tinha os dentes alvíssimos como a neve, era

muito altiva, geniosa, insofrida e vingativa.

Dava-se ao comércio — era quitandeira,

muito laboriosa, e mais de uma vez, na Bahia, foi

presa como suspeita de envolver-se em planos

de insurreições de escravos, que não tiveram

efeito (grifo nosso).

Era dotada de atividade. Em 1837, depois

da Revolução do dr. Sabino, na Bahia, veio ela

ao Rio de Janeiro, e nunca mais voltou. Procurei-

a em 1847, e 1856, em 1861, na Corte, sem que a

pudesse encontrar. Em 1862, soube, por uns pre-

tos-minas, que conheciam-na e que deram-me si-

nais certos que ela, acompanhada de malungos

desordeiros, em uma “casa de dar fortuna”, em

1838, fora posta em prisão; e que tanto ela quanto

seus companheiros desapareceram. Era opinião

dos meus informantes que estes “amotinados”

fossem mandados para fora pelo governo, que,

nesse tempo, tratava rigorosamente os africanos

livres, tidos como provocadores.

Nada mais pude alcançar a respeito dela.1

A carta escrita por Luiz Gama é o primeiro registro documental

15

1 Cf. Carta de Luiz Gama aLúcio de Mendonça In.MORAES, Marcos Antônio(org.). Antologia da cartano Brasil: me escreva tãologo possa. São Paulo:Moderna, 2005, p. 67-75.

FINAL3_Layout 1 28/06/11 15:59 Page 15

Page 16: LUIZA MAHIN: UMA RAINHA AFRICANA NO BRASIL

em que o nome Luiza Mahin aparece. Assim, tudo o que se sabe sobre

ela é fundamentado na escrita do poeta. Depois de seguidas décadas

sem ver a mãe, ele a descreveu com o olhar de um filho saudoso, como

se buscasse na memória da infância as lembranças perdidas. Desse

modo, a descrição realizada por Luiz Gama no trecho acima pode ser

considerada a principal referência das diversas interpretações acerca

de Luiza Mahin.

Luiz Gama iniciou a carta em que conta a sua vida explicando onde

vivia com a mãe: a Rua do Bângala, na cidade do São Salvador, província

da Bahia.2 Depois de indicar o espaço geográfico onde nasceu, Gama re-

velou que fora batizado no catolicismo aos 8 anos de idade, apesar de

sua mãe sempre ter recusado o batismo e a doutrina cristã. Como seu ba-

tismo aconteceu após o sumiço da mãe, vê-se que não teve a aprovação

materna e, certamente, foi uma iniciativa exclusiva do seu pai. Conforme

se nota, é ainda no início da carta que Luiz Gama revela o nome da mãe

— Luiza Mahin — materializando sua existência e, desse modo, demar-

cando o ponto de partida de sua trajetória.

Após apresentar algumas características físicas, ocupacionais e

comportamentais da mãe, Gama sugere o motivo do sumiço dela — a

participação em insurreições de escravos “que não tiveram efeito”.

Apesar de Luiz Gama não ter afirmado claramente a participação direta

da mãe no Levante dos Malês de 1835 ou na Sabinada de 1837, esta in-

formação foi apropriada pela memória coletiva afro-brasileira, que vê

Luiza Mahin como participante em vários movimentos rebeldes e líder

revolucionária dos malês. A concepção do levante de 1835 como uma

rebelião que não teve efeito certamente não procede, todavia, é impor-

tante destacar a ausência de documentos históricos que comprovem ou

desmintam esta afirmação.

16

2 Segundo Sud Mennucci,“bângala” é um termoangolano que significa“inflexível”, predicativoeste intimamenterelacionado com apersonalidade do poeta(MENNUCCI, 1938. p. 27).

FINAL3_Layout 1 28/06/11 15:59 Page 16

Page 17: LUIZA MAHIN: UMA RAINHA AFRICANA NO BRASIL

A saudade causada pela ausência

da mãe torna-se constante no relato de

Luiz Gama. A homenagem à figura ma-

terna foi materializada em versos e

idealizada em sonhos, suprindo a ca-

rência através dos recursos que a me-

mória e a imaginação lhe pro por ciona-

vam. O ano de 1837, especificamente a

ocorrência da Sa binada, redefiniu os con-

tornos da vida e da personalidade de

Gama. Este ano foi marcado pela partida

da mãe para o Rio de Ja nei ro e pelo en-

volvimento do pai na revolução do Dr.

Sabino. Quatro anos depois o menino

Luiz foi tornado escravo ao ser ven dido pelo pai, que pretendia saldar dívi-

das de jogo. O ressen ti- mento aparente pela atitude paterna revelou-se na

ocultação do seu nome — se à mãe ele atribuiu um no me pró prio, ao pai ele

negou a identidade e, metaforicamente, desmaterializou a sua existência.

Relembrando as dificuldades encaradas na vida de escravizado,

Gama exclamou: “Oh! Eu tenho lances doridos em minha vida, que

valem mais do que as lendas sentidas da vida amargurada dos márti-

res.” Após superar a escravidão, conquistando a liberdade por meios

próprios, Luiz Gama tornou-se defensor dos seus — “que são todos os

pobres, todos os infelizes”. Um homem respeitado em sua época e ad-

mirado pelas gerações seguintes.3

17

3 Cf. MORAES, 2005.

p. 71; 75.

Luiz Gama

FINAL3_Layout 1 28/06/11 15:59 Page 17

Page 18: LUIZA MAHIN: UMA RAINHA AFRICANA NO BRASIL

A carta autobiográfica escrita por Luís Gama foi endereçada a

Lúcio de Mendonça juntamente com o poema Minha Mãe, escrito em

1861. Ainda demonstrando saudosismo, assim Gama se refere à Luiza

Mahin no poema:

Era mui bela e formosa,

Era a mais linda pretinha,

Da adusta Líbia rainha,

E no Brasil pobre escrava!

Oh, que saudades que eu tenho

Dos seus mimosos carinhos,

Quando c’os tenros filhinhos –

Ela sorrindo brincava.

Éramos dois — seus cuidados,

Sonhos de sua alma bela;

Ela a palmeira singela,

Na fulva areia nascida.

Nos roliços braços de ébano.

De amor o fruto apertava,

E à nossa boca juntava

Um beijo seu, que era a vida.

[...]

Os olhos negros, altivos,

Dois astros eram luzentes;

Eram estrelas cadentes

Por corpo humano sustidas.

Foram espelhos brilhantes

Da nossa vida primeira,

Foram a luz derradeira

18

Um poemapara a mãe

FINAL3_Layout 1 28/06/11 15:59 Page 18

Page 19: LUIZA MAHIN: UMA RAINHA AFRICANA NO BRASIL

Das nossas crenças perdidas.

[...]

Tinha o coração de santa,

Era seu peito de Arcanjo,

Mais pura n’alma que um Anjo,

Aos pés de seu Criador.

Se junto à cruz penitente,

A Deus orava contrita,

Tinha uma prece infinita

Como o dobrar do sineiro,

As lágrimas que brotavam,

Eram pérolas sentidas,

Dos lindos olhos vertidas

Na terra do cativeiro.4

Fazendo uso da licença poética, Luiz Gama se farta com metáforas

e conotações usufruindo da liberdade de criação peculiar à escrita lite-

rária. Escrito quase vinte anos antes da carta enviada a Mendonça, este

poema revela, no terceiro verso, uma origem nobre de Luiza Mahin,

que não fora mencionada na carta.

Nesta poesia, Gama desenha o retrato de uma mulher, que, apesar

da altivez, mostra-se carinhosa com os filhos, uma mãe zelosa e dedicada,

que tem sua força e doçura ressaltadas pelas lembranças que o poeta traz

da infância. No poema, além de desenhar o retrato de uma mãe meiga,

o poeta citou um irmão de quem jamais se falou novamente e que, assim

como ele, viu-se desamparado frente à ausência materna.

19

4 Poema Minha Mãe, disponível nosítio eletrônico http://pt.wikisource.org/wiki/Categoria:Primeiras_Trovas_Burlescas_de_Getulino.Acesso em 19 de abril de 2010.

FINAL3_Layout 1 28/06/11 15:59 Page 19

Page 20: LUIZA MAHIN: UMA RAINHA AFRICANA NO BRASIL

Documentos geradores do mito Luiza Mahin, a carta e o poema de

Luiz Gama lançaram as bases para as interpretações e apropriações se-

guintes no campo da história e da literatura. Do relato de um filho,

Luiza Mahin partiu para o palco da história e se em alguns momentos

se fez líder, foi coroada rainha e assumiu uma postura combativa, em

outros, foi silenciada. Na historiografia é presença tímida, todavia

marcante em face das lacunas que preenche no que diz respeito ao

significado da sua imagem na construção da memória coletiva do

povo negro brasileiro.

A ausência de documentos distintos que assegurem a sua existên-

cia leva alguns pesquisadores a duvidarem da existência de Luiza

Mahin. A dúvida pode sugerir a algumas pessoas uma “prisão” dos

historiadores, que buscam sempre a verdade dos fatos. Considerando

que todo conhecimento histórico é um discurso que deve ser relativi-

zado mesmo que se pretenda verdadeiro, entende-se que o exame do

trajeto historiográfico de Luiza Mahin pode auxiliar na compreensão

das variadas representações a ela associadas.

Etienne Ignace, em 1907, inaugurou o discurso de coroação de

uma rainha africana como parte dos planos dos líderes do levante de

1835. Luiz Vianna Filho, em A Sabinada (1938) sequer citou o nome desta

que Clóvis Moura, em As Rebeliões da senzala (1959), afirmou ter atuado

no levante malê. Em conferência proferida no CEAO e publicada na Re-

vista Afro-Ásia — A rebeldia negra e a abolição (1968) —, José Honório

Rodrigues disse ter sido ela “uma revolucionária em 1835”. Em Rebelião

Escrava no Brasil: a história do Levante dos Malês de 1835, João José Reis

(2003) afirmou que não há indício algum que vislumbre a existência de

uma mulher com o nome Luiza em quaisquer listas de presos por en-

volvimento no levante. Embora tenha salientado sobre a possibilidade

20

A lacuna na historiografia

FINAL3_Layout 1 28/06/11 15:59 Page 20

Page 21: LUIZA MAHIN: UMA RAINHA AFRICANA NO BRASIL

de participação feminina na revolta, afirmou desconhecer fontes que

comprovassem tal atuação. Desse modo, Reis destacou a ausência de

Luiza Mahin da realidade histórica documentalmente comprovada.

Vê-se que Luiza Mahin, popularmente relacionada aos movimen-

tos baianos de 1835 e 1837, não é sequer mencionada por vários dos

autores que tratam desses movimentos. Já em O Negro na Bahia (1946)

Luis Vianna Filho oferece elementos que podem ser relacionados a ca-

racterísticas da mãe do poeta Luiz Gama. Ao tratar de aspectos ine-

rentes aos sudaneses trazidos para a Bahia, notam-se traços da

personalidade de Luiza Mahin, originária da Costa da Mina, segundo

relato de Luiz Gama. 5

A região da Costa da Mina foi o principal ponto de partida de afri-

canos escravizados durante o século XVIII e início do século XIX. “Por

aí chegaram os negros sudaneses, os jurubas, mas conhecidos como

nagôs, os tapas, os bambarras, os hausás, os achantis, os jejes, os bornus,

os fulas, os mandingas”, destaca Vianna Filho.6

No prefácio à segunda edição da obra, Gilberto Freire declarou ser

sinal da presença sudanesa o caráter revolucionário do baiano —

“Eram, evidentemente, os negros da Bahia uma força que não se dei-

xava facilmente humilhar nem docemente dominar pelos senhores

brancos” — bem como a beleza estética fascinante da gente sudanesa,

a ponto de Freire defender a hipótese da realização de uma seleção es-

tética dentre os africanos que seriam transportados para a Bahia

(VIANNA FILHO, 2008, p. 10).

A exaltação da beleza do sudanês e, em especial, da mulher suda-

nesa, parece ter influenciado a representação de Luiza Mahin na litera-

tura, de modo que Pedro Calmon atribui uma “beleza perturbadora” à

personagem Luiza Princesa, de Malês. Luis Vianna Filho não foge à

21

5 Edição consultada:VIANNA FILHO, Luis. ONegro na Bahia (umensaio clássico sobre aescravidão) 4 ed. Salvador:EDUFBA: Fund. Gregóriode Mattos, 2008.

6 Ibidem, p. 28. LuizVianna Filho aborda otráfico de africanos para oBrasil em quatro ciclos, asaber: Ciclo da Guiné(século XVI), Ciclo deAngola (século XVII),Ciclo da Costa da Mina edo Benin (século XVIII até1815) e Ilegalidade (séculoXIX).

FINAL3_Layout 1 28/06/11 15:59 Page 21

Page 22: LUIZA MAHIN: UMA RAINHA AFRICANA NO BRASIL

regra e destaca certo poder de sedução da mulher negra, enriquecido

com a origem nobre que nem a escravidão consegue apagar: “Pos si -

velmente, dentre as que vieram escravizadas não faltaria descendentes

de reis africanos, as quais o cativeiro não retirou certo tom de majes-

tade” (VIANNA FILHO, 2008, p. 20).

Atentando para o significado e importância social das diversas ma-

nifestações de resistência escrava, Clóvis Moura em Rebeliões da Senzala

(1959) atribuiu à coisificação do cativo o fator determinante para o seu

comportamento rebelde.7 “Não por acaso era [o escravo] considerado

simples coisa, pois dentro do regime escravista, não passava, efetiva-

mente, de um instrumento” (MOURA, 1899, p.71), concluiu. Segundo

este autor, foi a negação da cidadania do escravo que propiciou a sua

participação em lutas, levantes e tentativas de sedição. 8

Nesta obra Clóvis Moura afirmou que Luiza Mahin participou da

rebelião dos malês de 1835, contudo salientou: “Sobre sua atuação,

porém, não encontramos referência nos documentos que consultamos”

(MOURA, 1899, p.180).

Um olhar sobre o Levante dos Malês de 1835

Considerado o levantamento de escravos que obteve maior resso-

nância histórica na Bahia, o Levante dos Malês de 1835 deve ser conce-

bido como parte integrante de um ciclo de movimentos revolucionários

que tiveram sua gênese em 1807 e que, ao longo de quase trinta anos,

permitiram à Bahia ser palco de uma série de conflitos antiportugueses,

revoltas militares e movimentos liberal-federalistas.

22

7 Neste trabalho foiconsultada a edição. Cf.MOURA, Clóvis.Rebeliões da Senzala. 4 ed.Porto Alegre. MercadoAberto, 1988.

8 Sobre a negação dacoisificação do escravo e aresistência negra frente ànegação da sua cidadania,ver CHALHOUB, Sidney.Visões da Liberdade: umahistória das últimasdécadas da escravidão nacorte. São Paulo: Cia dasLetras, 1990.

FINAL3_Layout 1 28/06/11 15:59 Page 22

Page 23: LUIZA MAHIN: UMA RAINHA AFRICANA NO BRASIL

Embora as revoltas escravas tenham sido consideradas vencidas

pelo discurso oficial, a aversão à submissão e à coisificação impostas

pelo regime escravista sobrepunha-se a qualquer tentativa de repressão.

As rebeliões escravas baianas legaram a importância da ideologia reli-

giosa, sentimento de identidade étnica e montagem de uma estratégia

militar, ratificando mais uma vez, que a insubmissão foi a maior das

características da escravidão brasileira e o grande desejo da pessoa es-

cravizada era ser livre.

O medo instalado após o ciclo de revoltas levou autoridades baia-

nas a tomarem todo tipo de cuidado, a fim de evitar a propagação do

chamado “haitianismo” na Bahia — uma alusão à revolta escrava que

culminou na independência do Haiti. Com isso, intensificaram a assis-

tência militar à região e, curiosamente, devido à disseminação de notí-

cias sobre os levantes baianos, as autoridades, em muitas regiões do

Brasil, dificultaram a importação de escravos baianos pela reputação

de rebeldia que tinham. A partir do momento que se tem conhecimento

do modo como foi conduzido e levante, percebe-se a evidência do pro-

jeto político do movimento. Conforme argumenta João José Reis (2003),

“os malês não roubaram nem mataram em vão”. Ainda segundo ele, tratou-

se de um enfrentamento quase clássico de lutar somente contra as forças

organizadas para combatê-los.

Caracterizar os malês como fanáticos religiosos é negar a politiza-

ção do movimento e subestimar o alto nível cultural que os distinguia

dos demais brasileiros da época. Talvez tenha sido o seu grau de dis-

cernimento político-cultural o fator mais relevante que excluiu os criou-

los da revolta. Portadores de formas peculiares de resistência ao regime

ao qual estavam submetidos, os crioulos desgastavam seus senhores aos

poucos, enquanto, ao contrário destes, os malês — africanos nascidos li-

23

FINAL3_Layout 1 28/06/11 15:59 Page 23

Page 24: LUIZA MAHIN: UMA RAINHA AFRICANA NO BRASIL

vres — requeriam ações mais diretas e decisivas.

Percebe-se, desse modo, que o Levante dos Malês de 1835 foi um

movimento acima de tudo político, de contestação ao sistema vigente

e à exploração que denotava. Embora concluído com um saldo final de

231 julgamentos realizados, quatro condenados à morte e vários puni-

dos com deportação e açoites, se por um lado a rebelião escrava de 1835

instaurou o medo na elite branca, que, além das punições severas aos

insurgentes, proibiu a prática de costumes africanos, por outro, eviden-

ciou a pulsação do desejo de ser livre no seio da massa escravizada,

cansada da opressão e ávida pelo retorno à sua condição original – a

de homens e mulheres livres.

Talvez as particularidades do processo de articulação do movimento,

como o caráter urbano da sua esquematização, desenvolvida nas ruas da

cidade — nos chamados cantos —, tenham permitido a concepção de

Luiza Mahin como parte integrante da revolta e, mais que isso, como uma

mulher com poderes decisivos e determinantes dentre os articuladores.

Na carta autobiográfica de Luiz Gama, parcialmente transcrita

acima, ele faz a seguinte afirmação a respeito da mãe: “Em 1837, depois

da revolução do dr. Sabino, na Bahia, veio ela ao Rio de Janeiro, e nunca

mais voltou” (MORAES, 2005, p. 69). Em seguida, demonstrando des-

contentamento pelo sumiço da mãe, crê na deportação, tendo em vista

que o governo, nesse tempo, tratava rigorosamente os africanos livres,

tidos como provocadores.

Outro indício da presença de Luiza Mahin na revolta é a certeza da

participação ativa do pai de Gama. “Foi revolucionário em 1837”, diz

Gama a respeito do pai na referida carta. Tratava-se de um homem “de

família” e detentor de “bons costumes”, que “reduzido à pobreza ex-

trema”, vendeu o filho livre como escravo e entrou para a história ano-

24

FINAL3_Layout 1 28/06/11 15:59 Page 24

Page 25: LUIZA MAHIN: UMA RAINHA AFRICANA NO BRASIL

nimamente — uma decisão do filho tornado mercadoria, evidenciada

na declaração seguinte: “Devo poupar à sua infeliz memória uma injúria

dolorosa, e o faço ocultando o seu nome” (SOUZA, 1987, p. 70).

O silêncio historiográfico que acompanha Luiza Mahin não des-

virtua o mito construído em torno dela, o qual atende à necessidade

popular de se ver representado historicamente. Segundo Nicolas Da-

vies (2004), o enfoque dado à participação popular na história, princi-

palmente tratando-se de movimentos de resistência, oportuniza às

camadas populares o sentimento de valorização enquanto sujeitos au-

tônomos e, consequentemente, a sensação de valor social no presente,

fortalecendo-os para lutas futuras. A imagem de Luiza Mahin está vin-

culada a um povo caracterizado pela resistência e desejo de libertação.

Um povo que soube promover várias revoltas em busca da vitória total

contra a opressão imposta pelo regime escravista.

Representações de Luiza Mahinna Literatura

Livre do compromisso que a historiografia mantém com a busca

de um discurso que se pretende verdadeiro, a literatura brasileira já se

ocupou do tema, ora para exaltar, ora com o intuito de redefinir os con-

tornos da heroificação de Luiza Mahin.

A respeito das diversas configurações atribuídas ao herói, José Mu-

rilo de Carvalho concluiu: “O segredo da vitalidade do herói talvez es-

teja, afinal, nessa ambiguidade, em sua resistência aos continuados

esforços de esquartejamento de sua memória” (CARVALHO, 1990,

p.73). Assim, é entre o silêncio, o desvirtuamento e a glorificação que

25

FINAL3_Layout 1 28/06/11 15:59 Page 25

Page 26: LUIZA MAHIN: UMA RAINHA AFRICANA NO BRASIL

Luiza Mahin é escrita e reescrita, ora sob o olhar precavido da história,

ora ao sabor da liberdade criativa da literatura.

Ao analisar os romances históricos Malês, a Insurreição das Senzalas

e Um Defeito de Cor, vê-se esta recriação de Luiza Mahin na literatura

sob duas vertentes: no primeiro, ela é representada como uma rainha

africana que lidera a revolta dos malês, mas, em seguida, trai o movi-

mento entregando os planos dos revoltosos às autoridades. Já no se-

gundo, aparece como uma senhora idosa, que foi sequestrada quando

menina ainda em terras africanas e escravizada no Brasil. Separada do

filho por ter se envolvido em rebeliões lutar em defesa da liberdade dos

negros, teve que retornar ao continente africano, contudo, nunca per-

deu a esperança de reencontrá-lo, então, viajou de volta ao Brasil, em

busca desse sonho.

Luiza Princesa

Em Malês, o historiador Pedro Calmon buscou, na ficção, preen-

cher uma lacuna historiográfica, reinventando uma história e elimi-

nando o vácuo em torno de Luiza Mahin. A Luiza Mahin representada

por Pedro Calmon certamente foi escrita para atender aos interesses do

autor ou do grupo ao qual pertencia.

Definindo a obra como um romance histórico, Pedro Calmon apre-

sentou uma versão da rebelião. Segundo ele, dentre todos os levantes

que assolaram a Bahia a partir de 1807 contribuindo para a expansão

do haitianismo na província, a revolta dos malês foi “a única que teve

um caráter de insurreição geral, político-religiosa, destinada a acabar

com os proprietários e também com a sua Igreja, com seu governo e o

26

FINAL3_Layout 1 28/06/11 15:59 Page 26

Page 27: LUIZA MAHIN: UMA RAINHA AFRICANA NO BRASIL

seu culto, com os seus haveres e as suas leis” (CALMON, 2002, p.132).

Malês apresenta o conflito entre dois grupos — os membros da elite

e os africanos escravizados, ladinos e negros livres. Em meio aos festejos

pela chegada do Ano Novo e aos diálogos que evidenciavam a instabi-

lidade da política em tempos de governos regenciais, membros da elite

baiana demonstravam o pavor da ameaça constante de uma “revolução

de pretos” sobre a qual se ouvira falar.

Nos diálogos elaborados é traçado um perfil dos africanos malês

como um perigo permanente. Considerados “naturalmente” cruéis e

“fanáticos”, foram descritos como “aqueles que pilham, matam, incen-

deiam, e nas trevas, combinam alguma coisa mais terrível e absurda”

(CALMON, 2002, p.28).

Pedro Calmon revelou a localização territorial dos malês: o

bairro da Saúde, “uma pequena cidade negra” nas palavras do nar-

rador. Segundo Calmon, tratava-se de um local sujo e inóspito, onde

nem mesmo as autoridades locais teriam acesso. A descrição do local

identificado como o reduto dos negros naquele momento dá indícios

do desconforto do narrador perante a presença africana, desconforto

este reforçado pela descrição dos cultos religiosos dos “malês, jejes,

nagôs ou minas”:

[...] o culto continuava idêntico ou ligei-

ramente dessemelhante do que se praticava

nas tribos africanas, entre o Senegal e Angola,

até a contra costa. Os mesmos ritos, a mesma

dolente música dos batuques das selvas, as

mesmas cores votivas, a mesma dança lasciva

e histérica, as mesmas beberagens agridoces e

as comidas de predileção de cada santo, as

27

FINAL3_Layout 1 28/06/11 15:59 Page 27

Page 28: LUIZA MAHIN: UMA RAINHA AFRICANA NO BRASIL

mesmas descompassadas cenas de cando -

mblé indígena — e, sobretudo, aquela brutal

super s tição dos feiticeiros da África (CAL-

MON, 2002, p.31, grifo nosso).

O tom preconceituoso presente no discurso de Calmon não se en-

cerra nestas linhas. O planejamento do levante surge no texto como

uma revelação dos deuses — os tais “deuses maus” que nomeiam o ca-

pítulo, ou, como destaca, “farsas singulares da divindade negra” — à

Luiza Princesa durante a comemoração do Ano Novo no terreiro de

José dos Milagres (CALMON, 2002, p. 31), líder religioso que é retra-

tado como o feiticeiro que governava a orgia em homenagem a “algum

bestial espírito africano”.

A descrição de um ritual sagrado como um espetáculo de horror,

violência e embriaguez demonstra a intolerância religiosa inscrita nas

entrelinhas do texto. À animalização do rito religioso soma-se a intro-

dução de Luiza Mahin na narrativa — a Luiza Princesa —, a quem ca-

beria ordenar e dirigir a matança.

Dona de uma beleza inquietante, Luiza tinha cerca de trinta anos

e chegara às terras brasileiras ainda muito menina. “Não valia nada!”

— disse o narrador. Capaz de se prostituir em troca da alforria, arqui-

tetava e planejava seus atos e odiava aos brancos, apesar de ter “um

filho claro, em que vivia, nos olhos rasgados, toda a nobreza do sangue

paterno” (CALMON, 2002, p. 39).

Apresentada como anfitriã nas reuniões para o planejamento da

rebelião, foi Luiza Princesa quem marcou a data prevista para o levan-

tamento dos escravos. Ficou evidente a tentativa de traçar um perfil

desfavorável acerca do caráter da quitandeira, desse modo, o narrador

28

FINAL3_Layout 1 28/06/11 15:59 Page 28

Page 29: LUIZA MAHIN: UMA RAINHA AFRICANA NO BRASIL

propôs uma mulher capaz de qualquer coisa para satisfazer seu ideal.

Assim, demonstrando deslealdade para com aqueles que a idolatravam,

utilizou-se tanto da força física dos malês — segundo o romancista, mu-

çulmanos cruéis e dados à guerra — quanto da gana dos pretos-minas

orientados por pai José. Ao relatar esta postura o narrador concluiu:

O inimigo era o homem branco — o se -

nhor. E o que não tinham conseguido ainda os

iorubas insurgidos, os hauçás sanguinários e os

nagôs dissimulados, ela, bonita princesa, con-

seguira. Aproximara de pai José os malês, asso-

ciara-os aos minas, celebrara uma secreta

aliança de vida e morte, assegurando aos mu-

çulmanos que só a sua religião reinaria, e ju-

rando aos nagôs que os orixás ficariam de pé.

Coordenara os elementos dispersos da popula-

ção escrava, o que valia dizer que enfeixara nas

suas mãos gentis, de Vênus de ébano, o raio ir-

resistível (CALMON, 2002, p.44).

Neste romance, Pedro Calmon tratou de falar sem delongas

sobre o pai de Luiz Gama, um homem “nobre, rico, com a família nu-

merosa” e voltou a descrever Luiza Mahin como uma mulher de linha-

gem nobre, em cujos olhos sedutores ocultavam-se traços negativos da

personalidade.

Em 20 de janeiro, a notícia da delação do levante chegara a Luiza

Princesa. Enquanto mensageiros se disfarçavam de carregadores,

Luiza, com uma rosa vermelha sangrando

29

FINAL3_Layout 1 28/06/11 15:59 Page 29

Page 30: LUIZA MAHIN: UMA RAINHA AFRICANA NO BRASIL

no cabelo penteado, declarou o seu plano de

ação. Pai José dera-lhe o primeiro homem bran -

co para aquela noite de desforra. Escolhera-o.

Não seria o pai do seu Luiz... Matarem-no... Por

quê? Não lhe merecia o seu veneno ou o seu pu-

nhal. Preparara o bote sobre presa mais rica. Se

falhasse a revolta, quem acusaria os revoltosos,

pedindo para eles centenas de açoites ou a

morte imediata? O promotor. O promotor in-

quietava-a e intrigava-a. Pois esse haveria de

morrer (CALMON, 2002, p.71).

Enquanto era aclamada pelos malês, de quem se tornaria rainha após

a vitória, tinha a quitanda invadida pelo promotor, que levara-lhe o filho,

a fim de usá-lo para conter a revolta. Descrente do ocorrido, Luiza se pre-

cipitou à casa do promotor, para pôr em prática seu plano:

— Eh, ioiô... Por esta não esperava, não? Vi-

sita fora de horas! É de mulher moça a ioiô rapaz

solteiro! Ah! Ah! Ah!

Ela subiu; ele recuou, pálido, quase ater-

rado, a testa salpicada de suor. À proporção que

avançava, o rosto de Luiza mudava de expres-

são, o fulgor dos seus olhos refletia uma decisão

enérgica, o riso de sua boca vermelha era duro e

amargo. As chinelinhas de bico revirado reti-

niam como castanholas nos degraus da escada,

o xale franjado esvoaçava-lhe ao ombro, e as

30

FINAL3_Layout 1 28/06/11 15:59 Page 30

Page 31: LUIZA MAHIN: UMA RAINHA AFRICANA NO BRASIL

saias de roda gomadas estalavam como vidro

quebrando... (CALMON, 2002, p.76).

Segundo a narrativa de Pedro Calmon, diante da resistência do

Dr. Ferraz em ceder aos seus encantos e vendo o fracasso do seu plano

de sedução, a expressão de Luiza mudou e envolveu-se em cólera e

ira. Desfigurada, ia avançar sobre o homem quando ouviu um grito:

“Mãe! Oh, mãe!”, o chamado do filho a freou. A ordem do promotor

foi clara: “Renuncia a teu ódio, Luiza, ou renuncia a teu filho!” (CAL-

MON, 2002, p. 78).

Sob o título Mulher, Calmon revelou uma Luiza Mahin traidora e

principal responsável pela derrota do movimento. Convencida pelo

herói da trama — o promotor Ângelo Muniz da Silva Ferraz—, após a

ameaça de ser afastada do seu filho, ela não só denunciou o levante,

como negou a cultura e a identidade negra, mostrando uma face sub-

missa, que em nada se assemelha ao mito conhecido:

— É meu filho, doutor. Amo-o mais que a

mim mesma. Vivo para ele. Sem ele não sei

viver. Nada mais vale para mim. Não quero

nada, ioiô. Maldito sangue este que me corre

nas veias! Da gente bárbara que se embriaga

com a destruição. Para quem a vingança é um

prazer do céu. Que serve a deuses assassinos,

falsos, cruéis, deuses que não conheceram o

amor e o perdão... Salve-me, ioiô. Salve-se tam-

bém. É para hoje... hoje...

— São oito horas e meia...

31

FINAL3_Layout 1 28/06/11 15:59 Page 31

Page 32: LUIZA MAHIN: UMA RAINHA AFRICANA NO BRASIL

— Depressa, ao Pilar, Água de Meninos,

Cruz do Pascoal... Depressa, antes que os malês

cheguem aos quartéis. Eles matarão, queimarão,

pilharão, porque são como bichos ferozes do

mato. Deus nos livre deles! Deus! Sim, Deus ver-

dadeiro! (CALMON, 2002, p. 79, grifo nosso).

A revolta foi retratada como um movimento desordenado e selva-

gem. Calmon afirmou que faltou inteligência aos revoltosos, o que os

levou a recuar. Opondo-se à versão proposta por Pedro Calmon, João

José Reis analisou os resultados da revolta e concluiu que a referida de-

sordem do movimento decorreu da impossibilidade de adiá-lo frente à

delação e a ação da força policial. Reis reconhece que houve confusão na-

quela noite, mas os rebelados não apelaram para a violência indiscrimi-

nada, não invadiram casas, não mataram à toa nem promoveram saques.

Calmon, ao descrever a rebelião, reafirmou o aquartelamento dos

líderes rebeldes na casa de Luiza Mahin. No epílogo da obra um su-

posto encontro entre Luiz Gama e o promotor Ângelo Muniz da Silva

Ferraz, passados trinta anos do levante, trouxe uma imagem do poeta

abolicionista que denuncia a intenção moralizante da escrita de Pedro

Calmon. Assim sucedeu o encontro:

Ângelo Muniz da Silva Ferraz estendeu-

lhe a mão descarnada. Os joelhos do jovem abo-

licionista se dobraram. Se o ministro não lhe

impedisse, com um gesto enérgico, cairia ajoe-

lhado. Balbuciou, a amargura sublinhando as

palavras:

32

FINAL3_Layout 1 28/06/11 15:59 Page 32

Page 33: LUIZA MAHIN: UMA RAINHA AFRICANA NO BRASIL

— Senhor, os joelhos já se me habituaram a vergar... quando é

diante das almas cheias de nobreza!

— Não, rapaz. De pé. É a posição que Deus determinou para o

homem, e a única que bem se ajusta ao seu alto papel neste mundo

(CALMON, 2002, p. 125).

Vê-se claramente um Luiz Gama submisso e obediente frente ao

homem que perdoou a fúria materna e, naquele encontro, redimia tam-

bém ao filho da quitandeira insurgente. O que se percebe é que esta era

uma representação de Luiz Gama e de Luiza Mahin que refletia os “so-

nhos da burguesia branca baiana”. A descrição de um Luiz Gama sub-

misso traz em si o desejo de controle do negro brasileiro, que em nada

se assemelha ao perfil de Luiz Gama e Luiza Mahin.

Através de uma descrição que contrasta com a imagem de heroína

vinculada a Luiza Mahin, o que se vê em Malês é a representação de

um mito negro sob a perspectiva e o olhar do intelectual branco, com

seus valores e aspirações implícitos, incluindo aí o ideal do negro civi-

lizado, que se via “valorizado” ao incorporar elementos que o aproxi-

mava dos brancos.9

Kehinde

“Em nós, até a cor é um defeito. Um imperdoá-

vel mal de nascença, o estigma de um crime. Mas

nossos críticos se esquecem que essa cor é a origem

da riqueza de milhares de ladrões que nos insultam;

que essa cor convencional da escravidão, tão seme-

33

9 A respeito da apropriaçãoda memória negra porintelectuais brancoscontemporâneos a PedroCalmon, ver SILVA, 2000.p. 205-213.

FINAL3_Layout 1 28/06/11 15:59 Page 33

Page 34: LUIZA MAHIN: UMA RAINHA AFRICANA NO BRASIL

lhante à da terra, abriga sob sua superfície escura,

vulcões, onde arde o fogo sagrado da liberdade.”

(Luiz Gama)

Logo no prefácio de Um Defeito de Cor a escritora Ana Maria Gonçal-

ves advertiu: “Esta pode não ser a história de uma anônima, mas sim de

uma escrava muito especial” (GONÇALVES, 2006, p. 17), referindo-se à

possibilidade de ser este livro uma revelação da trajetória de Luiza Mahin.

Conforme mencionado acima, trata-se de um longo relato feito por

Kehinde sobre sua vida entre os anos de 1817 e 1889. Aos oitenta e nove

anos ela rememora a infância em terras africanas, quando foi comercia-

lizada juntamente com a irmã gêmea e a avó, após ver sua família ser

morta por guerreiros em Savalu, no reino de Daomé, tendo como des-

tino a escravidão em terras brasileiras, onde se tornou adulta e assumiu

uma postura de luta contra o escravismo e demais injustiças decorren-

tes daquele sistema.

Nesta narrativa, fica clara a intenção da autora em mostrar que a

africano combateu desde o primeiro momento a condição de ser escra-

vizado. Vários elementos da carta de Luiz Gama ilustram o texto, como

a negação do batismo católico por parte de Kehinde (Luiza Mahin), que

refletia o caráter insurgente da mãe do poeta. A esperteza refletida na

ação de fugir do batismo cristão incute a coragem que acompanha a

personagem criada por Ana Maria Gonçalves. Manipuladora e sábia,

Kehinde demonstrava uma destreza incomum a uma criança de menos

de dez anos de idade:

Para os brancos fiquei sendo Luísa, Luísa

Gama, mas sempre me considerei Kehinde. O

nome que minha mãe e a minha avó me deram

34

FINAL3_Layout 1 28/06/11 15:59 Page 34

Page 35: LUIZA MAHIN: UMA RAINHA AFRICANA NO BRASIL

e que era reconhecido pelos voduns, por Nanã,

por Xangô, por Oxum, pelos ibêjis e principal-

mente pela Taiwo. Mesmo quando adotei o

nome Luísa por ser conveniente, era como Ke-

hinde que eu me apresentava ao sagrado e ao

secreto (GONÇALVES, 2007, p. 73).

A inteligência e sagacidade de Kehinde são indiscutíveis. Atenta

ao comportamento dos muçulmanos, chamados por ela de muçuru-

mins, alimentava em sua alma infantil algumas fantasias como o medo

de virar carneiro, entendida aqui como uma metáfora ao medo da es-

cravidão, que desumaniza o homem e retira dele a dignidade: “[...] eu

queria viver, e não virar carneiro de gente, nem carneiro de peixe” —

afirmava, recusando-se a ter sua carne sacrificada pelos brancos em ter-

ras estrangeiras (GONÇALVES, 2006, p. 39; 57).

Dona de uma perspicácia inquietante, Luísa Gama (como é cha-

mada após a compra) se revela grande estrategista na luta contra a con-

dição escrava e, aos poucos, busca alternativas para melhorar sua

situação frente à realidade que se apresentava. Apesar de ter sido orien-

tada por escravos mais velhos a ser obediente e submissa, Luísa logo

descobriu uma forma de impor sua vontade e até mesmo determinar o

que deveria ser feito. Comprada com a função de ser escrava de com-

panhia da filha do senhor, Luísa percebeu que, quando brincavam, a

sinhazinha sempre pedia a sua opinião, todavia nunca aceitava o que

ela decidia. A fim de ser atendida, a cativa mudou sua estratégia de co-

municação: “passei a dizer o contrário do que realmente achava para

que, ao me contrariar, ela fizesse o meu verdadeiro gosto” (GONÇAL-

VES, 2006, p. 80) — revelou.10

35

10 Em vários outrosmomentos da narrativaesta postura se repete.Assim ocorre, por exemplo,quando é alfabetizada naLíngua Portuguesa aoassistir às aulas que eramdadas à sinhazinha. Cf.GONÇALVES, 2006, p.92.

FINAL3_Layout 1 28/06/11 15:59 Page 35

Page 36: LUIZA MAHIN: UMA RAINHA AFRICANA NO BRASIL

Com dez anos de idade, Luísa tomou consciência da dicotomia

existente entre a casa-grande e a senzala e esta revelação lhe proporcio-

nou uma nova visão da vida e do seu papel social. Revolta, ressenti-

mento e desejo de justiça tornam-se cada vez mais presentes na trajetória

de Luísa Gama. Então com quinze anos de idade, Luísa conheceu tanto

a realidade da vida escrava no núcleo urbano quanto o trato diferen-

ciado dado pelos ingleses — interessados na abolição dos cativos e na

transformação destes em consumidores dos seus produtos.

Na capital, ela teve acesso a informações que a auxiliariam na con-

quista de sua liberdade e de seu filho. Ali, conheceu a dinâmica das jun-

tas de alforria e um pouco depois, tornou-se ganhadeira, o que lhe

renderia uma verdadeira reviravolta em seu destino. O trabalho das ga-

nhadeiras teve uma importância singular no cotidiano da cidade do Sal-

vador daquele período. Tratava-se de uma atividade que interessava às

escravas, pois, além de permitir maior mobilidade e certo grau de auto-

nomia em relação à função que realizava, era considerada uma das prin-

cipais portas para a conquista da alforria. Contudo, apesar de ser uma

atividade econômica importante para o abastecimento social, era vista

com desconfiança pelas autoridades dada a mobilidade do trabalho das

vendedeiras. Circulando pela cidade ou fixas em pontos estratégicos, as

ganhadeiras representavam um elemento de interação entre a gente es-

cravizada e esta peculiaridade rendeu às negras de ganho muitos em-

bates com as autoridades policiais.

Foi a atividade de ganho que possibilitou a Luiza um contato mais

intenso com os muçulmanos, cuja admiração pelo espírito revoltoso é

citada em várias passagens do relato, bem como o encontro com o

homem que seria o pai de Luiz Gama.

No decorrer da narrativa, líderes do levante de 1835 são descritos

36

FINAL3_Layout 1 28/06/11 15:59 Page 36

Page 37: LUIZA MAHIN: UMA RAINHA AFRICANA NO BRASIL

e citados, como Elesbão do Carmo, Manoel Calafate, Pacífico Licutan e

Ahuna. Apesar de participar do levante, Luiza não aprece como uma

liderança expressiva.

A notícia da aprovação da lei da deportação dos africanos entristeceu

a mãe de Luís Gama, que viu diante de si apenas três alternativas para

permanecer na Bahia: afirmar que se instalara naquele estado havia pouco

tempo, se declarar inválida e sem recursos ou denunciar os envolvidos

no levante. Sobre esta última alternativa, Luísa assegurou: “eu nunca teria

essa coragem, ou covardia, quiçá” (GONÇALVES, 2007, p. 545).

A Cemiterada e a Sabinada também aparecem na narrativa como

eventos nos quais Luiza se viu envolvida, apesar de negar a atuação

nestas rebeliões. A fuga para o Maranhão, retratada no oitavo capítulo,

aproxima Luísa do culto aos voduns, no qual se inicia religiosamente,

numa tentativa de se reaproximar das crenças anteriores à escravidão

e dos ensinamentos da avó. E também neste capítulo que fica ciente da

venda do filho e da incerteza do reencontro, que a acompanharia por

toda sua trajetória.

Após longa peregrinação por São Sebastião do Rio de Janeiro, San-

tos, São Paulo, Campinas em busca do filho e muitos questionamentos

sem respostas, retornou a São Salvador e, enfim, decidiu-se pelo re-

gresso ao continente africano; o regresso às origens. O insistente desejo

de reencontro entre mãe e filho fez com que, mesmo com a saúde fra-

gilizada e abatida pelo avançar dos anos, Luísa decidisse retornar a Sal-

vador, com esperança de rever o filho perdido. A altiva e geniosa

mulher que tantas vezes desafiou o destino mostrou-se insegura frente

às incertezas que acometiam seus pensamentos:

Será que você acredita em tudo que acabei

de contar? Espero que sim. [...] Quanto a mim,

37

FINAL3_Layout 1 28/06/11 15:59 Page 37

Page 38: LUIZA MAHIN: UMA RAINHA AFRICANA NO BRASIL

já me sinto feliz por ter conseguido chegar até

onde queria. E talvez, num último gesto de mi-

sericórdia, qualquer um desses deuses dos ho-

mens me permita subir ao convés para respirar

os ares do Brasil e te abençoar pela última vez

(GONÇALVES, 2007, p. 947).

Segundo José Murilo de Carvalho,

[o] herói que se preze [...] tem de responder

a alguma necessidade ou aspiração coletiva, re-

fletir algum tipo de personalidade ou de compor-

tamento que corresponda a um modelo coletiva -

mente valorizado (CARVALHO, 1990, p. 55).

Desse modo, Um Defeito de Cor traz a representação de uma he-

roína: a ex-escrava que conquista a sua liberdade e torna-se uma co-

merciante próspera no Brasil e em terras africanas em pleno século XIX.

O mito Luiza Mahin Em tempos de exaltação da herança cultural afro-brasileira e de

busca de representantes históricos que traduzam os ideais de resistên-

cia, liberdade e identidade do negro no Brasil, o nome Luiza Mahin

surge como sinônimo de valores essenciais às conquistas dos descen-

dentes de africanos que aqui foram escravizados. Seja em revistas, jor-

nais, sites, blogs e/ou livros didáticos, referir-se a Luiza Mahin denota

resistência negra.

Durante o processo de produção deste trabalho, uma pesquisa no

38

FINAL3_Layout 1 28/06/11 15:59 Page 38

Page 39: LUIZA MAHIN: UMA RAINHA AFRICANA NO BRASIL

site www.google.com. permitiu a localização de 4.360 verbetes relacionados

ao vocábulo “Luiza Mahin”.11 O curioso é que, em alguns dos blogs que

foram verificados, foi possível visualizar duas imagens publicadas (Fi-

guras 1 e 2) como reproduções daquela que “dizia ter sido princesa na

África” e “fez de sua casa quartel de todos (grifo meu) os levantes escra-

vos que abalaram a Bahia nas primeiras três décadas do século XIX”.12

A instituição da imagem desta personagem responde à necessi-

dade de preencher as lacunas deixadas pela historiografia no que diz

respeito à valorização das lideranças negras atuantes nas lutas de re-

sistência ao escravismo no Brasil. Ao analisar as imagens, vê-se que se

trata de uma cópia da fotografia de Carolina Maria de Jesus (Figura 3),

autora das obras Quarto de Despejo: diário de uma favelada (1960), Casa de

Alvenaria (1961) e Pedaços de Fome (1963), dentre outros. Essa atribuição

do nome de Luiza Mahin a um “ser real”, pode ser interpretada como

a tentativa explícita de concretizar a sua existência, a exemplo do que

foi feito por Luiz Gama ao nomear a mãe na carta autobiográfica. Em

outras palavras, o rosto na imagem poderia ser o de Maria Carolina de

Jesus ou de qualquer outra mulher. Não é o rosto o fator principal, mas

a legenda. E mais que isso, a simbologia que acompanha o nome e tudo o

que ele representa para a memória coletiva da população afro-brasileira.

Hugo Lovisolo (1989) destacou, em A memória e a formação dos homens,

que a memória coletiva é fundamental “para a consciência de classe, ét-

nica, ou das minorias, sendo constitutiva das lutas contra a opressão ou

dominação” (LOVISOLO, 1989, p. 16). Ou seja, o resgate de personagens

como Luiza Mahin funciona como um catalisador no processo de identi-

ficação coletiva e toma o sentido de resistência e transformação.

Em entrevista à revista da União Nacional de Estudantes, em 1981,

Clóvis Moura ressaltou a necessidade de rever a historiografia brasileira.

39

11 Pesquisa realizada nosite www.google.com.brem 10 de março de 2009.

12 Informações retiradas dosblogs “O surgir davitória”; “Meu caminho,meu olhar” e “SobreJornalismo”,respectivamente, acessadosem 08 de setembro de2008. Percebe-seclaramente a presença deinformações equivocadassobre a personagem aquianalisada na tentativa desustentar sua imagemrevolucionária.

FINAL3_Layout 1 28/06/11 15:59 Page 39

Page 40: LUIZA MAHIN: UMA RAINHA AFRICANA NO BRASIL

“Nos compêndios de História deveriam constar como heróis Zumbi, Pa-

cífico Licutã (um dos heróis da revolução de 1835), Elesbão Dandará

(também líder dessa revolta), Luís Sanin, Luisa Mahin (mãe de Luís

Gama)”, afirmou, destacando aqueles que ele considerou heróis oculta-

dos pela história do país.13 Esta entrevista de Moura, apesar de datada

de 1981 ainda se fez atual em 2010, pois as mudanças sugeridas pelo his-

toriador continuavam sendo reivindicadas, apesar de algum avanço já

ter sido notado neste sentido — o livro de Ana Maria Gonçalves, por

exemplo, atendeu a este apelo pelas vias da literatura.

Figura 1 Figura 2 Figura 3

A Revista História Viva, em edição temática sobre a presença negra

no Brasil, apresentou, numa reportagem escrita por Sueli Carneiro sob

o título “Estrelas com luz própria”, pequenas biografias de mulheres

que são símbolos de coragem e luta contra a escravidão. Divulgando o

objetivo de “resgatar-lhes os nomes, sobrenomes e ações, em que pese

a precariedade dos registros e com a esperança de que as lacunas sejam

preenchidas por outros curiosos”, Sueli Carneiro descreveu trechos da

vida de Luiza Mahin, Rosa Maria Egipcíaca, Tia Ciata e Mãe Aninha.

Sobre Luiza Mahin, ela afirmou:

40

13 Cf. Entrevista comClóvis Moura. In:Movimento UNE, revistabimensal da UniãoNacional dos Estudantes /novembro-dezembro 1981.p 34-38. Versão on-linedisponível no sítioeletrônicohttp://blog.zequinhabarreto.org.br/2009/11/12/memria-entrevista-com-clvis-moura-1981/ . Acesso em11 de setembro de 2010, às01h51min.

FINAL3_Layout 1 28/06/11 15:59 Page 40

Page 41: LUIZA MAHIN: UMA RAINHA AFRICANA NO BRASIL

Comecemos por Luiza Mahin, uma de nos-

sas mais importantes rebeldes na luta contra a

escravidão. Segundo alguns autores, era origi-

nária da África, pertencente à etnia jeje e foi

transportada para o Brasil como escrava. Outros

se referem a ela como natural da Bahia e tendo

nascido livre. Luiza deu à luz um filho, Luiz

Gama, que mais tarde se tornaria poeta e aboli-

cionista. O pai de Luiz Gama era português. E,

para saldar suas dívidas, vendeu o próprio filho

como escravo, aos 10 anos de idade. O traficante

que o comprou levou-o para Santos.

Luiza Mahin foi uma mulher inteligente e

rebelde. Sua casa tornou-se quartel-general das

principais revoltas negras que ocorreram em

Salvador em meados do século XIX. Participou

da Grande Insurreição, a Revolta dos Malês, o

último levante expressivo de escravos, ocorrido

na capital baiana em 1835. Após a derrota dos re-

voltosos, conseguiu escapar da violenta repres-

são desencadeada pelo governo da província e

partiu para o Rio de Janeiro. Lá também parece

ter participado de outras rebeliões negras, sendo

por isso presa e possivelmente deportada para a

África (CARNEIRO, 2006, p. 48-49, grifo nosso).

Kabenguele Munanga e Nilma Lino Gomes, na obra Para Entender

o Negro no Brasil de Hoje: história, realidades, problemas e caminhos, um livro

41

FINAL3_Layout 1 28/06/11 15:59 Page 41

Page 42: LUIZA MAHIN: UMA RAINHA AFRICANA NO BRASIL

direcionado à educação de jovens e adultos no 2º segmento do Ensino

Fundamental, afirmaram, no capítulo direcionado à análise dos movi-

mentos de resistência negra, que durante o Levante dos Malês,

os primeiros tiros foram dados no porão

onde morava Manuel Calafate, na Ladeira da

Praça. A partir daí, travaram-se sangrentos

combates nos quais se teriam destacado, entre

outros, Agostinho, Ambrósio, Cornélio, Engrá -

cia, Gaspar, Higino, José Saraiva, Luís e Luisa

Mahin (mãe do poeta Luís Gama) (MUNANGA;

GOMES, 2004, p. 95, grifo nosso).

Em seguida, no sétimo capítulo do mesmo livro, sob o título “Ho-

mens e mulheres negros: notas de vida e sucesso”, os autores apresen-

taram uma “Luisa Mahin”

oriunda da etnia jeje-nagô, da etnia Mahi,

[que] dizia ter sido princesa na África. Luisa

Mahin foi perseguida pelo Governo da Provín-

cia e foi para o Rio de Janeiro, onde também par-

ticipou de outras insurreições negras, sendo,

por isso, como relatam os historiadores, depor-

tada para o continente africano (grifo nosso).14

Nesta breve referência feita por Munanga e Nilma Lino, dois as-

pectos merecem ser destacados: primeiro, a fonte originária desta cita-

ção se resume ao sítio eletrônico e, segundo, tanto neste texto quanto

42

14 Ibidem, p. 213.

FINAL3_Layout 1 28/06/11 15:59 Page 42

Page 43: LUIZA MAHIN: UMA RAINHA AFRICANA NO BRASIL

no que fora publicado pela Revista História Viva, expressões como “par-

ticipou”, “foi”, “dizia” conferem certeza ao que pode ser considerado

uma suposição no campo da historiografia. A partir dos exemplos cita-

dos, é possível perceber a carência de fontes primárias acerca de Luiza

Mahin — geralmente os registros que se reportam a Luiza Mahin reve-

lam reinterpretações da carta autobiográfica de Gama — e compreender

que a concepção de um mito independe da comprovação documental,

estando vinculada muito mais a um código de identificação que à his-

tória propriamente dita, conforme sinaliza José Murilo de Carvalho em

A Formação das Almas. Disse o autor:

O domínio do mito é o imaginário, que se

manifesta na tradição escrita e oral, na produção

artística, nos rituais. A formação do mito pode dar-

se contra a evidência documental; o imaginário

pode interpretar evidências segundo mecanismos

simbólicos que lhes são próprios e que não se en-

quadram necessariamente na retórica da narrativa

histórica (CARVALHO, 1990, p. 58).

Em Mito e Realidade, Mircea Eliade alerta para as variadas formas

de compreender um mito. Ao contrário da concepção vigente durante

o século XIX, quando mito se assemelhava a fábula ou ficção, a contem-

poraneidade tratou de ressignificar o vocábulo. Assim, o mito passou a

ter um sentido mais exemplar e significativo, como um modelo de con-

duta; a representação de uma existência valiosa (ELIADE, 2007, p. 7-8).

É justamente pela trajetória de Luiza Mahin e pela representação do

protagonismo negro nas lutas de resistência, que seu nome tem sido uti-

43

FINAL3_Layout 1 28/06/11 15:59 Page 43

Page 44: LUIZA MAHIN: UMA RAINHA AFRICANA NO BRASIL

lizado em vários espaços e instituições vinculados à memória do povo

negro e descendentes de africanos no Brasil. Assim, Luiza Mahin aparece

estampada em camisetas de “uma rede de ativistas da África e da diás-

pora”, com a intenção de que sejam divulgadas “mensagens de lideran-

ças africanas e da diáspora”15; dá nome ao Jornal do Colégio Estadual

Luiza Mahin do Rio de Janeiro, que tem como público alvo “adolescentes

do sexo feminino que cumprem medidas socioeducativas”, e que possi-

velmente terão no exemplo de Luiza Mahin uma referência positiva,

“pois corresponde à história de uma mulher negra que defendeu a sua

dignidade e a de seu povo”16; nomeia também uma escola estadual em

Salvador (BA) e é homenageada constantemente em eventos relaciona-

dos à memória afro-brasileira.

A multiplicidade das representações de Luiza Mahin foi um dos

aspectos analisados por Mariele Araújo em Luiza Mahin: Uma ‘Princesa’

Negra na Bahia dos Anos 30. Neste trabalho a autora retomou a definição

de Luiza Mahin presente no dicionário Mulheres do Brasil e letras de mú-

sicas dos grupos Cidade Negra e Simples, além do depoimento da então

presidente da União de Negros pela Igualdade (no ano 2000), Olívia San-

tana, e da iniciativa do grupo Coletivo de Mulheres Negras, de São

Paulo, que, em 1985, inaugurou uma praça na capital paulista com o

nome Luiza Mahin, em homenagem pelo Dia Internacional da Mulher.17

Exemplos como estes confirmam a importância do nome Luiza Mahin

e o papel sociopolítico assumido por ela.

Se a dinâmica do escravismo urbano na cidade do Salvador possi-

bilitou maior circulação aos negros de ganho que, permitiu também

que negros ganhadores e negras ganhadeiras, reunidos nos cantos, es-

tabelecessem vínculos e trocassem ideias. A conspiração silenciosa e

dissimulada dos escravos de ganho parece ter adentrado em outros can-

44

15 No blog Sauti YetuGorée, que, segundo oscriadores do blog, significa“nossa voz" em Swahili, avenda das camisetas éjustificada pela intenção de“divulgar mensagens delideranças africanas e dadiáspora”. Cf. no sítioeletrônicohttp://sautiyetugoree.blogspot.com/. Acesso em 04 desetembro de 2010, às19h56min.

16 Cf. no blog C.E. LuizaMahin. Postado em 24 desetembro de 2009. Acessoem 06 de setembro de2010, às 12h21min.

17 Cf. ARAÚJO, Mariele S.Luiza Mahin — Uma“Princesa” Negra naBahia dos Anos 30:discursos de cultura e raçano romance histórico dePedro Calmon, Malês — AInsurreição das Senzalas(1933). Monografia(Especialização emHistória Social eEducação) —Universidade Católica deSalvador, 2003.

FINAL3_Layout 1 28/06/11 15:59 Page 44

Page 45: LUIZA MAHIN: UMA RAINHA AFRICANA NO BRASIL

tos; avançado por outros espaços até o campo da narrativa.

A Luiza Mahin quituteira e dona de uma quitanda transitou não só

entre a historiografia e o romance histórico. Sinais da sua presença foram

notados, por exemplo, na literatura infantojuvenil de Viriato Corrêa

(1938), na poesia de Miriam Alves (1985), no conto de Joel Rufino dos San-

tos (1999) e na ficção psicanalítica e intimista de Betty Milan (2009).

Editado pela primeira vez em 1938, em plena vigência do Estado

Novo, Cazuza foi publicado num período em que a escola representava

uma extensão do autoritarismo social e a educação, um instrumento de

controle e disciplina. A literatura infantil, como não poderia deixar de

ser àquele tempo, empenhava-se em se ajustar ao projeto de construção

do Estado Nacional, conferindo um perfil pedagógico à narrativa. Com

o propósito de educar a partir de outros exemplos, em certa passagem

do texto é apresentada a uma turma de alunos a história da vida de Luiz

Gama. Ressaltando a existência de homens exemplares na história do

Brasil, o professor apresenta à classe “o mais belo dos exemplos”:

— O mundo está cheio de homens que,

apesar de não terem meio de estudar, estuda-

ram e foram grandes homens. Não precisamos

buscar exemplos lá fora, nos países alheios.

Temos muitos deles aqui mesmo, no Brasil. E

eu quero narrar aquele que julgo o mais belo

dos exemplos.

E lançando os olhos por toda a classe:

— Conhecem vocês a vida de Luís Gama,

o grande

propagandista da abolição?

— Não, respondemos.

45

FINAL3_Layout 1 28/06/11 15:59 Page 45

Page 46: LUIZA MAHIN: UMA RAINHA AFRICANA NO BRASIL

— Ouçam-na.

E contou.

Até os dez anos, Luís Gama era uma

criança como as outras. A mãe trazia-o nos bra-

ços extremosamente; o pai parecia ter por ele

um grande afeto.

Foi ao completar aquela idade que o destino

lhe mudou brutalmente a vida, arrastando-o de

súbito pelo mundo, como os temporais arrastam

pelo mar os barcos sem vela e sem leme.

Ouçam a história.

Entre os pais de Luís Gama havia profun-

das diferenças.

A mãe era uma negra quitandeira. O pai,

um fidalgo português.

Ela trabalhava. Ele, um estroina, jogava

todo o dinheiro que lhe caía nas mãos.

O jogo, meus meninos, é realmente uma

das maiores ruínas do mundo. O homem que

joga acaba perdendo a própria dignidade.

O pai de Luís Gama viciou-se tanto no jogo

que, para ter com que jogar, passou a cometer

todas as baixezas.

Um dia, entrou ele, pela manhã, em casa

da quitandeira.

Sentou o filho nas pernas, beijou-o, fez-lhe

os carinhos do costume e, de repente, com a

maior naturalidade, perguntou-lhe:

46

FINAL3_Layout 1 28/06/11 15:59 Page 46

Page 47: LUIZA MAHIN: UMA RAINHA AFRICANA NO BRASIL

— Não queres ir com o papai, num barco,

ver os navios que estão no porto?

O pequeno pulou de contente. Tinha uma

vontade louca de andar no mar e uma vontade

maior de entrar num navio.

— Quero! Quero! Vamos.

A mãe correu a lavá-lo e a vesti-lo.

Meia hora depois, a mãozinha segura à mão

do pai, lá saiu Luís pelas ruas, pulando ingenua-

mente, alegremente, como um pássaro feliz.

Isto se passava na Bahia, no dia 10 de no-

vembro de 1840.

No porto havia dois ou três navios. O Sa-

raiva, um patacho que carregava escravos, es-

tava ancorado no fundo da enseada.

— Queres ir àquele navio que está mais

distante? perguntou o

pai ao filho, apontando-lhe o patacho.

— Quero!

[...]

Mas, em certo momento, sente que o pai

não está ao seu lado. Em vão procura-o aqui,

ali. Corre à popa. Corre à proa. Corre depois à

amurada e o vê, já distante, fugindo no escaler

que os trouxera.

— Papai! grita aflitamente.

— Vou a terra, filhinho, mas volto já, res-

pondeu-lhe de longe o fidalgo.

47

FINAL3_Layout 1 28/06/11 15:59 Page 47

Page 48: LUIZA MAHIN: UMA RAINHA AFRICANA NO BRASIL

Com aquela pouca idade, Luís sabia o pai

que tinha. Num relance, compreendeu a cilada

miserável em que caíra.

E, sufocado de lágrimas, brada numa

grande explosão de revolta:

— Papai, o senhor me vendeu!

Parecia mentira, mas era verdade. Para ter

cem ou duzentos mil réis com que pudesse

jogar, o pai havia vendido o filho pequenino!

O negócio fora feito na véspera. Toda

aquela história de passeio no mar tinha sido in-

ventada para entregar a criança ao comandante

do navio.

O resto do dia o pequeno não parou de

chorar.

Atiraram-no depois para o convés, no

meio dos escravos que iam ser vendidos no Rio

de Janeiro.

À tarde, o barco saiu barra afora.

O pobrezinho, que só conhecia a doçura

dos carinhos da mãe, tremeu diante do longo

inferno que se desenrolou aos seus olhos.

[...]

Mas a força de vontade é uma virtude tão

poderosa que nem a própria desgraça consegue

vencê-la.

Tinha Luís dezessete anos quando um me-

nino rico chegou para estudar em casa do alfe-

48

FINAL3_Layout 1 28/06/11 15:59 Page 48

Page 49: LUIZA MAHIN: UMA RAINHA AFRICANA NO BRASIL

res. Era Antônio Rodrigues Prado Júnior, que

os pais mandavam a São Paulo para continuar

os estudos.

[...]

O antigo escravo vive de livro na mão. Não

há um instante de folga que não o aproveite

para estudar.

Não vai a parte alguma, não se diverte, não

conhece os gozos do mundo. Vive, por alta

noite, de toquinho de vela aceso, olhos nos li-

vros, devorando-os, devorando-os.

[...]

E, estudando e trabalhando, conseguiu

tudo que quis ser: poeta, jornalista, advogado,

orador, o mais ardente e o mais sincero defen-

sor da raça negra que houve no seu tempo.

E conseguiu tudo isso com uma grande fe-

rida aberta no coração, ferida que a sorte nunca

lhe permitiu que sarasse. É que, desde aquele dia

infeliz em que o pai o atirou para o convés do

navio negreiro não teve mais notícias de sua mãe.

A vida inteira passou a pedir notícias dela

e a procurá-la. E o destino cruel nunca mais

consentiu que ele a visse. Às vezes, sonhava ou-

vindo-lhe a voz; delirava, outras vezes, vendo-

a ao seu lado carinhosamente. Mas tudo sonho,

sonho e nada mais.

[...]

49

FINAL3_Layout 1 28/06/11 15:59 Page 49

Page 50: LUIZA MAHIN: UMA RAINHA AFRICANA NO BRASIL

A pobreza, as suas ocupações e as suas di-

ficuldades, ao lado das dificuldades, das ocupa-

ções e da pobreza de Luís Gama, são gotas

d’água comparadas com o mar. A sorte algemou

Luiz Gama de todas as maneiras. Deu-lhe aquele

pai infame. Deu-lhe a extrema pobreza e a ex-

trema humildade. Deu-lhe até a desgraça da es-

cravidão. E, no entanto, Luís Gama quebrou

todas essas algemas e estudou e instruiu-se.

Por quê? Porque teve força de vontade

(CORRÊA, 1938, p. 165-169).

O trato em relação à formação étnica do povo brasileiro não é tema

discutido na narrativa. Contudo o exemplo de um negro que venceu as ad-

versidades e tornou-se um homem respeitável e “defensor da braça ne -

gra” torna-se um modelo de conduta para os jovens em formação. Luiza

Mahin é mencionada como uma mãe carinhosa, que cuidava e protegia o

seu filho. A busca pela mãe, retratada na carta autobiográfica de Gama é

exposta no escrito de Corrêa como uma grande ferida aberta no coração do

poeta. E o estudo e a instrução, uma arma que simboliza sua resistência.

Os versos do poema Mahin Amanhã da escritora Miriam Alves tra-

zem uma Luiza Mahin que atua decisivamente no levante malê. Mais

que representar o levante, Miriam Alves dá força e movimento às pa-

lavras, como se fossem lançadas tal qual a “lâmina das adagas” do con-

fronto que anuncia e descreve. Diz o poema:

50

FINAL3_Layout 1 28/06/11 15:59 Page 50

Page 51: LUIZA MAHIN: UMA RAINHA AFRICANA NO BRASIL

Mahin Amanhã

Ouve-se nos cantos a conspiraçãovozes baixas sussurram frases precisas escorre nos becos a lâmina das adagas

multidão tropeça nas pedras

Há revoada de pássaros Sussurro, sussurro:

“é amanhã, é amanhã Mahin falou, é amanhã”

A cidade toda se prepara malês bantus

jejes nagôs

Vestes coloridas resguardam esperanças Aguardam a luta

arma-se a grande derrubada branca a luta é tramada na língua dos Orixás

“é aminhã, aminhã” sussurram

malês jejesbantus

nagôs “é aminhã, Luiza Mahin, falô”

A resistência escrava é evidenciada nos versos, assim como a par-

ticipação feminina ativa nas lutas por libertação e, neste caso, seu pro-

tagonismo. Assim, Luiza Mahin é representada de modo exemplar na

51

FINAL3_Layout 1 28/06/11 15:59 Page 51

Page 52: LUIZA MAHIN: UMA RAINHA AFRICANA NO BRASIL

poesia de Miriam Alves e assegura a valorização da memória do povo

negro através da recriação do cenário do levante tramado “na língua

dos Orixás”.

Diz-se que “quem conta um conto aumenta um ponto”. Ao ler o

conto O filho de Luiza, do historiador Joel Rufino dos Santos, vê-se uma

aplicação literal deste ditado popular. Neste conto, a história de Luiz

Gama é apresentada tendo como ponto de partida a revelação da figura

materna. Inicialmente, Luiza Mahin é retratada como de costume: uma

negra livre, quitandeira, que participou do Levante dos Malês de 1835.

Todavia, outros fatores aparecem neste texto e dão um tom diferen-

ciado à narrativa. Semelhante ao que foi representado por Pedro Cal-

mon, Luiza aparece como uma mulher que, além de manter relações

com vários homens e que “se apaixonava dia sim, dia não” (SANTOS,

1999, p. 11), foi favorecida algumas vezes pela generosidade do homem

branco que lhe dera um filho. Foi o Oliveira — nome atribuído ao pai

de Luiz Gama — que a livrou da prisão após ser capturada depois da

revolta dos malês — programada neste conto para fevereiro de 1835,

tal qual em Malês —, assim como foi ele que comprou para ela uma

venda na qual comerciava doces de alfenim.

Assim conta Joel Rufino dos Santos (1999, p. 9-13):

Uma boa história pode começar de qual-

quer maneira. Esta começa com uma quitan-

deira da Bahia.

Chamava-se Luísa. O sobrenome deixo pra

dizer depois.

Luísa era pequena, bem negra e tinha lá-

bios roxos — diferente de quase todo mundo,

que tem lábios cor de rosa. Outra coisa: a maior

52

FINAL3_Layout 1 28/06/11 15:59 Page 52

Page 53: LUIZA MAHIN: UMA RAINHA AFRICANA NO BRASIL

parte dos negros da Bahia, naquele tempo, era

escrava. Luísa não. Por quê?

Não sei. Quando começou essa história,

ela já era livre — e nada, nada sabemos dela

antes disso.

Luísa também não era cristã. Era um pro-

blema? Para as autoridades era. Tinham receio

de negros que não fossem cristãos. “Se acredi-

tam em outros deuses”, pensavam, “podem

pedir ajuda a eles e esses deuses vão ajudá-los

contra nós. É melhor, aqui na Bahia, só permitir

o deus cristão”.

Para Luísa, porém, ter outra religião não

era problema. Ela achava que todo mundo

podia ter a sua. Quanto mais religiões e deuses,

melhor. [...]

Luísa tinha outra estranheza. Quer dizer,

que se considerava estranheza.

Namorava negros e brancos. Não olhando

a cor, se apaixonava dia sim, dia não. [...]

Uma tarde veio à quitanda um certo Oliveira.

[...]

Naquele mesmo dia começaram a namo-

rar firme.

[...]

Em fevereiro de 1835, estourou a revolução

dos malês. Luísa foi presa e comeu o pão que o

diabo amassou. Castigada com duzentas chibata-

53

FINAL3_Layout 1 28/06/11 15:59 Page 53

Page 54: LUIZA MAHIN: UMA RAINHA AFRICANA NO BRASIL

das, teve hora que ela desejou ter morrido. Pensou

que ia apodrecer na cadeia. Mas, um belo dia,

quem veio soltá-la? Oliveira. Ele era branco e foi

ao juiz com uma conversa comprida: ia se respon-

sabilizar pela quitandeira e coisa e tal.

Luísa, é claro, ficou muitíssimo agrade-

cida. Foram andando pela rua e ela contou uma

coisa para ele: estava grávida e tinha sido uma

sorte não perder a criança.

Batizaram-no Luís.

Veem-se aqui o reforço do estereótipo da ideia do branco como o

mentor da liberdade negra e a necessidade de tutela e controle sobre as

ações dos negros envolvidos com os malês, que, no entendimento das

autoridades, precisavam de vigilância constante. Entretanto, a principal

inovação trazida pelo conto à controversa imagem de Luiza Mahin diz

respeito ao momento da venda de Luiz Gama: “Perdão, meu filho. Mas

foi tua mãe que mandou te vender. Você ainda vai ser feliz” (SANTOS,

1999, p. 13) — disse o pai, despedindo-se do garoto.

A revelação do nome mãe como mandante no processo de comer-

cialização do filho suscita interpretações variadas. Por um lado, esta pode

ter sido uma estratégia do contista para reforçar a falta de caráter de um

pai que vende o filho e se esquiva da responsabilidade do ato ao trans-

feri-lo para a figura materna, ausente na negociação; por outro, pode su-

gerir que a separação entre mãe e filho foi uma atitude consciente e

premeditada, reforçando a ideia de abandono materno e leviandade. Daí,

segue-se uma narrativa breve da vida de Gama em São Paulo e seu exem-

plo de superação e referência na causa abolicionista.

54

FINAL3_Layout 1 28/06/11 15:59 Page 54

Page 55: LUIZA MAHIN: UMA RAINHA AFRICANA NO BRASIL

No romance Consolação, publicado em 2009, a psicanalista, escritora,

jornalista e dramaturga Betty Milan retrata a história de Laura, uma médica

brasileira que viveu uma relação de amor e cumplicidade com Jacques, fran-

cês, em Paris e, após a morte do companheiro, decide retornar a São Paulo

e visitar o túmulo do pai, sepultado no Cemitério da Consolação.

No retorno às origens, em busca da consolação ao seu pesar, Laura

redescobre uma São Paulo que se faz personagem da narrativa e man-

tém um diálogo introspectivo com mortos, com moradores de rua e ven-

dedores ambulantes. Enquanto transita no cemitério em busca do jazigo

do pai depara-se com a sepultura da Marquesa de Santos, Oswald de

Andrade, Mário de Andrade e de Luiz Gama.

Ao descrever a passagem da personagem Laura pelo túmulo de

Gama, Betty Milan cria uma cena onde estudantes se aglomeram em

torno do mausoléu e permanecem atentos às palavras de Zé, guarda

do cemitério:

— Luís Gama nasce na Bahia. 1830, filho

de um branco e de uma africana livre, Luisa

Mahin. Luísa se envolve em mais de uma insur-

reição... é presa e deportada para o Rio. Luís

fica com o pai. Um branco que de pai não tem

nada. Depois de dilapidar a herança, negocia o

filho no cais do porto e faz dele um escravo.”—

Você me vendeu, pai?”, o menino pergunta

antes de embarcar. Da Bahia para o Rio e daí

para São Paulo, num lote de escravos. Sessenta

negros pertencentes a um só traficante. Sobe a

Serra do Mar a pé e vai até o interior de São

Paulo andando. Ninguém quer comprar Luís

55

FINAL3_Layout 1 28/06/11 15:59 Page 55

Page 56: LUIZA MAHIN: UMA RAINHA AFRICANA NO BRASIL

Gama. “escravo da Bahia, nunca. São todos re-

beldes”, e Luís fica servindo na casa do trafi-

cante. Lava, passa engraxa... Até que um dia,

nessa mesma casa, ele conhece um estudante de

direito e aprende a ler. De analfabeto a poeta,

jornalista, líder abolicionista.

— Sendo filho de mulher livre, era também

livre, diz um estudante.

— E quando, em 1871, a Lei do Ventre Livre

é aprovada e o escravo já pode comprar a sua li-

berdade, Luís Gama compra a liberdade de mui-

tos negros. Inclusive a do meu tataravô... Sim, a

do tataravô deste que vos fala, Zé, diz o guarda,

com a empolgação de quem faz um discurso.

Luís gama reencarnou em Zé, que fala por

ele e está tomado. Não há como interrompê-lo

(MILAN, 2009, p. 74-75).

A breve recriação de Luiz Gama e a referência a Luiza Mahin em

uma obra como Consolação pode parecer inoportuna causando certo es-

tranhamento. Todavia, ao longo da análise que fez sobre a morte nas

entrelinhas da sua narrativa, Betty Milan, por intermédio da persona-

gem Laura, afirmou com certa recorrência que a morte não anula uma

existência. Conforme análises aqui expostas, esta é uma consideração

que se adapta sem prejuízos às imagens de Gama e Mahin.

De volta a uma São Paulo que se apresentava para ela como uma

“metástase do inferno” (MILAN, 2009, p. 41), o sofrimento de Laura pa-

recia se assemelhar ao do pequeno Luiz que chegara àquela São Paulo

vendo-a, possivelmente, com os olhos tão tristes e doridos quanto os da

56

FINAL3_Layout 1 28/06/11 15:59 Page 56

Page 57: LUIZA MAHIN: UMA RAINHA AFRICANA NO BRASIL

personagem de Milan, que, assim como ele, ao chegar à capital paulista,

não tinha mala nem paradeiro e ninguém à sua espera. Dessa forma, a

separação forçada e a busca da consolação promoveram a conexão entre

Luiz Gama e a personagem central dessa narrativa.

Sílvio Roberto Oliveira (2004) considerou em sua pesquisa sobre Luiz

Gama que, especialmente na primeira metade do século XX, a história

deste poeta abolicionista foi sendo recontada por vários autores de maneira

muito semelhante à versão do artigo de Mendonça, sempre apresentando

altos graus de ficcionalização. Ao que parece, reproduzir a trajetória de

vida de Luiz Gama Luisa Mahin ainda é uma prática e a presença de refe-

rências a ambos nas narrativas citadas evidenciam a expansão do mito que

envolve os dois, principalmente quando se nota a variedade dos gêneros

literários nos quais estas reproduções são veiculadas.

A heterogeneidade evidente do público leitor das narrativas cita-

das permite considerar que os dois personagens transitam em ambien-

tes diversos, com objetivos também diversos, reforçando o argumento

aqui proposto. O alcance mítico da imagem de Luiza Mahin permitiu

ainda o avanço de suas representações que ultrapassam os campos da

história e da literatura. Trata-se de um mito cristalizado, mas, ainda

assim, móvel, na medida em que transita em campos variados a ponto

de ser apropriada de formas distintas. É justamente nesta dinâmica que

está sua singularidade. Ao adentrar o terreno da subjetividade, preen-

chendo uma carência historiográfica em resposta a um anseio há tem-

pos reclamado pela memória afro-brasileira.

57

FINAL3_Layout 1 28/06/11 15:59 Page 57

Page 58: LUIZA MAHIN: UMA RAINHA AFRICANA NO BRASIL

Porque Luiza Mahin existe

Em 2002, o tema do Carnaval do Bloco Afro Ilê Aiyê, em Salvador

(BA) foi Malês – A Revolução. No XXVIII Festival de Música Negra do

Ilê Aiyê, promovido com a intenção de preservar e expandir a música

de tradição africana, missão que o Ilê se propôs desde 1974, a canção

vencedora foi a música Levante de Sabres Africanos, de autoria de

Guellwaar e Moa Catendê.18 Dizia a letra:

Levante de Sabres... a noite caiu,

(A noite da glória talvez)

Na hora da verdade de grandes sábios malês

Com fúria e sonhos na tez.

1835 voltas do mundo malê,

Um sonho tão belo foi subtraído.

Mas ressoa no coro do majestoso Ilê

Por toda cidade vitorioso.

Cante! Aê, aê

Vibre! Aê, eá

Ninguém cala a boca de Babba Almami (Carcará)

O poder era o fim e a rainha esquecida Luiza Mahin

Temperou a revolta no tempo da memória;

Em nome de Allah ser o dono da terra

Para calafatear nosso caminho.

Só quem tem patuá não tem medo da guerra

Escorrega, levanta e nunca está sozinho.

Alufás: Dassalú, Dandará, Salin,

Licutan, Nicobé, Ahuna...

58

18 Cf.http://www.ileaiye.org.br/festival.htm. Acesso em 25de setembro de 2010, às15h12min.

FINAL3_Layout 1 28/06/11 15:59 Page 58

Page 59: LUIZA MAHIN: UMA RAINHA AFRICANA NO BRASIL

A “rainha esquecida” Luiza Mahin representa na letra da música

aqueles que escorregam e levantam; aqueles que caem, mas sabem re-

sistir. Esta é apenas mais uma das múltiplas representações possíveis

de Luiza Mahin, que exalta a rainha negra que levaria o poder ao povo

preto da província rompendo com as desigualdades e a exploração afri-

cana. O “tempero” da revolta é realimentado pela memória dessa qui-

tandeira, que deu um novo sabor à história do povo negro,

alimentando-a com a imagem de uma líder vitoriosa e destemida. A

força da legenda Luiza Mahin perpassa em vários espaços, como foi

demonstrado neste texto.

Dos cantos da Salvador do século XIX, de onde se diz ter ela in-

centivado os sonhos de liberdade de africanos escravizados, seguiu

pelos caminhos da história e da ficção e foi sendo reinterpretada e ree-

laborada segundo os interesses de grupos diversos e heterogêneos. Em

pleno século XXI, percebe-se a multiplicação dos espaços onde Luiza

Mahin aparece como referência, figurando tanto trabalhos escolares

como paradigma de representação de mulheres negras guerreiras

quanto se tornou chamariz durante propaganda eleitoral gratuita em

tempos de eleição presidencial.

Um trabalho realizado em 15 de julho de 2010 com alunos da

turma 6º ano B do Colégio Star, em Alagoinhas (BA), por acaso, forne-

ceu mais um exemplo desta abrangência de Luiza Mahin. Foi sugerida

uma atividade na qual os alunos deveriam produzir um cartaz com a

biografia de mulheres negras que se destacam na história do Brasil.

Considerando que a turma tinha cerca de trinta alunos, duas meninas

59

FINAL3_Layout 1 28/06/11 15:59 Page 59

Page 60: LUIZA MAHIN: UMA RAINHA AFRICANA NO BRASIL

apresentaram a biografia de Luiza Mahin. Como cada uma trouxe uma

imagem, isso despertou a curiosidade da turma a respeito de qual seria

“a verdadeira” Luiza Mahin. Contudo, mesmo com as imagens dife-

rentes, comentaram que a decisão de apresentá-la por ter lutado contra

a escravidão.

A referência à utilização eleitoreira da imagem de Luiza Mahin diz

respeito à estratégia de campanha da candidata Dilma Rousseff , pre-

sidente eleita em 2010, que segundo o Jornal Folha Brasiliense, de 14 de

junho de 2010, ao adotar um tom feminista em sua campanha, produ-

ziu banners que a colocavam ao lado de várias mulheres famosas como

Mãe Aninha, Pagú, Iara Iavelberg, Princesa Isabel, Chiquinha Gonzaga,

Maria Auxiliadora Lara Barcelos, Nísia Floresta, Ana Neri, Anita Gari-

baldi e Luisa Mahin. Apesar de parecer estranho ver Luiza Mahin e a

Princesa Isabel figurarem num espaço com o mesmo propósito, vê-se

claramente a intenção de relacionar a luta feminina diante das adversi-

dades que o sistema político-social impunha.18

Assim, vê-se que o mito construído em torno de Luiza Mahin dispõe

de uma abrangência que ultrapassa a fronteira da cor ou da identificação

racial. O mito do povo negro foi ressignificado e essa transformação se

torna evidente ao analisar os espaços que dela se apropriam. Isso mostra

que trajetórias de vida como a de Luiza Mahin, verdadeiras ou não; reais

ou fictícias; inventadas ou reveladas, traduzem a independência, a ou-

sadia e, mais que isso, a presença marcante e definitiva do negro na his-

tória do país como ser autônomo, consciente e determinado.

60

19 Cf. Na oficialização dacandidatura de Dilma, PT"desbota" o vermelho dasbandeiras e direcionadiscurso para públicofeminino. Disponível nosítio eletrônicohttp://www.correiobraziliense.com.br. Acesso em 25de setembro de 2010, às22h45min.

FINAL3_Layout 1 28/06/11 15:59 Page 60

Page 61: LUIZA MAHIN: UMA RAINHA AFRICANA NO BRASIL

Referências bibliográficas

ALVES, Mirian. Mahin Amanhã. In: Cadernos negros. São Paulo, Editora

dos Autores, 1985.

ARAÚJO, Mariele S. Luiza Mahin – Uma “Princesa” Negra na Bahia dos

Anos 30: discursos de cultura e raça no romance histórico de Pedro Calmon,

Malês – A insurreição das Senzalas (1933). Monografia (Especialização em

História Social e Educação) – Universidade Católica de Salvador, 2003.

________________. A Medida das Raças na Mistura Imperfeita: discursos ra-

cialistas em Pedro Calmon – 1922/33. Dissertação (Mestrado em História)

– Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da

Bahia, Salvador, 2006.

AZEVEDO, Elciene. Orfeu de Carapinha: a trajetória de Luiz Gama na impe-

rial cidade de São Paulo. Campinas, Ed. Da Unicamp, 1999.

CALMON, Pedro. Malês, a Insurreição das Senzalas. 2 ed. Salvador: As-

sembleia Legislativa do Estado da Bahia; Academia de Letras da Bahia,

2002a. 144p.

CARNEIRO, Sueli. Estrelas com luz própria. In: Revista História Viva. Edi-

ção Especial Temática nº3. Temas Brasileiros. ISSN 1808-6446. São Paulo:

Duetto Editorial, 2006, p. 48-49.

CARVALHO, José Murilo de. A Formação das Almas: o imaginário da Re-

pública no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

Carta de Luiz Gama a Lúcio de Mendonça. In: MORAES, Marcos Antô-

nio (org.). Antologia da carta no Brasil: me escreva tão logo possa. São Paulo:

Moderna, 2005, p. 67-75

CORRÊA, Viriato. Cazuza. 37ª ed. São Paulo: Editora Nacional, 1992. Di-

gitalizado por Susana CAP – Projeto Democratização da Leitura. Dispo-

nível no sítio eletrônico . Acesso em 10 de setembro de 2010, às 17h13min.

61

FINAL3_Layout 1 28/06/11 15:59 Page 61

Page 62: LUIZA MAHIN: UMA RAINHA AFRICANA NO BRASIL

COSTA, Ana de Lourdes Ribeiro da. Espaços negros: “cantos” e “lojas” em

Salvador no século XIX. In: Caderno CRH. Suplemento, p. 18-34, 1991.

DAVIES, Nicholas. As camadas populares nos livros didáticos de Histó-

ria do Brasil. In: PINSK, Jaime (org). O ensino de História e a criação do fato.

11 ed. São Paulo: Contexto, 2004. (Coleção Repensando o Ensino).

ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. Tradução de Pola Civelli. São Paulo:

Perspectiva, 2007.

GONÇALVES, Aline Najara da Silva. Luiza Mahin entre ficção e história.

Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado da Bahia. Departa-

mento de Ciências Humanas. Campus I. 2010 – Salvador, 2010. 98f.

GONÇALVES, Ana Maria. Um Defeito de Cor. 3 ed. Rio de Janeiro: Record,

2007.

IGNACE, Etienne. A Revolta dos Malês. In: Revista Afro-Ásia. CEAO-

UFBA. 1907. p. 121-135. Disponível no sítio eletrônico .

LOVISOLO, Hugo. A memória e a formação dos homens. Revista Estudos

Históricos. Rio de Janeiro, vol. 2, n.3, 1989, p. 16-28.

MENUCCI, S. O Precursor do Abolicionismo no Brasil. São Paulo: Cia. Edi-

tora Nacional, 1938.

MILAN, Betty. Consolação. Rio de Janeiro: Record, 2009.

MOURA, Clóvis. Rebeliões da Senzala. 4 ed. Porto Alegre. Mercado Aberto,

1988

MUNANGA, Kabengele & GOMES, Nilma Lino. Para Entender o Negro

no Brasil de Hoje: história, realidades, problemas e caminhos. São Paulo: Global:

Ação Educativa Assessoria, Pesquisa e Informação, 2004. – (Coleção

Viver, Aprender).

OLIVEIRA, Sílvio Roberto dos Santos. Gamacopeia: ficções sobre o poeta Luiz

Gama. (Tese – Doutorado em Estudos de Linguagens) Campinas, SP:

[s.n.], 2004.

62

FINAL3_Layout 1 28/06/11 15:59 Page 62

Page 63: LUIZA MAHIN: UMA RAINHA AFRICANA NO BRASIL

63

REIS, João José. Rebelião Escrava no Brasil: a história do Levante dos Malês

em 1835. Edição revista e ampliada. São Paulo: Companhia das Letras,

2003.

RODRIGUES, José Honório. A rebeldia negra e a abolição. In: Revista Afro

Ásia. CEAO-UFBA. n. 6-7, 1968. p. 101-117. Disponível no sítio eletrônico.

Acesso em 13/03/2008.

SANTOS, Joel Rufino dos. O filho de Luísa. In: : histórias de lá e daqui. São

Paulo: Global,

SOARES, Cecília Moreira. As ganhadeiras: mulher e resistência negra em Sal-

vador no século XIX. In: Afro-Ásia, v. 17. Salvador, CEAO-UFBA, 1996,

p. 57-71.

SOUZA, P.C. A Sabinada: a revolta separatista da Bahia (1837). São Paulo:

Círculo do Livro, 1987.

VIANNA FILHO, Luiz. A Sabinada: a república bahiana de 1837. Salvador:

EDUFBA: Fundação Gregório de Matos, 2008.

__________________. O negro na Bahia (um ensaio clássico sobre a escravi-

dão). 4 ed. Salvador: EDUFBA: Fund. Gregório de Mattos, 2008.

http://www.amulhernaliteratura.ufsc.br/catalogo/carolina_vida.html

http://casademariafelipa.blogspot.com/2009/11/quem-foi-maria-fe-

lipa.html

http://portaldaculturanegra.wordpress.com/2009/05/06/tia-ciata-hi-

laria-batista-de-almeida-1854%E2%80%931924/

Biografia de Lélia Gonzalez. In: http://www.netsaber.com.br/biogra-

fias/ver_biografia_c_2341.html

Marques, Rosa. CONSCIÊNCIA NEGRA: UMA QUESTÃO DE IDEN-

TIDADE In: http://www.fbes.org.br/index.php?option=com_doc-

man&task=doc_download&gid=392&Itemid=18

http://www.atarde.com.br/cidades/noticia.jsf?id=858937

FINAL3_Layout 1 28/06/11 15:59 Page 63

Page 64: LUIZA MAHIN: UMA RAINHA AFRICANA NO BRASIL

FINAL3_Layout 1 28/06/11 15:59 Page 64

Page 65: LUIZA MAHIN: UMA RAINHA AFRICANA NO BRASIL

65

Autora

Aline Najara da Silva Gonçalves é mestra em Estudo de Lin-

guagens pela Universidade do Estado da Bahia (Campus I), espe-

cialista em História e Cultura Afro-Brasileira (FAVIC-APLB/

Sindicato) e licenciada em História pela Universidade do Estado da

Bahia (Campus II). Atualmente é professora da rede privada de en-

sino em Alagoinhas (BA). Autora da dissertação intitulada Luiza

Mahin entre ficção e história, dentre os textos já publicados, desta-

cam-se os artigos Luiza Mahin: da carta autobiográfica de Luiz Gama ao romance histórico de

Pedro Calmon (Cadernos de História ano 5 n. II); Entre o popular e a historiografia, uma

imagem controversa: o caso Luiza Mahin (Anais do V ENECULT/ UFBA) e Dos cantos ao

romance histórico: a trajetória de Luiza Mahin na cidade de Salvador (Anais do V Encontro

Estadual da ANPUH-BA) e os poemas Nomes; Pátria Amada, Brasil (?); Conjunção Adver-

sativa (Darandina Revisteletrônica). Vinculada ao Grupo de Pesquisa História, Literatura e

Memória, tem interesse por pesquisas relacionadas ao trinômio “História/Literatura/

Representações da resistência negra”, enfocando a importância do conheci mento de

nomes de homens e mulheres silenciados pela historiografia oficial, a fim de que a vi-

sibilidade aos heróis ocultados da história do povo negro possa despertar o interesse e

a valorização da trajetória do africano escravizado para a construção da memória bra-

sileira. Em busca deste reconhecimento dos heróis esquecidos pela historiografia, de-

senvolveu trabalhos voluntários junto à Associação de Capoeira Mangangá nas

comunidades Bom Juá e Nova Brasília (Salvador, BA), ministrando oficinas e palestras

para crianças e jovens, como Roda da Leitura: o livro na roda de capoeira e Heróis da Nossa

História e realizou o minicurso O negro na sala de aula: propostas e desafios em instituições

privadas para professores de ensino fundamental e médio como incentivo à aplicação

efetiva da Lei 10.639/03. No blog propõe um espaço de diálogos em prol de uma edu-

cação antirracista e libertadora. E-mail para contato.

FINAL3_Layout 1 28/06/11 15:59 Page 65

Page 66: LUIZA MAHIN: UMA RAINHA AFRICANA NO BRASIL

66

CONVERSAÇÕES PEDAGÓGICAS *

Este caderno é uma justa homenagem às mulheres negras e Luiza

Mahin é emblemática. Emblemática pelo seu transitar entre a realidade

e a ficção, entre a academia e o ativismo antirracista, entre a realidade

e o sonho. Emblemática porque tal qual a história das mulheres negras

no Brasil escravagista, a história de Luiza Mahin está impregnada, ins-

crita na história deste país e, ao mesmo tempo, sem a devida oficiali-

dade e reconhecimento.

Seremos breves com estas Conversações!

Neste ano de 2011, o CEAP terá como tema do seu concurso de re-

dação LUIZA MAHIN. A despeito do regulamento do concurso, como

atividades fomentadoras de escritos, podemos nos inspirar no próprio

Caderno sobre Luiza e, no sentido estrito, trabalharmos sobre ela:

• Poemas sobre Luiza – pesquisa e leituras. Convite à reescrita e

escrita de poemas

• Produção de logomarcas (como as camisetas citadas, figura 4 do Caderno)

• Leitura e debate de fragmentos dos textos sobre ela presentes

nos cadernos

• Convite à escrita de notícias sobre Luiza

• Produção de ficção em teatro, literatura, desenhos...tipo: O

REENCONTRO DE LUIZA E SEU FILHO LUIS GAMA. Ou O

QUE ACONTECEU COM LUIZA MAHIN?

• Júri simulado ou algo similar: 2011 – UM NOVO JULGAMENTO

de Luiza Mahin

• Construção da imagem e perfil da LUIZA MAHIN: característi-

cas físicas, características psicológicas, gostos, etc – depois fazer o

retrato, escultura, uma carta de Luiza, performance, um encontro

FINAL3_Layout 1 28/06/11 15:59 Page 66

Page 67: LUIZA MAHIN: UMA RAINHA AFRICANA NO BRASIL

com Luiza acompanhado dos seus quitutes...

Como Luiza Mahin está/estava envolvida num contexto maior,

podemos trabalhar outros temas como:

A história das mulheres negras no Brasil:

– Aprender a olhar:

a) pesquisar a presença de mulheres negras nas revistas, produzir

um mural e discutir

b) pesquisar a presença de mulheres negras expressivas no coti-

diano de cada estudante; entrevistá-la, PRODUZIR UM PEQUENO DO-

CUMENTÁRIO SOBRE ELAS, produzir um livro com estas entrevistas.

Produzir um cordel sobre mulheres negras, inclusive, a partir das desta-

cadas no caderno e outras que as/os estudantes encontrarem...

História das lutas de libertação do povo negro a partir da resis-

tência e presença da mulher negra

Pesquisa sobre as lutas:

No caderno são destacadas as que Luiza esteve envolvida (no Le-

vante dos Malês, de 1835, ou na Sabinada, de 1837) mas, no caderno,

também, outras guerreiras são destacadas (Aqualtune, Acotirene, Zefe-

rina e Maria Felipa Lélia Gonzalez, Tia Ciata e Maria Carolina de Jesus)

e, a partir delas, pode-se pesquisar em quais lutas estavam envolvidas

e investigar sobre estas lutas didaticamente, e principalmente o exercício

de compartilhar o aprendido sobre o tema: música, poema, dança, tea-

tro, escrita de textos, desenhos, pinturas, esculturas...

História da religiosidade afro-brasileira e a presença da mulher negra

O Caderno sobre Luiza Mahin, também, convida-nos a falar de re-

ligiosidade de matriz africana e seu pluralismo religioso, e, sobretudo,

pensando em reverter preconceitos como o destacado no texto:

[...] o culto continuava idêntico ou ligeira-

67

FINAL3_Layout 1 28/06/11 15:59 Page 67

Page 68: LUIZA MAHIN: UMA RAINHA AFRICANA NO BRASIL

mente dessemelhante do que se praticava nas tri-

bos africanas, entre o Senegal e Angola, até a con-

tracosta. Os mesmos ritos, a mesma dolente

música dos batuques das selvas, as mesmas

cores votivas, a mesma dança lasciva e histérica,

as mesmas beberagens agridoces e as comidas de

predileção de cada santo, as mesmas descompas-

sadas cenas de candomblé indígena — e, sobre-

tudo, aquela brutal superstição dos feiticeiros da

África (CALMON, 2002, p.31, grifo nosso).

Como? Pesquisas, entrevistas, leituras de imagens...

História da gastronomia afro-brasileira e o poder da mulher negra

Muitas foram e são quituteiras, o alimento é cultural e reconhecer

este patrimônio e a maestria destas mulheres, na preservação deste pa-

trimônio, é imprescindível.

Levantamento dos pratos, relacioná-los a localidades e história e fun-

ções...mais um desafio para a implementação da Lei 10.639/2003. E aqui

é bom que se diga, abre-se um campo que ainda carece de investigação e

produção socializada: a bioquímica da gastronomia afro-brasileira.

História das cartas de alforria e as mulheres negras

Com o material sobre a poupança e a compra do que nos fora rou-

bado, sinaliza a presença aguerrida das mulheres negras na libertação

dos seus bebês (Lei do Ventre Livre), do comunitarismo e do nosso di-

reito a reparação pelo Estado brasileiro. Este tema precisa ser discutido

com nossos jovens, quem sabe uma gotinha de autoestima e uma con-

tribuição singela na diminuição dos indicadores de exclusão do campo

da cidadania da nossa juventude.

Concluindo...

68

FINAL3_Layout 1 28/06/11 15:59 Page 68

Page 69: LUIZA MAHIN: UMA RAINHA AFRICANA NO BRASIL

A pesquisa (participante documental, de mundo...) parece ser uma

das nossas aliadas na construção de novos saberes acerca da presença

negra na nossa sociedade. Contudo, não basta saber, é preciso compar-

tilhar este conhecimento e renová-lo com as críticas e outros saberes,

colocá-lo em movimento a serviço da vida.

*Profª Dra Azoilda Loretto da Trindade - ConversAções Pedagógicas é uma seção que

se tornou permanente nos Cadernos CEAP com o objetivo de fomentar junto a docen-

tes, em forma de conversas, ações pedagógicas a partir dos conteúdos dos cadernos.

69

FINAL3_Layout 1 28/06/11 15:59 Page 69

Page 70: LUIZA MAHIN: UMA RAINHA AFRICANA NO BRASIL

FINAL3_Layout 1 28/06/11 15:59 Page 70

Page 71: LUIZA MAHIN: UMA RAINHA AFRICANA NO BRASIL

APÊNDICE

Arca na qual teriam sido guardados osprimeiros depósitos feitos na CaixaEconômica da Corte.

71

FINAL3_Layout 1 28/06/11 15:59 Page 71

Page 72: LUIZA MAHIN: UMA RAINHA AFRICANA NO BRASIL

FINAL3_Layout 1 28/06/11 15:59 Page 72

Page 73: LUIZA MAHIN: UMA RAINHA AFRICANA NO BRASIL

Poupar pela liberdadeAline Najara da Silva Gonçalves

Em 13 de maio de 1888 foi assinada pela Princesa Isabel a Lei Áurea

– a lei que libertou os escravos no Brasil. “A lei tinha apenas dois artigos.

Fora redigida por um calígrafo famoso em pergaminho finíssimo. A

princesa assinou-a com uma pena de ouro cravejada de brilhantes, ad-

quirida por subscrição popular e usada naquela única vez.”

O ouro e os diamantes presentes no ato da assinatura daquele docu-

mento foram ofuscados pelo brilho da luta dos seus verdadeiros redato-

res: os homens e as mulheres negras que, ao longo de quase quatro

séculos, resistiram ao cativeiro, de modo que a lenda da princesa boazinha

que libertou os escravos foi derrubada ao constatar-se que apenas 5% da

população fora beneficiada por esta ação. Ou seja, muito antes de Vossa

Alteza legitimar a liberdade, a maioria dos escravizados a conquistou por

vias próprias.

Contrariando a imagem de submissão e passividade que esteve re-

lacionada à dinâmica do escravismo brasileiro, a variedade de estratégias

de resistência e (re) conquista de liberdade evidencia a autonomia e de-

terminação do negro. Em Negociação e Conflito, João José Reis e Eduardo

Silva destacam o caráter manipulador do escravo que negocia. A forma

paulatina que utiliza para desgastar o senhor e arquitetar sua conquista

faz confundir dissimulação com passividade. A con tra- dição se manifesta

quando o escravo irrompe contra a coisificação de forma mais

direta, como através de fugas, assassinatos de senhores e formação

de quilombos.

Como foi dito acima, a variedade de formas de resistência vai muito

além da formação dos quilombos e das rebeliões. Foi lançado em 2011

73

FINAL3_Layout 1 28/06/11 15:59 Page 73

Page 74: LUIZA MAHIN: UMA RAINHA AFRICANA NO BRASIL

um livro comemorativo pelos 150 anos de criação da Caixa Econô-

mica Federal que ratifica a afirmação anterior. Implantada oficialmente

pelo Decreto nº. 2.723, de 12 de janeiro de 1861, assinado por Ângelo

Muniz da Silva Ferraz (o mesmo que, segundo Pedro Calmon, perse-

guira os malês em 1835 e foi o responsável pela prisão de Luiza

Mahin), a Caixa Econômica da Corte se propunha a ser o banco dos

pobres ou, como sugeria o visconde do Rio Branco, “o cofre seguro

das classes menos favorecidas”. A julgar pelos valores dos primeiros

depósitos realizados, vê-se que realmente surgiu como uma espe-

rança para os desfavorecidos naquela sociedade, dentre os quais

se encontravam muitos homens e mulheres escravizados, que se

viram diante de mais uma possibilidade de reconquista de liber-

dade.19 Doze dias após o início das operações pela Caixa, a es-

crava Margarida Luiza abriu a caderneta de poupança de

número 59 e três anos depois garantiu sua liberdade ao pagar

por ela com a quantia retirada daquela caderneta de poupança.

No mesmo mês, Felipa Nery abriu uma caderneta em nome da

filha para garantir a liberdade da garotinha de dois anos, e esses passos

foram seguidos por centenas de outros cativos.

A prática de buscar a liberdade através da poupança da Caixa foi

legitimada a partir de 1871, com a conhecida Lei do Ventre Livre, que

autorizou os escravos a abrirem um pecúlio cujos fundos poderiam ser

usados na compra da alforria. É válido destacar, contudo, que a cader-

neta de um escravo só poderia ser aberta com a autorização do seu se-

nhor. É sabido que os cativos que se viam na iminência de comprar a

própria liberdade se tornavam menos propensos a atuar em levantes

ou planejar fugas, pois poderiam comprometer sua alforria, o que per-

mitia o aumento da produção e o controle por parte dos senhores.

19 A expressão “reconquistada liberdade” diz respeitonão só aos escravizadosnascidos livres, mas atodos aqueles que eramcativos. Entendendo que oser humano énaturalmente livre,qualquer forma deescravidão é condenável equalquer ação de confrontoao escravismo por parte deum cativo deve sercompreendida como umprocesso de reconquista desua liberdade.

74

FINAL3_Layout 1 28/06/11 15:59 Page 74

Page 75: LUIZA MAHIN: UMA RAINHA AFRICANA NO BRASIL

Segundo o material produzido pela Caixa Econômica, o Museu

da Caixa em Brasília possui 85 cadernetas de poupança de escravos,

dos quais só restaram registros de alguns nomes, nada mais. O que

se vê nestes documentos divulgados pela Caixa Econômica é a reve-

lação de histórias de dor, superação e dignidade. É mais um fragmento

da me mó ria de um povo que jamais desistiu do direito à liberdade.

75

POUPANÇA EALFORRIA

Diversas cadernetas deescravos usadas paracomprar a liberdade.Acervo da Caixa nosmuseus de Brasília, Rio deJaneiro, Salvador e SãoPaulo.

FINAL3_Layout 1 28/06/11 15:59 Page 75

Page 76: LUIZA MAHIN: UMA RAINHA AFRICANA NO BRASIL

O Centro de Articulação de Populações Marginalizadas - CEAP é uma organizaçãonão governamental, sem fins lucrativos, laica, fundada em 1989, na cidade do Rio deJaneiro, por ex-internos da Funabem – Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor,membros da comunidade negra e do Movimento de Mulheres. Defende o direito à li-berdade religiosa como um princípio, assim como a dignidade das religiões de matrizafricanas. A recorrente violação dos direitos fundamentais da criança e do adolescente,das mulheres, e das populações negras marginalizadas pela prática do racismo serviude inspiração para sua criação.

CONSELHO ESTRATÉGICO

Ivanir dos Santos, Ana Maria Conceição,

Aydée Valério

COORDENAÇÃO GERAL

Rute Marcicano Costa

SECRETÁRIO EXECUTIVO

Éle Semog

COMUNICAÇÃO E PUBLICAÇÕES

Ricardo Rubim, Astrogildo Esteves Filho,

Alexsander Fernandes

AÇÕES INSTITUCIONAIS

Obertal Xavier Ribeiro; Jorge Damião

Venâncio da Costa, Mario Paulo Rosa

ARTICULAÇÃO INTER-RELIGIOSA

Edilene Tavares; Regina Damazio,

Leonardo Valério

ADMINISTRAÇÃO

Marcelo Santos, Sidnéia Pereira,

Mauricio Casimiro

SECRETARIA: Isabel Cristo

CONSELHO EDITORIAL

Ivanir dos Santos, Ricardo Rubim,

Astrogildo Esteves Filho,

Jorge Damião, Obertal Xavier Ribeiro

e Éle Semog.

Centro de Articulação de Populações Marginalizadas – CEAP

Rua da Lapa, 200 - gr.809 - Lapa - RJ - CEP: 20021-180

Tels.: (021) 2242-0961/2232-7077

E-mail: [email protected] - Site: www.portalceap.org

FINAL3_Layout 1 28/06/11 15:59 Page 76