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1 INTRODUÇÃO Toda a obra é fruto de escolhas. E este trabalho não é excepção. São escolhas que partem de mim, enquanto autora, e outras que me escapam das mãos, resultado das determinações do trabalho historiográfico e do carácter parcial das fontes, incapazes de resistir imunes ao devir do tempo, constante ocultador de memórias. “A História é conhecimento mutilado”, adverte Paul Veyne 1 . Para além das circunstâncias meramente acidentais, a “mutilação” dos vestígios do passado surge de um processo selectivo, determinado por intenções, ideais, contextos, enfim, todo um rol de causas que existem para lá do controlo do historiador. Mas começaria por assumir as minhas responsabilidades. Primeiro, a escolha do espaço. É o mesmo da minha história pessoal, eu que nasci na cidade de Faro e, ainda com poucos dias, rumei no Mini verde do meu pai até Portimão, onde passei 18 anos da minha vida, vislumbrando o Arade e a Serra de Monchique da janela do meu quarto. Não se trata de bairrismo, mas sim do fascínio por uma terra que chamo de minha e à qual a historiografia não tem concedido o espaço devido. Faça-se, porém, as devidas reservas, destacando-se o trabalho desenvolvido por Alberto Iria e Joaquim Romero Magalhães, cujas obras marcaram presença assídua na minha mesa de trabalho nos últimos quatro anos. Mais recentemente, outros autores têm centrado atenções no Algarve Moderno. Em particular, saliente-se os trabalhos desenvolvidos por Valdemar Coutinho, Fernando Calapez Corrêa, Francisco Lameira e Maria da Graça Mateus Ventura. No meu percurso pessoal, o Algarve esteve sempre lá. Os cristãos-novos chegaram mais tarde. Foram-me vagamente apresentados durante a licenciatura, não o suficiente para despertar o meu interesse. Já no decorrer do mestrado, quando andava a trilhar caminhos pelo interior de África setecentista, uma oportunidade de enveredar por outros caminhos de investigação fez com que batesse à porta da Cátedra de Estudos Sefarditas Alberto 1 Cf. Paul Veyne, Como se escreve a História, Lisboa, Edições 70, 1987, p. 23. “Só nos relatos de Marco Polo, Kublai Kan conseguia discernir, através das muralhas e das torres destinadas a ruir, a filigrana de um desenho tão fino que escapasse ao roer das térmitas.” Italo Calvino, As Cidades Invisíveis

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Page 1: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

1

INTRODUÇÃO

Toda a obra é fruto de escolhas. E este trabalho não é excepção. São escolhas que

partem de mim, enquanto autora, e outras que me escapam das mãos, resultado das

determinações do trabalho historiográfico e do carácter parcial das fontes, incapazes de

resistir imunes ao devir do tempo, constante ocultador de memórias. “A História é

conhecimento mutilado”, adverte Paul Veyne1. Para além das circunstâncias meramente

acidentais, a “mutilação” dos vestígios do passado surge de um processo selectivo,

determinado por intenções, ideais, contextos, enfim, todo um rol de causas que existem

para lá do controlo do historiador.

Mas começaria por assumir as minhas responsabilidades. Primeiro, a escolha do

espaço. É o mesmo da minha história pessoal, eu que nasci na cidade de Faro e, ainda

com poucos dias, rumei no Mini verde do meu pai até Portimão, onde passei 18 anos da

minha vida, vislumbrando o Arade e a Serra de Monchique da janela do meu quarto. Não

se trata de bairrismo, mas sim do fascínio por uma terra que chamo de minha e à qual a

historiografia não tem concedido o espaço devido. Faça-se, porém, as devidas reservas,

destacando-se o trabalho desenvolvido por Alberto Iria e Joaquim Romero Magalhães,

cujas obras marcaram presença assídua na minha mesa de trabalho nos últimos quatro

anos. Mais recentemente, outros autores têm centrado atenções no Algarve Moderno. Em

particular, saliente-se os trabalhos desenvolvidos por Valdemar Coutinho, Fernando

Calapez Corrêa, Francisco Lameira e Maria da Graça Mateus Ventura.

No meu percurso pessoal, o Algarve esteve sempre lá. Os cristãos-novos chegaram mais

tarde. Foram-me vagamente apresentados durante a licenciatura, não o suficiente para

despertar o meu interesse. Já no decorrer do mestrado, quando andava a trilhar caminhos

pelo interior de África setecentista, uma oportunidade de enveredar por outros caminhos de

investigação fez com que batesse à porta da Cátedra de Estudos Sefarditas Alberto

1 Cf. Paul Veyne, Como se escreve a História, Lisboa, Edições 70, 1987, p. 23.

“Só nos relatos de Marco Polo, Kublai Kan

conseguia discernir, através das muralhas e das

torres destinadas a ruir, a filigrana de um desenho

tão fino que escapasse ao roer das térmitas.”

Italo Calvino, As Cidades Invisíveis

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Benveniste. Confesso que o conceito de sefarditas e de sefarditismo era-me, então, bastante

nebuloso. A colaboração no Dicionário Histórico de Sefarditas Portugueses: Mercadores e

gente de trato abriu-me as perspectivas sobre um outro universo: o da exclusão e

perseguição religiosa, de redes tentaculares de parentesco e de solidariedades, da

mobilidade geográfica. Ora, uma questão cedo se me aflorou – e o Algarve?

Embora seja injusto afirmar que a historiografia tenha feito tabula rasa sobre os

cristãos-novos do Algarve, não é tão injusto assim detectar uma lacuna. Joaquim

Romero Magalhães deu um importante primeiro impulso ao seu estudo num capitulo de

O Algarve Económico 1600-1773, e no artigo E assim se abriu judaísmo no Algarve ...,

publicado em 1981 e ainda hoje permanentemente citado na bibliografia enquanto a

maior (e única!) referência no estudo da acção inquisitorial no Algarve no século XVII.

Na bibliografia, perpetuou-se então a ideia de uma entrada tardia da Inquisição no

extremo sul de Portugal. Dada a ausência de estudos posteriores, este equívoco acabou

por fazer escola2.

Pontual e marginalmente – assim classificaríamos a forma como a historiografia tem

abordado a questão. Reconhecemos as menções disseminadas na obra de António

Borges Coelho, em particular na Inquisição de Évora 1533-1668, e na monografia de

Fernando Calapez Corrêa, A cidade e o termo de Lagos no período dos reis Filipes,

além de pequenos artigos, focados numa ou noutra personagem, dispersos em

publicações periódicas locais. É pouco. E isto mais de 30 anos após o trabalho inaugural

de Romero Magalhães.

Um silêncio que não corresponde a um vazio documental. 895 – é este o número de

processos que actualmente jazem no depósito do Arquivo Nacional da Torre do Tombo

(ANTT) cujos réus são cristãos-novos naturais ou residentes no Algarve, presos durante

o período estudado. E são só os processos. Acrescentem-se, ainda, os testemunhos

dispersos noutras séries documentais do fundo do Tribunal do Santo Ofício (Cadernos

do Promotor, Conselho Geral, etc.) ou noutros fundos, como as Chancelarias Régias ou

2 A bibliografia continuou a focar este falso problema – a entrada tardia da Inquisição no Algarve –, não

obstante o facto de Joaquim Romero Magalhães ter identificado, num estudo posterior, a existência de uma

vaga de prisões na região, em particular em Vila Nova de Portimão, no final do século XVI (Cf. Joaquim

Romero Magalhães, O Algarve Económico 1600-1773, Lisboa, Estampa, 1993, pp. 364-366), também

referida por António Borges Coelho (Cf. António Borges Coelho, “Algumas notas sobre o Algarve nos

séculos XVI e XVII”, Cadernos Históricos, vol. IV, Lagos, Comissão Municipal dos Descobrimentos, 1993,

p. 55). Porém, sobre a primeira entrada da Inquisição no Algarve, no final da década de 50 do século XVI, o

silêncio é quase completo, só quebrado por um breve artigo de António Baião, publicado num jornal

regional (Cf. António Baião, “Ainda a Inquisição no Algarve. Apontamentos de processos desconhecidos

de cristãos novos de Portimão”, Correio do Sul, n.º 1753, ano 32, 14 de Junho de 1951).

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o Corpo Cronológico, além dos demais arquivos percorridos durante a feitura do

presente trabalho, como a Biblioteca Nacional de Portugal (fundo de Reservados) ou o

Arquivo Distrital de Faro (sobretudo, os cartórios notariais). Muita dessa documentação

revelou-se um território quase virgem. Não era tarde nem cedo para o explorar.

A pesquisa bibliográfica evidenciou uma outra realidade – o silêncio é bem mais

abrangente e não se limita ao Algarve. Enfim, escassos são os estudos que reflectem

sobre as comunidades cristãs-novas em Portugal. Alguns passos foram dados nas

últimas décadas por autores como Maria José Pimenta Ferro Tavares (Trás-os-Montes,

Trancoso, Portalegre), Elvira Cunha de Azevedo Mea (Bragança, Porto), Maria

Antonieta Garcia (Guarda, Belmonte) ou Maria do Carmo Teixeira Pinto (Elvas), entre

outros. Mas ainda há tanto caminho a trilhar! Não, não se trata de um “velho tema”. Ao

contrário da tendência geral, é necessário que se adoptem perspectivas suficientemente

latas no espaço e no tempo, pois só assim será possível vislumbrar a evolução das

comunidades e, eventualmente, estabelecer comparações com outros casos. Portanto,

com o presente trabalho, pretendo dar um contributo nessa direcção, na esperança de

que, nos próximos anos, a bibliografia se amplie progressivamente neste campo.

De modo a alcançar a dita perspectiva evolutiva, foquei-me num período de quase

um século. Porém, a definição das balizas cronológicas gerou outros problemas. Talvez

ao leitor cause alguma estranheza os limites propostos. Sobretudo, o primeiro. Porquê

1558? Porque não enquadrar no panorama político, nos anos da Monarquia Ibérica?

Admito que ponderei esta hipótese e, num primeiro momento, a ideia era reportar-me

apenas aos anos compreendidos entre 1580 e 1640. Surgiu, então, uma dúvida: teria

sido a União Ibérica assim tão determinante na evolução das comunidades cristãs-novas

do Algarve? A documentação não o demonstra. O meu orientador, o Prof. Doutor João

José Alves Dias, sugeriu-me que usasse a cronologia inquisitorial como critério para a

definição dos limites temporais do presente trabalho. Pareceu-me um bom ponto de

partida, de facto. Porém, continuo a dever uma justificação ao leitor. Até porque estudar

a vítima pela voz do carrasco não é algo livre de polémica.

Mas como não recorrer à documentação inquisitorial? O que define o cristão-novo é

o seu passado genealógico, ou seja, o facto de ter um antepassado, mais ou menos

remoto, que renunciou à religião em que nasceu e foi educado (no âmbito do nosso

trabalho, a religião judaica) para abraçar a fé cristã por via do baptismo, mesmo que só

exteriormente. A documentação inquisitorial salienta essa dimensão genealógica do

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indivíduo. Afinal, a “qualidade do sangue” constitui o elemento determinante na

caracterização do réu e na justificação da sua “culpa”.

Ao longo da presente dissertação, também trabalhei com outro género de

documentos, alguns de valor inestimável para a história social e económica, como são

as fontes notariais3. Porém, nos contratos, nos testamentos ou nas procurações, a

“qualidade” dos indivíduos raramente é evidenciada. Só através de um trabalho prévio

nos arquivos da Inquisição é que se tornou possível identificá-los e, mesmo assim, com

dificuldade, sobretudo devido à multiplicação dos homónimos. Portanto, as fontes

inquisitoriais estiveram presentes desde a génese do trabalho. Tentei, porém, manter-me

consciente dos seus ardis.

Referindo-se, em específico, aos julgamentos de feitiçaria de Friuli4, podíamos

aplicar as palavras de Carlo Ginzburg à generalidade dos processos inquisitoriais:

“Não é minha intenção afirmar que estes documentos são neutros ou transmitem

informação objectiva. Devem ser lidos como o produto de uma inter-relação

especial, em que há um desequilíbrio total das partes nela envolvidas. Para a

decifrar, temos de aprender a captar, para lá da superfície aveludada do texto, a

interacção subtil de ameaças e medos, de ataques e recuos.”5

Portanto, o uso das fontes inquisitoriais exige um profundo conhecimento das condições

de produção do documento e dos seus objectivos. São documentos que resultam de

sucessivos crivos, desde o que é dito até ao que é escrito, passando pelo que é ouvido e,

sobretudo, como é compreendido. Seria interessante conhecer quem eram efectivamente os

notários – as suas origens, a sua formação, o seu conhecimento sobre as matérias que

predominam nas confissões. Por outro lado, ainda maior interesse haveria em colocar essas

mesmas questões relativamente aos próprios inquisidores. Se é o notário quem fixa os

testemunhos, é o inquisidor quem guia a sua comunicação, orientando, ou melhor,

manipulando a confissão do réu. O notário, o inquisidor e, como é claro, a própria

instituição inquisitorial constituem uma importante parte da “autoria” do documento.

Mas não nos esqueçamos do outro “co-autor” – o réu. Não desdenhemos o seu

papel, não o encaremos como um elemento passivo na construção do documento. Os

registos das sessões de interrogatório não exprimem plenamente o que o réu terá

confessado? De facto. Não é a sua voz que se faz ouvir nas folhas envelhecidas dos

3 Um outro problema consistiu na falta de registos relativos ao período estudado. Só sobreviveram os

registos anteriores a 1650 dos cartórios notariais de Aljezur (a partir 1617), Loulé (a partir de 1590) e

Tavira (a partir de 1599). 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e

Seicento, Turim, Einaudi, 1966. 5 Cf. Carlo Ginzburg, “O inquisidor como antropólogo: uma analogia e as suas implicações”, A micro-

história e outros ensaios, Lisboa, Difel, 1991, p. 209.

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processos? Não é só a voz do réu. Mas ela também está lá. Negá-lo seria interpretar a

documentação inquisitorial como uma ficção completamente engendrada pela

instituição repressora. Então, pouco nos restaria.

Mas que voz é esta que sussurra no meio de tantas outras? É a voz de alguém sujeito

a uma constante pressão psicológica e física, obrigado a viver confinado aos exímios

metros quadrados de uma cela que partilha com desconhecidos, onde todos dormem,

comem, defecam; permanentemente sujeito à vigilância dos guardas que espreitam pelas

frestas (tantas frestas!) à procura de qualquer comportamento suspeito, enquanto se

recorda dos que ficaram lá fora, das ameaças que ensombram quem lhe é mais querido,

dos potenciais denunciantes que o colocaram naquela situação – tenta identificar os

nomes, adivinhar os testemunhos e os tempos das alegadas culpas, talvez passe em

retrospectiva os últimos anos da sua vida na expectativa de encontrar algo que possa ter

deflagrado na denúncia, quiçá um mal-entendido, uma vingança. É também a voz de

alguém que, durante os meses, anos de cárcere, não vive abstraído do universo

envolvente, não ignora as conversas dos outros presos com quem partilha as dimensões

mais íntimas do quotidiano, participa delas, fala e ouve falar sobre a vida antes e

durante o cárcere, às vezes tem a sorte de ficar a saber novas da terra e da família,

escuta informações sobre quem foi preso, se confessou, se resistiu. A confissão é um

tema recorrente. Desde cedo, o réu fica a conhecer as regras da casa. Se permanece em

silêncio, só uma defesa muito sólida, artigos de contraditas convincentes e algo mais (as

influências, os subornos, todos os estratagemas que, como é natural, só conseguimos ler

nas entrelinhas) o poderão salvar do mais dramático fim – a entrega ao braço secular, a

morte. A outra solução, a mais eficaz, é a confissão, cuja celeridade determinará o rigor

da sentença.

Não basta confessar. É preciso uma boa confissão. À medida que o tempo de

repressão avança, os potenciais réus (leia-se: os cristãos-novos) tendem a versar-se

numa “metodologia da confissão” que se pode resumir a um só critério – dar ao

inquisidor o que o inquisidor quer ouvir. Ao réu cabe encontrar a justa medida. Tudo o

que for a mais fará estragos no seu círculo de relações. Tudo o que for a menos colocará

em perigo a sua própria vida. É necessário haver uma coincidência plena com as

denúncias que o conduziram ao cárcere. A publicação da prova de justiça só o esclarece

em parte, sobretudo a partir do momento em que os nomes dos denunciantes passam a

ser ocultados. Então, resta-lhe a memória do que fez e do que pareceu ter feito, de quem

o viu e de quem, não tendo visto, terá testemunhado que o vira. Explora todas as

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possibilidades na tentativa de adivinhar quem “deu” nele. Ás vezes, acerta no alvo, mas

só entre muitos tiros ao lado. É este o fermento das denúncias.

O testemunho do réu sustenta-se no verosímil e no possível. Argumenta na

expectativa de ser credível, não necessariamente verdadeiro. Na confissão, tal como na

defesa, não há lugar para a extravagância. Ou, pelo menos, não deve haver. Desta

forma, o discurso da Inquisição é construído sobre o discurso do réu que, por sua vez, se

alicerça em elementos híbridos de realidade e possibilidade, de verdade e

verosimilhança. O que podemos retirar desse discurso? Muito. Porém, é necessário um

trabalho transversal, de confrontação de testemunhos inter-relacionados. É esta a

metodologia proposta por Francisco Bethencourt:

“Assim, qualquer análise crítica deve começar pela desmontagem da lógica de

investigação judicial, pelo estudo dos interrogatórios e pela compreensão da forma

como os diversos elementos de acusação foram compilados e manipulados ao

longo das diversas sessões. Paralelamente, interessa detectar a estratégia defensiva

dos presos, a forma como eles negoceiam a sua sobrevivência, os meios que estão

ao seu dispor. [...] Apenas a análise transversal das declarações produzidas pelos

réus pode revelar discrepâncias em relação à «grelha» de perguntas dos

inquisidores.”6

As fontes inquisitoriais comportam uma inestimável riqueza de informações para o

conhecimento não só da instituição como também, e sobretudo, dos réus. Se Maria de

Tovar confessa que, em Agosto ou Setembro de 1628, esteve numa vinha no lugar de

Montenegro, termo de Faro, na companhia da mãe e de Francisco Nunes, mercador

cristão-novo, e que os três se confessaram crentes na Lei de Moisés, tal não prova

inequivocamente que ela, a mãe e o dito Francisco Nunes eram judaizantes e que, no

Verão de 1628, tinham de facto comunicado a sua “herética fé” numa vinha no lugar de

Montenegro. Porém, reconhecemos a existência de produção vitivinícola no termo de

Faro (se acrescentarmos outras referências documentais a mais vinhas nos arredores da

cidade) e que Maria de Tovar e a mãe, não obstante provirem de uma família ligada à

actividade mercantil, dedicavam-se igualmente a trabalhos agrícolas. Por outro lado,

também nos elucida sobre as relações sociais estabelecidas – as duas mulheres

evidenciam confiar o suficiente num homem, que não é seu parente mas que partilha o

mesmo o ofício do seu pai/marido, ao ponto de arriscarem a revelação de um segredo

tão delicado. Assim, num simples artigo de confissão, obtemos dados válidos sobre a

estrutura produtiva da região, a condição feminina, as actividades económicas e os

relacionamentos sociais – pequenas peças de um enorme puzzle.

6 Cf. Francisco Bethencourt, “A Inquisição”, Portugal: mitos revisitados. Coord. Yvette Kace Centeno,

Lisboa, Edições Salamandra, 1993, p. 130.

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Quanto ao sentimento religioso de Maria de Tovar, a validez dos dados já é mais

duvidosa. Teria realmente confessado a Francisco Nunes e à mãe que cria na Lei de

Moisés para a salvação da sua alma? E cria verdadeiramente no que confessara? Ao longo

da confissão, ela acrescenta que observava o descanso sabático, não comia carne de

porco, nem cação, e rezava a oração do Pai-Nosso, invocando apenas o Deus dos Céus.

Fá-lo-ia de facto? Ou estaria apenas a tentar fugir à pena máxima, coincidindo a confissão

com a prova de justiça? Responderia a estas questões com uma outra: como determiná-lo?

Na maior parte dos casos, nada nos resta além deste discurso construído, manipulado,

contaminado até à medula. Por isso, quando dedico o capítulo IV da segunda parte deste

estudo à questão religiosa, esse mesmo discurso constitui a minha fonte principal. Admito

sem reservas. O panorama delineado ao longo desse capítulo reflecte o conteúdo das

confissões dos réus, ou seja, não corresponde necessariamente ao que era vivenciado ou

crido na realidade. Ficamo-nos pelas fontes, as que sobreviveram ao desgaste do tempo,

enquanto sonhamos com outros testemunhos menos “contaminados” pela instituição

repressora, talvez um registo em discurso directo, uma memória pessoal. Porém, nem

assim estaríamos perante um testemunho inócuo, antes “tentativas de persuadir, de moldar

a memória dos outros”7. Além disso, quantas vezes não recordamos com doçura o fel de

outrora? Citando Georges Duby, “[...] todas as fontes são representativas e, afinal, todas

elas lançam também um véu sobre a realidade objectiva [...]”8. Mas é essa a única

matéria-prima do historiador.

Contudo, nem só de documentos se faz a História. O trabalho historiográfico

extravasa a mera reunião, organização e interpretação das fontes. Há um espaço de

manobra em que o historiador espreita além do cenário oferecido pelos vestígios do

passado e é aqui que entram certos elementos capazes de ferir quaisquer aspirações

(irreais) de neutralidade, como a hipótese e a imaginação, esta última necessariamente

disciplinada pelo facto, mas essencial na recriação de um passado que se apresenta de

forma fragmentada no presente9. Excluir estes elementos é tornar a obra árida à

problematização.

7 Cf. Peter Burke, “A História como memória social”, O mundo como teatro. Estudos de Antropologia

Histórica, Lisboa, Difel, 1992, pp. 239-240. 8 Cf. Georges Duby e Guy Lardreau, Diálogos sobre a Nova História, Lisboa, Publicações Dom Quixote,

1989, pp. 57-58. 9 Cf. Richard J. Evans, Em Defesa da História, Lisboa, Temas & Debates, 2000, pp. 267-270. Evans

aborda a teoria de G. M. Trevelyan relativa ao lugar da imaginação na História – “[...] a poesia da

história não tem nada a ver com uma imaginação erradia, mas com uma imaginação que busca o facto,

precipitando-se sobre o mesmo” – e as reflexões de Peter Novick e de Thomas L. Haskell sobre a

objectividade e a imparcialidade do discurso historiográfico. Vide também António Manuel Hespanha,

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O facto do presente trabalho sustentar-se, principalmente, em fontes inquisitoriais

também condicionou o seu campo conceptual. O conceito de cristão-novo, que

encontramos logo no título e que se repete ao longo de todo o texto, coincide com a

linguagem da entidade repressora, posteriormente assimilada pelo próprio alvo de

repressão. Não é um conceito imune a dúvidas. Primeiro, porque não exprime uma única

realidade – por exemplo, os muçulmanos convertidos ao Cristianismo e os respectivos

descendentes também se enquadram na definição. Segundo, parece pouco legítima a

aplicação deste vocábulo a alguém que, desde o berço, não conheceu outra religião além

do Cristianismo e cujo último elo familiar que o liga directamente ao Judaísmo se

encontra perdido há várias gerações. Mas analisemos as outras opções? Criptojudeu:

conceito que reflecte uma religiosidade híbrida, definindo aquele que vive publicamente

os preceitos do Cristianismo e, em segredo, professa uma fé cujas práticas e crenças

aludem ao Judaísmo, embora já profundamente contaminadas por elementos da religião

cristã. Esta mesma definição aplica-se a outros dois conceitos: marrano e judaizante10

. Ao

contrário de criptojudeu, expressão contemporânea, marrano e judaizante são dois termos

oriundos das fontes da época. Judaizar provém da própria instituição inquisitorial e ilustra

o alegado “desvio de fé” do réu. Não deixa de ser um conceito interessante na definição

da religiosidade descrita ao longo dos processos – uma aproximação à fé judaica que

nunca chega a corresponder por completo ao Judaísmo normativo. Criptojudeu, marrano

e judaizante exprimem sentimentos e vivências religiosas que, como veremos, primam

pela heterogeneidade. Mas nem todo o cristão-novo é judaizante. Segundo conjecturam

alguns autores, apenas uma minoria dos alegados judaizantes presos pela Inquisição

manteriam uma religiosidade estranha à ortodoxia católica11

. Mas esta é uma proporção

difícil (para não dizer impossível) de determinar.

O conceito de cristão-novo é pouco válido se considerado numa dimensão

meramente religiosa. Até porque “cristão-novo judaizante” soa a contra-senso. Se

“Senso comum, memória e imaginação na construção da narrativa historiográfica”, A História: entre

memória e invenção. Coord. Pedro Cardim, Lisboa, Publicações Europa-América, 1998, pp. 21-34. 10

Os conceitos de criptojudaísmo e marranismo são usados enquanto sinónimos na bibliografia.

Tendencialmente, as obras mais recentes privilegiam criptojudaísmo a marranismo, usado nos já

clássicos estudos de Cecil Roth e I.-S. Révah. Tal deve-se, possivelmente, ao significado pejorativo

associado ao termo marrano. No presente estudo, também iremos usar, com mais regularidade, o conceito

criptojudaísmo para definir a religiosidade dos cristãos-novos judaizantes. 11

Ao comentar a tese de António José de Saraiva – a Inquisição enquanto “fábrica” de judeus – Herman

P. Salomon pondera que “[...] a maior parte ou praticamente todas as vítimas da Inquisição eram católicos

sinceros que, com frequência, tinham pouca ou mesmo nenhuma ascendência judaica” (Cf. Herman P.

Salomon, “Apresentação”, in Cecil Roth, História dos Marranos. Os Judeus Secretos da Península

Ibérica, Porto, Civilização, 2001, p. 13).

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alguém é judaizante, acredita na Lei de Moisés e não na Lei de Cristo, logo não é

cristão. Mas nada é tão linear assim. Se o judaizante não é cristão no seu íntimo, na

forma como sente a sua fé, tem de sê-lo em público, a bem da sua sobrevivência. Foi

baptizado, vai à missa, confessa-se pelo menos uma vez ao ano. Na documentação

inquisitorial encontramos, com frequência, a distinção entre “vontade” e “obra”.

Aplicando-a a este raciocínio, o cristão-novo judaizante não é cristão na vontade mas

tem de sê-lo na obra.

O enfoque do presente trabalho não são os judaizantes, mas sim os cristãos-novos. É

este o elemento que justifica a sua posição de minoria, sujeita ao ostracismo social.

Embora originalmente fundamentada num critério religioso, a exclusão acaba por se

concretizar com base em pressupostos genealógicos. Por exemplo, o ingresso na Ordem

de Cristo está teoricamente vedado ao cristão-novo, não devido àquilo em que ele crê,

mas devido àquilo que ele é – um descendente de judeus. Esta dimensão é comum a um

outro conceito também muito corrente nos textos coevos, gente de nação, cuja origem

remonta a antes da expulsão e que, posteriormente, passou a coincidir com o conceito de

cristão-novo12

.

Mas regressemos ao problema deixado em aberto – porquê 1558-1650? O critério é

só um: a actuação do Santo Ofício no Algarve. O ano de 1558 marca o início da

primeira vaga de prisões. Antes, as detenções ocorridas na região haviam sido

meramente episódicas e sem demais consequências. É a partir de 1558 e na sequência

do testemunho de uma cristã-nova de Vila Nova de Portimão, Grácia Mendes, que se

inicia uma série de prisões por toda a região, a qual se prolongará por quase uma

década. Durante o período abrangido pelo nosso estudo, registaram-se mais duas

investidas inquisitoriais – uma compreendida entre o final da década de 80 de

Quinhentos e os últimos anos do século, e uma outra na década de 30 de Seiscentos que

perdurou durante todo o decénio seguinte. Chegamos, assim, até 1650. Três entradas:

quais as suas consequências na evolução das comunidades cristãs-novas e, alargando a

escala, nas estruturas sociais e económicas da região? Eis uma questão basilar no

presente estudo.

Assim, na primeira parte, seguiremos cronologicamente a actuação do Santo Ofício

no Algarve, tentando identificar as reacções, as estratégias de defesa e as

transformações que impulsionou. Proponho uma viagem no tempo mas também no

12

Cf. Elias Lipiner, Santa Inquisição: terror e linguagem, Rio de Janeiro, Editora Documentário, 1977, p. 77.

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10

espaço, pelas principais localidades da região, as mais atingidas pela repressão

inquisitorial. A abrangência geográfica das investidas torna impossível, ou pelo menos

muito parcial, focar o estudo numa única cidade ou vila. As prisões em Faro, por

exemplo, acabaram por ter consequências em Loulé, Albufeira, ou mesmo em Lagos e

Vila Nova de Portimão. A mobilidade dos alvos implicou que o próprio tribunal focasse

a sua mira em múltiplas direcções. Mas não lancemos já todos os dados e deixemos esta

questão (essencial, deveras) em aberto.

De facto, o espaço é um elemento determinante, razão pela qual o presente estudo se

inicia com um capítulo introdutório dedicado ao Algarve dos séculos XVI e XVII – a

geografia, a evolução urbana, a estrutura administrativa, a economia, a sociedade. Para

um entendimento pleno da narrativa, é essencial conhecer esta personagem.

Analisados os acontecimentos e os seus agentes, o trabalho prossegue com uma

caracterização do objecto de estudo, em particular da sua evolução ao longo do período

delimitado. A metodologia usada difere da aplicada na primeira parte. Sem me restringir a

uma narrativa sequencial, privilegio uma perspectiva analítica e comparativa, não só entre

os diversos momentos estudados (em particular, aqueles para os quais há uma maior

profusão de documentos, correspondentes às três entradas da Inquisição), como também

relativamente a outras comunidades dadas a conhecer pela bibliografia. Porém, o já

referido défice de estudos na área revelou-se um limite à aplicação deste método.

Seguindo a proposta metodológica de Carlo Ginzburg de uma “prosopografia a partir

de baixo”, a segunda parte do trabalho concilia a apresentação de case studies com um

estudo de tipo serial13

. Dada a extensão do corpo documental reunido e as suas próprias

características, usei métodos de seriação e quantificação de dados como, por exemplo, as

actividades profissionais ou as práticas religiosas confessadas. Assim, foi possível traçar,

com maior fundamento, o retrato do cristão-novo algarvio (ou, pelo menos, aquele que a

documentação deixa transparecer) e a sua evolução ao longo do período estudado. Tal

metodologia permitiu identificar a regra mas também, e talvez ainda mais relevantes, as

excepções. Afinal, como já foi por demais sublinhado, trabalhamos com um discurso

construído, ideologicamente condicionado e que prima pela padronização dos

testemunhos. As excepções representam uma ruptura com a norma e, como tal, podem

revelar o que existe para lá do discurso perpetuado através da voz do Outro.

13

Cf. Carlo Ginzburg, “O nome e o como”, A micro-história..., p. 176.

Page 11: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

11

Entre 1558 e 1650, foram processados pela Inquisição, pelo menos, 832 cristãos-

novos residentes no Algarve. Alguns desses processos não sobreviveram até à

actualidade ou, simplesmente, não é conhecido o seu paradeiro – não são referidos nos

catálogos (nem nas fichas manuscritas, nem na base de dados digital do Arquivo

Nacional da Torre do Tombo) mas encontramos indícios da sua existência noutros

documentos. Nos limites definidos, tais processos constituem quase 10 % do total.

Mais um limite à pesquisa documental: devido ao estado precário de conservação do

fundo da Inquisição de Évora e ao facto de ainda não ter sido iniciado o processo de

digitalização (tal como aconteceu com a documentação da Inquisição de Lisboa), apenas

foi-me facultado o acesso a uma parte dos processos existentes, mais exactamente a

cerca de 80 %. Desta forma, o presente estudo alicerça-se numa amostra e não na

totalidade da documentação14

. Porém, a aleatoriedade (o critério de selecção é

meramente material) e a dimensão da amostra tornam viáveis o seu tratamento

estatístico e legítimos os resultados obtidos, embora, como é claro, seja necessário ter

em conta as características da fonte e os respectivos condicionalismos.

Se é verdade que muitos processos se assemelham nos seus conteúdos (em

particular, quando referentes a elementos de uma mesma família ou de um mesmo

círculo relacional), também é inegável que cada documento traz sempre algo de novo.

Não nego que, nos 20% de processos não consultados, possam residir informações

relevantes, as quais terão passado à margem deste estudo. Assim, num futuro que espero

bem próximo, com a digitalização do fundo documental da Inquisição de Évora, capaz

de ressuscitar os testemunhos que hoje perecem nas estantes do Arquivo Nacional da

Torre do Tombo – um documento inacessível é um documento morto –, será possível

uma revisão deste trabalho e, possivelmente, a apresentação de novas conclusões sobre

o problema. Ainda mais novas se for outro o autor a seleccionar as linhas orientadoras

do estudo e as questões colocadas.

Logo que dei os primeiros passos neste trabalho, cedi de qualquer ambição de

esgotar o tema. Sejamos realistas: não existem obras fechadas. Como o leitor verá, as

questões que levanto superam, em larga medida, as conclusões atingidas. Espero lançar

a semente, não empreender a colheita. Eis o espírito que rege todo o presente trabalho e,

inclusivamente, o volume de anexos que o acompanha. Afinal, o carácter inacabado da

14

Tentei, porém, colmatar esta lacuna, reconstruindo o conteúdo dos processos desaparecidos ou não

consultáveis através dos dados presentes noutros documentos. Na maior parte dos casos, apenas acedi a

informações muito básicas.

Page 12: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

12

obra, a possibilidade de acrescentar sempre algo mais ou de desconstruí-la de raiz,

enfim, a sua potencialidade de evolução é o que há, na minha opinião, de mais

fascinante no ofício de historiador.

Page 13: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

13

O REINO DO ALGARVE NOS SÉCULOS XVI-XVII

“O reino do Algarve está situado no fim da Europa, uma das quatro partes do mundo

para o ocidente. [...] Divide-se da parte do oriente pelo rio Guadiana, que vai correndo

para o norte, e dividindo o Algarve do reino de Castela até dar no termo da vila de

Mértola; e daí o Algarve faz volta e se vem estendendo ao ocidente por serras

altíssimas, que o demarcam do Campo d‟Ourique até o mar oceano, na costa de

Portugal, pelo rio do lugar de Dexexe, termo da vila d‟Aljezur, do qual vem pela rocha

ao longo do mar setentrional para o austro até ao cabo de São Vicente, e dele para o

levante pela costa do mar Atlântico até dar na foz do rio Guadiana, onde acaba.”15

A definição dos limites geográficos do reino do Algarve é de Henrique Fernandes

Sarrão. A simplicidade da descrição do advogado da Casa da Suplicação que, por volta

de 1600, redigiu uma “História do Reino do Algarve” dedicada ao governador D.

Manuel de Lencastre, não deixa de salientar a diversidade da paisagem: a norte, o

território acidentado, marcado pelas serras do Caldeirão e de Monchique; a sul, a costa,

o mar. Séculos mais tarde, o geólogo francês Charles Bonnet definia dois sistemas de

divisão da paisagem algarvia. Um primeiro, baseado no aproveitamento agrícola do

solo, delimitava dois espaços: o litoral, geralmente cultivado, e a serra, mais extensa e

inculta. Bonnet, pela sua própria experiência, concluiu que tal divisão era artificial e

propôs um segundo sistema, fundamentado na topografia da região: o litoral, com um

terreno pouco elevado e pouca profundidade; o barrocal, de pequenos vales e planaltos,

integrados nas primeiras cadeias montanhosas; e, finalmente, a serra, formada por

montanhas de rocha xistosa e granítica16

.

A diversidade paisagística condicionou os diferentes ritmos de desenvolvimento da

região e as comunicações com os territórios limítrofes. Em Quinhentos, a um litoral

urbanizado, virado para o exterior, opunha-se um interior rural, dispersamente povoado.

As vias de comunicação do interior possuíam uma direcção fundamental, a costa, e a

produção agrícola tinha também um só destino – alimentar os núcleos urbanos do litoral

e a sua actividade mercantil. Monchique ligava-se a Vila Nova de Portimão e Lagos, a

serra do Caldeirão a Faro e Tavira. Enfim, era na dependência das cidades litorâneas

que a serra encontrava o seu sentido na estrutura económica da região.

As ligações entre o interior e o litoral desenvolviam-se, essencialmente, por via

terrestre, mas os caminhos eram sofríveis. Os acessos fluviais também não abundavam.

15

Cf. Henrique Fernandes Sarrão, “História do Reino do Algarve”, Duas Descrições do Algarve no

século XVI, Lisboa, Livraria Sá da Costa, 1983, p. 138. 16

Cf. Charles Bonnet, Memória sobre o Reino do Algarve. Descrição Geográfica e Geológica.

Introdução de José Carlos Vilhena Mesquita, Faro, Delegação Regional do Sul da Secretaria de Estado da

Cultura, 1990, pp. 49-50.

Page 14: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

14

O Guadiana era o único rio passível de ser navegado até ao Alentejo. No Barlavento, o

Arade ainda completava a rota que ligava a serra a Vila Nova de Portimão. Contudo,

com o assoreamento do rio, a navegação até Silves tornou-se muito limitada e apenas

embarcações de pequena tonelagem conseguiam atingir a cidade17

.

A via marítima era a eleita no Algarve. Lagos, Vila Nova de Portimão e Faro

contavam com portos capazes de acolher embarcações de grande porte, prolixamente

frequentados por navios estrangeiros. As cidades algarvias desenvolviam-se de olhos

postos no mar. E logo do outro lado estava África.

A história dos Algarves d‟aquém e d‟além-mar toca-se. Dadas as características geo-

políticas, a região algarvia constituiu uma base de apoio para a conquista e manutenção

das praças marroquinas. Em 1527, numa carta a D. João III, a Câmara de Tavira alegava

os serviços prestados pela cidade durante o reinado de D. Manuel nas empresas

militares no Norte de África. Ainda em 1489, foi para Tavira que D. João II se deslocou

com a corte e onde estabeleceu uma base de apoio para a conquista e fundação da

fortaleza da Graciosa, junto ao rio Larache18

. A cidade algarvia constituía ainda um dos

principais locais de origem dos judeus portugueses estabelecidos em Azamor19

.

De Tavira mas também de Lagos e Faro, muitos foram os mareantes e pescadores

algarvios que se juntaram às tropas portuguesas para socorrerem a praça de Mazagão

durante o cerco de 1562. Anos mais tarde, em 1570, D. Sebastião dirigia-se à Câmara de

Tavira, pedindo informações sobre a gente que poderia enviar para o socorro de

Tânger20

. Essa posição de baluarte na defesa dos estabelecimentos portugueses no Norte

de África manter-se-ia ao longo da primeira metade do século XVII, apesar do

progressivo abandono das praças marroquinas. Ainda em 1638, o governador do

Algarve enviava ao rei as contas do que fora gasto das receitas das alfândegas de Vila

Nova de Portimão, Faro e Tavira no socorro de Tânger e Ceuta21

.

Era no mar e no contacto com o exterior que residia a potencialidade de

desenvolvimento dos núcleos urbanos algarvios. Silves, cidade dominante no passado,

viu a sua hegemonia decair no momento em que se afastou do mar. O assoreamento do

17

Cf. Joaquim Romero Magalhães, O Algarve Económico 1600-1773, Lisboa, Estampa, 1993, p. 267. 18

Cf. Alberto Iria, Da importância geo-política do Algarve na defesa marítima de Portugal nos séculos

XV a XVIII, Lisboa, Academia Portuguesa de História, 1976, pp. 17-19. 19

Vide José Alberto Rodrigues da Silva Tavim, Os Judeus na Expansão Portuguesa em Marrocos

durante o século XVI. Origens e actividades de uma comunidade, Braga, Edições APPACM Distrital de

Braga, 1997, pp. 215-230. 20

Cf. Iria, Da importância..., pp. 61, 67-68. 21

Cf. Alberto Iria (ed.), Cartas dos Governadores do Algarve (1638-1663), Lisboa, Academia Portuguesa

da História, 1978, p. 31.

Page 15: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

15

rio Arade quebrou a ligação da urbe à costa, isolou-a no interior. As descrições coevas

revelam essa decadência. João Cascão, cronista da jornada de D. Sebastião pelo

Alentejo e Algarve, em 1573, descreve Silves como uma cidade doentia e despovoada22

.

É a mesma imagem que, cinco anos mais tarde, transmitiria Frei João de São José, na

sua “Corografia do Reino do Algarve”. Ali, casa que cai não volta a ser levantada. A

cidade está arruinada e sem gente, os ares são doentios, sobretudo nos meses de Verão,

quando parte da população se muda para as quintas fora das muralhas, onde o ambiente

é mais sadio23

.

Segundo o autor, um outro factor teria contribuído para esta decadência: a

edificação de Vila Nova de Portimão, para onde se transferiu todo o trato e comércio

que antes chegava a Silves. A subida do Arade dessa “[...] vila moderna em nome e

fundação, mas rica e populosa [...]” para a decadente Silves, provocava desalento24

.

Silves era a urbe medieval, altaneira, com sólidas estruturas defensivas, dotada de um

rico termo agrícola. Mas os tempos eram outros e a distância da costa afastava-a do

comércio marítimo, motor da economia moderna. Por outro lado, Vila Nova de

Portimão, onde “[...] se recolhem os navios, naus, galés e armadas, que vêm por esta

costa, e com qualquer tempo se metem dentro [...]”, era uma vila direccionada para o

mar e nela viviam “[...] muitos homens ricos e de grande trato, e a alfândega, que tem, é

de grande rendimento [...]”25

.

Ao lado de Portimão, também Lagos sofreu um evidente desenvolvimento ao longo

do século XVI. Em 1573, era elevada a cidade. A sua ascensão iniciara-se na centúria

anterior, estreitamente relacionada com o movimento da Expansão Ultramarina e com o

desenvolvimento técnico da pesca do atum. Durante todo o século XVI, Lagos foi o

maior exportador mundial de conserva de atum26

. Além disso, constituía um dos mais

importantes portos de saída da produção agrícola do interior, abundantemente

frequentado por mercadores estrangeiros. Contudo, a partir de finais de Quinhentos, a

cidade começou a estagnar. O movimento marítimo gerado pelos Descobrimentos foi

22

Cf. Francisco Sales Loureiro, Uma Jornada ao Alentejo e ao Algarve. A alteração das linhas de força

da política nacional, Lisboa, Livros Horizonte, 1984, p. 110. 23

Cf. Frei João de São José, “Corografia do Reino do Algarve”, Duas Descrições do Algarve no Século

XVI, Lisboa, Livraria Sá da Costa, 1983, pp. 44-45. 24

Cf. Sarrão, “História...”, Duas Descrições..., p. 153. 25

Cf. Idem, Ibidem, p. 152. Vide também Valdemar Coutinho, “O foral e o condado de Vila Nova de

Portimão”, O Municipalismo em Portugal. 500 anos dos forais manuelinos do Algarve. Coord. Maria da

Graça A. Mateus Ventura, Lisboa, Edições Colibri, Instituto de Cultura Ibero-Atlântico, 2007, pp. 39-48. 26

Cf. Fernand Braudel e R. Romano, Navires et merchandises à l’entrée du port de Livourne, Paris,

1951, p. 45, apud Joaquim Romero Magalhães, Para o estudo do Algarve económico durante o século

XVI, Lisboa, Cosmos, 1970, p. 157.

Page 16: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

16

desviado para Lisboa e os rendimentos das almadravas do atum entraram em recessão.

A falta de um termo agrícola suficientemente extenso e produtivo para sustentar o

núcleo urbano hipotecava o desenvolvimento da cidade27

.

Lagos e Vila Nova de Portimão comungavam a mesma ligação ao interior, através

do termo de Silves. Oliveiras, vinhas, figueiras e outras árvores de fruto eram

abundantes, enquanto que os pastos alimentavam uma significativa actividade pecuária.

Segundo Frei João de São José, apenas a falta de mão-de-obra suficiente para explorar

tais recursos impedia maiores proveitos. No termo de Silves, encontravam-se as terras

férteis de Lobite, “[...] a qual, se caíra em mãos de nação italiana, fizeram nela outro

paraíso terreal [...]”28

. Este cenário era comum às freguesias de Lagoa, Alcantarilha,

Mexilhoeira Grande, Porches e Estômbar. Segundo Sarrão, Mexilhoeira da Carregação

devia o seu nome ao facto de ali se carregar, todos os anos, muito figo para o reino e

para fora29

. Na serra, as riquezas diversificavam-se: os pomares, a produção de mel e de

cera, a caça, a criação de gado. A serra de Monchique era também conhecida pelas suas

águas, ricas em enxofre e às quais se atribuíam qualidades terapêuticas30

.

No outro extremo do Algarve, Tavira detinha uma posição dominante. Cidade desde

1520, o seu desenvolvimento apoiou-se na importância defensiva, no bom estuário de

pesca e na riqueza agrícola do seu termo31

. Mas, no final do século, Frei João de São

José já apontava sinais de decadência. Dizia-se que tal fora provocado pelo abandono

das praças marroquinas, mas também pela mudança de muitos homens ricos para

Sevilha e outras cidades de Castela, atraídos pelo lucrativo comércio com as Índias32

.

Frei João, que chegou a residir em Tavira, aponta outro factor: “[...] é a pouca

humanidade e muitas vexações que se fazem aos estrangeiros, que doutros reinos a ela

por mar vêm com suas mercadorias, pelos que têm arrendadas as alfândegas e outros

direitos, de maneira que os que isto uma vez experimentam vão escandalizados e

jurando de lhe não tornar a entrar mais pela barra dentro [...]”33

. Acrescente-se ainda as

consequências do assoreamento do rio Gilão e a instabilidade da barra.

27

Cf. Carminda Cavaco, O Algarve Oriental. As vilas, o campo e o mar, vol. I, Faro, Gabinete do

Planeamento da Região do Algarve, 1976, p. 38. 28

Cf. São José, “Corografia...”, Duas Descrições..., p. 45. 29

Cf. Sarrão, “História...”, Duas Descrições..., p. 156. 30

Cf. Idem, Ibidem, p. 155. 31

Vide Joaquim Romero Magalhães, “Tavira no Algarve no século XVI”, O Algarve na Época Moderna,

Coimbra, Faro, Imprensa da Universidade de Coimbra, Universidade do Algarve, 2012, pp. 81-96. 32

Vide Vitorino Magalhães Godinho, “L‟émigration portugaise (XVe-XX

e siècles). Une constante

structurale et les réponses aux changements du monde”, Revista de História Económica e Social (RHES),

n.º 1, Janeiro-Junho 1978, p. 14. 33

Cf. São José, “Corografia...”, Duas Descrições..., pp. 50-51.

Page 17: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

17

Porém, segundo Romero Magalhães, a posição de Frei João era exagerada. Durante

a segunda metade do século XVI, a população de Tavira chegou mesmo a crescer. A

queda ocorreria na centúria seguinte34

.

A oriente de Tavira não existia nenhum outro núcleo urbano de relevância. Cacela e

Santo António de Arenilha eram localidades pouco povoadas e profundamente vinculadas

à actividade pesqueira. Castro Marim, espaço de degredo, quase não cresceu durante todo

o século XVI, enquanto que Alcoutim, nos confins do Algarve, não passava de uma

pequena vila à beira do Guadiana, de terrenos férteis mas pouco populosa35

.

Apesar de ser a maior cidade do Algarve, Tavira foi preterida a Faro quando se deu

a transferência da sede episcopal de Silves. Várias razões pesaram na escolha: Faro era

“terra mais sadia” e central, que vivia uma fase de franco crescimento económico, e a

sua igreja matriz reunia os atributos necessários para se tornar Sé36

. De facto, a evolução

urbana de Faro foi muito rápida: em 1540, era elevada a cidade e, em 1577, a sede do

bispado. Um facto prendeu-se com o outro. A perspectiva de vir a tornar-se no centro

religioso do Algarve condicionou a passagem de vila a cidade.

A mudança da Sé já tinha sido solicitada em 1538 por D. Manuel de Sousa, então

bispo de Silves. Porém, só em 1577, com D. Jerónimo de Osório, é que o processo se

completou. As resistências foram muitas. Moradores, câmara e os próprios eclesiásticos

fizeram ouvir o seu descontentamento37

. Em 1553, o bispo e o cabido emitiam a sua

opinião sobre a transferência da catedral. Consideravam a Sé de Silves “[...] uma igreja

das boas do reino, a qual não tem necessidade de se nela gastar cousa nenhuma [...]”.

Porém, sendo inevitável a mudança, que esta não fosse feita às suas custas, “[...] porque

basta deixarem-se as pessoas do cabido sua natureza, casas e fazendas em Silves, as

quais se hão-de perder sem delas haverem proveito algum [...]”. Cediam à vontade do

rei, mas não sem exigirem a confirmação de todos os seus privilégios e liberdades38

.

34

Cf. Joaquim Romero Magalhães, Panorama Social e Económico do Algarve na época de D. Jerónimo

Osório. Separata de Anais do Município de Faro, Faro, 1982, p. 7. 35

Cf. Cavaco, O Algarve Oriental..., pp. 52-58. 36

Cf. Romero Magalhães, Panorama Social..., pp. 1-2. A insalubridade de Silves aparece testemunhada

também numa carta do juiz de fora, datada de 24 de Junho de 1529, na qual ele pedia autorização ao rei para

sair da cidade durante os meses de Verão porque esta era, então, “muito doentia de febres” (Cf. ANTT,

Gavetas, XV, mç. 17, doc. 3. Citado em João José Alves Dias, Gentes e espaços (em torno da população

portuguesa na primeira metade do século XVI), Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian / Junta Nacional de

Investigação Científica e Tecnológica, 1996, p. 191). 37

Cf. Fortunato de Almeida, História da Igreja em Portugal, vol. II, Porto-Lisboa, Livraria Civilização

Editora, 1968, p. 17; António Baião, “Cartas inéditas de D. Jerónimo de Osório acerca da transferência da

catedral algarvia no século XVI”, Anais. Academia Portuguesa de História, II série, vol. 3, 1951, pp. 151-213. 38

Cf. Lisboa, Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), Corpo Cronológico (CC), parte I, mç. 90,

doc. 120.

Page 18: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

18

Portanto, a catedral foi transferida para Faro num momento em que a cidade passava

por um evidente progresso económico39

. Mantinha um comércio florescente com a

Flandres e “[...] muita carregação para fora de figos, azeites, amêndoas e d‟outras

mercadorias da terra e em seu termo nascidas [...]”40

. Além de contar com o seu próprio

termo, a cidade também escoava a produção de Loulé e das freguesias envolventes,

factor determinante para o seu desenvolvimento41

. Afinal, Loulé era a maior localidade

do interior. Sarrão traça-nos o retrato de uma vila “[...] muito sadia, de bons ares e

frescura, muito fértil [...]”, com grande abundância de água e rodeada de hortas e

pomares42

. Contava ainda com uma produção significativa de trigo, mantimento cuja

escassez no resto da região representava o calcanhar de Aquiles da economia algarvia43

.

Dizia Duarte Nunes do Leão, em 1610, que o Algarve “[...] tem occupada tanto a terra

com seus figueiraes e muita vinhateira (que é a principal colheita sua) que às vezes tem

necessidade de socorro da vizinhança de pam em annos que suas terras faltam [...]”44

.

Faro tornou-se apenas no centro religioso da região. Não lhe coube a posição de

sede política, judicial, ou mesmo financeira. No Algarve, os poderes encontravam-se

dispersos. Era terra de vários senhores e Henrique Fernandes Sarrão sintetiza-o bem:

“A cidade de Lagos é d‟el-rei nosso senhor tem quinze lugares [...]. A vila de

Aljezur é do Mestrado de Santiago, tem o lugare d oDexexe. A vila de Sagres é d‟el-

rei. A vila d‟Alvor é da rainha nossa senhora. A vila de Vila Nova de Portimão é do

Conde. A cidade de Silves é da rainha; tem doze lugares [...]. A vila d‟Albufeira é do

Mestrado d‟Aviz; tem dous lugares, Paderna e Alfontes. A vila de Loulé é d‟el-rei;

tem o lugar de Alte. A cidade de Faro é da rainha; tem dous lugares, Estoe e São

Braz d‟Alportel. A cidade de Tavira é d‟el-rei; tem o lugar de Moncarapacho. A vila

de Cacela é do Mestrado de Santiago. A vila de Santo Antonio d‟Arenilha é de

senhorio. A vila de Castro Marim é do Mestrado de Cristo; tem o lugar d‟oDeleite.

A vila d‟Alcoutim é condado; é do marquês de Vila Real.”45

Entre terras da coroa, condados e domínios de ordens militares, a região revelava-se

uma autêntica manta de retalhos. A administração judicial dividia-se em duas comarcas,

uma sediada em Lagos, que englobava as localidades do Barlavento algarvio (Silves,

Aljezur, Sagres, Alvor, Vila Nova de Portimão e Albufeira), e outra em Tavira, com

jurisdição sobre o Algarve Central e Oriental (Faro, Loulé, Cacela, Santo António de

39

Vide Joaquim Romero Magalhães, “A meio do reino do Algarve: Faro, séculos XVI-XVII”, O Algarve

na Época Moderna, Coimbra, Faro, Imprensa da Universidade de Coimbra, Universidade do Algarve,

2012, pp. 97-106. 40

Cf. Sarrão, “História...”, Duas Descrições..., p. 163. 41

Cf. Romero Magalhães, Para o estudo..., p. 139. 42

Cf. Sarrão, “História...”, Duas Descrições..., p. 161. 43

Cf. São José, “Corografia...”, Duas Descrições..., p. 47. 44

Cf. Duarte Nunes do Leão, Descrição do Reino do Algarve, Lisboa, Centro de História, 2002, p. 205. 45

Cf. Sarrão, “História...”, Duas Descrições..., p. 139.

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19

Arenilha, Castro Marim e Alcoutim). Apesar dos almoxarifados do Algarve se terem

centralizado num único organismo, em finais de Quinhentos, este funcionava de forma

tripartida: Tavira, Faro-Loulé e Silves-Lagos46

. Nem sequer existia uma sede fixa do

governo. O regimento de 1624 concedia a possibilidade do governador escolher entre

Lagos e Tavira. Não obstante o facto do rei aconselhar Tavira, dada a maior importância

da cidade e a mais profunda ligação à costa africana, muitos foram os governadores que

optaram por residir em Lagos47

.

A principal valência do governador passava pela defesa militar da região,

constantemente assombrada pelo espectro do corso, uma ameaça que se tornou mais

presente durante o Período Filipino. As relações internacionais e os confrontos políticos

do Império reflectiam-se no sul do reino.

Em 1587, Francis Drake, após o ataque à baía de Cádis, rumou ao Algarve e

desembarcou em Lagos. Depois de saquear a cidade, retirou-se pelo Cabo de São Vicente.

Menos de dez anos depois, um novo ataque inglês. Depois de uma incursão em Cádis, o

Conde de Essex e os seus homens desembarcaram no sítio de Farrobilhas, a 23 de Julho

de 1596. Seguiram para Faro e dali até São Brás de Alportel, deixando atrás de si um

rasto de destruição. Só cederam perante a cavalaria de Loulé e de Tavira. Regressaram,

então, a Faro e, até ao dia 27, saquearam e desbarataram a cidade48

. Nem a biblioteca do

bispo ficou imune. Parte dos livros que a compunham foram levados por Essex para

Inglaterra e, mais tarde, doados a Thomas Bodley49

. D. Fernão Martins de Mascarenhas

fugiu para Loulé e só regressou a Faro após a retirada das tropas inglesas. O cenário que

encontrou foi desolador. Escrevia o bispo ao papa Clemente VIII:

“A maior e principal parte da cidade foi queimada e particularmente executaram os

inimigos seu furor nas casas e fazenda do Bispo porque, depois de roubado tudo o

46

Cf. Romero Magalhães, Para o estudo..., p. 236. 47

Cf. Alberto Iria, “O Algarve sob o domínio dos Felipes”, Congresso do Mundo Português, vol. VI,

tomo I, Lisboa, Comissão Executiva dos Centenários, 1940, p. 303. 48

Cf. Romero Magalhães, “O assalto dos Ingleses a Faro em 1596”, O Algarve na Época Moderna,

Coimbra, Faro, Imprensa da Universidade de Coimbra, Universidade do Algarve, 2012, pp. 106-140. 49

Na dedicatória do seu Tractatus de Auxiliis Divinæ Gratiæ ad actus supernaturalis (Lisboa, Pedro

Craesbeeck, 1604), D. Fernão Martins de Mascarenhas referia: “Entre outras coisas foi vítima da má sorte

a minha biblioteca não vulgar que eu tinha em grande estima e constituía as minhas lucubrações e

prolongadas vigílias. Tenho procurado resgatar esse trabalho mas até agora não foi encontrado o ladrão”.

O resgate da biblioteca do bispo foi infrutífero. Actualmente, ainda se encontram na Biblioteca Bodleiana

da Universidade de Oxford alguns dos volumes saqueados em Faro (Cf. José António Pinheiro e Rosa,

“Livros de Faro em Oxford”, Anais do Município de Faro (AMF), vol. XIV, 1984, pp. 177-178). Vide

também João Teles e Cunha, A memória à luz da história ou a biblioteca do Bispo do Algarve revisitada,

Faro, Universidade do Algarve, 2007.

Page 20: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

20

que nelas havia, lhe deram tão grande fogo que até as paredes ficaram de tal

maneira abrasadas que em nenhum modo se poderá edificar nelas.”50

Nas décadas de 20 e 30 de Seiscentos, ao corso inglês e norte-africano, juntou-se a

ameaça de ataques das armadas holandesa e francesa. A correspondência do governador

Henrique Correia da Silva durante os anos 1638 e 1640 espelham o clima de pavor

vivenciado nas localidades do litoral, constantemente ameaçadas pelas investidas das

potências rivais de Castela51

.

As economias urbanas dependiam dos navios que enchiam os portos e do peixe que

enchia as redes. Mas o corso, ao impedir os barcos pesqueiros de saírem para o mar e as

embarcações estrangeiras de entrarem nos portos, comprometia o crescimento

económico da região52

. Por isso, revelava-se urgente encontrar uma solução para o

problema. Tal passava por uma maior vigilância da costa e pelo melhoramento das

estruturas defensivas. Desde 1593 que a costa algarvia era percorrida por duas armadas:

uma da coroa, financiada pelo tributo do consulado e destinada a zelar pela segurança

da navegação, e outra privada, armada à custa dos residentes e cuja principal finalidade

era a captura de embarcações inimigas53

. Visando o aperfeiçoamento das estruturas

defensivas da costa algarvia, o governador D. João de Castro convocou o engenheiro

Alexandre Massaii. Em 1621, Massaii terminava o relatório, intitulado “Descripção do

Reino do Algarve”, no qual expunha os resultados da análise de todas as fortificações da

costa algarvia, de Alcoutim a Aljezur, salientando as condições em que se encontravam

e as melhorias a ser implantadas. No final, enumerou as 16 obras que estavam por

terminar e contabilizou o investimento necessário. Massaii alertava que tais obras

seriam indispensáveis ao Algarve, quer pelo risco de ruína das fortificações existentes,

quer pelas ameaças dos “[...] turcos e ladrões que com seu atrevimento cometem a terra,

fazendo furtos e cativando à gente [...]”54

.

50

Cf. Nuno Beja, “Transcrição de documentos relativos à História do Algarve”, AMF, n.º XXIX/XXX,

1999-2000, p. 216. 51

Cf. Valdemar Coutinho, Dinâmica Defensiva da Costa do Algarve do período islâmico até ao século

XVIII, Portimão, Instituto de Cultura Ibero-Atlântica, 2001, pp. 48-49. A 9 de Agosto de 1638, o

governador alertava o rei que “[...] quanto mais se dilata a guerra com França e Holanda tanto mais

necessitam os lugares marítimos deste Reino de capitães de experiência e valor conhecido que saibam

dar ordens aos moradores para saberem acudir a seus postos e defendê-los em que lhe faltar socorro

que baste [...]” (Cf. Iria (ed.), Cartas dos Governadores..., p. 25). 52

Em 1640, a ameaça de ataques era tal que até impossibilitou o início da época da pesca do atum

(Cf. Idem, Ibidem, p. 161). 53

Fernando Cecílio Calapez Corrêa, A cidade e o termo de Lagos no período dos reis Filipes, Lagos,

Centro de Estudos Gil Eanes, 1994, p. 71. O tributo do consulado era um imposto de 3% sobre os

rendimentos das alfândegas do reino, lançado em 1591. 54

Cf. Lívio da Costa Guedes, Aspectos do reino do Algarve nos séculos XVI e XVII. A “Descripção” de

Alexandre Massaii (1621). Separata de Boletim do Arquivo Histórico Militar, Lisboa, 1988.

Page 21: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

21

A defesa da costa exigia homens e investimento. Ora, estas eram duas lacunas com

que a coroa se deparava, o que conduziu a uma maior tensão nas relações entre o poder

central e o local. O Algarve não possuía exército permanente e a sua defesa dependia de

um corpo de tropas só mobilizado em casos de ameaça concreta. Por outro lado, as

câmaras apenas contavam com um número limitado de homens para a composição das

ordenanças. Os mais preparados eram destacados para as tropas reais. Num momento em

que o Império combatia em várias frentes, faltava manancial humano para defesa da costa

algarvia55

. Em 1633, quando D. Gonçalo Coutinho assumiu o governo do Algarve, as

instruções recebidas revelaram as fragilidades defensivas da região: a artilharia dos

baluartes das fortalezas do reino estavam “faltas de reparos e inúteis por isso em muita

parte” e as munições eram poucas para suprir as necessidades. A própria população não

estava suficientemente preparada para um ambiente tão hostil. O novo governador era

então alertado para a necessidade de “[...] ordenar-se que o reino seja provido de armas, as

quais se dêem aos moradores por seu dinheiro, porque há informação que as não há e só

usa de espingardas de pederneira que não servem senão em exercícios de caça [...]”56

.

Numa carta de 22 de Fevereiro de 1639, Henrique Correia da Silva fazia um balanço

das possibilidades defensivas do Algarve. A protecção de Tavira era um verdadeiro

problema, pois não havia gente suficiente para defendê-la e a barra estava muito

desamparada. Por isso, o governador escolhera “[...] a melhor gente e mais prática nas

armas [...]” para as vilas de Castro Marim e Alcoutim, de onde viria o socorro da

cidade. De Loulé, chegaria auxílio militar a Faro, em caso de ataque. Esta cidade de

“[...] praias largas que em nenhuma maneira se podem cobrir com trincheiras, nem

defender sem força de gente [...]” também inquietava o governador. Mais protegidas

estavam as vilas de Albufeira e Portimão. Lagos, embora fosse uma cidade “mais

exposta”, possuía estruturas defensivas sólidas57

.

A instabilidade do Império também se repercutia na região através do aumento da

carga fiscal. A 16 de Novembro de 1623, D. Filipe III solicitava aos povos do Algarve

que contribuíssem financeiramente para acudir ao estado de crise. No ano seguinte, a 19

de Agosto, o corregedor da comarca de Tavira recebia instruções para que Faro e Loulé

ajudassem nas despesas necessárias ao desenvolvimento do comércio das naus da

55

Cf. Romero Magalhães, O Algarve Económico..., pp. 86-89. 56

Cf. Academia das Ciências de Lisboa, cod. 288 (Livro I do Governo do Algarve), fls. 302-304. 57

Cf. Iria (ed.), Cartas dos Governadores..., pp. 52-53.

Page 22: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

22

Índia58

. Novos impostos surgiram nos anos 30 e a revolta contagiou todo o reino. Em

1630, passou a ser cobrado o benefício do bagaço da azeitona, abolido dois anos depois,

na sequência dos vários protestos. Afinal, o azeite era uma das principais produções

algarvias, ao lado do vinho, do figo e do atum. No ano seguinte, aplicou-se o imposto

das meias anatas, também motivo de grande descontentamento social59

.

Os 60 anos de governo filipino não encontraram no Algarve uma resistência

expressiva. Faro, Silves e Lagos, cidades onde D. António recolhera apoio popular, não

se opuseram oficialmente à entrada das tropas castelhanas em 158060

. Durante o Período

Filipino, o Algarve conseguiu mesmo beneficiar de sólidas reformas legislativas e de

um incremento das estruturas defensivas61

. Por outro lado, as ameaças à costa algarvia

eram crescentes e impediam o normal exercício das actividades que sustentavam a

economia da região. A insegurança aliada ao aumento da carga fiscal, em particular

durante o reinado de D. Filipe IV, exacerbaram os ânimos populares.

A 8 de Agosto de 1632, durante a procissão de Nossa Senhora de Guadalupe, em

Lagos, Luís Leitão e Matias Duarte, o primeiro sapateiro e o outro bengaleiro, colocaram

na rua um pavilhão com um letreiro onde se podia ler: «Se queres saber quem é, quem foi

e quem serás, abre o pavilhão e vê-lo-ás». Dentro, estava um burro e nele uma outra

tabuleta pendurada: «Cá estamos todos». Os dois ficaram de guarda. Ao passar a charola

com a imagem de Nossa Senhora, abriram o pavilhão. Pela afronta, foram ambos presos

na cadeia de Lagos. Alguns dias depois, a 22 do mesmo mês, durante a procissão do

Santíssimo Sacramento, Luís Leitão e Matias Duarte uniram-se a outros prisioneiros e

colocaram à porta da cadeia um outro letreiro: «Ainda cá não estamos todos». O caso foi

remetido para o Tribunal da Inquisição, enquanto prova de blasfémia e, sobretudo,

suspeita de judaísmo. Afinal, Luís Leitão era cristão-novo62

. Contudo, atente-se a um

outro facto: integravam as duas procissões algumas das principais autoridades da cidade e,

inclusivamente, o próprio governador. Talvez o sentido da provocação fosse outro que

58

Cf. Iria, “O Algarve sob o domínio...”, Congresso do Mundo..., p. 302. 59

Cf. António de Oliveira, Movimentos sociais e poder em Portugal no século XVII, Coimbra, Instituto

de História Económica e Social da Faculdade de Letras, 2002, pp. 241-274. 60

Cf. Iria, Da importância..., pp. 161-162. 61

Vide Joaquim Veríssimo Serrão, O surto regional português na legislação dos Filipes (1581-1625).

Separata de Actas do Colóquio: O Papel das Áreas Regionais na Formação Histórica de Portugal,

Lisboa, Academia Portuguesa da História, 1975. 62

Cf. Lisboa, Biblioteca Nacional (BN), Reservados, cod. 10835, fls. 352-355v. Vide, em anexo, pp. 410-411.

Page 23: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

23

não a afronta à fé católica. Alberto Iria interpreta-o como um dos primeiros sinais de

revolta popular no Algarve contra a coroa63

.

A partir de 1637, os sinais de descontentamento tornaram-se mais evidentes e as

primeiras sublevações em Évora tenderam a contaminar todo o sul de Portugal. A

exigência de uma inventariação de todas as fazendas do reino previa a chegada de um

novo imposto que se juntaria ao impopular real d‟água e ao aumento do cabeção das

sisas. Para mais, a sucessão de maus anos agrícolas provocara a escassez de trigo. À

rudeza dos impostos juntava-se a fome. Em Setembro de 1637, registaram-se motins em

Loulé. Os moradores exigiam à câmara que suspendesse o real d‟água e a avaliação das

fazendas. De notar que a vila e o termo constituíam o principal centro de produção

cerealífera no Algarve e, havia pouco tempo, a peste fizera estragos na região. A revolta

espalhou-se rapidamente pelo interior algarvio. No início de Outubro, Alcoutim e

Moncarapacho deixaram de pagar o real d‟água. Nos meses seguintes, desde Aljezur até

Castro Marim, quase todo o Algarve se rebelou. Os arquivos fiscais foram destruídos, as

cidades depredadas pelos revoltosos. A origem dos levantamentos encontrava-se,

maioritariamente, nos termos dos principais núcleos urbanos. Era uma população rural,

base do sector produtivo, que se revoltava contra a cidade, consumidora e traficante, de

onde lhe exigiam tributos cada vez mais pesados. Juntaram-se aos amotinados alguns

elementos do baixo clero, mais próximos do povo, e as camadas inferiores da sociedade

urbana, cuja crise cerealífera atingiu profundamente. Faro, Tavira e Silves foram

atacadas pelos moradores das freguesias limítrofes. Lagos, com um termo pequeno e

pouco rico, manteve a tranquilidade, constituindo, assim, uma das poucas excepções à

revolta geral.

A repressão não tardou. As autoridades municipais, apoiadas pela nobreza,

opuseram-se pela força das armas contra os amotinados. Os corregedores negociaram a

pacificação. O poder central também tomou medidas para evitar a evolução dos motins:

o estabelecimento de guarnições militares na fronteira e o fomento da vigilância sobre

os portos algarvios, impedindo um possível auxílio das armadas francesa e holandesa

aos revoltosos.64

63

Cf. Alberto Iria, “O Algarve na Restauração (1640-1668)”, Congresso do Mundo Português, vol. VII,

Lisboa, Comissão Executiva dos Centenários, 1940, p. 166. 64

Cf. Joaquim Romero Magalhães, 1637: Motins da Fome. Separata de Biblos, Coimbra, 1976; António

de Oliveira, Levantamentos populares do Algarve em 1637-1638. A repressão. Separata de Revista

Portuguesa de História, Coimbra, 1984.

Page 24: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

24

A 21 de Maio de 1638, em carta ao duque de Medina Sidónia, Henrique Correia da

Silva escrevia que as medidas tomadas contra os motins eram prova do “[...] quanto

importava a toda Espanha, o rendimento e quietação deste Reino [...]” e a necessidade de

se esperar dele “[...] tributos fixos, quietação de vassalos, rendimento de ânimos,

execução de justiça sem uma palavra em contrário [...]”65

. No início de 1638, os motins já

haviam acalmado mas permaneceu a esperança de uma mudança política para breve. Por

todo o reino, emanavam laivos de messianismo, alimentados por pregadores que, nos

púlpitos, exaltavam a fé na recuperação da independência. Denunciavam os desvios

morais do governo, a forma como a decadência do Império arrastara a economia

portuguesa, o declínio do poder naval português e do domínio colonial, a protecção

concedida aos cristãos-novos e um alegado alastramento do Judaísmo no reino66

.

Também no Algarve, em finais da década de 30, multiplicavam-se os casos de profecias

independentistas. D. Gregório de Almeida, na Restauração de Portugal Prodigiosa, narra

um episódio ocorrido nas proximidades do Cabo de São Vicente, em Maio de 1639.

Numa sepultura, descobriu-se uma caixa de pau preto contendo uma lâmina com uma

inscrição em latim: «Quando o sol alumiar os meus ossos, então se chegará a alegria dos

Lusitanos, Setembro verá suas entradas»67

. Anos mais tarde, em 1660, Bartolomeu Vaz

Pincho, lavrador de Silves, foi preso pela Inquisição de Lisboa acusado de “publicar e

afirmar coisas futuras”. Em 1639, sentira um “tino” para anunciar que até 1640 haveria rei

português. As profecias continuaram nos anos seguintes. Pincho afirmou ter previsto a

morte de D. João IV e que “[...] havia de vir um Rei encoberto português que já reinou em

Portugal e que não morreu em uma batalha em terra de hereges [...]”, o qual, até 1666,

“[...] em que se junta o Corpo de Deus com o Baptista, e São Marcos em dia de Páscoa, e

o Natal ao sábado [...]”, seria “[...] imperador de sete reinos [...]”68

.

A guerra da Restauração não se fez sentir no Algarve tão intensamente quanto

noutros espaços do reino. Porém, a separação de Castela e, mais especificamente, o

afastamento entre os dois Garbs tiveram consequências na economia da região. O

Algarve distanciava-se dos mercados andaluzes e, por conseguinte, da conexão

comercial com a América Castelhana que se desenvolvera exponencialmente durante os

65

Cf. Iria (ed.), Cartas dos Governadores..., pp. 10-11. 66

Vide João Francisco Marques, A Parenética Portuguesa e a Dominação Filipina, Porto, Instituto

Nacional de Investigação Científica, 1986, pp. 260-307. 67

Cf. Iria, “O Algarve na Restauração...”, Congresso do Mundo..., pp. 174-176. 68

Cf. ANTT, Inquisição de Lisboa (IL), proc. 4794, fls. 15-16. Vide, em anexo, transcrição da confissão

que Bartolomeu Vaz Pincho apresentou perante a Inquisição de Lisboa.

Page 25: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

25

anos da União Ibérica, condicionando o crescimento dos núcleos costeiros. Esta ruptura

acabaria por contribuir profundamente para o declínio comercial da região.

Em termos defensivos, o perigo sentia-se, sobretudo, na fronteira. Pouco depois da

aclamação de D. João IV, o governador Henrique Correia da Silva tratou de enviar um

corpo de dois mil homens para Castro Marim, adivinhando um eventual ataque do

Marquês de Aiamonte. Em 1642, Alcoutim também passou por dificuldades ao ser alvo

de investidas do forte de Sanlúcar de Barrameda, a apenas meia légua além do

Guadiana. As fortalezas da costa só seriam atacadas num momento final dos confrontos,

já no reinado de Afonso VI.

As forças militares da região, canalizadas para a fronteira, passaram a escassear noutros

espaços menos ameaçados pelos ataques castelhanos. Tal aconteceu em Lagos. Em 1647,

faltava à cidade sentinelas nos baluartes e a guarda nocturna era feita por soldados e não por

companhias69

. Essa fragilidade defensiva resultava de uma outra circunstância - a cidade,

nos últimos anos, perdera muitos moradores. E não era caso único.

No século XVII, registou-se uma mudança no cenário de progressão demográfica

que marcara o Algarve na centúria anterior. Vejamos os seguintes gráficos70

:

69

Cf. ANTT, Inquisição de Évora (IE), mç. 1, doc. 5, fl. 26. 70

São três os marcos cronológicos: 1527, 1598 e 1621. Os dados relativos aos anos de 1527 e 1621

referem-se, respectivamente, ao “numeramento” de 1527-32 e à Descripção do Reino do Algarve, de

Alexandre Massai (Cf. Alves Dias, Gentes e espaços...., p. 546, Romero Magalhães, Para o estudo..., p.

34; Costa Guedes, Aspectos do reino do Algarve...). A fonte para o ano de 1598 é a relação sobre o estado

da diocese do Algarve enviada pelo bispo D. Fernão Martins de Mascarenhas ao Papa Clemente VIII (Cf.

Nuno Beja, “Transcrição de documentos...”, AMF..., pp. 212-229).

Page 26: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

26

Gráficos 1-3: Número de vizinhos por concelho, cidade/vila e respectivos termos

Como se vê, Vila Nova de Portimão sofreu uma queda demográfica no início do

século XVII. A situação repetiu-se em Tavira. Em 1638, o governador via a cidade a

perder gente “[...] não porque falte no termo aonde se passaram a viver com mais

liberdade sua [...]”71

. Por sua vez, no concelho de Loulé, a população das freguesias rurais

registou um acentuado crescimento no início do século XVII, em detrimento da vila.

Viver fora da cidade representava uma existência mais segura, longe dos

cataclismos que, de quando em vez, assolavam os núcleos urbanos. O excesso de

71

Cf. Iria (ed.), Cartas dos Governadores..., pp. 31-32.

Page 27: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

27

população, as condições de higiene sofríveis e a frequência dos portos por embarcações

estrangeiras tornavam as cidades litorâneas mais sujeitas à propagação de epidemias.

Além do mais, a escassez da produção cerealífera fazia da fome uma tragédia

recorrente. Ora, fome e peste eram velhas aliadas72

. Mas outros perigos residiam na

cidade, em particular nos núcleos do litoral, onde a expectativa de um ataque corsário

era constante. A fuga ao recrutamento para o exército castelhano, cada vez mais

insaciável, revelava-se outro incentivo ao abandono da cidade. Por outro lado, os

centros urbanos não exerciam a atracção doutros tempos. Os lucros da pesca do atum

caíam a pique, os portos algarvios já não eram tão frequentados quanto no passado.

Faro, a cidade emergente na segunda metade do século XVI e inícios da centúria

seguinte, estagnou a partir da década de 30 de Seiscentos e assistiu à partida de muitos

dos seus moradores, sobretudo os que viviam da actividade mercantil, para lá dos seus

limites, até para lá da fronteira portuguesa. Por outro lado, a agricultura significava um

rendimento mais seguro e uma posição social mais respeitável. As estruturas das

habitações rurais foram reforçadas e a quinta, no passado apenas ocupada no tempo do

alacil ou nas deslocações esporádicas dos citadinos ao campo, tornou-se num espaço

residencial permanente73

.

O Algarve sofria um processo de ruralização. Segundo Romero Magalhães, este foi

consequência da própria estrutura da expansão urbana registada nos séculos anteriores.

Afinal, o crescimento demográfico das cidades não coincidira necessariamente com a

generalização de um modo de vida urbano. A economia urbana continuou intimamente

ligada ao meio rural, a especialização era escassa e muitos acumulavam o exercício de

uma actividade comercial ou mesteiral com a lavoura. Por outro lado, o progresso

populacional também implicou a intensificação e a valorização da actividade agrícola,

ao mesmo tempo que descentralizou a residência da população citadina, impelida a

fixar-se fora das muralhas, cada vez mais distante do centro das cidades. Além do mais,

não existia no Algarve uma urbe dominante. Faro, Tavira e Lagos mantiveram sempre o

72

Cf. Hugo Cavaco, “Epidemias no Reino do Algarve. A Peste de 1645-1650 (Subsídios para a sua

história)”, Património e Cultura, ano 2, n.º 5, Março 1982, pp. 3-16; Fernando Cecílio Calapez Corrêa,

“A Expansão e a Peste em Tavira em 1580”, Cadernos Históricos, vol. II, Lagos, Comissão Municipal

dos Descobrimentos, 1990, pp. 45-51. 73

Cf. João Rosa Vieira Caldas, A Arquitectura Rural do Antigo Regime no Algarve. Dissertação de

Doutoramento apresentada ao Instituto Superior Técnico, vol. I, Lisboa, 2007, exemplar policopiado,

pp. 113-115.

Page 28: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

28

equilíbrio. A Faro e a Lagos faltava um termo suficientemente grande e produtivo e a

Tavira um bom porto que estimulasse a actividade mercantil74

.

Um crescimento urbano destinado a falhar na raiz, seguido de um processo de

ruralização concretizado ao longo do século XVII – são estas as linhas que tecem a

evolução sócio-económica do Algarve entre 1550 e 1650. Uma outra carta seria jogada:

a repressão inquisitorial. Veremos como.

74

Cf. Romero Magalhães, O Algarve Económico..., pp. 393-413, passim.

Page 29: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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II

SSoobb oo eennccaallççoo ddaa IInnqquuiissiiççããoo

1. 1558-1570: A PRIMEIRA ENTRADA DA INQUISIÇÃO NO ALGARVE

Em 1619, os inquisidores de Évora afirmavam que Vila Nova de Portimão era terra

repleta de cristãos-novos, onde o Santo Ofício ainda não havia entrado75

. Mais de uma

década depois, continuava-se a insistir nesta observação relativamente a outras

localidades do Algarve. Porém, em 1619, a Inquisição já havia actuado em Vila Nova

de Portimão, tal como em Lagos, Tavira ou mesmo em Faro. O seu alvo fora,

essencialmente, um só – a gente de nação.

Afinal, o Algarve só permaneceu longe da mira do Santo Ofício até meados do

século XVI.

Nos primeiros anos da Inquisição em Portugal

Façamos uma breve cronologia76

:

1496: Publicação do édito de expulsão dos judeus e mouros de Portugal. D.

Manuel estipula que, até ao final de Outubro do ano seguinte, deveriam

abandonar o reino ou converter-se ao Cristianismo.

1497: Baptismo forçado de todos os judeus que permaneceram no reino.

Decreto real proibindo inquirições relativas ao comportamento religioso dos

cristãos-novos durante um período de 20 anos.

1499: Interdição à saída dos conversos de Portugal sem licença régia.

1506: Massacre de Lisboa.

75

Cf. ANTT, IE, proc. 3276, fl. 6. Vide também: Joaquim Romero Magalhães, E assim se abriu judaísmo

no Algarve. Separata de Revista da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1981, p. 9. 76

Cf. Francisco Bethencourt, “Cronologia da Inquisição”, A Inquisição em Portugal (1536-1821).

Catálogo da exposição organizada por ocasião do 1º Congresso Luso-Brasileiro sobre a Inquisição,

Lisboa, Biblioteca Nacional, 1987, pp. 15-17.

Page 30: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

30

1507: Autorização para os cristãos-novos abandonarem o reino.

1515: D. Manuel pede ao Papa o estabelecimento da Inquisição.

1522: D. João III renova o decreto de 1497, acrescentando que os crimes

contra a fé seriam julgados como delitos comuns.

1524: Reiteradas as concessões de 1507.

1525: D. João III volta a pedir a Inquisição a Roma.

1531: Nomeação de Frei Diogo da Silva como inquisidor do reino de

Portugal e dos seus domínios.

1532: Proibição da saída dos cristãos-novos do reino.

1535: Perdão geral aos culpados de Judaísmo. Renovação da proibição de

saída do reino por mais 3 anos.

1536: Publicação da bula Cum ad nil magis. Estabelecimento oficial da

Inquisição em Portugal.

De tolerados a perseguidos, de judeus a cristãos-novos, a expulsão do reino e os

baptismos forçados – realidades que, naturalmente, não passaram ao lado das

comunidades judaicas do Algarve. Segundo Samuel Schwarz, havia perto de mil anos

que a sua presença na região era testemunhável, antecedendo mesmo a conquista

cristã77

. Durante o período medieval, todos os principais núcleos urbanos do Algarve

comportavam comunidades judaicas bem organizadas e economicamente muito activas.

Silves, Loulé, Tavira e Faro possuíam judiarias no século XIV, tal como Lagos, Alvor e

Vila Nova de Portimão na centúria seguinte78

. Aliás, na sequência do movimento de

Expansão Ultramarina, a vila de Lagos tornou-se num foco de atracção para muitos

judeus. O Infante D. Henrique chegara mesmo a conceder-lhes cartas de licença para

residirem fora da judiaria, confinada a uma estreita travessa, então já sobrelotada.

Alguns acabaram por se estabelecer numa das principais artérias da vila, para escândalo

dos moradores cristãos, que não deixaram de fazer ouvir o seu descontentamento79

. Em

77

Samuel Schwarz refere a descoberta de duas lápides funerárias no lugar de Espiche, próximo de Lagos,

que datariam do século VI, sendo, assim, os mais remotos testemunhos da presença judaica na Península

Ibérica. (Cf. Samuel Schwarz, Inscrições Hebraicas em Portugal. Separata de Arqueologia e História,

Lisboa, 1923). 78

Cf. Maria José Ferro Tavares, Os Judeus em Portugal no Século XIV, Lisboa, Guimarães Editores,

1979, p. 21; Idem, Os Judeus em Portugal no Século XV, tomo I, Lisboa, Universidade Nova de Lisboa,

1982, p. 75. Vide também: Maria Júlia Fernandes, “Faro, distrito de”, Dicionário do Judaísmo Português.

Coord. Lúcia Liba Mucznik et al., Lisboa, Presença, 2009, pp. 232-233. 79

Num diploma de 18 de Maio de 1463, D. Afonso V ordenou aos juizes, justiças e oficiais de Lagos que

verificassem se, de facto, a judiaria já não podia albergar todos os judeus da vila, sendo realmente

necessário passarem a residir fora dos seus limites (Cf. Alberto Iria, “O Infante D. Henrique e os judeus

de Lagos (Subsídios para a sua história)”, Anais. Academia Portuguesa de História, II série, vol. 23, tomo

Page 31: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

31

Faro, por seu lado, residia a principal e mais antiga comunidade judaica do Algarve80

. À

data da expulsão esta era a comuna que gerava maiores rendimentos81

. À importância

económica acrescia a relevância cultural. Teria sido nesta cidade que, em 1487, veio à

luz o primeiro texto impresso em Portugal82

.

Poucos anos depois, a perseguição aos judeus portugueses institucionalizava-se. Em

1493, ocorre o primeiro baptismo forçado. Os filhos dos judeus castelhanos admitidos

provisoriamente em Portugal mas que ultrapassaram o prazo estipulado de permanência

no reino foram retirados às famílias e entregues a Álvaro de Caminha. Conduzidos para

a capitania da ilha de São Tomé, foram baptizados e forçados a viver longe dos pais e de

qualquer vestígio da religião dos seus antepassados. Já depois de decretada a expulsão

dos judeus do reino, impôs-se a conversão dos que permaneceram em Portugal. Na

Páscoa de 1497, D. Manuel dava ordem para que fossem retirados aos pais judeus os

filhos menores de 14 anos, com o fim de baptizá-los e entregá-los a famílias católicas.

No final do prazo concedido pelo monarca para a conversão ou o abandono do reino

(até ao fim de Outubro de 1497), milhares de judeus acorreram aos estaus de Lisboa.

Esperavam ali pelas embarcações que os levariam para fora de Portugal. Mas tal não

II, 1976, pp. 304-312). O problema da sobrelotação da judiaria de Lagos persistiu e voltou a ser colocado

nas cortes de Évora em 1481. D. João II acabaria por autorizar a expansão do bairro, sendo-lhe anexada

um azinhaga existente entre a judiaria e a zona cristã. Surge, assim, a judiaria nova de Lagos. (Cf. Ferro

Tavares, Os Judeus... Século XV..., p. 71). 80

Alberto Iria lança a hipótese da comuna judaica encontrar-se radicada em Faro desde a época

muçulmana. (Cf. Alberto Iria, Os Judeus no Algarve Medieval e o Cemitério Israelita de Faro do Século

XIX (História e Epigrafia), Faro, 1985. Separata de Anais do Município de Faro, p. 6). 81

De acordo com Maria José Ferro Tavares, 60 mil réis de rendimento do serviço novo e velho, dos quais

era concessionário D. João de Sousa. (Cf. Ferro Tavares, Os Judeus... Século XV, p. 750). 82

Segundo a interpretação do colofon daquele que é reconhecido como o primeiro livro impresso em

Portugal, a edição hebraica do Pentateuco, a sua impressão teria sido finalizada a 30 de Junho de 1487,

numa oficina em Faro, “por ordem do nobre e alto Dom Samuel Gacon”. Samuel Gacon seria, assim, o

editor da obra e não o impressor (Cf. João José Alves Dias, “Nova forma da transmissão do «verbo» - a

imprensa”, Nova História de Portugal, vol. V – Portugal do Renascimento à Crise Dinástica, Lisboa,

Presença, 1998, p. 494). Só se conhece um outro testemunho de actividade tipográfica em Faro em 1496,

com a impressão das obras Maseket Berakot (Tratado das Bênçãos) e Maseket Gittin (Tratado do

Divórcio), na oficina de Samuel Porteiro. Dada a correspondência do conjunto tipográfico das impressões

de 1496 com o do Pentateuco de 1487, alguns autores têm ponderado que estas seriam oriundas da

mesma oficina, apontando-se mesmo a identificação de Samuel Gacon com Samuel Porteiro (Cf. Artur

Anselmo, As Origens da Imprensa em Portugal, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1981, pp.

119-122, 235-238). Mas a data da edição do Pentateuco e o pioneirismo de Faro na história da imprensa

portuguesa levantam dúvidas. Primeiro, a comunidade judaica de Faro não teria uma importância tamanha

que justificasse ser o berço do primeiro texto hebraico impresso em Portugal, quando só em 1489 é que se

registou actividade tipográfica em Lisboa, onde se encontrava a principal comunidade do reino. Segundo,

considerando que o Pentateuco e os tratados impressos em 1496 são oriundos da mesma oficina, esse

hiato de quase 10 anos é pouco razoável. João José Alves Dias considera a hipótese da data de 1487 ser

fictícia, um subterfúgio para ocultar a verdadeira datação, 1497, ano conturbado para as comunidades

judaicas, obrigadas, então, a optar pela conversão ao Cristianismo ou pela expulsão do reino (Cf. João

José Alves Dias, “Incunábulos Hebraicos em Portugal”, Dicionário do Judaísmo..., pp. 278-280). Vide

também: Moses Bensabat Amzalak, A Tipografia Hebraica em Portugal no Século XV, Coimbra,

Imprensa da Universidade, 1922, pp. 20-21.

Page 32: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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passou de uma armadilha. O rei ordenou que todas as crianças e jovens com menos de

25 anos fossem separados das suas famílias e recebessem o baptismo. Também muitos

dos pais acabaram por ser baptizados, sob a promessa da restituição dos filhos ou,

simplesmente, coagidos pela força83

.

Conhecemos os nomes de alguns “baptizados em pé” no Algarve. Simão Dias, natural

de Faro, fizera-se cristão durante a conversão geral, quando tinha 25 anos – é o que relata

aos inquisidores à data da sua prisão, em 1566. Porém, mesmo depois do baptismo,

continuou judeu no seu coração, segundo alega84

. Por outro lado, Duarte Álvares,

mercador de Lagos preso em 1560, afirmou que abraçara convictamente a fé cristã desde

o baptismo, aos 6 ou 7 anos de idade, e só bem mais tarde regressou ao Judaísmo85

.

Francisco Lopes, um jovem cristão-novo de Tavira, ouvira a sua avó referir-se à

conversão forçada: “[...] que fora mal feito criar-lhe seus filhos e tomar-lhos [...]”86

.

Nos primeiros anos do estabelecimento do Santo Ofício em Portugal, apenas

esporadicamente encontramos registos de cristãos-novos residentes no Algarve

processados pela Inquisição. São casos isolados que não provocaram maiores

consequências. Parte deles nem chegou a conhecer o cárcere inquisitorial, apesar da

acumulação e da gravidade das denúncias.

João Lopes, sapateiro de Faro, estava preso na cadeia de Tavira em 1545.

Acusavam-no de fazer sinagoga numa casa nos arrabaldes da cidade. Ali, possuía livros

da “Lei Velha” e “[...] convocava ou ajuntava outras pessoas suspeitas que iam à dita

esnoga a fazer os ritos e cerimónias judaicas contra a nossa Santa Fé Católica, em a qual

esnoga o Réu tinha muitas candeias e coisas secretas, as quais acendia quando lia os

ditos, e ensina a dita lei de Moisés [...]”87

. Além de todo o cerimonial judaico, ele era

igualmente acusado de guardar no sótão da dita casa um crucifixo, o qual açoitava todas

as sextas-feiras. Mas essas denúncias eram falsas – arguia. João Lopes nunca poderia

possuir livros judaicos e, a partir deles, doutrinar outros cristãos-novos, visto que ficara

órfão aos 7 ou 8 anos e, desde então, começara a trabalhar como sapateiro, sem ter

quem lhe ensinasse a ler e, muito menos, a rezar de tal forma. Nas alcaçarias, ele

possuía, de facto, três casas, mas todas destinadas ao exercício do seu mester e

frequentadas por outros sapateiros, muitos deles cristãos-velhos, que passavam por ali

83

Cf. Elias Lipiner, Os Baptizados em Pé. Estudos acerca da origem e da luta dos Cristãos-Novos em

Portugal, Lisboa, Vega, 1998, pp. 20-36. 84

Cf. ANTT, Inquisição de Lisboa (IL), proc. 8351, fl. 24v. 85

Cf. ANTT, IL, proc. 10960, fl. 23v. 86

Cf. ANTT, IL, proc. 2511, fls. 8v-9. 87

Cf. ANTT, IE, proc. 9411, fl. 4v.

Page 33: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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em negócios. Por vezes, chegava a oferecer-lhes alojamento. Em suma, eram espaços

abertos, sem nada de secreto. Ilícito? Só o jogo. João Lopes conta que, numa ocasião,

estivera a jogar às cartas toda a noite com dois homens e, ao amanhecer, deu ordens a

uma escrava para ir comprar algo para comerem. Linguiça e lombo de porco,

pormenorizou o sapateiro. Estando todos a comer, apareceu de surpresa uma mulher.

Um dos companheiros de jogo, Diogo Dias, “[...] pensando que seria a justiça [...]”,

pegou logo num pano e cobriu as cartas. João Lopes acrescentou que, naquele momento,

tinha vestido um gibão. Ia sair para a missa88

.

Ano de 1545. O Santo Ofício estabelecera-se oficialmente em Portugal havia menos

de uma década. A Inquisição ainda permanecia longe do Algarve. Porém, João Lopes,

sapateiro de Faro, alegadamente um homem simples nas posses e no entendimento, já se

revelava hábil na defesa – a simplicidade doutrinal, o convívio com cristãos-velhos, o

afastamento das restrições alimentares judaicas, a firmeza da fé católica. E teria surtido

efeito. Apesar da incompletude do processo, tudo induz que João Lopes nunca chegou a

entrar nos calabouços de Évora.

Menos afortunado foi Mestre Francisco, cirurgião também de Faro e preso em 1543,

acusado de um rol extenso de práticas judaizantes: guardava os sábados de trabalho e

vestia neles os melhores trajes, fazia jejuns judaicos e celebrava a Páscoa do Pão

Ázimo, não ingeria carne de porco mas comia outras carnes durante a Quaresma e em

dias defesos, degolava as aves ao “modo judaico”, ensinava as ditas cerimónias a outros

cristãos-novos e lia por um livro os ritos da Lei de Moisés, além de que pedia esmola

entre os seus congéneres para reparti-la pelos cristãos-novos mais pobres89

. Mestre

Francisco nunca chegou a corroborar tais acusações. Ele era um dos melhores cirurgiões

da terra e, como também se dedicava à mercancia, trabalhava todos os dias da semana,

inclusivamente ao sábado. Rodeava-se de cristãos-velhos e de gente “de boa condição”,

que recebia em sua casa e a quem servia “[...] aves cozidas com toucinho ou assadas

albardadas com ele [...]”. Mestre Francisco apenas confirmou que chegara a consumir

carne em dias proibidos pela Igreja. Porém, as razões eram fortes – sofria de uma

“enfermidade de sarna” que piorava quando comia peixe. Apesar de exercer muita

caridade na prática do seu ofício, curando enfermos sem cobrar nada, ele não deixara de

88

Cf. Idem, fls. 7-9. 89

O processo refere que Mestre Francisco pedia esmola ao “Acedaca” e, depois, repartia-a pelos cristãos-

novos mais pobres. Este termo “Acedaca” seria uma corruptela de Sedaca, instituição comunal judaica

destinada a fins caritativos.

Page 34: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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ganhar ódios na cidade e enumerou-os na sua defesa, entre desavenças pessoais,

problemas de negócios e insatisfações com o seu trabalho de cirurgião90

.

Após o pagamento de 1500 cruzados de fiança e sob a condição de não partir de

Évora, Mestre Francisco saiu dos cárceres e, em 1546, recebia licença para regressar

temporariamente a Faro91

. Entretanto, a sua esposa também fora presa. Branca de Sousa,

que se tinha mudado para Lisboa por ocasião da prisão do marido, entrou nos

calabouços de Évora a 4 de Agosto de 154692

. Os inquisidores interpretaram esta

mudança como uma fuga. Entre várias denúncias, Diogo Martins, morador na Ribeira

de Faro, acusou-a de ter visitado “[...] o Anticristo que pousava em casa de Brás Pires, o

barbeiro [...]”93

. O “Anticristo” era David Reubeni, auto-proclamado filho do rei

Salomão, que, em 1525, viera a Portugal pedir o auxílio do rei para a libertação da Terra

Santa do domínio turco. Entrara no reino pelo Algarve e estivera durante alguns dias em

Tavira e em Faro. Muitos cristãos-novos viram nele o Messias prometido94

. Porém,

Branca de Sousa, na sua confissão, nunca se referiu às visitas a David Reubeni. Abjurou

no auto-de-fé de 12 de Abril de 1549, após o qual foi posta em liberdade.

Em toda a década de 40, o número de processos de cristãos-novos do Algarve

limitaram-se a uma dezena. A alguns nem sequer foi atribuída uma pena, como

aconteceu com Manuel Rodrigues, barbeiro em Tavira, preso a 14 de Novembro de

1541 e solto no final do ano seguinte. Dizia que não acreditava em Jesus Cristo porque

“[...] há mil e quinhentos e tantos anos que passou, que ele não estava lá nem o viu, que

como o há-de crer, e que se São Pedro andava com ele e o não conhecera, que como o

90

Cf. ANTT, IE, proc. 5718. 91

Foi-lhe dada licença a 25 de Abril para sair de Évora, sob a condição de regressar até ao S. João. Como

só regressou em Agosto, Mestre Francisco perdeu os 1500 cruzados de fiança que tinha depositado na

mão de João Álvares, de Lisboa. Ele justificou que se demorara em Faro a pedido da Câmara, a qual

precisava dos seus serviços devido aos muitos doentes que havia na cidade. A Câmara de Faro

confirmaria esta justificação. Porém, Mestre Francisco foi acusado de andar em Faro a negociar e a curar

com o simples objectivo de ganhar dinheiro (Cf. ANTT, IE, proc. 7914). 92

O processo de Branca de Sousa encontra-se incompleto e disperso em três documentos. O processo n.º

5733 da Inquisição de Lisboa apenas comporta, além da ordem de prisão, o relato sobre o que aconteceu no

momento em que foi presa. Aires Botelho, notário da Inquisição, responsável pela detenção de Branca,

testemunhou que ela chamara uma moça que tinha ao seu serviço “ [...] e lhe vira ele testemunha pôr a mão

na boca, olhando para a moça, como que lhe acenava que se calasse e ele testemunha olhara então para a dita

mulher de Mestre Francisco e ela dissimulou e passou a mão para o nariz e olhos que ele testemunha notara

aquilo e lhe pareceu que fizera aquilo para lhe acenar que se calasse [...]” (fls. 4v-5). O processo n.º 6854 da

Inquisição de Évora consiste no testemunho de um alcaide do cárcere sobre um grupo de mulheres das quais

se suspeitava que mantinham práticas judaizantes no cárcere. Entre elas estava Branca de Sousa que, embora

todos os dias trabalhasse a fazer “rede de linhas”, às sextas-feiras passava a noite a falar com as outras

mulheres. É o processo n.º 458 da Inquisição de Évora que contém a maior parte do processo de Branca de

Sousa – os artigos de confissão, a defesa, a confissão e a sentença final. Portanto, apesar de ter sido presa em

Lisboa, o processo acabou por ser remetido para a Inquisição de Évora. 93

Cf. ANTT, IE, proc. 458, fl. 69. 94

Cf. Maria José Ferro Tavares, Los Judíos en Portugal, Madrid, MAPFRE, 1992, pp. 243-245.

Page 35: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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conheceria ele que nunca o vira, e que como queimavam agora aqui por isso os cristãos-

novos, pois havia tanto tempo que passara [...]”95

. Afirmações do espírito de um homem

simples e de “pobre siso” – consideraram os inquisidores. Outros processados

acabariam por beneficiar do perdão geral de 154796

.

Era um momento embrionário da Inquisição portuguesa. A tensão entre a Santa Sé e

a coroa, tal como a pressão dos agentes dos cristãos-novos junto do papa, funcionavam

como entraves a uma actuação mais consistente e sistemática97

. A bula de 1536, que

estabeleceu oficialmente a Inquisição em Portugal, salvaguardava o direito dos réus

conhecerem as testemunhas de acusação e apresentarem a sua própria defesa. O segredo

ainda não se tornara numa arma do Santo Ofício, como aconteceria anos mais tarde,

autêntico motor das grandes vagas de prisões e causa de denúncias que se

multiplicavam de réu para réu98

.

O vazio de prisões no Algarve na primeira metade de Quinhentos não foi algo de

excepcional. Salvo os grandes núcleos urbanos e outros onde as comunidades cristãs-

novas tinham um maior peso, a actuação inquisitorial manteve-se débil em todo o

território português99

. Segundo os dados apresentados por António Borges Coelho,

durante a década de 40 foram efectuadas 284 prisões pela Inquisição de Évora. No

95

Cf. ANTT, IL, proc. 12503, fl. 2. 96

A 11 de Maio de 1547, a bula Ilius qui misericordis decretava o perdão geral. Pouco mais de dois

meses depois, a 16 de Julho de 1547, uma outra bula papal, Meditatio cordis, determinava a aplicação do

processo inquisitorial em lugar do processo comum. 97

Em 1544, os agentes dos cristãos-novos em Roma apresentavam um memorial (Memoriale porrectum à

noviter conversis Regni Portugalliæ...) com a narrativa da perseguição aos judeus e cristãos-novos

portugueses desde a conversão forçada, em 1493, até àquele ano de 1544. Em anexo, encontravam-se 44

documentos, desde instrumentos judiciais relativos a factos mencionados na memória, até relatos sobre a

actuação dos inquisidores. Nesse mesmo ano, um breve papal decretou a suspensão das sentenças até à

chegada do novo núncio apostólico a Portugal. (Cf. Alexandre Herculano, História da Origem e

Estabelecimento da Inquisição em Portugal, vol. 3, Lisboa, Imprensa Nacional, 1859, pp. 106-111). 98

Sobre os primeiros anos de funcionamento da Inquisição portuguesa e o processo de

estabelecimento do tribunal vide: Herculano, História da origem…; Maria José Ferro Tavares,

“Inquisição: um «compellere intrare» ou uma catequização pelo medo (1536 -1547)”, RHES, n.º

21, Set.-Dez. 1987, pp. 1-28; Idem, “A Inquisição de 1531 a 1539: O inquisidor -mor D. Diogo da

Silva”, Judaísmo e Inquisição. Estudos, Lisboa, Editorial Presença, 1987, pp. 147-167; Francisco

Bethencourt, História das Inquisições – Portugal, Espanha e Itália, Lisboa, Temas e Debates,

1996; Giuseppe Marcocci, I custodi dell’ortodossia. Inquizione e Chiesa nel Portogallo del

Cinquecento, Roma, Edizioni di Storia e Letteratura, 2004; Idem, “A fundação da Inquisição em

Portugal: um novo olhar”, Lusitania Sacra, 2ª série, tomo 23, 2011, pp. 17-40; Susana Bastos

Mateus, “Los origines inciertos de la Inquisición en Lisboa (1536 -1548): Geografía penitencial y

estrategias de defensa de los Cristãos-Novos”, Tiempos Modernos. Revista electrónica de Historia

Moderna, vol. 7, n.º 20, 2010. [Consult. 5 Maio 2011] Disponível online:

http://www.tiemposmodernos.org/tm3/index.php/tm]. 99

Cf. Ferro Tavares, Los Judíos..., pp. 200-201.

Page 36: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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decénio seguinte, esse número decresceu: 248 detenções100

. Ora, o Algarve contribuiu

muito parcamente para estes números. Porém, em 1559, a conjuntura mudaria.

A Inquisição entra em Vila Nova de Portimão

Dezembro de 1558: o Dr. Luís de Albuquerque, vigário-geral do Algarve, visitava

Vila Nova de Portimão. No dia 6, apresentou-se Grácia Mendes, cristã-nova, esposa de

Domingos Fernandes, mercador. Vivia na Rua da Porta da Serra, artéria onde residiam

muitos outros cristãos-novos.

“A qual Grácia Mendes disse ao dito vigário, perante o dito padre e perante mim,

escrivão, que ela, por temer a Nosso Senhor Jesus Cristo e conhecer a verdadeira

verdade, e com verdadeiro arrependimento e propósito da emenda, se vinha ora a

reconciliar e acusar a ele, dito vigário, de seus erros e pecados, assim por sua parte,

como a dizer de outras pessoas que fazem e fizeram o que não deviam contra

Nosso Senhor e sua Santa Fé [...]”101

.

E o que fazia Grácia Mendes contra a fé católica? Numa longa sessão de confissão,

ela enumerou ao Dr. Luís de Albuquerque esses desvios. Durante três anos, guardou os

jejuns “como fazem os judeus”, ou seja, do pôr-do-sol de um dia ao anoitecer do

seguinte. Chegou a jejuar 3 vezes por semana e, uma vez, jejuou durante 10 dias

seguidos. Nessas ocasiões, rezava os salmos de David sem o Gloria Patri no final. Às

sextas-feiras à noite, limpava os candeeiros e mantinha-os acesos durante toda a noite

até se apagarem por si, tudo por honra do sábado. Quanto às festas judaicas, celebrava

os jejuns do Quipur e da Rainha Ester e a Páscoa do Pão Ázimo.

Depois de confessar tais práticas e de sublinhar a sua fidelidade à fé cristã nos

últimos 3 anos, Grácia Mendes delatou outros judaizantes. Começou por quem lhe era

mais próximo – a sua mãe, a primeira a ensinar-lhe os preceitos da Lei de Moisés. A

sessão alargou-se e, no final, já havia denunciado parte dos cristãos-novos da Rua da

Porta da Serra. O contacto de Grácia Mendes com os vizinhos era muito próximo:

“[...] algumas horas se juntavam uns em casa dos outros e praticavam nisso, nas ditas

cerimónias, e todos levavam muito grande contentamento disso [...]”102

. E o que ela

não testemunhou com os próprios olhos, ouviu dizer a outras pessoas. A sua mãe

contara-lhe que, em Lagos, as duas filhas do bacharel Manuel Pais, que fora promotor

100

Cf. António Borges Coelho, Inquisição de Évora. 1533-1668, Lisboa, Caminho, 2002, p. 178. 101

Cf. ANTT, IL, proc. 10964, fl. 3. Vide, em anexo, pp. 238-243. Sobre a confissão de Grácia Mendes e

as prisões seguintes, vide António Baião, “Ainda a Inquisição no Algarve. Apontamentos de processos

desconhecidos de cristãos novos de Portimão”, Correio do Sul, n.º 1753, ano 32, 14 de Junho de 1951. 102

Cf. Idem, fl. 7v.

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do bispo, faziam as mesmas cerimónias, tal como uma Guiomar Soeira, em Loulé103

.

“[...] Nesta Vila Nova, na Rua de Peru, havia muitos cristãos-novos e cristãs-novas

que faziam as mesmas cerimónias da Lei Velha [...]”, diziam Inês Martins e a filha

Catarina Fernandes, suas vizinhas104

.

As palavras de Grácia Mendes não suscitaram dúvidas. Afinal, apelidavam-na de “a

Apóstola”, tão “amiga da Igreja” que era105

. Além do mais, algumas das denúncias

foram corroboradas pelo testemunho do irmão, Mem Fernandes, o qual se apresentou

dois dias depois. Ele confirmou que, em muitas noites de sexta-feira, presenciara a mãe

a consertar as candeias, deixando-as acesas até de se apagarem por si. Uma vez, viu-a a

tirar o dedal à sua irmã Grácia para que não trabalhasse naquele dia: «Filha, não deixes

a cabeça para tomar os pés». A mãe e a irmã sabiam algumas orações judaicas,

ensinadas por uma cristã-nova de Loulé, a qual, sempre que ia a Vila Nova de Portimão,

recebia esmolas de todos os cristãos-novos106

. A solidariedade entre congéneres,

alicerce das comunidades judaicas, mantivera-se entre os seus descendentes mesmo

após a conversão geral.

No dia 23 de Dezembro de 1558, Grácia Mendes foi novamente chamada para

ratificar o seu testemunho. Confessou, então, que andara apartada da fé católica para lá

dos três anos que tinha admitido na sessão anterior. Durante seis ou sete anos, manteve

práticas judaicas e comunicara a sua fé com outros cristãos-novos. Assim, expandiu as

denúncias em número e em espaço, atingindo Tavira e até Lisboa.

Grácia Mendes lançou a semente num terreno que se revelava agora fértil à acção

inquisitorial. Em recompensa, a 13 de Janeiro de 1559, por carta do Inquisidor-geral,

obteve a reconciliação, tal como o seu irmão. O regimento de 1552 contemplava o uso

de misericórdia para com os penitentes que se apresentassem de forma voluntária107

. Foi

o que aconteceu com Grácia Mendes.

103

Filipa Soares e Inês Afonso eram filhas de Manuel Pais e de Guiomar Soeira e estavam casadas,

respectivamente, como Mestre João, cirurgião, e Manuel de Moura, rendeiro. A 13 de Janeiro de 1560,

receberam ordem de prisão. As duas saíram no mesmo auto-de-fé, a 16 de Março de 1561, reconciliadas

com cárcere e hábito penitencial perpétuos (Cf. ANTT, IL, procs. 7222 e 4195). 104

Cf. ANTT, IL, proc. 10964, fl. 8v. 105

Cf. ANTT, Idem, fl. 10. 106

Cf. ANTT, Idem, fls. 12-13. O testemunho de Mem Fernandes encontra-se no processo da irmã. 107

É referido no capítulo X do Regimento 1552: “[...] É grande sinal do penitente fazer boa e verdadeira

confissão descobrir outros culpados dos mesmos errores especialmente sendo pessoas chegadas e

conjuntas em sangue e a que tenham particular afeição [...]”. (Cf. “Regimento do Cardeal D. Henrique

(1552)”, in José Eduardo Franco e Paulo Assunção, As Metamorfoses de um Polvo. Religião e Política

nos Regimentos da Inquisição Portuguesa, Lisboa, Prefácio, 2004, p. 111).

Page 38: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

38

No mesmo documento de 13 de Janeiro, o Cardeal Infante D. Henrique dava ordem

de prisão aos cristãos-novos delatados pelos dois irmãos. Acrescentava, ainda, que os

casos seriam tratados pelo tribunal de Lisboa, “[...] sem embargo de não serem as ditas

pessoas de seu distrito [...]”108

. Quinze cristãos-novos de Vila Nova de Portimão e dois

de Lagos deveriam ser presos com brevidade109

. Todos eles chegaram aos cárceres de

Lisboa a 11 de Fevereiro desse ano110

.

A 8 de Maio de 1551, uma carta do Cardeal Infante comunicava aos deputados da

Inquisição de Lisboa que, a partir de então, tratariam de todos os casos denunciados no

reino, “[...] salvo nos deste arcebispado de Évora em que há inquisidores [...]”111

. Na

dita missiva de 1559, o inquisidor-geral referia que o Algarve se encontrava fora do

“distrito” do tribunal de Lisboa. Em finais da década de 50, a região estava sob a alçada

da Inquisição de Évora. Não obstante, até meados dos anos 60, os processos movidos

contra os cristãos-novos presos no Algarve decorreram em Lisboa e não em Évora. A

ordem que fora dada pelo Cardeal Infante em Janeiro de 1559 continuou em vigor muito

para lá dos 17 casos referidos.

Não identifiquei nenhuma evidência sólida sobre as razões que estariam por detrás

desta transferência de jurisdição. Atente-se, contudo, a quem ocupava então a cadeira

episcopal algarvia – D. João de Melo. O bispo desempenhara um papel proeminente nos

primeiros anos do estabelecimento da Inquisição em Portugal. D. Diogo da Silva,

primeiro inquisidor-geral, designou-o deputado do Conselho Geral e, logo depois,

inquisidor do recém-criado Tribunal da Inquisição de Évora. Passaria para a Inquisição

de Lisboa em 1539, onde o seu poder era muito abrangente. Aliás, desde 1540, D. João

de Melo era quem, na prática, dirigia o Santo Ofício português. A sua reputação de

severidade perpetuou-se. Alexandre Herculano refere-o como o “[...] mais resoluto

108

Cf. ANTT, IL, proc. 10964, fl. 14. Vide, em anexo, pp. 245-246. 109

Foi dada ordem de prisão a: Catarina Mendes, viúva de João Mendes; Beatriz Rodrigues e a filha Inês

Pousada; Mor Rodrigues e as filhas Catarina Mendes e Joana Rodrigues; Manuel Dias, marido desta

última; Gaspar Mendes, a mulher Catarina Vaz, a filha Grácia Mendes e o genro Simão Nunes; Isabel

Gonçalves, mãe de Inês Martins; e Inês, Beatriz e Grácia Mendes, filhas de Francisco Mendes. Eram

todos de Vila Nova de Portimão. Em Lagos, foram presas as duas filhas do bacharel Manuel Pais. (Cf.

Idem, fls. 23-24). 110

Também entraram nos cárceres da Inquisição de Lisboa, nesse mesmo dia, outros cristãos-novos de

Vila Nova de Portimão que, embora também denunciados por Grácia Mendes, não se encontram

mencionados na ordem de prisão de 13 de Janeiro. São eles: Manuel Mendes, marido de Mor Rodrigues

(Cf. ANTT, IL, proc. 12508); Beatriz e Isabel Mendes, filhas de Gaspar Mendes (procs. 1107 e 3104);

Violante Gonçalves e a nora Mor Rodrigues (procs. 7286 e 12185); Beatriz Gonçalves, conhecida por a

Polha (proc. 13285); Branca Fernandes (proc. 12479); Inês Lopes (proc. 3165); Isabel Gonçalves (proc.

3868); Isabel Soares (proc. 874) e Mécia Vaz (proc. 2373). 111

Cf. Isaías da Rosa Pereira, Documentos para a História da Inquisição em Portugal (Século XVI),

Lisboa, Cáritas Portuguesa, 1987, doc. 28, pp. 33-34.

Page 39: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

39

adversário dos christãos-novos e que se poderia considerar como o chefe verdadeiro dos

inquisidores [...]”112

. Ocupou ainda os cargos de desembargador da Casa da Suplicação

e da Casa do Cível antes de ser designado bispo de Silves, em 1549. Nomeado

arcebispo de Évora, em 1564, D. João de Melo foi substituído por D. Jerónimo Osório

na Sé de Silves113

.

Durante o tempo em que foi bispo de Silves, D. João de Melo continuou a exercer

funções no Tribunal do Santo Ofício. A 4 de Julho de 1554, o cardeal D. Henrique

nomeou-o para presidir, em seu nome, à Mesa do Santo Ofício da Inquisição de

Lisboa114

. As relações com o inquisidor-geral mantiveram-se próximas. Aliás, teria sido

o próprio cardeal a favorecer a sua nomeação como bispo de Silves115

.

A Inquisição Portuguesa contava com pouco mais de 20 anos de existência oficial e as

suas estruturas eram insuficientes para um controlo que abrangesse toda a área de

jurisdição dos seus tribunais. A solução residia em usar estruturas pré-existentes. Como

refere José Pedro Paiva, à falta de uma rede de comissários e de familiares do Santo

Ofício capaz de abranger todo o reino, a Inquisição recorria aos funcionários da

administração episcopal para a efectuação de inquirições locais, para a recolha de

denúncias ou mesmo para a prisão dos suspeitos116

. Foi o que aconteceu no Algarve em

finais da década de 50.

Após a confissão de Grácia Mendes e a série de detenções em Vila Nova de

Portimão, o vigário-geral, o Dr. Luís de Albuquerque, continuou a visitar outras

localidades do Algarve. Era ele quem recolhia localmente os testemunhos e

providenciava as prisões decretadas pela Inquisição.

No final de Março, estava em Faro, na companhia de D. João de Melo. Antes,

tinha passado por Loulé, devassando sobre Guiomar Soeira e outros cristãos-novos

denunciados por Grácia Mendes. Numa carta dirigida aos inquisidores de Lisboa, o

112

Cf. Herculano, História da Origem..., vol. III, p. 6. 113

Cf. Ana Cristina da Costa Gomes, “Subsídios para o estudo da vida e obra do arcebispo de Évora D.

João de Melo”, Clio, n.º 9, 2º semestre 2003, pp. 107-126. 114

Cf. Isaías da Rosa Pereira, Documentos para a História..., pp. 83-84. 115

José Pedro Paiva refere uma missiva de 15 de Julho de 1548, na qual D. Henrique agradecia a D. João

III a nomeação de D. João de Melo para o bispado do Algarve e felicitava-o pela boa decisão que tomara.

(Cf. José Pedro Paiva, Os Bispos de Portugal e do Império, 1495-1777, Coimbra, Imprensa da

Universidade de Coimbra, 2006, pp. 315-316). 116

Cf. José Pedro Paiva, “Os Bispos e a Inquisição Portuguesa (1536-1613)”, Lusitania Sacra, 2ª série,

n.º 15, 2003, pp. 61-64. Giuseppe Marcocci questiona essa colaboração entre o poder episcopal e o Santo

Ofício nos primeiros anos da Inquisição em Portugal. Segundo o autor, o equilíbrio entre os dois poderes

não foi imediato, mas sim o resultado da expansão da hegemonia do Santo Ofício nas estruturas da igreja

portuguesa (Cf. Giuseppe Marcocci, “O arcebispo de Braga, D. Frei Bartolomeu dos Mártires (1559-82).

Um caso de inquisição episcopal?”, Revista de História da Sociedade e da Cultura, n.º 9, 2009, p. 135).

Page 40: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

40

Dr. Luís de Albuquerque fazia algumas sugestões sobre o melhor modo de actuar. Dizia

que “[...] ninguém é melhor testemunha que uma Catarina Mendes, viúva, que eu tenho

por qualificadora [...]”. O vigário referia-se à mãe de Grácia Mendes, então nos

cárceres, a qual saberia de “[...] grandes negócios deste bando [...]”. Ele citava ainda

outras testemunhas eventualmente profícuas em informações: Isabel Gonçalves,

Violante Gonçalves e “a mulher do bacharel Pais”, Isabel Soares. Esta última “[...] é

uma das boas testemunhas acerca de uma esnoga que há em Vila Nova dos principais

dela [...]”, acreditava o vigário-geral117

.

Mapa 1: Visitas do Dr. Luís de Albuquerque, vigário-geral, no Algarve.

Possivelmente, tal parecer teria contribuído para o prolongamento dos processos de

Isabel Soares e de Catarina Mendes. A grande maioria dos cristãos-novos a quem fora

dada ordem de prisão a 13 de Janeiro acabou por sair no auto-de-fé de 16 de Março de

1561. Houve mesmo quem fosse reconciliado ainda em 1559. Porém, tanto Isabel

Soares como Catarina Fernandes estiveram mais um ano no cárcere, sujeitas a

constantes sessões de interrogatório. Apenas saíram no auto celebrado a 10 de Maio de

1562. Isabel Soares mantivera-se irredutível durante quase um ano de cárcere. A 9 de

Fevereiro de 1560, começou a confessar. Nunca fizera qualquer jejum judaico até ser

presa, mas, já no cárcere, jejuou por três ou quatro vezes. Em pouco mais de um mês,

ela foi sujeita a seis sessões de perguntas e, com o aumento da pressão dos inquisidores,

começou a desenvolver a sua confissão: guardava os jejuns do Quipur e do thanis (às

segundas e quintas-feiras) ainda antes de ser presa e ensinara rituais judaizantes às suas

filhas. Contudo, e apesar das delações, a confissão de Isabel Soares não teve o efeito

que o Dr. Luís de Albuquerque previra. Sobre a alegada “esnoga” dos principais de Vila

117

Cf. ANTT, IL, proc. 10964, fls. 49-49v.

13 Jul 1560

Portimão

Dez 1558

Lagos Mar 1558 Faro

3 Jul 1560 Silves

Page 41: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

41

Nova de Portimão, nenhuma palavra. Além disso, não denunciou um só indivíduo que

ainda não tivesse sido delatado por outras testemunhas. Ao contrário do que o vigário

esperava, a confissão de Isabel Soares não contribuiu para a multiplicação das prisões

em Vila Nova de Portimão118

.

Ao observarmos a sucessão de denúncias e prisões na vila, constatamos que a

grande maioria das detenções (70%) ocorreu no início de 1559 e com origem na

confissão de Grácia Mendes119

. As restantes ramificações ocorreram, sobretudo, dentro

dos círculos familiares.

Vejamos o caso de Mor Rodrigues, que Grácia Mendes acusara de guardar o sábado

e de conhecer orações e cerimónias da Lei de Moisés. Ela admitiu ter jejuado para que

“[...] Nosso Senhor trouxesse o dito seu marido [...]”120

, então no Peru. O marido era

Garcia Gonçalves, mareante e mercador. Nas primeiras sessões de confissão, Mor

Rodrigues não o mencionou como judaizante. Só tinha jejuado com a sogra, Violante

Gonçalves, já presa pelo Santo Oficio. Também conhecia algumas orações judaicas,

ensinadas por uma castelhana, cujo nome não refere. Mor Rodrigues não foi a única a

atribuir o ensino a uma castelhana anónima. O mesmo fez Isabel Gonçalves, a

Rainha121

. Confessar a doutrinação sem implicar ninguém em concreto – eis a

estratégia. A “velha castelhana”, anónima e estrangeira, tornava-se no bode expiatório

perfeito. Mas não era com credulidade que os inquisidores acolhiam tal história.

Mor Rodrigues só denunciou o marido na última sessão. A 8 de Outubro de 1560,

Garcia Gonçalves era preso. Ele revelou-se mais cooperante com os inquisidores do que

o fora a esposa. Após dois meses de cárcere, pediu audiência para confessar. Havia

cerca de dois anos, já depois da prisão de Mor Rodrigues, fora abordado por um siseiro

de Silves, João de Lisboa, que o aconselhou a guardar o jejum do Quipur para que Deus

livrasse a sua mulher do cárcere. Semelhante proposta fez-lhe um outro cristão-novo,

Francisco Jorge, mercador que, posteriormente, se mudou para a Ilha Terceira – se

guardasse o jejum da Rainha Ester, Deus dar-lhe-ia tudo o que pedisse. Garcia

Gonçalves cedeu nas duas ocasiões. E não foi a primeira vez. Havia cinco anos, antes de

118

Cf. ANTT, IL, proc. 874. 119

Em 1559, de todos os cristãos-novos presos em Vila Nova de Portimão, apenas cinco não foram

denunciados por Grácia Mendes. 120

Cf. ANTT, IL, proc. 12185, fl. 45v. 121

Cf. ANTT, IL, proc. 6204, fl. 14v.

Page 42: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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partir para o Peru, a sua mãe aconselhara-o a guardar o jejum da Rainha Ester para que

tivesse uma boa viagem122

.

Com a prisão da mulher, Garcia Gonçalves tomou consciência do quão próximo

estava o cárcere. Pelo São João de 1559, recebeu uma proposta tentadora: Mateus

Lopes, mercador de Tavira, convidou-o a ir com ele para Nápoles. A rota era a seguinte:

de Nápoles seguiriam para Veneza, onde um tio paterno de Mateus Lopes os acolheria,

e, dali, iriam para Damasco, “[...] para lá viverem livremente e como lá viviam [...]”.

Mas ele recusou o convite. Não queria abandonar a esposa123

.

Garcia Gonçalves não foi o único a ser incitado à fuga e, ao contrário dele, houve

quem cedesse à tentação. Luís de Albuquerque não o ignorava. Afinal, a concentração

de um número considerável de prisões num tão curto período de tempo provocara um

clima de insegurança e desespero entre os cristãos-novos de Vila Nova de Portimão. Ao

medo acrescia o espanto perante determinadas detenções. O vigário refere como as

prisões de Manuel Lopes e de Francisco da Gama, a quem “[...] tinha no exterior por

cristãos [...]” perturbaram a gente daquela terra. “[...] Como é bispado fronteiro e estão à

beira-mar [...]”, ele aconselhava que se redobrasse a vigilância124

.

Tentemos compreender o espanto perante a prisão destes dois homens. Francisco da

Gama era um mercador de 60 anos que viera de Arzila para Vila Nova de Portimão.

Tinha uma irmã freira no Mosteiro de Jesus, em Setúbal, e uma filha, Inês da Gama,

casada com João de Burgos, recebedor do rei125

. Quanto a Manuel Lopes, era natural de

Moura e exercia o cargo de inquiridor em Vila Nova de Portimão126

. Ou seja, quer um,

quer outro eram figuras de grande notabilidade, embora sem raízes no Algarve. Ali, as

respectivas ascendências eram desconhecidas. Não lhes era difícil esconder a

“qualidade” do seu sangue.

Francisco da Gama e Manuel Lopes chegaram aos cárceres de Lisboa denunciados

por um outro velho mercador, Álvaro Gomes. Com perto de 70 anos e natural de Sevilha,

Álvaro Gomes chegou a servir de juiz da alfândega de Vila Nova de Portimão127

. Fora

denunciado durante a visita do vigário-geral. Já nos calabouços, ele confessou que ainda

esperava pela vinda do Messias e guardava os sábados, na obra e na vontade, por honra da

122

Cf. ANTT, IL, proc. 8491, fls. 3-5. 123

Cf. Idem, fls. 8v-9. 124

Cf. ANTT, IL, proc. 10964, fl. 53. 125

Cf. ANTT, IL, proc. 12032, fls. 5-6. 126

Cf. ANTT, IL, proc. 4467, fl. 13. 127

Cf. ANTT, IE, proc. 5071. O filho de Álvaro Gomes, Fernão de Álvares Gramaxo, foi preso na vaga

de prisões em Vila Nova de Portimão no final do século XVI.

Page 43: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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Lei de Moisés. Mas Álvaro Gomes fora preso por outras razões. Contava-se que, numa

quinta ou sexta-feira de Endoenças, quando o padre levantou a hóstia na missa, ele

exclamara: «O ladrão!». Também se comentava o seu costume de escarrar sempre que via

o Santíssimo Sacramento. Nas primeiras sessões, Álvaro Gomes não o corroborou –

escarrava sim, mas só porque era muito doente, e nunca para o Santíssimo Sacramento128

.

Posteriormente, acabou por admitir a blasfémia e que fora judeu até ao momento da sua

prisão. Mestre Gabriel, cirurgião e físico, avisava-o quando caía o jejum do Quipur. Após

a morte deste, passou a ser alertado por Gaspar Mendes, lavrador que morava no termo de

Vila Nova de Portimão. Mas os inquisidores consideraram a confissão de Álvaro Gomes

insuficiente e repleta de incoerências. O caso da ofensa ao Santíssimo Sacramento

acabaria por condená-lo. Afinal, ele voltou atrás na sua confissão e atribuiu as palavras

ditas na igreja matriz a um momento demencial, fruto da sua doença129

. Já na última

sessão, acrescentou que realmente chamara ladrão ao Santíssimo Sacramento, mas nunca

com intenção de ofender Jesus Cristo. Esperava o Messias, mas considerava Jesus o

redentor do mundo130

. Tais contradições conduziram-no à pena máxima. No auto-de-fé de

16 de Março de 1561, foi relaxado à justiça secular.

Álvaro Gomes implicara dois homens de boa reputação na vila. Por sua vez,

Francisco da Gama e Manuel Lopes denunciaram as respectivas esposas. Catarina

Gonçalves, mulher de Francisco da Gama, ao resistir à confissão, foi sujeita a um auto

de confrontação com o marido:

“ [...] logo mandaram vir perante si a Francisco da Gama, seu marido, o qual, sendo

chamado e admoestado que dissesse a verdade, disse à dita Ré, sua mulher, no rosto,

que confessasse a verdade e pedisse perdão como ele fizera e que lembrasse que

guardavam ambos os sábados e praticavam no Messias e assim, lembrando-lhe todo o

mais que em sua confissão tinha confessado, pedindo-lhe por amor de Nosso Senhor e

sentando-se em joelhos que descarregasse sua consciência para sua salvação [...].”131

Ela cedeu e confessou, tal como Isabel Fernandes, esposa de Manuel Lopes.

Contudo, estas confissões não provocaram mais nenhuma prisão. Fechava-se, assim,

uma sucessão de denúncias e prisões que se iniciara com Álvaro Gomes. Como se vê,

bem mais inconsequente do que a aberta pelo testemunho de Grácia Mendes.

128

Cf. ANTT, IL, proc. 4388, fls. 12-13v. 129

“[...] era verdade que ele o disse por o tomar naquela sezão um acidente de tosse e garganta que ele se

via tomar muitas vezes e o desacordou de tal maneira que não sabia onde estava e com aquele desacordo e

tribulação grande da dita tosse ele não atentara o que dissera mas como desacordado de juízo e razão e de

verdade arremessou assim aquela palavra, dizendo aquilo em sua vontade ou diabo porque lhe dava

aquele trabalho de muita tribulação [...]” (Cf. Idem, fl. 27). 130

Cf. Idem, fl. 36v. 131

Cf. ANTT, IL, proc. 6514, fl. 30.

Page 44: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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Descobrir os judaizantes de Silves

A 3 de Julho de 1560, o Dr. Luís de Albuquerque estava em Silves e escrevia aos

inquisidores de Lisboa sobre as prisões de dois cristãos-novos daquela cidade, Tomás

Gomes e Maria Rodrigues. Dizia: “É gente que pode descobrir boa parte doutros que se

diz haver nesta terra [...]”132

. Maria Rodrigues “[...] dizia muitas cousas que eram de

judia e não de cristã [...]” – referiu Domingos Lopes, homem de Tavira que, a 10 de

Janeiro de 1560, se apresentou perante o vigário-geral133

. Segundo Simão Gonçalves,

lavrador de Lagoa, Tomás Gomes afirmava que os judeus não haviam pecado ao

crucificarem Jesus Cristo, pois já estava determinado que ele morreria dessa forma134

.

As expectativas do vigário-geral nas potenciais delações dos dois cristãos-novos

saíram frustradas, sobretudo no caso de Maria Rodrigues. Ela era casada com um

tanoeiro cristão-velho, Bartolomeu Dias. Porém, em primeiras núpcias, fora esposa de

João Neto, cristão-novo, que a ensinara a jejuar “no tempo das vindimas” e a deixar

uma candeia acesa durante as noites de sexta-feira. A confissão de Maria Rodrigues

convenceu os inquisidores e acabou por sair no auto de 16 de Março de 1561,

reconciliada com cárcere e hábito penitencial ao arbítrio dos inquisidores135

.

A prisão de Tomás Gomes não foi tão inócua. Com uma semana de cárcere, ele

iniciou a confissão. Numa ocasião, ao falar com um grupo de lavradores em Lagoa

sobre a morte de Jesus Cristo, dissera que “[...] de necessidade Nosso Senhor havia de

padecer para livrar o género humano e que já que havia de morrer, não no haviam de

matar os asnos, senão os homens, e que ele quis morrer entre os seus e que se São Pedro

o negara, fora por mandado de Nosso Senhor e por Nosso Senhor nisso consentir [...]” –

e continuara – “[...] que se os judeus mataram a Cristo Nosso Senhor, que os judeus não

pecaram nisso, porquanto estava assim ordenado por Deus que Nosso Senhor Jesus

Cristo padecesse pelos pecadores [...]”136

.

Tal não convenceu os inquisidores. Afinal, o vigário-geral do Algarve prometera-

lhes uma confissão bem mais reveladora. Tomás Gomes, porém, continuou a não

associar os seus comportamentos à fé judaica. É verdade que chegara a renegar Deus e

os santos, mas só por ira.

132

Cf. ANTT, IL, proc. 10964, fl. 95. 133

Cf. ANTT, IL, proc. 6370, fl. 6. 134

Cf. ANTT, IL, proc. 9445, fls. 2-2v. 135

Cf. ANTT, IL, proc. 6370. 136

Cf. ANTT, IL, proc. 9445, fls. 5-5v.

Page 45: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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Finalmente, a 17 de Setembro, Tomás Gomes admitiu ter-se apartado da fé cristã.

Tudo aconteceu havia cerca de 12 anos, quando era dizimeiro do gado. Um cristão-

velho, João Escobar, contara-lhe que estivera por terras onde “[...] Nosso Senhor tirara

os filhos de Israel do cativeiro do Egipto [...]”. A partir de então, a sua fé mudou.

Alguns dias depois, a caminho de Tavira, ao olhar o mar, o céu e a terra, disse para si

mesmo que aquilo eram obras do Deus único. Deixou de crer em Jesus Cristo como o

Messias prometido. Passou a rezar só ao Deus dos Céus. Quando ia às feiras, levava

sempre consigo camisas para muitos dias e vestia uma lavada ao sábado. Tentava

guardar o descanso sabático, mas quando tinha de trabalhar, pedia perdão pelo seu

pecado. Também começou a jejuar à sexta-feira e a fazer as demais cerimónias em

honra do sábado. Enfim, era judeu no seu coração e “[...] quando, nas pregações, ouvia

falar em coisas da lei velha, levava nisso muito prazer e contentamento e lhe vinham as

lágrimas aos olhos, mas logo aí as limpava por não ser sentido [...]”137

. Quem o ensinou

foi uma tia materna, Isabel Rodrigues, residente em Castela.

Depois desta confissão, Tomás Gomes começou a delatar outros cristãos-novos, a

maior parte de Vila Nova de Portimão e já presos em Lisboa. A excepção foi Maria

Leitão, esposa de Rodrigo Álvares, mercador com quem mantinha negócios. Num

sábado, indo visitá-lo, encontrou a casa limpa e Maria Leitão vestida de roupa lavada.

Ela ofereceu-lhe uma fatia de marmelada: «Olhai que hoje é que é dia de sábado santo e

bem-aventurado, que o Senhor toda a semana trabalhou e em tal dia como este

descansou e repousou, por isso consolai vossa alma»138

. Maria Leitão foi presa nos

cárceres de Lisboa a 10 de Dezembro de 1560, mas nunca chegou a confessar qualquer

prática judaizante. A prova foi considerada insuficiente e ela saiu com uma abjuração de

leve e penas e penitências espirituais139

.

Mas Tomás Gomes também comprometeu quem lhe era mais próximo – a esposa

Bartolesa Fernandes. Nas primeiras sessões, tentou afastar a atenção dos inquisidores,

notando que só fazia as ditas cerimónias fora de casa. Porém, a 16 de Novembro,

acabou por denunciá-la, tal como às filhas Branca e Leonor Tomás140

.

137

Cf. Idem, fl. 17. 138

Cf. Idem, fls. 25v-26. 139

Cf. ANTT, IL, proc. 3839. 140

Bartolesa Fernandes e a enteada Leonor Tomás (ou Leonor da Horta, como aparece mencionada no

processo) foram presas a 2 de Abril de 1561 nos cárceres de Lisboa (Cf. ANTT, IL, procs. 12747 e

12346). Desconhecemos qualquer processo movido contra Branca Tomás. Ela e Leonor eram filhas do

primeiro casamento de Tomás Gomes, com Clara Gomes. Segundo refere na sua sessão de genealogia,

Tomás Gomes matara a sua primeira esposa, razão pela qual estava homiziado em Silves havia 15 anos.

Antes, tinha vivido em Moura (Cf. ANTT, IL, proc. 9445, fl. 6v).

Page 46: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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Havia uma dúzia de anos, ele e a sua esposa tiveram uma oportunidade para sair do

reino. O seu irmão, Marcos Dias de Horta, e um mercador de Silves, Diogo Lopes,

convidaram o casal a acompanhá-los até à Flandres. Mas Tomás Gomes hesitou – como

iria partir, assim de repente, com tão pouca fazenda e duas filhas ainda pequenas?

Mesmo assim, Tomás e Bartolesa começaram a preparar a viagem. Alojaram-se numa

quinta em Estombar, junto com Diogo Lopes, Marcos Dias e as respectivas famílias, à

espera de uma embarcação que chegaria de Cádis. Na última hora, mudaram de ideias e

ninguém partiu141

.

A confissão de Tomás Gomes gerou mais uma vítima – Mestre Lopo, cirurgião e

mercador de Albufeira. Preso em Outubro de 1560, Mestre Lopo começou a confessar

no final do mês seguinte. Dois dias depois, na manhã de 28 de Novembro, o alcaide

encontrou-o enforcado no cárcere142

.

O testemunho de Tomás Gomes não se revelou tão fértil em informações quanto o

Dr. Luís de Albuquerque desejava. O filão seria encontrado noutro sítio.

Em Lagos esperava-se pelo Messias

A 5 de Setembro de 1560, Duarte Álvares era preso. Figura de proa da sociedade

lacobrigense, estivera ao serviço de D. João de Meneses, capitão e governador de

Tânger. A 18 de Maio de 1545, participou no ataque a uma aldeia próxima de Alcácer

Quibir, serviço pelo qual recebeu o título de cavaleiro da Casa Real, confirmado por

carta régia de 1 de Setembro de 1552143

. Mas sobre Duarte Álvares pairava a sombra da

ascendência hebraica. Ele fora baptizado durante a conversão geral e casara com Isabel

d‟Orta, filha de um “baptizado em pé”, Mestre João144

.

A prisão de Duarte Álvares gerou grande consternação por toda a vila e o receio de

futuras prisões. Um dos seus filhos, Álvaro Rodrigues, tentou desmontar as acusações

que levaram o pai ao cárcere. As denúncias tinham partido dos irmãos João Álvares e

141

Cf. Idem, fls. 31-31v. 142

Cf. ANTT, IL, proc. 2180. 143

Cf. ANTT, Chancelaria de D. João III. Privilégios, liv. 1, fls. 8-8v. 144

Diogo Lopes, filho de Duarte Álvares, teria afirmado que o avô, Mestre João, fora judeu até aos 36

anos e, então, convertera-se sinceramente ao cristianismo. Na hora da sua morte, dissera que morria como

cristão. Foi Garcia Ribeiro, cristão-novo de Lagos, quem testemunhou estas afirmações de Diogo Lopes.

Duarte Álvares, ao ser confrontado este depoimento, disse que não era verdade, que o seu sogro morrera a

pedir que lhe rezassem “os sete salmos em hebraico”. (Cf. ANTT, IL, proc. 8489, fls. 23v e 24v. Vide, em

anexo, pp. 262-265).

Page 47: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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Diogo Lopes, não por um sincero zelo cristão, mas sim porque, 4 ou 5 anos antes, os

dois haviam tentado tomar ao pai uma propriedade junto ao mosteiro de São Francisco,

em Lagos, a qual fazia parte da herança materna, razão pela qual Duarte Álvares lançou

uma demanda contra os filhos. Em resposta, João Álvares e Diogo Lopes ameaçaram o

pai com uma denúncia ao Santo Ofício. Das ameaças partiram para a acção e o resultado

foi a prisão de Duarte Álvares. Já com o pai no cárcere, os dois teriam passado a

intimidar quem actuava em sua defesa: “[...] andam dizendo que a quem andar no

livramento do dito seu pai hão-de fazer outro tanto [...]”. Álvaro Rodrigues sentiu a sua

liberdade em risco. Antecipou-se e pediu “[...] que, para neste caso se poder fazer o que

seja justiça e serviço de Deus, haja por bem demandar que se não tome denunciação

dele suplicante e da dita sua mulher e filho [...]”145

.

Estas advertências não o livraram da prisão146

. Afinal, ele próprio fora denunciado

pelo irmão João Álvares. Álvaro Rodrigues tentara convencer o irmão a casar-se mas

este afirmava querer ser frade. Segundo João Álvares, “[...] o dito Álvaro Rodrigues lhe

respondera que a vida dos frades era de bargantes e ociosos porque se não atreviam a

manter mulher e filhos e que Deus não fizera outra ordem senão dos casados [...]”147

. As

denúncias prosseguiram. Noutra ocasião, Álvaro Rodrigues ter-lhe-ia dito que não

acreditava na existência do Inferno.

Estas acusações foram pronunciadas perante o vigário-geral a 13 de Julho de 1560,

na mesma sessão em que a mira do Santo Ofício se voltou para o patriarca da família.

Mas retomemos esse testemunho. João Álvares apresentou-se voluntariamente no

Mosteiro de Nossa Senhora da Esperança, em Vila Nova de Portimão. Acusou então o

pai de ser crente na Lei de Moisés e de tentar incutir-lhe essa mesma fé, tal como aos

seus irmãos: “[...] que não há outra lei nem verdade senão a dos judeus e sua lei que

Deus deu a Moisés em o Monte Sinai, a qual mandou que se escrevessem nos corações

e em papéis, a trouxessem nas mãos e a ostentassem nas ombreiras das suas portas [...]”.

Duarte Álvares não se imiscuía em afirmar o seu afastamento da fé católica, nem que

Jesus Cristo não era o filho de Deus ou o Messias e os cristãos não passavam de gentios

145

Cf. ANTT, IL, proc. 1583, fl. 1. Vide, em anexo, pp. 258-259. 146

Preso em 1560, Álvaro Rodrigues saiu logo no auto celebrado em Fevereiro do ano seguinte, poucos

meses após ter dado entrada nos cárceres de Lisboa (Cf. ANTT, IL, proc. 1583). Posteriormente, partiu com

a família para a Flandres. Por volta de 1579, o seu filho, Duarte Álvares, regressou a Faro por um breve

período. Planeava casar-se com Bárbara Filipe mas o enlace nunca chegou a se concretizar (Cf. ANTT, IL,

proc. 16695, fls. 93-94). 147

Cf. ANTT, IL, proc. 10960, fls. 16v-17. Vide, em anexo, pp. 246-248.

Page 48: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

48

“[...] porque criam em deuses de pedra e paus [...]”148

. João Álvares contou que o pai

teria mesmo facilitado a fuga para a Turquia de um cristão-novo preso em Lagos,

Duarte da Costa, ao oferecer-se como seu fiador. Interpelado pelos credores do fugitivo,

o pai dizia merecer o Paraíso por tão boa obra.

João Álvares e o irmão Diogo Lopes não tinham aceitado passivamente o ensino do

pai. Porém, Duarte Álvares conseguira ensinar os outros dois filhos, Álvaro e Vicente

Rodrigues. Este último fora para a Turquia, onde se tornou judeu público. Na sua

confissão, Duarte Álvares completou a história. Vicente Rodrigues e João Álvares tinham

acompanhado a embaixada em França de D. Francisco de Noronha, 2º conde de Linhares.

Porém, João Álvares amancebou-se com uma cozinheira e os dois irmãos foram expulsos

da casa do conde. Então, eles separaram-se e Vicente Rodrigues seguiu para a Turquia.

Duarte Álvares contou que o filho ainda lhe escreveu algumas cartas, pedindo o seu

quinhão da herança materna, às quais nunca respondeu por temer pela sua reputação149

.

Diogo Lopes apresentou-se perante o vigário-geral cinco dias após o irmão. Numa

ocasião, ao passar pela cruz do Mosteiro de São Francisco, o pai bradara: «Malditos

sejam os bem-dizentes e em ti crentes». Ainda para mais, Duarte Álvares, “[...] sendo

um homem muito velho, até ora está amancebado com mulheres [...]”, razão pela qual

era repreendido pelos filhos. Dizia publicamente, e até perante religiosos, que “[...] o

ajuntamento carnal de solteiro com solteira não fora pecado [...]”150

.

Duarte Álvares não resistiu muito à pressão dos inquisidores. A 28 de Setembro, logo

na primeira sessão, começou a confessar. Havia 10 a 15 anos que acreditava na salvação

na “lei dos judeus” e que Jesus Cristo não era o verdadeiro Messias. Na sessão seguinte,

alargou em mais 5 anos esse período de “apartamento” da fé cristã e mencionou um

mercador de Lagos, Diogo Álvares, que lhe ensinara a oração do Sema Israel, a qual ele

passou a rezar muitas vezes, ao acordar e ao deitar. Também rezava os “sete salmos de

penitência”, em linguagem e sem o Gloria Patri, os quais aprendera de cor na

juventude151

. Duarte Álvares prosseguiu com a confissão e denunciou vários cristãos-

novos de Lagos. O resultado foi uma pena leve – cárcere ao arbítrio dos inquisidores.

148

Cf. Idem, fls. 15-15v. 149

Cf. Idem, fls. 17v e 35. 150

Cf. Idem, fls. 16v-19v. 151

Estes salmos aparecem também referidos como os “sete salmos de David” ou os “sete salmos

penitenciais”. São os salmos 6, 31, 37, 50, 101, 129 e 142. Eram rezados sem o Gloria Patri final.

(Cf. Herman P. Salomon, Portrait of a New Christian Fernão Álvares Melo (1569-1632), Paris,

Fundação Calouste Gulbenkian / Centro Cultural Português, 1982, p. 65).

Page 49: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

49

Mas Duarte Álvares acabaria por regressar aos calabouços da Inquisição de Lisboa

e, então, o desfecho foi diferente. Corriam rumores sobre a falsidade da sua confissão.

Segundo Frei Baltazar de Braga, guardião do convento da Ordem da Piedade, de Lagos,

o arrependimento de Duarte Álvares não fora sincero. Ouviu-o dizer que “[...] se podia

salvar na sua lei ou na lei em que vivesse e que, estando el-rei à mesa com muitos

fidalgos e letrados, um pregador, grande letrado, que estava na dita mesa, sustentara

isto, que era verdade por muitas autoridades, e que todos se calaram e lhe não foi

ninguém à mão [...]”152

.

A 14 de Setembro de 1564, Duarte Álvares estava de novo no cárcere. Nas sessões

de interrogatório, negou todas as acusações e reafirmou que, desde a saída da prisão,

não voltara a fazer nada contra a fé cristã153

. No auto de 1 de Julho de 1565, foi relaxado

à justiça secular.

Mas regressemos ao seu primeiro processo. Este marca o início de uma vaga de

prisões em Lagos que se prolongaria pelos três anos seguintes, conduzindo aos

calabouços de Lisboa cerca de meia centena de cristãos-novos.

O Messias ainda não havia chegado e a sua vinda estava para breve – foi, talvez, a

premissa mais ouvida entre os lacobrigenses presos durante esta vaga. A esperança

messiânica fazia-se sentir pelas ruas da vila em meados do século XVI, o que reflectia

uma tendência patente em toda a Península Ibérica. Baseando-se nas profecias do livro de

Daniel, havia quem previsse a vinda próxima do Messias154

. Pedro Abravanel calculara-a

para o período entre 1490 e 1573. Proliferavam as profecias e a maioria repetia duas

ideias fundamentais: a chegada do Messias que reuniria todos os judeus e cristãos-novos

para o regresso a uma Jerusalém reconstruída e a destruição da Cristandade, ateada pelo

ataque turco155

. Olhemos para o Algarve quinhentista, constantemente ameaçado por

ataques corsários e, em particular, pela ameaça otomana. A proximidade do Norte de

África e a circulação de homens e informações tornavam a região num terreno fértil à

disseminação das teorias messiânicas. E os processos demonstram-no.

João Álvares lançou alguns laivos sobre o assunto. Ele ouvira o pai referir que

“[...] Portugal queria dizer Porto de Geulla, que queria dizer Porto de Salvação,

152

Cf. ANTT, IL, proc. 1519, fls. 10-10v. 153

Cf. Idem, fl. 33v. 154

Cf. Dn. 9, 24-27. 155

Cf. Ferro Tavares, Los Judíos..., pp. 242-255.

Page 50: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

50

porque daqui de Portugal havia de começar a Redenção de Israel [...]”156

. Em Lagos,

falava-se de um homem de Setúbal que se dizia o Messias. João Álvares não

acreditava: «Como podia ser que um sapateiro fosse o filho de Deus que havia de

redimir e salvar o mundo?»157

.

Duarte Álvares estava tão convicto na vinda próxima do Messias que, cerca de 40 anos

antes, comprara uns borzeguins na Ilha da Madeira para calçar nesse tão almejado dia. Tal

como ele, Garcia Ribeiro também duvidava que Jesus Cristo fosse o verdadeiro Messias:

«Como havia de ser Deus filho de uma costureira que era casada com José?»158

.

Garcia Ribeiro foi preso em Outubro de 1560. Ao contrário de Duarte Álvares, só

cedeu à pressão dos inquisidores meses depois. Vicente Fernandes, mercador de Lagos,

trouxera de Fez uma Bíblia traduzida em castelhano que mostrou a Garcia Ribeiro e ao

pai, Gabriel Ribeiro159

. Garcia possuía uma outra Bíblia, em latim, pela qual costumava

ler na presença de outros cristãos-novos que frequentavam a sua casa. Era o caso de

Jordão Vaz, tintureiro de Campo de Ourique que, depois de ouvi-lo ler algumas

profecias, falou-lhe de um sapateiro de Trancoso que também profetizara a vinda do

Messias160

. Tratava-se de Gonçalo Eanes, o Bandarra161

.

Sessões mais tarde, Garcia Ribeiro confessou que, nessas leituras, estavam

igualmente presentes a sua mulher, Isabel Gomes, e um primo, Duarte Rodrigues. Os

156

Cf. ANTT, IL, proc. 10960, fl. 15v. “Guella” será uma corruptela de “Gueulá”, em hebraico redenção,

salvação. (Cf. Dan Cohn-Sherbok, “Gueulá”, Breve Enciclopedia del Judaismo, Madrid, Ediciones Istmo,

2003, p. 105). 157

Cf. ANTT, IL, proc. 10960, fl. 15v. O “messias” era Luís Dias, alfaiate, natural de Viana do Alentejo e

residente em Setúbal, relaxado à justiça secular em 1541 ou 1542. A confusão de João Álvares, aludindo a

Luís Dias como sendo “sapateiro”, é repetida num excerto de Centinela contra Iudios, panfleto de Frei

Francisco de Torrejoncillo. Este refere a condenação de Luís Dias e de David Ha-Reubeni, ambos

sapateiros, no auto-de-fé de 1542, em Évora. Trata-se de um duplo equívoco. Primeiro, Reubeni não foi

condenado em 1542. Antes dessa data, tinha sido queimado às mãos da Inquisição de Llerena. Também é

duvidosa a condenação de Luís Dias pelo tribunal de Évora nesse mesmo ano. Elias Lipiner considera mais

provável que o alfaiate tenha sido relaxado pela Inquisição de Lisboa (à jurisdição da qual pertencia Setúbal)

no auto de 23 de Outubro de 1541. O segundo equívoco é que nem Reubeni, nem Luís Dias eram sapateiros.

De facto, Reubeni ficou conhecido como o “judeu do sapato”, mas a origem de tal alcunha não se vinculava

com qualquer tipo de mester exercido. Segundo Lipiner, a alcunha proviria, provavelmente, da corruptela

popular de Sefat (Safed, centro cabalista da antiga Palestina) ou de Sabath. (Cf. Elias Lipiner, O Sapateiro

de Trancoso e o Alfaiate de Setúbal, Rio de Janeiro, Imago Editora, 1993, pp. 311-319, 335 (n. 32)). 158

São os filhos de Duarte Álvares que o denunciam. (Cf. ANTT, IL, proc. 10960, fls. 17v-18). 159

Cf. ANTT, IL, proc. 8489, fl. 47. Seria, possivelmente, uma Bíblia de Ferrara. 160

Cf. Idem, fls. 22-22v. 161

Vide Maria José Ferro Tavares, “Características do messianismo judaico em Portugal”, Estudos

Orientais, vol. II, 1991, pp. 245-266; Elias Lipiner, O Sapateiro de Trancoso...; Idem, Gonçalo Anes

Bandarra e os Cristãos-Novos, Trancoso / Lisboa, Câmara Municipal de Trancoso / Associação Portuguesa

de Estudos Judaicos, 1996.

Page 51: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

51

três chegaram a planear a saída do reino, rumo a Itália. Porém, Duarte Rodrigues acabou

por se arrepender, obrigando a uma mudança de planos.162

A Bíblia de Garcia Ribeiro circulava por outras mãos. Ele contou que, por uma ou

duas vezes, a emprestara ao Licenciado Francisco Nunes. Em 1559, quando estava a

contas com a justiça por “[...] certo caso que lhe aconteceu em Lagos [...]”, Garcia

Ribeiro escondeu-se na residência de Duarte Álvares e levou consigo a dita Bíblia.

Naquela casa, frequentada por alguns dos mais notáveis cristãos-novos da vila, havia

quem se reunisse para ouvir as leituras163

. Além da Bíblia, escutavam-se também umas

trovas em linguagem que diziam ser de Santo Isidro, “[...] nas quais trovas o dito Duarte

Álvares representava esperança e dava a entender que não era vindo o Messias e que

havia ainda de vir [...]”164

. Henrique Nunes, um dos participantes nessas reuniões, ainda

se lembrava do excerto final de uma dessas trovas: «Vi um que bradava pela Santa

Virgem Maria e outro que bradava por Adonai Sabaot»165

.

Além de Henrique Nunes, integravam o grupo Mestre João, cirurgião, casado com

Filipa Soares166

; Diogo Gonçalves, sapateiro; Diogo Martins e Diogo Pires, ambos

mercadores; Duarte Fernandes Soeiro, tosador; o Dr. Fernão Paulo e o irmão Rodrigo

Pinto; Francisco Afonso, alfaiate; o Dr. Francisco Nunes, jurista; e João Fernandes,

escrivão da portagem. Foram todos presos pela Inquisição de Lisboa, a maioria durante

o mês de Dezembro de 1560167

. No caminho para Lisboa, surgiu a oportunidade de

concertarem as confissões. Diogo Pires teria sugerido que ninguém confessasse até que

se soubesse quem os havia denunciado168

. Era a voz da experiência. Em 1544, Diogo

fora preso pela Inquisição de Évora e saíra do cárcere na sequência do perdão geral de

1547169

. Mas nem todos partilhavam a mesma opinião. Henrique Nunes referiu que,

162

Esta denúncia levou às prisões de Duarte Rodrigues e Isabel Gomes. (Cf. ANTT, IL, procs. 3118 e 12762). 163

Cf. ANTT, IL, proc. 8489, fls. 26-28. 164

Cf. ANTT, IL, proc. 12811, fl. 8v. 165

Cf. ANTT, IL, proc. 2928, fls. 12-12v. Sabaot ou Cebaoth é um dos 72 nomes de Deus. Estas trovas

corresponderiam às Coplas de frei Pedro de Frias, publicadas em 1520. Trata-se da explicação, em rima,

das alegadas profecias de Santo Isidoro de Sevilha, nas quais era profetizada a vinda de um Rei Encoberto

que venceria o Império Otomano e estabeleceria uma Monarquia Universal. A obra tornou-se muito

popular não só em Espanha, como também em Portugal, influenciando as trovas de Gonçalo Eanes, o

Bandarra (Cf. José van den Besselaar, “As Trovas do Bandarra”, Revista ICALP, vol. 4, Março 1986, p.

15; J. Lúcio de Azevedo, A evolução do Sebastianismo, Lisboa, Editorial Presença, 1984, pp. 17-19). 166

Filipa Soares era a filha do bacharel Manuel Pais, denunciada por Grácia Mendes (Cf. ANTT, IL,

proc. 7222). 167

Henrique Nunes, Mestre João, Diogo Martins, Diogo Pires, Fernão Paulo, Rodrigo Pinto, Francisco

Afonso, Francisco Nunes e João Fernandes entraram todos no cárcere de Lisboa a 10 de Dezembro de

1560. Duarte Fernandes Soeiro e Diogo Gonçalves só foram presos no ano seguinte. 168

Cf. ANTT, IL, proc. 5762, fl. 19v. 169

Cf. ANTT, IE, proc. 9432. Este processo está em mau estado e inacessível à consulta. Na prisão,

Diogo Pires apresentou uma série de contraditas não só em seu nome, mas também em defesa da sua mãe,

Page 52: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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quando estavam todos presos em Lagos, ouvira o Dr. Fernão Paulo dizer a Mestre João

que deveriam confessar170

. De facto, todos acabaram por fazê-lo e os seus testemunhos

são esclarecedores sobre a forma como se processavam os tais ajuntamentos.

As reuniões não se limitavam aos lares de Duarte Álvares e Garcia Ribeiro. O

Dr. Fernão Paulo, Diogo Fernandes Soeiro e Mestre João também recebiam nas suas

casas. Muitos reuniam-se na casa de um outro mercador, Nuno Martins, na Praça do

Poço, com o pretexto de irem jogar ao trunfo. Sebastião Fernandes, mercador de

Lisboa, esteve ali hospedado. Ele tinha um livro de profecias, em português, pelo qual

lia em voz alta171

. O Dr. Francisco Nunes, que também o chegou a ouvir, referiu que

se tratava de “[...] um livrinho de quarto de papel e lhe pareceu que não era

encadernado, escrito de letra de mão e lia por ele orações judaicas que estavam

escritas em letra portuguesa [...]”172

. Era um livro em trovas que tratava “[...] dos

milagres que Nosso Senhor fizera aos filhos de Israel quando os tirara do Egipto e do

jejum do quipur e quão aceite era e também declarava algumas profecias acerca do

Messias dizendo que não era ainda vindo [...]”, acrescentou Diogo Martins, filho de

Nuno Martins173

. Um pouco diferente é a versão de Mestre João. Na casa de Duarte

Álvares, ele ouviu Sebastião Fernandes ler um livro “[...] em latim ou linguagem

estrangeira [...]”174

. Que livro seria esse? Seria um Sidur manuscrito? Ou um livro de

trovas de teor messiânico? Estariam as testemunhas a falar de livros diferentes? As

fontes não o esclarecem.

A fé na vinda próxima do Messias era fomentada por notícias que chegavam do

estrangeiro. Mestre João ouvira Diogo Fernandes Soeiro contar que, em Sevilha, onde

fora vender sardinha, tinham sido presos muitos luteranos pela Inquisição, os quais

saíram num auto-de-fé em que esteve presente a Marquesa de Aiamonte175

. O

Luteranismo anunciava a chegada em breve do Messias. Sobre essas notícias, Francisco

Fernandes, ourives, teria dito que as divisões no Cristianismo eram sinais de decadência

e anúncios de um tempo novo. Ora, no final da década de 50, a ofensiva contra o

Maria Dias, então também presa na Inquisição de Évora. O conteúdo de alguns desses artigos encontra-se

patente numa carta assinada pelos inquisidores de Évora e destinada ao Lic. Jorge Rodrigues, inquisidor

no bispado do Porto, para que se fizessem diligências nessa cidade sobre os ditos artigos. Diogo Pires era

natural do Porto. (Cf. ANTT, IE, mç. 36, doc. não numerado. Vide, em anexo, pp. 235-237). 170

Cf. ANTT, IL, proc. 2928, fls. 13-13v. 171

Cf. ANTT, IL, proc. 10960, fls. 30v-32. 172

Cf. ANTT, IL, proc. 2601, fl. 24. 173

Cf. ANTT, IL, proc. 4244, fls. 55 e 60. 174

Cf. ANTT, IL, proc. 12811, fls. 9v e 11v. 175

Cf. Idem, fls. 14v-15.

Page 53: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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Protestantismo ganhou força em Castela. As consequências foram sentidas em Portugal

e, nos anos 60 e 70, aumentou o número de prisões por Luteranismo, embora, numa

perspectiva geral, os valores continuassem a ser pouco significativos176

.

Os processos revelam uma certa permeabilidade à doutrina protestante por parte

de alguns cristãos-novos de Lagos. Numa loja de vinhos na Rua do Espírito Santo,

Diogo Pires ouviu os filhos de Duarte Álvares, Diogo Lopes e João Álvares, falarem

de um clérigo solicitante. Diziam que tinha sido por coisas assim que a “seita

luterana” se levantara no mundo e, por isso, não deveria haver confissões, de modo a

evitar-se tais abusos177

.

Os processos dos “companheiros de leituras” de Duarte Álvares provocaram outras

detenções em Lagos. Os primeiros alvos foram os parentes mais próximos. As denúncias

multiplicaram-se. Comunicavam entre si o tempo dos jejuns, reuniam-se para celebrá-los,

guardavam os sábados e as cerimónias de sexta-feira à noite, celebravam a Páscoa do Pão

Ázimo. Resultado: 54 cristãos-novos presos em Lagos entre 1560 e 1564.

Ajuntamentos em Tavira

As denúncias de Grácia Mendes chegaram a Tavira. Mas só 4 anos depois, a cidade se

debateria com a maior vaga de prisões até então ocorrida no Algarve. E a origem foi outra.

Em 1562, o Licenciado António de Gouveia, que entretanto substituíra Luís de

Albuquerque como vigário-geral, ouviu o seguinte testemunho de Isabel de Orta, cristã-

nova, casada com António de Oliva, feitor da alfândega de Tavira e cavaleiro da Casa Real.

“[...] Haverá quatro anos, estando ela, testemunha, doente, viera à sua casa, visitá-la

e vê-la, uma Beatriz Fernandes, cristã-nova, sogra de Mestre João, cirurgião,

outrossim cristão-novo. A qual Beatriz Fernandes vinha muitas vezes à casa dela,

testemunha, e por em o dito tempo ela, testemunha, estar doente e haver um santo

jubileu, se começou a agastar e dizer que era mofina estar doente naquele tempo

por o não poder tomar e a dita Beatriz Fernandes lhe dissera: «Calai-vos, senhora,

não vos agasteis que o Papa, homem de carne, não pode dar estes jubileus». E ela,

testemunha, a repreendeu e disse que não dissesse tal, que pecava mortalmente, que

Nosso Senhor dera seu poder a São Pedro e, na terra, a todos os seus sucessores. E

a dita Beatriz Fernandes lhe respondera que São Pedro já morrera e que homem de

carne não podia conceder aquelas indulgências [...]”178

.

176

Um total de 21 processos por luteranismo para as décadas de 60 e 70. (Cf. Paulo Drumond Braga, “Os

seguidores de Lutero no Portugal de Quinhentos”, Congresso Internacional Damião de Góis na Europa

do Renascimento. Actas, Braga, Publicações da Faculdade de Filosofia / Universidade Católica

Portuguesa, 2003, p. 207). 177

Cf. ANTT, IL, proc. 12997, fls. 66v-67. 178

Cf. ANTT, IL, proc. 8981, fls. 3v-4.

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A 9 de Agosto de 1562, Beatriz Fernandes era presa nos cárceres da Inquisição de

Lisboa. Tinha cerca de 66 anos, era viúva e vivia em Tavira, na casa do genro. Logo na

primeira sessão, confessou ser judaizante. Havia cerca de 15 anos, a tia Catarina

Fernandes, que entretanto tinha partido para Castela, ensinara-a a guardar o jejum do

Quipur. Beatriz Fernandes retribuiu a denúncia a Isabel de Orta. A mulher de António

de Oliva pedira-lhe ajuda para guardar os três dias do jejum da Rainha Ester, mas ela

recusou, dizendo que não sabia fazer esse jejum. Passados alguns dias, Isabel de Orta

voltou à sua casa e contou-lhe: «Vós não me quisestes ajudar a fazer os jejuns, o que

vos roguei, pois minha criada, Bárbara de Abreu, e eu os fizemos»179

. Apesar desta

denúncia, não encontrámos qualquer registo de um processo contra Isabel de Orta.

Gaspar Fernandes, irmão de Beatriz, não teve a mesma sorte e acabou por ser preso

pela Inquisição de Évora. Ferreiro e residente em Tavira, era ele quem a avisava do dia

do jejum do Quipur. Nas primeiras sessões, Gaspar Fernandes manteve-se negativo.

Mas as denúncias contra si continuavam a acumular-se. Acabou relaxado à justiça

secular no auto-de-fé de 11 de Junho de 1564180

.

Este processo teve um forte impacto em Tavira. Quando Gaspar Fernandes começou

a confessar, denunciou vários cristãos-novos da cidade que, tal como ele, aguardavam

expectantes a vinda próxima do Messias. Ao irmão, António Vaz, confidenciava que

“[...] estas guerra e movimentos dos luteros que havia pelo mundo lhe parecia que eram

sinais da vinda do Messias [...]”181

. E ele sabia bem do que falava. Os negócios

levavam-no para lá da Península. Por volta de 1550, estava na Flandres, na companhia

de um outro mercador de Tavira, Duarte Fernandes, o Zorro. Os dois pousavam na casa

de um castelhano, Pedro de Nojosa, em Middelburg, onde praticavam os jejuns judaicos

e o ouviam ler a Bíblia em castelhano182

.

Regressado a Tavira, Gaspar Fernandes manteve as mesmas práticas. Na casa do

rendeiro Rui Dias, na Rua da Mouraria, ele e outros homens escutavam a leitura de

passagens da Bíblia que acalentavam esse ânimo messiânico. Era um filho do anfitrião,

Vasco Rodrigues, quem lia em latim e traduzia para português o texto sagrado183

. A

história da alegada origem dessa Bíblia é contada por Gaspar Lopes, borracheiro natural

179

Cf. Idem, fl. 22v. 180

Cf. ANTT, IL, proc. 2486. 181

Cf. Idem, fls. 57-57v. 182

Cf. ANTT, IL, proc. 12752, fls. 11v-12. 183

Cf. ANTT, IL, proc. 13039, fls. 26-26v. Participavam nestes ajuntamentos, na casa de Rui Dias, os

referidos Gaspar Fernandes e António Vaz, além de Gaspar Lopes (proc. 12848) , Diogo Lopes Sardinha

(que foi para Tânger antes da vaga de prisões), Baltazar Dias (proc. 5081) e Fernão Nunes (proc. 5764).

Page 55: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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de Moura, de onde partiu por volta de 1548 com a intenção de seguir para Itália, mas

que acabou por desistir e fixar-se em Tavira. Teria sido ele próprio a encontrá-la nos

alegretes de uma horta, junto do mosteiro de São Francisco: “[...] um livro encadernado

velho, em pergaminho, o qual era em latim, de letra de forma [...]”. Julgando que o livro

teria algum proveito para o seu filho, Francisco Lopes, então a estudar em Coimbra,

levou-o para casa. Sem saber do que se tratava, mostrou-o a Vasco Rodrigues que logo

o identificou. A Bíblia foi, assim, parar à casa de Rui Dias. Gaspar Lopes contou o

sucedido a Gaspar Fernandes e a António Vaz que passaram a frequentar a casa do

rendeiro, onde ouviam as leituras de Vasco Rodrigues184

.

Na casa Gaspar Lopes, junto à Porta de São Brás, também ocorriam reuniões, nas

quais o seu filho, Francisco Lopes, lia de uma Bíblia que lhe fora oferecida por um

fidalgo, Sancho Vasconcelos185

. Era o próprio pai quem o incitava a ler algumas

passagens do Antigo Testamento, em particular as profecias de Jeremias e de Isaías. Ao

escutá-las, Gaspar Lopes afirmava: «Vês, ainda isto não está cumprido, querem-nos

cobrir o céu com uma joeira»186

.

Só no dia 28 de Junho de 1563, entraram nos cárceres de Lisboa, pelo menos, 14

cristãos-novos de Tavira. O receio de mais prisões fazia-se sentir por toda a cidade. Estêvão

Dias, filho de Rui Dias, ao falar sobre a prisão do pai com um outro tratante de Tavira,

Simão Dias, ouvira-o dizer que, se fosse denunciado, “[...] soubessem certo todos os

cristãos-novos de Tavira que ele os havia de acusar a todos, ainda que fossem livres [...]”187

.

Alguns optavam pela fuga. Quando, a 19 de Abril de 1564, foi dada ordem de prisão

a 19 cristãos-novos de Tavira, alguns já não se encontravam na cidade: Simão Lopes,

filho de João Lopes Cristino, estava em Cabo Verde, e Salvador Nunes, irmão de

Fernão Nunes, entretanto preso pelo Santo Ofício, fugira sem se saber para onde188

.

Simão Lopes ainda regressou a Portugal e, a 25 de Setembro desse ano, apresentou-se

perante a Inquisição de Lisboa, o que lhe valeu a absolvição dois meses depois189

.

Manuel Mendes, que também constava da dita lista, partira para Tânger logo após as

184

Cf. ANTT, IL, proc. 12848, fls. 28-28v. 185

Também Baltazar Dias, filho de Mestre João, refere Sancho de Vasconcelos, cristão-velho, a quem

costumava ouvir ler as Sagradas Escrituras, nomeadamente algumas profecias sobre a vinda do Messias.

(Cf. ANTT, IL, proc. 5081, fls. 16-16v). 186

Cf. ANTT, IL, proc. 2511, fl. 6v. 187

Cf. ANTT, IL, proc. 364, fls. 12-12v. 188

Cf. ANTT, IL, proc. 10742, fls. 2-2v. Segundo a mãe, Salvador Nunes foi para o Peru. (Cf. ANTT, IL,

proc. 7751, fl. 13). 189

Cf. ANTT, IL, proc. 4511.

Page 56: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

56

primeiras prisões e tentou ingressar no corpo militar da praça marroquina190

. Porém, no

momento da dita ordem de prisão, já havia regressado a Tavira.

Marcos Gomes, mercador natural de Vila do Conde e residente em Tavira, também

foi preso na sequência da ordem de 19 de Abril de 1564. Ele acreditava que a vinda do

Messias estaria para breve. Vasco Rodrigues falara-lhe de um livro que vira nas mãos

do escrivão dos órfãos de Tavira, Rodrigo de Oliveira, o qual tratava dos sinais que

indiciariam a sua chegada: “[...] que Deus havia de tirar os nove tribos e meia que

estavam detrás de uns montes e lhes havia de abrir o Mar Vermelho por sete carreiras

para os passar [...]”. Era uma profecia do livro de Daniel, segundo ouviu dizer191

. João

Lopes Cristino confidenciara-lhe que vira “um juízo” vindo da Flandres anunciando

para aquele ano de 1564 um perdão do Papa aos cristãos-novos192

. Numa carta do irmão

João Dias, Marcos Gomes lera que a Inglaterra também “estava luterana”193

. A relação

da vinda próxima do Messias com os movimentos da reforma protestante encontrava

eco entre os cristãos-novos de Tavira, tal como acontecera em Lagos.

Os inquisidores consideraram Marcos Gomes diminuto e, no auto de 1 de Julho de

1565, foi relaxado à justiça secular. A mesma sorte teve João Lopes Cristino, outro dos

participantes nos ajuntamentos na casa de Rui Dias. Preso antes de Marcos Gomes, a 7

de Julho de 1563, logo no dia em que entrou no cárcere, João Lopes confessou que

mantinha práticas judaizantes – não trabalhava aos sábados, guardava o jejum do

Quipur e alguns dos jejuns pequenos, às segundas e quintas-feiras – mas sem intenção

de judeu. Nas sessões seguintes, manteve a contradição e só muito depois admitiu a fé

na Lei de Moisés. Porém, os inquisidores consideraram a confissão insuficiente. Ele

tentara desviar a atenção do tribunal dos seus parentes mais próximos e só na última

sessão, depois de declarado herege convicto e relaxado à justiça secular, é que

denunciou os filhos e admitiu práticas judaizantes no cárcere194

. O seu sacrifício foi em

190

Cf. ANTT, IL, proc. 10392, fls. 13-13v. 191

No livro de Daniel, não se encontra nenhuma profecia com essas referências. As nove tribos e meia é

uma alusão à divisão da terra da Canaã: “Moisés ordenou aos filhos de Israel: «Este é o país que dividireis

por sorteio, e que o Senhor mandou dar às nove tribos e meia.”(Nm. 34, 13). Quando às sete carreiras

abertas no Mar Vermelho, uma profecia no livro de Isaías refere: “O Senhor secará o braço de mar do

Egipto e levantará a mão contra o Eufrates; com o seu sopro ardente ferirá os seus sete canais, que se

passarão a pé enxuto. E haverá uma estrada para o resto do seu povo, que escapa da Assíria, tal como

existiu para Israel, no dia em que saiu da terra do Egipto” (Is. 11, 15-16) 192

Cf. ANTT, IL, proc. 10742, fls. 15v-16v. Vide, em anexo, pp. 270-271. 193

Cf. Idem, fls. 24-24v. 194

Cf. ANTT, IL, proc. 1156.

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vão. Cinco dos seus filhos apresentaram-se voluntariamente perante o Santo Ofício e

denunciaram a mãe, Mor Dias, que também acabou presa195

.

O que aconteceu à família de João Lopes Cristino repetiu-se entre os parentes dos

outros presos. Muitos optaram pela apresentação voluntária e conseguiram uma pena

leve. A proximidade familiar não os salvaguardava da denúncia, antes pelo contrário.

Em 1564, isso já seria senso comum entre os cristãos-novos de Tavira e as

apresentações multiplicaram-se. Gonçalo Tojo apresentou-se no mesmo dia em que a

mulher, Isabel Vieira, entrou nos cárceres de Lisboa. Não era só o seu testemunho que

ele temia. Gonçalo Tojo mantinha relações próximas com muitos cristãos-novos já

presos: era cunhado de Mestre João, fora sócio de João Lopes Cristino, partilhara a

renda da louça com Rui Dias196

. Também na sequência da prisão de Violante Rodrigues,

que entrou nos cárceres de Lisboa a 2 de Maio de 1564, apresentaram-se, ainda no

decorrer desse mês, o marido, Mem Rodrigues, os irmãos Mor e Gines Serrão, e a tia

Mor Serrão197

. Todos sabiam que dificilmente sairiam incólumes da confissão de

Violante. Os seus processos formam, assim, um círculo fechado de denúncias, não

implicando ninguém além do núcleo familiar.

Novas de Além-Mar

Por volta de 1557, um mercador vindo Arzila, Manuel Franco, anunciava em Tavira

“[...] que havia de vir um homem que havia de trazer muito dinheiro e havia de igualar

uns e outros e que os pobres que os havia de fazer ricos [...]”198

. Enquanto esperavam

por ele, os cristãos-novos deveriam jejuar todos os dias. Esteve na cidade durante 7 ou 8

dias. Quem o conta é Diogo Rodrigues, o Verdugo, natural de Badajoz mas então a

residir em Tavira. Ele confessou aos inquisidores que, induzido pelo que ouvira, fez 5

ou 6 jejuns no período de 2 semanas.

A passagem de Manuel Franco por Tavira foi motivo de especulação nos tempos

que se seguiram. Quem seria o homem que ele anunciava? Diz Diogo Rodrigues:

“[...] Depois de ido o dito João (sic) Franco para fora, estando eles praticando que

homem podia ser aquele e que não podia ser mercador tão rico que trouxesse tanto

195

Cf. ANTT, IL, procs. 3886, 4511, 5900, 10884 e 12175. 196

Cf. ANTT, IL, proc. 7773. 197

Cf. ANTT, IL, procs. 2035, 2859, 7310, 10883 e 12184. Violante Rodrigues era casada com Francisco

Fernandes, sobrinho de Gaspar Fernandes. 198

Cf. ANTT, IL, proc. 168, fl. 14v.

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dinheiro, disseram os outros todos que não podia ser este homem senão o Messias

por que os judeus esperam [...]”199

.

Um homem de Arzila anunciava a vinda do Messias. Encontramos nos processos

inquisitoriais mais referências a indivíduos oriundos do Norte de África que, no

Algarve, doutrinaram cristãos-novos. Briolanja Lopes, que viera de Mazagão, tê-lo-ia

feito. Ela pedia pelas portas, acedendo, assim, ao lar de muitos cristãos-novos. Diogo

Vaz, ferreiro, confessou que lhe dava esmola para ela guardar os jejuns das segundas e

quintas-feiras em sua vez200

.

A proximidade geográfica e os contactos comerciais mantidos entre os Algarves de

Aquém e Além-Mar propiciavam a circulação de gentes e de informação. Lopo da

Fonseca, natural de Tânger, vivia há cerca de 20 anos em Tavira quando foi preso, a 10 de

Maio de 1564. Antes, mercadejara pelas praças marroquinas. Segundo o seu testemunho,

Fez, onde ia comerciar, era muito frequentada por judeus. Eles diziam que os cristãos

andavam cegos e errados e que o Messias ainda estava para vir. Lopo da Fonseca não

esquecera o que vira e ouvira e, já em Tavira, continuou a falar sobre o que diziam os

judeus de Fez201

. Em 1562, regressou a Tânger, onde foi visitar o pai, Rafael da Fonseca,

e ali permaneceu mais de 2 meses, tempo em que celebrou o jejum do Quipur202

.

Por essa altura, alguns cristãos-novos algarvios eram soldados na praça: Bento

Mendes, de Vila Nova de Portimão; Henrique Lopes, de Loulé; Rui Gomes, de Faro; e

Simão Fernandes, de Tavira. Todos, excepto Henrique Lopes, regressaram a casa quando

Lourenço Pires de Távora assumiu o governo de Tânger, em 1564203

. Todos, excepto Rui

Gomes, foram processados pela Inquisição de Lisboa, acusados de judaísmo.

A 2 de Setembro de 1564, Henrique Lopes foi preso em Tânger. A acusação que o

levou aos cárceres nem sequer era contra ele, mas sim contra um homónimo, conclusão a

que os inquisidores só chegaram após a sua confissão, alegadamente204

. Henrique Lopes

acusou Bento Mendes de guardar o jejum do Quipur enquanto esteve na praça marroquina

e ele acabou por confirmá-lo. Em Tânger, tinha contacto com alguns judeus que o

iniciaram na fé judaica e com outros cristãos-novos judaizantes oriundos de Portugal.

199

Cf. Idem, fl. 15v. Neste excerto, é referido João Franco, mas, no restante documento, o nome que

aparece é Manuel Franco. Possivelmente, é um erro do escrivão. 200

Cf. ANTT, IL, proc. 3264, fl. 5. 201

Cf. ANTT, IL, proc. 2190, fls. 18-19. Vide, em anexo, pp. 273-275. 202

Cf. Idem, fls. 25-26. 203

Sobre a actuação de Lourenço Pires de Távora enquanto capitão-mor e governador de Tânger, vide

Maria Leonor Garcia da Cruz, Lourenço Pires de Távora e a Política Portuguesa no Norte de África no

Século de Quinhentos. Dissertação de mestrado em História Moderna apresentada à Faculdade de Letras

da Universidade de Lisboa, Lisboa, 1988, exemplar policopiado, pp. 404-490. 204

Cf. ANTT, IL, proc. 10392.

Page 59: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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Maior impacto teve a denúncia de Henrique Lopes contra o seu companheiro de

armas, Simão Fernandes205

. Preso nos cárceres de Lisboa a 13 de Março de 1566, Simão

Fernandes deu início a uma segunda série de prisões em Tavira – 14 processos em 1566,

num momento em que a vaga iniciada em 1563 abrandava. Ele havia aderido à fé judaica

ainda antes de ir para Tânger. Por volta de 1560, Simão partira de uma aldeia perto de

Mértola para Tavira, com o objectivo de ir comprar coirama e outras mercadorias

necessárias ao seu ofício de sapateiro. Na cidade algarvia, esteve com o cunhado Diogo

Gomes, o seu primeiro mestre na Lei de Moisés. Passado pouco mais de um mês, partiu

para Tânger. Ali, tomou contacto com um mercador judeu, Jacob, que lhe completou a

doutrinação. Ao regressar de Tânger, passou a jejuar na companhia da mulher e dos

filhos206

. Estes foram as principais vítimas das suas denúncias. Em Abril de 1566,

entraram nos cárceres de Lisboa a sua mulher, Oriana Martins, e 6 dos seus filhos: Diogo

Fernandes, Henrique Fernandes, Catarina Fernandes, Filipa Henriques, Maria Mendes e

Leonor Gomes. A filha mais nova, Mor Dias, só seria presa meses depois, saindo

reconciliada após a revogação da denúncia da mãe. Tinha 12 anos de idade.

Um dos filhos de Simão, Henrique Fernandes, também estivera em Tânger. Na

praça africana, uma tendeira perguntara-lhe se era verdade que a Inquisição andava a

prender muita gente em Lagos e Tavira. Ele confirmou: «Lá só hajam suas almas, suas

palmas». Mas a tendeira advertiu-o: «Então calai-vos, filho, que bem sabem eles que

essa lei houvera de ser sempre boa»207

.

Todos os filhos de Simão Fernandes confessaram que tinham sido ensinados pelos pais.

Alguns referem um tio materno, Diogo Gomes, que, indo visitá-los a Tavira, levou um livro

impresso, em vernáculo, do qual lia passagens sobre a lei e os preceitos judaicos208

. Maria

Mendes identificou o livro – o Espelho de Consolação209

. Tratava-se, portanto, da obra de

Frei Juan de Dueñas, Espejo de consolation de tristes, uma das obras piedosas mais

populares do século XVI, cuja primeira parte foi publicada em 1540210

.

205

Cf. ANTT, IL, proc. 8549. 206

Cf. ANTT, IL, proc. 4527. 207

Cf. ANTT, IL, proc. 10397, fls. 7v-8. 208

Cf. ANTT, IL, proc. 13002, fl. 5v; proc. 10397, fl. 3. 209

Cf. ANTT, IL, proc. 2888, fl. 18. 210

A primeira parte é publicada em Burgos, em 1540 (Cf. Jose Simon Diaz, Bibliografia de la Literatura

Hispanica, tomo IX, Madrid, Consejo Superior de Investigaciones Cientificas, 1971, p. 504). Espejo de

consolación consiste numa colectânea de narrativas bíblicas, a maioria oriundas do Antigo Testamento,

apresentadas enquanto lições de moral. Tal como outras obras com menções ao Antigo Testamento, o

Espejo de consolación era uma leitura corrente entre os judaizantes ibéricos. (Cf. Charles Amiel, “Les

cent voix de Quintanar”, Revue de l’histoire des religions, t. 218, n.º 4, 2001, pp. 524-534). Sobre Espejo

de consolación vide infra, parte II, cap. 4.

Page 60: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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A matriarca da família, Oriana Martins, chegou aos cárceres da Inquisição de Lisboa

a 20 de Abril. Segundo a confissão dos filhos, ela costumava refugiar-se junto à

chaminé da casa em certos dias, sem comer nada, só desfiando as contas211

. As

denúncias de Oriana Martins tiveram consequências no interior da sua família,

conduzindo à prisão dos irmãos Simão Dias e Leonor Gomes, da mãe e do genro João

Rodrigues (casado com Maria Mendes). João Rodrigues era meirinho nas galés, em

Lisboa. Apesar de não residir permanentemente em Tavira, era muito próximo da

família da esposa. Ele contou que, numa ocasião, indo na companhia de Maria Mendes,

mãe da sua sogra, colher bolota a uma fazenda no termo de Tavira, encontraram no

caminho umas cruzes de pau. Maria Mendes riu-se: «Que dúzia de rachas se aí perdem

para o fogo». Quando chegaram à fazenda, João Rodrigues confrontou-a e ela

respondeu-lhe: «Filho, bem sei que minha filha, vossa sogra, me disse que eras tão

judeu como quantos havia em Berbéria e tão cerrado agora vos tenho em mais conta e

por mais temente a Deus e vos quero mais bem por vida de meus filhos»212

. No seu

processo, Maria Mendes admitiu essas palavras213

.

A comunicação da fé no seio familiar conduziu parte da família de Simão Fernandes

ao cárcere. É uma tendência que se repete nas outras prisões ocorridas em Tavira neste

período. As famílias começavam por ser decepadas – os elementos masculinos eram os

primeiros a chegar aos cárceres. A partir daí, as denúncias e as prisões corriam toda a

família. Esgotado esse filão, o número de detenções caía.

Após esta série de prisões em 1566, seguiu-se o vazio, não só em Tavira, como em

todo o Algarve. Entretanto, em 1564, D. João de Melo tinha sido substituído por D.

Jerónimo Osório à frente da diocese algarvia. Durante o resto da década de 60 e todo o

decénio seguinte, apenas encontramos o registo de três prisões na região: três irmãos

residentes em Tavira e com origens familiares no Alentejo214

.

Estes foram os últimos testemunhos de actividade do Santo Ofício no Algarve até

meados da década de 80. Entretanto, em 1577, D. Sebastião concedeu aos cristãos-

novos portugueses a isenção do confisco de bens durante um período de 10 anos e a

211

Cf. ANTT, IL, proc. 13002, fl. 6. 212

Cf. ANTT, IL, proc. 12818, fls. 21-21v. 213

Cf. ANTT, IL, proc. 2887, fl. 16v. 214

Eram eles: Simão Rodrigues, Gaspar Dias e André Rodrigues. Simão foi o primeiro a ser preso, ainda

em 1572. Ele denunciou os irmãos Gaspar Dias e André Rodrigues. Após ter sido reconciliado, Simão

teria aconselhado os irmãos a apresentarem-se perante a Inquisição de Évora. Tal não aconteceu e quer

Gaspar Dias, quer André Rodrigues deram entrada nos cárceres de Évora a 31 de Agosto de 1573. Gaspar

nunca chegaria a confessar e, no auto de 14 de Janeiro de 1574, foi reconciliado com cárcere ao arbítrio

dos inquisidores. (Cf. ANTT, IE, proc. 9465).

Page 61: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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permissão de saída do reino. O contrato seria revogado dois anos depois. Mesmo assim,

nesse curto período, muitos foram os cristãos-novos que abandonaram Portugal, parte

rumo a Castela215

. Possivelmente, o mesmo movimento ter-se-ia registado no Algarve.

Mas os dados não são suficientes para determiná-lo, apenas alguns indícios, parcas

referências a um ou outro cristão-novo que se ausentou. A emigração seria mais intensa

anos depois, após uma nova investida do Santo Ofício na região.

2. 1585-1600: A VISITA INQUISITORIAL E UMA NOVA VAGA DE PRISÕES

O enfraquecimento da actuação inquisitorial propiciou alguma paz entre os cristãos-

novos do Algarve. Porém, outras tragédias abateram-se sobre a região. Em 1578, alguns

homens de armas algarvios acompanharam o rei D. Sebastião na malograda campanha

de Alcácer Quibir. Uns perderam a vida, outros ficaram cativos. Dois anos depois, a

peste grassava. Logo em 1579, quando o reino ainda estava “[...] cheio de mágoas com a

perda do ano atrás, em que acabara nos campos de África, El-Rei D. Sebastião com tudo

o melhor dele [...]”216

, como refere Frei Luís de Sousa, uma epidemia começou a roubar

vidas por todo o reino. Na cidade Tavira, o governador D. Duarte de Meneses decretou

estado de emergência sanitária e mandou fechar as portas da cidade para evitar a

disseminação217

. Em 1580, ter-se-iam tomado decisões semelhantes por toda a região.

Porém, antes das portas se fecharem, houve quem abandonasse as cidades em busca dos

ares mais salubres do campo.

A peste passou mas as suas consequências permaneceram. Cinco anos depois, um

outro flagelo abatia-se sobre os cristãos-novos.

215

Cf. Julio Caro Baroja, Los Judíos en la España Moderna y Contemporanea, tomo I, Madrid, Ediciones

Arion, 1961, pp. 342-343. 216

Cf. Frei Luís de Sousa, Terceira Parte da Historia de S. Domingos particular do Reino e Conquistas

de Portugal, 3ª ed., Lisboa, Typographia do Panorama, 1867, p. 485. 217

Cf. Calapez Corrêa, “A Expansão...”, Cadernos Históricos..., vol. II, pp. 45-51. Sobre a peste de 1580,

vide: Paulo Drumond Braga, Dois surtos de peste em Lisboa 1579-1581. Separata de Revista da

Biblioteca Nacional, Lisboa, 1992; José Manuel A. S. de Carvalho, Diário da peste de Coimbra (1599),

Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian / Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica, 1994

(contém apêndice sobre a peste de 1580).

Page 62: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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1585, Algarve visitado

“O Algarve pede visitação. Bispo, frades e priores desse reino nos incitam com suas

cartas”218

– apelava ao Conselho Geral, a 12 de Novembro de 1584, o inquisidor António

de Mendonça. À frente da diocese do Algarve encontrava-se, então, D. Afonso de Castelo

Branco. Na missa da primeira oitava da Páscoa desse ano, em plena Sé, o bispo escutara a

polémica tese do deão Diogo Lopes: Jesus Cristo só passou uma noite no sepulcro, pois

morrera sexta-feira à tarde e ressuscitara na madrugada de domingo. Era negado o que

rezava o Credo. Perante a indignação dos fiéis, o bispo repreendeu-o e deu-lhe ordens

para se desdizer em público. O deão assim o fez. Mas a irreverência das suas posições não

cessou com a admoestação do prelado. No domingo de Pentecostes seguinte, Diogo

Lopes voltou a subir ao púlpito da Sé. O Espírito Santo era “[...] espírito orgulhoso,

argumentativo, espírito de contradição e de confusão [...]”, dissera durante a homilia,

provocando o escândalo de leigos e eclesiásticos. Desta vez, D. Afonso de Castelo Branco

foi mais enérgico na reacção. Mandou-o prender e fazer um auto sobre o sucedido, a ser

remetido à Inquisição. Porém, o chantre da Sé e outros religiosos intercederam pelo deão

e tudo ficou pela mera negação pública e formal das proposições advogadas. O bispo não

ficou satisfeito com a revogação de Mestre Diogo Lopes: “[...] em vez de se acusar assim,

repreendeu os ouvintes, como diz Santo Agostinho que fez aquele fariseu que, vindo ao

templo para pedir perdão de seus pecados próprios, acusava os alheios [...]”219

. Entretanto,

Manuel Álvares Tavares, inquisidor do Tribunal de Évora, já havia chegado a Faro.

Qual a relação entre o caso do deão de Faro e a visita inquisitorial ao Algarve?

Diogo Lopes era cristão-novo e, apesar das proposições defendidas não constituírem

prova de qualquer afeição à Lei de Moisés, o facto de serem pronunciadas por alguém

de “nação” era um agravante. Ainda para mais, um cristão-novo que ocupava o lugar

mais cimeiro da hierarquia do cabido – o deão, a quem cabia duas das trinta prebendas

existentes na Sé220

. Adivinha-se que tal terá servido de alerta para muitos cristãos-velhos.

A gente de nação chegara aos mais altos níveis da hierarquia religiosa e invadia os

corações dos fiéis com a dúvida.

218

Cf. ANTT, Tribunal do Santo Ofício (TSO), Conselho Geral (CG), liv. 97, fl. 4. 219

Cf. ANTT, IL, proc. 3205, fls. 2-4. Vide, em anexo, pp. 283-285. Vide também o artigo de António

Baião, Um deão da Sé de Faro, nos fins do século XVI, a contas com a Inquisição. Separata de Correio

do Sul, Faro, 1949. 220

Cf. Fortunato de Almeida, História da Igreja..., vol. II, pp. 67-68.

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63

A 25 de Março de 1585, Diogo Lopes, aconselhado pelo próprio bispo, escreveu

uma carta ao visitador221

. Por esses dias, Manuel Álvares Tavares escutou a primeira

testemunha sobre o caso, o Padre Belchior da Fonseca, chantre da Sé e vigário-geral,

cuja declaração só foi registada na semana seguinte, a 30 de Março222

. Entretanto, vários

cristãos-velhos e cristãos-novos já haviam entrado nas casas onde pousava o visitador e,

perante ele, debitaram denúncias e confissões em nada relacionadas com os polémicos

sermões de Diogo Lopes. A 30 de Março, a rede de Manuel Álvares Tavares já se

encontrava cheia de suspeitos de Judaísmo e nenhum deles era o deão da Sé de Faro.

Considerando a hipótese de que a visita inquisitorial fora inicialmente motivada por este

episódio, não se tratou de pesca à linha mas sim de um autêntico arrastão. Mas não

creio. O principal objectivo da visita de 1585 foi “pescar” judaizantes. Provam-no as

prisões que se sucederam nos anos imediatos. Diogo Lopes era cristão-novo, de facto.

Não judaizante. Nenhuma denúncia é feita nesse sentido, nenhuma insinuação sequer.

Provavelmente, era uma hipótese que povoaria a mente de Manuel Álvares Tavares e

dos seus colegas inquisidores, mas nada se averiguou e, quando o processo de Diogo

Lopes chegou ao seu termo, onze anos depois (todos com o deão em liberdade, indo

esporadicamente a Lisboa testemunhar), o acórdão final apenas apontou as “proposições

escandalosas”. A “qualidade de sangue” do réu nem sequer aparece mencionada223

.

Mas regressemos a 1585 e à visita inquisitorial. No apelo ao Conselho Geral,

António de Mendonça referia a necessidade de se tratar “[...] primeiro da pessoa que fará

a visitação, porque convém que seja prática nas cousas da Inquisição e que faça a jornada

com autoridade e prudência, por ser esta a primeira que vai ao Algarve, que é cheio de

gente cavaleirosa, segundo dizem, e honrada [...]”. Como já vimos, essa pessoa foi o

inquisidor Manuel Álvares Tavares, auxiliado na sua missão pelos notários Bartolomeu

Fernandes e Álvaro Calvino224

.

São muito fragmentários os dados que possuímos sobre a visitação de 1585. Apenas

contamos com as confissões e as denúncias trasladadas nos processos inquisitoriais

221

Cf. Idem, fls. 5-6. Vide, em anexo, pp. 280-283. 222

Cf. Idem, fls. 7-10. 223

Cf. Idem, fls. 327-327v. Vide, em anexo, pp. 290-291. 224

Cf. ANTT, TSO, CG, liv. 367, fl. 33-33v. Antes de ser nomeado inquisidor do Tribunal de Évora, a 23

de Janeiro de 1580, Manuel Álvares Tavares foi deão da Sé de Viseu. A 17 de Março de 1593, foi

designado para a Inquisição de Lisboa e, a partir de 1610, passou a integrar o corpo de deputados do

Conselho Geral. Pertencente à Companhia de Jesus, nunca teria perdido um auto-de-fé em Lisboa desde

1594. (Cf. Maria do Carmo Jasmins Dias Farinha, Os Arquivos da Inquisição, Lisboa, Arquivo Nacional

da Torre do Tombo, 1990, pp. 307, 316, 330; Borges Coelho, Inquisição de Évora..., p. 68; Salomon,

Portrait..., pp. 111-112 (n. 120); Dauril Alden, The Making of an Enterprise. The Society of Jesus in

Portugal, Its Empire, and Beyond 1540-1750, Stanford, Stanford University Press, 1996, p. 671).

Page 64: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

64

consultados que, dado o degradante estado dos suportes e os obstáculos colocados à sua

consulta, nem sequer constituem a totalidade dos processos levantados contra cristãos-

novos residentes no Algarve nesse período.

Entre Março e Julho de 1585, Manuel Álvares Tavares percorreu a região, do

Barlavento ao Sotavento. Esbocemos o seu percurso225

:

Local Datas

Faro 22/3/1585 – 2/4/1585

Lagos 9/4/1585 – 16/4/1585

Aljezur 30/4/1585

Silves 4/5/1585 – 8/5/1585

Vila Nova de Portimão 13/5/1585 – 17/6/1585

Albufeira 26/6/1585

Loulé 1/7/1585 – 20/7/1585

Mapa 2: Percurso da visita inquisitorial de 1585 ao Algarve.

Segundo o Regimento de 1552, o visitador, antes de entrar numa localidade, deveria

informar as autoridades locais, de modo a que estas providenciassem a sua pousada.

Depois, apresentar-se-ia ao pároco da freguesia, reuniria as justiças seculares e

mandaria apregoar o dia e o local da leitura do sermão da fé. Após o sermão, seria

publicado o édito e o monitório geral e, de seguida, o édito da graça, no qual era

concedido um período para os culpados de heresia e apostasia se apresentarem

voluntariamente, sem qualquer pena. Os éditos de fé e da graça, depois de lidos, seriam

afixados na porta principal da igreja226

.

O édito de fé era um instrumento fundamental para a entrada da Inquisição numa

localidade. Lido perante toda a população, enumerando delitos desconhecidos da

225

Obtivemos estas datas através da consulta dos processos e de dados dispersos noutra documentação

inquisitorial (nomeadamente, nos Cadernos do Promotor). Provavelmente, o inquisidor teria estado nas

localidades para além das datas indicadas, mas não temos dados documentais que o comprovem. 226

Cf. “Regimento ... (1552)”, Metamorfoses..., p. 110 (caps. 6-7).

Faro

Albufeira

Portimão

Lagos

Silves

Aljezur

Loulé

Page 65: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

65

maioria dos ouvintes, trazia reminiscências sobre o que se estranhara no passado e

apresentava uma justificação para comportamentos cujo significado não se havia, até

então, compreendido. Ao encorajar a incriminação e a denúncia, accionava o controlo

sobre os cristãos-novos. Por outro lado, através da delimitação de um tempo de graça, a

Inquisição pretendia demonstrar a misericórdia para quem se afastara da ortodoxia

católica. Um paradoxo do qual se alimentava a máquina inquisitorial. A visita

funcionava, desta forma, como um primeiro passo para a actuação do Santo Ofício num

determinado local. Era tomado o pulso aos comportamentos religiosos da população,

identificados os desvios e empreendidas as primeiras diligências para a sua punição227

.

No Algarve, os principais alvos da visitação foram os cristãos-novos. Por outro lado,

as denúncias provieram, em grande parte, de testemunhas cristãs-velhas. Cristãos-novos

e cristãos-velhos conviviam e partilhavam momentos do quotidiano. Viviam paredes-

meias, trabalhavam em espaços comuns, frequentavam os mesmos sítios. Entre os

criados da casa, entre as visitas, entre a vizinhança, os cristãos-velhos participavam no

dia-a-dia das famílias cristãs-novas. Com o inquisidor na cidade, com a leitura do édito

da fé, todos os gestos e todos os comportamentos que, por fugirem à norma, nunca

caíram no olvido são motivo de suspeita e, por conseguinte, de denúncia.

Francisco Fernandes, que durante 5 semanas trabalhara como pedreiro nas obras da

casa de Francisco de Tovar, mercador cristão-novo, exprimiu ao visitador a sua

admiração perante o facto do patrão ter o hábito de ir ver como decorriam os trabalhos

todos os dias, excepto aos sábados228

. Em Vila Nova de Portimão, Catarina Fernandes

fora criada de Pedro Mendes, cristão-novo. Todos os sábados, os seus patrões vestiam

roupa lavada. Nas noites de sexta-feira, a sua senhora, Leonor de Sousa, dava-lhe

ordens para mudar as camas e limpar os candeeiros. A carne que vinha do açougue,

227

Sobre a forma como se processavam as visitas inquisitoriais e a sua ocorrência noutros espaços do

reino, vide: Elvira Mea, Inquisição de Coimbra no Século XVI. A Instituição, os Homens e a Sociedade,

Porto, Fundação Eng. António de Almeida, 1997; Fernanda Olival, “A Inquisição e a Madeira; a visita de

1618”, Colóquio Internacional de História da Madeira, II vol., Funchal, Governo Regional da Madeira,

1990, pp. 764-810; Idem, “A visita da Inquisição à Madeira em 1591-92”, Actas. III Colóquio

Internacional de História da Madeira, Funchal , Centro de Estudos de História do Atlântico, 1993, pp.

493-519; José Pedro Paiva, “As entradas da Inquisição na vila de Melo no século XVII: pânico,

integração/segregação, crenças e desagregação social”, Revista de História das Ideias (RHI), vol. 25,

2004, pp. 169-208; Maria do Carmo Teixeira Pinto, “A visita do licenciado Pedro Álvares de Paredes a

Tomar (1561)”, Arqueologia do Estado. 1as

Jornadas sobre formas de organização e exercício dos

poderes na Europa do Sul. Séculos XIII-XVIII, vol. 1, Lisboa, História & Crítica, 1988, pp. 357-373;

Paula Marçal Lourenço, “Uma visita da Inquisição de Lisboa: Santarém 1624-1625”, Comunicações

apresentadas ao 1º Congresso Luso-Brasileiro sobre Inquisição, vol. II, Lisboa, Universitária Editora,

1989, pp. 567-596; Idem, “Para o estudo da actividade inquisitorial no Alto Alentejo: a visita da

Inquisição de Lisboa ao bispado de Portalegre em 1578-1579”, A Cidade. Revista Cultural de Portalegre,

n.º 3, 1989, pp. 109-138. 228

Cf. ANTT, IE, liv. 646, fl. 21v.

Page 66: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

66

nunca porco, era preparada com esmero, sendo a própria patroa quem “[...] a depenicava

toda e lhe tirava todo o sebo e gordura, sem lhe ficar nada, e deitava a dita carne na água

com sal e depois a mandava lavar pela sua escrava [...]”229

.

Havia cerca de 10 anos, Constança Fernandes vivia na Rua do Peru, onde muitos

cristãos-novos de Vila Nova de Portimão residiam. Também ali morava Beatriz Simões,

uma cristã-nova que, aos sábados, vestia touca lavada e trabalhava menos do que nos

outros dias da semana: “[...] porque nos ditos sábados, tomava um sarilho na mão e uma

meada, em que ela, declarante, não via crescer a meada [...]”230

. Numa outra artéria da

vila, a Rua da Alfândega, Catarina Vaz viu uma vizinha, Branca de Sousa, benzer as

filhas de forma suspeita: colocava a mão nas cabeças das meninas e deslizava-a pelos seus

rostos abaixo, ao mesmo tempo que dizia: «Pera bem cresças, pera bem te cries»231

.

É possível traçar o perfil do denunciante-tipo durante a visita de 1585 ao Algarve:

mulher, cristã-velha, com acesso a casas de cristãos-novos por meio de relações laborais

(criadas, escravas) ou sociais (vizinhas, amigas). Por sua vez, o denunciado-tipo é

também do sexo feminino e, como se vê, cristão-novo.

O quotidiano feminino domina as denúncias pronunciadas perante Manuel Álvares

Tavares. Vejamos o exemplo de Catarina Lopes, cristã-nova por parte da mãe, que

aprendia a costurar com as filhas de Jorge Gomes, sombreireiro cristão-velho. Na casa

deste, perante outras raparigas, ela contava “um conto sobre Moisés”. Maria Álvares,

uma das filhas do sombreireiro, narrou ao visitador essa história:

“[...] quando o dito Moisés que ia passar o povo para terra da promissão que o não

podia fazer por estarem os homens com os cães, aos cantos, espiando e que, por

estarem sem dormir muitas noites, sem dormir, Moisés batera às portas de todos e

passara pelos homens que estavam dormindo sem eles acordarem, nem os cães, e

levou o dito povo e passou por um rio onde se lhe abriu o caminho por onde

passaram e os ditos homens foram atrás deles e, quando chegaram ao rio, já estava

cerrado e que, por esta razão, dizem quando alguma pessoa dorme muito que

dorme como os cães do Egipto [...]”232

.

Esta versão da fuga do Egipto levou uma outra cristã-velha, Bárbara Vaz, também

frequentadora dessas reuniões, a denunciar a jovem Catarina Lopes. Ela confessara-lhe

que, quando acordava cedo e via as portas dos cristãos-velhos fechadas, dizia para si

mesma: «Malditos que ainda dormem como os cães do Egipto»233

. A 31 de Maio,

229

Cf. ANTT, IE, proc. 1491. 230

Cf. ANTT, IE, proc. 8844. 231

Cf. ANTT, IE, proc. 7912. 232

Cf. ANTT, IE, liv. 646, fls. 39-39v. 233

Cf. Idem, fl. 37v.

Page 67: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

67

Catarina Lopes apresentou-se perante o visitador e confessou que realmente contara a

dita história, ouvida num sermão na igreja234

.

Outros cristãos-novos optaram pela apresentação voluntária perante o visitador, na

esperança de usufruírem do tempo da graça. Terminada a visitação, houve quem

desconfiasse que tal não passara de um “isco”:

“Nós vivíamos aqui muito descansados e muito a nosso gosto e vontade, sem haver

quem nos fosse à mão, e veio esta negra desventura do Santo Ofício e como

fizeram aquilo leve às parvoas para dizerem tudo quanto fizeram e não fizeram,

para as levarem e desinquietarem de suas casas, injuriadas e afrontadas, melhor

fôramos, digo, melhor vivêramos em parte onde não houvera estes debates e estas

cousas [...].”235

Tais palavras são atribuídas a Violante Lopes, cristã-nova de Lagos. O Regimento

de 1552 decretava que quem se apresentasse durante o tempo da graça, caso a sua

confissão fosse considerada verdadeira e desse mostras de arrependimento, seria

reconciliado e abjuraria secretamente perante o inquisidor, o notário e duas

testemunhas. Na circunstância de existirem denúncias prévias, essas testemunhas

voltariam a ser ouvidas e, se as culpas coincidissem com as palavras do confitente,

receberia a reconciliação e faria a abjuração numa igreja, sem mais penas236

. Portanto,

era o inquisidor quem avaliava se a confissão era suficiente e se o arrependimento do

confitente era sincero ou não. Pesavam nessa avaliação as denúncias efectuadas e,

sobretudo, contra quem eram dirigidas. Segundo o Regimento, era sinal de boa

confissão a denúncia de “[...] pessoas chegadas e conjuntas em sangue e a que tenham

particular afeição [...]”237

. Guiomar Simões foi reconciliada pelo visitador depois de

denunciar os pais e as irmãs. Nem a relação conflituosa que mantinha com a família

desde o seu casamento “a furto” com um cristão-velho serviu de atenuante à prisão da

mãe e das irmãs Branca e Leonor Simões238

.

Guiomar Simões é um dos poucos casos de cristãos-novos que se apresentaram

perante o visitador sem denúncias prévias. Dada a dimensão das localidades e as

relações sociais estabelecidas, não seria difícil saber quando e quem os havia

denunciado. Constança Rodrigues, cristã-velha de Vila Nova de Portimão, afirmou ter

ouvido Beatriz Simões, dizer “[...] que se a prendessem pelo Santo Ofício, que nenhuma

234

Cf. Idem, fls. 40v-41. Catarina Lopes não foi logo processada devido a estas denúncias. Só seria presa

anos depois, em 1592, delatada pela mãe. No processo, não são referidas as denúncias de 1585, o que

demonstra que Catarina beneficiara integralmente do tempo de graça. (Cf. ANTT, IE, proc. 7711). 235

Cf. ANTT, IE, proc. 5530. 236

Cf. “Regimento... (1552)”, As Metamorfoses..., pp. 110-111 (cap. 9). 237

Cf. Idem, p. 111 (cap. 10). 238

Cf. ANTT, IE, procs. 8086, 5286 e 6773.

Page 68: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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pessoa da geração do dito seu marido havia de rir dela [...]”. A mesma contara-lhe que

se tinha ido acusar a Silves porque “[...] uma maldita cristã-velha fora dizer contra ela

nesta mesa [...]”239

. Segundo o testemunho de Margarida Fernandes, em Albufeira, a

partir do momento em que o visitador chegou a Silves, Beatriz Simões passou a ir à

missa todos os domingos e dias santos e a falar muito em Nossa Senhora. Ela tentara

aliciar Margarida Fernandes a não a denunciar: “[...] e que lhe daria tudo o que ela

quisesse e umas casas em que vivesse toda sua vida, as quais estão pegadas ao quintal

das ditas casas em que vive e que, se viesse dizer contra ela alguma cousa a esta mesa,

que havia de fazer matar a ela, declarante [...]”240

. Apesar de se ter apresentado em Vila

Nova de Portimão, Beatriz Simões acabou por ser presa pela Inquisição de Évora a 23

de Março de 1586.

Dadas as limitações já referidas, não sabemos quantos teriam sido os cristãos-novos

que se apresentaram e foram reconciliados durante a visita. Um deles foi João Aires

Cordeiro. Ele apresentou-se em Aljezur no termo do tempo da graça, a 29 de Abril. Era

meio cristão-novo, pelo lado materno, e confessou que fora doutrinado pela mãe quando

tinha 10 anos de idade. Pouco tempo depois, o pai levou-o para Lisboa, onde ficou ao

serviço de D. João de Castelo Branco, como pajem, durante três anos. Na capital, ouviu

pregações e “[...] lhe pareceu mal o que a dita sua mãe lhe ensinava, por ver queimar

cristãos-novos em Lisboa e ouvir ler suas culpas no cadafalso [...]”. Ao regressar a casa,

enfrentou a mãe e ela nunca mais voltou a falar-lhe de nada contra a fé cristã. Segundo

João Aires Cordeiro, esta não era a primeira vez que confessava tais culpas. Havia cerca

de três anos, um trabalho no mar levou-o a Castela. Numa romaria à Igreja de Nossa

Senhora da Consolação, em Utrera, confessou-se a um religioso castelhano que não o

quis absolver. Regressado a Aljezur, Frei João da Costa absolveu-o e deu-lhe a

penitência. Mesmo assim, João Aires não deixou de se apresentar perante o visitador

“[...] por ouvir publicar o édito da fé em que dizia serem obrigados a denunciar de vivos

e mortos e por não ficar em excomunhão o vem dizer [...]”241

. Manuel Álvares Tavares

considerou a sua confissão pouco verosímil e ordenou-lhe que regressasse à mesa ainda

no decorrer da visita à vila. Mas João Aires não voltou a aparecer em Aljezur. Quase um

mês depois, a 25 de Maio de 1585, quando o visitador já se encontrava em Vila Nova de

Portimão, ele apresentou-se novamente. Negócios prementes e uma enfermidade foram

239

Cf. ANTT, IE, proc. 8844. 240

Cf. Idem. 241

Cf. ANTT, IE, liv. 228, fls. 619-620v.

Page 69: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

69

as justificações para a sua ausência. Em mais duas sessões, confirmou o que confessara

em Aljezur e, a 1 de Julho, foi reconciliado. O visitador estava, então, em Loulé242

.

Durante a visitação, Manuel Álvares Tavares ouviu a denúncia e a confissão de uma

série de práticas estranhas à ortodoxia católica243

. Por um lado, havia as que

evidenciavam comportamentos judaizantes, como a guarda dos sábados ou as restrições

alimentares. Por outro, testemunharam-se atitudes de resistência à maioria cristã-velha

e/ou à acção do Santo Ofício. Registou-se ainda uma terceira categoria de delitos,

relacionados com desvios no comportamento religioso, mas não necessariamente sinais

de profissão da Lei de Moisés. Era o caso de incumprimentos das obrigações cristãs

(por exemplo, a falta à missa dominical) e de blasfémias. António Rodrigues, cristão-

novo de Loulé, confessou ao visitador que, estando a sua mulher muito doente,

trouxeram-lhe o Santíssimo Sacramento a casa. Quando lhe disseram para acender as

candeias, ele respondera “[...] que acendesse porque não era nada a gaita sem trombão

[...]”244

. Este episódio passara-se havia então 25 anos e, durante este tempo, uma

simples frase sobreviveu na memória não só do próprio António Rodrigues, como

também de Isabel Gonçalves, a cristã-velha que levara a comunhão à sua casa.

Ainda mais fresca na memória colectiva estava a peste que atingira a região cinco

anos antes. Tal terá influenciado a frequência com que foram mencionados, durante a

visita, rituais fúnebres alegadamente judaizantes. Note-se que a menção a práticas

fúnebres constituiu sempre uma excepção nas restantes vagas de prisões no Algarve245

.

Cristãos-novos e cristãos-velhos partilhavam o momento da morte. O

amortalhamento do corpo em pano novo ou o derramamento da água após o falecimento

de alguém da casa eram ritos que fugiam ao cânone cristão e isso não escapou ao olhar

de terceiros. Tal acabou por emergir do esquecimento perante a leitura do édito de fé.

Um momento em que tantos foram vencidos pelo flagelo da peste e em que os velórios

e os funerais se multiplicavam na vizinhança era propício ao vislumbramento de

práticas, primeiramente só consideradas estranhas, mas, mais tarde, durante a visita

inquisitorial e perante a leitura do édito, tornadas suspeitas.

242

João Aires Cordeiro abjurou em segredo, sendo-lhe impostas apenas penitências espirituais. (Cf. ANTT,

IE, liv. 228, fls. 626v-627v). 243

Vide, em anexo, gráfico 2, p. 97. 244

Cf. ANTT, IE, liv. 646, fl. 16-18. 245

Sobre a relação da peste de 1580 com as denúncias apresentadas durante a visitação de 1585, vide

Carla da Costa Vieira, “Peste e heresia. A repressão inquisitorial no Algarve em final de Quinhentos e o

surto epidémico de 1580”, Cadernos de Estudos Sefarditas, n.º 9, 2009, pp. 149-180.

Page 70: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

70

O degredo da peste

Em La Peur en Occident, Jean Delumeau define uma “tipologia dos

comportamentos colectivos em tempo de peste”. As cidades são abandonadas, os

quadros familiares desestruturam-se, os comportamentos e os hábitos quotidianos

modificam-se, a sobrevivência ao presente torna-se a prioridade e as consequências das

próprias acções são alvo de menor ponderação. Por outro lado, procuram-se

explicações, soluções e culpados para o flagelo246

. Em tempo de peste, a cidade torna-se

num local a evitar, onde a concentração demográfica facilita o contágio, a

desorganização social é mais evidente e os seus efeitos mais assustadores. O campo

surge como um espaço convidativo enquanto se aguarda o fim do epidemia247

.

Muitos dos testemunhos apresentados durante a visitação de 1585 reportaram-se ao

tempo do “degredo da peste”248

. Foram mencionados os locais que serviram de refúgio à

população urbana do Algarve. Maria Vaz, cristã-velha de Lagos, esteve no “lugar de

Almadana” durante mais de 5 meses249

. Tratava-se, possivelmente, de Almádena,

pertencente à freguesia de Nossa Senhora da Luz, termo de Lagos. Vasco Afonso, de

Faro, refugiou-se numa fazenda na freguesia de São Martinho de Estoi por um período

de 5 a 6 meses250

. Alguns moradores de Vila Nova de Portimão mudaram-se, então,

para o termo de Silves. Foi o caso de Beatriz Fernandes e de Filipa Henriques que

estiveram cerca de mês e meio numas cabanas no lugar do Moinho do Diabo, entre a

ribeira de Boina e Silves251

.

Alguns viveram mais de meio ano fora da sua residência habitual, outros pouco

mais de um mês. O tempo de “degredo” variou, o que pode indiciar a maior incidência

da peste em determinadas localidades. Por outro lado, as condições de acolhimento

também teriam condicionado o prolongamento da estadia. Beatriz Fernandes alojou-se

numas cabanas, enquanto que Maria Vaz esteve numa casa. Em Almádena, Branca

246

Cf. Jean Delumeau, La Peur en Occident (XIVe-XVIII

e siécles). Une cité assiégée, Paris, Fayard, 1978,

pp. 98-142. 247

Já no Leal Conselheiro, D. Duarte referia que, perante a peste, o melhor era seguir “[...] o conselho dos

físicos e lhe fugir cedo, longe e tornar tarde [...]” (apeid José Manuel de Carvalho, Diário da peste..., p.

11). Vide também: Manuel António Fernandes Moreira, O medo da peste em Viana da Foz do Lima no

século XVI. Separata de Camoniana, Caminha, 1982; Francisco Ribeiro da Silva, Temores do homem

portuense no primeiro quartel do século XVII. A doença e a peste. Aspectos sanitários. Separata de

Revista de História, Porto, 1978. 248

A expressão é de Filipa Henriques, cristã-nova de Vila Nova de Portimão, que, durante a peste, se

refugiou numas cabanas no termo de Silves (Cf. ANTT, IE, proc. 5530). 249

Cf. ANTT, IE, proc. 6773. 250

Cf. ANTT, IE, liv. 646, fls. 2-2v. 251

Cf. ANTT, IE, procs. 4436 e 5530.

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71

Simões tinha até uma “[...] tendazinha pela qual queria olhar [...]” e algumas “moças”

ao seu serviço252

.

Abandonar o lar implicou uma quebra dos vínculos sociais construídos ao longo de

toda a vida ou, pelo menos, a sua suspensão durante algum tempo. Contudo, a mudança

para um outro espaço, com diferentes condições de subsistência, conduziu à criação de

novos laços. Eram relacionamentos frágeis, sem a legitimação e a confiança que só o

tempo assegura.

Voltemos ao testemunho de Vasco Afonso. Ele enumerou os cristãos-novos com

quem partilhara o refúgio em Estoi, na fazenda de Luís Fernandes: Simão Rodrigues e a

esposa, Beatriz Nunes; o casal Cristóvão Lopes da Fonseca e Catarina Fernandes e os

respectivos filhos; Afonso Fernandes e a mulher, Beatriz de Caminha; e um outro

Simão Rodrigues, tosador, também acompanhado pela esposa253

. Famílias diferentes

partilhavam o mesmo espaço. Mais do que isso, famílias cristãs-novas coabitavam com

cristãos-velhos. Ora, os hábitos, os comportamentos, enfim, tudo o que se dizia e se

fazia não escapou à devassa de elementos estranhos ao meio familiar. Práticas do foro

privado que, noutras circunstâncias, dificilmente seriam notadas além de um círculo

muito restrito, chegaram aos ouvidos do visitador. Qualquer aspecto que fugisse ao

ordinário era alvo de denúncia.

Além disso, em tempo de peste, muitos baixavam as defesas. Talvez o desespero e a

proximidade da morte fossem pouco propícios à perspectivação das consequências

futuras dos seus actos, talvez reinasse uma falsa sensação de segurança por se

encontrarem fora da residência habitual, onde a sua ascendência era reconhecida.

Branca Simões confessa que, naquele tempo, andava “[...] mais à larga e mais à sua

vontade [...]”. Por isso, aos sábados, ia com a irmã Leonor Simões para o campo, na

intenção de guardar aquele dia em honra da Lei de Moisés, e ordenava às criadas que

fizessem todo o serviço à sexta-feira. Nem sequer temia vir a ser denunciada. Ela

considerava as criadas “boçais e rústicas” e, portanto, incapazes de entender a

verdadeira razão de tais ordens.254

A imprudência estende-se à comunicação da fé, geralmente repleta de precauções e

inscrita num círculo restrito de confiança. Mas, durante a peste, esse círculo ter-se-ia

alargado perigosamente. Tomemos, como exemplo, o caso do degredo em Almádena e

252

Cf. ANTT, IE, proc. 5286. 253

Cf. ANTT, IE, liv. 646, fls. 2-2v. 254

Cf. ANTT, IE, proc. 5286.

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regressemos ao testemunho de Maria Vaz. Ela denunciou quatro cristãs-novas que

também se refugiaram naquele lugar: Branca Simões e a irmã Leonor Simões, Catarina

Martins e Isabel Correia. As quatro tinham uma posição social privilegiada. O marido

de Catarina Martins, Pedro Vaz Pinto, era cavaleiro da Ordem de Santiago, recompensa

pelos serviços prestados em África255

. Contudo, o estatuto social não as salvaguardou

das denúncias.

Branca Simões e a cunhada Catarina Martins ainda se apresentaram perante o

visitador, mas só confessaram um caso de amortalhamento ao “modo judeu”256

. Sobre o

tempo em Almádena, nenhuma palavra. As quatro mulheres acabaram por ser presas em

1586. Catarina Martins e Isabel Correia, que entraram nos cárceres de Évora a 25 de

Março, integraram o grupo dos primeiros cristãos-novos detidos na sequência da visita

inquisitorial257

. Eram, ao todo, 19 e provinham de Vila Nova de Portimão, de Faro e,

principalmente, de Lagos258

.

Mas as prisões não ficaram por aqui. A 15 de Abril, o Conselho Geral enviou à

Inquisição de Évora uma carta a felicitar “[...] a boa diligência que se fez nas prisões do

Algarve [...]” e a pedir que se procedesse às detenções de Aldonça Loba, de Lagos, e de

Inês Gramaxa e Beatriz Gonçalves, de Vila Nova de Portimão259

. Dito e feito – a 15 de

Maio, as três mulheres entravam nos cárceres de Évora260

. Nesse mesmo dia, também

foi presa Leonor de Sousa, prima de Inês Gramaxa261

.

Em suma, só durante o ano de 1586 registaram-se mais de duas dezenas de prisões

no Algarve. No Verão de 1587, o filão ainda não se tinha esgotado. A 16 de Junho, os

inquisidores de Évora escreviam ao Conselho Geral a alertar sobre a necessidade de se

proceder à prisão de indivíduos denunciados durante a visitação, ainda em liberdade e

sob o risco de fuga262

. De facto, a 26 de Julho de 1587, entraram nos cárceres de Évora,

pelo menos, 21 cristãos-novos oriundos do Algarve, sobretudo de Faro e de Vila Nova

255

Não encontrámos nenhum documento nas chancelarias que confirme esta informação. Depois o auto

em que Catarina Martins saiu reconciliada, com cárcere e hábito penitencial perpétuos, Pedro Vaz Pinto

pediu que lhe fosse retirada a penitência, pois ele era homem muito honrado, cavaleiro da Casa Real, que

recebeu o hábito pelos serviços prestados em África contra os mouros, e era uma grande afronta ser

obrigado a viver com uma mulher com hábito penitencial (Cf. ANTT, IE, proc. 7834). 256

Cf. ANTT, IE, procs. 5286 e 7834. Catarina Martins era irmã de Duarte Dias, marido de Branca Simões. 257

Cf. ANTT, IE, procs. 375 e 7834. Branca e Leonor Simões apenas entraram nos cárceres de Évora

meses depois, a 25 de Junho de 1586. (Cf. ANTT, IE, procs. 5286 e 6773). 258

Cf. ANTT, TSO, CG, liv. 367, fl. 37v. 259

Cf. Idem, fl. 38. 260

Cf. ANTT, IE, procs. 4628, 8925 e 9144 261

Cf. ANTT, IE, proc. 1491. 262

Cf. ANTT, TSO, CG, liv. 97, fl. 8v.

Page 73: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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de Portimão263

. Alguns foram denunciados no decorrer da visitação, como Leonor

Mendes, filha de Baltazar Fernandes Estaço, ou Beatriz Nunes, viúva de Manuel

Tinoco, ambas de Vila Nova de Portimão264

. O mesmo aconteceu com Gonçalo Martins

de Leão, mercador de Faro, acusado de tentar influenciar o testemunho de uma cristã-

velha, Beatriz Fernandes, que fora ama e cozinheira na casa da sua irmã Leonor

Quitéria. Já depois de preso, Gonçalo Martins não confirmou esta acusação. Aliás,

durante todo o processo, manteve-se relutante em confessar. Entretanto, as acusações

avolumavam-se. Acabou relaxado à justiça secular no auto-de-fé de 10 de Julho de

1588, tal como a sua esposa, Isabel Nunes265

. Entretanto, parte da sua família já

conhecera o cárcere inquisitorial.

Uma família de Faro nos calabouços

Os alvos da Inquisição em Faro, durante estes anos, quase se resumiram à parentela

de Gonçalo Martins de Leão. Porém, a repressão inquisitorial não era uma realidade

nova para esta família. Gonçalo Martins era primo de Mestre Lopo e Duarte Dias,

presos durante a primeira entrada da Inquisição no Algarve266

. Já nos anos 70, os seus

irmãos João e Diogo Martins foram presos em Beja, onde então residiam267

.

O cárcere não foi o único flagelo que se abateu sobre a família de Gonçalo Martins de

Leão. A peste de 1580 vitimou a irmã, Leonor Quitéria, e o seu marido, Francisco Lopes.

O casal deixara órfãos 9 filhos, muitos deles ainda crianças de tenra idade. Em 1585,

Pedro Lopes, o primogénito, foi acusado perante o visitador. Dois dias depois, ele

apresentou-se e confessou que, quando o pai faleceu, deu à ama Beatriz Fernandes um

lençol novo para amortalhar o corpo. Fê-lo sem nenhuma intenção judaizante e só se

263

De Faro: Gonçalo Martins (ANTT, IE, proc. 8790), Isabel Nunes (proc. 4195), Leonor Quitéria (proc.

2770), Branca Rodrigues (proc. 8057), Guiomar Lopes (proc. 3562), Violante Lopes (proc. 4504), Beatriz

Gonçalves (proc. 6969) e Maria Quitéria (processo desconhecido). De Lagos: Violante Lopes (processo

desconhecido) e Francisco Ribeiro (proc. 1508). De Vila Nova de Portimão: Inês Martins (proc. 5365),

Leonor Mendes (proc. 1548), Pedro Mendes (proc. 11023), Mor Estaça (processo desconhecido), Ana

Gramaxo (proc. 767), Aldonça Gramaxo (proc. 4605), Filipa Henriques (proc. 5530), Beatriz Fernandes

(proc. 4436), Violante Machado (proc. 9651), Beatriz Nunes (proc. 8043) e Isabel Jorge (proc. 8654). 264

Cf. ANTT, IE, proc. 1548. 265

Cf. ANTT, IE, procs. 8790 e 4195. 266

Cf. ANTT, IL, procs. 2180 e 12751. Mestre Lopo e Duarte Dias eram irmãos. João Martins, irmão de

Gonçalo Martins de Leão, refere no seu processo que era primo destes, sem adiantar mais informações

sobre o grau de parentesco (Cf. ANTT, IE, proc. 191). 267

Cf. ANTT, IE, procs. 191 e 11221.

Page 74: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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apresentou por ter ouvido o édito de fé “[...] em que dizia dos que se enterrravam em

lençol cru e camisa comprida [...]”268

.

Esta confissão não satisfez Manuel Álvares Tavares. Nos cárceres de Évora desde

25 de Março de 1586, Pedro Lopes só começou a confessar mais de um ano depois.

Fora iniciado na “crença na Lei de Moisés” pelos pais, pouco antes do seu falecimento.

Então, eles também ensinaram as suas irmãs, inclusivamente as mais novas269

. Ao longo

da confissão, denunciou o tio Gonçalo Martins e a esposa deste, Isabel Nunes, tal como

o primo Nicolau Martins, clérigo de missa na Sé de Faro270

. Tendo saído no auto de 2 de

Agosto de 1587, com cárcere e hábito penitencial perpétuos, Pedro Lopes foi chamado

novamente à mesa poucos dias depois para responder sobre o ensino das irmãs mais

novas, Leonor Quitéria e Guiomar Lopes. Voltou então a sublinhar que as duas tinham

presenciado o ensino materno mas, sendo então de muito tenra idade, só começaram a

ter práticas judaizantes mais tarde. Além disso, propôs que, caso persistisse alguma

dúvida, poderia falar com as irmãs e tentar “encaminhá-las” 271

. De facto, Leonor

Quitéria e Guiomar Lopes, com 14 e 11 anos respectivamente, resistiram à pressão dos

inquisidores e mantiveram-se negativas durante várias sessões. Só depois de

confrontadas com o irmão mais velho é que confirmaram a iniciação e a prática dos

preceitos da Lei de Moisés272

.

Esta disponibilidade para auxiliar os trabalhos do Santo Ofício levou a que Pedro

Lopes fosse agraciado com o levantamento do hábito penitencial logo a 5 de Janeiro de

1588. Dizia querer casar com Catarina Galega, também ela penitenciada pela Inquisição

de Évora, e pediu aos inquisidores que lhe retirassem a penitência, de modo a conseguir

ganhar o sustento para si e para a sua futura esposa273

.

268

Cf. ANTT, IE, proc. 5226. 269

Segundo podemos induzir dos processos, quando Pedro Lopes e as irmãs foram ensinados, por volta

de 1580, a irmã mais nova, Guiomar Lopes, tinha apenas 4 anos de idade, enquanto as outras duas irmãs,

Leonor Quitéria e Branca Rodrigues, ainda não haviam atingido os 10 anos. Raramente o ensino era

administrado em idades tão precoces. Vide infra, pp. 250-251. 270

Cf. ANTT, IE, liv. 646, fls. 47-52. 271

Cf. ANTT, IE, proc. 5226. 272

Cf. ANTT, IE, procs. 2770 e 3562. Guiomar Lopes, dada a sua pouca idade, acabou por ser reconciliada

sem ter de abjurar e entregue à responsabilidade de Martim d‟Ares, marido da irmã Ana Lopes. Leonor

Quitéria, mais velha, foi a auto, a 10 de Julho de 1588, sentenciada a cárcere e hábito penitencial ao arbítrio

dos inquisidores. O Regimento de 1552 contemplava que as raparigas menores de 12 anos e os rapazes

menores de 14 anos não eram obrigados a abjurar publicamente (Cf. “Regimento... (1552)”, As

Metamorfoses..., p. 112 (cap. 16)). 273

Cf. ANTT, IE, proc. 5226. Catarina Galega foi acusada durante a visitação de 1585 de guardar o jejum

judaico das quintas-feiras. Tinha 13 anos na altura da prisão. Saiu no auto de 2 de Agosto de 1587, com

cárcere e hábito penitencial perpétuos. A 5 de Janeiro de 1588, foi-lhe levantada a pena para se casar com

Pedro Lopes. (Cf. ANTT, IE, proc. 8698).

Page 75: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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Já sem hábito, Pedro Lopes casou-se e foi viver para Lagos. No ano seguinte, fez-se

ao mar, rumo ao Brasil, num navio carregado de figos. Nessa mesma embarcação,

seguiam outros dois cristãos-novos algarvios: João de Souto, de Lagos, e Francisco

Ximenes, de Vila Nova de Portimão. O destino do navio acabou por não ser o Brasil, mas

sim Cuzco. Dali, Pedro Lopes passou para Junja e, depois, para Velez, onde se fixou

durante um ano e meio. Nos anos seguintes, circulou por Cartagena das Índias, Panamá,

Costa Rica e Guayalquil. Foi nesta última paragem que a Inquisição de Los Reyes o

prendeu, em 1596. Depois de ter relatado pormenorizadamente a sua rota entre Portugal e

a América Castelhana, Pedro Lopes foi solto a 30 de Agosto de 1596, sob a condição de

não sair da cidade e de se apresentar regularmente perante o Santo Ofício274

.

Mas recuemos alguns anos e regressemos a Faro, a Julho de 1587, quando 6 das 7

irmãs de Pedro Lopes foram presas275

. Ana Lopes, casada com Martim d‟Ares, cristão-

velho e escudeiro, foi a única que se salvou do cárcere. Aliás, ela nunca chegou a ser

denunciada pelos irmãos – era uma das mais velhas e, por ocasião do alegado ensino, já

deveria estar casada e a viver longe do lar paterno276

. Exceptuando a mais nova,

Guiomar Lopes, foram todas reconciliadas no auto de 10 de Julho de 1588. As

confissões das irmãs circunscreveram-se, praticamente, ao círculo familiar. Mesmo

assim, foram responsáveis por outras prisões em Faro. Branca Rodrigues denunciou a

prima Beatriz Gonçalves, filha de Gonçalo Martins de Leão277

. Esta, por sua vez, contou

aos inquisidores que, na casa das vizinhas Bárbara Filipe e Inês de Caminha, algumas

cristãs-novas costumavam reunir-se e guardar o jejum do Quipur em conjunto. Entre

elas, estavam Estevainha Gomes e a filha Catarina Gonçalves278

.

Estevainha Gomes foi presa meses depois, em Outubro de 1588, sob a suspeita de

tentativa de fuga. Devido a esses rumores, o cunhado Francisco Rodrigues, mercador de

Faro, apresentou-se a 26 de Julho perante o vigário-geral. Diziam na cidade que ele a

auxiliara a planear a fuga. Domingos Guerreiro, almocreve de Almodôvar que

274

Cf. ANTT, IE, liv. 213, fls. 111-116v (excerto do processo de Pedro Lopes na Inquisição de Los

Reyes). Vide, em anexo, pp. 348-356. Vide também António Borges Coelho, “O Algarve nos séculos

XVI e XVII”, Cristãos-Novos, Judeus e os Novos Argonautas, Lisboa, Caminho, 1998, pp. 47-48. 275

Beatriz Gonçalves (ANTT, IE, proc. 6969), Branca Rodrigues (proc. 8057), Guiomar Lopes (proc.

3562), Leonor Quitéria (proc. 2770), Violante Lopes (proc. 4504) e Maria Quitéria (processo

desconhecido). 276

Beatriz Pinto, cristã-nova de Faro, presa a 9 de Maio de 1586, acusa Ana Lopes de lhe ter aconselhado

a guardar um jejum do thanis (Cf. ANTT, IE, proc. 1682, fls. 113-113v). É a única denúncia contra Ana

Lopes que conseguimos identificar. Porém, tal não resultou no levantamento de qualquer processo. 277

Cf. ANTT, IE, proc. 8057. 278

Cf. ANTT, IE, proc. 6974. Estevainha Gomes era viúva de Manuel Vaz, primo irmão da mãe de

Beatriz Gonçalves.

Page 76: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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costumava ir a Faro comprar atum, alegou que Francisco Rodrigues pedira-lhe para

alugar uma besta com o fim de transportar uma mulher e um menino. Ele aceitou o frete

e levou-os até Alcácer, tal como fora acordado. Segundo o almocreve, tudo teria

ocorrido no final de Maio de 1588, poucos dias depois da prisão da filha de Estevainha.

O próprio Francisco Rodrigues acabou por confirmar esse aluguer279

.

De Alcácer, Estevainha Gomes foi para Lisboa, onde se encontrava a residir no

momento da sua prisão. Ela confessou que, aos sábados, vestia roupa lavada e

trabalhava menos do que nos outros dias, tal como era costume na sua terra natal,

Aiamonte280

. Porém, depois do casamento, deixou de fazê-lo. Quando o seu marido

faleceu durante a peste e ela foi viver com Bárbara Filipe e Inês Caminha, que tinham

ficado órfãs, a sua nova vizinha, Isabel Nunes (esposa de Gonçalo Martins de Leão)

ensinou-lhe alguns rituais judaizantes281

. A confissão de Estevainha Gomes foi

considerada insuficiente. Acresceram mais culpas, inclusivamente de jejuns no cárcere,

os quais ela nunca chegou a admitir até ser declarada herege e relaxada à justiça secular.

Mas a confissão foi tardia e, no auto de 17 de Junho de 1590, Estevainha Gomes

sucumbiu à pena máxima282

.

As prisões em Faro geraram um natural descontentamento entre os cristãos-novos.

Em Outubro de 1587, Jerónimo Fernandes, sombreireiro, testemunhou perante o cónego

da Sé o que ouvira de Duarte Ribeiro, cristão-novo, quando se deu a prisão de Gonçalo

Martins de Leão e das suas sobrinhas:

“[...] que eram ladrões que mandavam os inquisidores à terra infamar os homens

honrados dela e que também os mesmos inquisidores o eram, pois que com falsidades e

testemunhos falsos os vinham infamar e que se eles, nos seus livramentos, houvera

abertas e imbricadas que se soubera quem jurava falso mas que os ladrões dos

inquisidores nenhumas daquelas coisas queriam fazer e que isso mereciam os cristãos-

novos e muito mais por morarem em terras tão cruéis como estas, onde há estas

velharias e ladroíces, que se fossem morar a Florença e a Itália e nessas partes de

Roma, aonde os homens viviam a seu gosto e não havia essas velhacarias [...]”283

A 1 de Novembro de 1587, Duarte Ribeiro entrou nos cárceres de Évora. Ele era filho

de Francisco Ribeiro, antigo escrivão dos direitos do pescado, e de Marquesa Rodrigues. A

279

Cf. ANTT, IE, liv. 217, fls. 187-192. 280

Cf. ANTT, IL, proc. 4385, fls. 95v-96v. 281

Inês de Caminha e Bárbara Filipe foram presas a 3 de Outubro de 1588, quando já se encontravam a

viver em Lisboa. Saíram no auto celebrado em Lisboa a 17 de Junho de 1590, com cárcere e hábito

penitencial perpétuos. (Cf. ANTT, IL, procs. 2302 e 16695). 282

Cf. ANTT, IL, proc. 4385, fls. 164-166v. 283

Cf. ANTT, IE, proc. 8372.

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mãe e as irmãs foram vítimas da vaga de prisões no início dos anos 60 em Lagos284

.

Quando chegou aos cárceres, Duarte Ribeiro tinha já perto de 65 anos e havia 40 que partira

para Itália, em busca de sustento para a família. Fixou-se durante dois meses em Verona,

onde vivia Pedro Rodrigues, seu parente, que o iniciou na fé judaica. Regressado a Portugal,

continuou a professá-la, mesmo depois de ter casado, em Moura. Por volta de 1583, voltou

ao Algarve e estabeleceu-se em Faro, onde veio a ser preso. Saiu no auto-de-fé de 10 de

Julho de 1588, reconciliado com cárcere e hábito penitencial ao arbítrio dos inquisidores285

.

Durante dois anos, 1589 e 1590, não se terá registado nenhuma prisão em Faro. Nos

anos seguintes, ocorreram algumas detenções, directamente relacionadas com processos

movidos contra cristãos-novos de Vila Nova de Portimão.

Uma temporada no Moinho do Diabo

Beatriz Simões foi, possivelmente, o nome mais referido durante a visitação. Em

Lagos, Silves, Vila Nova de Portimão e Albufeira, as acusações diversificavam-se:

bênçãos judaicas, amortalhamento em pano novo, orações suspeitas, os sábados em que

não trabalhava286

. Ela integrou o primeiro grupo de presos no Algarve, entregues nos

cárceres de Évora a 25 de Março de 1586. Poucos dias depois, já tinha iniciado a sua

confissão. Começou por alegar que só se apartara da fé cristã 7 ou 8 anos antes. João

Correia, vinhateiro, dissera-lhe que Jesus Cristo não era Deus, nem havia mais que

Moisés. Beatriz já alimentava essa dúvida dentro de si. Alguns anos antes, um outro

cristão-novo, Manuel Rodrigues, tentara convencê-la de que a Lei de Moisés era a

melhor e que não deveria rezar nem a Cristo, nem a Nossa Senhora. A confissão não

contentou os inquisidores. Como podia uma mulher já velha e viúva fiar-se no que lhe

dizia um homem com quem não tinha, sequer, uma relação próxima? A desconfiança

284

Marquesa Rodrigues vivia em Lagos quando foi presa pela Inquisição de Évora a 25 de Outubro de

1560. Saiu no auto de 10 de Maio de 1562, com cárcere e hábito penitencial perpétuos (Cf. ANTT, IL,

proc. 12432). Sucederam-se as prisões das filhas Isabel, Joana e Violante Ribeiro e da neta Marquesa

Lopes, filha de Garcia Ribeiro (Cf. ANTT, IL, procs. 1105, 8540, 5520 e 12434). Outros elementos da

família de Duarte Ribeiro foram presos nessa mesma vaga de prisões: a tia materna Branca Rodrigues

(proc. 6414); a tia paterna Branca Ribeiro (proc. 12778); e os primos Leonor Gomes (proc. 5290), Garcia

Ribeiro (proc. 8489), Branca Gonçalves (proc. 6895), Mor Ribeiro (proc. 10886), Duarte Rodrigues

(proc. 12762) e Leonor Nunes (proc. 1014). 285

Cf. ANTT, IE, proc. 8372. 286

Cf. ANTT, IE, proc. 11315.

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crescia ao ritmo das denúncias. Finalmente, em Junho de 1587, sob tormento, Beatriz

Simões confessou que fora ensinada pelo pai287

.

A sua filha Filipa Henriques, também denunciada durante a visitação, chegou a

apresentar-se perante Manuel Álvares Tavares. A sua prisão apertou o cerco sobre a

família. Ainda antes de partir para Évora, quando ainda estava presa em Vila Nova de

Portimão, Filipa recebera a visita das irmãs Violante Lopes e Branca Henriques, que lhe

disseram então: «Irmã, enquanto nos cá tiveres, terão as vossas filhas muito, olhai que

não confesseis cousa alguma porque vireis livre e saireis com muita honra coroada e

acabe isto em vós»288

. Filipa teria prometido: «Em mim se acabará tudo e nenhuma

cousa confessarei». O prometido não foi cumprido. Após muitas contradições, Filipa

Henriques denunciou as irmãs289

.

Entregue em Évora a 25 de Maio de 1588, dois dias depois Branca Henriques já se

encontrava a confessar que fora iniciada na crença na Lei de Moisés pela irmã Filipa

Henriques, havia então 20 anos. Referindo-se ao tempo da peste, quando buscou refúgio

nas cabanas no Moinho do Diabo, junto a Silves, na companhia da mãe e das irmãs, ela

delatou igualmente as primas Mor Estaça, Leonor Mendes, Branca Mendes e Beatriz

Fernandes, filhas de Baltazar Fernandes Estaço, com as quais partilhara o local de

“degredo”. Elas tinham sido presas ainda durante o ano anterior, exceptuando Branca

Mendes, que só entrou nos cárceres no mesmo tempo de Branca Henriques290

.

De facto, grande parte das acusações contra as Estaças, como eram conhecidas as

quatro irmãs em Vila Nova de Portimão, reportavam-se ao tempo em que estiveram nas

cabanas no termo de Silves. Segundo confessou Leonor Mendes, elas costumavam

reunir-se com as filhas de Beatriz Simões para guardarem os jejuns do thanis291

. A irmã

Beatriz Fernandes acrescentou que foi a própria Beatriz Simões quem sugeriu a prática

dos jejuns, esperando que, com isso, Deus as livrasse da peste. O Moinho do Diabo

também servira de refúgio ao marido de Beatriz Fernandes, João Rodrigues, e à mãe

287

Cf. ANTT, IE, proc. 8844. 288

Após a prisão de Filipa Henriques, as irmãs ficaram encarregues dos seus três filhos: Henrique Lopes,

Beatriz de Oliveira e Maria. Estes ficaram a viver na casa de Violante Lopes, em Lagos. (Cf. ANTT, IE,

proc. 5530). 289

Cf. ANTT, IE, proc. 5530. Filipa Henriques saiu no auto de 10 de Julho de 1588, com cárcere e hábito

penitencial perpétuos, sem remissão. A 22 de Novembro de 1590, era-lhe retirado o hábito e mandada em paz. 290

Cf. ANTT, IE, proc. 11315. O processo de Branca Henriques encontra-se incompleto e, assim,

desconhecemos o seu desfecho. 291

Cf. ANTT, IE, proc. 1548.

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deste, Isabel Mendes. Nenhum dos dois ficou imune às denúncias. João Rodrigues foi

preso em 1588 e a mãe no ano seguinte292

.

Quase todas as mulheres que judaizaram nas cabanas no Moinho do Diabo foram

delatadas por um parente em comum, Manuel Fernandes Estaço, alfaiate natural de

Silves mas residente em Lagos. Também ele se apresentou perante Manuel Álvares

Tavares durante a visitação. Contou então que, na noite da morte da prima Isabel

Mendes, mãe das Estaças, tomou um cântaro quase vazio, entornou o que restava na rua

e encheu-o com água da chuva. Não teve nenhuma intenção judaizante, afirmou. Sem

conseguir convencer o visitador, Manuel Fernandes tornou-se num dos primeiros

cristãos-novos presos em Lagos após 1585. Já em Évora, confessou com relativa

prontidão (menos de um mês depois de ter entrado nos cárceres) que a prima Beatriz

Simões fora a sua primeira mestre na Lei de Moisés. Numa noite de São João, depois

das avé-marias, ele vira-a a deitar umas brasas acesas na água. Ao questioná-la porque o

fazia, a prima ter-lhe-ia respondido:

“[...] que sendo ele tão velho, que já devia saber aquilo e que o Senhor mandava

fazer aquilo na noite de S. João e Natal e que tempo era já, pois era tão velho, de ter

conhecimento do Senhor, o qual concedera a Moisés tudo o que lhe pedia pelos

bons jejuns e orações que fazia e que neste Senhor havia de crer e confiar, o qual

estava nos altos céus e não vinha à terra e que Nosso Senhor Jesus Cristo não era

Deus, nem era nada, e que era filho de Maria, a qual era tão pobre que não tinham

com quem casar e casou com um carpinteiro, e que o parira sem ser virgem e com

dores, como parira sua mãe a ele, confitente, e que, por isso, a lei dos cristãos não

era boa nem prestava para nada [...]”.293

Este foi o ensino tardio de Manuel Fernandes Estaço que, quando chegou aos

cárceres, contava já com mais de 50 anos de idade. Saiu reconciliado com cárcere e

hábito penitencial perpétuos no auto de 2 de Agosto de 1587. Nos anos seguintes, ainda

tentou a redução da pena, mas sem sucesso. As denúncias continuavam a chegar à mesa

– blasfémias, comportamento indecoroso, críticas à acção do Santo Ofício – e tal não

facilitava as suas pretensões. Em Setembro de 1595, o tribunal de Évora foi informado

que Manuel Fernandes havia partido para o Algarve sem a devida autorização. Faleceu

pouco tempo depois294

.

A confissão de Manuel Fernandes provocou a prisão doutras duas parentes: Inês

Martins e Isabel Jorge, filhas de Jorge Vaz Pequeno, piloto cristão-velho, e de Leonor

Mendes, cristã-nova. Segundo as duas irmãs, foi Beatriz Simões quem as iniciara – não

292

Cf. ANTT, IE, procs. 8735 e 8516. 293

Cf. ANTT, IE, proc. 6015. 294

Cf. Idem.

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rezariam o rosário a Nossa Senhora e só se encomendariam ao “Deus Grande”295

. Isabel

Jorge contou que, estando a vindimar numa vinha de Beatriz Simões, esta perguntara-

lhe se ela queria ser cristã-nova ou cristã-velha, aludindo ao facto de ser filha de um

casamento misto. Então, aconselhou-a “[...] que fosse cristã-nova porque seria muito

rica e que, para o ser, que havia de apertar-se e toucar-se nos dias de sábado e vestir-se

neles melhor que nos outros dias e que, às sextas-feiras à tarde, pusesse na candeia

torcidas novas [...]”296

. Uma outra irmã, Filipa Jorge, também teve a mesma mestre,

segundo referiu no seu processo inquisitorial297

.

Os processos revelam uma Beatriz Simões responsável pela iniciação de várias jovens

da sua família na crença e práticas da Lei de Moisés. E não só no tempo da peste. Porém,

a confissão e as abundantes denúncias que apresentou salvaram-na da pena máxima.

Os Gramaxo

Desde que se casou, Leonor de Sousa cozinhava a carne magra em cebola frita em

azeite, quando não tinha toucinho, e tirava a landoa do quarto traseiro da rês miúda.

Como o marido costumava chegar à sexta-feira, vindo de fora, ela tinha o hábito de

colocar lençóis lavados na cama nessas noites. Porém, nunca o fez com má intenção –

foi o que a própria Leonor de Sousa confessou perante o visitador a 1 de Junho de 1585.

Ela tinha sido previamente denunciada: guardava os sábados de trabalho e mantinha as

reservas alimentares prescritas pela Lei de Moisés298

. As irmãs Branca de Sousa e Ana

Gramaxo também se apresentaram no decorrer da visita inquisitorial. Na Quaresma

anterior, porque estava grávida e “por não perigar a barriga”, Branca de Sousa comera

carne. Durante a peste, por ocasião da morte de duas irmãs, dera panos novos para

295

Cf. ANTT, IE, proc. 5365. Inês Martins era casada com Vicente Gonçalves, cristão-velho, piloto da

carreira da Índia. Foi presa nos cárceres de Évora a 26 de Julho de 1587, tal como a irmã Isabel Jorge,

com a única denúncia de Manuel Fernandes. Saiu no auto de 10 de Julho de 1588, com cárcere e hábito

penitencial perpétuos. Enquanto estava presa, a sua filha Leonor Domingues, com apenas 15 anos de

idade, foi encarcerada em Évora a 11 de Outubro de 1589, depois de denunciada por Beatriz de Oliveira,

filha de Filipa Henriques. Saiu no auto de 31 de Março de 1591, com cárcere e hábito penitencial ao

arbítrio dos inquisidores (Cf. ANTT, IE, proc. 8088). 296

Cf. ANTT, IE, proc. 8654. Isabel Jorge, tal como a irmã, também era casada com um cristão-velho,

Estêvão Luís, marinheiro. Saiu no auto de 10 de Julho de 1588. Foi-lhe sentenciado cárceres e hábito

penitencial ao arbítrio dos inquisidores. Cinco dias depois, era-lhe tirado o hábito e mandada em paz. A 9

de Março de 1589, informava o Santo Ofício que iria viver para Setúbal, para junto da sogra. 297

Cf. ANTT, IE, proc. 7906. Segundo Filipa Jorge, Beatriz Simões frequentava muito a casa da irmã

Isabel. Numa ocasião, esta ensinou-lhe que deveria guardar os sábados e fazer o jejum da Rainha Ester.

Filipa Jorge foi presa a 22 de Agosto de 1589. Tal como as irmãs, era casada com um cristão-velho,

Jácome Martins, tanoeiro. 298

Cf. ANTT, IE, proc. 1491.

Page 81: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

81

amortalhar os corpos299

. A confissão de Ana Gramaxo, por outro lado, incidiu

substancialmente nos costumes alimentares e na indumentária dos sábados300

. Leonor e

Branca de Sousa entraram nos cárceres de Évora logo em 1586, enquanto Ana Gramaxo

só foi presa na vaga de 26 de Julho de 1587.

Branca de Sousa, depois de alguma resistência, acabou por confessar que fora

ensinada pela mãe. Primeiramente, denunciou as irmãs entretanto já falecidas, Violante

e Isabel Gramaxo, e só delatou as irmãs vivas nas últimas sessões. Quanto à irmã

Leonor, Branca propôs aos inquisidores que a colocassem na sua cela, para que a

pudesse “[...] encaminhar no que lhe convém [..]”. A proposta não foi aceite: “[...] foi-

lhe dito que trate ela de se encaminhar bem em suas cousas e descarregar de todo sua

consciência que o que parecer nesta mesa que convém pera salvação das almas se

proverá [...]”301

. As dúvidas de Branca de Sousa tinham um fundamento. Muitas

contradições e confusões pautaram a confissão de Leonor de Sousa e só sob tormento é

que ela adiantou algo mais para lá do que confessara durante a visitação302

.

Quando denunciou a outra irmã, Aldonça Gramaxo, Branca de Sousa disse que fora

“[...] como arrancar os olhos, por estar casada com Pero Jaques, cristão-velho [...]”303

.

Além de cristão-velho, Pero Jaques tinha uma posição social privilegiada: era almotacé

e vereador em Alvor. O estatuto do marido foi um argumento usado pela própria

Aldonça Gramaxo em sua defesa, mas sem o resultado esperado. Ela acabou por ceder e

delatou uma outra irmã, Isabel de Sousa, então a residir em Almodôvar304

.

As cinco irmãs pertenciam a uma importante família de homens de negócio de Vila

Nova de Portimão. Quer o pai, Nicolau Martins, quer os tios paternos Fernão e Nuno

Martins eram mercadores. O comércio consistia também na actividade dominante entre

os parentes maternos305

. Um dos tios, Álvaro Gramaxo, emigrara para Cartagena das

Índias por volta de 1583, onde fez fortuna no tráfico negreiro306

.

299

Cf. ANTT, IE, proc. 7912. 300

“[...] tira o sebo à carne todo o que pode, por haver nojo dele, e, quando coze galinha ou perdiz e

não tem toucinho, deita na panela azeite frito com cebola para lhe dar sabor [...]”;“[...] aos sábados,

quando vai fora, põe touca lavada na cabeça, para ir limpa, como faz também nos outros dias quando

vai fora [...]”. (Cf. ANTT, IE, proc. 767). 301

Cf. ANTT, IE, proc. 7912. 302

Cf. ANTT, IE, proc. 1491. 303

Cf. ANTT, IE, proc. 7912. 304

Cf. ANTT, IE, proc. 4605. 305

Os tios Diogo Fernandes Gramaxo e Jorge Gramaxo eram mercadores, o primeiro em Beja, o segundo

em Vila Nova de Portimão. Também o avô, Luís Fernandes, fora mercador. 306

Cf. Maria da Graça Ventura, Portugueses no Peru ao Tempo da União Ibérica: Mobilidade,

Cumplicidades e Vivências, vol. I, tomo II, Lisboa, IN-CM, 2005, p. 397. Numa relação dos cristãos-

novos ausentes do reino, em 1613, ele é apresentado com um mercador de 60 anos, que vivia na Laguna

Page 82: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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Os Gramaxo tornaram-se numa das famílias mais atingidas nesta vaga de prisões.

De facto, as prisões não se esgotaram nas cinco filhas de Nicolau Martins. Com Leonor

de Sousa, foi presa a prima Inês Gramaxo, também denunciada durante a visitação. Era

acusada de ter dado um pano novo para servir de mortalha ao corpo da sua mãe, Isabel

Gramaxo, falecida durante a peste307

. Dois anos depois, a Inquisição prendia a sua irmã

Aldonça Gramaxo, denunciada pela prima Isabel de Sousa por guardar os sábados de

trabalho. Aliás, a confissão de Isabel de Sousa esteve na origem da prisão de outras duas

primas, filhas do tio paterno Nuno Martins, Catarina e Beatriz Gonçalves, entregues nos

cárceres de Évora a 20 de Março de 1591308

.

Apesar desta sequência de prisões, confissões e denúncias aparentemente se

circunscrever aos círculos femininos, a verdade é que os cônjuges de algumas das

Gramaxo não ficaram incólumes à repressão inquisitorial. Logo durante a visitação de

1585, Fernão de Álvares Gramaxo, marido de Inês Gramaxo, foi denunciado309

.

Tinham-no visto a escarrar no chão da igreja de São Francisco, em Vila Nova de

Portimão. Porém, outra acusação conduziu-o aos cárceres – a da sobrinha Mor Álvares.

A 22 de Agosto de 1589, Fernão de Álvares entrava nos calabouços de Évora. Filho de

Álvaro Gomes, relaxado à justiça secular em 1561, ele vivera durante mais de 30 anos

em Cádis e servira como militar na praça de Mazagão. Na sua defesa, Fernão de Álvares

apresentou uma carta de D. Francisco de Mendonça Furtado, governador de Mazagão, a

qual testemunhava o seu zelo cristão e os serviços prestados durante o tempo em que

esteve na praça310

. Estes argumentos revelaram-se suficientes para sair reconciliado com

cárcere ao arbítrio dos inquisidores.

Uma das testemunhas contraditadas por Fernão de Álvares Gramaxo foi o sobrinho

Francisco Nunes de Sousa, casado com Ana Gramaxo. Devido aos negócios, Francisco

Nunes, o Bruxo, vivia em constante périplo entre o Algarve e Castela. Segundo o

testemunho da irmã Mor Álvares, principal responsável pela sua prisão, ele prometera-

do Malacaio, em Terra Firme, e com uma fortuna avaliada em 5 ou 6 mil cruzados (Cf. ANTT, TSO, CG,

mç. 7, doc. 2618, fl. 1). 307

Cf. ANTT, IE, proc. 8925. 308

Cf. ANTT, IE, procs. 4754 e 5994. Saíram ambas no auto de 31 de Março de 1592, reconciliadas com

cárcere e hábito penitencial ao arbítrio dos inquisidores. 309

Inês Gramaxo tinha sido casada, em primeiras núpcias, com um cristão-velho, Fernão Gil, de quem

teve dois filhos, Fernão Gil e Luís Afonso. 310

Refere a carta que Fernão de Álvares Gramaxo “[...] procedeu em todas as cousas de serviço de Deus e

de Sua Majestade, como foi mandar avisos no tempo do cerco e cativos com mouros, dando-lhe, para isso,

seu dinheiro, e outros que ordenavam fugirem, os metia em sua casa e lhes tirava os ferros e encaminhava

com alforjes para o caminho e persuadiu muitos elches que se tornassem à fé, os quais se aqui lançaram per

sua ordem e a cativos que se queriam tornar elches lhes acudia com dádivas para os sustentar na fé, pondo-se

a muito risco de perder sua fazenda e juntamente a vida [...]” (Cf. ANTT, IE, proc. 5071).

Page 83: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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lhe que se apresentaria perante a Inquisição de Sevilha, algo que nunca chegou a fazer.

Aliás, Francisco Nunes não confessou nenhuma prática judaizante durante o período de

mais de dois anos em que esteve preso. E as acusações multiplicavam-se. Frei Luís de

Portalegre, do mosteiro de Nossa Senhora da Esperança, em Vila Nova de Portimão,

contou que fora abordado por ele e pelo Licenciado João Fernandes Quaresma, os quais

lhe mostraram um papel com as acusações pronunciadas contra uma sua parente presa

em Évora e pediram-lhe que interrogasse sobre o assunto uma mulata, criada de uma

mulher conhecida como a Solimoa. Chamada à mesa, a dita mulata acabou por implicar

ainda mais profundamente Francisco Nunes, ao afirmar que ele a visitara em sua casa e

a tentara persuadir a testemunhar que as acusações escritas no tal papel eram falsas. Em

troca, prometeu-lhe “uma boa peça”. Apesar destas denúncias, Francisco Nunes foi

reconciliado. Em Novembro de 1593, conseguiu uma licença para ir a Castela, onde,

segundo alegou aos inquisidores, tinha muitas contas e escrituras de obrigações em

aberto311

.

Mas as consequências da opressão inquisitorial sobre esta família de Vila Nova de

Portimão ultrapassaram as detenções. Vê-lo-emos mais à frente312

.

A mezinha do mau-olhado

Diogo Lopes, ferreiro residente em Vila Nova de Portimão e um dos primeiros

cristãos-novos presos após a visitação de 1585, denunciou a própria esposa. Numa

ocasião, para “lhe tirar a calma”, Joana de Barros aplicara-lhe uma mezinha:

“[...] quando a dita sua mulher lhe fez aquela cerimónia para a calma, que tomou

três tigelas com água e lhe deitou em cada uma certas gotas de azeite que lhe

parece que eram três em cada uma delas e, depois, acendeu umas estopas e

apagava-as na tigela com água e, depois, punha a tigela assim com as estopas

apagadas sobre a cabeça dele, declarante, e o mesmo lhe tornou a fazer com a

segunda e a terceira tigela, dizendo em cada uma delas certas palavras que ele, ao

presente, não lembra, nem as ouvia quando a dita sua mulher lhas dizia [...].”313

311

Cf. ANTT, IE, proc. 8783. Francisco Nunes de Sousa abjurou de vehementi no auto de 31 de Maio de

1592 e foi condenado a cárcere ao arbítrio dos inquisidores. 312

Vide infra, pp. 186-190. 313

Cf. ANTT, IE, proc. 2871. Diogo Lopes foi preso a 25 de Março de 1586. Saiu no auto de 2 de Agosto

de 1587, sendo-lhe sentenciado cárcere e hábito penitencial perpétuos. Depois de reconciliado, chegaram

à mesa mais acusações: andava sem hábito penitencial e criticava publicamente a actuação do Santo

Ofício. Por essa razão, em 1592, foi preso na cadeia pública de Évora. Porém, a 14 de Dezembro de 1594,

tiraram-lhe o hábito penitencial e mandaram-no em paz.

Page 84: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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Segundo Diogo Lopes, Joana de Barros tinha-se apresentado ao visitador em 1585.

Porém, não encontrámos nenhum registo que o comprove. Apenas sabemos que, em

1587, e na sequência da denúncia do marido, ela foi presa.

Mas afinal, que cerimónia era esta? Os processos revelam que alguns membros da

família de Joana de Barros, sobretudo as mulheres mais velhas, executavam-na. Além de

Joana, outras duas parentes seriam praticantes e mestres da cerimónia: a cunhada Grácia

Lopes e a irmã Beatriz de Barros. As três mulheres rondavam então os 50 anos de idade.

Durante a peste, enquanto esteve nas cabanas de Silves, Beatriz de Barros adoeceu e a

sua filha Branca Vaz tentou fazer-lhe a “mezinha do olhado”, mas foi incapaz de

completá-la. Branca Vaz acabou presa pelo Santo Ofício, tal como o pai, Cristóvão

Rodrigues, e a maior parte dos irmãos. A irmã mais velha, Grácia Rodrigues, fora a

principal denunciante da família314

. Só as irmãs mais novas, Joana e Catarina, então ainda

muito jovens, e o irmão Manuel de Barros, ausente do reino, escaparam ao cárcere315

.

O patriarca, Cristóvão Rodrigues, era sapateiro e costumava circular entre o Algarve

e a Andaluzia, em negócios. Segundo confessou perante a Inquisição de Évora, foi num

desses périplos pelo sul de Castela que tomou o primeiro contacto com a Lei de Moisés.

Por volta de 1564, esteve durante 14 dias em Cádis, hospedado na casa de um mercador

natural de Tavira, João Dias, o qual foi o seu mestre. Quando regressou a Vila Nova de

Portimão, viu a sua sogra a tirar a gordura à carne do mesmo modo que testemunhara na

casa de João Dias. Cristóvão Rodrigues interpelou-a e a sogra confirmou que tal era

uma cerimónia da “Lei Velha”. No Algarve, Cristóvão continuou a manter alguns

rituais, sobretudo dentro do círculo familiar316

. A sobrinha Beatriz Lopes, presa em

1592, recordou a forma como o tio doutrinava a família: “[...] lia por um livro que era a

Bíblia e dizia ali que a Lei de Moisés era a boa e com esta haviam de salvar e quem

tivesse crença nela seria rico e que, por guarda da dita lei, haviam de guardar os sábados

314

O processo de Grácia Rodrigues encontra-se desaparecido. O pai e os irmãos Francisca de Barros,

Maria da Conceição, António de Barros e Branca Vaz entraram nos cárceres de Évora a 20 de Novembro

de 1590 (Cf. ANTT, IE, procs. 6009, 2437, 7856 e 8933. Desconhece-se o paradeiro do processo de

Branca Vaz). Dos irmãos presos, Belchior de Barros foi o único que não chegou ao cárcere devido a uma

denúncia de Grácia Rodrigues. Ainda muito jovem no momento em que os pais e os irmãos foram presos,

com cerca de 12 anos, Belchior acabaria por se apresentar em Évora dois anos depois, a 6 de Junho de

1592. Saiu no auto de 12 de Junho de 1594, reconciliado com cárcere e hábito penitencial ao arbítrio dos

inquisidores (Cf. ANTT, IE, proc. 8973). 315

Maria da Conceição confessou que a irmã Francisca de Barros tentara convencê-la a não denunciar o

irmão Manuel de Barros. As duas partilhavam a cela e Francisca ter-lhe-ia dito “[...] que não diga o que

passou acerca da lei de Moisés com seu irmão Manuel de Barros e que diga, nesta mesa, que há dez anos

que se foi para a Índia e que não comunicou com ele nada da dita lei de Moisés [...]”, acrescentando que

ela própria nunca o denunciaria “[...] porque estava na Índia muito rico e que viria pouco brio nela [...]”.

(Cf. ANTT, IE, proc. 7856). 316

Cf. ANTT, IE, proc. 6009.

Page 85: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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de trabalho e vestir neles camisa lavada [...]”317

. Beatriz Lopes era filha de Branca

Rodrigues, irmã de Cristóvão. A 9 de Maio de 1592, ela e quatro dos seus seis irmãos –

Luís Fernandes, Isabel Lopes, Pedro Fernandes e Margarida Lopes – entraram nos

cárceres de Évora318

. No mesmo dia, também foram presas as primas Maria e Catarina

Lopes, denunciadas pela mãe, Clara Álvares, irmã de Cristóvão Rodrigues319

. Foram

processos curtos, que duraram menos de um mês (exceptuando Margarida Lopes,

saíram todos no auto de 31 de Maio), com confissões circunscritas ao meio familiar.

A prática da mezinha do mau-olhado não era exclusiva da família Barros de Vila Nova

de Portimão. Em Lagos, Branca Simões acusou a mãe, Beatriz Lopes, também ela uma

quinquagenária, de lhe fazer a “cerimónia do olhado” quando tinha dores de cabeça320

.

Francisco Lopes Sardinha, sapateiro natural de Vila Nova de Portimão e residente em

Lagos, confessou que, numa ocasião, estando doente, foi assistido por Leonor Fernandes, a

qual praticou “[...] uma mezinha com tigelas que era da Lei de Moisés [...]”321

.

A associação desta cerimónia a uma prática judaizante não é clara. Diogo Lopes, só

depois de muito pressionado pelo inquisidor Lopo Soares de Albergaria é que a

identificou como tal322

. Por outro lado, Joana de Barros nunca o fez. Segundo disse, a

cerimónia ter-lhe-ia sido ensinada por uma cigana. As únicas palavras que pronunciava

durante a prática eram ditas no final e resumiam-se a: «Esta deito por mal olhar e esta

por mal falar e esta por mal quedar»323

. Porém, a sua irmã Beatriz de Barros referiu que

tinha aprendido a mezinha com Grácia Lopes e que, enquanto deitava as gotas de azeite

nas tigelas, recitava a seguinte oração: «Em nome de Adonai, em nome de Abraão, em

nome de Isaac»324

.

Esta invovação é o único elemento que estabelece um elo entre a dita cerimónia do

mau-olhado e o criptojudaísmo. Os elementos utilizados, o azeite e a água, eram

317

Cf. ANTT, IE, proc. 7911. 318

Cf. ANTT, IE, proc. 8397, 7331 e 8948. O processo de Margarida Lopes encontra-se desaparecido. O

irmão João Fernandes, mareante residente em Tavira, só foi preso em 1600 (Cf. ANTT, IE, proc. 8928).

Relativamente à outra irmã, Maria Lopes ou Maria das Neves, a mais nova da família, não se conhece

nenhum processo. 319

Cf. ANTT, IE, proc. 642 e 7711. Clara Álvares foi presa em 1591 e saiu no mesmo auto de 31 de Maio

de 1592, com cárcere e hábito penitencial perpétuos (Cf. ANTT, IE, proc. 10546). Ainda durante o ano de

1591, foram detidos Francisco Lopes e João Rodrigues, respectivamente filho e irmão de Clara Álvares

(Cf. ANTT, IE, proc. 7531. Desconhece-se o paradeiro do processo de João Rodrigues). 320

Cf. ANTT, IE, proc. 8086, fl. 13v. 321

Cf. ANTT, IE, proc. 7531. 322

Cf. ANTT, IE, proc. 2871. 323

Cf. ANTT, IE, proc. 8541. 324

Cf. ANTT, IE, proc. 8185. O processo de Beatriz de Barros está desaparecido. Esta referência

encontra-se no traslado das culpas de Grácia Lopes.

Page 86: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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correntes nas benzeduras e remédios populares325

. Além do mais, é no quadro das crenças

populares que determinados sintomas aparecem associados a uma origem sobrenatural,

como o mau-olhado326

.

Contudo, os inquisidores continuaram a insistir na identificação da mezinha com

práticas judaizantes. A “qualidade” dos praticantes indiciava-o. E não era a primeira vez

que a ouviam associada à crença na “Lei de Moisés”. Em 1560, presa nos cárceres da

Inquisição de Évora, Catarina Mendes, a mãe de Grácia Mendes de Vila Nova de

Portimão, narrou o que costumava fazer quando a filha se queixava de dores de cabeça –

lambia-lhe a testa por três vezes, dizendo «Eu te pari, eu te lambo, como lambe a vaca ao

seu nado», e depois tomava umas tigelas, onde lançava azeite com o dedo, rogando pelo

nome de Deus, de Abrão e de Arão. Fazia-o com intenção de judia, segundo afirmou327

.

Multiplicam-se as prisões em Vila Nova de Portimão

46 prisões em 1591 e 1592 – foram estes os anos mais dramáticos para os cristãos-

novos de Vila Nova de Portimão. Famílias inteiras entraram nos cárceres de Évora.

Alguns foram presos à primeira denúncia, outros havia anos que acumulavam

acusações. Era o caso de Margarida Fernandes que, logo durante a visitação de 1585, se

apresentou perante o inquisidor Manuel Álvares Tavares e denunciou as filhas de Isabel

Gramaxo, com quem tinha ligações de parentesco e partilhara o “degredo da peste”328

.

Desde 1588 que chegavam à Inquisição de Évora culpas contra Margarida Fernandes.

Porém, ela só foi presa em Março de 1591, com a filha Isabel Guterres. Ambas

resistiram à confissão e apresentaram vários artigos de contraditas. Isabel Guterres ainda

superou a mãe na relutância em admitir práticas judaizantes e só sob tormento

confessou ter sido ensinada por Inês Nunes, cristã-nova relaxada pela Inquisição de

325

O azeite representava a pureza, a prosperidade e o espirito divino e entendia-se que teria propriedades

curativas em doenças provocadas por espíritos e ares corruptos. A água era símbolo da vida e da

purificação. Vide José Pedro Paiva, Bruxaria e superstição num país sem “caça às bruxas”: 1600-1774,

2ª edição, Lisboa, Editorial Notícias, 2002, pp. 133-134. 326

Eram vários os sintomas do “mau-olhado” – febres altas, dores de corpo e de cabeça, ansiedade,

desmaios – e, como se vê, comuns a uma série de enfermidades. (Cf. Maria Benedita Araújo, A medicina

popular e a magia no Sul de Portugal. Contribuição para o estudo das correntes mentais e espirituais

(fins do séc. XVII a meados do séc. XVIII). Tese de doutoramento apresentada à Faculdade de Letras da

Universidade de Lisboa, Lisboa, 1988, exemplar policopiado, p. 56). 327

Cf. ANTT, IL, proc. 12909, fls. 36-36v. 328

Margarida Fernandes era nora de João Fernandes Campos, irmão de Luís Fernandes, pai da dita Isabel

Gramaxo (Cf. ANTT, IE, proc. 7330).

Page 87: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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Évora em 1588329

. Na sessão seguinte, voltou a hesitar. Mesmo assim, conseguiu

escapar à pena máxima e foi reconciliada com cárcere e hábito penitencial perpétuos,

sem remissão.

Tal como a mãe, Isabel Guterres fora denunciada pela tia Leonor Fernandes, presa

em Agosto de 1589 e cuja confissão provocou a prisão de vários parentes do marido,

Bartolomeu Dias330

. Aliás, desde 1591 que os cárceres de Évora eram povoados por

membros da família Dias. A 16 de Julho desse ano, era presa a matriarca, Constança

Dias, então com 70 anos. Ela apenas iniciou a confissão cerca de dois anos e meio

depois. Havia, então, cerca de 20 anos que fora ensinada pela mãe, Beatriz Ferreira. Um

ensino tão tardio, quando tinha já perto de 50 anos, não convenceu os inquisidores. As

sessões prolongaram-se, a confissão e as denúncias também. Saiu no auto de 12 de

Junho de 1594, sentenciada a cárcere e hábito penitencial perpétuos, sem remissão331

.

No momento em que Constança Dias começou a confessar, já parte da família

estava nos calabouços. A filha Catarina Dias, entregue na Inquisição de Évora a 20 de

Março de 1591, junto com tantos outros cristãos-novos de Vila Nova de Portimão,

esteve presa durante mais de 5 anos. Arrancada a ferros, a sua confissão estendeu-se por

várias sessões e acabou por ser tão infértil em novas denúncias quanto a da mãe.

O mesmo já não se poderá dizer das delações da prima Catarina Dias, presa na

mesma altura. Ela chegou aos cárceres na companhia da irmã Isabel Mendes, ambas

denunciadas pela tia Leonor Fernandes332

. As duas eram filhas de Álvaro Dias, irmão de

Constança Dias. A confissão de Catarina Dias, também tardia e sob tormento, provocou

a prisão das primas Francisca Dias e Beatriz Vaz, filhas de Constança Dias333

. As duas

foram também delatadas pelo irmão Gabriel Dias334

. Preso a 7 de Maio de 1592, não era

esta a primeira vez que a qualidade da sua fé levantava suspeitas. Anos antes, Gabriel e

a esposa, Branca Gonçalves, tinham sido acusados de comer carne em dias defesos. A 3

de Fevereiro de 1574, António Mimoso, vigário de Tavira e visitador, condenou-os ao

pagamento de 2 mil réis destinados a obras pias. Foi com estes antecedentes que Gabriel

329

O processo de Inês Nunes encontra-se desaparecido. Denunciada durante a visitação de 1585, foi uma

das primeiras cristãs-novas de Vila Nova de Portimão a ser presa, a 25 de Março de 1586. Era irmã de

Francisco Nunes de Sousa, marido de Ana Gramaxo. 330

Cf. ANTT, IE, proc. 8092. 331

Cf. ANTT, IE, proc. 11368. 332

Leonor Fernandes era casada com Bartolomeu Dias, tio paterno de Catarina Dias e de Isabel Mendes. 333

Cf. ANTT, IE, proc. 9034. Catarina Dias saiu no auto de 12 de Junho de 1594, reconciliada com

cárcere e hábito penitencial perpétuos. A 11 de Agosto desse mesmo ano, recebia autorização para ir

cumprir a pena em Vila Nova de Portimão. Acabaria por falecer a 28 de Dezembro de 1605. 334

Cf. ANTT, IE, procs. 6441 e 9329.

Page 88: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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Dias chegou aos cárceres. Ele não hesitou em confessar, o que lhe valeu uma pena mais

leve do que a aplicada à maior parte dos seus parentes. Profícuo nas denúncias, Gabriel

conduziu outros elementos da família aos calabouços da Inquisição de Évora, entre eles

o sobrinho Henrique Dias, filho de Catarina Dias, seu aprendiz no ofício de sirgueiro335

.

Aliás, Henrique havia sido criado na casa do tio desde tenra idade e foi ele quem lhe

ensinou, além do mester, os primeiros preceitos da Lei de Moisés336

. Quando foi preso,

a irmã Maria Fernandes já se encontrava encarcerada337

. Mais tarde, em 1596, uma

outra filha de Catarina Dias, Perpétua Fernandes, foi detida338

.

Mas regressemos a Leonor Fernandes, a grande delatora da família Dias. A partir

das suas denúncias, começou o calvário de um outro ramo desta prole, cujo patriarca era

Diogo Dias, então já falecido339

. A 9 de Maio de 1592, entravam nos cárceres de Évora

a filha Beatriz Dias, a nora Maria Rodrigues e a neta Catarina Dias. Beatriz Dias fora

acusada por Leonor Fernandes de praticar os jejuns judaicos. Na sua confissão, contou

que fora ensinada por Margarida Fernandes (irmã de Leonor Fernandes). Quanto a

Maria Rodrigues e à filha Catarina Dias, elas entraram nos cárceres na sequência das

denúncias de Inês Fernandes e de Grácia Lopes, filhas de Pedro Fernandes, o Branco.

No final de 1592, poucos eram os elementos da família deste rendeiro de Vila Nova de

Portimão que se encontravam em liberdade.

Pedro Fernandes nasceu em Azamor mas, ainda muito jovem, partiu com os pais

para Tavira, de onde era natural a sua família. Antes de ser rendeiro, fora alfaiate. Em

Vila Nova de Portimão, casou-se com Grácia Lopes, de quem teve 10 filhos. Todos

acabaram presos pela Inquisição, exceptuando o único filho varão, João Lopes, ourives,

casado em Tavira e a viver na Guiné no início dos anos 90.

A mulher de Pedro Fernandes, Grácia Lopes, foi a primeira a ser presa, em Março

de 1591, após a denúncia de Beatriz de Barros, esposa de Cristóvão Rodrigues. Ela

tinha ligações familiares aos Barros – era irmã de Diogo Lopes, o marido de Joana de

335

Cf. ANTT, IE, proc. 8789. Gabriel Dias saiu no auto de 12 de Junho de 1594 e, pouco mais de quatro

meses depois, foi-lhe levantada a pena. A sua esposa, Branca Gonçalves, também acabaria por ser presa,

em 1594. Porém, o seu processo encontra-se desaparecido. Eles eram pais de Gaspar Fernandes de Leão

que, em 1619, foi preso pela Inquisição de Évora. (Cf. ANTT, IE, proc. 12326). 336

Cf. ANTT, IE, proc. 11297. Henrique Dias saiu no auto de 12 de Maio de 1596, reconciliado com

cárcere e hábito penitencial perpétuos. 337

Cf. ANTT, IE, proc. 9186. Maria Fernandes foi reconciliada com cárcere e hábito penitencial

perpétuos, sem remissão, no auto realizado a 12 de Junho de 1594. 338

Cf. ANTT, IE, proc. 9690. Perpétua Fernandes foi entregue nos cárceres de Évora a 30 de Abril de

1596. Foi-lhe sentenciado cárcere e hábito penitencial ao arbítrio dos inquisidores. 339

Diogo era primo direito de Bartolomeu Dias, marido de Leonor Fernandes.

Page 89: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

89

Barros340

. Ainda em 1591, no mês de Novembro, entravam nos cárceres duas das suas

filhas mais velhas, Branca Lopes e Inês Fernandes, ambas casadas com cristãos-

velhos341

. Estes primeiros processos culminaram nas prisões do pai e das restantes

irmãs. Todos deram entrada nos calabouços da Inquisição de Évora a 9 de Maio de

1592, exceptuando Ana Fernandes, presa em Novembro342

.

Quase um ano após a prisão, Pedro Fernandes começou a confessar. Fora a esposa

quem o ensinara, dizendo que “[...] se ele, confitente, se queria salvar, lhe era necessário

passar-se à dita Lei de Moisés e crer nela e não na Lei de Cristo Nosso Senhor, o qual não

tivesse por Deus, nem por Messias, antes esperasse por ele [...]”343

. Grácia Lopes teria

sido a mestre da família. Quase todas as filhas referem a iniciação no seio familiar, junto

dos pais e das irmãs. Isabel Lopes foi a excepção. Ela confessou que ouviu falar na Lei de

Moisés, pela primeira vez, na casa de Cristóvão Rodrigues, pela voz de Branca Vaz344

.

As confissões de Pedro Fernandes e das filhas evidenciam uma certa coerência: os

denunciados são praticamente os mesmos, as referências temporais e espaciais também

não variam muito. Afinal, ele e a maior parte das filhas tinham sido presos em

simultâneo. Ora, nos dias de viagem que separam Vila Nova de Portimão de Évora,

houve oportunidade de combinar testemunhos. Catarina Fernandes chegou mesmo a

referir que o pai a tentara convencer a não confessar:

“[...] em um dia, que lhe não lembra qual era, vieram ter a um lugar, que outrossim

não é acordada como se chamava, a jantar e, estando aí, seu pai as apartou a todas,

tirando a dita Beatriz Fernandes, que se não achou então na dita companhia, e lhes

disse que não confessassem suas culpas nesta mesa, ainda que lhas perguntassem e

que negassem porque ele havia de fazer o mesmo [...].”345

A única irmã que, segundo Catarina Fernandes, não teria ouvido as recomendações

do pai foi a única a segui-las. Beatriz Fernandes permaneceu irredutível e dos seus

lábios não saiu uma única confissão ou denúncia. Acabou relaxada à justiça secular, no

auto de 12 de Junho de 1594346

.

340

Cf. ANTT, IE, proc. 8185. 341

Cf. ANTT, IE, procs. 6984 e 875. 342

Cf. ANTT, IE, procs. 5259, 7357, 11123, 7973, 9345, 9261, 3134 e 4606. 343

Cf. ANTT, IE, proc. 5259. 344

Cf. ANTT, IE, proc. 11123. 345

Cf. ANTT, IE, proc. 8261. 346

Cf. ANTT, IE, proc. 7357.

Page 90: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

90

A vaga extingue-se

Nos anos finais da década de 90, o número de prisões no Algarve começou a entrar

em queda. Porém, continuavam a chegar denúncias que revelavam como a Inquisição,

apesar das prisões efectuadas superarem a centena, ainda deixara algumas pontas soltas

em Vila Nova de Portimão. A 25 de Junho de 1597, apresentou-se Frei António

Rodrigues, dominicano natural de Elvas, então a cumprir o degredo na galé Fortaleza.

Ele fora ermitão na ermida de Santa Catarina de Ribamar, em Vila Nova de Portimão,

por volta de 1587. Nesse tempo, testemunhou como os dois frades que o acompanharam

até ao Algarve, onde tomaram o hábito franciscano, Frei Martinho e Frei Tomé,

frequentavam a casa de António da Palma, paredes meias com o mosteiro que lhes

servia de residência. Ali, os dois ensinavam a Lei de Moisés a outros cristãos-novos: a

mulher de António da Palma, Inês Dias, e as filhas; Duarte Nunes, mercador de panos, e

a mulher, conhecida como a Formosinha; Inês Dias, padeira; António Toirelo e a sua

mulher, Branca Delgada. Passado um ano, Frei Martinho partiu para Lagos, onde,

segundo lhe confidenciou mais tarde, teria conseguido converter à fé judaica uma

fidalga, D. Joana Pinta347

. Nenhum dos cristãos-novos de Vila Nova de Portimão

nomeados por Frei António Rodrigues foi preso. Pelo menos, não há registo de tal.

Três anos mais tarde, a 10 de Agosto de 1600, um grupo de cristãos-novos algarvios

chegou aos cárceres da Inquisição de Évora. Entre eles, estava Violante Quaresma, de

Vila Nova de Portimão, casada com António Rodrigues, rendeiro, e denunciada pelo

irmão Simão Álvares, preso 6 anos antes348

. A denúncia remontava a 27 de Setembro de

1597, mas ela só foi detida quase 3 anos depois. O facto da confissão do irmão ter

inspirado pouco crédito, o que conduziu à aplicação da pena máxima, teria pesado para

o prolongamento deste período entre a denúncia e a prisão. Além do mais, era a única

acusação contra Violante Quaresma que, sem confessar e tendo apresentado uma sólida

defesa, acabou por ser posta em liberdade a 17 de Agosto de 1602, depois de abjurar de

levi na Igreja de São João, em Évora.

Os outros cristãos-novos do Algarve que entraram no cárcere inquisitorial no

mesmo momento de Violante Quaresma e que aparecem citados no seu processo eram:

Guiomar Gonçalves, mulher de Manuel Lopes, sirgueiro; Duarte Dias, sirgueiro; João

347

Cf. ANTT, IL, proc. 367, fls. 3-3v. A denúncia de Frei António Rodrigues é também citada em

António Baião, “A Inquisição em Portugal e no Brasil”, Archivo Historico Portuguez, vol. VIII, Lisboa,

[s.n.], 1910, pp. 54-55. 348

Cf. ANTT, IE, proc. 10250. Simão Álvares foi relaxado à justiça secular no auto celebrado a 28 de

Setembro de 1597.

Page 91: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

91

Fernandes, irmão de Maria das Neves; e André Lopes, filho de Francisco Lopes,

ferreiro349

. Não consegui encontrar os processos de nenhum dos quatro. Porém,

confrontando com outros documentos, foi possível identificá-los, excepto a Guiomar

Gonçalves.

Duarte Dias era filho de Álvaro Dias e de Violante Mendes e pertencia à família Dias

de Vila Nova de Portimão350

. Quanto a João Fernandes, filho de Afonso Fernandes e de

Branca Rodrigues, era mareante e estivera cativo em Marrocos351

. Tal como os seus

irmãos Isabel Lopes, Beatriz Lopes e Luís Fernandes, ele fora denunciado por Cristóvão

Rodrigues e por outros elementos da família Barros352

. Contudo, ao contrário deles, João

escapou à prisão em 1592353

. Desconhecemos o porquê do seu processo só se ter iniciado

em 1600, mas talvez tenha pesado o facto dele então residir em Tavira, ao contrário dos

irmãos, detidos na sequência da vaga de prisões em Vila Nova de Portimão.

O outro cristão-novo preso com Violante Quaresma, André Lopes (ou André

Rodrigues), era sobrinho de Pedro Fernandes, o Branco. Quer o pai, Francisco Lopes,

quer os irmãos Francisco Rodrigues e Maria Rodrigues tinham sido presos pelo Santo

Oficio nos anos anteriores354

. Contudo, não encontrei qualquer denúncia contra ele.

Portanto, a maior parte do grupo pertencia aos núcleos familiares mais atingidos na

última vaga de prisões. Tratou-se de uma derradeira incursão do Santo Ofício, com vista

a deter os poucos elementos dessas famílias que haviam escapado às suas malhas. A

partir de então e até ao perdão geral de 1605, só conhecemos os processos de três

cristãos-novos residentes no Algarve – Filipe da Costa, Iria Lopes e Maria das Neves.

Os três eram naturais do Alentejo e foram presos por acusações que remontavam ao

tempo em que viviam fora do Algarve. Filipe da Costa, oriundo de Évora, havia cerca

de três anos que se estabelecera em Tavira355

. Similar era a situação de Iria Lopes,

natural de Messejana, que foi para Loulé quando se casou com Rui Dias, lavrador

cristão-velho, por volta de 1600, e, dois anos mais tarde, era presa pela Inquisição de

Évora356

. Pela mesma altura, foi detida Maria das Neves, em Castro Marim. Ela era

349

Cf. ANTT, IE, proc. 8928. 350

Vide, em anexo, genealogia 14, p. 147. 351

Cf. ANTT, IE, proc. 8928. 352

Cf. ANTT, IE, procs. 7331, 7911 e 8397. 353

Cf. ANTT, IE, procs. 2437, 3693 e 6009. Além de Cristóvão Rodrigues, João Fernandes foi também

delatado por Francisca de Barros e por Diogo de Barros. 354

Cf. ANTT, IE, procs. 7534 e 6446. 355

Cf. ANTT, IE, proc. 2666. Filipe da Costa saiu no auto de 9 de Junho de 1602, sendo-lhe sentenciado

cárcere e hábito penitencial ao arbítrio dos inquisidores. 356

Cf. ANTT, IE, proc. 2152.

Page 92: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

92

natural de Montemor-o-Novo, mas viveu durante muito tempo em Lisboa. Na sequência

de uma grande dívida contraída à fazenda real pelo marido, os dois fugiram para

Olivença e, mais tarde, estabeleceram-se em Aiamonte. Ali, tornaram-se próximos do

Marquês de Aiamonte, conseguindo, por sua intercessão, regressar ao reino357

. Tanto

Maria das Neves como Iria Lopes ainda permaneceram durante mais de dois anos nos

cárceres de Évora e só foram soltas na sequência do perdão geral de 1605.

Seguir-se-iam anos de calmaria.

3. 1600-1630: UM PERÍODO DE INTERREGNO?

“[...] No dito Agosto [de 1602], se vinha ela confitente a esta mesa confessar suas

culpas e acusar-se delas, como em efeito veio até à cidade de Beja, donde se tornou para

a vila de Loulé, por lhe dizerem uns homens, cujos nomes lhe não lembra, nem sabe se

eram cristãos-novos, se cristãos-velhos, que el-Rei Dom Sebastião vinha e que dava

perdão geral aos cristãos-novos [...]”358

– a confissão é de Iria Lopes, uma das últimas

vítimas da acção do Santo Ofício no Algarve antes do perdão geral de 1605. Destas

palavras intuímos o ambiente disseminado entre os cristãos-novos do reino, a

expectativa num futuro em que a repressão inquisitorial fosse apenas uma recordação.

No Algarve, essa esperança concretizou-se durante mais de 10 anos. Entre 1605 e 1617,

a única prisão registada na região foi a de Diogo Mendes, o Espada Larga, preso em 1615

na cidade de Lagos359

. Contudo, este processo partiu de acusações oriundas de Beja, sua

terra natal, e desenrolou-se sem implicar nenhum cristão-novo residente no Algarve.

Mesmo nos anos seguintes e até à década de 30, a acção do Santo Ofício na região

foi meramente pontual. A fraqueza com que o braço da Inquisição se fez sentir no

Algarve durante os anos 20 do século XVII constrasta com o vigor das prisões noutros

espaços do reino. Mas o mesmo já não se poderá dizer relativamente às primeiras duas

décadas de Seiscentos.

357

Cf. ANTT, IE, proc. 2275. 358

Cf. ANTT, IE, proc. 2152, fl. 13v. 359

Cf. ANTT, IE, proc. 6485.

Page 93: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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O perdão geral de 1605

A publicação do perdão geral representou o culminar de anos de negociações entre

os procuradores dos cristãos-novos, a corte de Madrid e a Santa Sé, sob a oposição

constante do Santo Oficio português. A partir do século XVII, a posição dos cristãos-

novos começou a ganhar terreno. Logo em 1601, D. Filipe III mandava suspender os

autos-de-fé – uma suspensão que apenas duraria até Maio do ano seguinte. Um alvará

publicado no mesmo ano proibia o uso da designação de judeu, marrano ou cristão-

novo. Em 1603, era revogada a lei que interditava a partida dos cristãos-novos do reino

e a alienação dos seus bens. Entretanto, a Igreja e, em particular, o Santo Ofício

português continuavam a pressionar a corte no sentido contrário. Foram emitidos

pareceres e memoriais que demonstravam o quão nefasto seria para o reino a concessão

do perdão geral. A partida em massa dos cristãos-novos, a qual sucederia ao

levantamento das proibições à sua saída, teria consequências desastrosas para as

finanças do reino. Afinal, era nas suas mãos que se encontrava grande parte dos

contratos e da actividade comercial. Contudo, tal não impediu que o rei acabasse por

ceder aos argumentos dos cristãos-novos e, sobretudo, à promessa do pagamento de

1700 mil cruzados num momento penoso para as finanças do Império. D. Filipe III

aceitou interceder perante o papa em favor da concessão do perdão. Tal marca um

momento de crise no Santo Ofício português e, em particular, na relação da instituição

com a coroa. Nos primeiros quatro anos de Seiscentos, sucederam-se quatro

inquisidores-gerais. Só quando D. Pedro de Castilho assumiu o cargo é que a situação

estabilizou.360

Na sequência do perdão geral de 1605, saíram dos cárceres 410 presos. Tal suscitou a

contestação popular nalgumas cidades, sobretudo nas que serviam de sede dos tribunais da

Inquisição361

. Romero Magalhães apresenta os números dos penitenciados oriundos do

Algarve a quem foi retirado o hábito penitencial em 1605: 7 estavam em Lagos, 20 em Vila

360

Sobre o perdão de 1605, vide: A. A. Marques de Almeida, “O Perdão Geral de 1605”, Primeiras

Jornadas de História Moderna, vol. II, Lisboa, 1986, pp. 885-898; José Marques, “Felipe II de Espanha

(I de Portugal) e a Inquisição portuguesa face ao projecto do 3º perdão geral para os cristãos-novos

portugueses”, Revista da Faculdade de Letras, II série, vol. X, 1993, pp. 177-203; Juan Ignacio Pulido

Serrano, Injurias a Cristo. Religión, política y antijudaísmo en el siglo XVII, Alcalá, Instituto

Internacional de Estudios Sefardíes y Andalusíes / Universidad de Alcalá, 2002, pp. 52-56; Idem, “Las

negociaciones con los cristianos nuevos en tiempos de Felipe III a luz de algunos documentos inéditos

(1598-1607), Sefarad, vol. 66, parte 2, Jul.-Dez. 2006, pp. 345-376; Ana Isabel López-Salazar Codes,

Inquisición Portuguesa y Monarquía Hispánica en tiempos del perdón general de 1605, Lisboa, Évora,

Alicante, Edições Colibri, CIDEHUS, Universidade de Alicante, 2010. 361

Cf. António Borges Coelho, Política, Dinheiro e Fé, Lisboa, Caminho, 2001, p. 133.

Page 94: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

94

Nova de Portimão, 5 em Faro e 1 em Silves362

. Estes dados traduzem bem quais haviam

sido os principais alvos da Inquisição nos anos anteriores.

No período que se seguiu ao perdão geral, a actuação inquisitorial foi incipiente em

todo o reino. No Algarve, nenhum cristão-novo foi preso até 1615. Porém, o início da

segunda década de Seiscentos marca uma nova fase da Inquisição portuguesa. A coroa

começava a recuar nas cedências à gente de nação363

. Por outro lado, o Tribunal do

Santo Ofício sofreu uma reestruturação. A publicação do Regimento de 1613 foi o

culminar desse processo. O novo regimento reflectia a experiência obtida durante as já

longas décadas de funcionamento da instituição e o aumento gradual da jurisdição

inquisitorial. Os poderes dos inquisidores foram amplificados e criados mecanismos

para uma actuação mais rápida e eficaz364

.

Nesse mesmo ano de 1613, o Santo Ofício fez circular pelas paróquias do reino um

inquérito para inventariar todos os cristãos-novos que, entretanto, se haviam ausentado

de Portugal. Registava-se o nome do ausente, a idade, a ocupação, as características

físicas, a parentela, o período de ausência e o destino365

. Relativamente ao Algarve,

encontramos dados sobre os ausentes de Lagos, Faro, Tavira e, em particular, de Vila

Nova de Portimão. Esses demonstram a relação entre os movimentos migratórios e a

repressão inquisitorial. Na lista de 1613, são citados vários elementos pertencentes às

famílias Barros e Gramaxo de Vila Nova de Portimão, duas das mais lesadas na última

vaga de prisões366

. As Índias de Castela foram o destino de eleição para quase todos367

.

362

Cf. Romero Magalhães, O Algarve Económico..., p. 365. O autor indica que estes dados são do

processo de Gregório Lopes, cristão-novo de Serpa, residente em Lagos, preso em 1600, o qual, devido ao

mau estado de conservação, não nos foi possível consultar. 363

Segundo Pulido Serrano, várias razões terão pesado para a mudança de atitude de Filipe II, entre as

quais estariam os parcos resultados conseguidos na conversão dos judaizantes, as dificuldades em cobrar

a quantia prometida pela gente de nação e as queixas relativas à sua emigração massiva (Cf. Pulido

Serrano, Injurias a Cristo..., p. 56). 364

Cf. López-Salazar Codes, Inquisición Portuguesa..., pp. 201-207; Elvira Cunha de Azevedo Mea,

“A resistência sefardita ao Santo Ofício no período filipino” , Cadernos de Estudos Sefarditas, n.º 2,

2002, pp. 52-54. 365

Vide, em anexo, pp. 357-363. 366

Além dos Barros e dos Gramaxo, outros cristãos-novos citados na dita lista também tinham um

passado familiar marcado pela repressão inquisitorial. Eram os casos de Gabriel Dias, mercador na

Laguna de Malacaio, ausente havia cerca de 20 anos, irmão de Beatriz Mendes e de Francisca Dias,

processadas pela Inquisição de Évora nos anos 90 (Cf. ANTT, IE, procs. 9130 e 9264); e de Henrique

Lopes de Leão, cirurgião que fora para o Brasil por volta de 1609 e cuja mulher, Catarina Dias, e a sogra,

Beatriz Dias, que o acompanharam na diáspora, haviam sido presas pelo Santo Ofício em 1596 e 1592,

respectivamente (Cf. ANTT, IE, procs. 1762 e 10494). 367

As excepções foram Jorge Fernandes Gramaxo, filho de Fernão Martins e de Isabel Gramaxo, que se

estabeleceu nos Rios da Guiné, e Domingos Quaresma, filho do Lic. João Fernandes Quaresma e de

Violante Quaresma, então a residir em S. Tomé (Cf. ANTT, TSO, CG, mç. 7, doc. 2618, fl. 3).

Page 95: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

95

No mesmo ano do inventário dos ausentes do reino, chegaram aos ouvidos do bispo

D. Fernão Martins Mascarenhas denúncias contra alguns cristãos-novos de Faro368

.

Eram eles: Marcos Rodrigues, mercador, e uma sua filha; Fernão Duarte, mercador;

Lopo Rodrigues; Pedro Machado, advogado, e a esposa; e Manuel Mendes do Óculo,

mercador. Acusavam-nos de blasfémia, de atentarem contra a Igreja e contra os cristãos-

velhos. De tais testemunhos não surtiu, de imediato, nenhuma prisão. O único dos

delatados preso nos anos que se seguiram foi Manuel Mendes do Óculo. As denúncias

de 1613 pesaram na sua detenção mas não a accionaram directamente369

. Dos restantes,

parte deles chegaria aos cárceres de Évora na vaga de prisões dos anos 30370

.

Durante o período em que D. Fernão Martins Mascarenhas esteve à frente da Sé de

Faro, foram presos 34 cristãos-novos no Algarve, a grande maioria na sequência da

entrada iniciada após a visitação de 1585. Em 1616, D. Fernão abandonava a cadeira

episcopal para assumir um cargo maior371

. O papa nomeara-o inquisidor-geral a 4 de

Julho desse ano, posição que ocupou até à data da sua morte, a 28 de Janeiro de 1628372

.

Ora, entre 1616 e 1627, a média de prisões de cristãos-novos no Algarve rondou as duas

por ano. A parcimónia destes números revela-se paradoxal face ao recrudescimento da

opressão sobre os cristãos-novos do reino nesse mesmo período – saíram sentenciados

2773 indivíduos nos autos-de-fé celebrados pelos três tribunais. Mesmo assim, a média

anual de prisões no reino acabaria por ser inferior à registada nos anos que se seguiram

à morte de D. Fernão Martins Mascarenhas373

.

Com a subida de D. Filipe IV ao trono, os cristãos-novos portugueses recuperaram a

esperança num novo perdão geral. O monarca mandara suspender todos os autos-de-fé e,

em 1621, reuniu-se uma junta em Madrid destinada a analisar os memoriais enviados pelos

368

Cf. ANTT, IE, liv. 227, fls. 305-308. 369

Cf. ANTT, IE, proc. 4613. 370

Fernão Duarte foi preso em 1634 (Cf. ANTT, IE, proc. 9546). No mesmo ano, era entregue nos

cárceres de Évora uma filha de Marcos Rodrigues, Maria de Tovar, possivelmente a mesma que foi

denunciada em 1613 (Cf. ANTT, IL, proc. 10564). O pai, Marcos Rodrigues, falecido em 1635, em

Sevilha, para onde fugira quando começaram as prisões em Faro, foi processado postumamente (Cf.

ANTT, IE, proc. 1460). Pedro Machado, que faleceu antes de 1631, nunca chegou a ser preso. Nesse ano,

a sua esposa, Ana Rodrigues, pagava a finta então lançada a todos os cristãos-novos do reino (Cf. Mendes

dos Remédios, Os Judeus em Portugal. Vicissitudes da sua história desde a época em que foram expulsos

até à extinção da Inquisição, vol. II, Coimbra, Coimbra Editora, 1928, p. 179). Também ela não chegou a

ser processada pela Inquisição. Lopo Rodrigues teria igualmente escapado às malhas do Santo Oficio. 371

Cf. “1616, Agosto, 23: Comunica ao Bispo do Algarve a nomeação para Inquisidor-Geral e pede-lhe

que parta para Lisboa o mais breve possível”, in Isaías Rosa Pereira, A Inquisição em Portugal. Séculos

XVI-XVII – Período Filipino, Lisboa, Veja, 1993, p. 84. 372

Vide Ana Isabel López-Salazar Codes, Inquisición y Política. El gobierno del Santo Oficio en el

Portugal de los Austrias (1578-1653), Lisboa, Centro de Estudos de História Religiosa, Universidade

Católica Portuguesa, 2011, pp. 56-73. 373

Cf. Romero Magalhães, E assim se abriu.., p. 20.

Page 96: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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representantes da gente de nação, nos quais eram criticados, com veemência, os rigores da

actuação inquisitorial. A concessão de um novo perdão geral não estava sobre a mesa mas,

mesmo assim, começaram a circular rumores sobre essa possibilidade374

.

Tais rumores chegaram até ao extremo sul do reino. Leonor Quitéria, cristã-nova de

Faro, foi acusada perante o padre João Lourenço Neto, prior da igreja de São Pedro e

comissário do Santo Ofício, de se insurgir contra a Inquisição. A 1 de Novembro de

1622, Maria Nunes, também ela cristã-nova, contou o que lhe ouvira dizer:

“[...] que já em Madrid estavam dois outros homens de nação para haverem licença

d‟el Rei para se queimar a Inquisição e a não haver e que antes de três meses se

havia de queimar e abrasar a Inquisição e que quanto nela se fazia era falso e que o

não faziam senão para lhe tomarem as fazendas [...].”375

As esperanças de Leonor Quitéria, tal como as de outros cristãos-novos portugueses,

saíram frustradas. No início de 1623, D. Filipe IV mostrava-se menos permeável às

petições da gente de nação. Contudo, tal não significou a sua rendição – memoriais

contra a acção do Santo Ofício continuaram a circular, muitos deles impressos e com

uma larga difusão. Por outro lado, os opositores também não cessaram as suas posturas.

Proliferavam, então, os escritos anti-judaicos.

Uma das vozes que mais se fazia ouvir era a do próprio inquisidor-geral. Em

Outubro de 1622, D. Fernão Martins Mascarenhas escrevia ao rei, afirmando que quase

todos os cristãos-novos do reino eram judeus secretos e que a sua influência na

economia e na sociedade portuguesas representavam um perigo eminente para o reino.

A solução proposta pelo inquisidor-geral passava pela expulsão de todos os cristãos-

novos reconciliados pela Inquisição, ou que tivessem abjurado de vehementi376

.

Quatro anos depois, D. Fernão já havia amenizado a sua posição. Em 1626, assinava

um parecer sobre os meios necessários para exterminar definitivamente o Judaísmo do

reino (Tratado sobre os varios meyos que se oferecerao a sua Magestade Catholica

para remedio do judaismo neste Reyno de Portugal), no qual propunha, por um lado,

um maior rigor na acção inquisitorial – a aplicação mais extensiva da pena máxima, o

desterro do reino de todos os suspeitos de Judaísmo, independentemente de terem culpa

provada ou não – mas, por outro, sustentava a livre saída dos cristãos-novos de

374

Cf. Pulido Serrano, Injurias a Cristo..., p. 76. 375

Cf. ANTT, IE, liv. 227, fl. 318. Maria Nunes é chamada a testemunhar perante o comissário do Santo

Ofício após o marido ter denunciado, pelas mesmas razões, Leonor Quitéria. Na mesma devassa, também

foi interrogada a sua mãe, Leonor Nunes, que assistiu ao dito episódio. Estas denúncias não provocaram

nenhum processo contra Leonor Quitéria. Ela acabaria por ser presa pela Inquisição de Évora vários anos

depois, em 1636, mas, no seu processo, não é feita qualquer menção às denúncias de Maria Nunes e do

marido em 1622. (Cf. ANTT, IE, proc. 5830). 376

Cf. Pulido Serrano, Injurias a Cristo..., pp. 78-79.

Page 97: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

97

Portugal, a reconciliação em segredo dos que se apresentassem livremente para

confessar os seus desvios (desde que sem denúncias prévias) e a cedência do título de

cristão-velho a quem provasse que, nas cinco ou sete gerações anteriores, nenhum

parente fora condenado por judaizar377

.

O zelo na actuação inquisitorial e a vigilância rigorosa sobre os cristãos-novos,

defendidos por D. Fernão Martins Mascarenhas, contrastavam com alguns rumores que

circulavam por Portugal e que chegaram até aos ouvidos do rei. Anos antes, na resposta

ao inquérito de 1613, quando ainda era bispo, já se insinuava a sua protecção face aos

cristãos-novos do Algarve378

. Note-se que, em 1598, no relatório que redigiu e enviou a

Clemente VIII sobre o estado da Igreja no Algarve, D. Fernão não fizera qualquer

referência ao problema dos judaizantes algarvios que, então, ainda povoavam em grande

número os cárceres da Inquisição de Évora ou circulavam pelas ruas de Lagos, Faro e

Vila Nova de Portimão envergando os seus hábitos penitenciais379

.

Em 1623, era apresentado na corte de Madrid um memorial anónimo atacando

veementemente a reputação do inquisidor-geral380

. Apesar de escrito em castelhano, o

autor seria português e, talvez, um ministro do Santo Ofício381

. O memorial acusava

D. Fernão Martins Mascarenhas de multiplicar a concessão de cargos inquisitoriais,

inclusivamente a quem não cumpria os requisitos exigidos – a limpeza de sangue,

sobretudo382

. De facto, uma das principais acusações consistia no alegado

favorecimento à entrada de cristãos-novos nos órgãos inquisitoriais. Dizia o memorial

que Belchior Veloso, secretário e homem de confiança de D. Fernão, vendia cartas de

familiares do Santo Ofício a cristãos-novos, o que resultara na multiplicação do

número de familiares com indícios de sangue hebraico. A sua excessiva proximidade

face ao inquisidor-geral e a influência que exercia sobre a máquina inquisitorial –

dadas as suas funções, tinha acesso à chave do arquivo do Conselho Geral e, como tal,

377

Cf. Pulido Serrano, Injurias a Cristo..., pp. 84-85. 378

Cf. Romero Magalhães, O Algarve Económico..., p. 367. 379

Cf. Nuno Beja, “Transcrição de documentos...”, AMF..., pp. 195-247. 380

Cf. Caro Baroja, Los Judíos en la España..., t. II, pp. 385-386; t. III, pp. 311-315. 381

Cf. López-Salazar Codes, Inquisición y Política..., pp. 66-67. A autora pondera a hipótese de Simão

Torresão ser o autor do memorial. Deputado da Inquisição de Coimbra, Simão Torresão fora deposto

deste cargo pelo próprio D. Fernão e remetido para Madrid, onde se encontrava na altura em que o dito

memorial fora redigido. 382

Já em 1620, o rei pedira explicações a D. Fernão Martins de Mascarenhas sobre a nomeação de

familiares super-numerários: “Fui informado que tendes feito nas Inquisições desse Reino muitos

familiares super-numerários, e porque não podendo elegê-los (como o sabeis), e em gozando eles de

isenções e privilégios de familiares causa novidade dizer-se que os criastes, e eu quero saber as razões

que houve para o fazer.” (Cf. Isaías Rosa Pereira, A Inquisição em Portugal. Séculos XVI-XVII – Período

Filipino, Lisboa, Vega, 1993, pp. 110-111).

Page 98: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

98

detinha informação privilegiada, da qual não hesitava a tirar proveitos pessoais,

segundo acusava o memorial – seria motivo de escândalo383

.

Ao longo de toda a sua carreira, D. Fernão Martins Mascarenhas fizera-se sempre

rodear de cristãos-novos. Assim alega o memorial, não sem debitar uma série de exemplos.

Cónego em Évora, ele tinha como criado Francisco de Aguilar de Gouveia, cristão-novo, a

quem favoreceu a entrada no cabido. Já em Coimbra, como reitor da Universidade, convivia

de perto com muitos cristãos-novos e, inclusivamente, relacionava-se com o Dr. António

Homem. Quando assumiu o episcopado algarvio, D. Fernão continuou a confiar e a fazer-se

acompanhar por gente de nação:

“Estando por obispo del algarue no se siruia de otros sino de los christianos nuebos

y asi la yglesia mayor esta llena de canonigos y beneficiados christianos nuebos

porque los canonicatos y benefiçios de obispado no los daba a otra gente que es una

lastima de ver y se tiene por cosa çierta que a ordenado de ordenes sacras mas de

siete mil christianos nuebos [...] En el mismo Reyno del Algarue comia de

ordinario con los christianos nuebos y se yua a holgar com ellos a las guertas y los

traya en su coche, y se paseaua com ellos por las calles y les aprouechaua tanto

quanto la haçienda de V. Magd. lo siente porque se valian de estos christianos

nuebos mercaderes para no pagar los drechos en las alfandegas de vra. magd.

diçiendo a los officiales de ellas que eran suyas el obispo y siendo asi que aunque

lo fuesen debian los derechos nadie se atrebia a contradicirlo [...].”384

Haveria algum fundamento nestas acusações? De facto, nas primeiras décadas de

Seiscentos, encontramos vários cristãos-novos no cabido de Faro: Jerónimo Baptista385

,

Sebastião Dias386

, Filipe de Barros e o sobrinho Pedro de Barros Carneiro387

, cónegos;

Pedro de Oliveira, quartanário388

; André de Sousa, bedel389

. Parte deles teria entrado no

cabido no tempo em que D. Fernão Martins Mascarenhas era bispo do Algarve.

383

Não obstante as suspeitas de ter parte de cristão-novo, Belchior Veloso foi habilitado a familiar do

Santo Ofício em 1616. Por ordem de D. Fernão Martins de Mascarenhas, as diligências para a sua

habilitação foram feitas em conjunto com as do irmão, Baltazar Teixeira, cónego da Sé de Faro. Eram

ambos naturais de Pinhel e residiam então em Faro (Cf. ANTT, TSO, CG, Habilitações, Baltazar, mç. 1,

doc. 19). A ascendência de Belchior Veloso no Algarve e, sobretudo, na hierarquia religiosa e

inquisitorial solidificara-se através de uma “apertada malha parental”, como classifica João de Figueirôa-

Rêgo. Só no cabido de Faro, Belchior Veloso tinha um irmão, Gaspar Veloso, arcediago de Lagos, e, anos

mais tarde, já na segunda metade do século XVII, um filho, o deão D. João Veloso Cabral. Além do mais,

era parente dos irmãos Lopo Soares de Castro e de Diogo Osório de Castro, o primeiro deputado da

Inquisição de Évora e, a partir de 1623, inquisidor do Tribunal de Coimbra; o segundo, inquisidor em

Lisboa desde 1626 (Cf. João de Figueirôa-Rêgo, «A honra alheia por um fio». Os estatutos de limpeza de

sangue nos espaços de expressão ibérica (sécs. XVI-XVIII), Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian /

Fundação para a Ciência e Tecnologia, 2011, pp. 407-408). 384

Cf. Caro Baroja, Los Judíos en la España..., t. III, pp. 314-315. 385

Cf. ANTT, IE, proc. 3563, fl. 2v. 386

Cf. ANTT, IE, proc. 5671, fl. 59v. 387

Cf. ANTT, IE, liv. 212, fl. 34; IL, proc. 3255. 388

Cf. ANTT, IE, proc. 2719, fl. 151. 389

Cf. ANTT, IE, proc. 10508. O bedel era um empregado capitular mas cujo cargo detinha algum

prestígio. No livro da visitação ao cabido, D. Fernão Martins Mascarenhas explicitava assim as funções

do bedel: “[...] é obrigado a estar presente na Sé com sua maça todos os dias de festa, Domingos e santos

Page 99: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

99

Encontramos outras insinuações à ascendência que alguns cristãos-novos algarvios

teriam sobre o inquisidor-geral. Manuel Nunes de Moura recorrera ao bispo para que este

intercedesse por si num negócio, isto quando corria o ano de 1614390

. Em 1618, Manuel

Mendes do Óculo, mercador de Faro, esperava que o inquisidor-geral o favorecesse no

seu processo. Segundo um companheiro de cárcere, ele desistira de confessar as suas

culpas ao saber que o seu genro, Diogo de Tovar, havia partido rumo à capital. A intenção

era contactar D. Fernão Martins Mascarenhas e pedir-lhe que intercedesse para que o

julgamento de Manuel Mendes se processasse em Lisboa e não em Évora391

. Acreditaria o

mercador num julgamento menos rigoroso? Ou numa maior protecção, dada a

proximidade do inquisidor-geral? Desconhecemos o que o ligava a D. Fernão. Mas

pesaria, decerto, o seu poder económico. O memorial de 1623 insinuara o quanto o

inquisidor-geral era sensível a tal argumento – dizia-se que mantinha negócios escusos

com importantes homens de negócio de Lisboa. Em Faro, tanto Manuel Mendes como

Diogo de Tovar detinham grande prestígio. Os respectivos processos provam-no.

De feira em feira, entre o Algarve e o Alentejo

Com ligações comerciais a Lisboa, para onde se deslocava com regularidade,

Manuel Mendes do Óculo alargara o espectro dos seus negócios à Andaluzia, mais

exactamente a Aiamonte e Sevilha392

. Porém, na segunda década de Seiscentos, viu a

sua actividade ser ameaçada pela sombra da Inquisição. Anos antes, a irmã Guiomar

Mendes já havia conhecido os cárceres de Évora, depois de denunciada durante a

visitação de 1585393

.

Desde 1613 que se acumulavam denúncias contra Manuel Mendes do Óculo. Tomé

Estevens, lavrador, jurou tê-lo ouvido dizer, na igreja de São Martinho de Estoi, no

momento da consagração: «Adoro-te branquinho, não porque te creia»394

. A alegada

blasfémia não foi esquecida e acabou anexada às demais culpas do seu processo. João

de guarda, à missa e às laudes e em todas as Vésperas [...] e assim lhe pertence ser presente todos os dias

ordinários do cabido, que são as quartas-feiras e sábados da semana, e ter limpa a casa do Cabido, e,

depois que o cabido se começar não se afastará da porta para acudir cada vez que fôr chamado, e não

deixará entrar pessoa alguma sem primeiro pedir licença ao Deão e Presidentes [...]” (Cf. Pinheiro e Rosa,

A Catedral do Algarve..., vol. II, p. 48). 390

Cf. ANTT, IE, proc. 4361, fls. 103v-104. 391

Cf. ANTT, IE, proc. 4613, fl. 25. Vide, em anexo, pp. 371-372. 392

Cf. ANTT, IE, liv. 227, fls. 360-360v. 393

Cf. ANTT, IE, proc. 9012. 394

Cf. ANTT, IE, liv. 227, fl. 360v.

Page 100: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

100

Vaz, morador na freguesia de São Bartolomeu de Pechão, testemunhou que ele

costumava pôr uma vela acesa na janela da sua casa virada para Oriente, um costume

que, segundo ouvira dizer, era comum aos judeus da Berbéria395

. No final de 1617,

Pedro Gomes, mercador de Beja, contou que, havia então quatro anos, encontrara-se

com Manuel Mendes a caminho de Faro. Os dois vinham da feira de Santa Bárbara, em

Campo de Ourique, e seguiam para a de Santa Iria. Em Faro, Pedro Gomes passou a

frequentar a casa do mercador, comunicando-lhe a sua fé na Lei de Moisés396

.

A 19 de Fevereiro de 1618, Manuel Mendes do Óculo recebeu ordem de prisão mas

só chegou aos cárceres de Évora quase um mês depois. Tinha, então, cerca de 65 anos.

Entretanto, em Faro, João Lourenço Neto, comissário do Santo Ofício, continuava a

acumular testemunhos. Muitos rumores corriam na cidade sobre Manuel Mendes: que se

vestia de clérigo por escárnio; que tentara iludir a Inquisição, vendendo os seus bens e

entregando o dinheiro ao genro Diogo de Tovar; que, quando saiu da cadeia de Faro para

seguir até Évora, andara a deitar bênçãos a todos com quem se cruzava pelas ruas397

.

No cárcere inquisitorial, foi um outro preso, Simão Álvares, quem contribuiu para o

agravamento do seu processo. Ao ter conquistado a confiança de Manuel Mendes, ele

tornou-se num informador privilegiado dos inquisidores e acabou por comprometer ainda

mais a situação do mercador. Manuel Mendes ter-lhe-ia segredado que “[...] havendo ele de

confessar suas culpas, se perderiam sete ou oito casas de Faro [...]” e que “[...] se em Faro,

por parte da Inquisição, se fosse devassar dos judeus, haviam de trazer presos muitos mais

para estes cárceres do que hoje estavam neles [...]”398

. Não os trouxeram. Este ainda não foi

o momento da grande entrada da Inquisição em Faro.

O testemunho de Simão Álvares ensombrou de dúvidas a confissão de Manuel

Mendes. A 14 de Maio, o companheiro de cárcere expôs qual a estratégia que ele dizia

vir a adoptar: “[...] determinava pedir mesa, estando presentes todos os ministros dela,

para os apalpar e ver o que podia esperar deles [...]”. Confessaria as suas culpas se

entendesse que os inquisidores ficariam satisfeitos com a denúncia dos seus delatores e

de um irmão que, naquele tempo, estava no Brasil – Henrique Fernandes, residente no

lugar de Seregipe. Dois dias depois, segundo o testemunho de Simão Álvares, Lopo

Soares de Castro chamou Manuel Mendes à mesa mas ele nada confessou. Disse que

apenas confessaria perante o bispo eleito do Brasil. Foi, de facto, perante Marcos

395

Cf. ANTT, IE, proc. 4613, fls. 14v-18v. 396

Cf. Idem, fls. 5-6. 397

Cf. ANTT, IE, liv. 227, fls. 359-360v. 398

Cf. ANTT, IE, proc. 4613, fl. 23.

Page 101: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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Teixeira que ele iniciou a sua confissão, a 22 de Maio de 1618. Atribuiu o ensino ao tio

João Fernandes, confirmou a denúncia de Pedro Gomes e delatou outros mercadores,

nenhum deles residente em Faro399

.

A 30 de Maio, Simão Álvares voltou a apresentar-se perante os inquisidores. Contou

que, na semana anterior, Manuel Mendes dissera-lhe que havia de regressar à mesa para

denunciar dois primos, um médico em Lisboa e outro no Porto, além da própria esposa,

já presa nos cárceres de Évora. Não sabemos se esta última informação é verídica, dado

que não se conhece nenhum processo movido contra Vitória Vaz, esposa do mercador.

Porém, o resto do testemunho de Simão Álvares confirmou-se parcialmente. A 25 de

Maio, Manuel Mendes denunciava Simão Lopes, médico em Lisboa, casado com uma

sua prima irmã400

.

Manuel Mendes só começou a denunciar os parentes mais próximos nas últimas

sessões, limitando-se, porém, aos que se encontravam salvaguardados da acção

inquisitorial: os irmãos Henrique Fernandes e Francisco Mendes, ambos a viver fora do

reino, e outros dois irmãos, António Pais e Guiomar Mendes, entretanto já falecidos. A

confissão das acusações que o levaram ao cárcere – a blasfémia na igreja de S. Martinho

de Estoi e a vela acesa à janela da sua casa – salvaram-no da pena máxima mas não do

tormento, apesar da sua já avançada idade. Saiu no auto-de-fé de 19 de Maio de 1619,

sentenciado a cárcere e hábito penitencial perpétuos.

O processo de Manuel Mendes do Óculo não teve mais consequências para os

cristãos-novos de Faro. O mesmo já não se poderá dizer relativamente a Tavira. As suas

denúncias conduziram à prisão de Estêvão Rodrigues, o Algarvio, em 1618. Um irmão,

André Rodrigues, morrera na batalha de Alcácer Quibir; outros dois, João Rodrigues

Pereira e Rui Fernandes, eram clérigos. O sobrinho Gonçalo Nunes era notário

apostólico na legacia de Roma. Uma outra sobrinha, Joana Baptista, fora religiosa no

Mosteiro da Esperança, em Beja401

. Próximo familiarmente da hierarquia religiosa e

casado em primeiras núpcias com uma mulher cristã-velha, é possível deduzir a

intenção da sua família em “limpar o sangue”.

Estêvão Rodrigues frequentava as feiras do Alentejo e do Algarve e ia a Sevilha vender

figo. Nas suas andanças, conhecera e tomara contacto com outros mercadores cristãos-

399

Cf. Idem, fls. 27v, 35-38. 400

Cf. Idem, fls. 28v, 39-39v. 401

Cf. ANTT, IE, proc. 484.

Page 102: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

102

novos402

. Entre eles, encontravam-se dois irmãos de Viana do Alvito, também residentes

em Tavira, Baltazar Dias e Manuel Lopes. Foram ambos presos no final de 1618403

.

Baltazar Dias era bacharel em Leis pela Universidade de Coimbra. Quando terminou

os estudos, vendo a possibilidade de fazer um bom casamento em Tavira, foi para esta

cidade, onde se estabeleceu em 1613. O seu irmão, Manuel Lopes, também casou em

Tavira, no início de 1614. Os dois eram acusados de dar guarida e facilitar a fuga para

Castela de um outro irmão, Belchior Dias. Baltazar Dias admitiu ter acompanhado o

irmão até à fronteira, embora sem qualquer intenção de fuga. Prova disso era que os

dois seguiram sempre por estradas públicas. Segundo afirmou, desde o casamento,

nunca mais regressara a Viana de Alvito, nem ia pessoalmente às feiras no Alentejo,

optando por enviar agentes. Em Tavira, a sua casa era frequentada por oficiais de justiça

e pelos principais da cidade. Inclusivamente, Baltazar Dias alegava ser muito próximo

do Marquês de Vila Real, de quem fora ouvidor. Quanto a Estêvão Rodrigues era

conhecido como “[...] o maior mentiroso e burlão que havia em a cidade de Tavira [...]”.

Dizia-se mesmo que, quando teve um sexto da renda do cabido de Faro, andava pelas

quintas da cidade a recolher a dízima sem a dividir com os outros rendeiros404

. Não

obstante, Baltazar Dias acabaria por confirmar que frequentava a casa de Estêvão

Rodrigues, tal como outros mercadores cristãos-novos de Tavira, nomeadamente

Manuel Mendes do Óculo e Manuel Dias Pereira405

.

Preso nos cárceres de Évora a 21 de Março de 1619, Manuel Dias Pereira era natural

de Portalegre, mas vivia em Tavira desde 1604, quando se casou com uma cristã-velha,

Mor Fernandes. Na cidade, servia de mordomo em várias confrarias e fora síndico do

convento de Santo António. Aliás, em sua defesa, alegou ter custeado as obras da capela

de S. Sebastião e as festas em honra do santo. Porém, este homem, que se dizia bom

cristão, era acusado de comunicar a crença na Lei de Moisés com outros cristãos-novos

do Algarve e do Alentejo. As feiras revelavam-se, mais uma vez, um local privilegiado

para tal. Apenas em Maio de 1623 é que Manuel Dias começou a confessar. Apesar de

tardia, a confissão foi profícua em denúncias contra judaizantes não só de Faro e Tavira,

402

Cf. Idem. Estêvão Rodrigues foi sentenciado com cárcere e hábito penitencial ao arbítrio dos inquisidores

no auto celebrado a 19 de Maio de 1619. A 20 de Julho de 1619 era-lhe tirado o hábito penitencial. 403

Cf. ANTT, IE, procs. 5603 e 8466. 404

Cf. ANTT, IE, proc. 5603, fls. 185-186. 405

Baltazar Dias saiu no auto de 29 de Novembro de 1626, com cárcere e hábito penitencial perpétuos,

sem remissão. A 7 de Janeiro de 1627, era mandado cumprir o resto da pena em Tavira. No mês de Março

desse ano, foi-lhe levantado o hábito penitencial.

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como também de Lagos e Vila Nova de Portimão406

. Alguns nunca chegaram aos cárceres

de Évora mas outros não gozaram da mesma sorte.

Foi o que aconteceu com Diogo de Tovar, genro de Manuel Mendes do Óculo.

Oriundo de uma família de Elvas estabelecida em Faro, foi preso a 19 de Maio de 1623

e esteve encarcerado durante mais de cinco anos, sem nunca confessar qualquer prática

judaizante. Defendeu-se, alegando o quanto era respeitado em Faro. Chegara mesmo a

servir de recebedor da Misericórdia. Este e outros argumentos valeram-lhe a sentença de

cárcere ao arbítrio dos inquisidores, publicada no auto-de-fé de 18 de Junho de 1628407

.

No mesmo auto e com a mesma pena, saiu Manuel Nunes de Moura, também

mercador em Faro. Fora preso em 1624 e, tal como Diogo de Tovar, era uma figura de

prestígio na cidade. Negociava em azeite e atum e conseguira constituir uma sólida

fortuna, a qual, segundo alegou na sua defesa, aplicara parcialmente em obras de

caridade e no serviço à Igreja: deu consideráveis quantias de dinheiro para o provimento

das capelas das igrejas de Faro; enquanto foi oficial da irmandade do Santíssimo

Sacramento, mandara vir de Sevilha um palco muito rico que lhe custara mais de 60 mil

réis; emprestava dinheiro para o resgate de cativos e concedia avultadas esmolas à igreja

do colégio dos jesuítas. Em 1621 e 1622, anos de carestia de trigo, emprestou cerca de

40 mil réis à Misericórdia de Faro. Quando uma tempestade arrasou parte da cerca do

convento dos Capuchos, Manuel Nunes ofertou 30 mil réis para o conserto408

. A sua

defesa traçou o retrato de um filantropo, particularmente próximo das autoridades

religiosas locais. Tal teria pesado na sua reconciliação... e não só.

No regresso a Faro, Manuel Nunes de Moura e Diogo de Tovar foram recebidos

em festa. Este episódio encontra-se expressivamente descrito no relato de Rodrigo

Lopes, familiar do Santo Ofício. Nas ruas onde os dois mercadores residiam, houve

corridas de touros e foram lançados foguetes. No dia seguinte, eles dirigiram-se à

ermida de Nossa Senhora da Esperança, no termo de Faro, acompanhados por muitos

outros cristãos-novos. Refere Rodrigo Lopes que “[...] nem em procissão que se faz

leva tanta gente quanta eles levavam assim [...]”. Para presidir à novena, escolheram

um clérigo cristão-novo, Manuel Lopes409

.

406

Cf. ANTT, IE, proc. 5686. Manuel Dias Pereira saiu no auto de 14 de Maio de 1623, com cárcere e

hábito penitencial perpétuos. A 19 de Julho de 1623 era mandado para Tavira, onde continuaria a cumprir

a sua pena até 25 de Junho do ano seguinte. O pai de Manuel Dias também tinha sido preso muitos anos

antes, em 1571, pela Inquisição de Lisboa (Cf. ANTT, IL, proc. 1884). 407

Cf. ANTT, IE, proc. 7448. 408

Cf. ANTT, IE, proc. 4361, fls. 55-59v. Vide em anexo, pp. 389-391. 409

Cf. ANTT, IE, liv. 213, fl. 330. Vide, em anexo, pp. 403-404.

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Enquanto o Santo Ofício actuava em força por todo o reino, Faro acolhia com júbilo

o regresso de dois cristãos-novos reconciliados.

Um crime em Monchique

Francisco Lopes Serralvo foi morto no lugar de Monchique durante a noite de 12

de Novembro de 1619. Degolaram-no e cortaram-lhe uma orelha como prova do

crime. Monchique era “[...] lugar de serra e ermo e costumado a se fazerem neles

casos graves [...]” mas, mesmo assim, a violência desta morte e as circunstâncias em

que decorreu causaram escândalo na região e atraíram as atenções do Santo Ofício410

.

Residente em Beja e pantufeiro de ofício, Francisco Lopes fora reconciliado no auto-

de-fé celebrado em Évora, a 19 de Maio de 1619. Os seus laços familiares e profissionais

estendiam-se até ao Algarve. Sob tormento, Francisco acabou por denunciar os primos

direitos residentes na região – declarara-se crente na Lei de Moisés com o primo Diogo

Lopes, de Lagos, e com a mulher deste, Beatriz Filipe, tal como com um outro primo de

Vila Nova de Portimão, Diogo Lopes Simões411

.

Na sequência destas denúncias, os três entraram nos cárceres de Évora a 17 de

Fevereiro de 1619. Nenhum confessou qualquer culpa. Depois de mais de 4 anos de

cárcere, foram reconciliados. Os artigos de defesa revelaram-se suficientes para colocar

em dúvida a denúncia de Francisco Lopes. Beatriz Filipe referiu que o seu marido ter-

se-ia recusado a alojar o primo e a dar-lhe o dinheiro que ele lhe pedira para o

casamento de uma filha. Numa estalagem em Lagos, Francisco Lopes chegou a ameaçar

que os denunciaria ao Santo Ofício412

.

Francisco Lopes Serralvo saiu dos cárceres de Évora pouco depois dos primos terem

lá entrado. Alguns meses após o auto, foi enviado para Beja, de onde não deveria sair

enquanto estivesse a cumprir a pena. Mas ele não obedeceu e, no mês de Novembro, já

estava em Vila Nova de Portimão.

As razões que o levaram ao Algarve não são claras. Também não é evidente que tal

tenha acontecido à revelia do tribunal de Évora. Numa devassa levantada após a sua

morte, algumas testemunhas referiram o rumor de que ele fora ao Algarve só para se

410

Cf. ANTT, IE, mç. 2, fl. 297. Sobre este caso, vide documentos em anexo, pp. 374-389. 411

Cf. ANTT, IE, proc. 5579. Diogo Lopes, de Lagos, era filho de Guiomar Lopes, tia materna de

Francisco Lopes Serralvo. Jorge Lopes, pai de Diogo Lopes Simões, de Vila Nova de Portimão, era

também irmão da mãe de Serralvo. 412

Cf. ANTT, IE, proc. 5908.

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informar sobre os cristãos-novos da região413

. Falava-se, inclusivamente de um rol com

o nome de vários cristãos-novos de Vila Nova de Portimão e de Lagos redigido pelo

próprio Francisco Lopes e destinado à Inquisição de Évora, o qual ele tinha na sua posse

no momento em que foi morto. Quem o matou, tê-lo-ia levado.

Antes deste desenlace, Francisco Lopes fora preso em Vila Nova de Portimão,

acusado de andar pelas ruas sem envergar o hábito penitencial. Beatriz Gonçalves, esposa

de Diogo Lopes Simões, havia-o denunciado. Dizia-se mesmo que ela prometera dinheiro

a quem testemunhasse contra o primo e que tentara aliciar a decisão do Padre António

Martins Maborrão, vigário de Vila Nova de Portimão, com a oferta de umas galinhas414

.

Solto a 11 de Novembro, sob a condição de se apresentar em Évora no prazo de 10 dias,

Francisco Lopes partiu de Vila Nova de Portimão logo no dia seguinte. A morte

encontrou-o nessa noite, quando parou em Monchique415

.

A primeira diligência sobre o crime decorreu pelas mãos do juiz de fora de Silves,

Manuel Freire de Andrade. Os testemunhos recolhidos confluíam todos num mesmo

sentido: o crime fora ordenado por um grupo de cristãos-novos da terra, parentes da

vítima, e concretizado pelos seus escravos, em troca da alforria. Logo depois do crime,

os escravos fugiram para Aiamonte. Porém, os seus amos permaneceram nas respectivas

localidades. O problema residia em quem eles eram – gente graúda, “[...] dos mais

poderosos e principais de Vila Nova e Lagos [...]”, afirmava o juiz416

.

A 13 de Janeiro de 1620, já tinham sido presos dois dos alegados mandantes: a mulher

de Diogo Lopes Simões e o filho, Vasco da Gama. Porém, as circunstâncias da morte de

Francisco Lopes, averiguadas pelo juiz de Silves, justificavam a intervenção da Inquisição.

O móbil do crime fora as eventuais denúncias que a vítima apresentaria em Évora. Além do

mais, os envolvidos eram, maioritariamente, cristãos-novos.

A incumbência de devassar sobre o crime foi entregue a Lopo Soares de Castro,

então deputado da Inquisição de Évora e parente de Belchior Veloso, o polémico

protegido de D. Fernão Martins Mascarenhas. Seria auxiliado pelo Padre João Lourenço

Neto, prior da igreja de São Pedro e comissário do Santo Ofício417

. A 18 de Março, já se

encontrava em Vila Nova de Portimão, a interrogar testemunhas no convento de Santo

413

Luís Álvares Landeiro, cavaleiro da Ordem de Cristo e morador em Vila Nova de Portimão, referiu

que ouvira dois cristãos-novos a dizer que o assassínio de Francisco Lopes fora bem feito porque ele

apenas tinha vindo ao Algarve para saber da gente de nação do lugar e dar conhecimento desta à

Inquisição de Évora (Cf. ANTT, IE, mç. 2, fls. 55-55v). 414

Cf. Idem, fls. 56v-57, 65v. 415

Cf. ANTT, IE, proc. 5579. 416

Cf. ANTT, IE, mç. 2, fl. 3. 417

Cf. Idem, fls. 7-8.

Page 106: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

106

António. A devassa durou até ao final do mês de Maio e também passou por Silves,

Faro, Monchique e Lagos418

. Foram interrogadas 123 testemunhas.

As conclusões da diligência revelaram novos pormenores. O autor do crime fora

Alberto, escravo de João Fernandes da Costa, genro de Diogo Lopes de Lagos. Quanto

ao mandante, o consenso é menor. Madalena Mendes, cativa do cura de Alferce, contou

ao inquisidor o que ouvira de um outro escravo, Pedro: “[...] que muito trabalho tivera

depois que o dito Francisco Lopes foi preso na cadeia de Vila Nova porque sempre

andara com cartas e recados da gente de nação de Vila Nova para Lagos e de Lagos para

Faro e de Faro para Albufeira e Lagoa [...]”419

. Tal como na devassa feita pelo juiz

Manuel Freire de Andrade, tudo apontava para uma conjura. Manuel Rodrigues, preto

forro a quem o escravo Alberto teria confessado a autoria do crime, referiu que

Francisco Lopes era odiado pelos cristãos-novos de Vila Nova de Portimão e

representava um perigo para muitos deles420

.

A culpa acabou por cair sobre os parentes de Diogo Lopes Simões e de Diogo Lopes

de Lagos. Além da vingança, movia-os a ameaça que representava o suposto rol de

nomes escrito por Francisco Lopes e destinado à Inquisição.

Foram presas 8 pessoas: 5 de Vila Nova de Portimão e 3 de Lagos, entre as quais a

mulher e o filho de Diogo Lopes Simões, Guiomar de Leão (filha de Diogo Lopes e de

Beatriz Filipe) e o marido desta, João Fernandes da Costa.

As autoridades locais pediam o cárcere inquisitorial para os culpados pela morte de

Francisco Lopes. O prior João Lourenço Neto dizia que “[...] como alguma desta gente é

rica e poderosa e industriosa, teme o juiz de fora que haja alvará de fiança e que os mandem

soltar [...]”. Além disso, havia o risco de fuga. Segundo o comissário, já muitos cristãos-

novos de Vila Nova de Portimão e de Lagos tinham fugido com medo da prisão421

. O

mesmo temor fora expresso pelo juiz de Silves numa carta de 8 de Setembro de 1620:

“Estes quase todos, assim presos, como fugidos, como culpados, são gente poderosa

e rica e têm em si recolhido todo o dinheiro, e vendido, e escondido tudo, e vendo-me

só em campo, acudindo pela honra de Deus e de sua fé, e serviço de Sua Majestade, e

bem da justiça, se armam contra mim e não só me têm ameaçado com a morte, ainda

418

Até 2 de Abril, Lopo Soares de Castro esteve em Vila Nova de Portimão. Seguiu depois para Silves,

onde continuou a devassa até 9 de Abril. A 21 de Abril, estava em Faro e, entre 6 e 8 de Maio, regressou a

Silves. Ouviu testemunhas em Monchique desde 14 até 21 de Maio. Lagos foi o seu último destino – os

registos denunciam a sua presença na cidade entre 24 e 30 de Maio de 1620. (Cf. Idem, fls. 11-293) 419

Cf. Idem, fls. 234v-235. 420

“[...] Disse que todas as pessoas da nação desta vila mostravam ter má vontade e ódio ao dito

Francisco Lopes Serralvo, dizendo que ele era um cabrão e mau homem, que vinha a esta terra pedir

esmola aos homens de nação dela e que se lha não davam, os punha no rol para os acusar na Inquisição de

Évora [...] ”. (Cf. Idem, fl. 80v). 421

Cf. Idem, fls. 296-296v.

Page 107: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

107

que de seus ameaços se me dá pouco, mas gabam-se que tudo, à força de dinheiro,

hão-de acabar e fazer de tudo um nada, e uns com cartas de seguro, outros com

alvarás de fiança, pretendem escapar de tudo e acolher-se antes que a Santa

Inquisição dê neles. Eu lhes vou resistindo fortemente que Deus é o que dá forças,

espírito, mas vejo que a justiça por pecados meus é tão pouca e o dinheiro pode tanto

que, se não tenho ajuda dessa Mesa, temo que fique no campo [...]”422

Temia-se que a ascendência económica e social dos acusados travasse o processo.

Pedia-se uma intervenção rápida do Santo Ofício. As preocupações do comissário e do

juiz de Silves foram transmitidas em carta ao inquisidor-geral423

. Na Inquisição de Évora,

vistos os documentos relativos à devassa de Lopo Soares de Castro, a maioria concluiu

que havia prova suficiente para a detenção de Beatriz Gonçalves, Vasco da Gama,

Guiomar de Leão e João Fernandes da Costa, então já presos no cárcere secular. Também

deveriam ser presos Gonçalo Lopes de Leão, cunhado de Diogo Lopes de Lagos, e o

escravo Alberto, ambos ainda em liberdade. Recordemo-nos que Alberto fugira para

Aiamonte. Seria, assim, passado precatório, ordenando o envio dos presos à Inquisição de

Évora424

. Porém, este parecer não reuniu unanimidade. O deputado D. Fernando de Castro

considerava que João Fernandes da Costa não deveria ser preso pela Inquisição “[...] por

ser da vereação da cidade de Lagos e dos municipais dela e se lhe seguir disto infâmia e

certas pessoas exceptuadas no regimento da Inquisição, para não no prenderem sem dar

conta ao Conselho de sua qualidade [...]”425

.

Não obstante, João Fernandes da Costa acabou por ser preso pela Inquisição de

Évora, possivelmente na mesma data da esposa, Guiomar de Leão426

. A 24 de

Novembro de 1621, ela entrava nos cárceres de Évora, junto com Beatriz Gonçalves e

422

Cf. Idem, fl. 297v. 423

Cf. ANTT, TSO, CG, liv. 97, fls. 97-97v. 424

Cf. ANTT, IE, mç. 2, fls. 299-299v. 425

Cf. Idem, fl. 300. De facto, segundo o cap. LIV do Regimento de 1613, “[...] em todos os

processos das pessoas que, por regimento do Conselho se não podem prender sem consultar o

Inquisidor-Geral ou o mesmo Conselho, que são clérigos, religiosos de qualquer ordem, fidalgos,

pessoas de qualidade, mercadores muito ricos e notáveis, e em todos os ditos casos serão enviados os

ditos processos ao Conselho Geral, com o assento que neles se tomar e fundamentos e razões dos

votos [...]”. (Cf. “Regimento de D. Pedro de Castilho (1613)”, As Metamorfoses..., p. 173 (cap. LIV)).

Antes, o Regimento do Conselho Geral contemplara, no cap. XX, que os inquisidores não poderiam

mandar prender “pessoas graves”, como nobres ou religiosos, nem “[...] pessoas que pela qualidade delas

ou por serem muitas, haja a sua prisão de fazer alvoroço ou movimento grande em alguma cidade ou vila

[...]” (Cf. “Regimento do Conselho Geral da Inquisição – Cardeal D. Henrique (1570)”, As

Metamorfoses..., p. 142 (cap. XX)). 426

Não foi encontrado o processo inquisitorial de João Fernandes da Costa. Porém, são fortes os indícios que

provam a sua presença nos calabouços da Inquisição de Évora. Afinal, um parecer de 25 de Setembro de 1621

referia que ele e Guiomar de Leão deveriam ser soltos na forma de suas sentenças antes do auto-de-fé seguinte.

João Fernandes, depois de abjurar de levi na mesa, deveria regressar à prisão secular. Foi degredado por 4 anos

para o Brasil e obrigado a pagar 200 cruzados (Cf. ANTT, TSO, CG, liv. 97, fl. 101).

Page 108: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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Vasco da Gama. Quanto ao escravo Alberto, não encontrámos nenhuma referência à sua

prisão. Possivelmente, nunca chegou a ser encontrado.

O mesmo teria acontecido a Gonçalo Lopes de Leão, o Muleixeque427

. O irmão de

Beatriz Filipe fugiu de Lagos no preciso momento em que o foram prender a casa, a

11 de Novembro de 1620. Contara com o auxílio do cura da freguesia de Barão de São

João, o Padre Estêvão de Queirós, o qual negociou com Manuel Martins, almocreve, o

aluguer de um cavalo para o transportar. Segundo o cura, Gonçalo Lopes ter-lhe-ia

prometido que seguiria para Évora para “[...] botar-se aos pés dos senhores

inquisidores [...]”. Numa carta que Estêvão de Queirós entrega à Inquisição de Évora,

datada de 20 de Novembro, Gonçalo Lopes informava-o de que tinha chegado a Évora

e se iria apresentar perante D. Fernando de Castro, o mesmo deputado que se mostrara

relutante à prisão de João Fernandes da Costa428

. Porém, a intenção alegada na carta

não passou disso. Gonçalo Lopes nunca chegou a apresentar-se perante a Inquisição

de Évora. Dizia-se em Lagos que ele havia partido para Sevilha.

Portanto, no final de 1620, estavam já presos os principais suspeitos pela morte de

Francisco Lopes Serralvo. Contudo, nenhum chegou a confessar o crime. À esposa de

Diogo Lopes Simões, Beatriz Gonçalves, acrescera ainda uma acusação de blasfémia429

.

Porém, ela nada confessou até que, no dia 28 de Janeiro de 1621, foi encontrada morta

no cárcere. O mesmo destino teve o seu filho, Vasco da Gama, pouco mais de dois

meses depois. Ambos terão morrido de causas naturais – concluiram os inquisidores430

.

Guiomar de Leão viu o seu processo inquisitorial ser despachado em menos de um

ano. Nunca chegou a confessar o crime. Contestou o libelo, alegando que o seu escravo

Alberto fora alforriado meses antes da morte de Francisco Lopes. Apesar dos abundantes

indícios que Lopo Soares de Castro recolhera em Lagos e Vila Nova de Portimão, os

inquisidores concluíram não existir prova suficiente para uma condenação. A sentença foi

publicada a 7 de Outubro de 1621 e Guiomar de Leão regressou a Lagos431

.

427

Cf. ANTT, IE, liv. 227, fls. 438-495v. 428

Cf. ANTT, IE, liv. 227, fl. 488. Vide a transcrição desta carta em anexo, p. 387. 429

Beatriz Faria, com quem ela partilhara a cela na cadeia Silves, testemunhou perante Lopo Soares de

Castro o seguinte: “[...] Haverá dois meses, pouco mais ou menos, que estando ela declarante na dita

cadeia com a dita Beatriz Gonçalves, mandou ela buscar um pouco de peixe e trazendo-lho a pessoa que

lho foi comprar, ela o não tomou e jurando por Cristo que o não havia de tomar. E ela testemunha lhe

disse que deixasse a Cristo porque os de nação não se contentavam de o açoutar e crucificar uma vez mas

que cada dia o queriam crucificar e açoutar. E a dita Beatriz Gonçalves respondeu que se o açoutaram o

fizeram muito bem de o açoutar e, repreendendo ela testemunha do sobredito, ela se não desdisse [...]”

(Cf. ANTT, IE, mç. 2, fl. 128). 430

Cf. ANTT, IE, procs. 3276 e 2566. 431

Cf. ANTT, IE, proc. 5606.

Page 109: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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O crime ficou impune. Uns fugiram, outros faleceram no cárcere e, no final, os

únicos suspeitos que permaneceram à mercê da justiça inquisitorial foram Guiomar de

Leão e João Fernandes da Costa, “gente de qualidade” da cidade de Lagos. A relativa

rapidez com que os processos decorreram e a sua indefinição revelam o quão delicado

era este caso para o tribunal de Évora. A solução foi devolver o problema à justiça

secular, que acabaria por conceder o perdão ao casal em 1624432

.

Contra a Lei de Cristo e contra a Igreja

Duas tendências marcam os anos que medeiam o perdão geral e o édito da graça de

1627. Por um lado, as prisões, residuais e sem demais consequências, de alguns

mercadores cuja circulação pelas feiras do Algarve e do Alentejo propiciava a

comunicação com os seus congéneres doutras paragens onde a repressão inquisitorial se

encontrava mais activa. Por outro, as denúncias contra cristãos-novos da região que não

se materializaram em processos, com a tónica comum de se focarem mais em ataques

aos dogmas, aos rituais e à própria hierarquia católica do que, propriamente, em

comportamentos judaizantes.

A associação do sacrilégio à gente de nação não é um dado novo. Como refere Caro

Baroja, aos judaizantes não só era atribuída a recusa da fé cristã como também a

tendência para o ultraje dos princípios doutrinais cristãos, expresso em actos como os

sacrilégios com hóstias ou as profanações de imagens. Tal regista-se, principalmente,

em momentos de crescimento da sua ascendência na sociedade e junto do poder

político433

. Numa ocasião em que as posições dos cristãos-novos portugueses

encontravam eco junto da coroa, capazes de jogar com o seu estatuto económico e com

as debilidades financeiras do Império, aumentou o número de escritos anti-judaicos e

multiplicaram-se os sinais de hostilidade por parte da maioria cristã-velha434

.

Célebre ficou o caso de Santa Engrácia, em Lisboa. Os que entraram nessa igreja, na

manhã de 15 de Janeiro de 1630, depararam-se com o sacrário arrombado e vazio. As

acusações pelo roubo das hóstias consagradas dirigiram-se de imediato contra a gente de

nação. Simão Pires Solis, cristão-novo, foi culpado e condenado pelo roubo. O caso de

432

Cf. ANTT, Chancelaria de D. João III. Perdões e legitimações, liv. 15, fls. 296v-297. Vide, em anexo,

pp. 388-389. 433

Cf. Julio Caro Baroja, Inquisicion, Brujeria y Criptojudaismo, Barcelona, Ediciones Ariel, 1972, pp. 65-70. 434

Vide Bruno Feitler, “Produção literária antijudaica no mundo português da Idade Moderna”, Novos

Estudos, n.º 72, Julho 2005, pp. 137-158.

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Santa Engrácia correu as bocas de todo o reino e motivou o recrudescer das posições

contra os cristãos-novos435

. A notícia chegou ao Algarve e teria ficado gravada na

memória de muitos. Em 1634, uma doente do Hospital de Todos-os-Santos, em Lisboa,

recordava o malogrado destino de Simão Pires Solis: «Esse santo está no Céu, que tudo

quanto lhe puseram foram testemunhos falsos». A doente era Mor Gonçalves, cristã-nova

de Faro, presa no ano anterior pela Inquisição de Évora. Considerada demente, foi

remetida para o Hospital de Todos-os-Santos, onde viria a falecer pouco tempo depois436

.

Não encontramos no Algarve nenhum caso do qual tenha surtido tamanho escândalo

popular. As denúncias centram-se, sobretudo, na blasfémia, um delito transversal a

cristãos-novos e cristãos-velhos437

. Contudo, num momento de crescente animosidade

popular contra a gente de nação, a ofensa verbal aos dogmas e às instituições católicas

tornou-se numa forma de reacção. Vendo por outro prisma, o denunciante cristão-velho,

ao atribuir-lhe um crime torpe como a blasfémia, estava a servir a tendência corrente de

diabolização do elemento cristão-novo.

Os sacramentos eram o principal alvo, em particular a eucaristia. Em 1613, Catarina

Camacha, de Faro, contou o que ouvira de Fernão Duarte durante o ritual da consagração:

«Tu mo prometeste, Tu mo hás-de dar, se mo Tu não dás, Tu mo hás-de pagar». Dizia-o

enquanto puxava pelas barbas e cuspia no chão. Também Lopo Rodrigues reagira de

forma suspeita perante o levantar da hóstia. A mesma Catarina Camacha notou-o: “[...]

entortava a boca para uma parte e outra, fazendo escárnios [...]”438

. Os dois eram cristãos-

novos, tal como Jorge Mendes, mercador de Loulé, denunciado no mês de Julho de

1616 perante o Lic. Manuel de Campos, visitador-geral do bispado. Uma escrava,

Francisca Neta, referiu que o tinha visto, na Quaresma anterior, à porta da igreja de São

Clemente, “[...] o qual tanto que emparelhou com a dita porta da igreja, parou e, estando

de esguelha de modo que ficava com o braço esquerdo para a porta, torceu um pouco o

corpo e, com a mão direita, estando parado, deu três palmadas grandes nas nádegas e

435

Cf. Oliveira, Movimentos sociais..., pp. 330-331. 436

Cf. ANTT, IE, proc. 3588. 437

Cf. Ana Maria Mendes Ruas Alves, “Por quantos anjos pario a virgem”. Injúrias e Blasfémias na

Inquisição de Évora. 1541-1707. Dissertação de mestrado apresentada à Faculdade de Letras da

Universidade de Coimbra, Coimbra, 2006. Exemplar policopiado, p. 70. Dos 200 processos por blasfémia

analisados pela autora, apenas 36 respeitavam a cristãos-novos. 438

Cf. ANTT, IE, liv. 227, fl. 305v. O Fernão Duarte referido por Catarina Camacho seria, possivelmente,

Fernão Duarte de Castro, mercador de Faro, viúvo de Mécia Pinta que, em 1634, aos 62 anos, foi preso

pela Inquisição de Évora (Cf. ANTT, IE, proc. 9546). Lopo Rodrigues era também mercador, filho de

Francisco Rodrigues e Isabel Gomes e casado com Isabel Pais, cristã-nova de Loulé presa pela Inquisição

de Évora em 1635. Nessa data, Lopo já havia falecido (Cf. ANTT, IE, proc. 9671).

Page 111: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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partes traseiras de modo que ela, testemunha, e sua companheira as ouviram muito bem

e tanto que as deu, continuou seu caminho [...]”439

.

Nem os religiosos estavam imunes a este tipo de denúncias. Não obstante a adopção

dos estatutos de limpeza de sangue por parte de algumas instituições e ordens, muitos

cristãos-novos continuavam a penetrar na hierarquia religiosa. Mas o sangue hebraico

era uma mácula cujo ordenação não apagava. Paradigmático é o caso do Padre António

Gonçalves, prior da igreja de São Clemente, em Loulé, sobre o qual se dizia ter parte de

cristão-novo. Em 1623, foi acusado de dizer que os sacramentos não davam graça e de

ter “[...] pouca reverência ao Santíssimo Sacramento [...]”440

. Os qualificadores

concluíram que algumas dessas acusações aproximavam-se da “heresia de Lutero”.

Porém, o sangue pesou mais do que as suspeitas de Luteranismo. Em Loulé, fez-se uma

diligência para determinar se o Padre António Gonçalves seria ou não cristão-velho dos

quatro costados. Muitas testemunhas referiram a fama de que teria parte de cristão-

novo. Entretanto, as suspeitas sobre o prior de São Clemente agravaram-se: “[...] se

afirma geralmente que urina muitas vezes na caldeirinha de água benta e que lava a

imundícia das mãos na quarta da água de que se provêm as galhetas para se celebrarem

as missas e dá o sacramento da eucaristia sem o da penitência [...]”441

. Não foi movido

qualquer processo contra o prior de São Clemente e ignoramos que desenvolvimentos

teve o caso, ou sequer se os houve.

Em Faro, na igreja de São Pedro, um outro clérigo chamou as atenções do Santo

Ofício. Diogo Martins recusava-se a celebrar missa na capela do santo patrono, onde

estava exposto um crucifixo. Ele era cristão-novo e provinha de uma família que, nas

últimas décadas do século XVI, povoara os cárceres da Inquisição de Évora442

. A sua

aversão à imagem de Cristo crucificado teria expressões mais graves. Uma criada

afirmou tê-lo visto, numa câmara da sua casa, a açoitar um crucifixo443

.

A documentação revela abundantes exemplos da associação de comportamentos

iconoclastas a cristãos-novos. Um dos denunciantes do Padre Diogo Martins, o Padre

João Lourenço Neto, testemunhou o que ouvira sobre duas cristãs-novas de Faro, Clara

Pinta e a irmã. Uma criada apanhara-as a profanar uma imagem de Cristo crucificado:

439

Cf. ANTT, IE, liv. 228, fl. 657v. 440

Cf. ANTT, IE, liv. 212, fl. 147. 441

Cf. Idem, fl. 158 442

Diogo Martins era filho de João Martins, mercador que, em 1571, foi preso em Beja, acusado de

judaísmo (Cf. ANTT, IE, proc. 191) e primo de Pedro Lopes, denunciado durante a visitação de 1585 a

Vila Nova de Portimão, cuja confissão accionou uma série de prisões no interior da sua família (Cf.

ANTT, IE, procs. 7516 e 5226. Vide supra, pp. 73-77). 443

Cf. ANTT, IE, liv. 227, fls. 385-386v.

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“[...] em uma câmara tinham um alguidar cheio de água diante de si e tinham um Cristo

na mão e um cachorro e que assim o Cristo como o cachorro metiam ambos juntos no

alguidar e os mergulhavam [...]”. Pouco tempo depois, a criada faleceu. Dizia-se na

cidade que fora envenenada pelas duas irmãs444

.

A negação e o ataque aos fundamentos da doutrina católica caminhava a par da

agressão verbal aos homens da Igreja e às instituições religiosas. A memória de um

momento de intensa repressão inquisitorial e as suas repercussões no seio de alguns

núcleos familiares teria alimentado posições anti-clericais entre a gente de nação.

Francisco Domingues, cristão-novo de Vila Nova de Portimão, ao ouvir um monitório

sobre a obrigatoriedade do pagamento de esmolas para as bulas da cruzada, sob pena de

excomunhão, teria afirmado “[...] que cada vez que queria tirar excomunhões as tirava

do traseiro do seu jumento e do mesmo lugar fazia clérigos [...]”445

. O mesmo

sentimento anti-clerical encontra-se expresso nas palavras de Marcos Rodrigues, de

Faro, denunciado em 1613 por ter dito, ao ver passar os ornamentos com que o bispo

havia celebrado a missa na Sé: «Ah Diabo, que te eu dou a ti e a teus aparelhos»446

.

Mais herege do que António Homem

Albufeira, Dezembro de 1627. Rui Fernandes da Vega, mandador da almadrava de

Pedra Negra, era preso por dívidas à fazenda real. O juiz Belchior Monteiro encontrou-o

escondido na sua própria casa, dentro de uma caixa e coberto com colchões. Enquanto

era levado à força, Rui Fernandes começou a bradar enraivecido “[...] que era herege

confirmado e pior do que foi António Homem e pior que seu tio Miguel Álvares e que

dormira com duas irmãs e que ele tinha dormido com sua mãe e sua irmã solteira, que

tinha sinagoga e que era somítico [...]”447

. Várias pessoas assistiram a este insólito

desfilar de crimes, agravado pelo facto de Rui Fernandes ser reconhecido na vila como

tendo parte de cristão-novo. Já depois de preso, em carta, alegou que falara “[...] com

tantas imaginações de ver que me enviavam pelo que não cometi [...]”. Porém, o que

disse fora diferente do que o juiz de Albufeira tinha referido: “[...] saindo eu

444

Cf. Idem, fls. 386v-387. 445

Cf. ANTT, IE, liv. 92, fls. 239-239v. 446

Cf. ANTT, IE, liv. 227, fl. 307. Este Marcos Rodrigues seria o mesmo que, quando começaram as

prisões em Faro em 1633, fugiu para Sevilha, cidade onde veio a falecer poucos anos depois. Em 1637, já

postumamente, iniciou-se um processo inquisitorial contra si na Inquisição de Évora. A 26 de Março de

1651, foi relaxado em estátua (Cf. ANTT, IE, proc. 1460). 447

Cf. ANTT, IE, liv. 212, fl. 195v.

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afrontosamente, como tenho dito, dissera que não me levam por somita, nem por

cometer irmã nem mãe, nem que não ia como foi António Homem [...]”448

Movido pela ira, um mareante de Albufeira recordava António Homem, cónego da

Sé e lente na Universidade de Coimbra, condenado à pena máxima em 1624, cinco anos

após ter entrado nos cárceres, acusado de ser o grão-sacerdote de uma congregação de

cristãos-novos judaizantes formada sob a aparência de confraria cristã, a Confraria de

São Diogo449

. Tal como acontecera no caso de Santa Engrácia, a condenação de

António Homem ateou ódios contra os cristãos-novos ao mesmo tempo que gerou

sentimentos de injustiça entre a gente de nação. E o Algarve não foi excepção. Pedro de

Barros Carneiro, cónego de Faro, esteve em Lisboa durante esses acontecimentos. De

regresso ao Algarve, perguntaram-lhe o que sabia sobre a morte de António Homem.

Anos mais tarde, em 1629, o cónego Sebastião Velho da Palma testemunhava o que

então ouvira de Pedro de Barros:

“[...] disse que António Homem, entendia, morrera mal por culpa dos inquisidores

serem mancebos e pouco experimentados e saberem mal o que haviam de fazer e é

tanto assim que Lopo Soares ser inquisidor, que vossas mercês conhecem muito

bem, e que os inquisidores apertavam tanto com os homens que lhes faziam dizer o

que não cometiam e é tanto isto assim que Lopo Soares, inquisidor de Coimbra,

apertara tanto com um seu cunhado, do dito Lopo Soares, que o quis fazer judeu

sendo homem nobre, e disse que por aqui podiam julgar o que havia entre os

inquisidores [...]”450

.

As condenações de cristãos-novos que se mantiveram fiéis à Lei de Cristo até à hora

da morte foram um dos motes da crítica contra a actuação inquisitorial. Vítimas

sacrificiais de um tribunal que condenava inocentes, os seus nomes perpetuaram-se na

memória doutros cristãos-novos. Foram elevados à categoria de mártires e até alvo de

culto451

.

A 19 de Maio de 1619, no auto-de-fé celebrado em Évora, saíram 86 presos, 12 dos

quais relaxados em carne. Desde 1600 que não se registava um número tão elevado de

448

Cf. Idem, fl. 193. 449

Sobre o caso de António Homem, vide António José Teixeira, António Homem e a Inquisição, Coimbra,

Imprensa da Universidade, 1895; Elvira Azevedo Cunha Mea, “1625-1634 Coimbra. O sagrado e o profano

em choque”, RHI, n.º 9, 2ª parte, 1987, pp. 229-248. 450

Cf. ANTT, IE, liv. 212, fl. 22. Pedro de Barros referia-se a Lopo Soares de Castro, deputado da

Inquisição de Évora desde 1617 e inquisidor em Coimbra desde 1623. 451

Sobre a questão do martírio entre os cristãos-novos, vide Miriam Bodian, Dying in the Law of Moses.

Crypto-Jewish Martyrdom in the Iberian World, Blomington, Indiana University Press, 2007. A autora

debruça-se sobre a construção de um culto em torno dos mártires criptojudeus relaxados pela Inquisição

que se mantiveram convictos na fé judaica até ao último momento. No caso do Algarve, dentro dos

limites temporais estudados, são escassos os exemplos encontrados. Destaque-se o processo de Francisco

Fernandes de Lagos, abordado nas páginas seguintes.

Page 114: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

114

condenados por aquele tribunal452

. Sobre eles, Bento Lobo de Sousa, cristão-novo de

Lagos, teria dito “[...] que aqueles mártires todos eram de Beja [...]”453

. Ele próprio

acabaria por ser preso nesse mesmo ano454

.

Em Faro, Francisco Mendes, filho de Diogo de Tovar, chamava santos aos relaxados

pela Inquisição. Manuel Correia, moço da câmara real, residente em Lisboa, ouvira-o

falar de uma mulher que “[...] queria pôr fogo à Santa Inquisição [...]”, a qual acabou

relaxada à justiça secular. Essa mulher era “santa dos céus”, dizia Francisco Mendes455

.

O culto dos “mártires” da Inquisição comportava a procura e a conservação de

relíquias. Antónia Correia, tendeira de Évora, contou que, no início do mês de Abril de

1629, um forasteiro batera à sua porta. Julgando-a cristã-nova, perguntara-lhe se acaso

tinha “[...] algumas cinzas dos queimados que foram relaxados neste auto da fé [...]”. O

forasteiro era Francisco Correia, natural de Silves, que vivia de mendigar de casa em

casa. Devido a esta denúncia, foi preso a 16 de Maio de 1629. Se a tendeira alegou que

se fizera passar por cristã-nova para testá-lo, o mesmo argumento foi usado por

Francisco Correia. Ele referiu que tudo o que lhe dissera fora para “tirar dela”. Por isso,

fizera-se passar por correio dos cristãos-novos fugidos do Algarve e de Montemor-o-

Novo para Sanlúcar de Barrameda “[...] e que para as levar e trazer [as cartas], andava

ele pelo mundo e naqueles trajes por mais dissimulação [...]”456

. Enquanto esteve em

Évora, Francisco Correia assistiu ao auto celebrado a 10 de Abril de 1629, no qual foi

relaxado à justiça secular o seu parente Francisco Fernandes.

452

Cf. Borges Coelho, Inquisição de Évora..., pp. 179-180. 453

De facto, todos os relaxados no auto de 19 de Maio de 1619 eram de Beja (Cf. Joy L. Oakley (ed.),

Lists of the Portuguese Inquisition, vol. II – Evora 1542-1763, Goa 1650-1653, Londres, The Jewish

Historical Society of England, 2008, p. 16). Sobre a actuação inquisitorial em Beja neste período, vide

Borges Coelho, Inquisição de Évora..., pp. 404-407. 454

Cf. ANTT, IE, proc. 5906. Bento Lobo de Sousa era filho de Aldonça Loba, presa em 1586 e reconciliada

com cárcere ao arbítrio dos inquisidores no ano seguinte (Cf. ANTT, IE, proc. 4628). Os avós paterno e

materno também conheceram os cárceres inquisitoriais: Diogo Lobo e Mestre João foram vítimas da actuação

inquisitorial no início dos anos 60 do século XVI em Lagos (Cf. ANTT, IL, procs. 3270 e 12811). 455

Cf. ANTT, IE, liv. 212, fls. 306-306v. 456

Cf. ANTT, IE, proc. 6779. Sem nunca ter confessado, nem sob tormento, Francisco Correia abjurou de

levi no auto de 28 de Março de 1632 e foi posto em liberdade.

Page 115: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

115

Judeu até à morte – o caso de Francisco Fernandes

“Filhos de Jacob, sois a mais honrada gente que há no mundo, o Senhor que criou

os céus e a terra e o mar e as areias, e anjos e arcanjos, e sol e lua, e estrelas e

planetas, e faz da água peixes, e criou as aves do céu, e mandou o dilúvio em tempo

de Noé, seu servo querido, e o que deu a Lei a Moisés no alto do Monte de Sinai, a

qual Lei é para amar, e crer, e reverenciar com toda a alma, com todo o coração,

com toda a vida e com todo o haver”457

Estas e outras palavras ter-se-iam ouvido, na Rua Direita de Lagos, na manhã de 26

de Março de 1627. A voz era a de Francisco Fernandes, mancebo cristão-novo, filho de

Manuel Fernandes, o Cabeça de Vaca. A cidade já conhecia bem o seu temperamento

colérico, tal como a sua relação conflituosa com o pai. Mas, naquela manhã, tais

palavras suscitaram a intervenção das autoridades locais. Gaspar Seromenho, familiar

do Santo Ofício, fora informado do ocorrido por António Ribeiro Pinto, escrivão do

judicial, e procedeu à prisão. Francisco Fernandes não resistiu.

Ele não era o primeiro homem da família a cair nas malhas do Santo Ofício. O tio

paterno, António Fernandes, o Bezerro, fora preso pela Inquisição de Évora em 1623.

Entre os seus denunciantes, encontrava-se Gaspar Lopes Serralvo, o filho do pantufeiro

de Beja assassinado em Monchique. Um cunhado de António Fernandes, Nicolau

Fernandes, foi detido na mesma altura458

.

Os tios nunca confessaram qualquer prática judaizante, mas Francisco Fernandes

manteve-se convicto na afirmação da crença na Lei de Moisés, na qual fora iniciado

bem longe do lar paterno. E revelou-o com pormenor na sua confissão.

Em 1612, quando tinha cerca de 17 anos, Francisco embarcou de Lagos rumo a

Lisboa. Desejava conhecer a cidade. Em três ou quatro meses, gastou todo o dinheiro

que levara. Com vergonha de regressar a casa, foi para Castela em busca de sustento.

No início da Quaresma de 1613, embarcou para Aldeia Galega. Em Castela, passou por

Badajoz, Llerena e Sevilha, sem nunca ter encontrado forma de ganhar dinheiro. O

destino seguinte foi Múrcia, onde se tornou criado de Manuel da Fonseca, cristão-novo

português que se dedicava ao comércio de sedas.

Em Agosto de 1613, um episódio mudou a sua vida. Estando um dia a passear num

pepinal no termo de Múrcia, Francisco roubou um pepino. O dono apareceu e lançou-se a

457

Cf. ANTT, IE, proc. 7496, fls. 84-84v. 458

Cf. ANTT, IE, procs. 6298 e 4056. Foram ambos reconciliados com cárcere ao arbítrio dos

inquisidores – António logo no auto de 30 de Novembro de 1626 e Nicolau só dois anos depois. Em

1638, Nicolau Fernandes era já defunto. Nessa data, a sua mulher, Maria Rodrigues, foi denunciada por

uma escrava que a acusou de açoitar uma imagem de Cristo crucificado. Apesar da denúncia, não se

conhece nenhum processo contra Maria Rodrigues. (Cf. ANTT, IE, liv. 212, fls. 84-93).

Page 116: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

116

ele, chamando-o de judeu. Ao regressar a casa, Francisco queixou-se ao seu senhor de

que, em Castela, chamavam judeus a todos os portugueses. Isso ofendia-o, pois sempre

fora bom cristão, apesar de nascido numa família cristã-nova. Ao saber disso, Manuel da

Fonseca deu-lhe para as mãos a segunda parte do Flos Sanctorum de Alonso de Villegas e

aconselhou-o a lê-la459

. A partir de então, todas as noites em que não tinha trabalho,

Francisco lia o livro. Leu-o três vezes até que Manuel da Fonseca lhe perguntou se lera a

passagem sobre a vida de Moisés e a libertação do povo judeu do Egipto. O seu amo

ensinou-lhe, então, que a Lei que Deus dera a Moisés no Monte Sinai era a verdadeira e a

única pela qual se salvaria. Foi nesse momento que Francisco se apartou da fé cristã.

Ainda permaneceu em Múrcia até ao final de Maio de 1614. Manuel da Fonseca

adoecera gravemente e, ao vê-lo assim, Francisco resolveu ir à procura doutro trabalho.

Procurou-o infrutiferamente em Granada, Sevilha e Madrid. Regressou, então, a Lagos.

A 11 de Agosto, chegou a casa e o pai recebeu-o festivamente. Tendo-lhe perguntado

onde estivera durante todo aquele tempo, o rapaz, sem confiar na reacção do pai ao

saber da sua nova fé, mentiu-lhe, dizendo que estivera em Granada ao serviço de um

fidalgo. Só no ano seguinte é que Francisco ganhou coragem para contar a verdade ao

pai. «Pai e senhor, não imos bem encaminhados» – disse-lhe um dia, quando os dois

estavam sozinhos na loja. Manuel Fernandes não aceitou e expulsou-o de casa.

Provavelmente, essa reacção não fora motivada só pelo zelo cristão. Como vimos, os

Fernandes de Lagos já haviam atraído, no passado, as atenções do Santo Ofício e o

próprio Manuel Fernandes fora denunciado por Manuel Dias Pereira, mercador de

Tavira460

. Porém, ao contrário do irmão e do cunhado, ele conseguira escapar ao cárcere

inquisitorial. Mas a nova fé do filho representava um risco acrescido para a família.

Durante algum tempo, Francisco vagabundeou pela cidade. No mês de Abril de

1617, voltou a partir para Múrcia, em busca do amparo do seu antigo amo que,

459

A obra de Villegas é composta por duas partes: uma primeira parte dedicada à vida de Jesus Cristo e

uma segunda que contém a “Historia General en que se escrive la vida de la Virgen Sacratissima Madre

de Dios y las de los sanctos antiguos”. Por sua vez, esta segunda parte, cuja primeira edição data de 1583,

encontra-se dividida em duas secções, uma consagrada à vida da Virgem e outra às “vidas de los sanctos

patriarcas e prophetas de que la sagrada escriptura haze mención: particularmente los contenidos desde

Adan en el illustrissimo linage de la sagrada Virgen madre de Dios” (Cf. Alonso de Villegas, Flos

Sanctorum: Segunda parte y Historia General en que se escriue la vida de la Virgen sacratissima madre

de Dios, y señora nuestra y las de los sanctos antiguos..., Toledo, Juan Rodriguez, 1586). Tratando-se de

uma adaptação do Antigo Testamento, a segunda parte do Flos Sanctorum era correntemente lida pelos

cristãos-novos judaizantes como veículo de doutrinação na fé dos seus ancestrais. O mesmo acontecia

com outros textos supostamente ortodoxos mas cuja leitura e interpretação solidificava crenças e práticas

consideradas heréticas. Sobre este assunto, vide Manuel Peña Diaz, “Libros permitidos, lecturas

prohibidas”, Cuadernos de Historia Moderna. Anejos, n.º 1, 2002, pp. 85-101. 460

Cf. ANTT, IE, proc. 5686.

Page 117: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

117

entretanto, recuperara a saúde. Foi recebido com júbilo. Manuel da Fonseca ficou a

saber da reacção do seu pai e, opondo-se a este, confirmou-lhe o ensino.

De novo ao seu serviço, Francisco passou a percorrer o reino de Múrcia de lés-a-lés,

vendendo as mercadorias do seu senhor. Um dia, estando em Granada, ouviu dizer que

o Santo Ofício andava a prender muitos cristãos-novos portugueses na cidade de

Múrcia. Avisou, então, Manuel da Fonseca que o aconselhou a guardar segredo da sua

fé e confidenciou-lhe que haveria de partir para Itália, onde poderia viver livremente

como judeu.

Francisco Fernandes e Manuel da Fonseca partiram para Veneza. Chegaram à cidade

em Maio de 1620, passando a frequentar a judiaria da cidade e a sinagoga. Mas Manuel

da Fonseca tinha um outro objectivo: obter notícias de duas filhas que teriam passado por

Veneza a caminho da Turquia. Na judiaria, foi-lhe confirmado que elas haviam chegado

ao seu destino, tal como outros cristãos-novos de Múrcia que passaram pela cidade.

Porém, para Francisco, a principal meta da viagem era mesmo consolidar a sua nova

fé. Falou com letrados judeus e, durante dois meses, ia três vezes por dia à sinagoga.

Manuel de Israel foi o nome que adoptou, em homenagem ao seu amo e primeiro mestre

na fé judaica. Para seguir as orações na sinagoga, um judeu deu-lhe um livro que,

segundo a descrição, seria, possivelmente, um Sidur461

. Em Veneza, Francisco tomou

ainda conhecimento com dois frades que diziam ter vindo do Reino de Leão com o

intuito de se tornarem judeus. Também eles frequentavam a sinagoga e um dos frades,

pelos seus sermões, tornou-se particularmente popular em Veneza.

Os frades e Manuel da Fonseca embarcaram para a Turquia a 7 de Julho de 1620, mas

Francisco não os acompanhou. Queria regressar à terra e voltar a ver o pai. Nesse mesmo

dia, partiu de Veneza para Roma. No final do ano, estava em Granada, ao serviço de um

cristão-velho castelhano. Francisco conseguiu juntar dinheiro e comprou algumas

especiarias que andou a vender de lugar em lugar. Só chegou a Lagos a 22 de Janeiro de

1623. O pai ainda não tinha esquecido o que se passara anos antes mas aceitou acolhê-lo

na sua casa. Por sua vez, Francisco não lhe contou nada do que acontecera em Veneza e

escondeu o livro que trouxera, enterrando-o ao pé de uma videira. Nunca mais o resgatou.

461

Francisco Fernandes refere que o livro continha os salmos de David, sem o Gloria Patri, e várias

orações, entre as quais uma que dizia “[...] „Adonai, Adonai‟, que quer dizer que amaria o Senhor com

todo o coração e com toda a alma e com toda a vida e com todo o haver [...]” (Cf. ANTT, IE, proc. 7496,

fl. 80). Essa oração era o Amidah, rezado no final dos serviços diários (Cf. David Martin Gitlitz, Secrecy

and deceit. The religion of the Crypto-Jews, Albuquerque, University of New Mexico Press, 2002, pp.

460-462).

Page 118: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

118

O resto da história é já conhecido. Francisco Fernandes justificou a atitude que tivera

na manhã de 23 de Março: continuava crente na Lei de Moisés e andava muito agastado

pela forma como o pai o tratava e por ter de esconder a sua verdadeira fé.462

A 5 de Maio de 1627, entrou nos cárceres da Inquisição de Évora. Afirmava que

“[...] esta Mesa procedia mal em proceder contra a gente de nação que cria na Lei de

Moisés, porquanto eles faziam bem em crer na dita Lei pois ela era a Lei que Deus deu

a Moisés e a verdadeira [...]” e que os cristãos-novos só se baptizavam para encobrirem

o seu Judaísmo e para não perderem as suas vidas e fazendas463

. O Santo Ofício prendia

e condenava muitos cristãos-novos que não eram judeus “[...] e bradam por Cristo e sem

embargo disso morrem queimados e que se a Lei de Cristo fosse a boa, ele lhes acudira,

e já que não faz, é que não tem poder para isso, nem a lei é boa [...]”464

. Francisco

manteve estes argumentos perante os religiosos que o tentaram demover da sua

convicção religiosa.

Tudo indicava que ele sairia relaxado logo no auto de 18 de Junho de 1628. Mas tal

não aconteceu. Ora, isso deu-lhe mais um argumento – no fundo, os inquisidores sabiam

que ele falava a verdade e que Deus o livraria das chamas465

.

A 1 de Abril de 1629, sempre convicto de que se salvaria na Lei de Moisés,

Francisco Fernandes morreu na fogueira. A memória da sua morte permaneceu viva no

Algarve por muitos anos. Em 1647, numa devassa feita em Lagos pelo inquisidor

Manuel de Magalhães de Meneses, ainda se recordava o caso. A 19 de Setembro,

Lourenço Eanes Ribeiro, mandador da armação de Torralta, interrogado sobre uns

escritos pró-judaicos afixados nas paredes da cidade, dizia “[...] que ele não se persuade

que os ditos escritos os podiam fazer cristãos-velhos, antes entende que só o fariam

cristãos-novos, pois já nesta cidade houve um chamado Francisco Fernandes, que foi

queimado, que publicamente professou a Lei de Moisés e que assim é de crer que

estoutros o queiram fazer posto que mais em segredo [...]”466

O caso de Francisco Fernandes não caiu no olvido e regressava às bocas dos cristãos-

velhos de Lagos como prova da persistência da fé judaica entre a gente de nação.

462

Cf. ANTT, IE, proc. 7496, fls. 73-85v. Vide em anexo, pp. 392-402. Vide também: Borges Coelho,

Inquisição de Évora..., pp. 257-263. 463

Cf. ANTT, IE, proc. 7486, fls. 96v-97. 464

Cf. Idem, fls. 100-100v. 465

Cf. Idem, fls. 181v-182. 466

Cf. ANTT, IE, mç. 1, doc. 5, fls. 110-110v.

Page 119: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

119

Nas vésperas de uma nova vaga

A 26 de Junho de 1627, D. Filipe IV assinava o édito da graça467

. Durante um

período de 3 meses, os cristãos-novos que se apresentassem livremente perante a

Inquisição e confessassem os seus “desvios na fé”, receberiam a reconciliação sem que

lhes fosse incutida qualquer pena. Prorrogado por mais três meses, só em Fevereiro do

ano seguinte é que o tempo da graça terminou. Nos tempos que se seguiram, outras

medidas foram aplicadas. Concedeu-se aos cristãos-novos a possibilidade de se

habilitarem a todos os cargos e honras desde que, durante três gerações, não tivesse sido

levantado nenhum processo inquisitorial contra a sua parentela. Em 1629, era revogada

a lei que proibia a sua partida do reino.

Porém, a coroa revelava-se permeável a novas concessões à gente de nação. O

Conselho da Suprema Inquisição de Madrid estudou as propostas e, a 11 de Março de

1628, foi assinado um decreto em que se determinava uma série de mudanças na

actividade da Inquisição portuguesa, sobretudo nos aspectos que eram alvo das mais

acérrimas críticas por parte dos representantes dos cristãos-novos, como as prisões por

testemunhos singulares e a impunidade sobre as falsas delações468

. A Igreja portuguesa

não aceitou tais medidas de ânimo leve e as estipulações vindas de Madrid nunca foram

aplicadas na prática. Entre Maio e Agosto de 1629, reuniu-se em Tomar uma junta de

bispos e teólogos destinada a avaliar os meios para a aniquilação definitiva do judaísmo

no reino. A presença de tantos cristãos-novos judaizantes contribuíra indelevelmente

para a decadência de Portugal – esta e outras conclusões da Junta de Tomar acabariam

por conduzir ao agravamento da relação entre cristãos-novos e cristãos-velhos. O caso

de Santa Engrácia foi sintomático.

Para os cristãos-novos portugueses, o édito da graça e a permissão de partida para

lá das fronteiras revelaram-se presentes envenenados. Reproduziu-se, em parte, o que

D. Fernão Martins Mascarenhas advogara no tratado escrito em 1626. Assim,

acompanhavam o édito medidas destinadas a fomentar o rigor da actuação

inquisitorial, como a aplicação da pena de desterro aos suspeitos que abjurassem de

vehementi e o alargamento da condenação à morte aos dogmatistas. Até a liberdade de

467

Sobre o édito da graça de 1627, vide Borges Coelho, Política, Dinheiro..., pp. 143-144; Pulido

Serrano, Injurias a Cristo..., pp. 90-100. 468

O decreto estipulava, entre outras medidas, o seguinte: que os réus presos por testemunho singular não

poderiam ser condenados à morte; os testemunhos falsos deveriam ser castigados; os réus poderiam

conhecer mais detalhes da acusação e ao inquisidor não seria permitido induzir-lhes respostas; os

reconciliados com culpas leves sairiam em auto privado. Era também decretado que a Inquisição portuguesa

deveria ajustar o seu procedimento à de Castela (Cf. Pulido Serrano, Injurias a Cristo..., pp. 95-96).

Page 120: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

120

saída do reino apresentava algumas limitações – os que pretendessem seguir para as

Índias de Castela apenas o poderiam fazer mediante uma licença especial. Tal não foi

a única razão por que muitos não aproveitaram a possibilidade de abandonar o reino.

Por ordem do Conselho da Fazenda, os nomes e os destinos de todos os cristãos-novos

que se ausentassem de Portugal seriam registados, o que dissuadiu muitos de partirem,

temendo as consequências derivadas desses registos469

.

Segundo o édito da graça, a confissão só seria válida se apresentada perante um

inquisidor. Ora, este tinha então a oportunidade de arrancar denúncias e obter mais

suspeitos. Os números dos processados nos anos seguintes ao édito não deixam margem

para equívocos. Em 1629, foram emitidas 557 sentenças, sendo que, entre 1621 e 1640,

a média anual para o conjunto dos três tribunais rondava as 280470

.

No Algarve, uma sucessão de acontecimentos indiciava o advento de uma nova vaga

repressiva. Em 1628, faleceu D. Fernão Martins Mascarenhas. No ano anterior, tornara-se

bispo do Algarve D. Francisco de Meneses, antigo inquisidor dos tribunais de Coimbra e

de Lisboa. De tal experiência, ficou-lhe a reputação de rigor e inclemência para com a

gente de nação471

.

Foi já com uma provecta idade que D. Francisco de Meneses assumiu o episcopado

algarvio. Porém, logo nos primeiros anos de funções, conseguiu visitar toda a região. Entre

1630 e 1633, há o registo de que tenha visitado, pelo menos, 135 paróquias472

. Então, D.

Francisco traçou o retrato do estado da Igreja no Algarve – as condições físicas dos locais

de culto, os comportamentos dos fiéis, a actuação do clero. Numa relação escrita em 1631,

D. Francisco de Meneses alertava para o facto de que havia “[…] na dita Sé de faro alguns

capitulares que têm parte da nação hebrea e outros infamados disso […]”. A relação foi

enviada à Santa Sé dois anos depois, num momento em que a Inquisição já tinha entrado

em força na cidade de Faro473

.

Entretanto, por todo o reino, os cristãos-novos contribuíam para a finta comprada

em juros à fazenda real. Reuniu-se um total de 246 mil cruzados. Das 1804 famílias

469

Cf. Idem, Ibidem, pp. 91, 100. 470

Cf. José Veiga Torres, “Uma longa guerra social: os ritmos da repressão inquisitorial em Portugal”,

RHES, n.º 1, Janeiro-Junho 1978, p. 59. 471

Cf. Joaquim Romero Magalhães, E assim se abriu..., pp. 8-9. 472

Cf. Bruno Léal, La crosse et le bâton. Visites pastorales et recherche des pêcheurs publics dans le

diocèse d’Algarve, 1630-1750, Paris, Fundação Calouste Gulbenkian, 2004, p. 126. Só entre Maio e Julho

de 1631, D. Francisco de Meneses visitou 22 localidades, entre Paderne e Cacela, passando pelas

freguesias de Lagos e Silves. A visitação continuou até Junho de 1632, mas o bispo delegou as funções de

visitador ao Lic. António Teixeira. (Cf. Arquivo Episcopal de Faro (AEF), cx. 20-100, “Visitas de D.

Francisco de Meneses, 1631-1632”). 473

Cf. Romero Magalhães, E assim se abriu..., p. 8.

Page 121: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

121

cristãs-novas fintadas em 1631, 287 eram do Algarve474

. Tomando como referência

estes dados que, segundo Borges Coelho, pecam por defeito, cerca de um sexto dos

cristãos-novos residentes em Portugal viveria no extremo sul do reino475

.

Os dados da finta de 1631 fornecem, igualmente, um panorama da distribuição da

gente de nação pelas localidades algarvias476

. Não obstante a entrada da Inquisição nos

anos 60 do século XVI, Tavira continuava a ser a cidade onde residiam mais cristãos-

novos. Afinal, em termos demográficos, era ainda a maior metrópole do Algarve. Por

outro lado, a presença de famílias de nação no Barlavento revela-se bem menos

expressiva. Vila Nova de Portimão registava números bastante modestos, possivelmente

fruto das prisões ocorridas no final de Quinhentos e da consequente vaga migratória.

Por outro lado, Faro destacava-se como a segunda cidade do Algarve.

De acordo com Romero Magalhães, a finta de 1631 deu acesso a informações

essenciais para a Inquisição poder estruturar uma nova entrada na região. Os cristãos-

novos que usufruíam de uma mais avultada fortuna estavam, assim, identificados.

Ficara-se a saber quais localidades onde a sua presença era mais notável.

Apesar de os números indicarem Tavira como a cidade com mais vizinhos cristãos-

novos, dadas as suas condições geo-estratégicas, este não era o melhor alvo para uma

nova vaga de prisões. Muito próxima da fronteira, seria fácil a fuga para Castela. Por

outro lado, Faro apresentava-se como a melhor solução477

. Verificamos que 39% dos

cristãos-novos da cidade fintados em 1631 foram presos pela Inquisição nos anos

seguintes, enquanto que 8% deles já tinham abandonado o reino quando começou a vaga

de prisões. Além do mais, sendo sede episcopal, a entrada da Inquisição contou com o

auxílio prestes do bispo D. Francisco de Meneses. Ele tornou-se num dos protagonistas da

maior vaga de detenções inquisitoriais jamais registada no Algarve.

474

Cf. Mendes dos Remédios, Os Judeus em Portugal..., p. 146. 475

Cf. Borges Coelho, Política, Dinheiro..., p. 212. 476

Vide, em anexo, gráfico sobre a distribuição da finta pelas localidades algarvias, p. 97. Os dados

baseiam-se no documento apresentado por Mendes dos Remédios (Cf. Mendes dos Remédios, Os Judeus

em Portugal..., pp. 176-184). 477

Cf. Romero Magalhães, O Algarve Económico..., pp. 370-371.

Page 122: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

122

4. 1630-1650: A GRANDE ENTRADA

Entre 1633 e 1637, entraram nos cárceres da Inquisição de Évora mais de 250 cristãos-

novos residentes em Faro. Cristóvão Rodrigues, executor da fazenda real no Algarve,

justificava assim um número tão elevado de prisões na cidade:

“[...] é um lugar tão abreviado, como Vossas Senhorias devem ter notícia, do que pode

dizer viviam todos de umas portas adentro e, em particular, a gente de nação por

estarem tão unidos e ligados em amizades, parentescos, casamentos e companhias nos

tratos que, em puxando por um, se vinham todos, de cuja conglutinação procedeu que

uma só faísca que caiu entre eles se lhe converteu em raio [...]”478

.

Essa faísca teve um nome, Branca Dias.

Branca Dias confessa

Branca Dias tinha pouco mais de 30 anos em 1631. Natural de Faro, vivia na Rua da

Estalagem, na freguesia de São Pedro. O seu marido, Afonso Pinto Santos, era rendeiro

e, tal como ela, cristão-novo. O pai, Diogo Duarte, nasceu em Loulé e era cirurgião,

enquanto que a mãe, Isabel Guterres, com origens em Vila Nova de Portimão, era

parente dos Gramaxo, família que, como já vimos, povoara os cárceres de Évora em

finais do século anterior479

.

A 9 de Março, Branca apresentou-se voluntariamente perante o bispo D. Francisco

de Meneses para “descarregar a sua consciência”. Fazia-o em segredo, longe do

conhecimento do marido. Cerca de 20 anos antes, a sua irmã mais velha, Francisca

Duarte, ensinara-lhe que só havia salvação na Lei de Moisés e não na de Cristo. Por

isso, deveria fazer o jejum do dia grande que vinha em Setembro (Quipur) e o da Rainha

Ester, tal como os jejuns das segundas e quintas-feiras, não ingerindo nenhum alimento

até ao aparecimento da primeira estrela. Deixaria de comer lebre, coelho, carne de

porco, peixe sem escama e aves afogadas e a carne teria de ser sangrada antes de

consumida. O ensino da irmã não foi suficiente e Branca teve de confirmá-lo perante os

pais. Então, “[...] passou à Lei de Moisés, crendo e esperando salvar-se nela e não na de

Cristo [...]”. Até à morte dos pais e ao casamento da irmã, manteve essas práticas no

seio familiar.

478

Cf. ANTT, IE, proc. 2699, fl. 326. 479

Cf. ANTT, IE, proc. 3739, fls. 22-23. Sobre o processo de Branca Dias e o início da vaga de prisões

em Faro, vide Romero Magalhães, E assim se abriu....

Page 123: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

123

Um cristão-novo oriundo de Nantes, Manuel Mendes, completou a sua doutrinação.

Hospedado na casa dos seus pais, ele ensinou-lhe que, nas noites de sexta-feira, deveria

acender os candeeiros com azeite limpo e torcidas novas e deixá-los acesos até se

apagarem por si. Aos sábados, não deveria trabalhar, mas sim vestir roupa lavada, por

observância da Lei de Moisés. Branca Dias não foi a única a ouvir tais ensinamentos de

Manuel Mendes – estavam também presentes, além dos pais e da irmã, Inês Pousada e

as filhas Beatriz Álvares, Isabel Mendes e Branca Dias. Depois do ensino, o grupo

continuou a celebrar algumas das cerimónias em conjunto.

Branca Dias ainda denunciou outros cristãos-novos de Faro com quem comunicara a

sua nova fé: Beatriz Mendes, irmã da dita Inês Pousada; a sogra, mulher e filha de

Baltazar Pinto, mercador entretanto falecido (Mécia de Oliveira, Catarina Filipe e Mécia

de Oliveira, respectivamente); e a sobrinha Beatriz Mendes, filha de Francisca Duarte.

Por terceiros, sabia que também mantinham práticas judaizantes Isabel da Costa, casada

com Gaspar Fernandes, mercador de Faro, e Francisco da Costa, de quem Manuel

Mendes dizia ser “sacerdote” da Lei de Moisés480

.

Mas esta confissão não era suficiente para accionar mais prisões. Não havia como

corroborar as denúncias sem atrair atenções indesejadas. E todos os cuidados eram

poucos para manter o segredo e evitar a fuga dos suspeitos. Então, Branca Dias

permaneceu em liberdade.

Em Julho, na cidade de Lisboa, onde alegadamente fora tratar doutros assuntos

relativos ao bispado, D. Francisco de Meneses teria apresentado o caso de Branca Dias

ao inquisidor-geral481

. Numa missiva de 6 de Dezembro de 1631, D. Francisco de

Castro dava ordens para que o bispo do Algarve continuasse com as diligências e

procedesse às sessões de crença e de genealogia482

. Deveria ser ele, pois “[...] foi

inquisidor e o fará muito bem [...]” – aconselhavam os inquisidores de Évora num

parecer ao inquisidor-geral483

. Tratava-se de uma situação extraordinária. O segredo,

necessário à entrada numa terra ainda virgem à acção do Santo Ofício (só nas palavras

dos inquisidores!), justificava o extravasar dos limites traçados entre o poder episcopal e

o inquisitorial.

Branca Dias apenas voltou a ser interrogada pelo bispo mais de um ano após a sua

primeira confissão. Entretanto, chegavam aos ouvidos de D. Francisco de Meneses

480

Cf. ANTT, IE, proc. 3739, fls. 14v-17v 481

Esta hipótese é colocada por Romero Magalhães, E assim se abriu..., p. 9. 482

Cf. ANTT, IE, proc. 3739, fl. 18. 483

Cf. ANTT, TSO, CG, liv. 97, fls. 127-128. Vide, em anexo, pp. 404-405.

Page 124: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

124

novas denúncias contra ela e contra a sua família. Bernarda da Silva, escrava alforriada

que, no passado, servira a mãe de Branca Dias, contou que ela tinha um filho

circuncidado. Além disso, quando a sua senhora faleceu, viu uma outra filha, Isabel

Mendes, a deitar fora a água que havia em casa para beber484

. A devassa sobre estas

novas suspeitas poderia suscitar atenções indesejadas. Só uma nova sessão de perguntas

à própria Branca Dias esclareceria essa dúvida.

Numa carta de 29 de Maio de 1632, D. Francisco de Meneses informava que já

havia combinado com Frei Francisco de Vila Nova, padre do Convento de Santo

António, que a sessão com Branca Dias iria decorrer nesse mesmo lugar, dois ou três

dias antes da festa de Santo António485

. Porém, acabou por ser no próprio dia do santo.

Encontrara-se o pretexto ideal para Branca Dias se deslocar, a 13 de Junho, ao Convento

de Santo António – iria prestar culto ao santo de que era devota.

Nesta nova sessão, as denúncias chegaram a Loulé. Branca Dias delatou as

famílias de Isabel Guterres e de Manuel Franco, além da tia Grácia Duarte, entretanto

já falecida. Sobre a circuncisão do filho, nada disse486

. D. Francisco de Meneses

concluiu que, caso tal se comprovasse, era possível que ela o desconhecesse. A

circuncisão poderia ter sido iniciativa do marido. Afinal, o bispo não a tinha por

“impenitente diminuta”487

.

Os inquisidores também consideraram essa questão secundária e adiaram-na para

mais tarde488

. Só foi retomada no ano seguinte, a 9 de Setembro de 1633, com o exame

do rapaz e a prova da sua circuncisão489

. Branca Dias tinha falecido havia duas semanas.

Nunca chegou a ser reconciliada e o seu processo ficou em aberto. A irmã Francisca

Duarte, que entretanto fora presa, denunciara um outro irmão, Custódio Mendes. Porém,

Branca Dias nunca chegou a acusar o irmão e, com a sua morte, o processo ficou em

suspenso. Custódio Mendes acabaria por ser preso no ano seguinte, uma prisão

fundamentada apenas na denúncia da irmã Francisca.

No início de Agosto de 1633, os inquisidores escreviam sobre as consequências

das delações de Branca Dias: “[...] pois por elas se vai entrando na cidade de Faro,

onde a maior parte da gente é de nação, a qual já suspeita nascer tudo de sua

484

Cf. ANTT, IE, proc. 3739, fls. 5-6. 485

Cf. Idem, fls. 8-9. 486

Cf. Idem, fls. 21-22. 487

Cf. Idem, fl. 10. 488

“E que, por ora, se não deve fazer caso do testemunho de Bernarda da Silva, porquanto ela só depõe de

um filho da Ré estar cortado e muito bem se poderia enganar ou o menino nascer daquele modo, como há

exemplos [...].” (Cf. Idem, fl. 26v). 489

Cf. Idem, fls. 33-35.

Page 125: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

125

apresentação [...]”490

. Portanto, já se sabia em Faro quem ateara o rastilho. Poucos dias

depois destas palavras, Branca Dias falecia. Sobre as circunstâncias da sua morte,

nada sabemos. Porém, logo que começaram as prisões, surgiram as ameaças. A 14 de

Maio de 1633, António Pires Ingres, comissário do Santo Ofício, referindo-se a uma

carta que Branca Dias escrevera ao juiz de fora, dizia que:

“[...] não tratava nela outra alguma cousa mais que pedir ao dito juiz lhe acudisse e

valesse porque as escravas de Estevão Rodrigues e António Fernandes Castanho a

iam admoestar à sua porta, chamando-lhe nomes sujos e dizendo que as ditas

mulatas a ameaçavam que lhe haviam de tratar mal os seus meninos, da dita Branca

Dias, porquanto diziam os sobreditos Estevão Rodrigues e António Fernandes que

ela, Branca Dias, fizera prender a ré, Francisca Duarte, e a sua filha, Beatriz

Mendes, o que ela negava, dizendo que lá estavam na casa santa da verdade e que

lá saberiam quem lhes fez o mal [...]”491

.

Branca Dias deixou órfãos sete filhos, todos menores. A mais velha, Isabel Mendes,

que tinha então cerca de 10 anos, acabaria por ser presa em 1636492

. O marido, Afonso

Pinto Santos, abandonou a cidade, evitando assim a possível prisão. Porém, grande

parte da família de Branca Dias não teve a mesma sorte. A sua confissão desencadeou,

directa ou indirectamente, uma sucessão de processos entre os seus parentes. Já nos

cárceres, alguns questionaram as razões que teriam estado por detrás de tal confissão. A

defesa de Francisca Duarte alegou uma querela familiar em torno da herança deixada

pelo falecimento da irmã Isabel Mendes. No seu testamento, esta nomeara o marido de

Francisca, Estêvão Rodrigues, como seu herdeiro e testamenteiro. Tal causara o

desagrado dos outros irmãos. Tornaram-se frequentes as trocas de injúrias e ameaças.

Em carta dirigida à Inquisição de Évora, o próprio Estêvão Rodrigues e o seu genro

António Fernandes Castanho mencionaram esse episódio. Branca Dias chegara a

ameaçar a irmã e a sobrinha, Beatriz Mendes, de que “[...] as havia de meter na

Inquisição [...]”493

. E não se limitou às ameaças...

490

Cf. Idem, fl. 26. 491

Cf. ANTT, IE, proc. 6519, fls. 174-174v. 492

Cf. ANTT, IE, proc. 2878. 493

Cf. ANTT, IE, proc. 6519, fls. 143-146. Vide em anexo, pp. 405-409.

Page 126: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

126

As primeiras prisões em Faro

Dos cristãos-novos de Faro delatados por Branca Dias, a irmã Francisca Duarte e

a sobrinha Beatriz Mendes foram as primeiras a chegar aos cárceres de Évora, ainda

no Verão de 1632. A confissão de Branca não era suficiente para proceder a mais

prisões. Inclusivamente, as detenções de Francisca Duarte e da filha esbarraram com

os limites colocados às prisões por testemunho singular. Mas tal não impediu o

desencadear dos processos.

Beatriz Mendes adiantou-se à mãe na confissão. Logo a 7 de Agosto, confessou que,

havia 4 anos, se apartara da fé cristã, ensinada por Isabel Lopes, cristã-nova de Faro,

entretanto falecida. A sua confissão não satisfez os inquisidores. Primeiro, em nada

coincidiu com as denúncias de Branca Dias. Depois, ela limitou-se a denunciar

indivíduos exteriores ao seu círculo familiar, muitos deles já falecidos e outros com

processos inquisitoriais no passado.

Só depois de sujeita a tormento é que Beatriz Mendes denunciou a mãe. As delações

cresceram exponencialmente nas sessões seguintes e foram poucos os familiares mais

próximos omitidos na sua confissão. Na mesma sessão em que admitiu ter comunicado a

sua fé na Lei de Moisés com os tios Branca Dias e Custódio Mendes, Beatriz também

denunciou a sogra, Mor Gonçalves; a avó paterna, Beatriz Mendes; e o próprio pai,

Estêvão Rodrigues. Note-se que, a 17 de Setembro de 1633, quando ocorreu a dita sessão,

todos eles já se encontravam nos cárceres de Évora. A avó fora presa logo em 1632, o pai

a 18 de Julho de 1633 e a sogra meses depois, a 4 de Outubro494

.

A mãe de Beatriz Mendes contribuiu ainda mais decisivamente para a entrada da

Inquisição em Faro. Aliás, se Branca Dias ateou o rastilho, Francisca Duarte foi a

responsável pelo acelerar da combustão. Tal como a filha, ela atribuiu o ensino a uma

mulher entretanto já falecida e com quem não tinha ligações familiares: Inês Vaz, viúva,

com mais de 60 anos quando a iniciara na fé judaica495

. Nas primeiras sessões, a única

parente denunciada foi a sogra, Beatriz Mendes. Porém, os inquisidores sabiam que

Francisca era quem melhor poderia corroborar o testemunho de Branca Dias e, assim,

desencadear mais prisões na cidade. Insistiram e sujeitaram-na a duas sessões de tormento.

Só então é que a sua confissão começou a entrar no círculo familiar mais próximo496

.

494

Cf. ANTT, IE, procs. 2324 e 3588. O processo de Estêvão Rodrigues encontra-se desaparecido. 495

Cf. ANTT, IE, proc. 6519, fls. 40-40v. 496

Cf. Idem, fls. 91-94.

Page 127: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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Ainda no decorrer de 1632, as consequências fizeram-se notar. A 8 de Dezembro,

entrou nos cárceres de Évora a sua sogra, Beatriz Mendes. Os inquisidores justificaram

assim a prisão por testemunho singular:

“[...] havendo respeito a Faro ser terra que se descobre de novo e em que há tanta

gente de nação, de que muitas vezes vêm denunciações [...] E como ela tem esta

nora [Francisca Duarte] e uma neta [Beatriz Mendes] presas, de crer é que cuide

que ambas têm dado nela e confesse, com o que se poderá abrir judaísmo no

Algarve, donde cada dia temos denunciações e se entende que anda mui viva a

crença na Lei de Moisés [...]”497

.

Esperava-se que a confissão de Beatriz Mendes abrisse novos caminhos para a

intervenção inquisitorial na região. Mas ela fora presa com cerca de 80 anos de idade.

Sem conseguir resistir às agruras do cárcere, faleceu na noite de 11 de Abril de 1633498

.

Tal como Beatriz Mendes, Custódio Mendes chegou a Évora com apenas uma

denúncia no cadastro, a da sua irmã Francisca Duarte. A 22 de Julho, o dia seguinte à

sua entrada nos cárceres de Évora, ele começou a confessar. Custódio fora iniciado na

fé judaica aos 13 anos de idade e, muito tempo depois, Manuel Mendes, o mercador

de Nantes também mencionado por Branca Dias, reforçou-lhe o ensino. Nesta

primeira sessão, Custódio Mendes alegou que regressara à fé de Cristo desde há dois

anos, “[...] movido dos milagres que vira fazer ao Santo Cristo de Moncarapacho, três

léguas de Faro, aonde fora em romaria, o qual, indo ele doente dos olhos, lhe deu

saúde, untando-se com o seu azeite [...]”499

.

Custódio tinha estudado Direito em Salamanca, de onde regressara em 1612 ou

1613. A partir de então, passou a comunicar regularmente a sua fé com os seus parentes

mais próximos. Vira a irmã Francisca fazer as cerimónias de sexta-feira e guardar os

sábados de trabalho. Perante um painel de Santa Maria Madalena que tinham em casa,

ela e a filha faziam figas e diziam: «Toma com estas, gorda»500

.

De facto, a irmã e a sobrinha foram as grandes visadas nas denúncias de Custódio

Mendes. Recordemos a questão da herança da irmã Isabel Mendes e todas as divisões

familiares daí advindas. Com o avançar das sessões, ele acabou por também denunciar a

esposa, Isabel Pinta. Por ocasião da prisão de Manuel Nunes de Moura, a sua mulher

ter-lhe-ia dito que, algum dia, também ela se veria nesses trabalhos. Esta prisão,

497

Cf. ANTT, IE, proc. 2324, fl. 6v-7. Transcrito em Romero Magalhães, E assim se abriu..., pp. 39-40. 498

Cf. Idem, fl. 36. Os herdeiros foram chamados a apresentar a defesa mas nunca compareceram na mesa.

A 25 de Março de 1635, Beatriz Mendes era relaxada em estátua à justiça secular. 499

Cf. ANTT, IE, proc. 6954, fl. 85. Sobre o culto ao Santo Cristo de Moncarapacho vide: J. Fernandes

Mascarenhas, Santo Cristo. Subsídios sobre o seu culto em Portugal, especialmente em Ponta Delgada e

Moncarapacho,[s.l.], [s.n.], 1971; Antero Nobre, O Santo Cristo de Moncarapacho. A sua lenda, a sua

tradição, a sua capela, a restauração do seu culto, Faro, Minerva Farense, [s.d.]. 500

Cf. ANTT, IE, proc. 6954, fls. 86-86v.

Page 128: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

128

ocorrida em 1624, abalou a família de Custódio Mendes501

. O cunhado Afonso Pinto

Santos revelara-lhe igualmente a sua apreensão502

. Afinal, Manuel Nunes de Moura era

muito próximo da família – vizinho de Branca Dias, era marido de Beatriz Álvares, filha

de Heitor Dias de Castro e de Inês Pousadas e sobrinha de António de Tovar de

Miranda, todos eles presenças habituais na casa de Diogo Duarte e Isabel Guterres503

.

A 5 de Setembro de 1633, foi dada ordem de prisão à mulher de Custódio Mendes.

Embora tivesse chegado aos cárceres só com a denúncia do marido, Isabel Pinta acabou

delatada por quase meia centena de testemunhas. Tendo iniciado a sua confissão logo no

dia em que entrou no calabouço inquisitorial, a 16 de Setembro, Isabel revelou-se

inconstante, hesitando na identificação do tempo e do responsável pelo seu “apartamento”

da fé cristã504

. Mesmo assim, trouxe à mesa do Santo Ofício novos suspeitos.

Muitos elementos da família Pinto tentaram a fuga para Castela no início de

Setembro, um mês depois da prisão de Isabel Pinta. Eles tinham consciência de que

dificilmente sairiam incólumes. Além disso, retomar a vida em Castela seria uma tarefa

facilitada pelos laços que uniam a família ao reino vizinho – o patriarca, Pedro Gomes

Pinto, era um mercador castelhano que se estabelecera em Faro. Beatriz Pinta, Leonor

Duarte e Maria da Luz, irmãs de Isabel Pinta, o tio Sebastião Dias e os filhos Pedro

Gomes Pinto e Simoa dos Santos empreenderam uma tentativa de fuga rumo a Castela.

Mas esta saiu frustrada e foram presos pela Inquisição505

.

O Conselho Geral do Santo Ofício ordenara que se alguém estivesse indiciado, nem

que fosse por uma só denúncia, e se suspeitasse de que iria partir do reino, seriam dadas

instruções ao bispo para mandar efectuar a prisão506

. Assim, desde o momento em que

alguém era denunciado, passava a estar sob o olhar das autoridades. Foi o que aconteceu

com Maria Mendes, mulher de José Dias, sapateiro cristão-velho, delatada por Francisca

Duarte e Beatriz Mendes em Outubro de 1633. O bispo deu ordens ao meirinho Nuno

Vaz Guedes para vigiar a sua casa e ele assim o fez:

“[...] perto das dez horas da noite, se foi ele, declarante, muito manso e com toda a

dissimulação, pôr à porta de José Dias e, estando com a orelha na porta, ouviu falar

o dito José Dias na casa dianteira, porque não tem sobrado e são terreiras, com sua

501

Sobre Manuel Nunes de Moura, vide supra, pp. 103-104. 502

Cf. ANTT, IE, proc. 6954, fls. 96-96v. 503

Inês Pousadas era prima de Diogo Duarte, desconhecemos em que grau. (Cf. ANTT, IE, proc. 6726,

fl. 155v). 504

Cf. ANTT, IE, proc. 3749, fls. 75v-76; 80-80v, 91. 505

Cf. ANTT, IE, procs. 2330, 5767, 7078, 2719 e 11030. 506

Cf. Romero Magalhães, E assim se abriu..., p. 15.

Page 129: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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mulher, Maria Mendes, e com sua sobrinha, da dita Maria Mendes, dizendo a dita

Maria Mendes que se havia de ir para Sevilha [...]”507

.

Maria Mendes foi detida por suspeita de fuga e, no mês seguinte, estava de partida

para os cárceres de Évora. Então, muitos outros cristãos-novos de Faro eram presos

pelas mesmas razões.

Em fuga

“[...] Haverá três dias ou quatro que Manuel Soares Henriques, cristão novo e

primo de Manuel Henriques, mercador, lhe disse a ele, declarante, que via tantas

prisões na gente de nação que desejava de se ir ele e sua mulher, e que era ido

Gabriel Nunes, casado com uma filha sua, e que também se ele queria ir se não

receara prenderem-no por esse caminho [...]”508

.

As palavras são de João Martins Pinto, cristão-velho de Faro, e datam de 8 de

Outubro de 1633. A intenção de Manuel Soares Henriques, que seria preso ainda no

decorrer desse mês, era comum a tantos outros cristãos-novos de Faro num momento

em que a Inquisição começava a entrar em força na cidade. De facto, a partir de

Setembro, cresceu o número dos que saíram da cidade de Faro e rumaram à fronteira.

Isabel Gomes, tia de António Fernandes Castanho (genro de Francisca Duarte),

alegando ser mulher pobre e sem meios para se sustentar, pediu licença para seguir rumo

a Castela, onde contaria com o apoio de parentes ali estabelecidos. No mesmo dia, D.

Francisco de Meneses deu ordens para que quatro homens vigiassem a sua casa. Durante

a madrugada, os vigias assistiram a movimentos que indiciavam a fuga: o pagamento a

um almocreve do aluguer de duas bestas de carga e a saída de Isabel Gomes, ocultada por

um manto, confundindo-se com outras mulheres que, àquela hora, saíam de casa para

assistirem à primeira missa. Perseguida pelas ruas de Faro, ela acabou por ser presa já nos

limites da cidade, junto à ponte da estrada de Tavira509

. Depois de presa, Isabel Gomes

continuou a alegar que não estava a fugir – só queria ir para Sevilha em busca de uma

vida mais desafogada. Mas isso não a livrou da condenação máxima e, no auto-de-fé de

25 de Março de 1635, foi relaxada à justiça secular.

507

Cf. ANTT, IE, proc. 1786, fl. 9. 508

Cf. ANTT, IE, proc. 8602, in Romero Magalhães, E assim se abriu..., p. 51. 509

Cf. ANTT, IE, proc. 2219, fls. 9-17v. Este episódio encontra-se também referido em Borges Coelho,

Inquisição de Évora..., pp. 117-118.

Page 130: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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A ponte da estrada de Tavira era a porta de saída de Faro para quem optava pela

viagem por via terrestre510

. Seguir o caminho por terra tornava-se mais fácil em termos

logísticos e permitia uma maior espontaneidade na partida. Por isso, não obstante os

perigos que assolavam os caminhos, muitos optavam por esta via para abandonarem a

cidade e o reino. De Faro seguiam para Tavira e dali rumo a Castro Marim, onde

passavam o Guadiana511

. Seria este o percurso que Inês Dias e a sobrinha Simoa Luís

tomariam, caso não fossem detidas pelo caminho. As duas haviam saído de Faro a 24 de

Janeiro de 1634. Simoa Luís ainda conseguiu chegar até Castro Marim, mas Inês Dias, a

Bicuda, foi presa em Tavira. D. Francisco de Meneses, logo que soube da ausência das

duas mulheres, deu ordens aos párocos de Moncarapacho e de Santa Catarina do Bispo

para as procurarem pelas suas freguesias. O padre Henrique Delgado, não as tendo

achado em Moncarapacho, seguiu para Tavira, onde contactou o juiz de fora. Foi este

quem deteve Inês Dias, escondida na casa de um parente512

.

Cerca de 9 léguas e meia separavam Faro de Castro Marim, seguindo pelo caminho

mais directo. Quando os fugitivos contavam com a ajuda de animais de carga, o que era

habitual, o percurso concretizava-se facilmente num único dia de viagem. Porém, havia

também quem optasse por passar a fronteira mais a Norte, por Alcoutim. Ali, a travessia

do Guadiana era mais curta, mas o percurso total alargava-se em mais algumas léguas.

Por outro lado, o caminho pelo interior da região era menos vigiado.

De modo a guardar-se o maior secretismo possível, as fugas eram empreendidas

durante a noite e em pequenos grupos, geralmente ligados por laços familiares. Bárbara

Fernandes, filha de Manuel Mendes do Óculo e esposa de Diogo de Tovar, tentou partir

rumo a Cádis com os filhos e um sobrinho513

. Inês Pousada, denunciada pela prima

Branca Dias, galgaria a fronteira na companhia dos netos, se as autoridades não os

tivessem encontrado escondidos nas covas dos valados de umas vinha, por detrás da

igreja de São Sebastião, já em plena fuga514

.

510

A estrada de Tavira aparece também mencionada na documentação como “estrada de Castela”. 511

Anos antes, em 1618, um cristão-novo de Tavira, Baltazar Dias, informava: “Quando alguma pessoa

vai fugitiva, ou se teme da justiça, de Tavira para Castela, comummente se embarca logo em a dita

cidade, ou faz caminho a Montegordo, ou ao menos vai a Junqueira, que é por cima de Castro Marim

meia légua, do qual caminho ele, réu, usava muitas vezes para Alcoutim, e nele há sempre embarcação,

ou para Mértola, ou para além do rio que é Castela” (Cf. ANTT, IE, proc. 5603, fls. 100-100v). 512

Cf. ANTT, IE, proc. 7334, fls. 7-10v. Vide, em anexo, pp. 419-421. 513

Cf. ANTT, IE, proc. 6721, fl. 10. 514

Cf. ANTT, IE, proc. 5671, fls. 10-11. Vide, em anexo, pp. 415-416. Inês Pousadas foi presa nos

cárceres de Évora a 4 de Janeiro de 1634 e saiu reconciliada, com cárcere e hábito penitencial perpétuos,

no auto de, 25 de Março de 1635.

Page 131: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

131

A tentativa de evasão de Inês Pousada tinha sido denunciada por um amigo do neto

Simão Rodrigues, o qual suspeitou do movimento que vira na sua casa um dia antes. De

facto, era difícil ocultar os preparativos para a viagem. Havia que assegurar o

pagamento dos encargos da jornada e o sustento no local de destino. A solução estava

na venda de bens e mercadorias, mas isso era uma operação que atraía atenções alheias.

Carlos de Ataíde, meirinho de Faro, conta que Fernão Gonçalves Duarte, o Cego,

mercador cristão-novo, dera-lhe algumas sentenças de dinheiro para ele as executar

perante os seus devedores e “[...] lhas tornou a pedir depois como que intentava ir-se e

não as deixar cá [...]”. Além do mais, vira-o vender a balança e os pesos com que pesava

o figo “[...] sem o que podia viver e tratar como dantes [...]” e sabia que as filhas haviam

vendido as suas peças de ouro e de prata515

.

A obtenção de um meio de transporte era uma outra providência essencial mas

igualmente arriscada. O almocreve Domingos do Vale denunciou alguns cristãos-novos

que lhe pediram bestas de carga alugadas, entre os quais a já referida Isabel Gomes516

,

mas também Catarina de Tovar, esposa de João Pessoa, que precisava de duas bestas

para seguir até Castro Marim, na companhia das filhas Maria e Isabel Pessoa. Tal

suscitou a desconfiança das autoridades e Catarina acabou por ser presa, não obstante o

facto de estar casada com um cristão-velho que servira de intérprete nas visitas

inquisitoriais às naus estrangeiras517

.

Os riscos na contratação de um transporte não se limitavam às fugas por terra, mas

também às empreendidas por via marítima. O frete da embarcação e a busca de um

barqueiro disposto a compactuar com a fuga eram tarefas árduas e nem sempre bem

sucedidas. Os riscos elevavam os custos da viagem e, mesmo assim, muitos barqueiros

recusavam fazê-la a qualquer preço518

. No passado, o barqueiro João Lopes tinha

conduzido Matias Dias de Gusmão, rendeiro de Faro, até Cádis. Em Outubro de 1633,

foi o filho deste, Matias Afonso, quem o contactou para que também levasse a mãe e os

irmãos. Mas, desta vez, João Lopes recusou a proposta, “[...] caindo no erro que fizera

ao levar o pai do dito [...]”519

.

515

Cf. ANTT, IE, proc. 3363, fl. 7. 516

Cf. ANTT, IE, proc. 2219, fls. 11v-12v. 517

Cf. ANTT, IE, proc. 6092. 518

Francisco João, mareante de Sanlúcar de Barrameda, recusou levar para Castela, a bordo do seu barco,

as irmãs de Isabel Pinta (esposa de Custódio Mendes) e outros cristãos-novos que pretendiam fugir de

Faro. Primeiramente, ofereceram-lhe 10 mil réis pelo frete. Perante a recusa, subiram o valor para 12 mil

réis. 14 mil réis foi a última oferta, também declinada pelo mareante. (Cf. ANTT, IE, proc. 2719, fls. 12v-

14. Vide também Romero Magalhães, E assim se abriu..., pp. 40-42). 519

Cf. ANTT, IE, proc. 467, fl. 16.

Page 132: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

132

O receio de João Lopes é justificável. Afinal, o risco de prisão também recaía sobre o

passador. Em Dezembro de 1633, um grupo de mareantes espanhóis encontrava-se na

cadeia de Faro. Eram suspeitos de passarem cristãos-novos para Castela. O mestre da

embarcação, Sebastião Aleixos, natural de Aiamonte e residente em Redondela, negou a

colaboração com qualquer tipo de tentativa de fuga. Contudo, de Castela, chegavam

informações de que aquela não teria sido a primeira vez que ele servira de passador a

fugitivos. Sabia-se que o mareante havia já passado 5 ou 6 embarcações com cristãos-

novos de Faro para Castela. Ele próprio tratava do seu alojamento em Redondela e,

depois, regressava a Faro com as chaves das casas dos fugitivos para resgatar o dinheiro e

outros bens deixados escondidos. Seria essa, em princípio, a missão deixada pendente por

Sebastião Aleixos quando foi detido em Faro520

.

A prisão não era o único perigo para quem planeava partir por via marítima. O mar

continuava a ser um elemento imprevisível, mesmo para um povo que cresceu a colher

nele o seu pão. Com a costa assolada por ataques corsários, os perigos redobravam. Em

Dezembro de 1633, dizia-se na cidade que uma embarcação cheia de cristãos-novos

naufragara em alto mar e que todos haviam morrido afogados. Sobre eles, Simão

Rodrigues, neto de Inês Pousada, teria afirmado que “[...] bem aventurada morte fora a

sua de morrerem mártires antes de caírem na mão de seu inimigo, o bispo [...]”521

.

Nesse mesmo mês, uma outra tentativa de fuga acabou em morte. No dia 17, chegou

aos ouvidos de D. Francisco de Meneses que, às duas horas da madrugada, um grupo de

cristãos-novos iria fugir a bordo de um barco castelhano aportado junto ao moinho de São

Francisco. Uma milícia napolitana, então estante na cidade, foi enviada ao local522

. Quando

os soldados lá chegaram, depararam-se com um grupo de cerca de 20 pessoas. Alguns

foram detidos de imediato, mas outros conseguiram escapar. Jorge Pinto, Dinis Álvares e os

filhos Martim de Oliveira e Pedro Machado fugiram até ao Convento de São Francisco. À

520

Cf. ANTT, IE, liv. 213, fls. 371-385. Vide, em anexo, pp. 426-431. Esta informação, que provém dos

Cadernos do Promotor, não contém mais desenvolvimentos sobre o caso e, por isso, desconhecemos qual

teria sido a resolução final. 521

Cf. ANTT, IE, proc. 5671, fls. 28v-29. Sabemos que tal não foi bem assim. Segundo Catarina Álvares,

encontravam-se nesse navio: Pedro Vaz Pinto e a mulher, Inês Mendes, e Isabel Rodrigues, esposa de

Manuel Soares. Acontece que, alguns anos depois, Pedro Vaz Pinto estava a viver em Cádis, onde acabou

por falecer por volta de 1644 (Cf. ANTT, IE, proc. 3997). Quanto a Isabel Rodrigues, também ela fez

vida em Cádis, onde ainda residia em 1647, quando lhe foi aberto um processo na Inquisição de Évora

(Cf. ANTT, IE, proc. 1290). 522

Dinis Álvares, nas contraditas no seu processo, referiu que, naquele tempo, encontravam-se em Faro

cerca de 200 soldados italianos. (Cf. Romero Magalhães, E assim se abriu..., p. 65).

Page 133: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

133

porta, numa rixa, Dinis Álvares feriu mortalmente um soldado. Contando com a protecção

dos frades do convento, ele e os filhos só foram presos no dia seguinte523

.

Em muitos casos, a fuga não se sucedia imediatamente ao abandono do lar. Uns

optavam pela mudança de casa – para a casa de parentes ou até do barqueiro ou do

almocreve que propiciaria a fuga –, outros, porém, escolhiam deixar Faro por outra

localidade menos vigiada e mais próxima do destino. Depois de João Rodrigues, o Bom

Cristão, ter partido para Sevilha, a mulher e a filha seguiram para Loulé. Beatriz

Álvares e Catarina Mendes aguardavam pelo momento certo para partirem rumo a

Castela. Mas, na manhã de 18 de Janeiro de 1634, foram presas pelo familiar Lopo

Furtado de Mendonça que, entre os seus pertences, encontrou uma carta de Henrique da

Silva, filho de Beatriz, então a viver em Sevilha, na qual prometia enviar alguém para as

ajudar na viagem524

.

Tendencialmente, eram os elementos masculinos os primeiros a partir – fixavam os

negócios no local de destino e asseguravam o sustento do resto da família. Só depois

seguiam a esposa, os filhos e os demais parentes. Foi o que tentaram Catarina Lopes e os

filhos, conhecidos em Faro pela alcunha Sangue de Rei. Os genros António Pereira e

Domingos Pereira tinham-se estabelecido em Jerez de la Frontera. Quando começaram as

prisões em Faro, toda família tratou de preparar a saída da cidade, alegando que não tinham

como se sustentar. Mas o argumento não serviu e os Sangue de Rei acabaram presos525

.

Às prisões seguiam-se novas denúncias e às denúncias mais prisões. Em Faro,

conhecia-se este círculo vicioso e o resultado foi que, entre o último quartel de 1633 e

os primeiros meses de 1634, muitos abandonaram a cidade e o reino. As fontes narram,

sobretudo, as histórias dos que não foram bem sucedidos e acabaram a povoar as

cadeias locais e, mais tarde, os cárceres inquisitoriais.

A 15 de Junho de 1635, os inquisidores de Évora solicitaram à Inquisição de Sevilha

que procedesse à prisão de 12 cristãos-novos de Faro ausentes em territórios sob a sua

523

Cf. ANTT, IE, procs. 468, fls. 5-39v. Vide, em anexo, pp. 421-424. Vide também em Romero

Magalhães, E assim se abriu..., pp. 56-57, 63-66. Um dos fugitivos, Jorge Pinto, era síndico dos frades do

Convento de S. Francisco, o que explica a alegada protecção que os religiosos deram a Dinis Álvares e

aos filhos. Fernão Duarte de Castro e Sebastião Gonçalves eram, respectivamente, sogro e cunhado de

Dinis Álvares. Ele e os filhos entraram nos cárceres de Évora no início de Março de 1634. O primeiro a

sair foi Martim de Oliveira, sentenciado a cárcere e hábito penitencial perpétuos no auto de 25 de Março

de 1635 (Cf. ANTT, IE, proc. 468). O pai só saiu no auto de 14 de Junho de 1637 (Cf. ANTT, IE, proc.

2969). Quanto ao outro filho de Dinis Álvares, Pedro Machado, com apenas dez anos no momento em

que entrou nos cárceres, manteve-se preso até mais tarde. No auto de 4 de Novembro de 1640, abjurou de

vehementi e foi reconciliado com cárcere ao arbítrio dos inquisidores. (Cf. ANTT, IE, proc. 10523). 524

Cf. ANTT, IE, proc. 2332, fls. 7-12. 525

Os filhos de Catarina Lopes eram: Isabel Nunes e Maria de Castro, esposas de António e Domingos

Pereira (também eles irmãos); Inês Nunes e Simão Nunes (Cf. ANTT, IE, procs. 9806, 9183, 3069 e 736).

Page 134: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

134

jurisdição. Esta diligência não surtiu resultados práticos. Dos 12 citados, apenas 3 foram

processados e, mesmo assim, mais de 10 anos depois, sem nunca terem pisado o cárcere

inquisitorial, acabando relaxados em estátua à justiça secular526

. Junto a este documento,

encontram-se duas listas de “pessoas que se ausentaram da cidade de Faro, donde eram

moradoras, com temor de serem presas pelo Santo Ofício”. Na primeira, são citados os

ditos 12 cristãos-novos e, na segunda, 39. Mais de 60% dos cristãos-novos referidos

estabeleceram-se em Sevilha. Huelva, Sanlúcar, Moguer, Madrid e Málaga foram as

outras localidades de acolhimento, embora com menor expressão527

.

Uma amostra mais significativa dos cristãos-novos ausentes de Faro encontra-se em

duas listas anexas aos processos de Joana de Graçanha e de António de Medina. A 14 de

Julho de 1636, os dois receberam ordem de prisão junto com mais 119 suspeitos528

. Só

36% deles acabaram presos – mais de metade já não se encontrava em Faro. Entre os

ausentes, 92% tinham seguido para Castela. Também nesta amostra, Sevilha foi a

principal cidade de acolhimento529

.

Comum às duas amostras é o facto da grande maioria dos cristãos-novos que

partiram de Faro ter rumado a Castela e, em particular, se estabelecido em Sevilha. A

esperança numa vida mais desafogada da pressão inquisitorial, a confiança na alegada

política filosemita do Conde-Duque de Olivares e num ambiente propício ao

desenvolvimento dos negócios, onde os estatutos de limpeza de sangue eram mais

permeáveis, terão sido os principais motivos que pesaram na escolha do destino530

.

1635, 1636 e 1637 – os cristãos-novos de Faro em três autos-de-fé

A intensidade desta vaga de prisões reflectiu-se nos autos-de-fé celebrados em

Évora nos anos de 1635, 1636 e 1637. Dos 153 penitenciados que saíram no auto de 25

de Março de 1635, 54 eram cristãos-novos de Faro. No ano seguinte, a 27 de Julho de

526

Os três são Pedro Vaz Pinto (ANTT, IE, proc. 3997), Marcos Rodrigues (ANTT, IE, proc. 1460) e

Guiomar da Costa (ANTT, IE, proc. 3295). Vide BN, Reservados, cod. 869, fls. 78-78v. 527

Cf. BN, Reservados, cod. 869, fls. 79-84. 528

Cf. ANTT, IE, procs. 309 e 4571. 529

Vide, em anexo, gráfico 4, p. 98. Alguns elementos da lista contida no processo n.º 309 estão ilegíveis

devido à deterioração do documento. No gráfico, esses elementos integraram a categoria “Desconhecidos”. 530

Vide Pilar Huerga Criado, En la raya de Portugal. Solidariedad y tensiones en la comunidad

judeoconversa, Salamanca, Ediciones Universidad Salamanca, 1993; Fernando Serrano Mangas, La

Encrucijada Portuguesa. Esplendor y Quiebra de la Unión Ibérica en las Indias de Castilla (1600-1668),

Badajoz, Diputación de Badajoz Departamento de Publicaciones, 2001.

Page 135: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

135

1636, esse número cresceu para 80, representando mais de 45% do total. No auto de 14

de Junho de 1637, 38% dos penitenciados provinham da cidade algarvia531

.

Muitos dos que haviam tentado, sem sucesso, a fuga para Castela nos últimos meses

de 1633 e em inícios do ano seguinte e acabaram presos nos calabouços de Évora

saíram no auto de 25 de Março de 1635. Fernão Gonçalves Duarte, o Cego, foi

relaxado, tal como Gregório Mendes, preso no início de Outubro de 1633, suspeito de

planear a fuga na companhia das suas duas filhas, Isabel Pereira e Maria da Conceição.

No mesmo auto, mais quatro mulheres de Faro sofreram a pena máxima: Guiomar

Mendes, Isabel Gomes, Catarina Lopes e Beatriz Mendes. De Isabel Gomes, tia de

António Fernandes Castanho, e Catarina Lopes, a Sangue de Rei, já conhecemos a

história, presas na sequência das denúncias de Francisca Duarte e de alegadas tentativas

de fuga532

. Foi a mesma Francisca Duarte que esteve na origem da prisão e condenação

da sua sogra, Beatriz Mendes533

. Quanto a Guiomar Mendes, suspeita de tentar fugir no

barco que levaria Dinis Álvares e outros tantos cristãos-novos para Castela, fora

denunciada por Simão Nunes, filho de Catarina Lopes534

.

O auto de 25 de Março de 1635 reflectiu o quão devassadora foi a acção

inquisitorial sobre determinadas famílias. Constança Simões, viúva de um alfaiate de

Faro, e a filha Mécia Craveiro saíram ambas nesse auto, menos de um ano após a

entrada nos cárceres de Évora535

. Isabel Lopes, cunhada de Fernão Gonçalves Duarte,

também saiu no auto de 1635, acompanhada por quatro dos seus filhos. O único que

escapou foi Luís Eanes, então a viver no Peru536

.

Jorge Lopes, o Cutelo, foi igualmente reconciliado no auto de 1635, tal como o filho

Gaspar Dias e as sobrinhas Isabel Pinta e Isabel Duarte537

. A sua mulher, Leonor

Duarte, acusada de tentativa de fuga, fora presa em Setembro de 1633, mas apenas saiu

531

Cf. Oakley (ed.), Lists..., vol. II, pp. 36-51. 532

Cf. ANTT, IE, procs. 2219 e 10785. 533

Cf. ANTT, IE, proc. 590. 534

Cf. ANTT, IE, proc. 2197. 535

Cf. ANTT, IE, procs. 6091 e 2733. Constança Simões foi presa na sequência das denúncias de

Custódio Mendes. 536

Cf. ANTT, IE, proc. 9972. Isabel Lopes era viúva de Diogo Gonçalves Duarte, irmão de Fernão

Gonçalves. Tinha cerca de 70 anos de idade quando foi presa. Junto com ela, entraram nos cárceres os

filhos Catarina de Tovar, Fernão Gonçalves de Tovar, Maria de Tovar e Inês Lopes. Saíram todos no auto

de 25 de Março de 1635. (Cf. ANTT, IE, procs. 3598, 3367, 3166 e 1341). 537

Isabel Pinta era filha de Diogo Fernandes Serpa e de Domingas Gonçalves, irmã de Jorge Lopes.

Entrou nos cárceres de Évora a 31 de Outubro de 1633, com o primo Gaspar Dias, após ter sido

denunciada pelo tio Jorge Lopes (Cf. ANTT, IE, proc. 6465). Isabel Duarte era sobrinha de Jorge Lopes

por afinidade – filha da cunhada Constança Duarte. Fora denunciada por Inês Lopes e Catarina de Tovar,

filhas de Diogo Gonçalves Duarte (Cf. ANTT, IE, proc. 2218).

Page 136: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

136

no auto de 27 de Julho de 1636538

. Caía sobre o casal a suspeita de terem circuncidado o

seu primogénito, Gaspar Dias. No início de Outubro, o bispo deu ordens para o rapaz

ser examinado e dois médicos de Faro concluíram que, de facto, ele tinha sido sujeito à

circuncisão. Em Évora, confirmou-se a suspeita539

.

A 27 de Julho de 1636, entre os réus que desfilaram pela praça de Évora, estava

Maria Fernandes, viúva de Francisco Leitão, tosador cristão-velho, denunciada por

Joana de Barros540

, mas também pelo próprio filho, Manuel Leitão da Cunha, tosador

em Moncarapacho541

. Só depois de notificada que estava declarada herege, Maria

Fernandes iniciou a sua confissão. Contudo, tal não a salvou da pena máxima542

.

Mais duas cristãs-novas de Faro foram relaxadas à justiça secular nesse auto. Uma

delas era Catarina Mendes, viúva de Duarte Álvares e mãe de Beatriz Álvares, a esposa

de João Rodrigues, o Bom Cristão, que, em Outubro de 1633, tentara a fuga para

Sevilha543

. A outra, Ascensa Rodrigues, fora presa nos cárceres de Évora a 29 de Março

de 1635, com o marido, Lourenço Fernandes, tabelião de notas, reconciliado no mesmo

auto com cárcere e hábito penitencial perpétuos544

. Poucos dias após ter sido relaxada, o

seu filho João Mendes entrava nos calabouços545

.

Foi por pouco que Manuel Henriques não teve a mesma sorte de Catarina Mendes e

Ascensa Rodrigues. Ele era um importante mercador de Faro. Afirmava mesmo ser o

homem mais rico da cidade. Mesmo assim, foi acusado de planear a fuga para Castela.

Nos cárceres, resistiu até ao limite. Alegava, em sua defesa, que as denúncias que o

conduziram à prisão tinham sido motivadas por vinganças pessoais, por ódios alheios

que alimentara enquanto servira de lançador da finta e recebedor das armações de atum.

Até o próprio bispo é citado no rol das contraditas. A defesa não foi suficiente e Manuel

538

Cf. ANTT, IE, proc. 11032. Após a prisão do marido (Afonso Pinto Duarte), Constança Duarte começou

a preparar a fuga com a irmã Leonor Duarte. Dias antes, já haviam partido de Faro alguns parentes: Diogo

Fernandes Serpa, a mulher Domingas Gonçalves (irmã de Jorge Lopes, o Cutelo) e a irmã Grácia Mendes,

casada com Vicente Rodrigues, ourives de Faro. Constança e Leonor Duarte acabaram por ser presas antes

de se fazerem ao caminho. Vide Romero Magalhães, E assim se abriu..., pp. 44-47. 539

Cf. ANTT, IE, proc. 5677. 540

Joana de Barros era filha de Cristóvão Rodrigues e de Beatriz de Barros (Cf. ANTT, IE, proc. 1730). 541

Cf. ANTT, IE, proc. 462. Manuel Leitão da Cunha foi preso nos cárceres de Évora a 21 de Setembro de

1634. Saiu no auto de 25 de Março de 1635, com cárcere e hábito penitencial ao arbítrio dos inquisidores. 542

Cf. ANTT, IE, proc. 4386. 543

Cf. ANTT, IE, proc. 2332. O processo de Catarina Mendes encontra-se desaparecido. 544

Cf. ANTT, IE, procs. 9792 e 9942. 545

Cf. ANTT, IE, proc. 2743. João Fernandes era casado com uma cristã-velha, Isabel Nunes da Costa.

Foi reconciliado com cárcere e hábito penitencial perpétuos no auto de 14 de Junho de 1637.

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Henriques acabou por confessar, após a notificação de que estava em sério perigo de vir

a ser relaxado. Saiu reconciliado com cárcere e hábito penitencial perpétuos546

.

Um outro mercador de largos cabedais e também residente em Faro saiu no mesmo

auto e com a mesma pena. Era Francisco Mendes de Góis, preso nos cárceres de Évora

havia menos de um ano e denunciado por dois decanos da cidade: o ourives Sebastião

Dias (tio de Branca Dias e de Francisca Duarte) e o médico Gaspar Dias, o Mestre da

Mula. A confissão de Francisco Mendes de Góis primou pela abundância de denúncias.

Chegou a delatar, inclusivamente, os sobrinhos Maria de Águila e Francisco Mendes, os

quais se apresentaram perante a Inquisição de Évora já no final de 1637547

. A mãe

destes, Joana de Graçanha, entrara no cárcere inquisitorial alguns dias depois da

reconciliação de Francisco Mendes de Góis548

. Mas o processo do mercador não se

ficou por aqui. Poucos meses depois, ele estava de regresso aos cárceres. Alegando que

se encontrava doente e precisava de ir à sua terra para se curar, Francisco Mendes foi

autorizado a regressar a Faro. Já no Algarve, o seu comportamento escandalizou as

autoridades. Segundo António Pires Ingres, vigário-geral, Francisco Mendes criticava

publicamente os inquisidores e os procedimentos da Inquisição, sobretudo a forma

como os presos eram pressionados a confessar. De regresso aos cárceres, ele negou

essas acusações. Tudo não passava de uma conjura “[...] porque na cidade de Faro se

divulgou que ele, réu, culpara e fizera prender a todas as pessoas da nação e que ele,

réu, fora causa e ocasião de ser destruída toda a cidade de Faro e, por este respeito, se

conjuraram contra ele, réu, todas as pessoas de nação e pessoas nobres da cidade de

Faro, por estarem misturados com os da nação [...]”549

. Além do mais, a sua doença

impossibilitava-o de sair de casa e a sua cura era tão “[...] asquerosa e ordinariamente a

gente foge do cheiro dela por ser de açougue [...]” que nunca recebia visitas550

.

Novamente reconciliado no auto de 14 de Junho de 1637, na mesma altura da meia-irmã

Joana de Graçanha, foi-lhe sentenciado, além do cárcere perpétuo sem remissão, um

degredo de 3 anos em África551

.

546

Cf. ANTT, IE, proc. 8603. 547

Cf. ANTT, IE, procs. 682 e 6921. No momento em que começaram as prisões em Faro, Francisco

Mendes saiu da cidade rumo à Madeira. Dali passou para Lisboa e, depois, esteve em Sevilha e Aiamonte.

Apresentou-se perante a Inquisição de Évora a 29 de Dezembro de 1637, tal como a irmã Maria de Águila, e

os dois foram reconciliados com cárcere ao arbítrio dos inquisidores no auto de 2 de Maio de 1638. 548

Cf. ANTT, IE, proc. 4571. 549

Cf. ANTT, IE, proc. 3029, fl. 132. 550

Cf. Idem, fl. 119. 551

O degredo acabaria por lhe ser perdoado. Francisco Mendes alegou que estava muito doente para o

cumprir e, além disso, tinha de amparar os filhos e os sobrinhos, desprotegidos após a sua prisão e a de

Page 138: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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Joana de Graçanha e Francisco Mendes de Góis tiveram a companhia de muitos

outros cristãos-novos de Faro nesse auto. Em 1637, as prisões na cidade começavam a

abrandar. Porém, no ano anterior, a mão do Santo Ofício ainda se fizera sentir com

veemência. Recordemos que, a 14 de Julho de 1636, foi dada ordem de prisão a 121

cristãos-novos de Faro, muitos dos quais já ausentes do reino. Quanto aos que foram

presos, parte deles saíram no auto de 14 de Junho de 1637 – o tempo dos processos

encurtava-se num momento em que a entrada começava a chegar ao seu fim e os

inquisidores já não aguardavam por muitas mais novidades nas delações dos confitentes.

Também os presos desistiam de resistir à pressão dos inquisidores e começavam a

confessar logo nas primeiras sessões. Com a grande quantidade de prisões efectuadas em

Faro, as denúncias focavam-se em quem já se encontrava no cárcere inquisitorial.

Em Julho de 1636, o Santo Ofício actuou sobre algumas famílias ainda incólumes às

prisões. Foi o caso dos Fernandes, uma casa de surradores, que viu dois dos patriarcas

serem então presos: Tomás Fernandes e Luís Fernandes. Alguns meses depois, era

encarcerado um outro irmão, Gabriel Gomes, residente em Tavira552

. Nos anos

seguintes, a família continuou a estar sob a mira do Santo Ofício553

.

Também Pedro Fernandes e a irmã Maria Gomes foram vítimas desta vaga. Eram filhos

de Francisco Rodrigues, que embora apareça mencionado em vários processos, acabou por

falecer antes que lhe fosse movido qualquer processo. Pedro Fernandes, sapateiro como o

pai, confessou que ouviu falar na Lei de Moisés, pela primeira vez, na casa do patrão, Nuno

Vaz. A irmã Maria Gomes encontrava-se casada com um outro sapateiro de Faro, João

Fernandes, o Sovelinha. Os dois irmãos saíram reconciliados no auto de 14 de Junho de

1637, tal como Belchior Vaz Mostarda e Ascensa Simões, moradores na freguesia de Santa

Bárbara de Nexe e também presos em Julho de 1636. Pesavam sobre Belchior Vaz 5

denúncias e sobre Ascensa Simões 8554

. Verificamos o mesmo número elevado de culpas

noutros cristãos-novos detidos na mesma altura. A actuação inquisitorial evoluíra em Faro.

Com o avolumar das prisões, as delações multiplicaram-se exponencialmente, facultando a

Joana de Graçanha. A 10 de Dezembro de 1638, foi-lhe tirado o hábito e levantado o cárcere. (Cf. ANTT,

IE, proc. 3029, fls. 157-162). 552

Cf. ANTT, IE, procs. 5495 e 3559. O processo de Tomás Fernandes encontra-se desaparecido. 553

A 17 de Junho de 1637, chegava aos cárceres de Évora um filho de Gabriel Gomes, João Fernandes

(Cf. ANTT, IE, proc. 8176). Ao longo de 1638, foram presos os filhos de Luís Fernandes: Isabel Gomes,

João Fernandes e Gaspar Fernandes (Cf. ANTT, IE, procs. 7938 e 2187. Desconhece-se o paradeiro do

processo de Gaspar Fernandes). Uma outra filha, Inês Lourenço, entrou no cárcere inquisitorial no ano

seguinte, a 29 de Abril de 1639 (Cf. ANTT, IE, proc. 1657). Isabel Gomes, filha de Tomás Fernandes,

apresentou-se na mesa da Inquisição de Évora a 3 de Novembro de 1640, tendo sido reconciliada 4 dias

depois, com cárcere ao arbítrio dos inquisidores (Cf. ANTT, IE, proc. 9909). 554

Cf. ANTT, IE, procs. 328 e 6926.

Page 139: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

139

intervenção do Santo Ofício mesmo entre aqueles que pareciam mais livres de suspeita,

dada a sua proximidade à maioria cristã-velha e/ou a sua integração, ou dos seus parentes

mais próximos, nas hierarquias municipais e eclesiásticas.

Nesta recta final das prisões em Faro, alguns dos que se tinham ausentado anos antes

para Castela optaram por regressar a Portugal e apresentar-se voluntariamente, na

esperança de virem a beneficiar de uma sentença mais benevolente. Foram os casos de

Diogo Fernandes Serpa e da mulher Domingas Gonçalves, que se apresentaram na

Inquisição de Évora a 30 de Abril e a 12 de Maio de 1637, respectivamente. Os dois

tinham partido de Faro em Setembro de 1633. Em Castela, estiveram em Aiamonte,

Sanlúcar de Barrameda e Moguer. Viviam em Sevilha quando resolveram regressar a

Portugal. Diogo Fernandes Serpa foi reconciliado logo no auto-de-fé de 14 de Junho de

1637, com cárcere ao arbítrio dos inquisidores. Dez dias depois, era posto em

liberdade555

. Porém, Domingas Gonçalves teve de penar nos calabouços durante mais um

ano. No decorrer do processo, foi acusada de testemunhar falsamente contra uma cristã-

velha, Iria Martins. O consenso sobre a pena a aplicar a Domingas Gonçalves revelou-se

difícil. O processo foi visto por três vezes no Conselho Geral. No final, ela recebeu uma

pena bem mais dura do que a do marido. Ao cárcere e hábito penitencial perpétuos,

acresceu um degredo para Angola por 5 anos. Alegando que era uma mulher velha e

doente e que as suas 5 filhas, ainda muito novas, ficariam desamparadas caso fosse

mandada para Angola, Domingas suplicou o perdão do degredo. A única cedência foi a

comutação para Castro Marim556

.

Cristãos-novos ou cristãos-velhos?

Em Julho de 1636, foram detidos António de Medina e os seus dois filhos: Rodrigo de

Medina, alcaide em Faro, e António de Medina, mercador. A qualidade do seu sangue

gerou controvérsia557

. O patriarca era sapateiro e natural de Loulé, onde vivera até aos 12

anos de idade. Em Faro, casou-se com uma cristã-velha, Inês Gaga, de quem teve 8 filhos.

A ordem de prisão foi dada com base em dois testemunhos (João Fernandes Guterres,

sapateiro, e Manuel Henriques, mercador, ambos de Faro) mas, ao longo do processo,

acresceram mais 7 denúncias contra António de Medina. Feitas as diligências em Faro e

555

Cf. ANTT, IE, proc. 3097. 556

Cf. ANTT, IE, proc. 6385. 557

Cf. ANTT, IE, proc. 10172, 309 e 109.

Page 140: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

140

em Mazagão, de onde era natural o seu pai, os inquisidores concluíram que ele era cristão-

velho dos quatro costados. Porém, a sua situação agravara-se com a confissão do filho

António, o qual afirmou ser cristão-novo por parte do pai e judaizante. Assim, o seu

processo prolongou-se por mais de 8 anos. A sentença só foi publicada a 26 de Agosto de

1644, absolvendo-o de qualquer culpa. Finalmente, António de Medina conseguira provar

que era “[...] cristão-velho, limpo e sem raça alguma de cristão-novo e a prova da justiça

não ser bastante para condenação [...]”, segundo ditou o acórdão final. Teria sido

determinante uma diligência feita em Faro, em Outubro de 1640, sobre a validade das

denúncias contra António de Medina e os filhos. Uma das testemunhas, o Lic. Manuel

Bernardes, citou o caso de Manuel Henriques que, após reconciliado pela Inquisição, foi

para Castela e ali ficou “[...] com medo de que o prendam por culpar falsamente os ditos

Medina [...]”. A acumulação de tantas denúncias teria resultado de um equívoco. O

mesmo Manuel Bernardes também contou que ouvira o mercador Pedro de Seixas dizer

que só “dera” nos Medina depois de saber que estavam presos e confessos558

.

Justificando o pouco crédito concedido às testemunhas acusatórias de António de

Medina, os inquisidores referiram que “[...] a gente de nação do Algarve costuma, em

vingança, dizer de alguns cristãos-velhos [...]”559

. Este era um argumento

constantemente repetido na defesa dos processados. Beatriz Virela, de Loulé, presa em

Maio de 1638, alegava o seguinte:

“Provaria que a gente de nação da dita vila de Loulé é toda notável inimiga dela ré,

Brites Virela, e seu marido, António da Cunha de Sousa, em razão do ânimo que

mostrava nas prisões que fazia na dita gente, espreitando-os de noite que não

fugissem e fazendo outros excessos que, sem dúvida, toda a dita gente de nação

juraria contra ela, ré, somente por se vingarem do dito seu marido e dela, ré, em razão

das ditas prisões e assim a seus ditos se não deve dar fé alguma contra ela, ré [...]”560

Quatro cristãs-novas haviam acusado Beatriz Virela, afirmando que ela tinha parte

de cristã-nova e professava a Lei de Moisés. Duas delas, Inês de Sousa e Leonor

Camacha, foram igualmente as responsáveis pela prisão de uma outra mulher de Loulé,

Antónia Mascarenhas, que, tal como Beatriz Virela, também afirmava ser cristã-velha.

Antónia tinha mais de 60 anos quando foi presa, no início de 1638. Durante todo o

tempo em que esteve detida em Évora, nunca admitiu ter qualquer parte de sangue

hebraico, mesmo quando começou a confessar que mantivera práticas judaizantes,

aliciada por alguns cristãos-novos de Loulé. Nas sessões seguintes, revogou: nunca fora

558

Cf. ANTT, IE, proc. 309, fls. 197-198. 559

Cf. Idem, fl. 141. 560

Cf. ANTT, IE, proc. 3681, fls. 84-84v. O marido de Beatriz Virela era capitão de infantaria em Loulé e

um dos oficiais destacados para prenderem os suspeitos de judaísmo.

Page 141: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

141

judia, nem tivera crença na Lei de Moisés, e apenas denunciara as ditas pessoas

persuadida por uma companheira de cárcere, Isabel Fernandes, a qual, embora natural

de Arraiolos, “[...] tudo sabia por haver sido companheira de uma Maria de Sousa, de

Loulé, e falar da porta do seu cárcere com algumas pessoas da mesma vila [...]”561

.

Beatriz Virela foi reconciliada na mesa a 11 de Abril de 1639, enquanto que Antónia

de Mascarenhas só saiu um ano depois, a 6 de Novembro de 1640. A Inquisição

concluiu que eram ambas cristãs-velhas.

A entrada em Loulé

As duas mulheres que conduziram às prisões de Beatriz Virela e de Antónia

Mascarenhas foram presas em 1637, num momento em que, depois de Faro, o Santo

Ofício começava a actuar com maior veemência em Loulé562

. Contudo, as prisões na

vila do barrocal algarvio tinham começado anos antes e acompanharam, embora a um

ritmo bem mais lento, a vaga registada em Faro. Aliás, as duas localidades mantinham

fortes laços económicos e sociais e muitas famílias de Faro tinham parentes na vila. Era

o caso da família de Branca Dias e Francisca Duarte.

A 21 de Outubro de 1633, Francisca Duarte confessou que, havia cerca de cinco

anos, encontrara-se na ermida de São Marcos com a prima Joana Jorge. Na ermida de

Santa Bárbara, dois anos depois, estivera com outras duas primas, Branca Dias e

Francisca Jorge. Além disso, seis meses antes de ser presa, fora visitada pelos primos

Manuel Estevens e Pedro Gomes. Em todas estas ocasiões, comunicou a sua fé na Lei

de Moisés com eles563

.

Entre finais de Outubro e inícios de Novembro de 1633, os primos de Francisca

Duarte entraram nos cárceres de Évora, exceptuando Joana Jorge564

. Esta adiantara-se.

561

Cf. ANTT, IE, proc. 5754, fls. 20-21. Maria de Sousa era meia cristã-nova, viúva de Diogo Ribeiro de

Ataíde. Entrara nos cárceres de Évora a 13 de Junho de 1637, alguns meses antes da irmã Inês de Sousa e

das filhas Maria de Ataíde e Isabel de Mascarenhas. Foi reconciliada com cárcere e hábito penitencial

perpétuos no auto celebrado a 2 de Maio de 1638 (Cf. ANTT, IE, proc. 953) 562

Cf. ANTT, IE, procs. 4412 e 8173. Leonor Camacho entrou nos cárceres de Évora a 20 de Outubro e

Inês de Sousa a 7 de Dezembro. Saíram ambas no auto de 2 de Maio de 1638, sendo-lhes sentenciado

cárcere e hábito penitencial perpétuos. 563

Cf. ANTT, IE, proc. 6519, fls. 131-132. Branca Dias e Francisca Jorge eram filhas de Jorge Mendes,

irmão de Isabel Guterres, mãe de Francisca Duarte. A mãe de Pedro Gomes e Manuel Estevens, Grácia

Duarte, era irmã de Mestre Duarte, pai de Francisca. 564

Cf. ANTT, IE, procs. 6727, 463 e 4819. O processo de Francisca Jorge encontra-se desaparecido.

Branca Dias, Francisca Jorge, Manuel Estevens e Pedro Gomes também foram denunciados pela filha de

Francisca Duarte, Beatriz Mendes (Cf. ANTT, IE, proc. 590, fls. 111-111v, 118v).

Page 142: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

142

Apresentou-se voluntariamente perante D. Francisco de Meneses, a 28 de Outubro desse

ano, para confessar que se apartara da fé cristã havia então 18 anos, induzida pela mãe.

O Conselho Geral aconselhou o bispo a proceder com Joana Jorge “[...] na mesma

forma que passou Branca Dias [...]”565

. A 11 de Dezembro, ela foi novamente chamada

perante o bispo e, no mês seguinte, procedeu-se à sessão de genealogia. Mas, ao

contrário do que acontecera com a prima Branca Dias, Joana Jorge acabou por ser presa,

considerada diminuta na sua confissão. A 13 de Março de 1635, entrou nos cárceres de

Évora. Só esteve presa alguns dias e saiu no auto-de-fé celebrado a 25 desse mês,

reconciliada com cárcere e hábito penitencial ao arbítrio dos inquisidores. Mesmo

depois do auto, continuou a delatar outros cristãos-novos de Loulé, o que lhe valeu o

perdão do hábito e do cárcere logo a 22 de Abril de 1635566

.

Tal como Joana Jorge, os quatro primos de Francisca Duarte saíram no auto-de-fé de

25 de Março de 1635. Pedro Gomes usufruiu de uma sentença mais leve – cárcere e

hábito penitencial ao arbítrio dos inquisidores – enquanto que o irmão Manuel Estevens,

Branca Dias e Francisca Jorge foram reconciliados com cárcere e hábito penitencial

perpétuos. Branca Dias, que revogara algumas das denúncias feitas, também recebeu

pena de degredo, por 3 anos, em Bragança.

Entre 1633 e 1635, as prisões em Loulé nunca ultrapassaram a dezena. Todos os

esforços concentravam-se em Faro mas, a partir de 1635, o número de detenções na vila

cresceu. Muitas tiveram origem nas confissões dos cristãos-novos presos em Loulé durante

esses primeiros anos. Álvaro Fernandes Castanho, siseiro, com mais de 60 anos de idade,

foi detido em Setembro de 1635, denunciado por 9 testemunhas, entre as quais os primos de

Francisca Duarte. Acabaria por falecer no cárcere567

. Maria Custódia, natural de Vila Nova

de Portimão e casada com um mercador cristão-velho, Bartolomeu Afonso, entrou nos

cárceres de Évora a 6 de Outubro de 1636, delatada por Manuel Estevens568

.

Também foi Manuel Estevens o primeiro a denunciar Maria Pinta, mulher de Diogo

Lopes Gago, avaliador do concelho. Embora tenha chegado a Évora a 29 de Julho de

1636, Maria Pinta só começou a confessar quase dois anos depois. Já mulher casada,

fora ensinada no seio da família de Manuel Estevens. A sua confissão revelou-se

565

Cf. ANTT, IE, proc. 824, fl. 34. 566

Cf. ANTT, IE, proc. 824. 567

Álvaro Fernandes Castanho foi denunciado por Branca Dias, Pedro Gomes, Manuel Estevens e Joana

Jorge, além de Catarina de Tovar e Mor Gomes (primas, pelo lado paterno, de Pedro Gomes e Manuel

Estevens), Afonso Pinto Duarte, Branca Leitoa e Duarte Mendes, todos de Faro. Faleceu no cárcere a 15

de Junho de 1636, poucos dias após de ter sido sujeito a tormento. Foi absolvido no auto de 27 de Julho.

(Cf. ANTT, IE, proc. 10531). 568

Cf. ANTT, IE, proc. 5281.

Page 143: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

143

profícua em denúncias, embora tenha omitido qualquer acusação contra os parentes

mais próximos até ao último momento. Os inquisidores não criam que Maria tivesse

escondido a sua verdadeira fé dos próprios filhos e continuaram a ameaçá-la com a

condenação à pena máxima569

. Afinal, no momento em que começou a confessar, as

suas filhas mais velhas, Filipa e Maria Lopes, já estavam nos cárceres570

. Nos primeiros

meses de 1638, foram presas outras duas filhas, Branca Lopes e Isabel Rodrigues571

. A

30 de Abril desse ano, Maria Pinta cedeu à pressão dos inquisidores e delatou, além das

ditas filhas, os filhos Rui Lopes, Bartolomeu e Francisco, os três bem longe da acção do

Santo Ofício, algures nas Índias572

. A filha mais nova, Beatriz Lopes, que escapara à

denúncia materna, seria presa anos depois, em 1641573

.

Tal como acontecera em Faro, também em Loulé alguns núcleos familiares foram

quase integralmente atingidos pela repressão inquisitorial. Veja-se o caso do médico João

Leitão. Entre 1636 e 1640, ele, a esposa e seis dos seus filhos passaram pelos cárceres de

Évora. João Leitão e a mulher, Guiomar Ilhoa, foram presos em Agosto de 1636. Entre os

seus denunciantes, encontravam-se um irmão de Manuel Estevens, Duarte Mendes, e o

marido de Francisca Jorge, Francisco Gomes Mazagão. Quatro dias após ter chegado a

Évora, João Leitão começou a confessar. A prontidão com que o fez valeu-lhe menos de

um ano nos cárceres – saiu reconciliado no auto de 14 de Junho de 1637 e, a 26 do mesmo

mês, era-lhe levantada a pena574

. Igual resolução teve o processo da esposa. Contudo, a 2

de Fevereiro de 1628, Guiomar Ilhoa regressou aos cárceres. A sua confissão foi

considerada diminuta, dada a acumulação de novas denúncias. Ela voltou a não apresentar

defesa, sendo sempre prolixa nas denúncias. Sentenciada a cárcere e hábito penitencial

perpétuos, saiu logo no auto de 2 de Maio do mesmo ano575

. Guiomar Ilhoa não voltou

aos calabouços de Évora, mas, até o final da década de 40, continuaram a chegar

acusações contra si. Gregório Palermo de Sousa, cristão-velho de Loulé, acusou-a de

instigar denúncias falsas contra a sua família576

. O mesmo alegou a defesa de Jorge de

569

Cf. ANTT, IE, proc. 3939. 570

Cf. ANTT, IE, proc. 6826 e 8561. Maria Lopes chegou aos calabouços da Inquisição de Évora ainda

antes da mãe, a 6 de Julho de 1636, e saiu reconciliada no auto de 14 de Junho do ano seguinte. Alguns

meses depois, a 20 de Outubro de 1637, Filipa Lopes entrava no cárcere inquisitorial. Saiu no mesmo

auto que a mãe, a 2 de Maio de 1638. 571

Isabel Rodrigues entrou nos cárceres a 2 de Fevereiro de 1638 e Branca Lopes a 30 de Abril (Cf. ANTT,

IE, procs. 10624 e 10685). 572

Cf. ANTT, IE, proc. 3939, fls. 207-209. 573

Cf. ANTT, IE, proc. 10584. 574

Cf. ANTT, IE, proc. 2758. 575

Cf. ANTT, IE, proc. 2815. 576

Cf. ANTT, IE, proc. 5754.

Page 144: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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Oliveira, preso pela Inquisição de Évora em 1648. Uma memória apresentada pelos seus

irmãos defendia que a sua prisão fora “obra de seus inimigos”, entre eles, Guiomar de

Ilhoa. Doze ou quinze anos antes, ela tentara casar a filha Lourença Ilhoa com Jorge de

Oliveira, não o conseguindo por oposição do pai deste. Continua a memória:

“E é tanto assim que, sendo a dita Guiomar Ilhoa segunda vez presa nos cárceres do

Santo Ofício e sendo trazida da vila de Loulé à cidade de Faro, em casa do familiar

Rodrigo Lopes, aí estando presa, perguntou muitas vezes, e apertadamente, pelo

dito Jorge de Oliveira, dizendo que ele tinha um jubão e outras peles que lhe não

queria dar, mas que ele lho pagaria tarde ou cedo, e do modo com que ela o disse e

repetiu, entenderam as pessoas que se acharam presentes que ela o fazia com

paixão e ameaçando ao dito Jorge de Oliveira [...].”577

Note-se, porém, que Guiomar Ilhoa nunca chegou a denunciar Jorge de Oliveira

nem nenhum parente de Gregório de Sousa Palermo. Não obstante, as prisões entre a

família de João Leitão atraíram a atenção do Santo Ofício relativamente a outros

cristãos-novos de Loulé.

Guiomar Ilhoa e as filhas Lourença e Leonor Camacho denunciaram quatro filhos

do Dr. Pedro Fernandes de Oliveira, advogado. Entre Abril e Maio de 1638, Álvaro,

Martim, Manuel e Nicolau Pinto foram presos. A sua parte de cristãos-novos era ínfima,

só 1/8 do lado paterno. Alguns elementos da família integravam até a hierarquia

religiosa. Por outro lado, Manuel e Nicolau Pinto eram lavradores e, tal como o irmão

Álvaro, estavam casados com mulheres cristãs-velhas578

. Apesar disso, Martim Pinto

nunca tentou alegar a limpeza de sangue e, poucos dias depois da prisão, começou a

confessar que fora iniciado na fé judaica no seio da família do Dr. João Leitão. O seu

processo decorreu com rapidez. Menos de 5 meses após ter entrado nos cárceres, foi

reconciliado com cárcere e hábito penitencial perpétuos, no auto de 5 de Setembro de

1638579

. Os irmãos Manuel e Nicolau Pinto só saíram no auto seguinte. Álvaro Pinto,

porém, faleceu no cárcere, a 26 de Maio de 1638, e o seu processo só chegou a um

termo em 1654, quando foi relaxado em estátua no auto de 22 de Novembro580

.

577

Cf. ANTT, IE, proc. 7484, fls. 123-123v. 578

Cf. ANTT, IE, procs. 3477, 9829 e 8920. O processo de Nicolau Pinto encontra-se desaparecido.

Francisco e Manuel Fernandes, irmãos de Pedro Fernandes de Oliveira, eram sacerdotes em Loulé. Um

meio-irmão destes, Belchior Flores, era cónego em Faro. Porém, uma irmã de Pedro Fernandes de

Oliveira, Briolanja Fernandes, acabaria por também ser presa pela Inquisição de Évora em 1639, com

culpas de Judaísmo, na mesma altura que o sobrinho Manuel Guerreiro, filho da irmã Inês Fernandes (Cf.

ANTT, IE, proc. 9715. O processo de Manuel Guerreiro encontra-se desaparecido). Alguns anos mais

tarde, em 1642 e 1644, foram presas duas filhas de Briolanja, Luísa da Ponte e Maria Viegas (Cf. ANTT,

IE, proc. 10007. O processo de Maria Viegas também está desaparecido). 579

Cf. ANTT, IE, proc. 9829. 580

Cf. ANTT, IE, proc. 3477. Sobre a causa da morte, os companheiros de cárcere de Álvaro Pinto

contaram ao alcaide “que lhe tinha dado um acidente enquanto comia”.

Page 145: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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O Dr. João Leitão também denunciou Manuel Camacho. Filho de Manuel Gonçalves

e primo direito de Bartolomeu Gonçalves Navarro (preso em Julho de 1636581

), Manuel

Camacho vivia de sua fazenda e era casado com Joana Jorge, a prima de Francisca

Duarte. A 19 de Maio de 1637, 10 dias após ter entrado nos cárceres, confessou que fora

ensinado pelos avós paternos e denunciou a tia paterna Isabel Rodrigues, já anteriormente

delatada pelo Dr. João Leitão582

. A 13 de Junho, Isabel Rodrigues dava entrada nos

cárceres de Évora. Ao contrário do sobrinho, só admitiu as culpas de Judaísmo quase dois

anos após ter sido presa e depois de apresentar vários artigos de contraditas. Passados três

dias, no auto-de-fé de 10 de Abril de 1639, foi-lhe sentenciado cárcere e hábito

penitencial perpétuos583

. Manuel Camacho havia saído no auto anterior, tal como o irmão

Lázaro Camacho584

e o primo Rui Gonçalves585

.

Entre 1636 e 1639, 56 cristãos-novos foram presos em Loulé. Durante os anos 40, as

prisões reduziram-se gradualmente. 1644 foi o último ano em que um número

considerável de cristãos-novos louletanos entraram nos cárceres de Évora – 9 ao todo. A

partir de então, as prisões praticamente cessaram e a tranquilidade regressou aos lares da

gente de nação de Loulé.

E tudo termina em Albufeira

No século XVII, Albufeira era uma vila profundamente ligada à actividade agrícola.

Por isso, tal como acontecera em Loulé, a acção do Santo Ofício atingiu,

principalmente, famílias de lavradores e proprietários, nas quais havia gerações que o

sangue cristão-novo se misturava com o cristão-velho.

António da Guerra, escrivão de almotaçaria, afirmava ter o “sangue limpo”, filho de

Manuel da Guerra, mestre de esgrima, e de Antónia Varela, natural das Astúrias. As

diligências em Albufeira e em Lagos, onde vivia o irmão Manuel da Guerra, também preso

pela Inquisição, provaram o contrário586

. Com o avançar do processo, António da Guerra

581

Cf. ANTT, IE, proc. 6208. 582

Cf. ANTT, IE, proc. 1602, fls. 1v-2. 583

Cf. ANTT, IE, proc. 7939. 584

Cf. ANTT, IE, procs. 4409. 585

Cf. ANTT, IE, proc. 1602, fl. 21. Rui Gonçalves era filho de Francisco Gonçalves Navarro, tio

paterno de Manuel Camacho. Ele era lavrador e estava casado com uma cristã-velha, Maria das

Candeias (Cf. ANTT, IE, proc. 968). 586

Manuel da Guerra foi preso com o irmão, em Janeiro de 1648. Tal como António da Guerra, alegou ser

cristão-velho. Sem nunca confessar, acabou reconciliado com cárcere ao arbítrio dos inquisidores. Abjurou

de vehementi no auto de 26 de Março de 1651.

Page 146: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

146

acabou por admitir ser cristão-novo por parte da mãe587

. O caso de João Dias, lavrador de

Albufeira, foi diferente. Ele nunca confirmou ter qualquer parte de cristão-novo, ao

contrário do irmão Gregório Viegas, que ainda colocou algumas dúvidas sobre a limpeza do

seu sangue: disse desconhecer a “qualidade” da família paterna, oriunda da Alemanha588

.

As prisões em Albufeira iniciaram-se ainda durante a década de 30. Nestas

primeiras detenções, encontramos indivíduos pertencentes aos núcleos familiares mais

atingidos pelas prisões em Faro e Loulé. A 23 de Abril de 1635, Gaspar Lopes entrava

nos cárceres de Évora. Ele era irmão de António Simões, tendeiro, preso em Loulé no

ano anterior, e primo de Mestre Duarte, o pai de Branca Dias e Francisca Duarte589

.

Gaspar Lopes fora denunciado por Pedro Gomes, lavrador de Loulé, e pelo primo

Duarte Mendes, de Lagos. Porém, durante mais de dois anos, resistiu a admitir qualquer

culpa. Afinal, era “[...] tão bom cristão que, por escusar de se encontrar com alguns

cristãos-novos, se tirou de vender e ser tendeiro e se passou à lavoura [...]”. Mesmo no

momento em que se multiplicavam as prisões em Faro, nunca houve qualquer indício de

que pretendia ausentar-se do reino, antes investira em terras e noutros bens imóveis. E

oportunidades não faltaram para reconstruir a sua vida fora de Portugal. Afinal, ele ia

frequentemente vender figo a Sanlúcar de Barrameda, onde tinha família590

. Gaspar

Lopes acabaria por apresentar 61 artigos de contraditas antes de começar a sua

confissão, a 5 de Junho de 1637591

. Passados nove dias, saiu em auto-de-fé, reconciliado

com cárcere e hábito penitencial perpétuos, sem remissão.

Vários anos depois, o nome de Gaspar Lopes continuava a ser mencionado pelos

réus de Albufeira. António da Guerra, em 1651, confessou que fora ele o seu mestre na

Lei de Moisés592

. Pela mesma altura, Rodrigo Álvares, lavrador, e Catarina Fernandes

(prima irmã do Francisco Fernandes de Lagos, relaxado em 1629) também referiram o

587

Cf. ANTT, IE, proc. 2968. António da Guerra foi preso a 11 de Janeiro de 1648 e saiu no auto-de-fé

celebrado a 26 de Março de 1651, com cárcere e hábito penitencial perpétuos. 588

Cf. ANTT, IE, procs. 431 e 5576. Os dois irmãos conseguiram convencer os inquisidores da falsidade

das denúncias e saíram reconciliados no auto-de-fé de 26 de Março de 1651, onde abjuraram de levi e foi-

lhes sentenciado cárcere ao arbítrio dos inquisidores. 589

António Simões entrou no cárcere inquisitorial a 12 de Outubro de 1634. Reconciliado no auto de 27

de Junho de 1636, com cárcere e hábito penitencial ao arbítrio dos inquisidores, voltaria a ser preso ainda

nesse ano. Acusavam-no de quebrar o segredo. No auto de 14 de Junho de 1637, foi-lhe sentenciado

hábito perpétuo, sem remissão, e degredo de dois anos nas galés. Entretanto, também tinha sido presa a

sua esposa, Catarina Rodrigues, em Março de 1635. (Cf. ANTT, IE, procs. 5250 e 8460). 590

Cf. ANTT, IE, proc. 3558, fls. 20-20v. 591

Cf. Idem, fls. 134-134v, passim. Jorge Mendes era o pai de Branca Dias e de Francisca Jorge, presas

em Loulé em 1633 (Cf. ANTT, IE, proc. 6727). 592

Cf. ANTT, IE, proc. 2968, fls. 136-136v.

Page 147: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

147

ensino de Gaspar Lopes593

. O mesmo alegou a sua própria filha, Sebastiana Vicente,

presa em 1646594

. Quando tinha cerca de 19 anos, o pai ensinara-lhe que deveria vestir

roupa lavada aos sábados, jejuar à sexta-feira e não comer carne de porco, nem lebre ou

coelho, tudo em observação da Lei de Moisés595

.

O irmão de Gaspar Lopes, António Simões, motivou uma série de prisões em

Albufeira. A partir dos cárceres de Évora, a prima Francisca Duarte596

, de Loulé,

escrevera uma carta ao sogro, Álvaro Pires, na qual afirmava que “[...] António Simões

tinha dado em trinta e tantas pessoas da dita vila de Albufeira [...]”. Quem o contou foi

Sezinando Gonçalves, cristão-velho que ouvira o próprio Álvaro Pires a mencionar a

carta da nora597

.

O nome de António Simões também aparece entre os denunciantes de Rodrigo

Álvares e Francisco Rodrigues Calça, filhos de Manuel Rodrigues Calça. No momento

da prisão, os dois irmãos resistiram e tentaram fugir, sem sucesso598

. Em Janeiro de

1649, entraram nos cárceres de Évora. Francisco Rodrigues nunca chegou a admitir

qualquer culpa e acabou reconciliado com cárcere ao arbítrio dos inquisidores e degredo

de 2 anos em Castro Marim, por ter resistido à prisão. Porém, o irmão, que tinha

precisamente os mesmos denunciantes, confessou ser judaizante599

.

Mas regressemos às primeiras prisões na vila. Em Março de 1635, entravam nos

cárceres 4 dos filhos do lavrador Gonçalo Filipe: Margarida Filipe, Tomé Filipe Vieira,

Matias de Viveiros e Francisco Filipe600

. A denunciante fora a outra filha de Gonçalo

Filipe, Mécia Rodrigues, uma das cristãs-novas de Faro que, em Dezembro de 1633,

tentou ingloriamente fugir de barco para Huelva601

. Nas suas contraditas, Margarida

Filipe aludiu essa tentativa de fuga da irmã: o seu marido, Francisco Henriques, capitão-

593

Cf. ANTT, IE, proc. 2649, fls. 83v-84; proc. 3454. Catarina Fernandes era filha de Isabel Lopes, irmã

de Manuel Fernandes, o Cabeça de Vaca. 594

Cf. ANTT, IE, procs. 6359 e 10641. 595

Cf. ANTT, IE, proc. 6359. 596

Francisca Duarte era filha de Grácia Duarte, prima direita de Gaspar Lopes. A mãe de Grácia,

Francisca Jorge, era irmã de João Afonso, pai de Gaspar Lopes. O seu processo encontra-se desaparecido. 597

Cf. ANTT, IE, liv. 213, fls. 25-25v. 598

Cf. ANTT, IE, proc. 1597, fls. 13-13v. Vide, em anexo, pp. 448-449. 599

Cf. ANTT, IE, proc. 2649. Rodrigo Álvares saiu no auto de 6 de Março de 1651, junto com o irmão, e

recebeu como sentença cárcere e hábito penitencial perpétuos. 600

Cf. ANTT, IE, procs. 3190, 2525 e 19. O processo de Matias de Viveiros encontra-se desaparecido.

Um outro filho de Gonçalo Filipe, Manuel Filipe Vieira, mercador em África, apresentou-se

voluntariamente perante a Inquisição de Lisboa a 1 de Setembro de 1643. Tinha chegado num navio de

Cabo Verde e já havia sido denunciado pelo irmão Tomé Filipe e por Jacinto Rodrigues Ilhoa, cristão-

novo natural de Faro, mas então a viver em Lisboa (Cf. ANTT, IL, proc. 10325). 601

Vide supra, pp. 132-133.

Page 148: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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mor de Albufeira, ao saber da intenção da cunhada, fora a Faro impedi-la602

. A

actividade do marido, susceptível de atrair ódios na vila, serviu de argumento para a

defesa de Margarida. O irmão Tomé Filipe, por outro lado, apoiou-se no seu passado de

serviço à coroa portuguesa no Norte de África: “[...] era dos primeiros que acudiam aos

rebates contra os mouros que vinham e assim o fez em Tânger e Ceuta e na jornada da

Baja [...]”603

. Mas nem o casamento de Margarida Filipe, nem os serviços militares

prestados pelo irmão abrandaram a pressão dos inquisidores. Entretanto, os irmãos

Matias Viveiros e Francisco Filipe já haviam confessado e sido reconciliados. Tomé foi

o primeiro a ceder, no início de Junho de 1637, sendo seguido em poucos dias pela

irmã. Saíram ambos no auto celebrado a 14 desse mês, sentenciados a cárcere e hábito

penitencial perpétuos, sem remissão.

Já na década de 40, foi a vez da geração seguinte da família ficar sob a mira da

Inquisição. Em Dezembro de 1646, eram presos António Filipe, Manuel Martins Filipe

e Mécia Rodrigues Filipe, todos filhos de Francisco Filipe604

. As suas denúncias

motivaram a prisão da irmã mais velha, Maria Rodrigues, em 1649. Tal como o irmão

António Filipe, ela confessou que havia sido da tia Mécia Rodrigues que ouvira os

primeiros ensinamentos da “lei velha”, quando tinha cerca de 16 anos e participava da

romaria de São Marcos, em Faro605

.

O caso da família Filipe é exemplar da forma interpolada como decorreu a entrada

da Inquisição em Albufeira: 5 cristãos-novos presos em 1635; nos anos seguintes, um

por ano ou mesmo nenhum; 10 prisões em 1646 e mais 6 nos anos de 1648 e 1649. Este

ritmo espelha como as detenções registadas na vila foram consequência da acção

inquisitorial em Faro e Loulé.

Afinal, a circulação entre localidades fazia parte do quotidiano e, por conseguinte,

os laços familiares, profissionais e de amizade construíam-se numa dimensão mais

regional do que local. Vejamos o caso da família Madeira. A matriarca, Maria

Fernandes, era natural de Albufeira mas acabou a residir em Loulé. Os filhos dividiram-

se entre as duas localidades e não só: Águeda Dias e Inácio Madeira viviam em Loulé;

António Madeira, no termo da vila, em São Brás de Alportel; Clemente Fernandes, em

Albufeira; e Fernão Vaz de Álvares Madeira era soldado em Castro Marim. Quanto ao

filho mais velho, Manuel Madeira, vivia em Tânger em 1645, ano em que entrou nos

602

Cf. ANTT, IE, proc. 3190, fl. 31v. 603

Cf. ANTT, IE, proc. 2525, fl. 19. 604

Cf. ANTT, IE, procs. 8149, 1159 e 714. 605

Cf. ANTT, IE, proc. 4264.

Page 149: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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cárceres da Inquisição de Lisboa, denunciado pela mãe e pelos irmãos Águeda, António

e Inácio Madeira606

. Os três haviam sido presos em 1644, no mesmo ano de Clemente

Fernandes e Fernão Vaz607

. Dois anos depois, e na sequência destes processos, foram

detidos os primos Domingos Rodrigues, Margarida Fernandes e Maria Vieira, filhos da

tia materna Constança Fernandes, residentes no termo de Albufeira608

.

Noutras paragens

A 8 de Março de 1633, Francisca Duarte confessou que, quatro anos antes, tinha

partilhado a sua fé na Lei de Moisés com o primo Duarte Mendes, tratante de Lagos que

andava então a mercadejar na feira de Santa Iria609

. Apenas com esta denúncia, Duarte

Mendes, então tesoureiro da Câmara de Lagos, foi preso pela Inquisição pouco tempo

depois. A 10 de Outubro, entrava nos cárceres de Évora, já então povoados por alguns

dos seus parentes de Faro. A confissão iniciou-se nos dias seguintes. Havia cerca de 23

anos que fora ensinado por Manuel Filipe, mercador de Faro, já defunto em 1633.

Apesar de residir em Lagos desde os 30 anos de idade (tinha 50 quando foi preso),

grande parte da sua confissão centrou-se em Faro e Loulé, de onde era natural. O

silêncio foi completo relativamente aos cristãos-novos de Lagos610

.

De facto, esta entrada da Inquisição deixou praticamente incólumes os núcleos

urbanos do Algarve Ocidental. As prisões não foram mais do que pontuais e

directamente relacionadas com os processos de Faro e Loulé. Fernão de Álvares,

ourives de Lagos mas cuja família tinha raízes em Vila Nova de Portimão, foi

denunciado por um outro ourives de Faro, João Fernandes, primo de Francisca Duarte e

de Branca Dias611

. Esta denúncia, em conjunto com as de dois mercadores de Tavira,

conduziu-o aos cárceres inquisitoriais em Junho de 1637. O processo de Fernão de

Álvares não se revelou tão inócuo quanto o de Duarte Mendes, sobretudo entre aqueles

606

Cf. ANTT, IL, proc. 10326. 607

Cf. ANTT, IE, procs. 11102, 106, 10189, 10920 e 9342. 608

Cf. ANTT, IE, procs. 6059, 11245 e 10487. 609

Cf. ANTT, IE, proc. 6519, fls. 53v-54. Duarte Mendes era filho de Luís Estevens e Grácia Duarte, tia

paterna de Francisca Duarte. 610

Cf. ANTT, IE, proc. 4151. 611

Cf. ANTT, IE, proc. 4376. Fernão de Álvares provinha da família Dias de Vila Nova de Portimão,

profundamente atingida pela entrada da Inquisição na vila nos anos 80-90 do século anterior. Era

sobrinho paterno de Beatriz Dias, esposa de Diogo Lopes, o do Olho, presa em 1592. Segundo Fernão de

Álvares, a tia, depois de reconciliada, foi para o Brasil, onde veio a falecer. A sua mãe, Leonor Fernandes,

também entrara nos cárceres inquisitoriais, em 1596 (Cf. ANTT, IE, procs. 1762 e 10683).

Page 150: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

150

que lhe eram mais próximos. Em 1639, na sequência das suas denúncias, a irmã

Guiomar Gonçalves, a esposa Catarina Martins e o filho Diogo Martins foram presos612

.

Ele foi também um dos denunciantes de Francisco Fernandes Correia, mercador de Vila

Nova de Portimão, oriundo da família Fernandes de Lagos, preso ainda durante o ano de

1639613

. O outro delator, Manuel Mendes, natural de Tavira mas também residente em

Vila Nova de Portimão, descreveu o seu périplo anual pelas feiras do Algarve e do

Alentejo, durante o qual partilhava a sua fé na “lei velha” com outros tratantes. Aliás,

segundo confessa aos inquisidores, a sua iniciação religiosa dera-se durante uma feira,

em Vila Viçosa, ensinado por três mercadores: Diogo Gonçalves e Manuel da Fonseca,

de Vila Nova de Portimão, e António de Barros, de Faro614

.

O cenário que encontramos em Lagos e Vila Nova de Portimão, repete-se no outro

extremo do Algarve, em Tavira. Em Agosto de 1636, foram presos três filhos e um

genro de André Botelho, sapateiro, denunciados pela prima Maria da Graça, de Faro615

:

Gomes Fernandes, Mor Dias, Maria Rodrigues e o marido Gaspar Rodrigues616

. Meses

depois, a 13 de Outubro, entraram nos cárceres o cirurgião Mestre Duarte e Gabriel

Gomes, surrador, denunciado pelo irmão Luís Fernandes, residente em Faro617

. No caso

de Mestre Duarte, à denúncia de Luís de Torres, mercador de Faro, acresceu a suspeita

de que estaria a preparar-se para fugir rumo a Castela, para onde já tinha enviado a

mulher, as filhas e uma sobrinha. Acabaria por falecer na cela, na noite de 26 de

Fevereiro de 1637, cinco dias após ter revogado toda a confissão que até então fizera618

.

Nos dois anos seguintes, o número de prisões foi ainda mais reduzido. Todos os

processos relacionaram-se com a entrada na cidade sede episcopal. Filipa Nunes,

mulher de um serralheiro cristão-velho, fora acusada pela irmã Maria Guterres,

residente em Faro619

. Isabel de Torres, viúva de Faro, e Inês de Sousa, de Loulé,

denunciaram Constança Coelho, filha de Estêvão Rodrigues, mercador natural de Beja,

preso pela Inquisição de Évora em 1618620

. A confissão de Constança Coelho foi célere,

612

Cf. ANTT, IE, procs. 2832, 2775 e 5101. 613

Cf. ANTT, IE, proc. 3328. Pelo lado materno, Francisco Fernandes Correia era primo irmão de

Francisco Fernandes, o cristão-novo de Lagos relaxado no auto-de-fé de 1622. 614

Cf. ANTT, IE, proc. 584, fls. 1v-2. 615

Maria da Graça, filha de Matias Afonso e esposa de Francisco Lopes Cea, foi presa em 1634 (Cf. ANTT,

IE, proc. 46). 616

Cf. ANTT, IE, procs. 3560, 4651, 680 e 3557. 617

Cf. ANTT, IE, proc. 3559, fl. 4v. 618

Cf. ANTT, IE, proc. 7053. 619

Cf. ANTT, IE, proc. 2991, fls. 3-3v. Filipa Nunes entrou nos cárceres a 12 de Junho de 1637 e saiu no

auto de 10 de Abril de 1639, com cárcere e hábito penitencial perpétuos. 620

Cf. ANTT, IE, proc. 484.

Page 151: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

151

tendo delatado Beatriz Nunes, mulher Baltazar Rodrigues, médico – havia cerca de 6

anos, estivera com ela e com outras cristãs-novas no Recolhimento da Caridade de

Tavira, quando falaram sobre a Lei de Moisés e como esta era a boa para salvar as suas

almas621

. No dia 1 de Maio de 1638, Beatriz Nunes entrou nos cárceres de Évora. Logo

na primeira sessão, denunciou o marido. Em Maio de 1636, os dois tinham ido em

romaria ao Santo Cristo de Moncarapacho, acompanhados por Isabel de Torres, a qual

lhes falou de um filho que partira para as Índias de Castela, onde enriqueceu, e que tudo

se devia à fé na Lei de Moisés622

.

Baltazar Rodrigues, preso com a esposa, revelou que, quando estava preso em

Tavira, na casa do Padre Afonso Vaz da Costa, escrevera duas cartas. Numa delas,

delineava a estratégia que usaria perante os inquisidores:

“Depois que chegarmos a Évora, daí a oito ou dez dias, pediremos mesa e diremos

nossas confissões, salvando filhos e tia tudo quanto for possível, sem tocarmos

neles e por isso trabalharemos muito, e sobretudo Deus nos acuda e encaminhe na

primeira confissão, quando for à mesa, só falar em Felipa Nunes e Isabel de Torres

e em meu primo Fernão d‟Alves de Vila Nova.”623

De facto, logo a 7 de Maio, Baltazar Rodrigues denunciou as ditas Filipa Nunes e

Isabel de Torres e o primo Fernão de Álvares, preso no ano anterior. Os inquisidores

confrontaram-no com as duas cartas e Baltazar Rodrigues identificou-as como suas.

Acabou por confessar que, enquanto esteve preso em Tavira, escrevera 4 missivas, 3

delas para a cunhada Isabel Fernandes, aconselhando-a a fugir para Aiamonte e

pedindo-lhe que desse amparo aos seus filhos624

. Baltazar Rodrigues e a sua “querida

Nunes” saíram ambos no auto de 4 de Novembro de 1640, sentenciados a cárcere e

hábito penitencial perpétuos.

A partir de 1639, a actividade inquisitorial em Tavira tornou-se praticamente nula

até ao final do período estudado. Exceptuando Albufeira, registou-se o mesmo em todo

o Algarve a partir de meados da década de 40. O filão aberto em Faro com a confissão

de Branca Dias esgotara-se. Mas, como vimos, as consequências foram dramáticas –

mais de 380 prisões que se prolongaram para lá de uma década.

621

Cf. ANTT, IE, proc. 2578, fl. 9. 622

Cf. ANTT, IE, proc. 4403, fls. 2-2v. 623

Cf. ANTT, IE, proc. 4400, fls. 14-14v. Vide em anexo, pp. 443-444. 624

Cf. Idem, fls. 30v-32v.

Page 152: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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5. 1558-1650: UM BALANÇO

Três vagas de prisões, um período de interregno no início de Seiscentos, a

colaboração activa das autoridades religiosas locais com a máquina inquisitorial, a

ameaça de fuga dos suspeitos para lá das fronteiras, gerações de famílias atingidas nas

sucessivas vagas – são estes alguns dos aspectos que caracterizam a actuação

inquisitorial sobre os cristãos-novos no Algarve durante a segunda metade do século

XVI e a primeira da centúria seguinte. Os números são reveladores dos diferentes ritmos

e dos espaços que estiveram sob a mira do Santo Ofício625

.

A primeira entrada (1558-1566) foi a que mais se dispersou geograficamente:

começou em Vila Nova de Portimão, onde as prisões atingiram um pico em 1559;

passou depois para Lagos, com maior actividade entre 1560 e 1562; e, finalmente, para

Tavira, principal alvo, onde só em 1564 os processos movidos contra os cristãos-novos

residentes na cidade ascenderam as quatro dezenas. A entrada seguinte (1586-1596)

concentrou-se em Vila Nova de Portimão. Os números nunca chegaram a ser tão

expressivos quanto os da vaga anterior, porém, entre os anos de 1586 e 1596,

ultrapassaram as 120 prisões só em Vila Nova de Portimão. Entre os últimos anos do

século XVI e a década de 30 de Seiscentos, as prisões foram pouco mais do que

residuais. Nos anos 20, regista-se alguma actividade, mas o número de processos por

ano nunca ascende a meia dezena. Este período de mais de 30 anos, em que a actuação

inquisitorial foi modesta, antecede a maior entrada de sempre na região. É em Faro que

as prisões se concentram, atingindo valores muito elevados: 58 em 1633, 59 em 1634,

24 em 1635 e 39 em 1636. Considerando a dimensão da cidade, que na década de 30

não ultrapassaria os 1400 vizinhos626

, compreende-se o seu impacto na demografia

urbana, agravada pela debandada de muitos cristãos-novos rumo a Castela. As

detenções noutras localidades algarvias, em particular em Loulé e Albufeira, sucederam

em consequência da entrada em Faro.

Nas três vagas, a franja etária mais atingida compreendeu-se entre os 20 e os 40

anos, sendo a média de 35 anos627

. Portanto, estamos perante indivíduos no auge da

actividade produtiva. Apesar das prisões terem abrangido, sobretudo, a população

625

Vide, em anexo, gráfico 1, pp. 93-96. 626

Cf. Romero Magalhães, O Algarve Económico..., quadro II. 627

Vide, em anexo, gráfico 6.4, p. 103. As médias não variam muito entre as três entradas. A média de

idades mais elevada registou-se na primeira vaga de prisões (anos 50-60 do séc. XVI): 38 anos. Nas

outras duas entradas, a média de idades foi de 34 anos.

Page 153: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

153

feminina, não descuremos o impacto que o encarceramento de um dos cônjuges tinha no

casal. Com frequência, tal era motivo de abandono do lar, quer pela fuga do reino, quer

pelo acompanhamento do cônjuge preso até Évora (ou Lisboa, no caso da primeira vaga

de prisões). Note-se que muitas das mulheres presas pelo Santo Ofício tinham os

maridos ausentes ou eram viúvas. A maior sedentarização da população feminina e a

esperança média de vida mais alta são dois dos factores que explicam o porquê das

mulheres constituírem a grande maioria dos presos. Mais relevante é a forma como

deflagraram as três entradas da Inquisição no Algarve. Na primeira e na terceira vaga, o

início das prisões foi accionado pelo testemunho de duas mulheres. Durante a visitação

de 1585, a maioria das testemunhas também foram do sexo feminino. Ora, o círculo de

relações de uma mulher encontrava-se maioritariamente povoado por elementos do seu

sexo, o que se traduz nas denúncias efectuadas628

.

A actuação do Santo Ofício afectou sobretudo núcleos urbanos emergentes. Na

década de 60 de Quinhentos, Tavira era a maior cidade do Algarve, com estreitas

ligações ao Norte de África e um porto prolixamente frequentado por mercadores

nacionais e estrangeiros. A Ocidente, Lagos e Vila Nova de Portimão passavam por

uma fase de franco crescimento, na sequência das empresas ultramarinas e do

desenvolvimento da pesca do atum. No final do século, mantinham essa vitalidade,

apesar das quebras no rendimento das almadravas. Quando a Inquisição entra em Vila

Nova de Portimão, encontra uma localidade profundamente ligada à actividade

mercantil, em boa parte nas mãos de cristãos-novos. A entrada inquisitorial representou

um duro golpe. Muitos abandonaram a vila e estabeleceram-se no Algarve Central e

Oriental, pouco atingido pela vaga de prisões de final de Quinhentos. Outros saíram do

reino rumo a Castela e, dali, muitos terão partido para as Índias Ocidentais.

Durante a vaga dos anos 30 do século XVII, Vila Nova de Portimão e Lagos eram

apenas uma sombra do que haviam sido no passado – a actividade mercantil decrescera

e, simultaneamente causa e consequência dessa situação, o número de cristãos-novos

residentes também reduzira. Em 1630, Vila Nova de Portimão já não constituía o

melhor alvo para uma entrada da Inquisição. Por outro lado, Faro emergira nas últimas

628

Vide, em anexo, gráfico 6.5, p. 104. José Gentil da Silva nota a preponderância de presos do sexo

feminino nas Inquisições de Lisboa e de Évora a partir das primeiras décadas de Seiscentos (Cf. José

Gentil da Silva, “L‟Inquisition ao Féminin”, Comunicações apresentadas ao 1º Congresso Luso-

Brasileiro sobre Inquisição, vol. I, Lisboa, Sociedade Portuguesa de Estudos do Século XVIII, 1989, pp.

308). Vide também Elvira Cunha de Azevedo Mea, “As mulheres no Santo Ofício: perfis e estratégias”,

Estudos sobre as mulheres. Organização de Maria Beatriz Nizza da Silva e Anne Cova, Lisboa,

Universidade Aberta, 1998, pp. 85-97.

Page 154: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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décadas. Apesar de parcamente atingida nas entradas anteriores – até 1632, registaram-

se pouco mais de 40 prisões em Faro, um número superado em larga escala só no ano de

1633 –, havia algum tempo que chegavam à Inquisição de Évora pareceres que focavam

a importância da gente de nação na cidade, ocupando cargos cimeiros na hierarquia

municipal e religiosa, motivo de escândalo entre a maioria cristã-velha. Adivinhava-se

que a cidade seria um campo fértil à actuação inquisitorial. Adivinhava-se e foi. Loulé,

por sua vez, desenvolvera-se enquanto centro abastecedor do comércio de Faro. As

ligações entre as duas localidades eram intensas e o facto de à vaga de prisões em Faro

suceder-se uma série de detenções em Loulé foi uma consequência natural.

A acção inquisitorial em Faro, na década de 30, não é dissociável do seu estatuto de

sede episcopal do Algarve. Aliás, como vimos, D. Francisco de Meneses teve um papel

determinante na entrada do Santo Oficio na região. Não se tratou de um caso isolado. Os

bispos revelaram-se peças fundamentais na marcação do ritmo da entrada da Inquisição

no Algarve. D. João de Melo, bispo do Algarve desde 1549, esteve por detrás das

diligências feitas pelo vigário-geral, o Dr. Luís de Albuquerque, as quais conduziram às

primeiras prisões na região. Recordemo-nos, ainda, que todos os processos relativos a esta

vaga se desenrolaram na Inquisição de Lisboa, apesar do Algarve pertencer à jurisdição

do tribunal de Évora. O passado de D. João de Melo ao serviço do Tribunal de Lisboa terá

condicionado essa transferência. Mais tarde, foi D. Afonso de Castelo Branco quem

alertou a Inquisição para a necessidade de se organizar uma visita ao Algarve, a qual

acabaria por ocorrer já com D. Jerónimo Barreto à frente do episcopado. No final do

século, D. Fernão Martins Mascarenhas assumiu o cargo. Até à sua morte, em 1628,

enquanto esteve à frente da Sé e, depois, como inquisidor-geral, a Inquisição não efectuou

nenhuma entrada na região. As suspeitas de favorecimento aos cristãos-novos do Algarve

corriam de boca em boca. A situação mudaria com D. Francisco de Meneses, um decano

com vasta carreira nos tribunais inquisitoriais de Coimbra e de Lisboa.

Como José Pedro Paiva sublinha, desde o estabelecimento do Tribunal do Santo

Ofício que o apoio dos bispos foi essencial para alargar a abrangência da sua actividade

no reino. Esse apoio evidenciava-se a vários níveis. Primeiro, na presença de indivíduos

com uma anterior carreira episcopal na hierarquia inquisitorial, e vice-versa, o que,

como se viu, é constatável no Algarve. Sublinhe-se ainda outros níveis em que essa

colaboração entre bispos e Inquisição era notável, como no fornecimento de

informações sobre os casos de heresia, na recolha de denúncias e no envio dos presos,

Page 155: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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no apoio prestado durante as visitas inquisitoriais e nos autos-de-fé, ou no contributo

para o sustento financeiro do Santo Ofício629

.

No caso do Algarve, as condicionantes geográficas foram um factor determinante para

a necessidade desta cooperação entre os dois poderes. Évora, o tribunal mais próximo,

encontrava-se a dias de viagem. Os agentes inquisitoriais no Algarve eram poucos. Em

1649, ainda se lamentava o reduzido número de familiares do Santo Ofício na região630

.

De facto, as detenções realizavam-se, muitas vezes, por meio de indivíduos externos à

hierarquia inquisitorial, através do apoio das estruturas eclesiásticas locais. Isso é

particularmente visível na apreensão dos suspeitos de fuga nos anos 30 do século XVII.

Muito devido a esta colaboração das autoridades locais, religiosas e laicas, as entradas

da Inquisição no Algarve desenvolveram-se, em geral, a um ritmo rápido. O grosso das

prisões efectuava-se logo nos primeiros anos. Depois, as detenções começavam a

diminuir e a mira do Santo Ofício mudava de sentido, rumo a outra localidade.

As primeiras prisões suportavam-se em poucas denúncias. Afinal, e como já vimos,

a esmagadora maioria das denúncias tinha origem nas confissões doutros presos. A

necessidade de entrar num determinado espaço levava a Inquisição a contornar as

medidas regimentais, procedendo a detenções por testemunho singular.

No Regimento de 1552, a questão da prisão por testemunho singular é deixada, em

última instância, ao critério dos inquisidores. Refere o capítulo 24 que não se deveria

proceder à prisão por uma só testemunha, “[...] salvo quando parecer aos inquisidores que

é caso para isso e que a testemunha é pessoa de crédito e que fala verdade [...]”631

.O

Regimento de 1613 repetia essa mesma estipulação, acrescentando que os casos de

testemunho singular seriam remetidos ao Conselho Geral632

. Os limites às prisões

suportadas numa única denúncia são mais acentuados no texto regimental de 1640: “[...]

não bastará uma só testemunha para ser presa a pessoa denunciada, salvo se for marido ou

mulher ou sua parente dentro do primeiro grau de consanguinidade [...]”. Contudo, logo

no artigo seguinte, o regimento salvaguarda que se a testemunha for de “tão bom crédito”

e o denunciado de “tão ordinária condição” que os inquisidores considerem que devem

proceder à detenção, então farão assento de tal, justificando devidamente as suas razões, e

629

Cf. José Pedro Paiva, Baluartes da fé e da disciplina. O enlace entre a Inquisição e os bispos em

Portugal (1536-1750), Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2011, pp. 156-188. 630

Em carta aos inquisidores de Évora, Pedro Borges Tavares, vigário-geral do bispado do Algarve,

advertia: “[...] E lembro também a vossas mercês que é necessário haver familiares em Vila Nova e Lagos

que têm um só e Tavira e só esta cidade [Faro] tem os que lhe bastam.” (Cf. ANTT, IE, proc. 1597, fl. 13v). 631

Cf. “Regimento... (1552)”..., As Metamorfoses..., p. 113 (cap. XXIV). 632

Cf. “Regimento.... (1613)”, As Metamorfoses..., p. 160 (cap. IX).

Page 156: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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remetê-lo-ão ao Conselho Geral para que este decida o que fazer. A única reserva feita no

Regimento é ao crime de solicitação na confissão, sobre o qual nunca se poderia iniciar o

processo com base numa só denúncia633

. Esta maior especificidade no enquadramento das

prisões por testemunho singular no Regimento de 1640 foi, possivelmente, resultado de

abusos ocorridos no passado e das consequentes críticas. Porém, o Regimento voltava a

deixar espaço de manobra para os inquisidores, garantindo o seu poder em determinar se

uma testemunha era digna de crédito e se o seu depoimento justificava a detenção do

suspeito. Ou não fosse a prisão por testemunho singular um instrumento fundamental para

aligeirar as entradas da Inquisição em “terras novas”634

.

No caso do Algarve, as prisões por testemunho singular estiveram longe de ser uma

excepção. Nas duas entradas de Quinhentos, a maioria dos processos tiveram origem

numa só denúncia. Aliás, tal foi ainda mais evidente durante primeira vaga635

.

Uma confissão célere e coerente com o rol de culpas reunido pela Inquisição

propiciava a redução do tempo de cárcere e uma pena mais leve. A persistência na

defesa poderia ser contraproducente e revelar-se o caminho mais certo para a morte na

fogueira. Como vimos nos capítulos anteriores, foram poucos os bem sucedidos na

defesa e que saíram com uma pena leve – o cárcere ao arbítrio e a abjuração de

vehementi ou de levi – ou, ainda mais raramente, livres do cárcere. Vejamos os

números: em 1585-1600, 13%, em 1632-1650, 7%. Uma percentagem mais elevada

regista-se na primeira entrada, decorrente da apresentação voluntária de muitos cristãos-

novos perante os inquisidores de Lisboa, na esperança de uma sentença mais benévola.

Por outro lado, também foi reduzido o número de réus relaxados à justiça secular. Para

o período estudado, apenas 4 % dos cristãos-novos algarvios processados acabaram

relaxados em carne e ainda menor foi a percentagem dos relaxados em estátua. Em

suma, a maioria dos cristãos-novos presos no Algarve entre 1558 e 1650 acabaram por

ceder à pressão dos inquisidores e confessar as suas alegadas culpas636

.

Quanto à duração dos processos, raramente se estenderam além dos três anos. Aliás,

a maioria não ultrapassou os dois e, no caso da primeira entrada, 65% dos processos

633

Cf. “Regimento... (1640)”, As Metamorfoses..., p. 299 (liv. II, tit. IV). 634

Cf. Elvira Mea, “O Santo Ofício Português – da legislação à prática”, Memorial I.-S. Révah. Études

sur le marranisme, l’hétérodoxie juive et Spinoza. Edité par Henry Méchoulan et Gérard Nahon, Paris-

Louvain, Peeters, 2001, pp. 62-63. Sobre a questão das prisões por testemunho singular e a polémica

gerada em torno da legitimidade deste procedimento, vide Ana Isabel López-Salazar Codes, “«Che si

riduca al modo di procedere di Castiglia». El debate sobre el procedimiento inquisitorial portugués en

tiempos de los Austrias”, Hispania Sacra, LIX, 119, Jan.-Jun. 2007, pp. 243-268. 635

Vide, em anexo, gráfico 6.1, p. 100. 636

Vide, em anexo, gráfico 6.3, p. 102.

Page 157: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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resolveram-se num ano, o que indicia que muitos dos presos não demonstraram uma

acentuada resistência à confissão e conseguiram fazê-la coincidir com o rol de culpas637

.

Essa coincidência leva-nos a questionar o valor do segredo inquisitorial e até que

ponto os confitentes realmente o guardavam. Não são raros os casos em que o segredo

era quebrado por alguém que, no passado, conhecera as agruras do cárcere. Havia quem

aconselhasse os que se arriscavam a vir a ser presos sobre a melhor forma de encurtar o

tempo de cárcere e beneficiar de uma pena mais leve. Simoa da Costa, presa em Faro

em 1634, admitiu que guiara a sua confissão pelo que tinha ouvido dizer a Manuel

Nunes de Moura, reconciliado pela Inquisição anos antes638

.

Todo o processo que separava a detenção do suspeito na localidade de residência da

entrada no cárcere inquisitorial constituía uma ameaça ao segredo639

. As cidades e as

vilas não eram particularmente populosas e as relações sociais e familiares

desenvolviam-se de uma forma muito abrangente. A notícia de uma prisão circularia

célere por toda a localidade. Através do confronto com as prisões anteriores, tornava-se

relativamente simples retirar ilações sobre quem “dera” em quem.

Enquanto aguardavam a partida para Évora, os presos ficavam detidos na cadeia

pública da cidade ou, quando as prisões superavam em muito a sua capacidade, nas

casas de familiares do Santo Ofício, ou mesmo em lares de indivíduos não relacionados

com a hierarquia inquisitorial. No Outono de 1633, Catarina Lopes, a Sangue de Rei,

esteve detida na casa de Luís Eanes Rasquinho, familiar do Santo Ofício, antes de partir

rumo a Évora. Numa câmara do piso inferior, encontrava-se presa uma sua filha. Luís

Eanes Rasquinho repete o diálogo que então escutara:

“[...] «Filha, já que estás presa, dá em fulano e fulana», e nomeou-lhe muitas pessoas

cristãs-novas de que ele, testemunha, não está lembrado e isto disse tão alto que com

ele declarante, digo, testemunha, e a dita filha dela estarem três casas além dela, e se

meterem três sobrados no meio, ouviu muito claramente as sobreditas palavras, e a

dita sua filha lhe respondeu: «Calai-vos, não vos ouçam». E tanto gritava a dita

Catarina Lopes que foi necessário deitar-lhe grilhões para a aquietar [...]”640

637

Vide, em anexo, gráfico 6.2, p. 101. 638

“[...] disse ela, confitente, ao dito homem que, pois havia estado preso nos cárceres dele, lhe dissesse

como se haviam os presos enquanto o estavam e ele lhe respondeu que os que tinham culpas as

confessavam e os que não tinham se defendiam, e que como os que confessavam dissessem as suas

culpas, ia pouco declarar todos os anos em que as cometeram e, por esta razão, quando ela confitente fez

sua confissão nesta mesa, dissera nela haver somente cinco anos que crera na lei de Moisés, por entender

com o que lhe havia dito o dito Manoel Nunes que, ainda que houvesse mais tempo que cria na dita lei, ia

pouco o não declarar.” (Cf. ANTT, IE, proc. 2721, fls. 52v-53). Manuel Nunes de Moura esteve preso em

Évora entre 1624 e 1628. (Cf. ANTT, IE, proc. 4361). 639

Vide Mea, A Inquisição de Coimbra..., pp. 397-401. 640

Este episódio vem relatado no processo de Guiomar Mendes, também de Faro (Cf. ANTT, IE, proc.

2197, fls. 108v-109v).

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Durante o tempo em que se encontravam presos na cadeia local ou nas casas de

particulares, os presos recebiam visitas de parentes e amigos. Encomendavam-lhes a

protecção da família, mas também trocavam informações sobre a prisão, os hipotéticos

denunciantes e a confissão que apresentariam, ou não, perante os inquisidores641

. Num

momento em que as prisões se multiplicavam por toda a região, presos de diferentes

lugares reuniam-se em grupos, mais ou menos numerosos, para tomarem o caminho

rumo a Évora. Veja-se o caso de Maria Dias que, detida em 1588, partiu de Faro para

Vila Nova de Portimão, onde passou a noite numa estalagem junto com outros presos

que também seguiam para Évora642

. Baltazar Rodrigues, apreendido em Tavira em

1638, ainda teria de se reunir, em Faro, a mais 4 ou 5 presos dessa cidade e 14 de Loulé

antes de enveredar o caminho até ao cárcere inquisitorial – foi o que escreveu numa

carta remetida à cunhada Isabel Fernandes643

.

Neste périplo até Évora, e segundo se deduz da dita carta, Baltazar era o único preso a

partir de Tavira. Não o acompanhava nenhum parente. Mas nem sempre era assim. Em

1591, Beatriz Lobo seguiu na companhia de mais 17 presos, entre os quais as irmãs Ana e

Maria Fernandes. Interrogada pelos inquisidores, ela jurou ter mantido o silêncio durante

todo o caminho, “[...] porque vinha gente com eles e traziam-nos apartados [...]”. Ela não

falara com ninguém, nem sequer com as irmãs644

. Mas o inquisidor duvidou. A viagem

até Évora era longa. Mesmo seguindo em bestas, o caminho prolongava-se por 4 ou 5

dias645

. Parava-se no caminho, pernoitava-se em estalagens. Como evitar a comunicação

entre os presos?

641

Foi o caso de Mor de Barros que, quando estava presa em Vila Nova de Portimão, em 1591, foi

visitada pelo irmão António de Barros, o qual ameaçou matar-lhe o marido caso o denunciasse. (Cf.

ANTT, IE, proc. 6017). 642

Maria Dias conta que se encontrou na estalagem com Grácia Gonçalves, cristã-nova de Vila Nova de

Portimão, também ali presa. Nessa noite, um filho e um genro de Grácia passaram pela porta da

estalagem e acenaram-lhe “[...] pondo a mão nas suas bocas e apertando os beiços com os dedos, dando-

lhe nisso a entender que se calasse [...]” (Cf. ANTT, IE, proc. 9361. Também referido em Borges Coelho,

Inquisição de Évora..., pp. 112-113.) 643

Cf. ANTT, IE, proc. 4400, fls. 14-14v. Vide em anexo, pp. 443-444. 644

Cf. ANTT, IE, proc. 6980. 645

Encontramos esta informação sobre a duração da viagem entre Évora e o Algarve no processo de

Aldonça Gramaxo, presa em Vila Nova de Portimão, em 1589. Dois meses depois de ter saído no auto-

de-fé de 12 de Junho de 1594, os inquisidores deram ordens para que regressasse a Vila Nova de

Portimão e ali cumprisse o resto da penitência. A viagem foi adiada e, em Novembro, recebeu nova

ordem para partir. Entretanto, Aldonça engravidara e, por isso, pediu à Inquisição para permanecer em

Évora, pois a viagem poderia ser perigosa no seu estado. Foram chamadas duas parteiras, que deram o seu

parecer. Uma delas, Maria Marques, afirmou que Aldonça “[...] corre perigo de sua vida, ou de morrer a

criança, indo caminho de quatro ou cinco dias de besta [...]”. A outra parteira, Filipa Dias alegou, pelo

contrário, que “[...] muitas mulheres peiadas e em dias de parir andam caminho e não perigam [...]”.

Aldonça acabou por partir para Vila Nova de Portimão, onde já se encontrava a 13 de Dezembro. (Cf.

ANTT, IE, proc. 4603, fls. 194-195v).

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Já no cárcere, o conteúdo das confissões voltava a escapar ao segredo inquisitorial. A

própria estrutura dos calabouços não impedia eficazmente a comunicação entre os presos.

Os cárceres eram exíguos e pouco iluminados e chegavam a partilhar o mesmo espaço 5

ou ainda mais presos646

. Em 1619, Francisco Luís, então estudante em Coimbra, contou o

que ouvira de um cristão-novo, preso na Inquisição de Évora e reconciliado no auto-de-fé

celebrado nesse mesmo ano. Dizia que, na cela onde estivera, “[...] escassamente cabiam

dois homens e que a água, urina, loiça e o mais requisito para um homem viver estava

junto por razão do aperto e angústia da casa [...]”647

. Em 1561, Garcia Ribeiro, cristão-

novo de Lagos preso pela Inquisição de Lisboa, pedia aos inquisidores que o retirassem

da cela onde se encontrava “[...] por ser muito escura e temerosa e ele ser homem mal

disposto e doente [...]”. As condições deploráveis do cárcere justificavam até uma má

confissão. Garcia Ribeiro alegou ter passado em branco a noite antes de ir à mesa porque

vira, na sua cela, uma cobra e “[...] uma alcateia de ratos e lhe apagaram a candeia e

comeram o azeite e levaram a torcida, assim como o fogo [...]”, razão pela qual não

conseguiu dormir, “[..] nem cuidar em seus pecados [...]”648

.

Em fases de intensa actividade inquisitorial, as celas ficavam sobrepovoadas.

Indivíduos com laços próximos de parentesco partilhavam a mesma “casinha”. Maria da

Conceição, presa em 1590, esteve encarcerada na companhia da irmã Francisca de

Barros, a qual tê-la-ia pressionado a não denunciar o irmão Manuel de Barros649

. Mas a

partilha do mesmo espaço de cárcere por duas irmãs não era a regra. Em geral, a

distribuição dos presos pelas celas tendia a evitar a existência de relações prévias. Aliás,

o Regimento de 1613 é claro quando proíbe aos presos negativos a partilha da cela com

outros detidos da mesma terra ou com familiares650

. Contudo, tal não evitava

completamente a comunicação e a troca de informações sobre as denúncias e

confissões. A arquitectura do cárcere não tinha como o impossibilitar. Vejamos o que

narra Diogo de Barros, de Lagos, preso nos cárceres de Évora em 1619:

646

Cf. Borges Coelho, Inquisição de Évora..., p. 38. Sobre as celas inquisitoriais, o autor cita as anónimas

Notícias Recondidas y Postumas del Procedimento de las Inquisiciones de España y Portugal con sus

Presos (1772): “[...] uma casa de quinze palmos de comprimento, e doze de largo, escura e que tem por

claridade uma fresta levantada do chão três palmos pouco mais ou menos [...]”. 647

Cf. ANTT, IE, liv. 227, fl. 365. 648

Cf. ANTT, IE, proc. 8489, fls. 39-40. Vide em anexo, pp. 265-267. 649

Cf. ANTT, IE, proc. 7856. 650

Refere o cap. XVIII do Regimento de 1613: “Os presos negativos se não mudarão de uma casa para

outra, nem se lhe dará companhia, salvo havendo causa para isso, e quando parecer aos inquisidores que

se lhes deve dar a dita companhia, em nenhuma maneira lha darão de pessoas das próprias terras e lugares

donde são, nem culpados nas mesmas culpas in specie, nem parentes, mas serão acompanhados os tais

negativos de alguns bons confitentes e pessoas de que se tiver melhor conceito [...]” (Cf. “Regimento...

(1613), As Metamorfoses..., p. 162 (cap. XVIII)).

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“Manuel Rodrigues Lobo é seu inimigo capital e lhe quer mal porque estando o réu

preso nestes cárceres, na casa das 8, e o dito recusado na casa das 6, Manuel Casco,

companheiro dele réu, fez umas trovas dos que saíram no auto de fé penitenciados,

em que entrou nelas o pai do recusado, e, estando-as lendo ao fidalgo Corte Real, que

estava na casa das 9, e ouvindo o recusado as trovas, porque estava à sua janela, se

agastou muito, dizendo que era aquilo muito mal feito, que o seu pai era homem

honrado e se agastou contra ele réu, pois consentia dizer mal de seu pai [...].”651

Em suma, o companheiro de Diogo de Barros, Manuel Casco, lera umas trovas a um

tal “fidalgo Corte Real”, preso noutra cela, as quais foram ouvidas por um outro preso,

Manuel Rodrigues Lobo, à janela de uma terceira casa. Nem a vigilância impedia a

comunicação de cela para cela. E eram várias as formas de escapar a ouvidos

devassadores. Beatriz Manuel, presa em 1618, disse ter aprendido no cárcere a “falar

pelo ABC”652

, uma forma de comunicação através de pancadas na parede. Branca

Rodrigues, cristã-nova do Porto que, em 1559, estava presa no mesmo cárcere de Inês

Pousadas, de Vila Nova de Portimão, revelou aos inquisidores como este método de

comunicação era eficaz. Uma vez, ouvira alguém a bater na parede e Inês Pousada

dissera-lhe que era Catarina Fernandes, também de Vila Nova de Portimão, a qual lhe

perguntava, através das ditas pancadas, quem é que estava no cárcere com ela.

Prosseguiu Branca Rodrigues:

“[...] e dizendo-lhe a dita Inês Pousada que estava ela, declarante, em sua

companhia, a dita Catarina Fernandes perguntou a ela, declarante, se estava no

corredor velho e, respondendo-lhe ela, declarante, que sim, que estava perto de sua

mãe, dela Catarina Fernandes, a dita Catarina Fernandes lhe disse que dissesse à

sua mãe, Inês Martins, que confessasse suas culpas e dissesse que fizera dois jejuns

com ela, Catarina Fernandes, e com sua dona dela, Catarina Fernandes, que se

chama a Rainha, um dos ditos jejuns pelo tempo dos marmelos e o outro não se

lembra por que tempo e que já ela, Catarina Fernandes, e sua tia, Catarina Martins,

tinham dito isto [...].”653

Secretamente, circulavam bilhetes escritos escondidos entre a roupa ou mesmo na

comida dos presos654

. Portanto, não obstante a vigilância dos guardas e dos alcaides, os

limites do cárcere eram frequentemente transpostos por informação que circulava de

cela para cela, mas também para e do exterior. Essa ameaça ao segredo inquisitorial é

contemplada no Regimento de 1640, quando estipula que os cárceres devem ser secretos

e seguros, bem fechados, separados por corredores, de modo que “[...] se atalhe a

comunicação entre presos para maior observância de segredo, pelo grande prejuízo que

651

Cf. ANTT, IE, proc. 5805. 652

Cf. ANTT, IL, proc. 1316. 653

Cf. ANTT, IL, proc. 12940, fls. 6v-7. 654

Sobre a circulação de informação escrita no cárcere inquisitorial, vide Antonio Castillo Gómez,

“Escrito en prisón. Las escrituras carcelarias en los signos XVI y XVII”, Península. Revista de Estudos

Ibéricos, n.º 0, 2003, pp. 147-170.

Page 161: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

161

do contrário seguiria ao Santo Ofício [...]”655

. Mas esse “prejuízo” continuou a ser

sentido e nem os corredores salvavam o segredo.

No interior da cela, o conteúdo das confissões constituía um tema corrente de

diálogo entre os presos. Uns, mais experientes, aconselhavam os outros sobre o melhor

modo de conquistar a “misericórdia” do tribunal. Isabel Martins, a 6 de Março de 1638,

admitiu uma série de denúncias falsas. Porque o fizera? Uma companheira de cárcere,

oriunda de Estremoz, havia-lhe aconselhado “[...] que, para se livrar desse [cárcere],

desse em todas as pessoas de nação da sua terra que lhe lembrasse [...]”. Isabel Martins

assim o fez, mas acabou por se arrepender. Então, a sua companheira deu-lhe um novo

conselho – que voltasse à mesa para revogar a confissão anterior656

.

Nos cárceres, fomentavam-se amizades mas também querelas. O companheiro de cela

poderia tornar-se um denunciante. Logo em 1563, Gaspar Fernandes, de Tavira, sofrera-o

na pele, denunciado por quem partilhava com ele as vicissitudes do cárcere657

. Também

Cristóvão de Mendonça, executor da propriedade do reino do Algarve, sabia que essa

partilha não o salvaguardava da denúncia, antes pelo contrário. Ele fora preso na vaga de

Julho de 1636, acusado de judaísmo. Porém, negou sempre essas acusações, tal como

qualquer parte de sangue hebraico. Cristóvão suspeitava ter sido denunciado pelos

companheiros de cárcere. Era com Fernão de Álvares, ourives de Lagos, que tinha

maiores divergências. «Bom companheiro tenho» – dizia este, ironicamente, sobre

Cristóvão de Mendonça. Afinal, logo que entrou no cárcere, Fernão de Álvares tentou

aproximar-se do executor, recordando que, no passado, os dois haviam-se encontrado

numa barca que seguia de Lisboa para Coina. Porém, Cristóvão de Mendonça retorquira

secamente, recusando qualquer proximidade com o ourives, e prosseguiu com esta atitude

durante todo o tempo em que partilharam a mesma cela658

.

O executor desejava transparecer uma ideia de distância face à gente de nação, isto

apesar de ser casado com uma cristã-nova, Beatriz Gomes, presa pela Inquisição de

Évora em 1633659

. A aversão aos cristãos-novos está omnipresente na sua defesa.

Vejamos o seguinte episódio. Quando um sobrinho da sua mulher foi morto por Manuel

de Moura Gavião, cristão-velho, Cristóvão de Mendonça felicitou-o “[...] dizendo que

era o primeiro homem que vira livrar por morte de um cão danado, antes havia de haver

655

Cf. “Regimento... (1640)”, As Metamorfoses..., p. 240 (liv. I, tit. II, art.º 11). 656

Cf. ANTT, IE, proc. 5545, fls. 50-50v. 657

Cf. ANTT, IL, proc. 2486, fls. 4v-8. Vide em anexo, pp. 268-270. 658

Cf. ANTT, IE, proc. 2699, fls. 287-295. Vide em anexo, a transcrição de excertos das contraditas do

processo de Cristóvão de Mendonça, pp. 438-442. 659

Cf. ANTT, IE, proc. 10574.

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prémio para quem os matava como davam a quem matava lobos [...]”660

. Estas palavras

correram por toda a cidade e excitaram os ódios da gente de nação. Cristóvão dizia-se

“[...] um ânimo inocente de judeus conjurado [...]”, conduzido aos cárceres pelos

testemunhos de quem não se poderia esperar nada senão a mentira e a perfídia. É

permanente este tom de animosidade face aos cristãos-novos de Faro, alicerçado no

ataque à fé judaica, uma lei pouco atractiva, “[... ] velha e magra, pois não admite

gordura nem toucinho [...]”, toda feita de fastio “[...] porque ela não come uma cousa,

ela não come outra, uma lhe faz asco, outra lhe aborrece [...]”. Cristóvão tentava, assim,

identificar-se com o discurso da própria Inquisição661

.

As falsas acusações, fruto de vinganças pessoais, constituíam o argumento de defesa

mais comum. Em 1592, Isabel Lopes, de Vila Nova de Portimão, queixava-se das

ameaças de Belchior de Barros: “[...] que se não agastasse porque sua casa havia de ser

destruída e que até o gato da casa havia de vir preso [...]”662

. Anos mais tarde, Manuel

Henriques apresentava uma longa série de contraditas, nas quais dava a entender que

muitos cristãos-novos de Faro tinham razões para traduzirem os seus ódios em

denúncias falaciosas, mais exactamente 42 denúncias, tantas quantas a Inquisição de

Évora reuniu contra si663

. Por sua vez, Cristóvão de Mendonça alegava a pouca

fiabilidade dos testemunhos que o conduziram ao cárcere. A pressão para confessar,

como garantia de uma pena mais leve e de um tempo de cárcere mais curto, encorajava

as falsas denúncias. Escrevia o executor:

“Lança o Santo Ofício suas redes e colhe os de sobrado e os de loja, e a estes, que

o vulgo chama de menos sorte, vindos a esta mesa, donde a caridade anda atrás

de seu remédio e a misericórdia, que já lhe sabe as juntas, vira o rosto à culpa

pelo respeito não fazer pejo à vergonha, oferece-lhe o perdão só com mudar de

traje, roga-lhe com a liberdade sem pretender resgate, facilita-lhe a afronta com o

exemplo de outros, faz-lhe memória de sua causa por ser melhor pousada.

Obrigados do termo e compungidos do erro, entram em consideração que se se

põem em defesa que a justiça que é mui solícita em requerer seu direito, o

tribunal, ainda que piedoso, não deixa de ser tremendo, o sítio da prisão mais

cheio de nublados que de estrelas, as vidas curtas, os livramentos largos, a

natureza fraca, o fim rigoroso, o sucesso incerto, porque sempre este mal traz

comichão nas costas. Vêem mais que o que têm que perder é pouco ou nada, [...]

o cárcere que não é fiel conselheiro, nem nunca se prezou de pontos dele; os

pesos e medidas da gula ou mais costumes aferidos por taxa e por razão aos que

660

Cf. ANTT, IE, proc. 2699, fls. 301-302. 661

Cf. Idem, fls. 325-350. Vide a transcrição da defesa de Cristóvão de Mendonça em Carla da Costa

Vieira, “«Da cor do cárcere vestido». A defesa de Cristóvão de Mendonça perante a Inquisição de Évora”,

Cadernos de Estudos Sefarditas, n.os

10-11, 2011, pp. 503-536. 662

Cf. ANTT, IE, proc. 11123. 663

Cf. ANTT, IE, proc. 8603, fls. 107-245. Vide em anexo, pp. 431-435.

Page 163: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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sempre de vícios tiveram mesa franca; Castela que se faz passo largo; e a

juventude, seu desonesto trato, mil carícias.”664

Entre os cristãos-novos criticava-se a pouca credibilidade dos testemunhos retirados

a ferros, pronunciados por réus que, conhecendo os métodos do Santo Ofício, sabiam

como a delação era o caminho mais rápido para o perdão. Em 1587, quando cumpria a

penitência em Évora, Fernão Pinto, de Lagos, teria afirmado “[...] que tantos tostões

tivesse quantos no Santo Ofício eram acusados falsamente [...]”665

.

A muitas léguas do tribunal de Évora, comentava-se a fama de alguns inquisidores.

De boca em boca, circulavam rumores sobre quais os mais austeros e os mais brandos.

Em 1636, ao regressar a Faro, Francisco Mendes de Góis comentara que achava o

inquisidor Bartolomeu de Monteagudo “muito áspero”, apelidando-o de “Nero

Vespasiano”666

. Curiosamente, encontramos esta mesma designação aplicada a D. João de

Bragança, inquisidor do tribunal eborense. Em Maio ou Junho de 1594, no Mosteiro de

Santo António dos Capuchos, em Évora, Manuel Fernandes Estaço, que andava a cumprir

a penitência sentenciada no auto de 1587, comentara: “[...] está aí um Nero, Dom João de

Bragança, que com tormentos faz confessar os homens o que não fizeram [...]”667

.

Os “Neros” da Inquisição forçavam os réus a confessar, sob tormento, o que tinham

e, sobretudo, o que não tinham feito. As críticas também se direccionavam aos

familiares e comissários do Santo Oficio, os quais cresceram em número ao longo do

século XVII, atingindo o seu expoente máximo no final da centúria668

. Dada a sua maior

664

Cf. ANTT, IE, proc. 2699, fls. 335-335v. 665

Cf. ANTT, IE, proc. 2891. 666

Cf. ANTT, IE, proc. 3029, fls. 21. Confrontado com os inquisidores, Francisco Mendes desmente tais

acusações – nunca dissera nada contra Bartolomeu de Monteagudo, o qual considerava de “[...] mor

talento e que tivesse mais experiência de todos os negócios e, em especial, no administrar justiça sem

respeito algum de pessoa, senão muita inteireza [...]” (fls. 91v-92). Sobre Bartolomeu de Monteagudo

corria a fama de que teria parte de cristão-novo. O seu processo de habilitação concluíra que ele era filho

de um alemão e de uma castelhana que, segundo algumas testemunhas, teria sangue hebreu. Mesmo

assim, foi habilitado a servir o Santo Oficio (Cf. Figueirôa-Rêgo, A honra alheia..., pp. 417-418). 667

Cf. ANTT, IE, proc. 6015. 668

Em 1693, existiam no Algarve 35 familiares do Santo Ofício: 15 em Faro, 10 em Lagos e 10 em Tavira.

(Cf. Borges Coelho, Inquisição de Évora..., p. 82). Sobre os comissários e familiares do Santo Ofício no

Algarve durante o século XVIII e o seu papel no controlo das populações mais distantes das sedes dos

tribunais, vide Nélson Vaquinhas, Da comunicação ao sistema de informação: o Santo Ofício e o Algarve

(1700-1750), Lisboa / Évora, Colibri / CIDEHUS, 2010. Francisco Bethencourt avança com algumas

hipóteses explicativas do aumento do número de familiares do Santo Ofício num momento em que a acção

inquisitorial começava a entrar em declínio. Por um lado, esse mesmo declínio justificava que a Inquisição

necessitasse de alargar o seu apoio e reforçar a sua representação fora dos grandes centros urbanos. Por

outro lado, a integração na hierarquia inquisitorial constituía uma garantia de ascensão social e de acesso a

privilégios, factores que se enquadram nas mudanças registadas na sociedade portuguesa no final de

Seiscentos. (Cf. Francisco Bethencourt, História das Inquisições..., pp. 50-51, 122-130). Sobre esta questão,

vide também José Veiga Torres, “Da repressão religiosa para a promoção social. A Inquisição como

instância legitimadora da promoção social da burguesia mercantil”, Revista Crítica de Ciências Sociais, n.º

40, Outubro 1994, pp. 109-135.

Page 164: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

164

proximidade face às populações, eram eles os primeiros alvos do descontentamento de

quem se sentia injustamente reprimido pela máquina inquisitorial.

A 12 de Junho de 1638, o governador Henrique Correia da Silva, em carta endereçada

ao rei, mencionava a situação que o seu primo Lopo Furtado de Mendonça vivia em

Loulé, onde era capitão-mor. Tinham-se registado motins na vila e ele fora alvo da

hostilidade da população669

. Tal devia-se ao seu estatuto de familiar do Santo Ofício e às

muitas prisões ocorridas em Loulé por sua ordem, inclusivamente entre “[...] mulheres de

alguns poderosos e assim os parentes destes [...]”670

.

Uma dessas mulheres era Beatriz Virela, esposa de António da Cunha de Sousa,

capitão de infantaria que colaborava na vigilância dos suspeitos e nas prisões

inquisitoriais na vila. Recordemos que ela fora presa por culpas de judaísmo, apesar de

não ter sido possível provar a sua ascendência cristã-nova. As contraditas do seu

processo referem Lopo Furtado de Mendonça – ele costumava ameaçar a sua família

“[...] com o poder de seu ofício [...]”, razão pela qual o seu marido, o seu pai e o seu tio

Manuel de Barros da Silva escreveram uma carta ao Santo Ofício, na qual se queixaram

do seu comportamento. Desde que teve conhecimento da dita carta, o capitão-mor

passou a difamar publicamente a sua família e a ameaçá-la, dizendo “[...] que a ela, ré, a

tinha atravessada na garganta, dando grandes mostras de gosto se a prendessem e que

havia perseguir seus tios até à sexta geração [...]”671

.

A defesa de Beatriz Virela foi bem sucedida. Desconhecemos até que ponto teriam

pesado as contraditas relativas a Lopo Furtado de Mendonça. Uma outra detenção

providenciada pelo familiar, em 1635, também suscitou polémica. O alvo foi o Padre

Jorge Lopes de Castro, beneficiado da igreja de S. Clemente e com parte de sangue

cristão-novo. Ele era suspeito de planear a fuga para Castela. Afinal, havia anos que a

sua família se encontrava sob a mira da Inquisição. O irmão, Brás de Azevedo, tinha

669

Henrique Correia da Silva referia-se aos motins contra a Monarquia Filipina registados no final da

década de 30. No mês de Setembro de 1637, a população de Loulé obrigou a Câmara a suspender a

cobrança do real de água e a avaliação das fazendas imposta pela coroa. A partir daí, a revolta espalhou-

se por toda a região. Lopo Furtado de Mendonça puniu com veemência os amotinados, o que fomentou o

ódio popular. (Cf. Iria, “O Algarve na Restauração...”, Congresso do Mundo..., pp. 173-174; António de

Oliveira, Levantamentos populares...). 670

Cf. “Carta a Sua Majestade em 12 Junho sobre meu sobrinho Lopo Furtado”, in Iria (ed.), Cartas dos

governadores..., pp. 14-15. 671

Cf. ANTT, IE, proc. 3681, fl. 82. O governador Henrique Correia da Silva, na carta de 12 de Junho de

1638, também se referiu a esta missiva contra Lopo Furtado de Mendonça: “[...] em todas as mais couzas

do officio de capitão mor o indissiarão com Vossa Magestade ou fabricarão couzas de paxão, e contra a

sua honrra, para que cometa algum erro, como pareço que preiurou Manuel de Bairros da Siua para se

poder queixar delle capitão mor a Vossa Magestade [...]” (Cf. “Carta a Sua Magestade em 12 Junho sobre

meu sobrinho Lopo Furtado”, in Iria (ed.), Cartas dos governadores..., p. 15).

Page 165: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

165

sido preso no ano anterior672

. Antes, em 1629, o tio paterno Fernão Soeiro caíra nas

malhas do Santo Ofício e, anos depois, também os seus filhos acabaram por conhecer o

cárcere inquisitorial: Manuel da Gama de Pádua, preso em 1637, e Jorge Lopes da

Gama, em 1648, ambos pela Inquisição de Lisboa, cidade onde então residiam673

.

Jorge Lopes de Castro nunca chegou a entrar no cárcere inquisitorial. Esteve preso na

cadeia de Faro mas, em Fevereiro de 1635, já se encontrava de regresso a Loulé. Em

liberdade, ele teria comentado com Tristão do Vale de Mendonça, nobre da governança

da vila, que o seu caso correra as inquisições de Évora e de Lisboa, mas em nenhuma

acharam culpas suficientes para a sua condenação e, por isso, fora solto. Dizia “[...] que

tinha lá, no Santo Ofício, quem lhe favorecia seus negócios [...]”674

. Desde 1630,

acumulavam-se na Inquisição de Évora as delações contra Jorge Lopes. Suspeitas de

Judaísmo e de tentativas de fuga, blasfémias, heresias – foram as conclusões dos

qualificadores675

. Não obstante, os inquisidores mandaram-no soltar. Rodrigo de Ataíde,

também pároco da igreja de São Clemente, referiu que se sabia por toda a vila de Loulé

que Jorge Lopes teria sido avisado sobre o estado do seu processo pelo tio Fernão Soeiro.

Em representação do sobrinho, Fernão Soeiro fora a Évora, “[...] que se gaba que é lá

muito poderoso [...]” e, inclusivamente, falara com o próprio inquisidor-geral676

. Na

prisão, Jorge Lopes também comentara com João Martins Pinto, guarda da alfândega e

então também preso, que havia um ministro da Inquisição de Évora que o favoreceria e,

por isso, lhe remetera uma carta por via de um caminheiro de Faro. Ele teria recebido um

maço de cartas do tio a informá-lo sobre o estado do seu processo, junto com uma carta

do tal ministro, na qual o avisava de que seria solto em breve677

. Os inquisidores

apreenderam uma carta de Jorge Lopes ao tio Fernão Soeiro. Nesta, ele queixava-se dos

aleives que o conduziram aos cárceres e terminava a pedir ao tio que fizesse uma petição

para a sua libertação, alegando que Lopo Furtado de Mendonça e o vigário-geral de Faro

eram seus inimigos capitais678

. De facto, foi apresentada na mesa uma carta acusando o

familiar de ter detido Jorge Lopes ilicitamente e forjado a tentativa de fuga679

.

672

O processo de Brás de Azevedo encontra-se desaparecido. Sabemos da sua prisão através das

informações patentes noutros processos, como o de Belchior Vaz Mostarda, mercador de Loulé,

denunciado por Brás de Azevedo (Cf. ANTT, IE, proc. 328, fl. 6). 673

Sobre os Gama, vide infra, pp. 205-209. 674

Cf. ANTT, IE, liv. 212, fls. 484-485. 675

Cf. Idem, fls. 435-477. 676

Cf. Idem, fl. 487. 677

Cf. Idem, fls. 489-491v. 678

Cf. Idem, fls. 504-504v. Vide, em anexo, p. 437. 679

Cf. Idem, fls. 507-507v.

Page 166: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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Não era só da boca dos cristãos-novos que se ouviam censuras à reputação dos

oficiais da Inquisição. Veja-se o caso de João Pessoa, intérprete nas visitas às naus

estrangeiras. Natural de Londres, ele viera ainda em criança para Faro, onde foi criado

na casa do bispo D. Fernão Martins Mascarenhas680

. Em 1632, Francisco Gonçalves de

Sousa, prior da igreja matriz de Faro, escrevia à Inquisição de Évora a reprovar o

comportamento de João Pessoa: aproveitava-se indevidamente dos privilégios de oficial

do Santo Ofício, era “[...] homem de ruim vida e costumes que ordinariamente se turva

de vinho, andando pelas tabernas e em pagodes com gente vil [...]”, além de que estava

casado com uma cristã-nova, Catarina de Tovar. Segundo o prior, tal era alvo de

escândalo em Faro, onde havia “[...] homens muito honrados e cristãos-velhos e podem

servir o dito cargo com muita satisfação e consolação do povo [...]”681

. O Conselho

Geral ordenou que se fizesse uma diligência em Faro sobre estas acusações. Os

testemunhos corroboraram-nas. No mês de Outubro de 1633, quando Catarina de Tovar

foi presa, João Pessoa preparava-se para fugir do reino com a família. No processo da

esposa, ele é mencionado simplesmente como estalajadeiro682

. Possivelmente, já não se

encontrava ao serviço do Santo Ofício.

As acusações contra o intérprete das visitas às naus estrangeiras datam do mesmo ano

em que se iniciou a maior vaga de prisões alguma vez registada na região. Dizia-se que o

Algarve era “terra nova”, cheia de cristãos-novos, e na qual era preciso “abrir judaísmo”.

Bons argumentos que justificam a sucessão de detenções baseadas em alicerces débeis,

em testemunhos passíveis de contradição, não fosse essa premente necessidade de se

proceder a uma entrada em força na região. Abriu-se, então, judaísmo no Algarve? Como

vimos, os números demonstram que não. Na década de 30 de Seiscentos, muitos passaram

pelas mesmas provações que os seus pais e os seus avós também haviam conhecido anos

antes683

. A sombra da mordaça inquisitorial inscrevia-se não só na história da região,

como também nas memórias familiares.

680

Cf. ANTT, IE, proc. 3165, fl. 37. 681

Cf. ANTT, IE, liv. 213, fls. 146-146v. 682

Cf. ANTT, IE, proc. 6092. 683

São muitos os casos de famílias cujas diferentes gerações foram vítimas da repressão inquisitorial.

Pode-se constatar esta situação através das árvores genealógicas apresentadas em anexo, pp. 121-233.

Page 167: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

167

IIII

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1. RESIDÊNCIA E MOBILIDADE

O constante trânsito entre localidades vizinhas, mas também para lá da serra do

Caldeirão e do rio Guadiana, integrava o quotidiano das gentes do Algarve. Os cristãos-

novos, em particular, herdaram dos seus antepassados a vocação comercial e uma rotina

marcada pela intensa mobilidade. Esta era uma vocação que determinava igualmente o

seu estabelecimento no interior das localidades. No passado, as comunidades judaicas

haviam privilegiado as áreas junto às portas das muralhas e nas proximidades das vias

comercialmente mais movimentadas684

. Partilhando as mesmas actividades sócio-

profissionais, identificando-se com um passado comum, os cristãos-novos teriam

sentido essa mesma necessidade. Contudo, muito mudara entretanto.

Espaços de residência

Isabel Nunes, cristã-nova que, na véspera do Corpus Christi de 1629, estando muito

doente, recusara receber a extrema unção, residia na Rua de Santo António, em Faro.

Era uma rua “[...] em que são raros os cristãos-velhos [...]” – assim informava o Padre

Valeriano Frias, jesuíta que lhe tentara administrar os últimos sacramentos685

. De facto,

encontramos a residir nessa mesma artéria alguns dos cristãos-novos que, durante a

década de 30 do século XVII, estiveram sob a mira do Santo Ofício. Era o caso das

Salgadas686

, mas também de mercadores e artesãos cristãos-novos, como Francisco

684

Cf. Ferro Tavares, Os Judeus... Século XV..., t. I, p. 44. 685

Cf. ANTT, IE, proc. 5895, fl. 5. 686

Cf. ANTT, IE, proc. 7188, fls. 3v-4.

Page 168: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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Rodrigues, alfaiate, ou os sapateiros Fernão Gonçalves, José Dias, Belchior Vaz e

Lourenço Álvares687

. Eles não podiam baixar a guarda. Não, quando tinham por vizinho

um familiar do Santo Ofício, Luís Eanes Rasquinho688

.

A Rua de Santo António seguia em direcção a uma outra artéria eleita por muitos

cristãos-novos, a Rua do Rego689

. Ali viviam alguns dos mercadores mais notáveis da

cidade, entre os quais aquele que se dizia o mais rico de todos, Manuel Henriques690

. A

Rua do Rego confluía na Rua Direita, morada do advogado Custódio Mendes691

e de

outros tantos cristãos-novos processados durante a grande entrada da Inquisição na

cidade692

. A vaga de prisões começara não muito longe dali, na Rua da Estalagem693

,

onde residia Branca Dias, entre as casas de Manuel Nunes de Moura e de Manuel

Mendes de Oliveira, mercadores e também cristãos-novos694

. A gente de nação de Faro

concentrava-se ainda noutras artérias, como a Rua da Cadeia, o Poço dos Cântaros ou a

Rua da Sapataria, todas localizadas fora das muralhas da cidade.

Também em Tavira, a maior parte dos cristãos-novos citados na documentação não

residia vila-a-dentro, mas sim na área que seguia da Rua Nova até à Praça da Ribeira e,

para lá do rio Gilão, até à Porta de São Brás695

. Em 1563 e 1564, este espaço da cidade

foi devassado pela perseguição inquisitorial. Junto à Porta de São Brás, vivia o

687

Cf. ANTT, IE, proc. 2719, fl. 121v; proc. 6722, fl. 110-110v; proc. 5063, fls. 50v-51; proc. 1835, fl.

23; proc. 8603, fl. 301. 688

Cf. ANTT, IE, proc. 7334, fl. 9v. 689

Corresponde actualmente à Rua D. Francisco Gomes (Cf. José António Pinheiro e Rosa, Faro do

século XVII: a urbe e a civitas. Separata de Anais do Município de Faro, Faro, 1980, p. 6). Vide, em

anexo, mapa 3, p. 91. 690

Cf. ANTT, IE, proc. 8603, fls. 3v-4. Outros mercadores cristãos-novos residentes na Rua do Rego na

década de 30 do século XVII: António Vieira, que vivia junto à Praça Velha (Cf. ANTT, IE, proc. 467, fl.

105v); Matias Afonso (proc. 3208, fl. 63); Vicente Leitão, prioste das rendas do cabido (proc. 3163, fl.

81v); Duarte Fernandes (IL, proc. 9783, fl. 22); e os tendeiros António de Barros (IE, proc. 736, fl. 83v) e

Filipe de Santiago (proc. 6091, fl. 47v). Beatriz Álvares refere também Isabel Simões, com tenda na Rua

do Rego (Cf. ANTT, IE, proc. 4406, fl. 13v). 691

Cf. ANTT, IE, proc. 6954. 692

Eram os casos das cunhadas de Custódio Mendes, Leonor Duarte (ANTT, IE, proc. 5767) e Maria da

Luz Pinta (proc. 7078); de Mécia Craveira (proc. 2733); de Constança Simões (proc. 6091); do alfaiate

João Dias (proc. 8174) e da sua esposa Leonor Correia (proc. 5831). 693

A Rua da Estalagem, tal como é referida na documentação, corresponderia ou à Rua da Estalagem de

S. Pedro (actual Rua do Alportel) ou à Rua da Estalagem Nova (actual Rua do 1º de Maio) (Cf. Pinheiro e

Rosa, Faro do século XVII..., pp. 5-6). Inclino-me mais para esta segunda hipótese, dada a proximidade

da Rua da Estalagem Nova à Rua de Santo António. 694

Cf. ANTT, IE, proc. 3739, fl. 3. 695

Cf. Luís Fraga da Fraga, “Uma planta inédita de Tavira do séc. XVI”, Campo Arqueológico de Tavira,

4 de Abril de 2008 [Consult. 2 Fevereiro 2012] Disponível online: http://

arkeotavira.com/Mapas/Ferrari/noticia-tavira-ferrari-net.pdf. Este artigo refere-se a uma planta de Tavira

da autoria de Leonardo di Ferrari, incluída no chamado “Atlas de Heliche” (titulo original: “Plantas de

diferentes Plazas de España, Itália, Flandres y las Indias”), um conjunto de plantas e planos de fortalezas

do império espanhol composto entre 1642 e 1645. Da análise da planta de Tavira, o autor concluiu que se

trata da cópia de um original de meados do século XVI. Além de Tavira, também aparecem

representadas, no dito atlas, as localidades algarvias de Castro Marim e Lagos.

Page 169: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

169

borracheiro Gaspar Lopes. Corria o rumor de que, na sua casa, se reunia um grupo de

cristãos-novos que ali iam ouvir ler a Bíblia, em vernáculo, e falar sobre a vinda

próxima do Messias 696

. Na Ribeira, residia Duarte Lopes Cristino, pelo menos durante

o pouco tempo em que estava na cidade e não a comerciar nas Canárias697

. Era vizinho

de Gonçalo Tojo que, em 1564, depois de ter assistido à prisão dos seus companheiros

de negócio, resolveu se apresentar perante a Inquisição de Lisboa, junto com a esposa,

Isabel Vieira698

. Pela mesma altura, os mercadores Baltazar Dias e Gines Serrão, o

tosador Francisco Dias e o sapateiro Mem Rodrigues também foram obrigados a trocar

as suas casas na Rua Nova pelas exíguas “casinhas” da Inquisição de Lisboa699

.

As “ruas novas” e as “ruas direitas”, principais vias das cidades, animadas pelo

comércio e pelas oficinas dos artesãos, cedo se identificaram com o espaço de residência

da gente de nação700

. De facto, em Lagos, a Rua Direita é das mais citadas. Em 1585,

quando Manuel Álvares Tavares visitou a região, alguns cristãos-velhos ali residentes

denunciaram os seus vizinhos cristãos-novos701

. Já em Seiscentos, as casas da Rua Direita

continuaram a acolher moradores cristãos-novos. Na manhã de 26 de Março de 1623,

Francisco Fernandes percorreu a rua a bradar pela Lei de Moisés702

. Dez anos depois, na

mesma artéria, foi preso o mercador Duarte Mendes, primo de Branca Dias de Faro703

.

Tal como em Tavira, a zona ribeirinha era um outro espaço de eleição dos cristãos-

novos de Lagos, em particular a Praça do Poço do Cano e as suas imediações704

.

696

Cf. ANTT, IL, proc. 2486, fl. 57v. 697

Cf. ANTT, IL, proc. 11981, fl. 4v. 698

Cf. ANTT, IL, procs. 7773, fl. 2v. 699

Cf. ANTT, IL, proc. 5081, fl. 2v; proc. 7310, fl. 9; proc. 8925, fl. 2; proc. 2859, fl. 2. 700

Cf. Maria José Pimenta Ferro Tavares, “Judeus e cristãos-novos no distrito de Portalegre”, A Cidade,

Revista Cultural de Portalegre, n.º 3, Jan.-Jun. 1989, p. 39. 701

Aldonça Castro, viúva do escrivão da portagem, referiu os jejuns às quintas-feiras das vizinhas Filipa

Tomás e Catarina Galega. O Padre Bartolomeu Anes Pereira recordou como vira Violante Lopes a

receber uma bênção suspeita da mãe. Catarina Estevens estranhou o comportamento da vizinha Beatriz

Lopes, ao trancar numa câmara da sua casa a filha Guiomar Simões, amaldiçoando-a por ter casado com

um cristão-velho. (Cf. ANTT, IE, proc. 8211; proc. 8844; proc. 8086, fls. 5v-6v). 702

Cf. ANTT, IE, proc. 7496, fl. 6. 703

Cf. ANTT, IE, proc. 4151, fls. 25-25v. 704

A Praça do Cano corresponde à actual Praça Gil Eanes. A presença de cristãos-novos na Praça do

Cano e nas ruas adjacentes é constante ao longo do período estudado. Em meados de Quinhentos, era

nesta artéria que residiam os mercadores Nuno Martins (Cf. ANTT, IL, proc. 10960, fl. 30v) e Vicente

Fernandes, o Migas (proc. 8484). Já na década de 80, continuava a servir de morada a mercadores

cristãos-novos, como Duarte Dias e Pedro Vaz Pinto (Cf. ANTT, IE, procs. 5286 e 7834). No século

seguinte, viviam nas imediações da Praça do Cano o mercador António Fernandes, o Bezerro, preso em

1626 (Cf. ANTT, IE, proc. 6298, fls. 2-2v) e António Rodrigues Castanho, boticário (Cf. ANTT, IE, mç.

1, doc. 5, fl. 30-30v. Processo: IE, proc. 1030).

Page 170: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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Tratava-se de um centro nevrálgico, sempre repleto de gente, onde se localizava a fonte

que abastecia a cidade705

.

Também em Vila Nova de Portimão, encontramos muitos cristãos-novos residentes

nas proximidades da Porta da Ribeira706

e nas imediações doutras entradas das

muralhas, em particular da Porta de São João e da Porta da Serra707

. Durante a visitação

de 1585 e nos processos inquisitoriais sequentes, aparece constantemente citada uma

outra artéria – a Rua do Peru. Alguns dos Gramaxo viviam ali, outros nas suas

proximidades, na Rua de São João708

.

Existiria uma continuidade entre os espaços de residência das comunidades judaicas

e os dos cristãos-novos? A resposta não é unívoca, mesmo se alargarmos a nossa

perspectiva a outros espaços. Em Trancoso, segundo Maria José Ferro Tavares, alguns

cristãos-novos mantiveram a sua residência na área da antiga judiaria, que passou a ser

também habitada por cristãos-velhos, enquanto outros se disseminaram por outras

artérias da vila709

. A mesma situação registou-se em Elvas710

. Por outro lado, na vila de

Melo, José Pedro Paiva notou a existência de uma segregação espacial, concentrando-se

705

“Dentro da cidade está ũa fonte d‟água (a que chamam o cano), feita de pedraria, à maneira de

pirâmide, e no alto acaba por remate, com ũa esfera de pedra dourada. Corre por outo bicas, e sobeja água

para se lavar roupa miúda, e vai dar ao mar. E junto dela está um chafariz, em que bebem os cavalos e

bestas de servidão, e vem esta água por um cano de pedra e cal, de ũa fonte abundante que está no sítio do

Paul, dous terços de légua da cidade. [...] Antigamente havia em Lagos poços, de que bebiam, que se

entupiram por serem desnecessários, depois que nele se meteu esta fonte.” (Cf. Sarrão, “História...”, Duas

Descrições..., pp. 143-144). 706

A Porta da Ribeira ficaria entre as actuais Praça Visconde Bívar e Rua Júdice Fialho (Cf. Natércia

Magalhães, Algarve. Castelos, Cercas e Fortalezas, Faro, Letras Várias, 2008, p. 189). Na documentação,

surgem várias referências a cristãos-novos residentes na Rua da Alfândega (ou Rua dos Pescadores, como

também é designada), a qual desembocava na Porta da Ribeira. Nas últimas décadas de Quinhentos,

viviam ali os mercadores Manuel Tinoco e Pedro Mendes (Cf. ANTT, IE, procs. 8043 e 1491); Luís

Gonçalves, tosador (IE, proc. 7912); Clara Álvares, esposa de João Lopes, cristão-velho (IE, proc.

10546); e as irmãs Isabel Jorge e Inês Martins (IE, proc. 8654). 707

A Rua da Porta da Serra é um dos poucos topónimos ainda hoje sobreviventes. Em meados de

Quinhentos, vivia nas proximidades desta porta, da “banda de dentro”, Grácia Mendes, a denunciante que

fez deflagrar a primeira entrada da Inquisição na vila. Ela denunciou alguns dos seus vizinhos: o tio Manuel

Mendes; Simão Nunes e a mulher Grácia Mendes; Beatriz Rodrigues e a filha Inês Pousada; Mor Rodrigues,

a filha Catarina Mendes e o genro Luís Fernandes (Cf. ANTT, IL, proc. 10964). Já no final do século, tinha

ali residência Cristóvão Rodrigues, patriarca de um dos ramos da família Barros (Cf. ANTT, IE, proc.

6009), tal como os ferreiros Afonso de Arouca e Manuel Fernandes (Cf. ANTT, IE, procs. 4341 e 9408). 708

Residiam na Rua do Peru, os casais Nicolau Martins e Beatriz Gramaxo, e Fernão Martins e Isabel

Gramaxo, cujas filhas acabariam por ser presas durante a vaga de prisões de finais de Quinhentos (Cf.

ANTT, IE, proc. 4603, fls. 3-4). Abaixo da Rua de S. João, vivia uma das filhas de Nicolau Martins, Ana

Gramaxo, casada com Francisco Nunes de Sousa (Cf. ANTT, IE, proc. 767, fl. 3). Não nos foi possível

identificar a localização exacta da Rua do Peru, porém as fontes revelam que esta se localizaria nas

proximidades da Porta de S. João (a “porta da vila”, como também aparece na documentação). 709

Cf. Maria José Ferro Tavares, “Os judeus da Beira interior: a comuna de Trancoso e a entrada da

Inquisição”, Sefarad, vol. 68:2, Julho-Dezembro 2008, p. 391. 710

Cf. Ferro Tavares, “Judeus... Portalegre”, A Cidade..., p. 46; Maria do Carmo Teixeira Pinto, Os

Cristãos-Novos de Elvas no Reinado de D. João IV. Heróis ou Anti-Heróis?. Dissertação de Doutoramento

em História apresentada à Universidade Aberta. Lisboa, 2003, exemplar policopiado, pp. 172-173.

Page 171: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

171

os cristãos-novos em áreas onde a presença cristã-velha rareava711

. Em Viseu de finais

do século XVI, os cristãos-novos continuavam a ocupar o espaço na cidade que, na

centúria anterior, servira de residência à comunidade judaica712

.

No Algarve, não verificamos uma continuidade tão acentuada. A judiaria de Tavira

localizava-se intra-muros, aquém da Porta de Afeição, no local onde mais tarde foi

erigido o convento de Nossa Senhora da Graça713

. Mas, entretanto, a vila, depois cidade,

crescera para lá das muralhas e, sobretudo, em direcção à beira-rio, animada por uma

actividade mercantil florescente na primeira metade de Quinhentos. Assim, nos anos 60

do século XVI, muitos cristãos-novos já haviam abandonado as muralhas e se

estabelecido numa área economicamente mais promissora.

Era igualmente vila-a-dentro onde se localizava a judiaria de Faro, no espaço que

deu lugar ao convento de Nossa Senhora da Assunção714

, portanto, sem correspondência

com as ruas de Santo António ou do Rego, privilegiadas pelos cristãos-novos mas sitas

fora das muralhas. A rua de Santo António contornava o espaço que, no passado, fora

reservado à mouraria. Alguma bibliografia pondera mesmo a hipótese da judiaria de

Faro ter-se localizado a sul desta artéria715

, o que implicaria a existência de dois bairros

judaicos na cidade, algo não corroborado pela documentação. Porém, esta área da

cidade não seria estranha aos judeus – a rua de Santo António culminava nas alcaçarias,

espaço de comércio frequentado pelas duas minorias.

711

Cf. Paiva, “As entradas... Melo...”, RHI, p. 191. 712

Cf. Maria Teresa Gomes Cordeiro, Adonai nos cárceres da Inquisição. Os Cristãos-Novos de Viseu

Quinhentista, Viseu, ARQUEOHOJE, 2010, pp. 116-117. 713

Cf. Maria José Pimenta Ferro Tavares, Os judeus...século XV, p. 72. A igreja do convento foi erigida

no local onde se encontrava a sinagoga. Arnaldo Casimiro Anica coloca mesmo a hipótese das paredes

laterais da igreja ainda pertencerem à antiga sinagoga (Cf. Arnaldo Casimiro Anica, Tavira e o seu termo.

Memorando Histórico, vol. II, Tavira, Câmara Municipal de Tavira, 2001, p. 86). Vide também J.

Fernandes Mascarenhas, “Ainda os judeus em Tavira. A judiaria e o Convento da Graça”, Correio do Sul,

n.º 3068, ano LXI, 11 de Setembro de 1980. Actualmente, o convento integra a rede de Pousadas de

Portugal (Tavira Historic Hotel). 714

Em 1553, num auto de avaliação de umas casas tomadas para a construção do convento de Nossa

Senhora da Assunção, as testemunhas inquiridas referiram que estas se encontravam no local da antiga

judiaria. Sobre esta demanda, declarou Soror Beatriz, a abadessa do convento “[...] que é verdade que

no cartório deste mosteiro fica um título de venda que Joana Simões, filha de Inês Afonso, defunta, fez

ao dito convento de uma casa e câmara, com quintal e poço, que por morte da dita Inês Afonso lhe

ficou, dentro neste mosteiro, onde era a judiaria desta cidade, que é agora onde está a portaria do dito

mosteiro [...]” (Cf. ANTT, Corpo Cronológico, mç. 98, doc. 112). Referido em: João Alberto Carvalho

Marques, O convento de Nossa Senhora da Assunção de Faro. Dissertação de mestrado apresentada à

Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Lisboa, 1990, exemplar policopiado, pp. 97-99. 715

Cf. Rui M. Paula e Frederico Paula, Faro. Evolução urbana e património, Faro, Câmara Municipal de

Faro, 1993, p. 62, 182. Segundo os autores, a Rua de Santo António dividia a mouraria, a Norte, da judiaria,

a Sul. José António Pinheiro e Rosa também lança a hipótese da judiaria localizar-se nas proximidades das

alcaçarias (Cf. José António Pinheiro e Rosa, “Faro em 1349”, AMF, vol. XV, 1985, p. 37).

Page 172: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

172

Quanto à judiaria de Vila Nova de Portimão, ainda não foi possível identificar a sua

localização. Talvez se situasse no espaço da Rua Nova – assim pondera a

bibliografia716

. Ou, quiçá, localizar-se-ia na área da Rua do Peru, pelo nome, também

uma “rua nova” em meados do século XVI. Porém, também aqui não contamos com

documentos que suportem esta hipótese. Mas, olhando para os espaços ocupados pelos

cristãos-novos, verificamos que estes se concentram nas proximidades das portas das

muralhas, em três áreas distintas da vila. Se alguns se mantiveram na mesma zona

ocupada pelos antepassados judeus (considerando a dita hipótese, junto à Porta da

Ribeira), outros teriam passado a residir noutros espaços.

As mesmas dúvidas colocam-se em relação à judiaria de Lagos. Segundo a

documentação, esta encontrava-se inicialmente confinada a uma única rua que, devido

ao aumento da população judaica, revelou-se insuficiente para albergá-la na totalidade,

obrigando ao seu alargamento. Assim surgiu a judiaria nova, numa azinhaga “entre as

casas da dita judiaria e cristandade”717

. Antes, os judeus haviam tentado estabelecer-se

numa das principais ruas da vila “[...] acerca da dita judiaria e em ela muitos judeus

tinham as casas de seu serviço [...]”, causando o escândalo da população cristã718

.

Possivelmente, o documento refere-se à Rua Direita, principal artéria comercial da vila

e onde, no século seguinte, já sem restrições, nem o escândalo de outrora, muitos

cristãos-novos se fixaram. Portanto, não muito retirados do espaço das antigas judiarias.

A continuidade residencial era previsível. As casas passavam de geração para

geração e muitos residiam no mesmo sítio que servira de lar aos pais e aos avós.

Herdavam as casas, mas também as lojas, as tendas, enfim, os espaços de trabalho. Mas

as cidades e as vilas evoluíram e outras áreas emergiram enquanto foco de interesse

comercial. Para quem vivia da mercancia e dos mesteres nos séculos XVI e XVII, nem

sempre a localização das antigas judiarias se revelava a mais interessante para o

desenvolvimento dos negócios. Com a conversão e, por conseguinte, com a abolição

dos limites colocados à residência, os cristãos-novos puderam, finalmente, escolher o

espaço que melhor lhes convinha. O caso de Tavira é paradigmático. Uma geração após

a conversão geral, os cristãos-novos já se tinham mudado para lá das muralhas, em

direcção à zona ribeirinha.

716

Cf. Maria da Graça Mateus Ventura e Maria da Graça Maia Marques, Portimão, Lisboa, Editorial

Presença, 1993, p. 14. 717

Cf. ANTT, Leitura Nova, Odiana, liv. 1, fls. 213v-214. Vide também Iria, “O Infante D. Henrique...”,

Anais..., pp. 304-312; Ferro Tavares, Os Judeus... século XV..., p. 71. 718

Cf. ANTT, Chancelaria de D. Afonso V, liv. 9, fl. 68.

Page 173: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

173

Portanto, na hora de eleger o espaço de residência, o pragmatismo pesou mais do

que a tradição. Perante a expectativa de melhores negócios e de uma eventual

valorização social, a casa dos antepassados era abandonada em prol doutra localizada

num espaço mais convidativo. Porém, algo é constante – quer pela partilha de

actividades económicas comuns, quer pelos laços sociais estabelecidos, os cristãos-

novos continuavam a concentrar-se em determinadas áreas, até quando estas já não

coincidiam com as das antigas judiarias.

Trânsito a Sul

Mais de um terço dos cristãos-novos processados durante o período estudado não

era natural da localidade onde residia no momento da prisão. Nos processos decorridos

nas décadas de 50 e 60 do século XVI, esse valor ascende quase aos 50%. A maior parte

provinha doutras localidades do Algarve e, sobretudo, das mais próximas da cidade ou

vila de residência719

. A Barlavento, era corrente a circulação entre Lagos, Vila Nova de

Portimão e Silves, enquanto que a Sotavento, Faro, Tavira e Loulé formavam um outro

triângulo de constante trânsito de pessoas, mercadorias e informação.

O deão Diogo Lopes, ao justificar porque afirmara, durante um sermão, que Jesus

Cristo não estivera três dias inteiros no sepulcro, deu o seguinte exemplo: “Quem vai

daqui [Faro] a Tavira e chega sexta-feira à tarde, e dorme aquela noite lá, e negoceia

sábado, e se levanta à meia noite e parte para cá outra vez, não está duas noites lá”720

.

Ir a Tavira em negócios era prática corrente entre os mercadores de Faro. Com o

mesmo intento, muitos também rumavam a Norte, para lá da serra. A comunicação

entre o Algarve e o Alentejo, embora não fosse simples, não deixava de ser constante.

Aliás, entre os processados durante as décadas de 50 e 60 do século XVI, mais de um

quinto provinha do Alentejo.

A circulação entre as duas regiões concretizava-se, preferencialmente, por via

terrestre. Mas os obstáculos encontrados pelo viajante eram inúmeros, desde a serra,

difícil de atravessar, até aos caminhos em terra batida e sujeitos à inconstância das

condições climatéricas. Raros eram os que permitiam a circulação de carros e, nos

Invernos mais rigorosos, muitas vias ficavam interrompidas. Por outro lado, havia a

719

Vide, em anexo, gráfico 7.1, p. 105. 720

Cf. ANTT, IL, proc. 3205, fl. 6. Vide supra, p. 62, e infra, p. 302.

Page 174: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

174

insegurança, o perigo do assalto que ia para lá do caminho e continuava nas estalagens,

onde nem a bolsa, nem a alma estavam a salvo721

.

Na Idade Média, uma rede de caminhos, em estado sofrível, partia de Lagos,

Faro e Tavira, atravessava a serra e chegava a Ferreira do Alentejo, Beja e Évora722

.

Estas ligações entre o litoral algarvio e o Alentejo mantiveram-se durante a Era

Moderna. D. Pedro Rodriguez de Campomanes, na sua Noticia geografica del reyno

y caminos de Portugal, enumera os caminhos que, no século XVIII, cortavam o

Algarve do litoral à serra. Um seguia junto ao Guadiana e ligava Tavira a Giões, perto

de Alcoutim, em direcção a Mértola. Quem saía de Tavira ou de Faro poderia também

tomar o caminho rumo a São Brás de Alportel e dali até ao Ameixial, já próximo do

limite norte do Algarve. Outra opção era seguir por Loulé e depois tomar a mesma

direcção até Corte Figueira. A partir de Albufeira, o interior algarvio era cortado por

uma outra estrada que rumava a São Brás de Alportel e dali a São Marcos da Serra, já

na passagem para o Alentejo. A barlavento, Lagos e Vila Nova de Portimão

comunicavam com o Alentejo através de duas vias: uma mais interior, atravessando a

serra de Monchique, e outra pela costa, por Bensafrim e Aljezur até Odeceixe723

. Foi

esta a via pela qual D. Sebastião, em 1573, entrou no Algarve: seguiu até Lagos e, nos

dias seguintes, cortou a região até ao extremo oriental, passando por Vila Nova de

Portimão, Monchique, Silves, Albufeira, Loulé, Faro, Tavira e Castro Marim. No

regresso, embarcou pelo Guadiana até Alcoutim724

.

No período estudado, a quantidade de alentejanos estabelecidos ou de passagem

pelas cidades e vilas algarvias revela como as oportunidades de negócio constituíam um

atractivo suficiente para superar os obstáculos à circulação. A comunicação fazia-se nos

dois sentidos. Os exemplos são vários: o filho de André Carrilho, lavrador de Silves, foi

preso em Évora, quando andava à procura de trabalho725

; Beatriz Lopes nasceu em

Lagos, de onde era originária toda a sua família, mas casou em Beja726

; Nicolau

Fernandes, natural de Messejana e criado em Odemira, aprendeu o ofício de sirgueiro

721

Cf. José Marques, “Viajar em Portugal nos séculos XV e XVI”, Revista da Faculdade de Letras.

História. Universidade do Porto, II série, vol. XIV, 1997, pp. 95-98. 722

Cf. Humberto Baquero Moreno, A acção dos almocreves no desenvolvimento das comunicações inter-

regionais portuguesas nos fins da Idade Média, Porto, Brasília Editora, 1979, pp. 54-55. 723

Cf. D. Pedro Rodriguez Campomanes, Noticia geografica del reyno y caminos de Portugal, Madrid,

Oficina de Joachin Ibarra, 1762, pp. 196-215. 724

Cf. Sales Loureiro, Uma Jornada ao Alentejo..., 1984. 725

Cf. ANTT, IE, proc. 6779. 726

Cf. ANTT, IL, proc. 1325.

Page 175: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

175

em Lisboa e vivia em Vila Nova de Portimão727

. Encontramos, assim, famílias divididas

entre as duas regiões, o que ainda consolidava mais essa comunicação.

Quem vivia da mercancia, percorria sazonalmente os caminhos que ligavam o

Algarve ao Alentejo. Sobretudo nos meses de Verão e de Outono, as feiras animavam a

região. Mercadores, almocreves, mas também artesãos galgavam léguas e léguas, de

feira em feira. Pedro Gomes, de Beja, recordou como, em Outubro de 1613, depois de

ter estado na feira de Santa Bárbara, em Campo de Ourique, partiu até Faro, para

participar da feira de Santa Iria728

. No caminho, encontrou Manuel Mendes do Óculo,

que também costumava frequentar a feira de Nossa Senhora da Luz, no termo de Tavira,

realizada entre 6 e 8 de Setembro729

. Na cidade, havia ainda uma outra feira, a da

Virgem Nossa Senhora, a qual se prolongava por três meses, de Setembro a Novembro,

e era a principal da região730

. Entre o final de Outubro e inícios de Novembro, a feira de

Silves também era prolixamente frequentada por mercadores doutras partes do Algarve

e do Alentejo. Luís Lopes, mercador de Lagos, no final da feira de 1588, ter-se-ia

reunido com outros cristãos-novos num açougue perto do terreiro que servia de

hospedagem aos feirantes – alguns provinham de Vila Nova de Portimão, outros de

Lagos, tal como ele, mas também havia quem chegasse de Beja ou mesmo de Évora731

.

As feiras eram espaços propícios à troca não só de mercadorias, como também de

informações. Aos ouvidos de alguns cristãos-novos, a quem o ofício obrigava a passar

longas temporadas longe de casa, chegavam os alarmes de que a Inquisição entrara na

sua terra732

. Perante tais notícias, havia quem não regressasse. Mudavam o destino

planeado e seguiam uma outra rota. Frequentemente, para lá da fronteira.

727

Cf. ANTT, IE, proc. 4056. 728

A feira de Faro começava no dia de Santa Iria, a 20 de Outubro, e, de 6 em 6 anos, era feira franca.

Segundo José António Pinheiro e Rosa, foi criada na sequência do ataque do Conde de Essex a Faro, em

1596, com o intuito de reanimar a actividade mercantil. (Cf. José António Pinheiro e Rosa, A feira de

Santa Iria quase quadricentenária. Separata de Anais do Município de Faro, Faro, 1981; José António de

Jesus Martins, A feira de Faro / feira de Santa Iria (Subsídios para a sua história). Separata de O

Algarve, Faro, 1985). 729

Cf. ANTT, IE, proc. 4613, fls. 36v-37, 48v; proc. 484, fl. 37. 730

A feira de Tavira foi criada em 1491 e durava desde o início de Setembro até 19 de Outubro. A partir

de 1579, o período de feira franca foi prolongado por três meses, visando uma revitalização da economia

da cidade (Cf. Carminda Cavaco, O Algarve Oriental...., p. 52; Damião Augusto de Brito Vasconcelos,

Notícias Históricas de Tavira 1242-1840. Prefácio, notas e apêndice de Arnaldo Casimiro Anica, Tavira,

Câmara Municipal de Tavira, 1989, p. 164). Vide também a carta de D. João III, de 10 de Março de 1550,

na qual se determinavam os direitos que os mercadores haviam de pagar na feira de Tavira (Cf. Academia

das Ciências de Lisboa, cod. 402, fls. 353v-358v). 731

Cf. ANTT, IE, proc. 7966 (Trata-se de uma denúncia do processo de Diogo Fernandes. O processo de

Luís Lopes encontra-se desaparecido). 732

Por alturas do dia de S. Brás de 1559, Tomás Gomes, de Silves, encontrou na feira de Vila Viçosa uns

almocreves de Loulé, a quem pediu notícias da sua terra. Não eram as melhores: em Silves e Vila Nova

de Portimão, o Santo Ofício detivera 25 a 30 cristãos-novos. (Cf. ANTT, IL, proc. 9445, fl. 32v).

Page 176: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

176

E Castela aqui tão perto

Viajar por terra até Castela revelava-se mais simples do que atravessar a serra rumo ao

Alentejo. As estradas do litoral eram mais acessíveis e a única barreira física, o Guadiana,

transpunha-se facilmente de barco. Por mar, circulavam quotidianamente embarcações

entre as costas do Algarve e da Andaluzia, na sequência das actividades piscatória e

mercantil. Por vezes, eram as mesmas embarcações que saíam para a pesca as que

transportavam mercadorias entre os portos portugueses, castelhanos e norte-africanos,

muitas ilicitamente. Aliás, o contrabando tinha um peso substancial na economia de um e

doutro lado do Guadiana. Os paralelismos entre as duas regiões eram inúmeros – a

paisagem, os recursos naturais, a demografia, a economia – e desde a Idade Média que os

laços entre o Algarve e a Andaluzia ultrapassavam os limites políticos733

.

Para os cristãos-novos, outros obstáculos levantavam-se. Periodicamente, as

interdições à saída do reino limitavam a circulação para Castela que, para muitos,

tornara-se essencial ao desenvolvimento da sua actividade profissional. As metrópoles

andaluzes constituíam um dos principais mercados para a produção algarvia e poucos

seriam os comerciantes que circunscreviam os seus negócios ao Algarve. No final de

1627, João Fernandes Guterres estava em Sevilha a vender figo734

. Também para

comerciar figo e outras mercadorias, Pedro de Seixas teria passado cerca de quatro

meses (do final de Outubro de 1632 até Fevereiro de 1633) em Sanlúcar de Barrameda.

Anos antes, entre Dezembro de 1629 e Março de 1630, estivera em Valença, vendendo

sardinha735

. Figo, sardinha, mas também atum, vinho e amêndoa seguiam, por terra ou

por mar, rumo às cidades andaluzes.

As trocas com Castela extravasavam a produção regional. Os mercadores do

Algarve, em constante périplo pelo reino, revendiam além-fronteira produtos adquiridos

noutros espaços do reino. Era o caso de Marcos Gomes, tratante natural de Vila do

Conde mas estabelecido em Tavira, que ia até terras do bispado de Lamego comprar

castanha para vender em Sevilha e Cádis736

.

Nas cidades castelhanas, adquiriam-se as mercadorias que escasseavam na região.

Cristóvão Rodrigues, por volta de 1563, foi a Sevilha e a Cádis comprar coirama. João

733

Vide Alberto Iria, “O Algarve e a Andaluzia no século XV. Documentos para a sua história (1466-

1480)”, Anais. Academia Portuguesa da História, II série, vol. 23, tomo I, 1975, pp. 11-84. Para o

período moderno, vide também Serrano Mangas, La Encrucijada..., pp. 37-49. 734

Cf. ANTT, IE, proc. 3563, fl. 177. 735

Cf. ANTT, IE, proc. 1836, fl. 78v. 736

Cf. ANTT, IL, proc. 10742, fls. 24v-25. Vide em anexo, p. 272.

Page 177: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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Dias, morador em Jerez de la Frontera, dera-lhe uma carta destinada ao irmão, Baltazar

Dias, então homiziado em Cádis737

.

De facto, desde meados de Quinhentos que encontramos cristãos-novos algarvios a

residir nas metrópoles andaluzes. O ritmo da emigração para Castela cresceria nas

décadas seguintes, sobretudo na sequência da União Ibérica. A multiplicação dos

processos de judaísmo movidos contra cristãos-novos portugueses nos tribunais da

Inquisição castelhana revela o acréscimo desse movimento migratório a partir da década

de 20 do século XVII738

.

Segundo Pilar Huerga Criado, a perseguição inquisitorial constituiu um impulso à

partida de Portugal, mas não a causa principal. A escolha do destino era, sobretudo,

determinada pelos interesses económicos, a que se juntavam outros estímulos, como a

possibilidade de contornar mais facilmente os estatutos de limpeza de sangue739

.

No caso do Algarve, a repressão inquisitorial teria desempenhado um papel mais

determinante no processo de emigração. No final do século XVI e inícios do seguinte,

Vila Nova de Portimão sofreu uma vaga migratória, com reflexos na demografia. Tinha,

então, atingido um pico demográfico: 920 fogos em 1591. Trinta anos depois, esse

número reduziu para 700 e, a partir de então, foi sempre a decrescer até meados do

século XVIII740

. Já na década de 30 de Seiscentos, encontramos um número expressivo

de naturais de Vila Nova de Portimão a residir em Faro. Outros optaram por abandonar

Portugal. Em 1613, na relação dos cristãos-novos ausentes do reino, Vila Nova de

Portimão superou qualquer outra localidade algarvia no número de indivíduos citados.

Barros e Gramaxo foram os sobrenomes mais repetidos ao longo do rol741

. Mas Barros e

Gramaxo também haviam sido, pouco mais de vinte anos antes, os sobrenomes mais

citados nos processos levantados contra os cristãos-novos residentes na vila.

Em meados de Seiscentos, encontramos uma situação similar em Faro. Embora haja

notícia de cristãos-novos oriundos da cidade algarvia estabelecidos na Andaluzia num

737

Cf. ANTT, IE, proc. 6009. 738

Num levantamento dos processos contra judaizantes portugueses no tribunal da Inquisição de Córdova,

Dinacy Lhamby verificou como, até ao final do século XVI, estes raramente se aproximaram de uma

dezena por ano, enquanto que, em 1625, 57 cristãos-novos portugueses foram processados pelo tribunal e,

em 1627, esse número ascendeu aos 69. (Cf. Dinaci Lhamby, “Los Judios Portugueses en el Tribunal

Inquisitorial de Córdoba”, Comunicações apresentadas ao 1º Congresso Luso-Brasileiro sobre

Inquisição, realizado em Lisboa, de 17 a 20 de Fevereiro de 1987, Lisboa, Sociedade Portuguesa de

Estudos do Século XVIII, 1989, pp. 417-422). 739

Cf. Huerga Criado, En la raya..., p. 43. 740

Cf. Romero Magalhães, O Algarve Económico..., quadro II. 741

Cf. ANTT, TSO, CG, mç. 7, doc. 2618.

Page 178: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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período anterior742

, foi a partir da década de 30 que esse movimento se intensificou

exponencialmente. Não é possível traçar um cenário exacto sobre os números dessa

emigração, apenas contamos com indícios. Da longa lista de cristãos-novos de Faro a

quem foi dada ordem de prisão em 1636, a maioria já não se encontrava no Algarve743

.

Na alfândega da cidade, não havia como recuperar o dinheiro devido à fazenda real, o

qual andava “[...] por mãos dos mercadores, e alguns ausentes e não sei se já fugitivos

com o medo da Inquisição [...]” – lamentava o governador Henrique Correia da Silva,

em 1638744

. Os registos de baptismos e de casamentos das duas freguesias urbanas de

Faro (Sé e S. Pedro) não evidenciam variações significativas durante este período745

.

Mas, por volta de 1634, Baltazar Gonçalves Navarro, escrivão das execuções de Loulé,

teria ouvido um desabafo do primo Rui Lopes, sapateiro em Faro: «Venho enfadado de

ver as prisões de Faro e na minha rua estão todas as portas fechadas»746

.

A partir dos anos 30, a população de Faro sofreu um decréscimo – dos 1398 fogos,

em 1631, para os 1038, em 1672747

. Seria redutor apontar a acção inquisitorial como

única causa dessa queda. Como evidencia Romero Magalhães, o fôlego com que as

cidades algarvias cresceram ao longo do século XVI e no início da centúria seguinte

começou a perder-se a partir da segunda metade de Seiscentos, fruto de uma conjunção

de factores económicos, sociais e políticos: a crescente insegurança no litoral, a

depressão comercial, o incremento do sector agrícola, a crise das almadravas do atum.

Porém, a emigração de parte de um grupo maioritariamente vinculado às actividades

que alicerçavam a economia urbana não terá sido inócua748

.

742

Preso em 1636, Pedro Amado, na sua confissão, recordou o tempo que passara em Sevilha, por volta

de 1620, a completar os seus estudos de Medicina. Então, já se encontrava ali estabelecido o seu tio

Gaspar Rodrigues, dono de uma botica junto à Carneceria Mayor (Cf. ANTT, IE, proc. 1833). Entre 1557

e 1587, Leonor de Caminha, natural de Estoi, viveu em Cádis. Fora para a cidade castelhana após ter-se

casado com Fernão Ximenes, cristão-novo natural da Covilhã. A sua mãe, Guiomar Lopes, e a sua irmã,

Inês de Caminha, também se estabeleceram em Cádis. Ali, viviam outros parentes, nomeadamente Mécia

Lopes, Branca Lopes e Maria Rodrigues, irmãs de Gaspar Lopes, marido de Inês de Caminha (Cf. ANTT,

IL 5498, fls. 6-11v, 60-61v). 743

Cf. ANTT, IE, proc. 4571, fls. 2-5; proc. 309. Vide, em anexo, gráfico 4, p. 98. 744

Cf. Iria (ed.), Cartas do governadores..., pp. 23-24. Por alturas do dia de S. Brás de 1559, Tomás Gomes,

de Silves, encontrou na feira de Vila Viçosa uns almocreves de Loulé, a quem pediu notícias da sua terra.

Não eram as melhores: em Silves e Vila Nova de Portimão, o Santo Ofício detivera 25 a 30 cristãos-novos. 745

Num levantamento dos registos de baptismo e de casamento das paróquias de S. Pedro e da Sé, para o

período compreendido entre 1610 e 1660, os dados não são conclusivos, como se poderá ver em anexo,

gráfico 5, p. 99. (Cf. Arquivo Distrital de Faro (ADF), Paróquia da Sé de Faro, série 1, livs. 1-3; série 2,

liv. 1; série 3, liv. 1; ADF, Paróquia de S. Pedro de Faro, série 1, livs. 1 e 2). 746

Cf. ANTT, IE, proc. 6208, fl. 37. 747

Cf. Romero Magalhães, O Algarve Económico..., quadro II. 748

Cf. Idem, Ibidem.

Page 179: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

179

Mas deixemos o local de partida e regressemos ao destino. Basta-nos olhar para as

genealogias dos processos inquisitoriais para verificarmos os resultados desse

movimento emigratório. Álvaro Gonçalves, sapateiro de Faro que, regressado de

Castela, se apresentou perante a Inquisição de Évora, a 18 de Setembro de 1647, referiu

um tio que faleceu em Cádis, um outro que vivia em Utrera, uma irmã a residir em

Aiamonte e outra em Huelva. E descreveu assim o seu percurso após a partida de Faro:

oito meses em Aiamonte, três em Huelva, mês e meio em Moguer, seis meses em

Sanlúcar de Barrameda, um em Utrera e quinze dias em Granada749

. Preso em 1639,

Belchior Martins tinha os pais a viver em Aiamonte, um primo a aprender o ofício de

barbeiro em Sevilha e um irmão frade nas Índias de Castela. Ele próprio, que rondava os

20 anos de idade, alegou que andava no mar havia 10, em viagens entre Lisboa, Sevilha

e “outros portos do Estreito”750

.

Geralmente, o processo migratório sustentava-se na rede familiar. Eram poucos os

que chegavam ao destino sem um parente, mais ou menos próximo, ali estabelecido e

capaz de prestar o apoio necessário. Veja-se o caso de Bárbara Fernandes, esposa de

Diogo de Tovar, que tentou fugir, sem sucesso, rumo a Cádis, para junto do filho mais

velho, Manuel de Tovar751

; ou o de Inês Costa, mulher de Manuel Henriques, melhor

sucedida na sua partida para Sevilha, onde residia a cunhada Isabel Soares752

.

Portanto, nos anos 30 e 40 de Seiscentos, encontramos várias famílias cristãs-novas,

com raízes no Algarve, estabelecidas em Cádis, Moguer, Huelva, Sanlúcar de

Barrameda, Aiamonte e Sevilha. José Luis Sánchez Lora concluiu que, num total de

2981 casamentos realizados nas paróquias de Aiamonte entre 1600 e 1649, em 1321 os

noivos eram estrangeiros – destes, 832 eram portugueses, sendo que 369 provinham do

Algarve753

. Em Sevilha, segundo um recenseamento de 1642, viviam 3808 famílias

portuguesas, representando cerca de 12% da população total da cidade754

.

749

Cf. ANTT, IE, proc. 2258, fls. 18-20v. 750

Cf. ANTT, IE, proc. 4402, fls. 1v-4. 751

Cf. ANTT, IE, proc. 6725, fls. 61-62. 752

Cf. ANTT, IE, proc. proc. 8603, fls. 9v-10, 67. 753

Cf. Jose Luis Sánchez Lora, Demografia y Análisis Histórico. Ayamonte, 1600-1860, Huelva, Servicio

de Publicaciones de la Diputación de Huelva, 1987, pp. 144-146, apeid Serrano Mangas, La

Encrucijada..., p. 37. 754

Cf. Santiago de Luxán Melendez, “A Colónia Portuguesa de Sevilha. Uma Ameaça entre a

Restauração Portuguesa e a Conjura de Medina Sidónia?”, Penélope. Fazer e desfazer a História, n.º

9/10, 1993, p. 130.

Page 180: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

180

Grande porto comercial da Andaluzia e “a verdadeira capital de Espanha”,

económica e culturalmente, como refere Dominguez Ortiz755

, Sevilha funcionava como

placa giratória para as Índias de Castela, onde, apesar da repressão inquisitorial e das

restrições legislativas aplicadas aos mercadores estrangeiros, as expectativas de negócio

apresentavam-se atractivas e os obstáculos contornáveis. O desenvolvimento de Sevilha,

aliás, o de toda a Andaluzia, durante os séculos XVI e XVII, foi indelevelmente

marcado pelas relações com o continente americano756

. Dada a proximidade e

identidade entre os dois espaços, o Algarve também beneficiou dessa relação através da

actividade comercial (e, sobretudo, do contrabando) dos seus mercadores, quer os que

se mantiveram na região, quer os que se fizeram ao mar, rumo ao outro lado do

Atlântico, uns e outros em constante permuta de mercadorias: as da Europa, as da

América e as de África. Algarve e Andaluzia constituíam os dois vértices do que

Fernando Serrano Mangas apelida de “prodigioso triângulo da rebeldia”757

. O outro era

a América Castelhana.

Retratos da diáspora

Origem: Vila Nova de Portimão. Destino: Índias

Há um destino que se repete insistentemente no rol dos cristãos-novos ausentes de

Vila Nova de Portimão, em 1613 – as Índias de Castela. Em Cartagena, vivia Jorge

Fernandes Gramaxo, “muito conhecido nas Índias” e com “mais de 150 mil cruzados”.

Um tio, Álvaro Gramaxo, que “dizem que terá de seu 5 ou 6 mil cruzados”, tinha-se

estabelecido não muito longe, na Laguna de Malacaio, costa de Terra Firme, onde

também vivia Gabriel Dias, então com cerca de 60 anos. Também em Cartagena,

encontravam-se Mor Álvares, a Gramaxa, e António de Barros, sapateiro “muito

conhecido naquela cidade”, irmão de Manuel de Barros, “mercador muito rico”,

estabelecido no Panamá. Um primo, António de Barros, morava em Pobla dos Anjos ou

na cidade do México, e um outro António de Barros, também parente, havia 20 anos

755

Cf. Antonio Domínguez Ortiz, Los Judeoconversos en la España Moderna, Madrid, Editorial

MAPFRE, 1993, pp. 183-184. 756

Vide Pierre Chaunu, Séville et l’Amérique, Paris, Flammarion, 1977. 757

Cf. Serrano Mangas, La Encrucijada..., p. 37. O autor refere-se ao intenso contrabando entre o

Algarve, a Andaluzia e a América Castelhana, mas também aos profundos laços económicos e sociais que

ligavam o povo andaluz ao algarvio, mesmo que à margem das fronteiras políticas.

Page 181: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

181

que partira de Vila Nova de Portimão para as Índias, fixando-se em Santo Domingo.

Ainda são mencionados, na lista de 1613, os irmãos Manuel e Francisco Rodrigues, o

primeiro na Guatemala, o segundo no Peru e entretanto já falecido; Francisco da Gama,

mercador em Cartagena; e mais um par de irmãos, Francisco Luís, na Guatemala, e

Manuel de Sousa, em Havana758

.

Uns tinham partido de Vila Nova de Portimão havia 30 ou 20 anos, outros mais

recentemente. Parte provinha de famílias atingidas pela vaga de prisões que abalara a

vila nas últimas décadas de Quinhentos. Mor Álvares, a Gramaxa, fora presa em 1588 e

permaneceu nos cárceres de Évora durante mais de um ano. Com mais sorte que a irmã

Inês Nunes, relaxada à justiça secular em 1588, foi-lhe levantada a pena em 1592 e,

passados 5 anos, já estava de partida para as Índias759

.

Os testemunhos de mercadores e mareantes algarvios na América Castelhana

remontam praticamente ao momento da descoberta760

. Aliás, não deixa de ser

significativo que, na segunda metade do século XVI, já existisse uma “Rua do Peru” em

Vila Nova de Portimão. Porém, foi a partir da União Ibérica que a sua presença se

tornou mais significativa. Entre 1595 e 1603, 83,4% dos estrangeiros que pagavam a

composição no reino de Quito, e cuja origem aparece declarada, eram portugueses761

.

Esse valor aparece ainda mais elevado em Cartagena das Índias, no anos de 1596 e 1597

– 97,4% 762

. No século XVI, o Algarve era a quarta região de proveniência dos

portugueses estabelecidos no vice-reino do Peru763

. Mas, em 1630, numa relação dos

758

Cf. ANTT, TSO, CG, mç. 7, doc. 2618. Vide em anexo, pp. 357-360. 759

Cf. ANTT, IE, proc. 10682. 760

Logo na primeira expedição de Cristóvão Colombo, entre a tripulação, encontra-se um algarvio, João

Arias, natural de Tavira. Vide Maria da Graça Mateus Ventura, Portugueses no Descobrimento e

Conquista da Hispano-América. Viagens e Expedições (1492-1557), Lisboa, Edições Colibri, 1999. Nas

genealogias dos processos, desde meados do século XVI que encontramos referências a parentes ausentes

nas Índias Castelhanas. Vejamos alguns exemplos. Em 1558, Beatriz Fernandes, botoeira de Tavira, tinha

dois filhos no Peru, Manuel e Pedro Mendes (Cf. ANTT, IL, proc. 895, fl. 30v). Pela mesma altura,

também vivia no Peru um filho de Beatriz Gonçalves, de Vila Nova de Portimão, Álvaro Rodrigues (proc.

13285, fl. 4v); tal como o marido e um irmão de Joana Ribeira, de Lagos, respectivamente, Tomás de

Caminha e Vicente Ribeiro (proc. 8545, fls. 6-6v). Anos mais tarde, em 1591, Isabel Mendes, de Vila

Nova de Portimão, mencionava um irmão, Sebastião Dias, que se tinha ausentado para o Peru havia

muitos anos (Cf. ANTT, IE, proc. 376, fl. 61v). 761

A composição era um imposto pago pelos estrangeiros residentes nas Índias, cujo valor variava

conforme a riqueza declarada. Não obstante a legislação restritiva, os estrangeiros continuavam a

estabelecer a sua residência e os seus negócios nas Índias Castelhanas e a composição era uma forma de

regular essa situação ilícita. A primeira cédula real a ordenar o seu pagamento data de 1591. Cf. Mateus

Ventura, Portugueses no Peru..., t. I, vol. I, Lisboa, IN-CM, 2005, pp. 73-75. 762

Cf. Idem, Ibidem, pp. 91 e 100. 763

Cf. Manuela Mendonça, “Portugueses no Peru no século XVI”, Problematizar a História. Estudos de

História Moderna em homenagem a Maria do Rosário Themudo Barata. Coord. Ana Leal Faria e Isabel

Drumond Braga, Lisboa, Caleidoscópio, 2007, p. 379. A autora baseou-se nos dados contidos na obra de

Page 182: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

182

estrangeiros residentes em Cartagena das Índias, surgia como a segunda província de

origem (16,8%), apenas superada pela Estremadura (27,2%)764

. Note-se que estes são

dados oficiais. Ora, muitos foram os que entraram nas Índias à margem da lei.

Encontramos um exemplo nos Gramaxo de Vila Nova de Portimão. Como refere

Maria da Graça Ventura, esta família constitui um “caso paradigmático de redes de

influências em Cartagena das Índias”765

. Tudo começou com Jorge Fernandes Gramaxo,

citado na lista de 1613. Ele chegou a Cartagena por volta de 1590. Dedicou-se, então, ao

tráfico negreiro, numa primeira fase enquanto representante de grandes mercadores de

Lisboa, como Pedro Gomes Reinel, João Rodrigues Coutinho ou João Nunes Correia,

depois por conta própria. No início de Seiscentos, era já o mais destacado mercador

negreiro de Cartagena. Os escravos provinham de Cabo Verde, Rios da Guiné, S. Tomé

e Angola e eram vendidos por toda a América Castelhana. Jorge Fernandes sustentou o

negócio numa abrangente rede de parentes disseminados não só pelo Algarve e

Andaluzia, como também pelas ilhas atlânticas (o irmão Luís Fernandes vivia na ilha

Terceira766

) e pela costa ocidental africana (os primos direitos Domingos Quaresma, em

S. Tomé, e Jorge Fernandes Gramaxo, nos Rios da Guiné; e o sobrinho Jorge Gramaxo,

em Cabo Verde até 1615767

). O caso dos Gramaxo integra-se no formato das redes

europeias de comércio, assentes em estruturas familiares cujos membros se distribuíam

pelos centros nevrálgicos da actividade768

.

Em Cartagena, Jorge Fernandes Gramaxo começou a operar à margem da legalidade.

Comerciava géneros interditos aos mercadores estrangeiros, como a prata e o tabaco, e

fixou-se nas Índias sem a devida licença régia. Desde 1592, sendo a lei insistentemente

confirmada nos anos seguintes (o que, só por si, é demonstrativo do seu incumprimento),

era proibido a qualquer estrangeiro o estabelecimento e o comércio nas Índias

Gonçalo de Reparaz, Os Portugueses no Vice-Reinado do Peru (séculos XVI e XVII), Lisboa, Imprensa

Nacional, 1976. 764

Cf. Mateus Ventura, Portugueses no Peru..., t. I, vol. I, pp. 115-116, 121. 765

Cf. Idem, “Os Gramaxo. Um caso paradigmático de redes de influência em Cartagena das Índias”,

CES, n.º 1, 2001, pp. 69-80. Vide também: Idem, Portugueses no Peru..., t. I, vol. I, pp. 227-346. As

informações que apresentamos de seguida, sobre a vida e negócios dos Gramaxo, em Cartagena, têm estes

estudos como principal referência. 766

Cf. ANTT, IE, proc. 8043. 767

Segundo a lista de 1613, Domingos Quaresma teria partido de Vila Nova de Portimão por volta de

1607, enquanto que Jorge Fernandes Gramaxo se ausentara da vila 4 anos antes (Cf. ANTT, TSO, CG,

mç. 7, doc. 2618). Na genealogia do processo da irmã Aldonça Gramaxo, em 1589, Jorge Fernandes é

referido como estando no Brasil, embora se esperasse o seu regresso para breve (Cf. ANTT, IE, proc.

4603, fl. 31v). Vide a genealogia dos Gramaxo em anexo, p. 161. 768

Vide A. A. Marques de Almeida, “O zangão e o mel. Uma metáfora sobre a diáspora sefardita e a

formação das elites financeiras na Europa (sécs. XV-XVII)”, Oceanos, n.º 29, 1997, pp. 25-35.

Page 183: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

183

Castelhanas, caso não tivesse carta de naturalização ou licença régia769

. Jorge Fernandes

não se livrou do confronto com a justiça. Em 1611, foi preso pela Audiência do Panamá,

num processo que culminou com a legalização da sua situação. Obteria a carta de

naturalização em 1614, quando os seus negócios já se desenvolviam numa rede que ligava

as Índias Castelhanas, à costa africana e aos mercados da Península Ibérica e do Norte da

Europa. Ao poder económico aliava-se um proeminente estatuto social. Conhecido em

Cartagena como “Capitão Gramaxo”, Jorge Fernandes patrocinara a edificação do

convento de São Diogo dos Recolhidos Descalços, onde viria a ser sepultado em 1626.

Foi um sobrinho, António Nunes Gramaxo, quem lhe sucedeu nos negócios. Tinha

chegado a Sevilha em 1611, mas acabou por seguir para as Índias770

. Iniciando a carreira

como caixeiro e cobrador de dívidas, herdou a fortuna e os negócios do tio, que morreu

sem deixar descendência legítima. Em 1630, quando foi obrigado a deslocar-se a Madrid

devido a um litígio com o Conselho das Índias, António Nunes chamou a Cartagena um

sobrinho, Luís Fernandes Soares, então a viver em Lisboa. Passou, então, a liderar a rede

a partir de Sevilha. À fortuna seguiu-se o prestígio social, tendo conseguido contornar os

obstáculos do sangue e alcançado o hábito da ordem de Santiago. Mas, a 22 de Julho de

1636, o sobrinho Luís Fernandes, então a gerenciar os negócios da família em Cartagena,

foi preso pela Inquisição, acusado de culpas de Judaísmo e de conspiração contra os

interesses da coroa castelhana, tal como outros mercadores portugueses envolvidos no

comércio negreiro e que, alegadamente, haviam fornecido prata às forças holandesas que

tomaram Pernambuco771

. Embora o tio António Nunes Gramaxo tenha intercedido em seu

favor, Luís Fernandes não escapou ao confisco de um quarto dos seus bens e a uma pena

de desterro das Índias por um período de 10 anos. Porém, os negócios dos Gramaxo

também sobreviveram a este golpe, tal como a outros no passado.

769

Os estrangeiros teriam de residir há mais de uma década em Espanha e ser casados com mulheres

naturais dos domínios castelhanos para obterem carta de naturalização, segundo uma estipulação de 1562.

Mas com o avolumar das cartas de naturalização passadas, os critérios para a sua obtenção tornaram-se mais

exigentes e, em 1608, o período mínimo de estadia em solo castelhano alargou-se para 20 anos, 10 dos quais

com casa e bens de raiz. Em 1618, passaram a ser exigidos 4 mil ducados como valor mínimo de bens de

raiz aos que pretendiam obter a carta de naturalização. Já na década de 30, e na sequência do crescimento

exponencial dos portugueses naturalizados, o Conselho das Índias pediu mais restrições à concessão das

cartas, em particular aos portugueses, a quem era associada a prática de contrabando no comércio da prata

(Cf. Mateus Ventura, Portugueses no Perú..., vol. I, t. I, Lisboa, IN-CM, 2005, pp. 71-75). 770

Cf. Jesús Aguado de los Reyes, “El Apogeo de los Judios Portugueses en la Sevilla Americanista”,

CES, n.º 5, 2005, p. 154. 771

Além de Luís Fernandes Soares, essas acusações também se dirigiram a Manuel da Fonseca

Henriques, Brás de Paz Pinto, João Rodrigues Mesa, Duarte Lopes Mesa, Francisco Rodrigues de Solis e

Simão Rodrigues Osório. Vide Maria da Graça Mateus Ventura, “Los judeoconversos portugueses en el

Perú del siglo XVII”, Familia, Religión y Negocio. El sefarditismo en las relaciones entre el mundo

ibérico y los Países Bajos en la Edad Moderna, Madrid, Fundación Carlos de Amberes y Ministerio de

Assuntos Exteriores, 2002, pp. 397-399.

Page 184: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

184

Rumo ao Brasil. O caso dos Ulhoa

No Atlântico, as Índias Castelhanas não eram o único destino dos cristãos-novos

algarvios. António da Guerra viveu durante 3 anos no Rio de Janeiro, depois de 6 meses

na Bahia. No passado, fora mestre de esgrima mas, em 1648, era escrivão da

almotaçaria na vila de Albufeira. Nascera em Lisboa, fora criado em Lagos, e, além do

Brasil, estivera em Cachéu, nas Canárias e em Cádis772

. Brasil, costa ocidental de

África, ilhas atlânticas, Andaluzia, Algarve – um percurso algo sui generis para um

mestre de esgrima. Certamente, António da Guerra também se dedicaria à mercancia, e

a uma escala internacional. O mesmo se aplicava a Manuel Lopes, ourives de Lagos

que, em 1639, vivia no Brasil, depois de ter assistido em Angola e no Rio da Prata.

Tinha tios na América Castelhana, o irmão Gaspar Fernandes residia em Sevilha e o pai,

Fernão de Álvares, também estivera na Bahia, em Cartagena nas Índias e em várias

cidades da Andaluzia, antes de ser preso pela Inquisição de Évora em 1637773

. O

percurso denunciava o envolvimento no comércio da prata e no tráfico negreiro.

Na lista de 1613, são mencionados alguns cristãos-novos oriundos do Algarve que

rumaram ao Brasil, entre os quais Francisco Ribeiro, homem “muito rico” que vivera

durante 10 anos na Bahia, de onde regressou a Portugal e se estabeleceu em Lisboa774

.

Anos mais tarde, em meados do século, uma sua sobrinha, Catarina Lopes, encontrava-

se na Bahia, no sítio de Jugaripe. Quando foi presa em Salvador da Bahia e entregue na

Inquisição de Lisboa, a 29 de Abril de 1655, ela tinha perto de 70 anos e estava no

Brasil havia duas décadas. Segundo referem as testemunhas, Catarina embarcara de Vila

Nova de Portimão na companhia do marido, Gaspar Francisco, e das irmãs Isabel

Ribeira e Beatriz Rodrigues. O irmão Pedro Ribeiro tinha-se estabelecido previamente

na Bahia e foi ele quem chamou as irmãs para o Brasil, após a morte dos pais. Em 1655,

os três viviam de “fazer roças”775

.

Pela mesma altura, também se encontrava na Bahia uma outra família do Algarve,

contudo numa situação económica bem mais favorável – os Ulhoa (ou Ilhoa). Duarte

772

Cf. ANTT, IE, proc. 2968, fl. 3. 773

Cf. ANTT, IE, proc. 4376, fls. 1v-3; proc. 5101, fls. 1v-3. 774

Cf. ANTT, TSO, CG, mç. 7, doc. 2618. Anita Novinsky, no seu estudo sobre os cristãos-novos na Bahia,

refere um Francisco Ribeiro, capitão e senhor de engenho que, em 1604, era arrematador dos dízimos na

Bahia. O seu nome aparece também num inquérito elaborado pelo vigário da Sé de Salvador, Manuel

Temudo, por ordem da Inquisição, sobre os portugueses que permaneceram na cidade durante o tempo da

ocupação holandesa (1624-1625). (Cf. Anita Novinsky, Cristãos-Novos na Bahia, São Paulo, Editora

Perspectiva, 1972, pp. 122-123). Caso seja o mesmo Francisco Ribeiro mencionado na lista de 1613, tal

significa que ele teria regressado posteriormente à Bahia. Porém, pode ser apenas de um homónimo. 775

Cf. ANTT, IL, proc. 11388.

Page 185: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

185

Rodrigues Ulhoa, denunciado durante a “grande inquirição” de 1646, era senhor de

engenho e uma figura de proa na comunidade cristã-nova estabelecida na Bahia. Junto

com os filhos Manuel Vaz de Gusmão e Lopo Rodrigues Ulhoa, foi acusado de

frequentar a “sinagoga” na casa de Diogo do Leão. Mas não só. Várias testemunhas

referiram uma capela erigida no seu engenho com a invocação de Santa Teresa mas que,

na realidade, era uma homenagem à sua filha que perecera na fogueira, em Lisboa.

Duarte Rodrigues afirmava que a filha morrera mártir. Em contraposição, apelidava um

outro filho, que saíra sambenitado, de néscio, velhaco e traidor776

. Também Lopo

Rodrigues Ulhoa prestava reverência à irmã morta anos antes. Conta João Peixoto

Viegas, tesoureiro-mor da Bula da Cruzada, que, num dia de Maio de 1642, o vira andar

vestido “[...] de grande gala, de bordados de prata [...]”:

“[...] se murmurava nesta terra que o dito Lopo Rodrigues deitava aquela gala em

memória de uma irmã sua, chamada Teresa, ser queimada e que se entendia que

naquele dia fazia anos a tal queima, e assim mais ouviu murmurar que, em devoção

da dita queimada, levantara uma capela com nome de Santa Teresa seu pai, Duarte

Rodrigues Ulhoa, na paragem de Lacaracanga, limite desta cidade [...]”777

A filha de Duarte Rodrigues Ulhoa não se chamava Teresa, mas sim Isabel778

. O seu

fim trágico também não ocorrera em Maio – tudo aconteceu a 11 de Outubro de 1637. E

nem sequer fora tão constante quanto o pai e o irmão afirmavam.

Isabel Ulhoa entrou nos cárceres inquisitoriais a 25 de Junho de 1636, dois dias

antes do irmão Jacinto Rodrigues. Residia, então, em Lisboa, mais exactamente na Rua

das Mudas, na companhia do marido, Salvador Dias Lopes, mercador e também natural

de Faro. O irmão Jacinto vivia em Leiria, onde era almoxarife e estava casado com uma

cunhada de Isabel, Maria Jácome. Logo no dia em que entrou no cárcere, Isabel

confessou que, no passado, fora iniciada na Lei de Moisés e mantivera práticas

judaizantes. Porém, casara-se havia 7 anos e, desde então, abandonara essa fé. A 30 de

Dezembro, revogou tudo – nunca se apartara da fé cristã e apenas disse o contrário,

iludida de que assim se salvaria da condenação. Apresentou as contraditas e continuou

negativa até ao auto. Ao ouvir a sentença final, Isabel voltou atrás na revogação e

confessou que realmente chegara a comunicar a “heresia” com outros cristãos-novos,

776

Cf. Novinsky, Cristãos Novos na Bahia..., pp. 86-87, 132-137; Lipiner, Baptizados..., p. 103. 777

Cf. ANTT, IE, liv. 228, fl. 57v. 778

Supomos que a escolha de Santa Teresa para orago da capela, alegadamente erigida em homenagem a

Isabel Ulhoa, prendia-se com uma questão de identidade, mas não onomástica. Santa Teresa de Ávila era

cristã-nova. O seu avô, Juan Sánchez de Toledo, fora preso pela Inquisição. Depois de reconciliado,

mudou-se com a família para Ávila, adoptou o sobrenome Sánchez de Cepeda e aproximou-se de famílias

cristãs-velhas da região através do casamento dos filhos. Chegou mesmo a adquirir o título de fidalgo. (Cf

Domínguez Ortiz, Los judeoconversos en la España..., pp. 261-262).

Page 186: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

186

inclusivamente com os seus parentes mais chegados. Mas já era tarde e os dias de Isabel

Ulhoa terminaram no fogo779

. A resolução do processo do irmão Jacinto foi bem

diferente. Sem resistir, confessou logo ter sido judaizante e o processo resolveu-se em

menos de dois meses. Saiu no auto de 3 de Agosto de 1636, sentenciado a cárcere e

hábito penitencial ao arbítrio dos inquisidores780

.

Através dos processos de Isabel e de Jacinto Rodrigues Ulhoa, é possível identificar

o percurso da família e a forma como se processou o seu estabelecimento na Bahia. Em

1636, três dos filhos de Duarte Rodrigues já se encontravam no Brasil: Francisco

Rodrigues em São Paulo ou São Vicente781

, Manuel Vaz Gusmão e Lopo Vaz Ulhoa na

Bahia. O próprio Jacinto Rodrigues também estivera na Bahia antes de ser preso782

. Os

processos dos filhos indiciam que, em 1636, Duarte Rodrigues Ulhoa ainda viveria em

Portugal, onde era boticário. Porém, encontramos outros testemunhos que provam o

contrário. Em 1632, Beatriz Mendes, a filha de Francisca Duarte, de Faro, refere-o

como residente no Brasil783

. Além disso, existem indícios de que ele já estaria na Bahia

na altura da ocupação holandesa, em 1624, então acusado do envenenamento do bispo

D. Marcos Teixeira784

.

Em 1646, Duarte Rodrigues Ulhoa seria já muito idoso. Natural de Ourique, casou-

se em Faro com Catarina Gonçalves. A sua esposa era filha de Estevainha Gomes,

aquela que, em 1588, tentara escapar à prisão, fugindo para Lisboa, mas cujo fim foi o

mesmo da neta Isabel, quase meio século depois785

. Catarina Gonçalves também

conhecera os cárceres da Inquisição, ainda com menos de 20 anos de idade, mas já

casada com Duarte Rodrigues786

.

Voltamos a ter notícias dos Ulhoa em 1651, ano em que Duarte, filho de Jacinto

Rodrigues, apresentou-se perante a Inquisição de Lisboa. Após a reconciliação, Jacinto

rumou a Sevilha, onde se estabeleceu com a família. Regressou a Portugal por volta de

1645, com o intuito de seguir até ao Brasil, para junto do pai e dos irmãos. Porém, não

conseguiu resistir à viagem e acabou por falecer. Ao saber da morte do marido, Maria

779

Cf. ANTT, IL, proc. 3513. 780

Cf. ANTT, IL, proc. 9783. No processo, o sobrenome de Jacinto aparece como “Ilhoa” e não “Ulhoa”.

Porém, por uma questão de coerência, normalizámos a forma, optando por “Ulhoa”. 781

Isabel e Jacinto não coincidem na identificação da residência do irmão. Segundo Isabel, Francisco

Rodrigues era assistente em São Paulo (Cf. ANTT, IL, proc. 3513, fl. 21v), enquanto que Jacinto refere

que ele se encontrava em São Vicente (Cf. ANTT, IL, proc. 9783, fl. 26v). 782

Cf. ANTT, IL, proc. 9783, fl. 30. 783

Cf. ANTT, IE, proc. 590, fls. 37v-38. 784

Cf. Novinsky, Os Cristãos-Novos na Bahia..., pp. 86-87. 785

Vide supra, pp. 75-76. 786

Cf. ANTT, IE, proc. 10580.

Page 187: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

187

Jácome partiu de Sevilha, acompanhada pelos filhos Duarte, Jácome e Salvador. O

destino foi Amesterdão, onde vivia a sua mãe, Filipa Nunes, e a irmã Isabel de Torres,

esposa de Manuel de Solis. Não muito longe, em Antuérpia, residiam a irmã Marquesa

Gomes, casada com Manuel Soares Ribeiro, e o irmão Salvador do Leão. Este era, nada

mais, nada menos, que Salvador Dias Lopes, o marido de Isabel de Ulhoa. Após a morte

da esposa, ele seguira para Antuérpia, onde se havia casado com Ester de Avilar, irmã

de Manuel Mendes de Avilar, corretor de câmbios.

Em Amesterdão, Maria Jácome e os filhos tornaram-se judeus públicos. Os rapazes

foram circuncidados e adoptaram nomes hebreus. Duarte tornou-se Abraão. Durante 4

anos, viveu como judeu, frequentando regularmente a sinagoga e comunicando-se com

outros judeus portugueses ali estabelecidos. Segundo alegou na sua confissão, ao fim

desse tempo, regressou ao Cristianismo, persuadido por um religioso irlandês. Partiu,

então, de Amesterdão, mas não se dirigiu logo para Lisboa. Durante dois anos e meio,

viveu em Antuérpia e, depois, passou para França. A 20 de Junho de 1651, apresentava-

se perante a Inquisição de Lisboa787

.

O percurso de três “judeus de nação”

Duarte de Ulhoa, na sua confissão, mencionou dois mercadores oriundos do Algarve

e estantes em Amesterdão: os irmãos Manuel e Afonso de Tovar, casados com judias

francesas. Um outro irmão vivia em Hamburgo788

. Possivelmente, eles seriam

descendentes dos Tovar de Faro que, como já vimos, assistiram à partida de vários

parentes para Castela devido à perseguição inquisitorial. Ausente da confissão de Duarte

esteve um outro algarvio que, pela mesma altura, também se encontrava em

Amesterdão: João de Águila, filho de Joana de Graçanha, cristã-nova de Faro

reconciliada pela Inquisição de Évora em 1637789

.

787

Cf. ANTT, IL, proc. 8134. Tal como o pai, Duarte também é apresentado com o sobrenome “Ilhoa”. 788

Cf. ANTT, IL, proc. 8134, fl. 7v. 789

Na genealogia do seu processo, ele diz ser filho de João de Águila, cristão-velho biscainho, e de Joana

Mendes, filha de Maria Mendes (Cf. ANTT, IL, proc. 7938, fl. 36). Ora, Joana Mendes é Joana de

Graçanha, presa em 1636, filha de um tendeiro francês, João de Águila (Cf. ANTT, IE, proc. 4571, fl.

10). Assim, João herdara o nome do avô materno e não do pai, como indica o seu processo. O pai era João

Martins, cristão-velho, biscainho que, em 1630, estava a trabalhar na Sé de Faro como pintor. Casara-se

com Joana de Graçanha em 1615. (Cf. Francisco I. C. Lameira, “Elementos para um Dicionário de

Artistas e Artífices que trabalharam a madeira em/para a cidade de Faro nos séculos XVII a XIX”, AMF,

vol. XVI, 1986, p. 129). Sobre João de Águila e, em particular, sobre as denúncias pronunciadas perante a

Inquisição de Lisboa, vide António Borges Coelho, “Los orígenes de Bento Espinosa”, Familia, Religión

y Negocio..., pp. 123-124.

Page 188: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

188

Tal como Duarte de Ulhoa, João de Águila era um jovem com cerca de 20 anos de

idade quando se apresentou na Inquisição de Lisboa, a 12 de Janeiro de 1650. Na mesa,

narrou a sua história. Apesar de só ter uma parte ínfima de sangue hebraico, ele

professou o Judaísmo logo que se viu num local onde o podia fazer livremente. Tudo

começara 11 anos antes, quando embarcou, em Faro, num navio holandês que o levou

até Amesterdão. João não esclareceu os motivos que motivaram a sua partida. Porém,

encontramos as possíveis razões nos processos dos seus irmãos Maria de Águila e

Francisco Mendes. Pouco antes da prisão da mãe, os dois também haviam abandonado

Faro. Francisco Mendes fora primeiramente para a Madeira, onde esteve durante um

mês, e dali seguiu para Lisboa, demorando-se dois meses na capital. O próximo destino

foi Sevilha e, depois, Aiamonte790

. Entretanto, regressara ainda a Faro, onde vivia a

irmã Maria, que o acompanhou além-Guadiana791

.

Fazendo as contas, João de Águila teria partido de Faro por volta de 1639, ou seja,

pouco tempo depois da reconciliação da mãe. Estaria a fugir à perseguição inquisitorial?

Ou pretenderia aprofundar os seus conhecimentos sobre a fé judaica numa “terra de

tolerância”? Mas deixemos as hipóteses e voltemos à sua confissão. De Amesterdão,

João seguiu para Antuérpia. Residiu ali durante 5 meses, na casa de Diogo Teixeira de

Sampaio, um dos mais ricos banqueiros portugueses na cidade que, em 1647, embarcou

para Hamburgo, onde sediou os seus negócios792

. João acabaria por regressar a

Amesterdão, sendo acolhido na casa de um outro grande homem de negócio, Jerónimo

Nunes da Costa, cavaleiro da Casa Real e agente oficial do rei nas Províncias Unidas793

.

Apesar dessa ligação à coroa portuguesa, Jerónimo era judeu público e foi na sua casa

que João abraçou a fé judaica – foi circuncidado, adoptou o nome de Abraão Guer e

passou a frequentar as sinagogas três vezes ao dia. Além de Amesterdão e de Antuérpia,

o seu percurso contemplou também Hamburgo794

.

Anos antes, um outro cristão-novo algarvio também integrara as comunidades

sefarditas de Hamburgo e de Amesterdão e, tal como João de Águila, decidido a regressar

a Portugal, apresentou-se perante a Inquisição de Lisboa, na esperança da reconciliação.

790

Cf. ANTT, IE, proc. 6921, fl. 8v. 791

Cf. ANTT, IE, proc. 682, fl. 7. Tanto Maria de Águila como o irmão Francisco Mendes apresentaram-

se perante a Inquisição de Évora em 1637. 792

Cf. “Sampaio, Diogo Teixeira de / Teixeira, Abrão Sénior”, Dicionário Histórico dos Sefarditas

Portugueses. Mercadores e Gente de Trato. Dir. A. A. Marques de Almeida, Lisboa, Campo da

Comunicação, 2009, pp. 618-619. 793

Vide “Costa, Jerónimo Nunes da / Curiel, Moisés”, Dicionário Histórico dos Sefarditas..., pp. 204-206. 794

Cf. ANTT, IL, proc. 7938. Vide em anexo, pp. 450-457.

Page 189: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

189

Era Heitor Mendes Bravo, natural de Lagos e filho do mercador Miguel Nunes Bravo795

.

Tinha então 26 anos e vivera em Amesterdão, frequentando regularmente as sinagogas da

cidade. Só esteve em Hamburgo durante dois meses, em negócios.

Mas a sua diáspora havia começado muitos anos antes. Com 4 anos de idade, partiu

de Lagos com os pais. Ainda viveu em Setúbal e Lisboa, antes de embarcar para Itália.

O pai havia falecido e a mãe, Mécia Lopes, viúva e desamparada, pediu licença para

partir com os dois filhos, Heitor e Margarida Nunes, a qual acabaria por falecer meses

depois796

. Florença foi a primeira paragem. Ali, conheceram Bento de Medeiros,

mercador português que os aconselhou a ida para Veneza, onde poderiam viver mais

livremente como judeus. Assim convencidos, partiram. Em Veneza, Heitor foi

circuncidado e passou a envergar o nome de David Levi Bravo. Segundo afirmou, a sua

conversão não fora espontânea, contudo, sendo muito novo e “com poucas letras”,

acabou persuadido a abraçar a fé judaica. Viveu em Veneza durante 4 a 5 anos, mas foi

obrigado a fugir, depois de ter ferido um cidadão veneziano. Embarcou numa nau

inglesa e seguiu para Amesterdão.

Foi nesta cidade que Heitor Mendes começou a duvidar da fé que acolhera em

Veneza. Um dia, ao reflectir sobre as profecias do capítulo 53 do livro de Isaías,

questionou a interpretação dos rabinos. Entendia que o profeta não se referia à história e

provações por que passava o povo judeu, mas sim a uma pessoa em específico. Ao

interpelar os rabinos, eles contestaram-no, chamando-lhe de herege. Passados dois

meses, Heitor falou com um flamengo católico que o conduziu até Haarlem797

, onde

“[...] estava um frade francisco em hábitos de soldado, pregando a algumas pessoas

debaixo de segredo [...]”. Tratava-se de Frei Pedro da Anunciação, oriundo do mosteiro

de São Francisco, em Lisboa, e que vivia há quarenta anos em Haarlem. O religioso

transmitiu-lhe a sua interpretação sobre as palavras de Isaías – o profeta referia-se a

Jesus Cristo – e aconselhou-o a ir a Roterdão, onde poderia conviver com outros

católicos que o reencaminhariam para a fé cristã. Heitor seguiu o conselho e foi de

Roterdão que embarcou para Lisboa798

.

795

Cf. ANTT, IL, proc. 12493. Vide em anexo, pp. 363-369. Vide Lipiner, Os Baptizados..., pp. 48, 78-

79; “Bravo, Heitor Mendes / Bravo, David Levi”, Dicionário Histórico dos Sefarditas..., pp. 123-125. 796

Heitor Mendes alegou que a irmã falecera 6 meses após eles terem chegado a Florença. Porém, uma

testemunha referiu que Margarida Nunes tinha acompanhado o irmão e a mãe até Amesterdão, onde se

casara e, depois, partira para Itália. (Cf. ANTT, IL, proc. 12493, fl. 27). 797

No documento, “Arle”. Supomos referir-se a Haarlem. 798

Cf. ANTT, IL, proc. 12493, fls. 11v, 13-14.

Page 190: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

190

A justificação apresentada por Heitor Mendes para explicar o seu retorno ao

Cristianismo é muito similar ao que João de Águila e Duarte de Ulhoa alegaram nas

respectivas confissões. João de Águila começara a afastar-se da fé judaica em Julho de

1649, também motivado por dúvidas na interpretação das Sagradas Escrituras.

Frequentando a escola de Gagão Mortera, questionara o seu mestre sobre o significado

da segunda palavra do livro do Génesis. Águila entendia que essa palavra significava a

Trindade: “[...] que «ben», que é a primeira letra, quer dizer filho, e a segunda, que é

«rua», quer dizer espírito, e «ab», que quer dizer pai [...]”. Tal interpretação valeu-lhe a

ira dos mestres. Mas o jovem continuou a insistir no confronto. No mês de Outubro,

João falou com dois religiosos portugueses que se encontravam em Amesterdão, Frei

Diogo César e Frei Custódio, os quais o persuadiram a abandonar o Judaísmo e a

apresentar-se perante o Santo Ofício799

.

Duarte Ulhoa, como já referimos, convenceu-se a regressar à fé cristã após ter

falado com um carmelita descalço irlandês: “[...] e com o que este lhe disse acerca da

religião que seguia, veio de entrar em dúvida acerca da verdade dela e, depois alguns

dias, se resolveu ele, confitente, em que a dita Lei de Moisés não era boa [...]”800

. A

justificação de Duarte Ulhoa é bem mais simples, sem o pormenor das dúvidas de

exegese bíblica que Heitor Mendes e João de Águila debitaram nas suas confissões.

Porém, é comum a figura do religioso cristão a resgatar quem, na diáspora, abandonara

a fé do baptismo pela fé dos antepassados.

Os mesmos argumentos, ou muito similares, encontram-se no testemunho doutros

tantos reduzidos que regressavam a Portugal e se apresentavam perante a Inquisição, na

esperança de usufruírem da tão aclamada “misericórdia” do tribunal801

. Frequentemente,

outros motivos escondiam-se por detrás desses argumentos. Muitos eram do foro

económico. A necessidade do regresso ao quinhão natal, visando o fomento dos negócios

e a solidificação da sua rede comercial, talvez justificasse o risco da prisão. Já vimos

como Duarte de Ulhoa pertencia a uma família de homens de negócio disseminada pelo

Norte da Europa, Brasil e Portugal. João de Águila estava ao serviço de Jerónimo Nunes

da Costa. Heitor Mendes Bravo apresentou-se como “caixeiro de mercadores”. Os três

desfiaram róis de nomes de judeus portugueses com quem contactavam na prática

religiosa mas também no quotidiano profissional. Entre eles, encontramos os nomes de

799

Cf. ANTT, IL, proc. 7938, fls. 6-9v. 800

Cf. ANTT, IL, proc. 8134, fl. 4v. 801

Cf. Isabel Mendes Drumond Braga, “Uma estranha diáspora rumo a Portugal. Judeus e cristãos-novos

reduzidos à fé católica no século XVII”, Sefarad, fasc. 2, ano 62, 2002, p. 268.

Page 191: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

191

alguns dos mais poderosos homens de negócio de Amesterdão, Antuérpia ou Hamburgo,

como Bento Osório, João de Ilhão, Gil Lopes Pinto, Manuel Dias Henriques, Manuel

Rodrigues Isidro, Diogo Teixeira de Sampaio ou Duarte Nunes da Costa802

. Era comum

aos “judeus de nação” que voltavam à Península Ibérica, decididos a regressar à fé cristã,

a enumeração quase exaustiva de judeus portugueses na diáspora, aspirando à conquista

da confiança dos inquisidores e, por conseguinte, da reconciliação803

. Os três, jovens no

início da carreira mercantil, talvez ambicionassem ficar por Lisboa, agenciando os

negócios da rede mercantil que integravam, um objectivo talvez superior às crenças

pessoais. Trata-se apenas de uma hipótese. Também é legítimo acreditar na sinceridade da

sua conversão. Mas a excessiva coincidência das respectivas histórias causa a impressão

de um discurso construído e, como tal, pouco fidedigno.

Os Delgado, entre as letras e o serviço à coroa

“Gonçalo Delgado, filho de João Pinto Delgado, já defunto, e sua mulher e filhos, se

foram desta vila [Vila Nova de Portimão] para Lisboa, com casa movida, e de Lisboa

se foram para Flandres, aonde moram hoje em dia, e o filho maior casou em Lisboa e

nela mora. Este Gonçalo Delgado é mercador, homem meão e grosso do corpo. A

mulher é flamenga de nação, terá de idade cinquenta anos, pouco mais ou menos.”804

Assim era apresentada, na lista dos ausentes de 1613, uma das famílias algarvias

mais notáveis da diáspora sefardita, os Delgado805

. Por essa data, Gonçalo Pinto

Delgado já não se encontrava na Flandres, mas sim em Ruão, onde adquirira a

naturalização no ano anterior.

No Algarve, os Delgado tinham-se destacado no serviço à coroa, em particular, no

aprovisionamento das praças marroquinas. Em 1578, o pai de Gonçalo, João Pinto

Delgado, foi nomeado feitor da cal e das munições enviadas para o Norte de África por

um período de 3 anos. Ainda ocupava o cargo em 1586. No ano seguinte, foi

802

Cf. ANTT, IL, proc. 8134, fls. 6v, 8 e 9; proc. 7938, fls. 12v, 16-16v, 18, 33; proc. 12493, fls. 6, 12.

Vide respectivas biografias em Dicionário Histórico dos Sefarditas..., passim. 803

Cf. Pilar Huerga Criado, “Entre Castilla y los Países Bajos. Lazos familiares y relaciones personales”,

Familia, Religión y Negocio..., pp. 53-54. 804

Cf. ANTT, TSO, CG, mç. 7, doc. 2618. 805

Sobre os Delgado, em particular sobre o poeta João Pinto Delgado, vide: Sousa Viterbo, Noticia

acerca da vida e obras de João Pinto Delgado, Lisboa, Typographia da Academia das Sciencias de

Lisboa, 1910; Cecil Roth, “Les Marranes à Rouen. Une chapitre ignoré de l‟histoire des juifs de France”,

REJ, LXXXVIII, 1929, pp. 113-155; I. S. Révah, “Introduction. La famille Pinto Delgado de l‟Algarve à

Rouen” in João Pinto Delgado, Poema de la Reina Ester. Lamentaciones del Profeta Jeremías. Historia

de Rut y varias poesías, Lisboa, Institut Français au Portugal, 1954, pp. XIII-XXXV; Idem,

Autobiographie d’un marrane. Édition partielle d’un manuscrit de João (Moseh) Pinto Delgado. Separata

de Revue des Études Juives, The Hague, 1961; Timothy Oelman (ed.), Marrano Poets of the Seventeenth

Century. An Anthology of the Poetry of João Pinto Delgado, Antonio Enríquez Gómez and Miguel de

Barrios, Oxford, The Littman Library of Jewish Civilization, 2007 (1ª ed. 1982).

Page 192: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

192

responsável pelo provimento das tropas enviadas para o socorro da cidade de Lagos806

.

“[...] Por suas habilidades houvera um ofício ou dois d‟el-Rei [...]” – assim aparece

mencionado no processo inquisitorial de Baltazar da Costa, em 1585. Segundo a mesma

fonte, por volta de 1582, Gonçalo Pinto Delgado estava em Antuérpia, onde se casou

com uma mulher flamenga. Pouco depois, regressou a Portugal807

.

De facto, em 1588, Gonçalo era almoxarife em Tavira. Anos depois, por carta de 16 de

Dezembro de 1599, foi nomeado para substituir o pai, entretanto falecido, enquanto feitor

da cal e das munições enviadas para as praças norte-africanas808

. Possivelmente, os seus três

filhos – João, Gonçalo e Diogo – também teriam nascido em Tavira. O mais velho acabaria

por garantir “um lugar de primazia no Parnaso peninsular”, segundo as palavras de Sousa

Viterbo. A dedicação às belas-letras era uma tradição familiar. O avô, de quem herdou o

nome, fora um “grande trovador”, nas palavras de Baltazar da Costa809

. Do pai conhece-se

um poema épico sobre o ataque inglês a Faro em 1596, dedicado a Rui Lourenço de Távora,

então governador do Algarve, e ao bispo D. Fernão Martins Mascarenhas810

.

Mas terá João Pinto Delgado herdado apenas a vocação literária? E a carreira

administrativa? A 12 de Agosto de 1602, era conferido a um João Pinto Delgado o

cargo de almoxarife dos mantimentos e pagamentos de Mazagão811

. Não se trataria do

mesmo indivíduo. O João Pinto Delgado referido no dito alvará servia militarmente na

praça de Mazagão desde 1595. Nessa data, o primogénito de Gonçalo Pinto Delgado

não tinha mais de 12 anos de idade. Além disso, ele manteve o cargo de almoxarife até

806

Cf. Sousa Viterbo, Noticia acerca..., pp. 9, 27-29, 31. 807

“[...] e disse mais que haverá agora três anos, pouco mais ou menos, que estando ele, confessante, em

Anvers, como tem dito atrás, tinha conversação com Gonçalo Delgado, cristão-novo, mancebo solteiro,

filho de um João Pinto do Algarve, não sabe ao certo de que lugar é morador, mas que lhe parece que em

Vila Nova, e ouviu dizer que tinha um ofício em a alfândega e que era grande trovador e que, por suas

habilidades, houvera um ofício ou dois d‟el Rei, o qual Gonçalo Delgado estava em Anvers em casa de

um tio, cujo nome não lembra, mercador, e ele, confessante, conversou por tempo de um ano com este

Gonçalo Delgado, o qual lhe disse, por vezes, que era judeu e ele, confessante, lhe disse o mesmo de si e

por tais se conheciam um ao outro [...] estando ainda em Anvers, o dito Gonçalo Delgado se veio para

este reino, chamado de seu pai, e deve estar no Algarve, onde o seu pai mora, e a este tempo era já casado

e trouxe para cá sua mulher [...]” (Cf. ANTT, IL, proc. 5341, fls. 6v-7v). Também referido em Révah,

Autobiographie d’un marrane..., pp. 48-40. 808

O duque de Medina Sidónia prometera a João Pinto Delgado que o cargo passaria para o filho após a

sua morte (Cf. Sousa Viterbo, Noticias acerca..., p. 29). 809

Révah acrescenta que Barbosa de Machado, na Biblioteca Lusitana, atribui uma tradução de Petrarca

em oitava rima a João Pinto Delgado. Porém, não se conhece o paradeiro de tal tradução (Cf. Révah,

“Introduction....”, p. XVII). 810

O poema desenvolve-se ao longo de oito cantos, em oitavas de verso heróico, e revela uma profunda

influência dos Lusíadas de Luís Vaz de Camões. Conhece-se uma cópia manuscrita na Biblioteca Nacional de

Viena, sem título, nem autor. Uma selecção de estâncias do poema foi publicada por Joaquim Romero

Magalhães. Vide Romero Magalhães, “O assalto dos Ingleses a Faro em 1596”, O Algarve na Época Moderna,

Coimbra, Faro, Imprensa da Universidade de Coimbra, Universidade do Algarve, 2012, pp. 107-140. 811

Cf. Sousa Viterbo, Noticias acerca..., p. 30.

Page 193: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

193

ao final de Agosto de 1607, altura em que Gonçalo e a família já se encontravam na

Flandres812

. Provavelmente, o almoxarife seria um primo homónimo do poeta, dada a

tradição de se atribuir aos netos o mesmo nome do avô.

Depois de uma temporada na Flandres, João Pinto Delgado regressou a Lisboa, onde

completou a sua formação literária. É a este período que remontam os poemas

autobiográficos deixados inéditos, identificados e parcialmente publicados por I. S.

Révah813

. Enquanto esteve em Lisboa, também participou com composições poéticas

em duas obras impressas no ano de 1616: um madrigal em português na Consolação

christã e luz para o povo hebreu, de João Baptista d‟Este, e um soneto em castelhano no

Poema mystico del glorioso Santo Antonio de Padua, de Luís de Tovar.

Ruão foi o destino seguinte do poeta. Em 1624, já se encontrava na cidade e, 3 anos

depois, publicava, na oficina de David du Petit Val, a sua obra maior, Poema de la Reyna

Ester, Lamentaciones del Propheta Jeremias, Historia de Rut y varias poesìas, dedicada ao

Cardeal Richelieu. Porém, na sequência da perseguição à comunidade sefardita estabelecida

em Ruão, João Pinto Delgado partiu com o pai para Antuérpia814

. Estabeleceu-se em

Amesterdão, onde viveu até à morte, a 23 de Dezembro de 1653. Embora já tivesse abraçado

o Judaísmo em Ruão, foi na cidade holandesa que a sua conversão se confirmou. Passou a ser

conhecido por Moseh Pinto Delgado e integrou a congregação sefardita de Amesterdão815

.

Tavira, Vila Nova de Portimão, Lisboa, Antuérpia, Ruão, Amesterdão – o percurso

dos Delgado foi, no mínimo, inquieto. Apesar da família ter escapado à purga de finais

do século XVI, a perseguição religiosa teria sido um dos impulsos à partida. João Pinto

Delgado escreve-o, em tom autobiográfico:

“[...] junto de la orilla del Occeano que por parte de la Lusitania confina con la

Andaluzia, yaze la tierra que fue cuna a mi nacimiento, donde, despues de llegar a

edad de discernir lo bueno de lo malo, me pareció el sitio humilde y peligroso a mis

pensamientos. Humilde, por el poco exercicio de bien empleadas horas que se

gastan en exercicio de las sciencias; y peligroso, por aver ya mis progenitores

plantado en mi alma los arboles de la Santissima Ley, de que tardaron los frutos en

quanto vedó la orlá o cerramiento dellos el tocarlos para sustento.”816

812

Cf. Idem, Ibidem, p. 33. 813

Cf. Révah, Autobiographie d’un marrane.... O manuscrito tem o título de “Dialogos contra a

cristandade”, o qual não foi atribuído pelo próprio autor, tratando-se, possivelmente, dum acrescento

posterior. A obra é uma apologia ao judaísmo e divide-se em duas partes: na primeira, um peregrino, de

nome Moisés (nome judaico que João Pinto Delgado tomou após a circuncisão), narra o seu percurso

religioso, da perseguição à liberdade religiosa; na segunda, um cavaleiro cristão da Holanda procura

conhecer os fundamentos do Judaísmo e do Cristianismo, acabando por se converter à fé judaica. 814

Vide Cecil Roth, “Les Marranes à Rouen...”, REJ.... 815

Em 1640, João Pinto Delgado era um dos sete parnasim do Talmud Torah de Amesterdão (Cf.

Oelman, Marrano poets..., p. 51). 816

Cf. Révah, Autobiographie d’un marrane..., p. 93.

Page 194: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

194

A longa jornada de Diogo Dias Pacheco

A 5 de Setembro de 1576, Diogo Dias Pacheco, alias Coim Pacheco, apresentava-se

perante a Inquisição de Lisboa. Dez anos antes, fora denunciado por dois cristãos-novos

que o conheceram em Ferrara, onde era judeu público. Mas a sua história escrevera-se

por outras paragens. Nos mais de 60 anos que viveu antes de se fazer ouvir nos estaus

de Lisboa, Diogo Dias esteve em constante périplo, do Norte de África à Península

Itálica, da Turquia à Flandres, de Portugal à costa ocidental africana.

Diogo Dias Pacheco nasceu por volta de 1512, em Lagos, num período de apogeu

da vila, consequência directa das empresas ultramarinas e das estreitas relações com o

Norte de África. A sua jornada iniciou-se em 1538. Quatro anos antes, havia-se casado

com Inês Fernandes, filha de Salvador Afonso, mercador de Lagos. Diogo e a esposa

embarcaram, então, rumo ao Norte de África. Três anos em Safim, mais dois em Tânger

e outros três em Ceuta, onde serviu como soldado. Em 1546, seguindo os conselhos do

sogro, partiu para Itália na companhia da família, com o intuito de se converter ao

Judaísmo. Embarcaram todos em Gibraltar, rumo a Veneza. Mas Diogo não se

estabeleceu na cidade, ao contrário dos sogros e dos cunhados. Seguiu para Salónica,

onde finalmente abraçou a fé judaica e fez circuncidar os seus filhos. Um ano em

Salónica e já estava de partida para Ferrara. Aproveitando o perdão geral de 1547,

Diogo regressou a Lisboa, onde viveu durante 6 meses, antes de seguir para Castela. Até

1550, serviu nas galés de D. Carlos V. Durante este período, chegou a ir à Flandres e ali

contactou com outros judeus portugueses. Voltou para o Norte de África e, em

Mazagão, casou com uma viúva cristã-velha, Inácia Ribeira, quando ainda era viva a

sua primeira mulher. Além de judaizante, Diogo também se confessava bígamo.

De regresso a Lisboa, onde se demorou por breves meses, Diogo seguiu para a

Flandres e dali novamente rumo a Ferrara. Permaneceu na cidade entre 1553 e 1555,

servindo de mordomo na casa de Henrique Nunes817

. Salónica foi o destino seguinte e

onde ficou a saber que Inês Fernandes e os filhos haviam falecido. Mas Inácia Ribeira

ainda era viva quando se casou, pela terceira vez, com uma judia chamada Ester. Ainda

em Salónica, assaltaram-no dúvidas de fé, suscitadas pelas profecias de Isaías:

“[...] cotejou uma Bíblia em latim com esta em espanhol para ver se o Messias era

vindo e era em quem se havia cumprido aquela profecia [de Isaías] e perguntando a um

817

Sobre Henrique Nunes, alias Abraão Benveniste, vide “Nunes, Henrique”, Dicionário Histórico dos

Sefarditas..., pp. 494-495.

Page 195: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

195

rabino como entendia aquela profecia e em quem se cumprira, ele respondeu que não o

dissesse, que havia de estar cheio de toucinho, que não havia de ser bom judeu [...]”818

A questão levou-o a Roma, em 1560. Encontrou-se com o embaixador Lourenço

Pires de Távora que o remeteu ao Cardeal Alexandrino. Diogo Dias disse ter recebido a

reconciliação da Inquisição romana, penitenciado com 4 meses de trabalho nas obras da

Sé apostólica. Foi o que alegou na mesa do tribunal lisboeta, contudo sem apresentar

qualquer documento comprovativo dessa reconciliação. Havia-se perdido no naufrágio

das galés de D. João de Mendonça em 1563 – disse. Numa outra sessão, acabaria por

negar tudo: “[...] que o demónio o cegou e por haver medo e por lhe parecer que teria

melhor despacho dizendo que fora reconciliado [...]”819

. Tinha regressado a Portugal em

1565, onde voltou a fazer vida com Inácia Ribeira. Desde então, viveu entre Tavira e

Lisboa, exceptuando dois anos em que esteve em São Tomé.

Os inquisidores concluíram que eram “[...] suas confissões fictícias, simuladas e não

satisfatórias, o que se vê claramente no modo que teve de fazer suas confissões e

afirmar sempre, até à derradeira confissão, que foi reconciliado em Roma [...]”820

.

Terminou relaxado à justiça secular no auto-de-fé de 16 de Março de 1578. Lisboa foi a

última paragem de Diogo Dias Pacheco.

2. ACTIVIDADES SÓCIO-PROFISSIONAIS

A terra aos cristãos-velhos, o comércio e a finança aos cristãos-novos – eis o estereótipo

alimentado por um discurso antijudaico que se perpetuou para lá da conversão geral, o qual

afastava a minoria cristã-nova (como, no passado, a minoria judaica) da única fonte de

riqueza lícita, o labor da terra, vinculando-a à usura e ao trato mercantil. Se,

tendencialmente, os cristãos-novos se dedicaram à actividade mercantil e aos mesteres

urbanos, bem mais do que à exploração agrícola, também não podemos ignorar as

excepções. A terra, o altar e a espada faziam parte do seu quotidiano. Por outro lado, o

comércio não era um mundo estranho aos cristãos-velhos, em particular numa região

voltada para o mar e plenamente integrada nas rotas do comércio internacional.

818

Cf. ANTT, IL, proc. 65, fl. 23v. Vide em anexo, pp. 277-279. 819

Cf. Idem, fl. 56v. 820

Cf. Idem, fl. 67.

Page 196: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

196

Os números

Em 1606, foi lançada uma finta sobre os cristãos-novos de Tavira. No rol dos

fintados, em menos de metade é identificada a actividade profissional, mas, nesta

minoria, predominam os mercadores (14), seguidos dos sapateiros (9), dos alfaiates (5)

e dos ourives (4). Nos valores pagos, o domínio também é dos mercadores. A finta mais

alta coube a um tratante, Manuel Fernandes Paredes, que pagou 22.500 réis, isto num

total de 217.785 réis angariados821

.

As actividades comerciais e artesanais são as mais comuns entre os cristãos-novos

processados durante as três entradas da Inquisição no Algarve822

. Na primeira entrada, o

comércio supera os mesteres. A tendência inverte-se nas duas entradas seguintes. Em

1585-1600, os mesteres constituem mesmo 60% das actividades profissionais declaradas

pelos cristãos-novos algarvios então presos. Se, nas primeiras duas vagas de prisões, a

agricultura muito raramente constituiu o principal sector de actividade dos réus, o cenário

muda nas décadas de 30 e 40 do século XVII. Então, 11% dos processados eram

lavradores. Para tal valor foi determinante a entrada da Inquisição nas vilas de Loulé e

Albufeira, dois importantes centros agrícolas da região.

Visando uma perspectiva mais ampla, alarguei o universo de estudo não só aos

processados, como também a todos os cristãos-novos mencionados na documentação

consultada, residentes em seis localidades: Lagos, Vila Nova de Portimão, Albufeira,

Faro, Loulé e Tavira. Agrupei as actividades sócio-profissionais em 7 categorias –

Comércio, Mesteres, Agricultura, Administração, Saúde e Direito, Religião, Outros – e

dividi as referências em três períodos, conforme os ritmos da acção inquisitorial no

Algarve – 1550-1580, 1581-1620 e 1621-1650. As conclusões foram as seguintes823

:

1550-1580 1581-1620 1621-1650

1. Mesteres

2. Comércio

3. Saúde e Direito

4. Outros

5. Administração

6. Agricultura

7. Religião

1. Comércio

2. Mesteres

3. Saúde e Direito

4. Religião

5. Outros

6. Administração

7. Agricultura

1. Mesteres

2. Comércio

3. Outros

4. Saúde e Direito

5. Religião

6. Agricultura

7. Administração

821

Cf. ANTT, TSO, mç. 40, doc. 57. 822

Vide, em anexo, gráficos 8.1 e 8.2, pp. 107-108. 823

Vide, em anexo, gráfico 8.3, p. 109.

Page 197: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

197

Estes dados confirmam a prevalência das actividades comercial e mesteiral, a qual a

bibliografia tem demonstrado também ser uma realidade noutros territórios824

.

Mas é preciso considerar as variantes de localidade para localidade. Há espaços onde

o comércio supera os mesteres (Lagos e Vila Nova de Portimão), noutros, o predomínio é

das actividades artesanais (Faro e Tavira). Porém, em Albufeira, no período de 1621-

1650, a agricultura constituía a principal actividade exercida pelos cristãos-novos, tal

como o seria relativamente ao resto da população. O caso de Albufeira é extraordinário.

Noutras localidades, inclusivamente em Loulé, a importância de cristãos-novos que

tinham na agricultura a sua principal actividade revela-se pouco significativa825

.

Na categoria “Outros”, que demonstra um peso significativo no período de 1621-

1650, incluí uma série de ofícios que não se integravam em nenhuma das outras

categorias e que individualmente não apresentavam importância suficiente para

constituírem uma categoria à parte. Entre eles, encontramos os mareantes e os militares.

Em termos totais, os mareantes não chegam a constituir 2% dos cristãos-novos

referidos. Em Tavira e Vila Nova de Portimão, ainda atingem os 3%, mas nas outras

localidades o valor é bem menor. Não encontrámos uma justificação plausível para este

afastamento dos cristãos-novos da actividade marítima, e aqui entenda-se da navegação

e da pesca e não do comércio marítimo ou das rendas das almadravas, onde seriam um

grupo particularmente activo. Porém, esta é uma realidade que se repetiria na vizinha

Andaluzia. Juan Gil identificou-a nos processados pela Inquisição de Sevilha826

.

Quanto aos cristãos-novos que abraçaram a carreira militar, a sua presença é ainda

mais modesta, embora regista um ligeiro crescimento na década de 40, fruto do

recrudescer das tensões na fronteira. Na vila de Albufeira, verificamos que o número de

cristãos-novos militares atinge os 9% para o período de 1620-1650. Talvez esse valor

fosse igualmente significativo em Tavira e ainda mais em Castro Marim, dada a

824

Maria do Carmo Teixeira Pinto verificou, no caso de Tomar, que cerca de metade dos cristãos-novos

denunciados durante a visitação de 1561 se dedicava ao comércio (Cf. Teixeira Pinto, “A visita...

Tomar...”, Arqueologia..., p. 361). Relativamente a Elvas, no período do reinado de João IV, a mesma

autora concluiu que o número de cristãos-novos artesãos era dominante, superando o dos mercadores (Cf.

Idem, Os Cristãos-Novos de Elvas..., p. 537). Ao estudar as entradas da Inquisição na vila de Melo no

século XVII, José Pedro Paiva notou que, em termos sócio-profissionais, o grupo numericamente mais

significativo era os mercadores (36%), seguindo-se os tendeiros (12%) e os tosadores (10%). (Cf. Paiva,

“As entradas... Melo...”, RHI..., p. 188). 825

No presente estudo, incluímos os indivíduos que “viviam de sua fazenda” na categoria “Outros”, dada

a indefinição desta referência, referindo-se quer a rendimentos agrícolas, quer comerciais. Note-se que, no

período de 1621-1650, em Loulé, a percentagem de cristãos-novos que viviam de sua fazenda superava os

5% e, em Lagos, chegava aos 11%. Considerando a totalidade da região, para o mesmo período, o valor é

pouco significativo. 826

Cf. Juan Gil, Los Conversos y la Inquisición Sevillana, vol. VI, Sevilha, Universidad de Sevilha,

Fundación del Monte, 2003, p. 68.

Page 198: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

198

proximidade da fronteira. Contudo, nesse período, os dados conhecidos relativos às

duas localidades são insuficientes para qualquer ilação.

A verdade é que a carreira das armas e a vida no mar não integravam as actividades

tradicionalmente associadas aos cristãos-novos, ao contrário do comércio e dos

mesteres, cuja tradição remontava aos antepassados judeus. Mas confrontemos uma

amostragem profissional dos judeus de Faro, no século XV, apresentada por Maria José

Ferro Tavares827

, com os dados recolhidos sobre os cristãos-novos residentes na cidade

durante o período de 1550 a 1650:

Judeus, séc. XV Cristãos-novos, 1550-1650

1. Sapateiros

2. Alfaiates

3. Administrativos

4. Ourives

5. Mercadores

6. Rendeiros

7. Tecelões

1. Mercadores

2. Sapateiros

3. Alfaiates

4. Religiosos

5. Sirgueiros

6. Cirurgiões

7. Advogados

O comércio tornou-se na principal actividade, enquanto que, entre a comunidade

judaica de Quatrocentos, era superado por determinados mesteres, como a sapataria e a

alfaiataria, os quais, não obstante, continuaram a ter grande importância no contexto

sócio-profissional dos cristãos-novos de Faro. Mas este quadro comparativo é também

revelador de grandes transformações. A conversão abriu aos cristãos-novos o acesso à

carreira eclesiástica. Em Faro, sede episcopal do Algarve desde 1577, os ofícios religiosos

ocupavam a quarta posição na escala das actividades exercidas pelos cristãos-novos.

Contudo, estes números ocultam uma outra realidade. O cristão-novo referido na

documentação enquanto mercador, ou sapateiro, ou mesmo médico, raramente se

dedicava a essa actividade de forma exclusiva. De facto, há quem apareça mencionado

como alfaiate e rendeiro, mercador e cirurgião, sapateiro e pescador, ou mesmo tosador

e confeiteiro828

. Mas, fora estes casos, em que duas ou mais actividades surgem

associadas a um mesmo indivíduo, a documentação indicia que, independentemente do

ofício exercido, boa parte dos cristãos-novos teria o seu quinhão de terra no termo dos

827

Cf. Ferro Tavares, Os Judeus... século XV..., vol. I, p. 305. 828

São os casos, por exemplo, de Pedro Fernandes, o Branco, de Vila Nova de Portimão, alfaiate e

rendeiro (Cf. ANTT, IE, proc. 5259), Mestre Lopo, também de Vila Nova de Portimão, cirurgião e

mercador (Cf. ANTT, IL, proc. 2180), Diogo Fernandes, de Faro, sapateiro e pescador (Cf. ANTT, IE,

proc. 5289) e Francisco Dias, de Tavira, tosador e confeiteiro (Cf. ANTT, IL, proc. 8925).

Page 199: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

199

principais núcleos urbanos829

. Ao contrário do estereótipo, existia um vínculo à terra,

também relacionado com a própria estratégia comercial. O mercador dominava, assim,

todo o processo produtivo, desde os campos até aos mercados, e, em paralelo, apostava

numa actividade de menor risco que lhe poderia garantir o sustento básico se mal

sucedido nos negócios. Afinal, encontramo-lo a cultivar os produtos agrícolas que,

transformados, alimentavam as exportações do Algarve – o figo, a uva e a azeitona.

Mas vejamos dois casos exemplares da polivalência profissional dos cristãos-novos

do Algarve. Para comerciar os seus produtos, Fernão de Álvares circulava pelas feiras do

Algarve e do Alentejo e deslocava-se com frequência à Andaluzia. Em Junho de 1635,

embarcou em Lagos rumo a Valença, de onde seguiu, por terra, para Sevilha. No ano

seguinte, passou o mês de Agosto no termo de Lagos, a cobrar algumas dívidas, em trigo,

aos lavradores dos lugares de Almádena, Raposeira e Barão de São João. Dedicou-se

depois à vindima nas suas terras, no termo de Lagos, onde esteve até 16 de Outubro,

altura em que foi à feira de Santa Iria, em Faro. No final do mês, seguiu com mercadorias

para a feira de Silves. Fernão de Álvares também estivera envolvido no negócio do atum,

anos antes. Nas contraditas do seu processo, ele alegou que, entre Maio e Julho de 1624,

assistiu nas almadravas, alojado numa cabana enquanto “[...] beneficiava o dito atum com

sua fábrica [...]”830

.

Anos antes, Diogo Lopes, também de Lagos, mantinha a mesma amplitude de

actividades. Em 1614, ocupou grande parte do mês de Setembro na vindima. Quando

esta acabou, dedicou-se a construir umas casas, tarefa que se estendeu até meados de

Novembro. Desde então e até ao mês de Janeiro, esteve a plantar uma vinha, a légua e

meia da cidade de Lagos. Entre Janeiro e Março, andou na Ribeira de Odiáxere, nas

suas fazendas, a cavar e a podar, sempre acompanhado por muitos trabalhadores.

Porém, a 15 de Março, já havia regressado à actividade comercial, negociando nas

armações da Pedra da Galé, Zavial e Burgau831

.

829

No estudo sobre a comunidade cristã-nova de Vila Nova de Foz Côa, Aida Maria Oliveira Carvalho

também verificou que os cristãos-novos, quer fossem mercadores ou mesteirais, quer tivessem outra

actividade profissional, mantinham um forte vínculo à terra (Cf. Aida Maria Oliveira Carvalho, A

comunidade cristã-nova de Vila Nova de Foz Côa. Rupturas e continuidades. Séculos XVII-XVIII, Vila

Nova de Foz Côa, Câmara Municipal de Vila Nova de Foz Côa, 2000, p. 44). Ocorreria o mesmo em

Viseu, segundo revelou uma devassa inquisitorial na cidade entre 1595-1605. Maria Teresa Gomes

Cordeiro acrescenta que o desempenho de actividades rurais era já comum entre a comunidade judaica de

Viseu. (Cf. Gomes Cordeiro, Adonai nos cárceres..., pp. 99-101). 830

Cf. ANTT, IE, proc. 4376, fls. 48v-49, 52. 831

Cf. ANTT, IE, proc. 9005.

Page 200: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

200

O comércio

Os três níveis de actividade mercantil – a local, a interna (regional e nacional) e a

externa – revelavam uma forte permeabilidade. O tendeiro deslocava-se frequentemente

às feiras realizadas noutras localidades, mais ou menos longínquas, onde adquiria as

mercadorias para vender na sua loja. Periodicamente, embarcava rumo às cidades

costeiras da Andaluzia e ali tratava as suas mercadorias. Era o caso de Afonso Pinto

Duarte, com tenda na Rua Direita de Faro, que ia a Castela vender figo832

. Numa

ocasião, foi acompanhado por um outro mercador, Pedro de Seixas. Para este, era

habitual seguir para lá do Guadiana, rumo a Sevilha, Granada e Valença, e ali comerciar

figo e sardinha. As mesmas mercadorias eram igualmente vendidas por Pedro de Seixas

nas feiras alentejanas, nomeadamente em Vila Viçosa, Évora e Estremoz. Em Faro,

adquiria atum, possivelmente destinado ao mercado castelhano. Ainda na cidade,

comprava e vendia tecidos, integrando-se nas redes locais de comércio833

.

A especialização era pouco acentuada, sobretudo ao nível do comércio local. O rol de

mercadorias comercializadas nas tendas primava pela diversidade. Em Lagos, o tendeiro

Diogo Mendes, o Espada Larga, comerciava linhas, tecidos, pimenta, arame, arroz e

vinho, proveniente de uma propriedade que arrendara no termo. Além disso, os seus

parentes enviavam-lhe trigo do Alentejo. Aliás, foi assim que Diogo iniciou a sua carreira

de mercador em Setúbal, vendendo o trigo que o pai lhe remetia do Alentejo. E não se

ficou por aqui. Acompanhara D. Sebastião na expedição de Alcácer Quibir e permanecera

durante 4 anos em Tânger. Depois, estabeleceu-se em Lagos, onde casou e passou a

ganhar a vida como sapateiro. O negócio da tenda de marçaria viria mais tarde834

.

Diogo Mendes negociava trigo que vinha do Alentejo. Também em Lagos, e como

já vimos atrás, Fernão de Álvares recebia os créditos que tinha sobre lavradores da

região em trigo. Produto que costumava escassear na região, mas ainda assim produzido

nos termos de Lagos, Silves e Loulé, o trigo tendia a sofrer flutuações de preço muito

acentuadas e, em momentos de desfasamento da procura em relação à oferta, o seu valor

disparava, sendo uma mercadoria potenciadora de generosos lucros e, desta forma,

muito atraente aos olhos dos negociantes. Mesmo assim, estes tinham de se sujeitar aos

constrangimentos municipais sobre a sua produção e venda835

. Mas o trigo era,

832

Cf. ANTT, IE, proc. 1836, fl. 172. 833

Cf. Idem, fls. 4-4v, 173v-174, 178, 182, 185. 834

Cf. ANTT, IE, proc. 6485. 835

Cf. Romero Magalhães, O Algarve Económico..., pp. 245-250.

Page 201: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

201

essencialmente, um produto adquirido fora do Algarve, oriundo do Baixo Alentejo836

e

do exterior, nomeadamente de Castela, Norte de África e Levante Mediterrânico837

.

Na aquisição de produtos que escasseavam na região e na revenda de mercadorias

compradas nas feiras ou no trato marítimo, os mercadores algarvios inscreviam-se com

desenvoltura nos circuitos do comércio internacional. Em 1543, Diogo Pires, mercador

natural do Porto mas residente em Lagos, fora a Lisboa vender vinho, trigo e breu que

adquirira nas Canárias. Durante três meses, a mãe ajudou-o no negócio, vendendo o

vinho que ele trouxera numa loja no Poço da Fótea. Já em Lagos, Diogo carregou uma

nau de vinhos e frutas para a Flandres, em sociedade com outros mercadores, na qual

seguiram dois sobrinhos seus, com a missão de transaccionar as mercadorias no

destino838

. Fernão Gonçalves Duarte, o Cego, estava no porto de Cachéu no início de

Seiscentos, envolvido no comércio negreiro. Mantinha negócios com um outro

mercador de Faro, Fernão Duarte de Castro – este dera-lhe dois escravos para vender

nas Índias Castelhanas, instruindo-o de que deveria deixar o dinheiro da venda a Duarte

do Leão Marques, em Cartagena839

. Alguns anos mais tarde, Manuel Dias Pereira não

precisava de sair do Algarve para operar no comércio atlântico. A partir de Tavira,

recebia remessas de sumagre, conservas e açúcar da Madeira, que depois revendia em

Tavira e Faro840

. Seguramente, teria compradores entre os mercadores estrangeiros que

frequentavam os portos das duas cidades.

Já vimos anteriormente a relação entre o movimento portuário e o desenvolvimento

urbano. Afinal, os núcleos emergentes no Algarve durante a centúria de Quinhentos –

Faro, Vila Nova de Portimão e Lagos – eram também localidades dotadas de portos

muito concorridos. Diogo Pires alegou que, caso quisesse enviar a sua mãe para fora do

reino e, assim, pô-la a salvo da perseguição inquisitorial, tal seria simples, pois a baía de

Lagos era muito frequentada por navios que carregavam para a Flandres e outras

partes841

. Anos depois, o porto de Faro registava ainda maior afluência. Em 1586, numa

carta ao Conselho Geral, o bispo D. Afonso de Castelo Branco alertava para a existência

836

“Mas a villa de Mertola sua vizinha que é a Mirtilis antiga colonia de romanos, suppre bem essas faltas

com a grande quantidade de trigo que nella se dá, a que tambem ajuda a parte do Campo de Ourique que

ao dito reino tambem está vizinha” (Cf. Duarte Nunes do Leão, Descrição do Reino..., p. 203). 837

Cf. Romero Magalhães, Para o estudo do Algarve..., pp. 83-86. 838

Cf. ANTT, IE, mç. 26, doc. não numerado. Trata-se de uma carta de 18 de Maio de 1545, de Pedro

Álvares de Paredes e Julião Álvares, inquisidores de Évora, para Jorge Rodrigues, inquisidor apostólico

no bispado do Porto, sobre as contraditas de Diogo Pires, preso pelo tribunal de Évora em 1544. 839

Cf. ANTT, IE, proc. 3363, fl. 88v. 840

Cf. ANTT, IE, proc. 5686. 841

Cf. ANTT, IE, mç. 36, doc. não numerado. Vide em anexo, pp. 235-237.

Page 202: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

202

de muitos “judeus” no Algarve que facilmente fugiriam a partir de Faro, através das

muitas embarcações de Marselha, de Livorno e do Levante que ali aportavam842

.

Temos dados mais precisos sobre a frequência do porto de Faro no século seguinte

através da consulta do registo das visitas às naus estrangeiras, alvo do estudo de

Virgínia Rau843

. Segundo o regimento, os oficiais do Santo Ofício deveriam visitar

todos os navios estrangeiros que entrassem nos portos portugueses “[...] de partes de

que ouver sospeita que sua vinda possa trazer prejuizo aa tera e cousas de fee [...]”844

.

Portanto, esses dados constituem apenas uma amostra das embarcações que

frequentavam o porto de Faro e, ainda para mais, uma amostra não aleatória. O

movimento do porto variava ao sabor das tensões políticas. Assim, vemos praticamente

desaparecer o registo de navios holandeses a partir de 1621, momento em que terminou

a trégua entre as Províncias Unidas e Castela – 6 navios em 20 anos. A sua presença é

retomada já depois de 1640. Contudo, os registos notariais de Amesterdão

complementam essa informação e fornecem-nos uma perspectiva diferente. Vejamos o

registo dos contratos de transporte referentes a embarcações que, em 1627, saíram do

porto de Amesterdão destinadas a Faro:

Data Contraentes Embarcação

24 Julho João de Faro e Harman Kramer De Fortuine

30 Julho Pedro Homem de Medeiros e Gerrit Cornelisz St. Pieter

27 Agosto Francisco Lopes de Azevedo e Jan Janssen Vollehoof De Swarte Leeu

30 Agosto João de Faro e Harmen Wilkes De Fortuine

4 Novembro João de Faro e Willem Jacobsz St. Pieter

24 Novembro Joan Huigens, António Martins Viegas e Pieter Siimonsz St. Jacob

Portanto, uma das partes contraentes é sempre um mercador português estabelecido em

Amesterdão. Arriscaria mesmo dizer que cristão-novo. Em todos os contratos, na lista das

mercadorias carregadas para o Algarve, encontramos os mesmos produtos: figos,

amêndoas, azeite e açúcar – os primeiros três, frutos da terra, o último, fruto do comércio

atlântico845

. Segundo a lista das naus estrangeiras visitadas em Faro, durante o ano de 1627,

entraram no porto os navios A Fortuna, cujo mestre era “Armao Cropier”, S. Pedro e Leão

Roxo, todos oriundos de Danzig (Gdańsk). Ora, tratar-se-iam das mesmas embarcações que

842

Cf. ANTT, IL, proc. 3205, fl. 4. 843

Cf. Virgínia Rau, Subsídios para o estudo do movimento dos portos de Faro e Lisboa durante o século

XVII. Separata de Anais da Academia Portuguesa de História, 1954. A dita fonte tem a referência: ANTT,

IE, liv. 589. Vide, em anexo, quadro 3, pp. 76-85. 844

Cf. Rau, Subsídios para o estudo..., p. 204. 845

Cf. Wilhelmina Cristina Pietersen e E. M. Koen (eds.), “Notarial records relating to the Portuguese

Jews in Amsterdam up to 1639”, Studia Rosenthaliana, vol. 35, n.º1, 2001.

Page 203: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

203

surgem nos registos de Amesterdão. Chegadas a Faro e dado o contexto político, teriam

ocultado a sua verdadeira origem, ou pelo menos em parte. Harman Krames, capitão do De

Fortuine, era, de facto, de Danzig, apesar da sua embarcação ter partido de Amesterdão.

O negócio do atum

Manuel da Guerra é um dos poucos mareantes cristãos-novos identificados na

documentação. Preso em 1648, possuía apenas uma parte ínfima de sangue hebraico e

chegou mesmo a levantar dúvidas sobre a sua “qualidade” – julgava ser cristão-velho. As

contraditas do seu processo ilustram o calendário de quem se dedicava à pesca do atum:

“Provaria que, nos meses de Janeiro e Fevereiro de 1644, 1645 e 1646, residiu o

recusante, Manuel da Guerra, na cidade de Lagos, pescando sempre à linha, por ser

homem do mar, e nos meses de Março de 1644 e 1645 até nos mais meses

seguintes de cada um dos ditos anos até quinze de Abril, andou sempre armejando,

fazendo redes para os atuns, e corvinas, e sardinha na Casa do Corpo Santo, na

cidade de Lagos, e, dos quinze de Abril de cada um dos ditos anos, foi ajudar a

lançar as redes ao mar, donde assistiu na armação de Torralta a Velha até São

Pedro de cada um dos ditos anos.

Provaria que, no fim de Fevereiro e entrada de Março de 1646, residiu ele,

recusante, Manuel da Guerra, na casa das redes da armação da Torraltinha, da

cidade de Lagos, até o fim de Junho, fazendo redes e andando na armação dos

atuns, sem nunca se apartar da dita cidade.”846

No momento em que Manuel da Guerra foi preso, a pesca do atum já não

demonstrava a vitalidade de outrora847

. Aliás, ele próprio referiu não só a pesca do atum,

mas também a da corvina e da sardinha. Em meados de Seiscentos, tornara-se necessário

diversificar as espécies capturadas. Porém, no século anterior, a pesca do atum animava a

economia algarvia e promovia o desenvolvimento doutras indústrias inerentes à

actividade, tais como a construção naval, a cordoagem ou a tanoaria848

. Esse crescimento

da pesca do atum devera-se, essencialmente, à introdução de novos processos de salga,

permitindo uma melhor conservação do peixe e a sua exportação para mercados mais

longínquos849

, e à criação de um organismo centralizador da actividade, as almadravas. A

feitoria das almadravas, sediada em Lagos, fiscalizava a colecta dos direitos reais sobre o

846

Cf. ANTT, IE, proc. 2962, fls. 110v-111. 847

Cf. Romero Magalhães, O Algarve Económico..., pp. 196-201. 848

Cf. Idem, Ibidem, p. 233. 849

Os responsáveis pela divulgação dos novos processos de salga do peixe, ainda no século XV, foram os

mercadores e mareantes italianos, em particular os sicilianos, que por essa altura formavam uma

comunidade com grande peso no Algarve, sobretudo na cidade de Lagos (Cf. Manuel João Paulo Rocha,

Monografia de Lagos, Faro, Algarve em Foco, 1991, p. 43; Carminda Cavaco, O Algarve Oriental..., p.

40; Valdo d‟Arienzo, “No extremo ocidental: privilégios, empreendimentos e investimentos sicilianos no

Algarve”, Ler História, n.º 44, 2003, pp. 191-195).

Page 204: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

204

atum e cedo se tornou num dos principais órgãos da administração régia no Algarve. O

feitor era não só responsável pelo governo das almadravas, como também, enquanto

agente régio, pela defesa e provimento dos estabelecimentos portugueses em África850

.

Ora, tal é demonstrativo do peso da pesca do atum nos cofres da fazenda real. O provedor

das almadravas, coadjuvado pelo recebedor e pelo escrivão, tinha a responsabilidade de

fiscalizar a actividade e, em particular, a cobrança dos direitos régios, que constituíam a

maior percentagem do atum pescado851

. Segundo Frei João de São José, havia anos em

que a pesca do atum rendia mais de 100 mil cruzados à fazenda real852

. Pouco mais de

duas décadas depois, Henrique Fernandes Sarrão apresentava números mais modestos

mas, ainda assim, elevados853

.

Apesar do peso da fiscalidade régia, o atum não deixava de ser um sector capaz de

cativar o investimento privado. Os mandadores arrendavam as armações por altas

quantias mas, mesmo assim, exceptuando quando o sector começou a entrar em crise, os

lucros eram suficientemente aliciantes854

. A abundância da pesca e do comércio do atum

superava os altos direitos pagos à coroa. Afinal, durante o século XVI, Lagos era o

maior centro exportador mundial de conserva de atum855

.

O negócio do atum não passava ao lado dos cristãos-novos. Antes pelo contrário. O

facto da pesca não ser, nem de perto, uma actividade de eleição não impedia que os

negociantes, sobretudo os de maiores cabedais, se dedicassem ao comércio do atum e, em

particular, à sua exportação para os mercados do Levante Mediterrânico e do Norte da

Europa. Cristóvão de Mendonça, nas contraditas do seu processo, referiu os “[...] cristãos

novos de negócio que tratavam em atuns [...]”, os quais, segundo alegava, tentavam

escapar aos direitos régios sobre a mercadoria, “[...] cometendo muitos enganos na

850

Cf. Costa Guedes, Aspectos do Reino..., pp. 174-175. 851

Cf. Calapez Corrêa, A cidade e o termo..., pp. 187-188. Os direitos pagos à fazenda real constituíam 60%

do pescado, enquanto que, nas outras espécies pescadas, a proporção era inversa, ou seja, 6 em 10 peixes

para os armadores e 4 para a coroa (Cf. Sarrão, “História...”, Duas Descrições..., p. 93). Numa carta de 20 de

Janeiro de 1572, D. Jerónimo Osório criticava o peso excessivo dos dízimos do atum: “Pois o mar não he

patrimonio e os mariantes poem de sua casa esparto e canhamo, e ferro, e pau, e vinho, e trabalho, e perigo,

e isto sendo o preço de tudo tão diferente do que era no tempo passado, e com tudo pagarem de dez atuns

seis parece mui excessivo tributo.” (Cf. Silva Lopes, Corografia ou Memoria..., p. 653). 852

Cf. São José, “Corografia...”, Duas Descrições..., p. 122. 853

“As almadravas rendem ordinariamente cada‟ano cinquenta mil cruzados mais ou menos para el-rei,

com pouca despesa. Não é de maravilhar a riqueza do Oriente, mas muito de louvar haver no Ocidente

mar tão rico [...]” (Cf. Sarrão, “História...”, Duas Descrições..., p. 146). 854

Cf. Calapez Corrêa, A cidade e o termo..., pp. 186-187. 855

Cf. Fernand Braudel e R. Romano, Navires et merchandises à l’entrée du port de Livourne, Paris,

1951, p. 45, apud, Romero Magalhães, Para o estudo do Algarve..., p. 157.

Page 205: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

205

matéria de despacharem os barris [...]”856

. Em Faro, Diogo de Tovar e o sogro Manuel

Mendes do Óculo exportavam atum para os mercados do Levante857

.

Embora já não fosse o seu tempo áureo, o comércio do atum continuava a atrair o

interesse dos mercadores de maior trato, como Fernão Nunes, recebedor das almadravas

de Faro, ou o seu conterrâneo Manuel Henriques, que chegou a desempenhar o cargo de

recebedor da armação de Quarteira durante 14 anos. Em paralelo, Manuel Henriques fora

lançador da finta de 1633 e recebedor dos três por cento da alfândega da cidade858

.

Tal como Manuel Henriques, muitos outros cristãos-novos algarvios equilibravam a

actividade mercantil com contratos de arrendamento promissores de avultados lucros.

Em 1633, três mercadores cristãos-novos de Faro, Pedro Vaz Pinto, Henrique Martins

Correia e Dinis Álvares, eram rendeiros dos almoxarifados do bispo e do cabido e

comenda da cidade de Tavira e seu termo. A 12 de Julho desse ano, através dos seus

representantes em Tavira, Francisco Machado e Henrique Dias arrendaram todo o

dízimo das favas secas e do vinho a Francisco Dias Arrais859

. Mas um dos casos mais

paradigmáticos de contratadores bem sucedidos é o da família Gama, de Loulé.

A evolução de um negócio familiar. Os Gama de Loulé

A família, base da estrutura social e económica, emergia como factor determinante

na definição da actividade profissional. Os laços de parentesco garantiam a confiança e

propiciavam uma diminuição do risco nas transacções comerciais, além da maior

abrangência da tessitura negocial.

Sustentados numa sólida estrutura familiar, em apenas duas gerações, os Gama

evoluíram de um negócio de escala regional para a integração no grande comércio

transatlântico860

. O patriarca, Fernão Soeiro, era filho de um lavrador de Campo de

856

Cf. ANTT, IE, proc. 2699, fl. 300v. 857

Em 1618, por ordem do sogro, Diogo de Tovar fora a Sevilha cobrar uma dívida, no valor de 3.000

cruzados, a um levantisco que embarcara uma partida de barris de atuns. (Cf. ANTT, IE, liv. 227, fl. 360). 858

Cf. ANTT, IE, proc. 8603, fls. 107-113, passim. Vide em anexo, pp. 431-435. 859

Cf. ADF, Cartório Notarial de Tavira, 8-4-155, códice não paginado. No documento não aparece

qualquer referência à qualidade de sangue dos contraentes e também não temos outros dados que nos

permitam identificar se Francisco Dias Arrais era cristão-novo ou cristão-velho. Quanto aos outros

envolvidos no negócio, todos foram fintados em 1631 e Dinis Álvares esteve preso na Inquisição de

Évora (Cf. ANTT, IE, proc. 2969). Pedro Vaz Pinto acabaria por fugir para Castela após este negócio, em

Outubro desse ano (Cf. ANTT, IE, proc. 3997). 860

Vide David Grant Smith, The Mercantile Class of Portugal and Brazil in the Seventeenth Century: a

socioeconomic study of the merchants of Lisbon and Bahia, Ann Arbor, 1985, edição fac-similada, pp.

139-148; Fernanda Olival, As Ordens Militares e o Estado Moderno. Honra, mercê e venalidade em

Portugal (1641-1789), Lisboa, Estar Editora, 2001, pp. 298-305.

Page 206: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

206

Ourique que se tornara tendeiro. Preso a 21 de Agosto de 1629, com 53 anos de idade,

Fernão também possuía uma tenda em Loulé861

. Em simultâneo, chegou a desempenhar o

cargo de tesoureiro dos órfãos, o que lhe valeu o reconhecimento social. Não conversava

“[...] senão com os melhores da terra que, de ordinário, assistiam na sua loja [...]”862

.

A prisão de Fernão Soeiro marcou uma profunda mudança na vida da sua família.

Gradualmente, os Gama abandonaram Loulé. O filho Jorge Lopes da Gama teria sido o

primeiro, já estabelecido em Lisboa na primeira metade da década de 20863

. A mãe, Inês

Nunes da Gama, tardaria a mudar-se. Em 1633, quando o marido ainda se encontrava no

cárcere, ela comprou uma terra com figueiras no sítio de Quartos, termo de Loulé864

.

Possivelmente, não pretendia sair da vila tão cedo. Mas, em 1648, Isabel já se

encontrava a residir em Lisboa, na casa da filha Guiomar Soeira da Gama865

. Um outro

filho, Manuel da Gama de Pádua, circulava correntemente entre a capital e o Algarve.

Entre Maio e Julho de 1633, esteve em Lisboa, onde conseguiu o cargo de tesoureiro da

bula das cruzadas no reino do Algarve, não obstante a prisão do pai. Regressou a Loulé

no início de Setembro de 1633, depois de ter assistido na feira de Beja, onde comprou

cera para vender em Lisboa. Este era o percurso comum na vida profissional de Manuel

da Gama mas também do seu pai – os dois frequentavam as feiras do Alentejo e do

Algarve, onde adquiriam mercadorias que despachavam para Lisboa866

. Em 1637,

Manuel da Gama residia em Lisboa. Porém, os vínculos da familia com a vila de Loulé

não cessaram. Segundo o inventário do processo inquisitorial de Jorge Lopes da Gama,

mais de duas décadas após se ter fixado na capital, ele ainda possuía propriedades na

vila algarvia: um olival, farrageais, duas moradas de casas e celeiros867

.

Preso pela Inquisição de Lisboa em 1637, Manuel da Gama, apresentado como

mercador de sedas, negou todas as acusações e, depois de uma sólida defesa, acabou por

sair no auto-de-fé de 11 de Março de 1640, sentenciado a cárcere ao arbítrio dos

inquisidores868

. A pena leve permitiu-lhe uma recuperação rápida da fortuna perdida.

Aliás, foi a partir da prisão que os seus negócios ganharam um novo fôlego. Do

comércio das sedas passou ao do açúcar, de mercador de loja ascendeu a homem de

861

Cf. ANTT, IE, proc. 6518. 862

Cf. ANTT, IL, proc. 8071, fl. 88v. 863

Em 1626, Jorge Lopes era mordomo da confraria do Santíssimo Sacramento, na Igreja da Madalena

(Cf. ANTT, IL, proc. 7941, fl. 57v). 864

Cf. ADF, 1º Cartório Notarial de Loulé, 1-1-16, fls. 97-99. 865

Cf. ANTT, IL, proc. 7941, fl. 42v. 866

Cf. ANTT, IL, proc. 8071, fls. 64-65. 867

Cf. ANTT, IL, proc. 7941, fl. 28. 868

Cf. ANTT, IL, proc. 8071, fls. 191-191v.

Page 207: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

207

negócio integrado no grande comércio internacional. Entre os anos de 1648 e 1652,

desempenhou o cargo de tesoureiro-geral dos quintos dos direitos dos açúcares que se

despachavam nas alfândegas do reino e das ilhas869

. Entretanto, integrou o grupo de 16

investidores na fundação da Companhia Geral do Comércio do Brasil. Tal como outros

contratadores cristãos-novos, Manuel da Gama teria sido aliciado pela promessa de

isenção de confisco de bens no caso de processo inquisitorial870

.

O alargamento dos negócios fora indelevelmente influenciado pela rede familiar. O

tio Francisco Lopes Soeiro e dois primos (Simão Pereira de Azevedo e José de

Azevedo) na Bahia, o tio Simão Soeiro em Granada e um outro, António da Gama, nas

Índias de Castela, além doutros parentes emigrados em Castela, seriam contactos

privilegiados, estantes em pontos centrais do comércio transatlântico. Já depois de

reconciliado, Manuel da Gama casou-se com Inácia de Sequeira, filha de Diogo

Fernandes de Sequeira, importante contratador de Lisboa e, no passado, parceiro de

Fernão Soeiro no negócio do atum871

. O irmão Jorge Lopes também tinha no cunhado,

António Dias Henriques (irmão da sua mulher Isabel Henriques), um dos seus principais

sócios872

. O casamento das irmãs determinou igualmente a ascensão social e económica

da família: Leonor da Gama casou com o Dr. Diogo Fernandes Henriques, advogado da

Casa da Suplicação; Maria da Gama, com Gregório Dias, mercador; Inês da Gama com

Jorge Lopes Simões, negociante de ferro; e Guiomar Soeiro da Gama com Manuel

Rodrigues da Costa, sócio dos cunhados nos contratos com a coroa873

.

Além dos laços familiares, Manuel da Gama e o irmão Jorge Lopes passaram a

integrar a elite mercantil de Lisboa, aproximando-se de grandes mercadores como os

irmãos Jorge Dias Brandão e Rodrigo Aires Brandão, António Rodrigues Mogadouro e

Duarte da Silva874

. Este último, em Dezembro de 1647, foi preso pela Inquisição de

Lisboa, arrastando atrás de si parte dessa elite875

. Manuel da Gama salvou-se de uma

869

Cf. ANTT, Chancelaria de D. João IV. Doações, Ofícios e Mercês, liv. 25, fl. 113v. 870

Vide em anexo, pp. 463-468. Sobre a constituição da Companhia Geral do Comércio do Brasil, vide

Leonor Freire Costa, O transporte no Atlântico e a Companhia Geral do Comércio do Brasil (1580-

1663), Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2002. 871

Cf. “Sequeira, Diogo Fernandes de”, Dicionário Histórico dos Sefarditas..., p. 632. 872

Cf. Smith, The Mercantile Class..., p. 142. 873

Cf. ANTT, IL, proc. 7941, fls. 44-45. Cf. Smith, The Mercantile Class..., p. 144. 874

Cf. Alberto Dines, Vínculos do fogo. Antônio José da Silva, o Judeu e outras histórias da Inquisição

em Portugal, São Paulo, Editora Schwarcz, 1992, pp. 277, passim. Vide também as biografias destes

mercadores em Dicionário Histórico dos Sefarditas..., pp. 105-111, passim. 875

Vide Leonor Freire da Costa, “Elite mercantil na Restauração: para uma releitura”, Optima Pars. Elites

Ibero-Americanas do Antigo Regime. Org. Nuno G. F. Monteiro, Pedro Cardim e Mafalda Soares da

Cunha, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2005, pp. 99-131.

Page 208: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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nova prisão, mas o irmão não. A 8 de Janeiro de 1648, Jorge Lopes da Gama entrava

nos cárceres inquisitoriais.

O seu processo revela um lato espectro de negócios – mercador de sedas, negociante

de açúcar, contratador876

. Em 1645, participara do contrato de provimento de cereais ao

exército das fronteiras do Alentejo, em sociedade com outros mercadores, entre os quais

Cristóvão Rodrigues Marques e os irmãos Gaspar e Manuel Malheiro, cristãos-

velhos877

. Um dos seus principais parceiros de negócio era o irmão mais novo, António

da Gama Nunes, o qual também investiu avultados capitais na Companhia Geral do

Comércio do Brasil878

. No inventário do processo de Jorge Lopes da Gama, são várias

as referências à parceria mantida com o irmão que, havia pouco mais de um ano,

chegara do Rio de Janeiro. Em 1647, já em Portugal, António da Gama preparava o

casamento com a sobrinha Inês da Gama, filha de Jorge Lopes879

.

A prisão do irmão não terá abalado a carreira de Manuel da Gama, nem a sua

posição perante a coroa. Aliás, corria o rumor de que ele próprio interviera junto das

autoridades para minorar o cárcere do irmão em tempo e rigor da sentença – Jorge

Lopes saíra no auto de 10 de Julho de 1650, onde abjurou de levi e lhe foi sentenciado

cárcere ao arbítrio dos inquisidores. Nesse mesmo ano, Manuel da Gama obteve o

assento da palha do Alentejo, ao lado do outro irmão, António da Gama, e do cunhado

Manuel Rodrigues da Costa. Com os mesmos sócios, tomou metade do contrato para o

pagamento dos exércitos de todas as fronteiras do reino, dois anos depois. Continuou,

então, a destacar-se nos contratos de provimento dos exércitos, enriquecendo à custa das

necessidades militares da coroa. Acumulava esses contratos com o ofício de tesoureiro

da alfândega de Lisboa, do qual tomou posse a 1 de Janeiro de 1655, depois do

pagamento de 20.000 cruzados à fazenda real880

.

A fortuna trouxe-lhe o reconhecimento social, apesar do sangue hebraico que lhe

corria nas veias e do passado manchado por um processo inquisitorial. Em 1652, D. João

IV concedeu-lhe o foro de fidalgo, em recompensa pelos serviços prestados à coroa. Seis

876

Cf. ANTT, IL, proc. 7911. 877

Cf. ANTT, Chancelaria de D. João IV. Doações, Ofícios e Mercês, liv. 18, fls. 168v-169. 878

António da Gama Nunes entrou na Companhia Geral do Comércio do Brasil com 1.600 mil réis. Os

seus herdeiros acabaram por trespassar este valor à fazenda real, sendo-lhes passado um padrão de juro de

80 mil réis anuais. Ainda em vida, António da Gama comprara um padrão no valor de 200 mil réis sobre

o estanco do tabaco (Cf. ANTT, Chancelaria de D. Afonso VI. Doações, Ofícios e Mercês, liv. 2, fls. 153-

154; liv. 6, fls. 446v-447v; liv. 8, fls. 70v-72). 879

Cf. ANTT, IL, proc. 7941, fl. 29. 880

Cf. ANTT, Registo Geral de Mercês, Mercês da Torre do Tombo, liv. 22, fl. 493v. Em 1658, a

serventia do cargo foi prolongada por mais 3 anos, até 1660 (Cf. ANTT, Chancelaria de D. Afonso VI.

Doações, Ofícios e Mercês, liv. 23, fl. 56v).

Page 209: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

209

anos depois, Manuel da Gama tentou a habilitação à Ordem de Cristo881

. Uma dispensa

papal para os seus “defeitos de sangue” possibilitou-lhe a obtenção do hábito logo no ano

seguinte, tal como a comenda de S. Francisco da Ponte de Sôr882

. Anos depois, em 1673,

Manuel da Gama foi um dos três mercadores que propôs ao rei a criação da nova

Companhia Portuguesa das Índias Orientais, em troca da promulgação do perdão geral.

Esta foi a sua última luta. Já bastante idoso, viajou até Roma para negociar o perdão geral

e denunciar os abusos cometidos pela Inquisição. Ainda antes de concluídas as

negociações, encontrou a morte, no ano de 1679.

Os mesteres

Regressando aos números, os mesteirais cristãos-novos referidos na documentação

consultada distribuíam-se da seguinte forma:

Sapateiros 35%

Alfaiates 20%

Sirgueiros 9%

Ourives 9%

Tosadores 8%

Ferreiros 4%

Surradores 2%

Confeiteiros 2%

Sapateiros, alfaiates, sirgueiros, ourives e tosadores – seriam estes os cinco ofícios

artesanais mais comuns entre os cristãos-novos do Algarve. O que produziam destinava-

se, na sua maioria, aos mercados local e regional. Afinal, as poucas actividades

transformadoras que visavam a exportação quase se resumiam à produção de vinho e de

azeite. Da terra, mas sem necessidade de grande labor, também provinha o esparto e a

palma que, em estado bruto ou transformado através das actividades da cordoagem e

cestaria, eram produtos de exportação883

. Porém, não são particularmente significativas

881

Cf. ANTT, Habilitações da Ordem de Cristo, letra M, mç. 42, doc. 30. Vide em anexo, p. 462. 882

Cf. ANTT, Chancelaria da Ordem de Cristo, liv. 50, fl. 338; liv. 51, fls. 106-106v, 119-119v, 152v,

175. Após a morte de Manuel da Gama de Pádua, a comenda de S. Francisco de Ponte de Sôr passou a

pertencer ao seu filho António da Gama de Pádua (Cf. ANTT, Chancelaria da Ordem de Cristo, liv. 18, fl.

244v). Sobre a habilitação e concessão do hábito da Ordem de Cristo a Manuel da Gama de Pádua, vide

Olival, As Ordens Militares..., pp. 299-300. 883

Cf. Romero Magalhães, Para o estudo do Algarve..., pp. 174-175. Os mercadores usavam as obras

feitas em esparto (alcofas, esteiras, cestas) no transporte de mercadorias. Em 1597, Simão Álvares

recordava como, anos antes, tinha ido à aldeia de Pêra “buscar empreita para enseirar o figo”, ou seja,

buscar esparto para fazer as seiras para transportar o figo (Cf. ANTT, IE, proc. 8928 (denúncia no

processo da irmã Violante Quaresma)).

Page 210: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

210

as referências a cristãos-novos cordoeiros, cesteiros ou sombreireiros no Algarve.

Constituíam trabalhos efectuados, muitas vezes, em complemento doutras actividades.

O esparto e a palma cresciam espontaneamente em terrenos incultos e a sua colheita e

trabalho integrava a rotina das actividades agrícolas, associados à vindima e ao alacil do

figo e, com frequência, vinculados aos lavores femininos884

.

A manufactura têxtil limitava-se, praticamente, ao consumo doméstico. Tal não se

devia à escassez de matéria-prima, pois cultivava-se linho um pouco por toda a parte e,

na serra, abundava o gado ovino. Porém, a qualidade dos produtos era inferior à dos

panos importados da Flandres, Inglaterra, França e Castela885

. Os tosadores e sirgueiros

destinavam a sua produção às franjas mais pobres da população, sem recursos para

comprar os têxteis importados, bem mais caros do que os produzidos localmente.

A estreita relação entre os cristãos-novos e os ofícios de sapateiro e de alfaiate era

comum a outras comunidades886

. No Algarve, eram ofícios que registavam uma fraca

especialização. Veja-se o caso de João Lopes, sapateiro nas alcaçarias de Faro, em

meados do século XVI. Das três casas onde trabalhava, uma destinava-se aos banhos

para curtir as peles e outra à mó que triturava as cascas para o tratamento dos couros.

Frequentavam-nas outros sapateiros da cidade que ali iam preparar a matéria-prima para

as suas obras887

.

Quase um século depois, encontramos em Faro outros dois sapateiros cristãos-novos

também reconhecidos como curtidores – Baltazar Fernandes e Simão Rodrigues888

. Este

último, por volta de 1628, vivia com o sobrinho António Fernandes, mercador que

comerciava couros. Pouco depois, seguiu para Huelva, onde já residia em 1636889

. A

continuidade profissional no interior da família é mais flagrante no caso de Baltazar

884

Relativamente ao trabalho da palma, refere João Baptista da Silva Lopes: “Todo o trabalho he feito por

mulheres: ellas a vão colher no mais intenso calor de Verão; ellas a lanção ao sol, e sem mais preparo fazem

as vassouras; elas a preparão lavando e dando-lhe fumo de enxofre para fazerem as outras obras, como

condeças, esteiras, capachos redondos, golpelhas, alcofas, e a consideravel quantidade de seiras, em que se

mette todo o figo e passa de uva que se exporta: ellas ainda tingem alguma de preto e encarnado, com que

bordão e matizão aquellas obras, às quaes dão bonitos lavores: com a empreita mais estreita, e fina fazem

chapéos de que até algumas senhoras usão [...]” (Cf. Silva Lopes, Corografia ou Memoria..., p. 151). 885

Cf. Romero Magalhães, O Algarve Económico..., pp. 218-219. 886

Juan Gil também concluiu que, entre os conversos penitenciados pela Inquisição de Sevilha, os ofícios

mais comuns eram os alfaiates (13,3%) e os sapateiros (11,3%) (Cf. Gil, Conversos y la Inquisición

Sevillana..., p. 73). Relativamente a Elvas, durante o reinado de D. João IV, Maria Teixeira Pinto divide os

artesãos cristãos-novos em dois grupos: um constituído por sapateiros e curtidores, e um outro por alfaiates e

sirgueiros (Cf. Teixeira Pinto, Os Cristãos-Novos de Elvas..., p. 537). Segundo o estudo de Aida Carvalho,

os sapateiros também dominariam o cenário profissional dos cristãos-novos de Vila Nova de Foz Côa nos

séculos XVII e XVIII (Cf. Aida Carvalho, A comunidade cristã-nova de Vila Nova de Foz Côa..., p. 42). 887

Cf. ANTT, IE, proc. 9411, fls. 7-8. 888

Cf. ANTT, IE, proc. 329; proc. 462, fl. 20; proc. 756, fl. 26v. 889

Cf. ANTT, IE, proc. 1833, fl. 36v.

Page 211: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

211

Fernandes. O ofício de sapateiro era comum a boa parte dos elementos masculinos da

família: o irmão Manuel Gomes; o sogro Diogo Pires; o cunhado Luís Pestana; os

sobrinhos Francisco, Manuel e Sebastião Pestana; os filhos Brás das Candeias, Diogo

Pires e João Nunes890

. No seu dia-a-dia, as relações sociais também se desenvolviam

dentro de um círculo onde predominavam os sapateiros, os surradores e os curtidores.

Baltazar Fernandes e os filhos eram próximos dos Guterres, uma outra família de

sapateiros891

. Um dos filhos de Baltazar, Brás das Candeias, era amigo de João Fernandes,

um jovem surrador de Faro892

, cuja família revelava a mesma uniformidade profissional:

o irmão Manuel Gomes, o cunhado Vicente Ferreira, o pai Gabriel Gomes, os tios Luís

Fernandes e Tomás Fernandes e o avô paterno João Fernandes eram todos surradores893

.

Frequentavam as casas e as lojas uns dos outros e auxiliavam-se mutuamente no trabalho

dos campos que possuíam no termo da cidade. Os laços profissionais e de amizade

constituíam um aval de fiabilidade que não se espelhava apenas nos negócios, como

também na comunicação da fé interdita. A prisão de João Fernandes Guterres, em Março

de 1635, acabou por criar um efeito bola de neve e, nos anos seguintes, os cárceres da

Inquisição de Évora encheram-se de elementos destas três famílias.

A concentração dos ofícios sentia-se até na geografia das cidades e vilas. Em Tavira,

nas décadas de 20 e 30 do século XVII, perto da Porta de São Brás, residiam, nada mais,

nada menos, que 7 sapateiros894

. O nome de algumas ruas, só por si, indicava o mester ali

dominante: em Faro, havia a Rua dos Surradores, onde vivia a família de João Fernandes;

em Lagos, a Rua dos Ferreiros e a Rua dos Sombreireiros; em Vila Nova de Portimão, a

Rua dos Ourives. Ali, cristãos-novos e cristãos-velhos viviam porta a porta, partilhando e

concorrendo nos mesmos ofícios. À relação profissional sucediam os vínculos parentais.

Manuel Rodrigues, correeiro de Faro, era casado com uma cristã-velha, Maria Jorge, irmã

de José Dias, sapateiro e curtidor, e de Manuel Jorge, correeiro. Deste enlace, nasceram 6

filhos, entre eles: João Rodrigues, que iniciou a sua carreira como sapateiro antes de se

tornar mareante; Gaspar Rodrigues, correeiro; e Filipa Rodrigues, que se casou com um

coureiro cristão-velho, Nicolau Antunes895

. Coureiros, curtidores, sapateiros e correeiros,

890

Cf. ANTT, IE, proc. 4446, fls. 1v-3; proc. 6209, fls. 7-8v. 891

Eram-no Luís Guterres, dois dos seus tios paternos, Jerónimo e João Fernandes Guterres, e um

cunhado Francisco Pestana (Cf. ANTT, IE, proc. 5496, fls. 9-10v, 14v). 892

Cf. ANTT, IE, proc. 6209, fls. 2v-3. 893

Cf. ANTT, IE, proc. 5495, fls. 5-6; proc. 3559, fl. 4-5. 894

Eram eles: António Dias (Cf. ANTT, IE, proc. 7653); Domingos Gonçalves, Sebastião Gomes e

Francisco Rodrigues (Cf. ANTT, IE, proc. 4154, fls. 58v-59v); e Pedro Dias, Gaspar Rodrigues e Gabriel

Gomes, os três processados pela Inquisição de Évora (Cf. ANTT, IE, procs. 1834, 3557 e 3624). 895

Cf. ANTT, IE, proc. 10967, fls. 45-45v; proc. 756, fls. 1v-2v; proc. 627, fls. 8v-9.

Page 212: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

212

os Rodrigues eram uma família em que as actividades dos seus membros se conjugavam

harmoniosamente, influenciando os laços matrimoniais estabelecidos nas sucessivas

gerações. Os interesses profissionais parecem sobrepor-se à qualidade do sangue. Mas

sobre isso falaremos num capítulo adiante.

O trabalho da terra

Questionado pelos inquisidores se, no tempo em que andara a comerciar no termo

de Vila Nova de Portimão, tinha guardado os sábados na companhia de alguém,

Francisco da Gama disse que não, “[...] porquanto, nos ditos montes, não havia senão

lavradores e não cristãos-novos [...]”896

. Disse-o em 1560, na mesma altura em que

outros cristãos-novos de Vila Nova de Portimão, Lagos e Tavira, que povoavam os

cárceres da Inquisição de Lisboa, confessavam ter comunicado a sua fé secreta em

hortas, figueirais ou vinhas, próprias ou de amigos ou familiares897

.

Quase todos os cristãos-novos, com possibilidades para tal, detinham a sua vinha, o

seu olival ou o seu figueiral no termo. Porém, raramente aparecem mencionados como

lavradores. A actividade agrícola surgia como um complemento ao sustento familiar e

não como ofício principal. Encontramos algumas excepções com o avançar do século

XVII, em particular nos termos das cidades e em determinadas localidades mais

vinculadas à produção agrícola. Porém, esses cristãos-novos que tinham na agricultura a

sua principal actividade eram, maioritariamente, filhos de uniões mistas, sobretudo de

mãe cristã-nova e de pai cristão-velho, que herdavam do progenitor a terra e o estatuto

sócio-profissional. Portanto, a incompatibilidade entre os termos “lavrador” e “cristão-

novo”, alegada por Francisco da Gama, se já era redutora para o Algarve de meados do

século XVI, perderia ainda mais o sentido ao longo da centúria seguinte.

O vínculo dos cristãos-novos à terra evoluíu ao longo do período estudado. Na

década de 60 do século XVI, encontramos registos dispersos desse vínculo. Porém,

estes multiplicam-se na documentação referente à entrada da inquisição no Algarve no

final da centúria. Recordemo-nos que, na sequência da peste de 1580, muitos se

896

Cf. ANTT, IL, proc. 12032, fls. 17v-18. 897

Eram os casos, por exemplo, de Beatriz Gonçalves, de Vila Nova de Portimão, que costumava ir a

Alcantarilha, à apanha do figo, por altura em que se guardava o jejum do Quipur (Cf. ANTT, IL, proc.

13285, fl. 8v), ou de Duarte Álvares, mercador de Lagos, que tinha uma horta no termo, onde recebia

outros cristãos-novos com quem comunicava a crença na lei de Moisés, segundo alega o seu colega Diogo

Gonçalves (Cf. ANTT, IL, proc. 3825, fl. 8v).

Page 213: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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refugiaram nos campos, enquanto as cidades eram assoladas com maior violência.

Passado o flagelo, os campos continuaram a ser um espaço de convívio para os cristãos-

novos que residiam nos espaços urbanos. O movimento era sazonal e particularmente

intenso nos meses de Agosto e Setembro, tempo do alacil e da vindima.

Branca Henriques, de Vila Nova de Portimão, recordou como, em Setembro de

1580, teve muita gente a trabalhar numa vinha que possuía em Alcantarilha898

. Em

Junho, era o tempo das ameixas. A sua cultura aparece associada à da uva. Leonor

Fernandes contou que, pelo São João de 1590, fora à vinha de Simão Álvares colher

ameixas, na companhia doutras 5 mulheres de Vila Nova de Portimão. Eram todas

cristãs-novas e, segundo o testemunho, aproveitaram essa ocasião para comunicar a

crença na Lei de Moisés899

. Viajando no espaço e no tempo, encontramos a mesma

realidade. Paremos nos arredores de Faro, em 1629. Duarte de Orta, mercador de Faro,

tinha em São Bartolomeu de Messines uma quinta. A nora Beatriz Pinta, em Agosto

desse ano, havia lá estado a apanhar “figo verde” com as cunhadas900

. Simão Nunes, o

Sangue de Rei, também ajudara dois filhos de Duarte, Cristóvão e Jorge de Orta, na

colheita do figo e da amêndoa. Eram duas culturas-irmãs – recheava-se o figo seco com

amêndoa ou misturavam-se os dois frutos na confecção dos queijinhos de figo901

.

Em 1610, Duarte Nunes do Leão escrevia que os figos do Algarve, só por si, eram

“[...] bastantes para fartar um mundo [...]” e que “[...] assi como em outras partes os

campos estam semeados de trigo e cevada, assi naquelle reino tudo sam figueiraes, que

são a principal fazenda que os homens alli têm [...]”902

. A cultura do figo exigia muito

trabalho, em particular, a do figo de enxario903

. Colhido entre Julho e Outubro,

dependendo da espécie, só uma pequena parte do figo seguia fresco para o mercado. O

que se destinava à exportação tinha de ser seco. Estendido no almeixar, sobre esteiras de

898

Cf. ANTT, IE, proc. 11315. 899

Cf. ANTT, IE, proc. 10683. 900

Cf. ANTT, IE, proc. 2330, fls. 135v-136. Os “figos verdes” seriam os figos cotéus que, depois de

secos, eram a espécie mais exportada (Cf. Silva Lopes, Corografia ou Memoria..., vol. I, p. 141). 901

Cf. São José, “Corografia...”, Duas Descrições..., p. 113. 902

Cf. Duarte Nunes do Leão, Descrição do Reino..., p. 203. 903

O processo de fecundação do fruto aparece bem descrito nas palavras de Frei João de São José: “A

maneira que têm no tocar é que colhem os figos a umas figueiras que eles procuram ter nas fazendas, e

poucas bastam, porque dão muito e vêm com a sua novidade madura, quando os outros figos estão

pequenos como azeitonas, e os enfiam a três e quatro e um fio de esparto, como ave-marias, e os

penduram pelos raminhos das outras que querem tocar, compassados ao redor [...]. Nestes figos assim

postos, que para outra nenhuma cousa prestam, se criam uns bichinhos, cada um de seu grãozinho, dos

que têm os figos dentro, como milho, e saem pelo olho do figo maduro, a maneira de mosquitos de vinho,

piquenos, e se põem nos olhos dos outros figuinhos que estão pequenos e verdes e os tocam. A maneira

que nisto têm não o alcancei, porque é um segredo maravilhoso da natureza [...]” (Cf. São José,

“Corografia...”, Duas Descrições..., p. 111).

Page 214: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

214

esparto que todos os dias eram enroladas para o fruto não apanhar a humidade da noite,

o figo era seleccionado: o maior (“comadre”) e o médio (“marchante”) reservava-se ao

comércio, enquanto que o mais miúdo, o “figo chocho”, se destinava ao consumo dos

animais e dos servidores. Depois de seco, o figo era pisado, para “não lhe entrar bicho”,

e guardado em barris e cunhetes904

.

Era um trabalho feito a várias mãos. Na altura do alacil, parentes e amigos reuniam-

se nos figueirais para ajudar na colheita. Porém, desse esforço não resultava grandes

ganhos. Frei João de São José revela que “[...] os algarvios, que só nelas tratam, poucos

deles são ricos [...]”905

. Não obstante, continuava a ser um dos principais produtos de

exportação do Algarve.

Como os lucros auferidos não eram particularmente avultados, a maioria dos

agricultores acumulava a cultura da figueira com outras produções, nomeadamente a

vinha e a oliveira906

. Particularmente florescente nos termos de Lagos, Vila Nova de

Portimão e Silves, a produção vinícola contava com uma já longa tradição. A fama dos

vinhos algarvios remontava à Idade Média, considerados uma das maiores riquezas da

região907

. O tempo da vindima chegava a coincidir com a colheita do figo e o processo

também era similar. Tal como o figo, estendiam-se as uvas no almeixar após a

vindima908

. Durante 12 ou 13 dias, ali ficavam ao sol, aspergidas à noite com um pouco

de água, antes de serem levadas para o lagar909

. Outra parte das uvas, sobretudo as da

casta assaria (salira), era deixada a secar910

. A passa marcava presença na dieta dos

algarvios, mas uma boa parte da produção destinava-se ao mercado e, em particular, ao

mercado externo. Apesar do volume de negócios não se comparar com o do figo, a

passa constituía uma mercadoria com maior potencialidade de lucro. A sua produção era

mais simples e o seu preço chegava a ultrapassar o dobro do valor do figo911

.

904

Cf. Idem, Ibidem, pp. 112-113. 905

Cf. Idem, Ibidem, p. 110. 906

Cf. Romero Magalhães, O Algarve Económico..., p. 161. 907

Vide Alberto Iria, O Vinho no Algarve Medieval (Subsídios para a sua História). Separata de O Vinho

na História Portuguesa – Sécs. XIII-XIX, Porto, 1983. 908

Branca Henriques, de Vila Nova de Portimão, também referiu esse processo, dizendo que, na dita

vinha em Alcantarilha, também estendera as uvas no almeixar (Cf. ANTT, IE, proc. 11315). 909

Cf. São José, “Corografia...”, Duas Descrições..., pp. 118-119. 910

Sobre a secagem da uva, refere Frei João de São José: “[...] a mestria que lhe fazem não é outra senão

colhê-las como são maduras, e deitá-las a secar nuns terreiros, que fazem nas mesmas vinhas, sobre a

terra estendidas, à maneira de canteiros, por terem depois lugar de as virar e tomar o sol d‟ambas as

bandas e é bom cobri-las de noite por causa do orvalho que lhe faz mal.” (Cf. Idem, Ibidem, p. 118). 911

Cf. Romero Magalhães, O Algarve Económico..., p. 170.

Page 215: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

215

Quanto à oliveira, enxertada em zambujeiros, crescia um pouco por toda a região912

.

Em Dezembro, fazia-se a apanha da azeitona, um trabalho que, tal como o alacil e a

vindima, reunia grupos mais ou menos extensos de pessoas. Normalmente, a oliveira não

era varejada – deixava-se a azeitona cair por si, sendo depois apanhada do chão. Só em

anos de seca, quando a chuva não propiciava o processo, é que o fruto era colhido na

árvore. À apanha seguia-se o tratamento da azeitona, ou conservada em pipas, ou

destinada ao fabrico de azeite913

. O termo de Loulé seria particularmente rico no cultivo

da azeitona. Na documentação proliferam as referências a olivais nos sítios de Santa

Luzia, Betunes, Vale de Rãs e Franqueada. Alguns eram propriedade de cristãos-novos914

.

O trabalho agrícola estava enraizado no quotidiano da gente de nação. O momento

do alacil e da vindima coincidia com o da celebração do jejum do Quipur. A

terminologia traça essa correspondência. Perante os inquisidores, muitos confessaram

ter guardado o jejum no tempo “das uvas” ou “dos marmelos”, ou mesmo no “tempo em

que recheiam os figos”915

. Os ritmos da terra identificavam os tempos da fé.

Médicos, cirurgiões e boticários

A 9 de Setembro de 1633, Pedro Gomes, filho de Branca Dias, foi examinado por

Diogo Dias, médico, e Manuel Luís, também médico e perito em cirurgia, os quais

comprovaram que o rapaz tinha sido circuncidado. Quase não houve escolha na

selecção dos examinadores “[...] por não haver nesta dita cidade mais outros médicos

que eles cristãos-velhos, nem cirurgião algum que o seja [...]”916

.

O caso de Faro, em 1633, não é extraordinário. Anos depois, nas cortes de 1641, os

representantes do povo solicitavam que os médicos passassem a receitar “as medicinas”

para os boticários apenas em português, de modo a serem facilmente entendidas por todos

“por quanto a mayor parte dos medicos, & boticarios, & cirurgiões são Christãos novos,

& também de pouca sciencia (como he notorio), & corre grande perigo em seu poder as

912

Cf. Idem, Ibidem, p. 170. 913

Cf. São José, “Corografia...”, Duas Descrições..., pp. 115-117. 914

Em 1632, Fernão Martins, mercador cristão-novo, residente em Loulé, vendeu um olival e uma terra

de pão, no sítio de Vale de Rãs, a João Moreira Palença, cristão-velho, por 25 mil réis (Cf. ADF, 1º

Cartório Notarial de Loulé, 1-1-16, fls. 38v-42). Vejam-se mais exemplos nos processos de Margarida de

Jesus e de Branca Dias, cristãs-novas de Loulé (Cf. ANTT, IE, proc. 4650, fl. 33v; proc. 6727, fl. 32). 915

Cf. ANTT, IL, proc. 10041, fl. 17; proc. 12483, fl. 27. 916

Cf. ANTT, IE, proc. 3739, fl. 33.

Page 216: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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vidas das gentes do Povo”917

. É, assim, revelador o desconforto dos cristãos-velhos ao

verem as suas vidas nas mãos de médicos, cirurgiões e boticários cristãos-novos918

.

O desconforto aumentava quando às origens acresciam as suspeitas de Judaísmo. O

Dr. Pedro Amado, reconciliado com cárcere e hábito penitencial perpétuo no auto-de-fé

celebrado em Évora a 14 de Junho de 1637, foi proibido de voltar a exercer, mesmo

depois de levantada a penitência. Afinal, por carta de 1633, era interdito o exercício da

Medicina a todos os cristãos-novos que tivessem sido presos pela Inquisição. À revelia

de tais estipulações e tendo regressado a Silves, Pedro Amado continuou a prestar

serviços como médico. As queixas não tardaram:

“Dizem Manuel d‟Oliveira Monteiro, o Licenciado António d‟Arez Monteiro,

Pero Taborda e Mateus de Mesquita, capitão de infantaria, e mais moradores da

cidade de Silves e seu termo, do Reino do Algarve, que Pero Amado cura de

medicina na dita cidade e seu termo, não o podendo fazer porque foi preso por

mandado do Santo Ofício da cidade de Évora e saiu penitenciado por ser convicto e

porque os ditos moradores não têm segurança nas curas que o dito Pero Amado faz

e estão arriscados com ele a brigas e diferenças e ao matarem, o que se pode evitar,

sendo-lhe mandado que não cure na dita cidade e seu termo, além de lhe ser

proibido por ser convicto e penitenciado.”919

A 27 de Março de 1642, a Inquisição de Évora notificava Pedro Amado para que

não voltasse exercer. Porém, não sabemos até que ponto ele cumpriu a ordem.

No caso dos boticários, em quem residia o conhecimento das drogas que

propiciavam a cura mas também a morte, as desconfianças tiveram voz desde cedo. Não

muitos anos depois da conversão geral, nas cortes de 1525, foram apresentadas petições

para a interdição do ofício a cristãos-novos. Em 1565, os cristãos-novos ficaram

proibidos de aprender nas boticas de Lisboa. Tal não surtiu efeito. A inquirição da

qualidade de sangue do aprendiz nunca chegou a ser uma preocupação premente do

mestre boticário920

.

917

Cf. Capitulos Gerais apresentados a El Rey D. Ioão ... nas cortes celebradas em Lisboa com os tres

Estados em 28 de Ianeiro de 1641..., Lisboa, Paulo Craesbeeck, 1645, cap. XXXXII (Povos), p. 14. 918

Em meados do século XVI, circulou uma carta alertando para tal “perigo”. Nela, entre outras

acusações, referiam-se casos em que médicos, cirurgiões e boticários cristãos-novos provocaram

voluntariamente a morte dos seus pacientes cristãos-velhos. (Cf. Maria Benedita Araújo, “Os médicos

portugueses e a Inquisição de Évora”, Universidade(s). História, Memória, Perspectivas. Actas do

Congresso “História da Universidade” (no 7º Centenário da sua Fundação). 5 a 9 de Março de 1990,

Coimbra, Comissão Organizadora do Congresso “História da Universidade”, 1991, pp. 274-275). 919

Cf. ANTT, IE, proc. 1833, fl. 62. 920

Cf. José Pedro Sousa Dias, Droguistas, boticários e segredistas. Ciência e sociedade na produção de

medicamentos na Lisboa de Setecentos, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian / Fundação para a Ciência

e Tecnologia, 2007, p. 225.

Page 217: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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Para exercer legalmente o seu ofício, o boticário era obrigado a apresentar uma

certificação oficial, a carta de boticário921

. A sua obtenção dependia de um exame, ao

qual o aprendiz se sujeitava após 4 ou mais anos de aprendizagem nas boticas, junto de

um mestre que lhe conferia, além do ensino, alimentação e alojamento922

. Os cirurgiões

também aprendiam o ofício com um mestre, antes de se sujeitarem à aprovação do

cirurgião-mor923

. Só com a carta de cirurgia é que podiam exercer legalmente. Em 1559,

um alvará régio determinou que todos os aprendizes de cirurgião candidatos a exame

tinham de frequentar o Hospital de Todos os Santos por um período mínimo de 2

anos924

. Mesmo assim, a figura do mestre, que incutia os primeiros conhecimentos do

oficio, não desaparecera. Por vezes, este era o próprio pai. Veja-se o exemplo de Mestre

Simão, cirurgião natural de Tavira, neto, filho e irmão de cirurgiões925

.

Mas esta não seria uma carreira particularmente gratificante em termos financeiros.

Era-o bem menos do que a de médico. Em Lagos, quando o rei consignou, em 1624, a

obrigação de haver na cidade um médico e um cirurgião para o tratamento dos doentes

pobres, a discrepância entre as remunerações dos dois era acentuada: o médico ganharia

30 mil réis por ano, enquanto que o cirurgião ficar-se-ia pelos 10 mil réis926

.

Na finta de 1606 sobre os cristãos-novos de Tavira, os dois cirurgiões fintados,

João Gonçalves e Gaspar Mendes, desembolsaram, respectivamente, 600 réis e 300

réis, quantias módicas quando comparadas com os valores pagos por grande parte

dos mercadores ou até pelos dois boticários que constam do rol, cujas fintas

superaram o milhar927

.

Assim, alguns cirurgiões eram obrigados a acumular o ofício com outras actividades

para garantirem o seu sustento. Em meados de Quinhentos, Mestre Francisco alegava

que “[...] é cirurgião e dos melhores daquela terra [Faro] e outrossim trata em

921

Cf. Isabel Mendes Drumond Braga, “A saúde pública e os seus agentes em Portugal: o caso dos

boticários (1521-1557)”, Asclepio. Revista de Historia de la Medicina y de la Ciencia, vol. XLVI, fasc. 2,

1994, pp. 59-78. A autora analisou as cartas de boticário atribuídas durante o reinado de D. João III.

Relativamente ao Algarve, foram passadas doze cartas: oito para boticários de Tavira, três para Faro e

uma para Vila Nova de Portimão. 922

Cf. Sousa Dias, Droguistas..., p. 221-223. 923

O regimento do cirurgião-mor, em 1448, determinou que todos os candidatos ao ofício de cirurgia

tinham de se submeter a exame perante o cirurgião-mor, o qual também ficou com a incumbência de

inspeccionar o cumprimento desta determinação e de penalizar os que exerciam o ofício sem a devida

carta de cirurgia. (Cf. F. A. Gonçalves Ferreira, História da saúde e dos serviços de saúde em Portugal,

Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1990, pp. 83-84). 924

Cf. Joaquim Barradas, A arte de sangrar de cirurgiões e barbeiros, Lisboa, Livros Horizonte, 1999,

pp. 173-176. 925

Cf. ANTT, IL, proc. 4510, fls. 14v-15v. 926

Cf. Calapez Corrêa, A cidade e o termo..., p. 281. 927

Cf. ANTT, TSO, mç. 40, doc. 57.

Page 218: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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mercadorias, por se do ofício não poder sustentar [...]”928

. Tal como Mestre Francisco,

conhecemos outros cirurgiões que também se dedicavam ao comércio: Mestre Diogo, de

Lagos929

; Mestre Lopo, de Vila Nova de Portimão, que acabaria por se suicidar nos

cárceres de Évora, em 1560930

; ou Henrique Lopes de Leão, cirurgião e mercador de

loja, citado no rol de 1613 como ausente no Brasil931

.

Os ofícios de boticário, cirurgião e médico encontravam-se intimamente

relacionados. Às vezes confundiam-se, criando tensões. O médico Gaspar Dias, o

Mestre da Mula, teria entrado em querela com um boticário de Faro, Francisco Mendes,

por não lhe remeter as receitas, incumbindo-se ele próprio de preparar e aplicar as

mezinhas aos seus doentes932

.

A convivência no mesmo círculo relacional de boticários, cirurgiões e médicos

facilitava o desempenho dos respectivos ofícios. Esses laços tinham, frequentemente,

uma dimensão familiar. Exemplares eram os casos de João Leitão, médico em Loulé,

filho de Mestre Ricardo, médico e cirurgião, neto de Mestre João, também médico, e

cunhado de Fernão Martins, boticário933

; ou de Mestre Duarte, cirurgião em Tavira,

filho de um outro cirurgião, Gaspar Mendes, irmão de um boticário, João Gonçalves, e

pai de dois cirurgiões, Gaspar Mendes e Bento Duarte934

. Também encontramos

exemplos em que esses vínculos eram bem mais ténues. Baltazar Rodrigues, médico de

Tavira, era filho de um tendeiro e sobrinho de lavradores. Apesar da inexistência de

uma tradição familiar, formou-se em Medicina e um dos irmãos, Gaspar Fernandes, foi

boticário em Sevilha935

. Similar é a situação de Pedro Amado, oriundo de uma família

de sapateiros de Faro mas formado em Medicina na Universidade de Sevilha, cidade

onde vivia um tio paterno, com botica junto à Carneceria Mayor936

.

Pedro Amado formou-se em Sevilha, Baltazar Rodrigues em Salamanca. Ao

longo da documentação, verificamos que mais cristãos-novos do Algarve obtiveram

a sua graduação em universidades castelhanas. Também em Sevilha, Fernão

928

Cf. ANTT, IE, proc. 5718, fl. 7v. Uma carta da Câmara de Faro refere-o como um dos principais

cirurgiões do Algarve (Cf. ANTT, IE, proc. 7914, fls. 55-55v). 929

Cf. ANTT, IE, proc. 375. 930

Cf. ANTT, IL, proc. 2180. 931

Cf. ANTT, TSO, CG, mç. 7, doc. 2618, fl. 2v. Neste documento, Henrique Lopes de Leão é citado

como cirurgião. Porém, nos processos da esposa Catarina Dias e da sogra Beatriz Dias, no início dos anos

90 de Quinhentos, Henrique Lopes aparece referido enquanto mercador de loja (Cf. ANTT, IE, procs.

10494 e 1762). 932

Cf. ANTT, IE, proc. 3563, fl. 77. 933

Cf. ANTT, IE, proc. 2758, fls. 10v-11v. 934

Cf. ANTT, IE, proc. 7053, fls. 1v-4. 935

Cf. ANTT, IL, proc. 4400, fls. 1v, 10v. 936

Cf. ANTT, IE, proc. 1833, fls. 4v, 12v-13.

Page 219: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

219

Gonçalves de Tovar tornou-se bacharel em Cânones937

. Gonçalo Dias frequentou o

mesmo curso em Sevilha, por volta de 1630. Ele tinha iniciado os estudos ainda em

Faro, aprendendo Latim no colégio da Companhia de Jesus. Foi depois para Évora,

estudar Filosofia, e, passados dois anos, seguiu para Ossuna, onde iniciou o curso de

Cânones que continuou em Sevilha. Gonçalo Dias ainda cursou os primeiros dois

anos de Direito na Universidade de Coimbra, mas não chegou a graduar-se938

.

Quanto à Universidade de Salamanca, foi onde Diogo Lopes, deão da Sé de Faro em

1585, se formou em Teologia939

, e onde Nuno da Costa, depois de frequentar a

Universidade de Coimbra, obteve o bacharelato em Cânones, na segunda década de

Seiscentos940

. Pedro Machado, por sua vez, teve um percurso inverso – iniciou os

seus estudos em Salamanca e completou-os, em dois anos, na Universidade de

Coimbra941

. De facto, a Universidade de Salamanca é uma das instituições de ensino

mais citadas pelos réus algarvios. Não deixa de ser curioso, considerando que,

segundo os dados reunidos por Joaquim Veríssimo Serrão sobre os estudantes

portugueses em Salamanca na primeira metade do século XVI, só uma pequena

minoria provinha do Algarve942

.

Com a viragem do século, adensaram-se os apelos à aplicação dos estatutos de

limpeza de sangue na Universidade de Coimbra. O caso do Dr. António Homem

acabou por agravar a situação. Perante tal cenário, muitos foram os cristãos-novos que

optaram por prosseguir os seus estudos fora de Portugal. As universidades castelhanas

e, em particular, a de Salamanca encheram-se de estudantes cristãos-novos

portugueses943

. Frequentar uma universidade fora de Portugal passou a ser um indício

de mácula de sangue944

. A própria qualidade do ensino era questionada. Por alvará de

1608, os graduados no estrangeiro que desejassem exercer Medicina em Portugal

tinham de se sujeitar à aprovação do físico-mor. Havia quem se esquivasse, exercendo

ilegalmente.

937

Cf. ANTT, IE, proc. 3367, fl. 42. 938

Cf. ANTT, IE, proc. 3563, fl. 3. 939

Cf. ANTT, IE, proc. 3205, fls. 130v-131. 940

Cf. ANTT, IL, proc. 11866, fl. 18. 941

Cf. ANTT, IE, liv. 646, fls. 29-31; IE, mç. 23, fl. 100. 942

Cf. Joaquim Veríssimo Serrão, Portugueses no Estudo de Salamanca, Lisboa, Imprensa de Coimbra,

1962, p. 147. O Algarve era a segunda província portuguesa com menor representatividade ao nível da

origem dos alunos. Só a Beira Litoral tinha menos estudantes em Salamanca. O Alentejo e a Beira Interior

eram as principais províncias de origem. 943

Cf. Figueirôa-Rêgo, A honra alheia..., pp. 214-220. 944

Cf. Maria Benedita Araújo, “Os médicos portugueses...”, Universidade(s)..., p. 275.

Page 220: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

220

Possivelmente, foi esta a questão que serviu de pretexto à querela entre dois

médicos de Lagos. Afonso Claveiro, cristão-velho e familiar do Santo Ofício, suscitou

uma demanda contra Fernão Nunes, cristão-novo, por este exercer Medicina

indevidamente. O resultado foi o envio de um precatório a Lagos para a prisão de

Fernão Nunes, o qual nunca chegou a ser executado, por intercessão do governador.

Dizia-se na cidade que Afonso Claveiro não se ficou por ali. Jurou-lhe vingança por

outros meios e “[...] que havia de vender a fazenda e quanta tinha para o perseguir por

que não curasse por todos os tribunais e quando isso não bastasse, o havia de levar pela

Inquisição [...]”945

. Em 1647, por ocasião da afixação nas paredes de Lagos de alguns

papéis pró-judaicos, a convivência entre os dois médicos agravou-se, com trocas de

acusações e aleives946

.

Por detrás da denúncia de Afonso Claveiro estava a rivalidade profissional, muito

comum entre médicos cristãos-novos e cristãos-velhos. A concorrência, o maior

sucesso dos médicos “de nação”, que contavam, como vimos, com uma estrutura

familiar propiciadora do melhor desempenho da sua função, alguns com parentes na

diáspora que lhes transmitiam as mais recentes descobertas científicas, suscitavam aos

cristãos-velhos a necessidade de defenderem os seus interesses947

. Ainda durante o

reinado de D. Sebastião, um alvará determinou que, na Universidade de Coimbra,

passaria a haver permanentemente 30 estudantes cristãos-velhos no curso de

Medicina, a quem seriam entregues 20 mil réis por ano para o seu sustento. Porém, o

alvará não se cumpriu devidamente e, em 1604, D. Filipe II voltou a assinar um

regimento que regulamentou o partido, alargando-o aos que se preparavam para o

ofício de boticário. Assim, determinou que cada aprendiz de boticário havia de receber

16 mil réis anuais por um período máximo de 6 anos, tempo durante o qual

completaria os seus estudos de Latim e a aprendizagem do ofício. Terminados os anos

formativos, os médicos e boticários dos partidos tinham preferência sobre os outros no

acesso à profissão948

.

945

Cf. ANTT, IE, mç. 1, doc. 5, fls. 433-433v, 370-370v, 316v. 946

Vide infra, pp. 308-314. 947

Cf. Maria Benedita Araújo, “Médicos e seus familiares na Inquisição de Évora”, Comunicações

apresentadas ao 1º Congresso Luso-Brasileiro sobre Inquisição, Lisboa, Sociedade Portuguesa de

Estudos do Século XVIII, 1989, pp. 65-66. 948

“E porque tendo passado provisão os anos atraz que está na minha mesa da Consciencia, em favor dos

Medicos Christãos velhos do partido, pera que depois de graduados, e terem sua pratica, elles, e não outro

algum, ajão os partidos das Cidades, Villas, Conselhos, Hospitais e Misericordias, que no Reino ouver: e

tenho informação que os dittos Medicos dão de si boa conta, e há muitos idoneos pelo Reino, e ao diante

averá mais, hei por bem que tambem ajão os partidos da casa da Supplicação e do Porto, e mais

Tribunais, e encomendo aos Prelados e Communidades Ecclesiasticas, que a elles dem os seus partidos.”

Page 221: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

221

Até que ponto esta medida terá contribuído para minorar a concorrência dos

cristãos-novos? Segundo José Pedro Sousa Dias, o número de boticários partidistas em

Lisboa seria insignificante949

. Talvez a mesma realidade se repetisse por todo o reino.

Mas a principal ilação que se pode retirar do dito regimento é a ascendência dos

cristãos-novos no universo dos boticários, médicos e cirurgiões, ao ponto de ser

necessário regulamentar-se uma quota de estudantes cristãos-velhos na Universidade de

Coimbra. Uma ascendência intimidante, “[...] pois na fidelidade delles [boticários]

compondo, e ordenando as mezinhas, como os Medicos receitão, consiste

principalmente a segurança das vidas [...]”950

.

3. FAMÍLIA, SOLIDARIEDADES E QUOTIDIANO

Como identificar um cristão-novo? Conhecendo-lhe os pais e os avós, será, em

princípio, uma tarefa simples. A qualidade do sangue da família corria de boca em boca.

Mas se tal escapava ao juízo “público e notório”, outros indícios havia. Já vimos alguns:

os espaços de residência, o estatuto sócio-profissional. Um outro era a união do grupo.

Os que tentavam fugir à etiqueta “de nação” negavam qualquer contacto com cristãos-

novos, até a partilha do mesmo banco na igreja. Provavam a limpeza do seu sangue,

apontando o marido ou a esposa, cristãos-velhos, ou os filhos, cujos cônjuges não

tinham nesga de sangue hebraico. Os cristãos-novos casavam-se entre si e,

inclusivamente, dentro da própria família. Assim ditava o estigma.

(Cf. “Regimento dos Médicos e Boticarios Christãos Velhos”, in Estatutos da Universidade de

Coimbra..., Coimbra, Officina de Thome Carvalho, 1654, pp. 9-10). 949

Cf. Sousa Dias, Droguistas..., p. 222. 950

Cf. “Regimento dos Médicos...”, Estatutos..., p. 5.

Page 222: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

222

A família cristã-nova. Uma tipologia?

A parcialidade, voluntária ou involuntária, das informações comunicadas pelos réus

perante os inquisidores constitui uma limitação indelével ao uso dos processos

inquisitoriais enquanto fonte para o estudo das estruturas familiares. Pensemos nas

sessões de genealogia. Não seria simples ao réu, depois de sujeito às agruras do cárcere,

recordar-se do nome de todos os tios e primos, ou mesmo dos avós que talvez nunca

chegara a conhecer. Alguns tentariam desvincular-se de determinado parente, já preso

ou mesmo condenado pela Inquisição. Outros esforçavam-se por proteger aqueles que

lhes eram mais próximos e ocultavam o nome de um filho ou diziam desconhecer o seu

paradeiro. Tentar qualquer tipo de datação é um esforço ainda mais inglório. Nem na

própria idade o réu conseguia ser exacto. 20 anos podiam muito bem significar 18 ou

22. Quando começava a enumerar a idade dos seus parentes, maior era a imprecisão. E

nem sempre o fazia inocentemente. Uma mãe poderia atribuir uma idade inferior ao

filho na esperança de salvá-lo do cárcere. Várias outras possibilidades acompanham a

leitura crítica das genealogias dos processos inquisitoriais. Porém, pôr de lado essa

documentação seria deitar fora a criança com a água do banho. A comparação entre

processos de indivíduos da mesma família permite-nos determinar as incoerências e

indagar os dados falaciosos. Conhecendo as circunstâncias da prisão, os parentes

envolvidos, eventualmente as rivalidades familiares expressas (e tantas vezes

hiperbolizadas) nos artigos de contraditas, é possível escavar a fonte até um fundo de

verdade. Ou, pelo menos, andar lá perto. Afinal, os processos inquisitoriais revelam

outras nuances sobre a realidade familiar, nem sempre percepcionáveis em fontes doutra

índole. Nas sessões de confissão, nos artigos de defesa ou em documentos anexados

como prova, encontramos autênticos frames do quotidiano familiar – a mobilidade, a

educação dos filhos, as formas de relacionamento, os conflitos, as rivalidades.

Mas centremo-nos no Algarve. Considerando a situação familiar dos cristãos-novos

processados, é possível retirar algumas ilações951

. Comecemos pelos celibatários. O

número de homens solteiros com mais de 30 anos é pouco significativo. As rés solteiras

tornam-se minoritárias ainda mais cedo: 25% na faixa dos 25-29 anos, 11% na dos 30-

34 e 6% a partir dos 35 anos. A tendência é naturalmente inversa no caso da viuvez. A

percentagem de viúvas processadas pela Inquisição (13%) é substancialmente superior à

951

Foram apenas considerados os cristãos-novos processados pela Inquisição, naturais e residentes no

Algarve, maiores de 15 anos, entre os anos de 1558-1651. Vide, em anexo, gráficos 9.1 e 9.2, p. 110.

Page 223: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

223

registada entre os homens (3%). Mais de 30% das cristãs-novas, com idade superior a

35 anos, que entraram nos cárceres inquisitoriais eram viúvas. A esperança média de

vida feminina mais elevada e a disparidade etária entre os cônjuges contribuíam para a

discrepância entre o número de viúvas e viúvos. Só a partir da faixa dos 25-29 anos é

que o número de homens casados passa a igualar o dos solteiros, enquanto que, no caso

das processadas do sexo feminino com idades compreendidas entre os 20 e os 24 anos,

54% são casadas. Aliás, a percentagem de mulheres casadas entre as rés com menos de

20 anos é significativa: 25%.

Nesta amostra, considerámos apenas os réus com mais de 15 anos. Porém, os

processos revelam casos de mulheres que se casaram ainda antes desta idade. Nem

sequer era raro. Isabel Pinto Raposo tinha 13 anos quando se casou com Diogo de Faria

Moniz. Aos 42 anos, foi presa pela Inquisição. Na genealogia do seu processo

inquisitorial, em 1638, ela enumerou 6 filhos: a mais velha, Catarina, com 20 anos de

idade. Fazendo as contas, Isabel teve esta filha por volta dos 22 anos de idade, ou seja,

quase uma década após o casamento. Tal leva-nos a supôr que, antes de Catarina, teriam

nascido outros filhos que acabaram por não sobreviver952

.

A mortalidade infantil era elevada. Diogo Mendes, o Espada Larga, refere que, do seu

primeiro casamento, nasceram 7 filhos, mas 6 não atingiram os 3 anos de vida953

. Dos 16

filhos que Maria Fernandes deu à luz, só 4 chegaram à idade adulta954

. Nas genealogias

sucedem-se as referências a crianças que encontraram a morte ainda no berço.

Igualmente elevada seria a fertilidade, não obstante as inúmeras variantes. Factores

como a morte precoce do cônjuge, a infertilidade, ou as complicações na sequência dos

partos explicam a existência de muitos casais com poucos filhos ou mesmo sem

nenhum. Mas quando o infortúnio não batia à porta, a regra era uma descendência

numerosa955

. Por sua vez, o intervalo entre nascimentos tendia a ser curto. Branca Dias,

952

Cf. ANTT, IE, proc. 10762, fls. 25 e 90. 953

Cf. ANTT, IE, proc. 6485. 954

Cf. ANTT, IE, proc. 4386, fls. 62-62v. 955

Alguns exemplos: os casais Leonor Quitéria e Francisco Lopes, de Faro; e Margarida Lopes e Jorge

Fernandes, de Lagos, foram pais de 10 filhos cada um (Cf. ANTT, IE, proc. 4504; IL, proc. 11668, fls. 6-

6v). Fernão Mendes e Mor Gomes, residentes em Tavira, tiveram 9 filhos (Cf. ANTT, IL, proc. 5759, fls.

16v-17). Nos três casos, apenas são mencionados os filhos que atingiram a idade adulta. Um dos filhos de

Fernão Mendes e Mor Gomes é Álvaro Mendes, referido no processo do irmão Rui Gomes enquanto

“lapidário em Goa” (Cf. ANTT, IL, proc. 13048), que acabaria por seguir para a Turquia, onde se

converteu ao judaísmo e adoptou o nome de Salomon ibn Ya‟ish (ou Salomon Aben-Ayish). Pelos

serviços diplomáticos prestados ao sultão Murad III, foi agraciado com várias mercês, entre as quais o

arrendamento das alfândegas da ilha de Mytilene. Vide Avram Galante, Don Salomon Aben Yaèce Duc de

Mételin, Constantinopla, Societé Anonyme de Papeterie et d‟Imprimerie (Fr. Haïm), 1936; José Alberto

Tavim: “Conversos: «A península desejada». Reflexões em torno de alguns casos paradigmáticos (séculos

Page 224: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

224

que faleceu com pouco mais de 30 anos, deixou órfãos sete filhos pequenos, todos

nascidos no período de uma década956

. Aldonça Gramaxo, com 19 anos de idade, tinha

já três filhos, o mais velho com 5 anos957

. A irmã Inês Gramaxo, com a mesma idade,

era viúva e mãe de dois filhos. Poucos anos depois, voltou a casar-se, então com Fernão

Álvares Gramaxo, enlace do qual tinham nascido dois filhos à data da sua prisão, em

1586: Álvaro e Vicente, este ainda um bebé de meses958

. Em Fevereiro de 1588, Inês foi

autorizada a regressar a Vila Nova de Portimão e, meses depois, voltou a engravidar959

.

Se os intervalos inter-genésicos eram curtos, a idade fértil podia prolongar-se até

bem tarde. Voltemos ao caso de Inês Pinto Raposo, filha de Branca dos Santos. Do

segundo casamento da mãe, ela tinha sete meios-irmãos, um deles com apenas 11 anos

em 1638. Como já vimos, Isabel contava então com 42 anos de idade. Portanto, Branca

dos Santos, quando teve o filho mais novo, Pedro, deveria ser quase quinquagenária960

.

Não é um caso extraordinário mas, geralmente, a idade fértil feminina prolongava-se até

por volta dos 40 anos. Considerando o quão comuns eram as mulheres que se casavam

antes dos 20, muitos lares assistiam ao nascimento sucessivo de filhos durante duas

décadas ou mais.

Eram comuns as segundas núpcias, e em ambos os sexos. O período de viuvez podia

mesmo ser muito curto. Diogo Lopes ficou viúvo no final de Julho de 1560 e casou-se

novamente em Setembro, com uma parente da sua primeira mulher961

. Manuel

Henriques casou com Inês da Costa quinze dias após enviuvar de Leonor Gomes, o que

foi motivo de escândalo entre a família da falecida, chegando mesmo a acusá-lo de ser o

responsável pela sua morte962

.

As genealogias não denunciam um acentuado número de uniões ilegítimas ou de

filhos naturais. Dos poucos casos mencionados, predominam os filhos nascidos de

relações entre senhores e criadas ou escravas. Vejamos o que aconteceu na família

Preto, de Faro. Manuel Filipe Preto assumiu ter duas filhas ilegítimas, uma delas, Maria

XVI-XVII)”, Cadernos de Estudos Sefarditas, n.º 6, 2006, pp. 259-295; “La «Materia Oriental» en el

trayecto de dos personalidades judías del Imperio Otomano: João Micas / D. Yosef Nasí, Álvaro Mendes /

D. Shelomó Ibn Ya‟ish”, Hispania Judaica Bulletin. Articles, reviews, bibliography and manuscripts on

Sefarad, vol. 7, 2010, pp. 211-232. 956

Cf. ANTT, IE, proc. 3739, fl. 23. 957

Cf. ANTT, IE, proc. 4603, fl. 32. 958

Cf. ANTT, IE, proc. 8925. 959

Fernão de Álvares, na sessão de genealogia do seu processo (2 de Dezembro de 1589), mencionou

mais um filho, Francisco, então com um ano (Cf. ANTT, IE, proc. 5071). 960

Cf. ANTT, IE, proc. 10762, fls. 23v-24v. 961

Cf. ANTT, IL, proc. 3278, fl. 11v. 962

Cf. ANTT, IE, proc. 8603, fl. 108v. Vide, em anexo, p. 431.

Page 225: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

225

Filipe, filha da escrava Petronilha Ribeiro. O seu filho Francisco Filipe Preto também

foi pai, fora do casamento, de um rapaz, identificado como sendo mulato963

. Decerto

que o número de filhos bastardos seria bem superior ao que a documentação demonstra.

A questão era socialmente delicada, embora, ao nível sucessório e fora do estrato nobre,

as Ordenações Filipinas equiparassem os filhos legítimos e ilegítimos964

.

A acentuada nupcialidade, a precocidade do casamento feminino e a alta fertilidade

são algumas das características evidenciadas nas famílias alvo do nosso estudo. Mas

estas constituem também as tónicas definidoras dos padrões demográficos do sul do

Mediterrâneo965

. Portanto, segundo estes indicadores, no Algarve dos séculos XVI e

XVII, as famílias cristãs-novas não se distinguiriam das demais.

Resta-nos, portanto, a questão da endogamia. A tendência endogâmica entre os

cristãos-novos prender-se-ia, segundo Pilar de Huerga Criado, com duas ordens de

factores: uma externa, dados os obstáculos que o conceito de limpeza de sangue criou

aos casamentos mistos; e outra interna, considerando o interesse dos cristãos-novos em

constituírem laços matrimoniais dentro do próprio grupo966

. A endogamia garantiria a

sua sobrevivência enquanto minoria. Além da perpetuação do sangue hebraico, o

casamento entre cristãos-novos iria assegurar a transmissão de uma prática religiosa

clandestina às gerações vindouras e a solidez dos laços entre famílias da mesma estirpe,

cimentando alianças não só sociais, como económicas967

. Os laços de parentesco

consagravam a confiança e o crédito, elementos basilares no desenvolvimento de

qualquer negócio e na construção de uma rede de agentes capaz de abranger alguns dos

principais pontos do comércio internacional. Assim se constituíam as casas de negócio,

estruturas formadas por vários núcleos interligados por laços de parentesco968

. Segundo

963

Refere Sebastião Dias na sua confissão: “[...] pelo São João que passou fez cinco anos, em Faro, foi

ele, confitente, à casa de Francisco Filipe Preto, cristão-novo, mercador, e estando com ele e com sua

mulher, que é cristã-nova, à qual não sabe o nome, e com dois filhos do mesmo, um dos quais é bastardo

e mulato, e ambos são solteiros [...]” (Cf. ANTT, IE, proc. 2719, fl. 176). 964

Cf. António Manuel Hespanha, “Fundamentos antropológicos da Família de Antigo Regime”, História

de Portugal. Dir. José Mattoso, vol. IV, Lisboa, Círculo de Leitores, 1993, pp. 273-279. 965

Cf. Robert Rowland, “Sistemas familiares e padrões demográficos em Portugal: questões para uma

investigação comparada”, Ler História, n.º 3, 1984, pp. 13-32. O autor questiona a tipologia da família

mediterrânea delineada por Peter Laslett, salientando as variações regionais dentro do território

português. Vide também Álvaro Ferreira da Silva, “A «família mediterrânica». Um trajecto

bibliográfico”, Penélope, n.º 3, Jun. 1989, pp. 112-127. 966

Cf. Huerga Criado, En la raya..., pp. 67-68. 967

Cf. Huerga Criado, “Entre Castilla...”, Familia, Religión y Negocio..., pp. 41-42. 968

Cf. Bernardo López Belinchón, “Familia, negocios y sefarditismo”, Familia, Religión y Negocio..., p.

351. Sobre a questão das redes familiares, vide Susana Bastos Mateus, “Família e poder: a importância

dos laços de parentesco”, CES, n.º 3, 2003, pp. 115-126; Florbela Veiga Frade, As relações económicas e

sociais das comunidades sefarditas portuguesas: o trato e a família (1532-1632). Tese de doutoramento

apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Lisboa, 2006, exemplar policopiado.

Page 226: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

226

Jaime Contreras, esses vínculos parentais, nos quais se sustentavam as redes de negócio

e de solidariedades expandidas para lá da Península Ibérica, pelos espaços da diáspora,

revelaram-se fundamentais para a ascendência financeira e económica dos cristãos-

novos durante os séculos XVI e XVII969

.

Regressemos ao Algarve. Ao longo de grande parte do século XVI, só

esporadicamente encontramos referências a casais constituídos por um cônjuge cristão-

novo e outro cristão-velho, embora estes se tornem mais frequentes já no final da

centúria e, sobretudo, ao longo do século seguinte970

. Por outro lado, os casamentos

consanguíneos também não seriam usuais. O Concílio de Trento havia proibido as

uniões matrimoniais de indivíduos com laços de parentesco até ao quarto grau,

teoricamente, é certo, pois a possibilidade de uma dispensa eclesiástica permitia

contornar a situação. Mesmo assim, e pelo que podemos constatar das fontes, entre os

cristãos-novos algarvios, as uniões de tios com sobrinhas seriam raras e os casamentos

entre primos direitos, embora mais comuns, não deixariam de constituir uma minoria

pouco significativa. Possivelmente, a proporção de casamentos consanguíneos não

diferiria particularmente do que se registava entre a maioria cristã-velha.

Contudo, as conexões entre as famílias cristãs-novas estendiam-se por toda a região.

Encontramos indivíduos de Lagos, Vila Nova de Portimão, Faro ou Tavira que partilhavam

laços de parentesco. Diferentes famílias interligavam-se por um ou mais elos, formando

uma extensa teia de ligações de parentesco que se desenvolvia à escala regional, com alguns

ramos a atingir, ou mesmo a partir, das localidades alentejanas, sobretudo do Baixo

Alentejo. Através de uma reconstituição das genealogias dos cristãos-novos algarvios

processados pela Inquisição durante o período estudado, conclui-se que a maioria partilhava

laços de parentesco, mais ou menos distantes, por consanguinidade ou afinidade971

.

Mas até que ponto é possível falar de uma estratégia matrimonial promotora dessa

coesão parental entre os cristãos-novos? Esta questão leva-nos ao debate sobre o valor

dos sentimentos individuais e dos interesses familiares no casamento. Apesar do

Concílio de Trento ter determinado a necessidade do consentimento sincero dos noivos

para a realização do matrimónio, a legislação zelou pela manutenção da influência da

969

Cf. Jaime Contreras, “Family and patronage. The judeo-converso minority in Spain”, Cultural

encounters. The impact of the Inquisition in Spain and the New World. Org. Mary Elizabeth Perry e Anne

J. Cruz, Los Angeles, University of California Press, 1991, p. 140. 970

Vide infra, pp. 288-292. 971

Vide em anexo, pp. 121-233. Convém voltar a sublinhar as limitações encontradas no acesso à

documentação. Caso fosse possível consultar todos os processos inventariados, decerto se concluiria uma

ainda maior abrangência dessas ligações familiares.

Page 227: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

227

família972

. Afinal, o casamento era um elemento básico da política familiar. Porém, a

tensão entre a vontade da família e a do indivíduo era comum. Quando Fernão

Gonçalves Duarte, o Cego, regressou da Guiné, com os bolsos cheios e planos de se vir

a casar, Isabel Lopes viu no cunhado a oportunidade da sua irmã Maria de Tovar fazer

um bom casamento. Mas os seus projectos foram gorados e Fernão Gonçalves acabou

por escolher outra noiva973

. Casos similares multiplicam-se na documentação. Para

Fernão Gonçalves, a recusa do casamento “arranjado” ter-lhe-ia custado a hostilidade do

irmão e da cunhada.

De facto, quando indesejado pela família, o casamento tornava-se motivo de

conflito. Outro factor de ruptura era o dote. A sua concessão aos filhos, por ocasião de

“matrimónios carnais ou religiosos”, constituía uma obrigação paterna974

. Contudo, o

seu valor poderia representar um encargo demasiado elevado para ser assumido

exclusivamente pelos progenitores. Outros parentes entravam então em jogo, auxiliando

na constituição do dote. Veja-se o caso de Maria Guieira, noiva de Brás de Azevedo,

primo de Manuel da Gama de Pádua. Os seus pais dotaram-na de um olival, uns chãos,

móveis e apetrechos domésticos, além de 30 mil réis em dinheiro. Uma tia solteira,

Maria Fernandes, por sua vez, prometeu-lhe um quinhão “nas estalagens do Rossio da

vila” de Loulé, com quintal e casas, no valor de 12 mil réis975

.

Mas nem sempre esta solidariedade familiar se fazia notar e, então, os

ressentimentos emergiam976

. Fosse pelo dote ou por um casamento à revelia da família,

ou mesmo pelos conflitos e traições dentro do casal, as questões matrimoniais

972

Cf. Nuno Gonçalo Monteiro, “Casa, casamento e nome: fragmentos sobre relações familiares e

indivíduos”, História da Vida Privada em Portugal. A Idade Moderna, Lisboa, Temas & Debates /

Círculo de Leitores, 2011, p. 132. O artigo das Ordenações Filipinas relativo ao casamento de mulheres

menores de 25 anos revela-se algo dúbio no que respeita à necessidade do consentimento parental:

“Defendemos que nenhum homem case com alguma mulher virgem, ou viuva honesta, que não passar de

vinte cinco annos, que stê em poder de seu pai, ou mãi, ou avô, vivendo com elles em sua caza, ou stando

em poder de outra alguma pessoa, com quem viver, ou a em caza tiver, sem consentimento de cada huma

das sobreditas pessoas [...] Porém, se fôr pessoa, que notoriamente seja conhecido, que ella casou melhor

com elle, do que a seu pai, ou mãi, ou pessoa, em cujo poder stava, podéra casar, não incorrerá elle, nem

as testemunhas na dita pena.” (Cf. Ordenações Filipinas, liv. V, tit. XXII, Lisboa, Fundação Calouste

Gulbenkian, 1985, p. 1172). 973

Cf. ANTT, IE, proc. 3363, fls. 82-82v. 974

Cf. António Manuel Hespanha, “Carne de uma só carne: para uma compreensão dos fundamentos

histórico-antropológicos da família na época moderna”, Análise Social, vol. XXVIII, n.º 123-124, 1993,

pp. 958-959. 975

Cf. ADF, 1º Cartório Notarial de Loulé, 1-1-13, fls. 173-176v. Maria Guieira era cristã-velha e irmã de

Estêvão Guieiro, clérigo de missa do hábito de S. Pedro. A 25 de Setembro de 1640, este doava à irmã e

ao cunhado uma morada de casas na Rua de S. Sebastião, arrabaldes de Loulé (Cf. ADF, 1º Cartório

Notarial de Loulé, 1-1-18, fls. 122v-123). 976

Um exemplo é o caso de Beatriz Filipe, cujos irmãos não quiseram ajudar o pai a compor-lhe o dote, o

que criou uma divisão na família, alegada na defesa da ré (Cf. ANTT, IE, proc. 9071).

Page 228: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

228

constituem, ao lado doutras de domínio familiar (sobretudo, heranças) e profissional

(dívidas, fraudes, concorrência), a matéria privilegiada dos artigos de contraditas. E

raramente se restringiam aos visados. Se o marido agredia a esposa, ou se o pai se

recusava a dar um bom dote à filha, tal não era apenas uma questão do casal ou entre

pai, filha e genro. Até nos negócios, a vindicta nunca era individual, mas sempre a uma

escala familiar, alargando-se não só aos pais e irmãos, como também a primos, tios,

sobrinhos, cunhados... e até a criados e escravos. Na tentativa de descredibilizar as

testemunhas acusatórias, enumerando rivalidades e desejos de vingança, torna-se

evidente o quão alargado era o conceito de família e o quanto determinava o sentido dos

(des)afectos pessoais. A união familiar exprimia-se até no ódio.

A existência ou não de uma estratégia matrimonial dependeria muito do estatuto

social da família. Surge com maior evidência nos estratos superiores, em que o

casamento é uma possibilidade de sagrar a relação entre famílias do mesmo nível ou de

perspectivar a ascensão social, através da aproximação a uma elite ou mesmo à

aristocracia local, legando à descendência a combinação perfeita de dinheiro e honra977

.

Nas camadas inferiores, essa visão estratégica já não se verificaria tão intensamente.

Talvez o afecto pesasse mais do que a vontade familiar. Contudo, mesmo assim, as

uniões continuam a realizar-se, preferencialmente, entre famílias do mesmo universo

sócio-profissional. Nada de mais natural, diríamos. Um indivíduo casa-se dentro do

universo onde se movimenta. No Algarve, até os principais núcleos urbanos tinham uma

dimensão modesta. Os homens que se dedicavam à actividade mercantil viviam em

constante mobilidade, mas as mulheres, e em particular as solteiras, encontravam-se

confinadas a um domínio bastante acanhado. Era, sobretudo, através do pai e da sua

realidade profissional que a donzela tomava contacto com outros homens. Mesmo

quando não era o pai a ajustar o casamento, as suas perspectivas de afectuosidade

encontravam-se limitadas a um panorama muito restrito. Quanto ao homem,

normalmente só interagia com mulheres que reuniam os atributos necessários para o

lugar de sua esposa por via das relações profissionais, de amizade ou familiares. A

escolha do cônjuge encontrava-se, nos dois lados da questão, restrita a uma dimensão

mais ou menos limitada, dependendo dos níveis de mobilidade ou da polivalência

profissional. O esquema pode ser aplicado a cristãos-novos e a cristãos-velhos. Se

focássemos a nossa atenção nas famílias cristãs-velhas, talvez observássemos a mesma

977

Cf. Romero Magalhães, O Algarve Económico..., p. 349.

Page 229: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

229

uniformidade sócio-profissional na reprodução familiar, mas decerto que não

encontraríamos uma tão abrangente teia de ligações de parentesco, capaz de abarcar

toda a região algarvia. A maior mobilidade do cristão-novo marca essa diferença.

O casamento é consequência de relações sociais preestabelecidas. Assim, o aumento

gradual da exogamia ao longo do período estudado pode traduzir uma crescente

aproximação dos cristãos-novos algarvios à maioria cristã-velha. Contudo, salvo raras

excepções espacialmente bem delimitadas (e sublinho aqui os casos de Loulé e,

sobretudo, Albufeira), tal não significou um corte com o grupo de origem. Um ou outro

filho ligava-se através do matrimónio a famílias cristãs-velhas, enquanto que os outros

continuavam a casar-se dentro do grupo. Em muitos casos, tal era consequência da

proximidade entre iguais, gerada por mecanismos de inclusão – a proximidade

residencial, a comunhão do mesmo estatuto sócio-profissional, comportamentos,

tradições e crenças comuns – e de exclusão – o ostracismo a que eram votados pela

maioria cristã-velha.

Em casa

Mais do que dados concretos, as informações sobre a composição dos agregados

familiares insinuam-se ao longo da documentação processual. Tal permite-nos traçar um

retrato não mais do que aproximativo. Usando a terminologia estabelecida por Peter

Laslett, o modelo de agregado familiar predominante entre os cristãos-novos, no

Algarve dos séculos XVI e XVII, é a família nuclear (um casal com ou sem filhos),

evoluindo, ao longo do tempo e pela força das circunstâncias, para uma família extensa

(um casal, com ou sem filhos, ao qual se juntou um ou mais parentes)978

. Como a

bibliografia tem notado, a tipologia delineada por Laslett apresenta-se demasiado

estante para uma estrutura em constante mutação como é a família, acabando por não

representar mais do que os diversos estádios da sua evolução979

. Um outro limite

prende-se com a sua inadequação ao conceito de família no Antigo Regime, o qual

978

Vide Peter Laslett, “Introduction: the history of the family”, Household and Family in Past Time,

Cambridge, Cambridge University Press, 1972, pp. 1-89. Laslett define três tipologias de agregados

familiares: simple family, a família nuclear, constituída pelo casal com ou sem filhos; extended family, a

família nuclear com um ou mais parentes; multiple family, duas ou mais unidades conjugais unidas por

consanguinidade ou afinidade. Fora destas três tipologias, encontravam-se os elementos que viviam

sozinhos e os que partilhavam a residência sem uma ligação conjugal. 979

Cf. Peter Burke, Sociologia e História, Porto, Afrontamento, 1990, p. 50.

Page 230: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

230

englobava não só os elementos com laços de consanguinidade ou de afinidade, como

todo o conjunto de indivíduos que viviam debaixo do mesmo tecto e com o mesmo

património, incluindo aprendizes, criados e escravos980

. Dependendo da actividade do

chefe de família e da sua condição económica, a presença desses elementos extra-

parentais revelava-se mais ou menos significativa. Note-se que, no caso das famílias

cristãs-novas, tais elementos, muitas vezes, não comungavam a mesma “qualidade” dos

seus senhores. Encontramos criados e escravos cristãos-velhos a servir em casa de

cristãos-novos. Ora, o convívio entre senhores e subordinados nem sempre foi pacífico

e, muito menos, inócuo. Já vimos o que aconteceu durante a visitação de 1585, quando

criados e escravos denunciaram os próprios patrões.

Tendencialmente, os filhos abandonavam a casa paterna depois do casamento,

formando o seu próprio lar. Também aqui não existiria uma diferença marcada entre

os lares cristãos-novos e cristãos-velhos. Afinal, o sistema familiar nuclear e a regra

de residência neolocal após o casamento são predominantes no sul do

Mediterrâneo981

. E o Algarve não era excepção. Num estudo com base nos róis de

confessados de Moncarapacho dos anos de 1541 a 1546, João Alves Dias concluiu

que as estruturas predominantes dos fogos da freguesia, nesse período, eram os

casais com ou sem filhos982

.

Na maioria dos casos, a decisão sobre onde se iria constituir o novo lar partia do

marido, sendo a mulher a mudar de local de residência na sequência do casamento. Foi

o que aconteceu com Leonor de Caminha, que casou aos 18 anos de idade com Fernão

Ximenes. Pouco tempo depois, acompanhou o marido até Cádis, onde viveu até 1587,

quando, já viúva e devido ao ataque de Francis Drake à cidade, regressou a Portugal983

.

O homem mantinha uma presença menos regular na residência conjugal, sobretudo

quando tinha no comércio a sua fonte de sustento. Maridos ausentes, alguns com

paradeiro desconhecido (ou, pelo menos, alegadamente desconhecido), são uma

constante. Violante Ribeira, de Lagos, era casada com Luís Rodrigues, comerciante de

980

Cf. João José Alves Dias, “A população”, Nova História de Portugal, vol. V – Portugal do

Renascimento à Crise Dinástica, Lisboa, Presença, 1998, p. 39. 981

Cf. Robert Rowland, “Sistemas familiares...”, Ler História..., p. 30. 982

Cf. João José Alves Dias, Gentes e espaços..., pp. 66-69, 118. O autor esclarece que o conceito de fogo

e de família nem sempre correspondia à totalidade de pessoas que viviam numa casa, sendo possível, e até

comum em alguns casos, duas ou mais famílias, sem nenhum laço de parentesco, partilharem o mesmo

tecto. Vide também a análise do rol de confessados de Moncarapacho do ano de 1545 por Teresa Ferreira

Rodrigues e Célia Ferreira Reis em “A vida familiar no Algarve na primeira metade do século XVI:

alguns aspectos do quotidiano”, Actas das III Jornadas de História Medieval do Algarve e Andaluzia,

Loulé, Câmara Municipal de Loulé, 1989, pp. 291-308. 983

Cf. ANTT, IL, proc. 5498, fls. 37-43, 93v-94.

Page 231: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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vinhos que passava longas temporadas em Mazagão. À data da sua prisão, em 1562, o

negócio do marido não estaria a render o suficiente para garantir o sustento da família.

Violante dizia-se pobre, com o marido longe e obrigada a trabalhar984

.

De facto, perante a ausência do marido, muitas mulheres tinham de alargar o seu

papel na estrutura familiar. Além das tradicionais funções domésticas, muitas

assumiam os negócios dos cônjuges enquanto estes andavam a mercadejar de feira em

feira, ou de porto em porto. Francisca Lopes, de Vila Nova de Portimão, trabalhava na

loja de panos do marido, Luís Guterres – vendia mercadorias e encomendava trabalhos

a tosadores e a tecedeiras da vila985

. A mesma situação era comum nas famílias dos

mesteirais. Grácia Lopes, além de criar 10 filhos, trabalhava como costureira, decerto

auxiliando o marido, Pedro Fernandes, alfaiate986

. Em Faro, Joana de Barros era

confeiteira, tal como o cônjuge987

.

Às mulheres cabiam determinados ofícios que, embora considerados socialmente

menores, tinham uma função primordial na vida das cidades. Encontramo-las activas no

pequeno comércio, principalmente de produtos alimentícios, e em algumas actividades

transformadoras relacionadas com os tradicionais lavores femininos988

. Acrescente-se

ainda outras profissões exclusivamente femininas, como a criada doméstica ou a

parteira. Em meados de Quinhentos, Maria Gonçalves e Isabel Dias eram parteiras em

Faro e Loulé, respectivamente989

. Pela mesma altura, na cidade de Tavira, Beatriz

Fernandes vivia de fazer botões, Beatriz Mendes de trabalhos de tecelagem, enquanto

que Isabel Fernandes ganhava a vida como padeira990

. Já na década de 30 do século

seguinte, as irmãs Catarina Amada e Leonor Eanes, as duas quinquagenárias e solteiras,

dedicavam-se à costura, trabalho do qual colhiam o seu sustento991

. Costureiras,

tendeiras, tecedeiras, botoeiras, padeiras – eram estes os ofícios que predominavam

entre as cristãs-novas do Algarve.

984

Cf. ANTT, IL, proc. 5520, fls. 4v-5. 985

Cf. ANTT, IE, proc. 3194. 986

Cf. ANTT, IE, proc. 8185. 987

Cf. ANTT, IE, proc. 2197, fl. 135. 988

Cf. Aurélio Oliveira, “A mulher no tecido urbano dos séculos XVII-XVIII (tópicos para uma

abordagem)”, A mulher na sociedade portuguesa. Visão histórica e perspectivas actuais. Actas do

colóquio, vol. I, Coimbra, Instituto de História Económica e Social / Faculdade de Letras da

Universidade de Coimbra, 1986, pp. 309-333; Maria Luísa de Alarcão e Silva, “A mulher e a

alimentação à época dos Descobrimentos. Imagens do quotidiano”, O Rosto Feminino da Expansão

Portuguesa. Congresso Internacional. Actas, vol. I, Lisboa, Comissão para a Igualdade e para os

Direitos das Mulheres, 1995, pp. 77-88. 989

Cf. ANTT, IL, proc. 6586, fl. 11; proc. 3845, fl. 8. 990

Cf. ANTT, IL, proc. 895; proc. 2511, fl. 10v; proc. 3114. 991

Cf. ANTT, IE, proc. 5103, fl. 50.

Page 232: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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Parte destas profissionais eram viúvas. Perante a morte do marido, a condição da

mulher modificava-se: ou contava com o apoio da família mais próxima, que a acolhia e

a amparava economicamente, ou era obrigada a tomar a iniciativa do seu sustento e do

sustento dos seus filhos. Algumas assumiam o negócio do cônjuge falecido, como fez

Mor Fernandes, a Migas. Aos 80 anos de idade, ainda estava à frente da tenda de

marçaria que, no passado, pertencera ao marido992

. Outras punham a render os lavores

que haviam aprendido em jovens.

Numa situação similar, encontramos órfãs obrigadas a zelar pela sua sobrevivência

através do labor das suas mãos. As Salgadas, ou seja, as irmãs Maria e Isabel Mendes,

costuravam para fora e faziam botões. O seu pai, que fora alfaiate, havia falecido quando

ainda eram muito novas e dois dos seus irmãos viviam nas Índias de Castela. Maria e

Isabel estavam entregues à própria sorte, mas as dificuldades eram muitas: chegavam a

não ter com que pagar a renda da casa e deviam até as botinas que calçavam993

. A

situação das Salgadas era relativamente comum – mulheres que, após a morte dos pais ou

dos maridos, passavam a chefiar o agregado, com todas as obrigações daí advindas994

.

A desprotecção familiar e a carência económica constituíam factores decisivos para o

enquadramento da mulher no mundo profissional. Fora dessas conjunturas, encontramos

as esposas que auxiliavam os maridos nos seus negócios ou no desempenho dos seus

mesteres, mas que raramente são reconhecidas enquanto tal. Assim, se muitas cristãs-

novas admitiram a comunicação da crença na Lei de Moisés enquanto assistiam na loja do

marido ou negociavam alguma mercadoria, muito poucas aparecem referidas, ao longo

dos processos, enquanto tendeiras ou negociantes. A ajuda profissional ao cônjuge era

apenas mais uma obrigação da mulher, enquanto esposa e mãe, ao lado das tarefas

domésticas e da educação dos filhos. Aliás, em última instância, as próprias fronteiras

entre o espaço de trabalho e o espaço doméstico nem sequer se revelavam estanques995

.

Prioritárias eram as outras funções para as quais a mulher se preparava desde a mais

tenra idade – o cuidado da casa, do marido e dos filhos. Embora esse papel se

inscrevesse num plano doméstico, a sua esfera de relações não se limitava às pessoas da

casa ou aos parentes mais próximos. Foquemo-nos nas cristãs-novas do Algarve. A

992

Cf. ANTT, IE, proc. 9039. 993

Cf. ANTT, IE, proc. 3163. 994

No numeramento dos moradores de Portugal elaborado entre 1527 e 1532, 21% dos fogos eram

chefiados por mulheres (Cf. João José Alves Dias, “Os fogos femininos nos municípios do séc. XVI”, A

mulher na sociedade portuguesa..., vol. II, pp. 223-224). 995

Cf. Philippe Ariès, A criança e a vida familiar no Antigo Regime, Lisboa, Relógio d‟Água, 1988, pp.

295-298.

Page 233: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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trabalhar na loja do marido ou do pai, elas tinham ali uma janela para o mundo. Depois,

havia as obrigações religiosas. No interior das igrejas, ou a caminho destas, os contactos

multiplicavam-se. A própria casa não era um espaço fechado. Recebiam visitas,

acolhiam parentes que vinham de fora, ensinavam lavores a jovens. À porta, batiam

pedintes e vendedores ambulantes, alguns oriundos doutras terras e com notícias frescas

de paragens longínquas. Não era um mundo exclusivamente doméstico ou familiar, mas

era um mundo onde reinavam os elementos femininos. Assim, quando presas e

pressionadas a confessar o que fizeram e o que não fizeram, as cristãs-novas tendiam a

incidir as suas denúncias noutras mulheres.

O protagonismo na primeira fase da educação dos filhos era da mulher. Na

ausência da mãe, a função passava para uma irmã mais velha, para a avó ou mesmo

para uma tia. Nos lares mais abastados, havia também a figura da ama996

. Mas a

educação ganhava outros contornos numa família cristã-nova judaizante. A mãe,

tradicionalmente a responsável pela primeira catequização da criança997

, deveria zelar

pelo ensino da duplicidade religiosa aos filhos a partir do momento em que estes

começavam a entender a necessidade do segredo. O seu papel era primordial na

transmissão e preservação do criptojudaísmo, reduzido a uma série de rituais inerentes

ao quotidiano do lar, como os jejuns e as restrições dietéticas, regulados por quem

tinha sob a sua responsabilidade a rotina alimentar da família998

. Em determinados

espaços de Portugal e do Brasil, até foram identificados casos de mulheres líderes de

grupos de judaizantes999

. “Do homem a praça, da mulher a casa”, dizia o povo1000

.

996

Cf. Isabel dos Guimarães Sá, “As crianças e as idades da vida”, História da Vida Privada em

Portugal. Idade Moderna..., pp. 77-80. 997

Vide Marcel Bernos, “La catéchèse des filles par les femmes aux XVIIe et XVIII

e siècles”, La religion de

ma mére. La rôle des femmes dans la transmission de la foi, Paris, Les Éditions du Cerf, 1992, pp. 269-285. 998

Vide Anita Novinsky, “O papel da mulher no cripto-judaísmo português”, O Rosto Feminino da

Expansão Portuguesa...., pp. 549-555; Joseph Abraham Levi, “A mulher sefardita das diásporas ibéricas:

ponte entre culturas”, Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher, n.º 9, 2003, pp. 35-58; Angelo Adriano Faria

de Assis, Macabéias da Colônia: Criptojudaísmo feminino na Bahia – Séculos XVI-XVII. Tese de

doutoramento apresentada à Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2004, exemplar policopiado; Natalia

Muchnik, “De la ville inquisitoriale à la ville de tolerance: identités féminines judaïsantes en Europe

occidentale (XVIIe siècle)”, Annales de Bretagne et des Pays de l’Ouest, t. 113, n.º 2, 2006, pp. 29-42. 999

Vide os exemplos apresentados em: Angelo Adriano Faria de Assis, “As «mulheres-rabi» e a

Inquisição na colônia: narrativas de resistência judaica e criptojudaísmo feminino – os Antunes,

macabeus da Bahia (séculos XVI-XVII)”, A Inquisição em xeque: temas, controvérsias, estudos de caso.

Organização de Ronaldo Vainfas, Bruno Feitler e Lana Lage, Rio de Janeiro, Editora da Universidade do

Estado do Rio de Janeiro, 2006, pp. 179-191; Susana Bastos Mateus, “A acção do Santo Ofício sobre a

comunidade cristã-nova de Lamego (1541-1544): o caso de Isabel Mendes”, CES, n.º 7, 2007, pp. 301-

320; Alex Silva Monteiro, “Conventículo Herético”: Cristãs-novas, criptojudaísmo e Inquisição na

Leiria Seiscentista. Tese de doutoramento em História apresentada à Universidade Federal Fluminense,

Niterói, 2011, exemplar policopiado.

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Ora, o Algarve não era excepção nessa divisão sexual das esferas pública e privada e

na forma como tal influenciava a transmissão de uma fé secretamente professada e,

por isso, circunscrita ao universo doméstico, onde a mulher era dona e senhora.

Rapazes e raparigas conheciam, desde cedo, quais as suas respectivas funções na

estrutura social. Era no seio da família que começavam a ser definidas. Às raparigas

eram ensinados os lavores domésticos, controlados os comportamentos e as atitudes e

preparadas para um futuro enquanto esposas e mães. Algumas raparigas aprendiam a

costurar ou a bordar fora de casa, junto de uma vizinha ou de uma parente mais versada

em tais prendas1001

. O processo educativo terminava com o casamento que, como já

vimos, podia ser bastante precoce. Uma outra situação em que a mulher escapava ainda

em tenra idade ao domínio paterno e à educação materna acontecia com o ingresso na

vida religiosa. Isabel, filha do mercador Manuel Henriques, aos 9 anos já se encontrava

reclusa no mosteiro de São Bernardo, em Tavira1002

. Joana Rodrigues era mãe duas

jovens freiras em Montemor-o-Novo, Maria de São Bartolomeu e Isabel do Presépio,

com 16 e 15 anos, respectivamente1003

.

Se aprender a ler e a escrever não eram prioridades na educação das raparigas, o que

se traduzia nas altas taxas de iliteracia feminina, o mesmo já não se pode dizer dos

rapazes, para os quais as letras e os números eram fundamentais ao desempenho do

ofício que lhes garantiria o sustento futuro1004

. Ora, não seria a mãe, muitas vezes

analfabeta, a sua mestre. Alguns aprendiam a ler, a escrever e, sobretudo, a contar com

o pai ou com um irmão mais velho, outros recebiam as lições fora de casa. Nos anos 30,

em Faro, João Rodrigues, o Bom Cristão, além de mercador e escrivão, também

“ensinava meninos”1005

. Pela mesma altura, o filho de Branca Dias, Pedro Gomes, aos 6

anos de idade, frequentava a “escola de Paulo Pinto”, junto à igreja de São Pedro1006

.

1000

Na Carta de Guia de Casados, D. Francisco Manuel de Melo aconselhava o marido a fazer com que a

esposa se ocupasse das tarefas domésticas, pois “Cousas tão meudas não he bem que pejem o pensamento

de hum homem; & para os da mulher são muito convenientes. [...] Diz bem por isso o rifão: Do homem a

praça, da mulher a casa.” (Cf. Ângela Mendes de Almeida, “Casamento, sexualidade e pecado – os

manuais portugueses de casamento dos séculos XVI e XVII”, Ler História, n.º 12, 1988, p. 10). 1001

Alguns exemplos: Beatriz Gonçalves, de Vila Nova de Portimão, afirma ter aprendido “certo lavor e

costura” com a prima Branca de Sousa (Cf. ANTT, IE, proc. 4753); Filipa de Cea, que acabaria por ser

presa pela Inquisição em 1636, “ensinava meninas”, segundo uma denúncia de Inês Lourenço (ANTT, IE,

proc. 1657). 1002

Cf. ANTT, IE, proc. 8603, fl. 67. 1003

Cf. ANTT, IE, proc. 6021, fl. 66v. 1004

Vide infra, pp. 268-269. 1005

Cf. ANTT, IE, proc. 6519, fl. 123; proc. 8603, fl. 318. 1006

Cf. ANTT, IE, proc. 3739, fl. 33v.

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235

Então, Martim de Oliveira, com 14 anos, aprendia Gramática num estudo na cidade1007

.

O irmão mais novo, Pedro Machado, preso pela Inquisição aos 10 anos de idade,

afirmava ter aprendido uns princípios de latim1008

.

Portanto, desde cedo, a educação dos filhos varões transferia-se para outros

mestres e até para outros lares1009

. A partir de uma determinada idade, a influência da

mulher apenas era considerada benéfica na educação de uma igual1010

. Havia casos,

bastante comuns até, em que era o pai a assumir essa função junto dos filhos,

promovendo uma continuidade profissional na família. Noutros, a formação do rapaz

completava-se fora de casa, junto de um parente ou mesmo de alguém exterior à

família. Manuel Fernandes, apesar de nascido numa prole de sapateiros, era ferreiro e

o seu mestre fora um cristão-novo de Faro com quem não tinha qualquer ligação de

parentesco1011

. Diogo Lopes Simões foi mais longe. Aos 17 anos, partiu de Lagos

rumo a Lisboa, onde aprendeu o ofício de sirgueiro junto de um parente1012

. Não

existe uma particular precocidade no abandono do lar paterno por parte de Diogo

Lopes. Branca Fernandes, por exemplo, tinha dois filhos no Peru – Diogo, com 14

anos de idade, era surrador, e Vicente, com 12, sapateiro –, possivelmente ao cuidado

do tio Belchior de Barros, também ele ainda muito jovem1013

. Cristóvão Pousado, por

volta dos 12 anos de idade, já tinha embarcado de Vila Nova de Portimão rumo a

Cabo Verde, onde viveu durante 10 anos. O irmão Jorge Pousado estabeleceu-se em

São Tomé e o pai, João Pousado, dirigia os negócios a partir de Lisboa1014

. Cristóvão

iniciara a sua vida profissional integrando a rede de negócios da família, tal como

acontecia com outros jovens cristãos-novos.

Contudo, para alguns, o percurso formativo acabou por ser interrompido pela

prisão. Uma vaga de detenções na família colocava o jovem sob a mira do Santo

Oficio. O alegado judaísmo dos pais lançava a suspeita sobre os filhos, mesmo os

1007

Cf. ANTT, IE, proc. 468, fl. 53. 1008

Cf. ANTT, IE, proc. 10523. 1009

Cf. Isabel dos Guimarães Sá, “Up and out. Children in Portugal and the Empire (1500-1800)”,

Raising an Empire. Children in Early Modern Iberia and Colonial Latin America. Ed. Ondina E.

González e Bianca Premo, Albuquerque, University of New Mexico Press, 2007, pp. 17-40. 1010

Cf. António Gomes Ferreira, Gerar, Criar, Educar. A criança no Portugal do Antigo Regime,

Coimbra, Quarteto Editora, 2000, pp. 408-409. Sobre os princípios da educação feminina emanados na

tratadística e literatura da época, vide Maria de Lurdes Correia Fernandes, Espelhos, cartas e guias.

Casamento e espiritualidade na Península Ibérica 1450-1700, Porto, Instituto de Cultura Portuguesa /

Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 1995, pp. 101-142, 191-197. 1011

Cf. ANTT, IE, proc. 1604, fls. 1v-2. 1012

Cf. ANTT, IE, proc. 3276, fl. 28. 1013

Cf. ANTT, IE, proc. 6970. Belchior de Barros tinha, então, 17 anos de idade. 1014

Cf. ANTT, IL, proc. 4095, fls. 21-22v.

Page 236: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

236

mais novos. As irmãs Maria Lopes e Constança Lopes foram presas em 1588, quando

tinham 11 e 12 anos, respectivamente1015

. Já vimos o caso de Pedro Machado, com 10

anos de idade e já a penar nos cárceres de Évora1016

. Estas prisões não foram feitas à

margem da lei1017

. Os regimentos de 1552 e o de 1613 contemplavam a prisão de

menores da “idade de discrição” (14 anos para os rapazes e 12 anos para as raparigas),

salvaguardando-os apenas da abjuração pública. A partir dessa idade, já seriam “doli

capazes”, conscientes do valor moral das suas acções1018

. Mas esta salvaguarda era

contornada através do prolongamento do processo. Pedro Machado permaneceu nos

cárceres de Évora durante 6 anos – foi preso em 1634, junto com o pai e o irmão, e só

saiu reconciliado em 1640. A decisão sobre a sua pena não foi unânime. O inquisidor

Bartolomeu de Monteagudo e os deputados Francisco de Miranda Henriques e Manuel

de Magalhães de Menezes consideravam que Pedro Machado deveria ser julgado

como convicto no crime de heresia e apostasia. O jovem não confessara nenhuma das

culpas, alegando que, quando o pai tentou a fuga para Castela, ainda era muito novo e

fora obrigado a acatar a sua vontade. Contudo, Monteagudo e os dois deputados não

acreditavam na sua inocência. Pedro Machado era “[...] de raiz infecta, filho, irmão,

sobrinho e parente de pessoas presas pelo mesmo crime de judaísmo [...]”. Pediam a

pena máxima. No lado oposto estava o inquisidor João Delgado Figueira e os

deputados Manuel do Vale de Moura e João Estaço, que advogavam o pouco crédito

das testemunhas acusatórias e a constância do réu na declaração da sua inocência. No

fim, foram estes os argumentos que mais pesaram e Pedro Machado foi sentenciado a

cárcere ao arbítrio dos inquisidores1019

.

A resolução do processo de Gaspar Dias, também de Faro, revelou-se mais rápida

mas não tão favorável. Na altura da prisão, em 1633, tinha cerca de 12 anos de idade.

A 25 de Março de 1635, quando abjurou em forma os seus “heréticos erros”, estaria

no limite da “idade de discrição”. A misericórdia que os regimentos aconselhavam no

1015

Os processos de Constança Lopes e de Maria Lopes encontram-se desaparecidos. Porém, sabemos da

sua existência através das denúncias trasladadas no processo das irmãs Isabel e Grácia Lopes e do tio

Francisco Lopes (Cf. ANTT, IE, procs. 7881, 7842 e 7534) 1016

Esta é a idade que Pedro Machado alega na sessão de genealogia. Porém, os inquisidores duvidam.

Uma nota à margem alerta: “parece de 14”. Mais tarde, quando é debatida a pena a aplicar ao jovem,

refere-se que ele foi preso aos 13 anos de idade (Cf. ANTT, IE, proc. 10523). 1017

Vide Alex Silva Monteiro, A Heresia dos Anjos: A Infância na Inquisição Portuguesa nos Séculos

XVI, XVII e XVIII. Dissertação de pós-graduação apresentada à Universidade Federal Fluminense,

Niterói, 2005, pp. 95-113. 1018

Cf. “Regimento... (1552)”, As Metamorfoses..., p. 112 (cap. 16); “Regimento... (1613)”, Ibidem, p. 157

(tit. III, cap. IX). 1019

Cf. ANTT, IE, proc. 10523. Sobre a tentativa de fuga de Pedro Machado, vide infra, pp. 132-133.

Page 237: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

237

tratamento dos presos menores de 20 anos não se aplicou no seu caso. Sem atenuantes,

Gaspar Dias foi sujeito a tormento e acabou sentenciado a cárcere e hábito penitencial

perpétuos1020

.

O amparo dos desprotegidos

Pouco mais de um mês após ter saído no auto-de-fé, Gaspar Dias foi autorizado a

acabar de cumprir a penitência em Faro. Mas a sua vida sofrera uma mudança drástica.

O pai, Jorge Lopes Cutelo, que saíra no mesmo auto, faleceu 15 dias depois. A mãe,

Leonor Duarte, estava presa, tal como parte dos seus tios e primos. Gaspar ficara

entregue à própria sorte. Envergando o humilhante hábito penitencial, mendigava por

Beja. A 28 de Maio de 1638, os inquisidores de Évora libertaram-no desse estigma e

então, com cerca de 17 anos, pôde reconstruir a sua vida. Seguindo as pisadas do

falecido pai, dedicou-se ao comércio. Em 1640, pedia licença para andar armado com

uma espada, pois “[...] vai a feiras e outras partes deste reino em razão de seu trato e, em

algumas das partes aonde vai, tem inimigos que o pretendem matar e afrontar e corre

perigo a sua vida não trazendo arma [...]”1021

.

Nas famílias mais violentamente atingidas pela repressão inquisitorial, a vida dos

menores que conseguiam escapar ao cárcere sofria igualmente uma drástica

transformação. Perante a prisão dos pais, o menor ficava a cargo doutros parentes, mais

ou menos próximos. Com apenas 16 anos e na sequência da detenção da mãe, Genebra

Álvares tornou-se responsável pela educação dos seus 6 irmãos mais novos1022

. Na

mesma situação, Beatriz Gonçalves foi entregue aos cuidados de uma vizinha, com a

recomendação de seguir para a casa da tia Leonor Quitéria, em Tavira1023

.

Já vimos anteriormente como, em 1580, a calamidade da peste desabara sobre muitos

lares do Algarve, causando a morte dos elementos basilares da estrutura familiar.

Conhecemos o caso de Pedro Lopes, de Faro1024

. Com o falecimento de ambos

progenitores, coube ao jovem zelar pelo sustento das irmãs. O irmão mais novo, Nicolau,

então ainda um bebé, foi entregue aos cuidados da tia Branca Rodrigues, residente em

Beja. Mesmo assim, o fardo tornou-se demasiado pesado para Pedro, compelido a partir

1020

Cf. ANTT, IE, proc. 5677. 1021

Cf. Idem, fls. 66-70. 1022

Cf. ANTT, IL, proc. 3116, fls. 14-14v. 1023

Cf. ANTT, IE, proc. 4195, fl. 55v. 1024

Vide supra, pp. 73-77.

Page 238: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

238

para Sevilha, em busca de novas oportunidades de negócio. Não terá sido o suficiente.

Uma das irmãs, Violante Lopes, dizia ter apenas o que ganhava “[...] com as mãos e a

agulha [...]”, talvez com saudades do tempo em que, com os pais vivos, ela e os irmãos

“[...] sempre folgavam porque tinham quem os servisse [...]”, como testemunhou a sua

antiga ama perante o visitador Manuel Álvares Tavares1025

. A mais nova, Guiomar Lopes,

depois de sair dos cárceres de Évora, foi entregue aos cuidados de um casal cristão-velho,

Rui Mendes de Vasconcelos e D. Ana1026

. Este era um procedimento regularmente

adoptado face aos menores reconciliados. Os cuidados de uma família cristã-velha seriam

salutares para a sua reeducação nos princípios da doutrina católica1027

. Guiomar viveu

com esse casal durante 10 anos, ao fim dos quais o cunhado Martim d‟Ares (marido da

irmã mais velha, Ana Lopes) acolheu-a na sua casa. Guiomar, que adoptou o sobrenome

Pereira, viria a casar-se três vezes, sempre com lavradores cristãos-velhos. Regressou aos

cárceres inquisitoriais em 1636, já com cerca de 50 anos de idade1028

.

Os dois momentos em que Guiomar Lopes/Pereira teve de enfrentar o cárcere

inquisitorial fornecem-nos pistas sobre como esta mulher, presa pela primeira vez

quando tinha pouco mais de 10 anos de idade, conseguiu refazer a sua vida e até tentar

escapar aos estigmas do passado e do sangue. Não foi completamente bem sucedida,

como prova a segunda prisão. Porém, casos houve em que a mancha do cárcere se

incrustou tão profundamente no interior da estrutura familiar que as marcas perduraram

de geração em geração.

Com Catarina Lopes, cuja pomposa alcunha Sangue de Rei escondia uma vida de

miséria, a morte e o cárcere determinaram um percurso de infortúnio. Em 1633, era

viúva e sobrevivia à custa da caridade alheia. O marido, Duarte Nunes, deixou a família

numa situação de indigência ao morrer durante o saque inglês a Faro1029

.

1592 foi um ano fatal para Catarina Lopes, marcado pela prisão dos pais e da irmã mais

velha. É um facto que, mesmo antes da repressão inquisitorial se abater sobre a sua casa, a

1025

Cf. ANTT, IE, proc. 4504. 1026

Cf. ANTT, IE, proc. 3561, fl. 4v. 1027

O regimento de 1613 aconselhava os inquisidores a informarem-se sobre a situação dos filhos dos

réus menores de 14 anos, inquirindo sobre a sua pobreza e mandando-os doutrinar. O objectivo era que os

ensinamentos recebidos pelos pais, contrários à ortodoxia, fossem esquecidos e substituídos pela doutrina

cristã. (Cf. Alex Silva Monteiro, A Heresia dos Anjos..., pp. 102-103). 1028

Cf. ANTT, IE, proc. 3561. 1029

A 5 de Outubro de 1596, Isabel Vaz, mãe de Catarina Lopes, pedia autorização aos inquisidores para

acabar de cumprir a sua pena no Algarve, pois as suas filhas precisavam da sua ajuda: Maria Lopes, tinha

o marido muito doente, enquanto que Catarina era viúva “porque lhe mataram o marido os ingleses na

revolta”. Isabel queria ir para Vila Nova de Portimão, pois Faro era uma cidade em ruínas (Cf. ANTT, IE,

proc. 4248).

Page 239: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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família não viveria numa situação de desafogo financeiro. A mãe, Isabel Vaz, já então se

queixava da sua pobreza. Residiam todos no andar de baixo de uma casa e, por vezes, não

tinham dinheiro para o aluguer1030

. Mas o pai, Francisco Lopes, o Barca, tinha tenda de

marçaria e conseguiu que a sua filha mais velha, Maria Lopes, se casasse com um mercador

endinheirado1031

. Porém, tudo mudou com a prisão. Francisco Lopes faleceu no cárcere, na

sequência de uma peleja com os companheiros de cela. Nem os seus restos mortais

puderam descansar em paz, exumados e queimados em 15971032

. Isabel Vaz e Maria Lopes

conseguiram a reconciliação, mas a um custo muito alto. Maria terá regressado para junto

do marido, mas Isabel teve de tomar em mãos um lar reduzido a três mulheres

desprotegidas – ela e Catarina, ambas viúvas, e uma outra filha Beatriz, então ainda solteira.

Catarina Lopes, que escapara ao cárcere inquisitorial na sua juventude, teve de

enfrentá-lo na velhice. O processo fornece algumas pistas sobre o que aconteceu à sua

família após as prisões nos anos 901033

. Em 1633, Maria Lopes já não era viva e os dois

únicos filhos que sobreviveram à infância, Francisco Nunes de Castro e Tomás de

Castro, ambos mercadores, haviam rumado às Índias Castelhanas. A irmã Beatriz casou

com um tratante de Vila Nova de Portimão, Vicente Rodrigues. Quanto a Catarina, a

sua sorte não fora nada auspiciosa. Viúva e com quatro filhos para criar, ela vivia de

costurar para fora. Quando a costura não era suficiente, pedia de porta em porta. Apesar

das dificuldades, por vezes acolhia em casa Mor Gonçalves, abandonada pelo próprio

filho devido aos seus “furores” e acessos de loucura1034

.

As filhas de Catarina, Isabel Nunes e Maria de Castro, eram casadas com dois

irmãos músicos, António e Domingos Pereira, conhecidos como os Charamelas, então

emigrados em Jerez de la Frontera. A situação dos outros dois filhos seria ainda mais

periclitante. Inês Nunes, que teria já perto de 40 anos, nunca chegara a casar1035

. O

irmão Simão vivia de biscates – era agente comercial, fazia trabalhos agrícolas, revendia

mercadorias (muitas compradas fiado)... e, quando havia necessidade, mendigava1036

.

1030

Cf. ANTT, IE, proc. 4248. 1031

Cf. ANTT, IE, proc. 11045. 1032

Cf. ANTT, IE, proc. 6438. 1033

Cf. ANTT, IE, proc. 10785. 1034

Mor Gonçalves foi presa pela Inquisição de Évora em 1633 e acabou internada no Hospital de Todos-

os-Santos, onde veio falecer (Cf. ANTT, IE, proc. 3588). 1035

Cf. ANTT, IE, proc. 3069. As idades dos filhos de Catarina Lopes são um bom exemplo do quão pouco

exactas podiam ser as idades indicadas pelos réus. Segundo os respectivos processos, em 1633, Simão

Nunes teria 34 anos, Inês e Isabel Nunes 30 e Maria de Castro 27. Só que, de acordo com o processo da avó

Isabel Vaz, Duarte Nunes teria falecido em 1596. Ora, Catarina Lopes não refere nenhum segundo marido e

apresenta os quatro filhos como legítimos. Assim, nenhum deles poderia ter menos de 37 anos em 1633. 1036

Cf. ANTT, IE, proc. 736.

Page 240: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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Os quatro filhos de Catarina Lopes não escaparam ao cárcere. Quanto à matriarca,

51 denúncias foram quantas acumulou ao longo do seu processo. Perante um tão

extenso número de acusações, a sua confissão pareceu pouco credível aos inquisidores.

“[...] Só cria na Lei de Moisés para ser rica e ter remédio [...]”, alegava1037

. Expectativas

nunca concretizadas. Catarina Lopes acabou relaxada em carne à justiça secular.

A abundância das provas reunidas pela Inquisição contra os Sangue de Rei espelhava

o quanto conhecidos eram em Faro, embora nem sempre pelos melhores motivos. Eram

“[...] pessoas de mui baixa qualidade, mendigas e pobres e quase doidas [...]”, segundo

alegou Francisco Nunes1038

. Guiomar Mendes, a mulher de Manuel Filipe Preto, referiu

as ameaças que Catarina Lopes e os filhos faziam a quem não lhes dava esmola1039

.

“Miseráveis e infames”, assim os via Manuel Henriques1040

.

A mendicidade punha-os em contacto com muita gente, sobretudo com outros

cristãos-novos. Pedro de Seixas recordou como, por volta de 1629, Catarina fora à sua

casa pedir esmola para o casamento de uma das filhas e ele concedeu-lha “[...] porque

eram todos da mesma nação [...]”1041

. Este critério é revelador da consciência da

necessidade, ou mesmo obrigação, da solidariedade entre cristãos-novos. Mas também

havia uma troca de favores, mesmo que numa dimensão não material. Por exemplo,

Simão Fernandes, sapateiro de Tavira, recebia dinheiro e géneros de outros cristãos-novos

e, em troca, prometia rezar pelas suas almas e guardar os jejuns judaicos na sua vez1042

.

As solidariedades fora do domínio familiar também emergiam noutras

circunstâncias. Já vimos como Catarina Lopes protegia Mor Gonçalves, desamparada

pela família mais próxima. A situação era similar à de Beatriz Gomes, “[...] mulher mui

louca e douda do miolo [...]”, segundo o seu cunhado Francisco Nunes. Expulsa da casa

de uma irmã, foi viver com “[...] uma beata, a Freira por alcunha [...]”1043

. Por outras

razões, nomeadamente pela penhora da casa onde viviam, as filhas de Jorge Fernandes,

tosador de Vila Nova de Portimão, foram acolhidas na casa de Beatriz Brandoa1044

. Em

nenhum destes casos encontramos qualquer ligação de parentesco entre protector e

protegido. Poderiam ser amigos ou mesmo vizinhos. Eram todos cristãos-novos. Pelo

1037

Cf. ANTT, IE, proc. 10785, fl. 191v. 1038

Cf. ANTT, IE, proc. 3030, fl. 63. 1039

Cf. ANTT, IE, proc. 2197, fl. 90. 1040

Cf. ANTT, IE, proc. 8603, fl. 109. 1041

Cf. ANTT, IE, proc. 1836, fl. 198v. 1042

Cf. ANTT, IL, proc. 4527, fl. 21v-23v. 1043

Cf. ANTT, IE, proc. 3030, fls. 64-64v. 1044

Cf. ANTT, IE, proc. 4603, fls. 165v-166.

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parentesco ou pela vizinhança, no trabalho ou na alegada comunhão de uma fé guardada

em segredo, eles partilhavam o quotidiano. Como podiam não partilhar o sofrimento?

Quotidiano e festa

Os binómios privado-público, feminino-masculino, rural-urbano, trabalho-festa

definiam o quotidiano do cristão-novo como o de qualquer outro indivíduo no Algarve

dos séculos XVI e XVII. Porém, no seu caso específico, há uma outra dualidade a ter

em conta, o confronto entre a necessidade de integração numa sociedade

repressivamente cristã e a perene referência à ancestralidade judaica, móbil de exclusão

dessa mesma sociedade.

Comecemos pela casa, o espaço privado por excelência. Comum nos meios urbanos

era a casa sobradada1045

. Na loja, tornada tenda, botica ou oficina, o chefe de família

desenvolvia a sua actividade profissional, reservando o andar de cima para a

residência1046

. Nos lares mais modestos, trabalho e residência conviviam mais

intimamente – dormia-se, comia-se e trabalhava-se no mesmo espaço, com cortinas ou

repartimentos de madeira que separavam as diferentes áreas da habitação1047

.

Nalgumas casas cristãs-novas, havia rumores da existência de câmaras secretas,

espaços interditos até aos criados, onde se dava lugar a comportamentos heterodoxos.

Leonor, escrava de Maria Rodrigues, de Vila Nova de Portimão, espreitara pelo buraco

da porta de uma câmara que a sua senhora trazia sempre fechada à chave e vira-a a

açoitar um crucifixo1048

.

Por outro lado, o cristão-novo sentia necessidade de dar provas públicas da sua

afeição à “Santa Igreja Católica”. A excessiva manifestação de provas exteriores de

piedade cristã acaba por se colar à imagem do judaizante – cristão na obra, judeu na

vontade. Uma prática religiosa mais discreta, sem a intenção de chamar as atenções

alheias, passa a servir de prova de uma fé sincera. Vêmo-lo a servir de argumento de

defesa. É o que alega Custódio Mendes: confessava-se secretamente, frequentava as

igrejas fora de horas, punha velas nos altares dos santos “em tempo que não fosse

1045

Em Silves medieval, porém, predominariam as casas térreas (Cf. Luisa Trindade, “A habitação

corrente em Portugal”, A casa corrente em Coimbra dos finais da Idade Média aos Inícios da Época

Moderna, Coimbra, Câmara Municipal de Coimbra, 2002, p. 40). É possível que a situação se tenha

mantido durante a Época Moderna, dado o decréscimo populacional da cidade. 1046

Cf. João Carlos Oliveira, “A casa”, Nova História de Portugal..., vol. V, p. 633. 1047

Cf. Alves Dias, Gentes e espaços..., p. 101. 1048

Cf. ANTT, IE, liv. 212, fls. 87-88.

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visto”. Em casa, construiu um altar a São Brás, cuja devoção o salvara de um osso

atravessado na garganta1049

.

Possuir um oratório em casa, espaço de reclusão e de oração, evidenciava uma fé

sincera e discreta1050

. Porém, o uso indevido do oratório também suscitava denúncias.

Uma visita da casa de João Baptista, mercador de Lagoa, referiu que ele tinha um

oratório, num dos quartos, com duas imagens de Nossa Senhora penduradas de cabeça

para baixo e duas candeias acesas postas em cima1051

. Em Faro, Marcos Rodrigues

possuiria um oratório, com imagens de Cristo e de Nossa Senhora, no aposento onde

dormia e “[...] cada vez que queria fazer suas necessidades, mandava passar o serviço

doutro aposento por uma escrava sua e pô-lo ao pé do dito oratório e depois que fazia suas

necessidades o mandava tirar, isto em desprezo das ditas imagens [...]”1052

.

Marcos Rodrigues era um mercador de consideráveis cabedais, fintado em 1631, que

vivia numa casa com vários aposentos e contava com os serviços de escravos. Quem não

usufruía de uma condição financeira tão favorável mas, mesmo assim, possuía residência

própria, podia obter uma outra fonte de rendimento ao alugar parte da casa a outra família.

Em geral, era a loja, menos digna do que o sobrado1053

. Ora, a comunicação entre os dois

níveis da casa acabava por ser inevitável, embora nem sempre desejada. Em 1588, Beatriz

Pinta confessou que, por um buraco do sobrado onde vivia, ouvira Mor Rodrigues dizer à

mãe que havia guardado o jejum da Rainha Ester1054

. A privacidade era difícil quando,

numa mesma casa, podiam viver duas ou mais famílias. Vejamos o caso que Margarida

Fernandes, cristã-velha, denunciou durante a visita do inquisidor Manuel Álvares Tavares

a Silves. No Outono de 1584, ela foi viver para Alcantarilha com o marido. Beatriz

Simões deixou-os ficar numa câmara da casa da sua filha Branca Henriques. Segundo

Margarida, quando Beatriz ia a Alcantarilha, “[...] abre todas as portas e vivem todos

juntos [...]”. Assim, acabou por testemunhar que, aos sábados, a cristã-nova vestia sempre

roupa lavada e não fiava na sua roca1055

.

Nos meios urbanos, a estrutura das casas e a organização urbanística promoviam a

comunicação – as ruas estreitas, as casas geminadas. Quase tudo se sabia entre vizinhos,

1049

Cf. ANTT, IE, proc. 6954, fls. 140v-141. 1050

Vide José Adriano de Freitas Carvalho, “Um espaço de oração na Época Moderna. O oratório

particular: os usos. E também os abusos?”, Via Spiritus, n.º 7, 2000, pp. 145-162. 1051

Cf. ANTT, IE, liv. 229, fl. 460v. 1052

Cf. ANTT, IE, liv. 227, fl. 431. 1053

“Lança o Santo Ofício suas redes e colhe os de sobrado e os de loja, e a estes, que o vulgo chama de

menos sorte [...]” (Cf. ANTT, IE, proc. 2699, fl. 335). 1054

Cf. ANTT, IE, proc. 1682, fls. 122v-123. 1055

Cf. ANTT, IE, proc. 8844.

Page 243: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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o que tinha prós e contras para quem vivia numa duplicidade de crenças e de

comportamentos. Por um lado, constituía uma ameaça ao segredo. Por outro, potenciava

a comunicação da fé judaizante e a prática de uma ritualidade em comum. Era o que

acontecia na Praça Velha de Faro, em finais de Quinhentos. Após a morte do marido,

Estevainha Gomes foi morar com Bárbara Filipe e Inês de Caminha, moças solteiras e

órfãs. Na casa em frente, vivia Isabel Nunes, casada com Gonçalo Martins, parente do

marido de Estevainha. Era ela quem as avisava do tempo de celebração dos jejuns1056

.

Ora, a casa de Inês de Caminha e Bárbara Filipe comunicava com a das suas sobrinhas

Margarida Lopes e Leonor de Caminha através de “[...] um buraco por onde algumas

vezes se serviam para uma parte com outra [...]”1057

. Os jejuns eram guardados em

conjunto, mas longe dos olhares dos outros vizinhos.

No espaço público, o cristão-novo esforçava-se por dar provas da solidez do seu

catolicismo. A participação em manifestações públicas de religiosidade tornava-o

mais credível. A maioria dos processados revelava frequentar assiduamente romarias,

procissões e festas religiosas. Para alguns, nem sequer era incompatível com a fé que

guardavam em segredo. Inês Fernandes, quando questionada pela prima Ana

Fernandes porque ia à ermida de Nossa Senhora de Porches se acreditava na Lei de

Moisés, teria respondido “[...] que cria na dita lei mas que nem por isso deixava de ir a

romaria [...]”1058

. Afinal, não era só uma romaria, era um momento de ruptura com o

quotidiano, de festa.

Celebrada no mesmo cenário da vida quotidiana, metamorfoseado provisoriamente para

marcar a ruptura com o que era comum a todos os dias, a festa desempenhava uma função

que ia muito para além do mero divertimento1059

. Como refere José António Maravall, a

festa visava distrair o povo das suas inquietações e causar a admiração por quem a

realizava, pelo seu poder de ordenar e concretizar tanto esplendor1060

. De uma forma

espectacular e admirável, reproduzia a realidade e solidificava a consciência do lugar de

cada um na sociedade, evidenciando as fronteiras entre quem promovia a festa, quem

participava e assim se sentia parte desse universo, e quem apenas assistia e se maravilhava

com o aparato. Ora, no Portugal Moderno, a maior parte das festas a que a população tinha

1056

Cf. ANTT, IL, proc. 4385, fl. 96v-97. 1057

Cf. ANTT, IL, proc. 11669, fls. 1-9. 1058

Cf. ANTT, IE, proc. 875. 1059

Cf. André Chastel, “Le Lieu de la Fête”, Les Fêtes de la Renaissance. Ed. Jean Jacquot, t. I, Paris,

Éditions du Centre National de la Recherche Scientifique, 1956, pp. 419-423. 1060

Cf. José Antonio Maravall, La cultura del Barroco, Barcelona, Ariel, 2000, p. 492.

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acesso eram de foro religioso. A Igreja encontrava, assim, uma forma eficaz de chegar aos

fiéis, causando maior comoção do que com o mais arrebatado sermão dominical 1061

.

A festa era também um momento de encontro e de fomento dos laços sociais. Para

uma minoria constantemente arrastada para as margens da sociedade, a participação

em celebrações festivas provava a integração. Havia quem investisse largos cabedais

nesse sentido. Manuel Nunes de Moura alegou que, em dois anos seguidos, gastara

mais de 6 mil réis na festa de S. Tomás1062

. O mercador era oficial da confraria do

santo e uma figura admirada em Faro. Ao contribuir financeiramente para a realização

da festa, consolidava essa posição.

As ocasiões festivas seriam particularmente apreciadas pelos mais jovens.

Acompanhemos Isabel Duarte e Joana Rodrigues de Orta, que tinham 14 e 20 anos de

idade, respectivamente, quando foram presas pela Inquisição de Évora. Isabel recordou

a comédia que vira, por volta de 1629, na casa de Francisco Rodrigues de Abreu,

boticário cristão-velho. Um ano depois, a partir das janelas da casa da prima Isabel

Pereira, tinha assistido a uma “comédia de Nossa Senhora dos Prazeres”, na Praça

Velha. Nesse dia, a casa de Isabel Pereira enchera-se com perto de 20 pessoas1063

. Além

da comédia, também se fizeram “festas de cavalo”, segundo alegou Joana Rodrigues1064

.

À festa religiosa aliavam-se os espectáculos profanos – não só as comédias e as “festas

de cavalo”, como também os fogos1065

e as corridas de touros. Em 1631, houve touros

pelo Santo António. Isabel Duarte foi vê-los à casa de José Dias, na Rua de Santo

António, enquanto que Joana Rodrigues esteve à janela de Diogo de Tovar, na Rua do

Rego1066

. Possivelmente, as corridas realizar-se-iam na Praça Velha, para onde

confluíam as duas artérias1067

.

1061

Helena Pinto Janeiro, “A procissão do Corpo de Deus na Lisboa Barroca – o espaço e o poder”,

Arqueologia do Estado. 1as

Jornadas sobre formas de organização e exercício dos poderes na Europa do

Sul, Séculos XIII-XVIII, vol. II, Lisboa, História & Crítica, 1988, pp. 734-735. 1062

Cf. ANTT, IE, proc. 4361, fl. 55. Vide, em anexo, pp. 389-391. 1063

Cf. ANTT, IE, proc. 2218. Catarina da Assunção, também de Faro, contou que, em Novembro de

1636, por ocasião da festa de Nossa Senhora da Vitória, fora ver uma comédia à casa de Diogo

Rodrigues, pedreiro, onde se encontravam reunidos mais 18 cristãos-novos (Cf. ANTT, IE, proc. 10932). 1064

Cf. ANTT, IE, proc. 3208, fl. 46. 1065

Maria Baptista, de Faro, recorda a ocasião em que fora à casa de Custódio Mendes ver “umas festas

de fogo” (Cf. ANTT, IE, proc. 4724, fl. 20). 1066

Cf. ANTT, IE, proc. 2218; proc. 3208, fl. 39. 1067

Constança Simões, também de Faro, refere que, em 1631, fora à casa de Isabel Lopes, viúva de Diogo

Gonçalves de Tovar, para “[...] ver uns touros que corriam na praça [...]” (Cf. ANTT, IE, proc. 6091, fl.

36v). Em Vila Nova de Portimão, encontramos testemunhos de corridas de touros na Rua do Peru (Cf.

ANTT, IE, proc. 4603, fls. 157-157v). As corridas de touros também integravam a festa de Santo António

em Lisboa, realizadas no Rossio (Cf. Maria Eugénia Reis Gomes, Contribuição para o estudo da festa em

Lisboa do Antigo Regime, Lisboa, Instituto Português de Ensino à Distância, 1985, p. 27).

Page 245: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

245

A convivência entre o sagrado e o profano era particularmente visível nas procissões, o

que não deixava de causar o espanto, e até o escândalo, de quem vinha de fora1068

. A

procissão do Corpo de Deus constituía um caso paradigmático1069

. Em Tavira, a “gaiola”

com o Santíssimo Sacramento era levada por 10 clérigos e, à frente, a procissão organizava-

se tendo como modelo a própria hierarquia social – os nobres, os tabeliães, os mercadores

“de loja e de panos”, os clérigos, os frades, os lavradores, os mareantes, os boticários, os

mesteirais e os militares desfilavam em grupos, envergando os símbolos do seu ofício1070

.

Os moradores reuniam-se na casa uns dos outros e, das janelas e dos varandins, assistiam à

passagem do cortejo e a toda a sorte de eventos que o acompanhavam1071

.

Não só o Corpus Christi e o Santo António animavam o Verão no Algarve. As

celebrações do São João em Tavira atraíam muita gente de fora. Em 1624, até o Marquês

de Aiamonte foi assistir às festividades1072

. O mês de Agosto era particularmente

generoso em festas religiosas. Em Lagos, realizavam-se as procissões de Nossa Senhora

de Guadalupe e do Santíssimo Sacramento1073

, enquanto que, em Faro, havia as festas de

Nossa Senhora do Rosário, de Nossa Senhora da Vitória e de São Tomás1074

.

Na Quaresma, a penitência limitava a euforia festiva mas tornava mais intenso o

fervor religioso, manifestado nas procissões do Senhor dos Passos que se multiplicavam

por toda a região. A procissão de Loulé era particularmente popular, atraindo fiéis

doutras localidades, em particular de Faro1075

.

A vivência religiosa constituía um dos poucos impulsionadores da mobilidade

feminina. Embora os homens também participassem em romarias aos templos de maior

devoção, proliferam os testemunhos de mulheres que, sozinhas ou em pequenos grupos,

deslocavam-se a ermidas ou igrejas, quer nas proximidades do seu local de residência,

1068

Cf. Isabel Mendes Drumond Braga, “Entre o sagrado e o profano: as procissões em Portugal no

século XVIII segundo alguns relatos de estrangeiros”, A Festa. Comunicações apresentadas no VIII

Congresso Internacional da Sociedade Portuguesa de Estudos do Século XVIII. Lisboa, 18 a 22 de

Novembro de 1992, vol. II, Lisboa, Universitária Editora, 1992, pp. 455-468. 1069

Vide Helena Pinto Janeiro, “A procissão do Corpo de Deus...”, Arqueologia..., pp. 723-742; Iria

Gonçalves, “As festas do «Corpus Christi» do Porto na segunda metade do século XV: a participação do

concelho”, Um olhar sobre a cidade medieval, Cascais, Patrimonia, 1996, pp. 153-176. 1070

Cf. ANTT, Chancelaria de D. João III. Padrões, doações, ofícios e mercês, liv. 52, fl. 152. 1071

Cf. ANTT, IE, proc. 2815, fl. 14; proc. 3208, fls. 51v-52. 1072

“Armavam-se nas ruas públicas ou nos largos, bonitos mastros engrinaldados e revestidos de murta e

alecrim com as denominações das capelas de São João, flores próprias da época. Na parte superior,

colocava-se a Imagem do Santo feita de massa cozida no forno. Ao anoitecer acendiam-se fogueiras e

ornavam-se os mastros de luzes. Chegada a ocasião, começavam os bailes e descantes em que entravam

os rapazes e as raparigas alternadamente ou em coro.” (Cf. Damião Augusto de Brito Vasconcelos,

Notícias Históricas de Tavira..., p. 276). 1073

Cf. BN, Reservados, cod. 10835, fl. 352-355v. 1074

Cf. ANTT, IE, proc. 3069, fls. 136v-137; proc. 3166, fl. 174; proc. 1836, fl. 77v. 1075

Cf. ANTT, IE, proc. 738; proc. 824, fls. 56-56v; proc. 4086.

Page 246: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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quer mais longe. Regressemos a Isabel Duarte e a Joana Rodrigues de Orta. Em Junho de

1630, Isabel foi à romaria de Nossa Senhora da Esperança, na companhia de duas outras

mulheres1076

. Joana, por sua vez, recordou uma romaria à ermida de São Cristóvão, em

Setembro de 16321077

. As duas jovens mencionaram pequenas deslocações a ermidas no

termo de Faro, mas havia quem empreendesse viagens de dias, pernoitando na casa de

familiares ou de pessoas de confiança1078

. Nos templos de maior devoção, existiam

mesmo instalações próprias para o acolhimento dos peregrinos. Era o caso da ermida do

Santo Cristo, em Moncarapacho, com a sua “casa de romagem”1079

. O santuário recebia,

então, uma das maiores romarias do Algarve. A festa anual celebrava-se a 14 de

Setembro, data em que fora inaugurada a capela, no ano de 16321080

. Ainda antes da

construção do templo, já acorriam ao Santo Cristo fiéis oriundos de toda a região, mas

também do Alentejo, Beiras e até da Andaluzia1081

. No Barlavento, a ermida de Nossa

Senhora do Verde era um outro importante centro de peregrinação1082

.

As festas religiosas suscitavam movimentos sazonais da população, urbana e rural,

rumo aos locais de culto, normalmente situados fora dos núcleos urbanos, em espaços

de menor concentração demográfica. Outros momentos de circulação da população da

cidade para o campo, e vice-versa, relacionavam-se com o calendário agrícola e com a

actividade pesqueira. De Agosto a Outubro, tempo da apanha do figo e da uva, todos os

caminhos iam dar ao campo:

“Aos santos domingos pouca gente fica nas povoações, porque ou estão nas

fazendas continuamente os de casa ou esses que nelas ficam nestes dias vão a ver e

desenfadar-se com os outros; e é tanto o regozijo e contentamento que mostram

neste tempo, a que chamam alacil, uns dum cabo e outros d‟outro, com diversos

cantares e tangeres, que facilmente se pode deles entender que pera eles aquela é a

melhor parte do ano e ainda o mais alegre da vida. Todos neste tempo andam fartos

e contentes, assi ricos como pobres, e se melhoram nos vestidos de suas pessoas e

alfaias de casa, de maneira que este tempo, no Algarve, é como a ceifa em

Alentejo, quando anda o trigo polas eiras.”1083

1076

Cf. ANTT, IE, proc. 2618. A romaria de Nossa Senhora da Esperança é frequentemente referida (Cf.

ANTT, IE, proc. 463, fl. 73; proc. 590, fls. 37v-38; proc. 6722, fl. 109; proc. 1341, fl. 37v). 1077

Cf. ANTT, IE, proc. 3208, fl. 61v. 1078

Grácia Lopes, de Loulé, quando foi em romaria à ermida de Santa Bárbara, no termo de Faro, pousou

na casa de Belchior Vaz, com quem não tinha, aparentemente, qualquer ligação de parentesco (Cf. ANTT,

IE, proc. 2841, fl. 43-43v). Também Guiomar Ilhoa, por volta de 1626, empreendeu uma viagem de Loulé

até à ermida de S. Marcos, nos arredores de Faro, tendo ficado agasalhada na casa de Rui Lopes, sapateiro

(Cf. ANTT, IE, proc. 2815, fls. 14v-15). 1079

Cf. ANTT, IE, proc. 4400, fl. 2; proc. 4403, fls. 2-2v. 1080

Cf. Antero Nobre, O Santo Cristo.... 1081

Cf. Fernandes Mascarenhas, Santo Cristo...., 1971. 1082

Cf. Ataíde Oliveira, A Monografia de Alvor, 3ª edição, Faro, Algarve em Foco, 1993, p. 170; C. A.

Ferreira de Almeida, “Religiosidade Popular e Ermidas”, Studium Generale. Estudos Contemporáneos.

Religiosidade popular, n.º 6, 1984, p. 77. 1083

Cf. São José, “Corografia...”, Duas Descrições..., pp. 110-111.

Page 247: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

247

Um movimento inverso era registado a partir de Março e até ao final de Julho,

quando os barcos do atum saíam para o mar. Frei João de São José refere-o como um

outro alacil no Algarve, um tempo de abastança e de convívio1084

. A costa enchia-se de

gente e o alvoroço era tal que merecia ser visto. Assim pensariam Leonor Filipe e Maria

Filipe que, por ocasião de uma visita a Joana Rodrigues de Orta, em Maio de 1628,

pediram-lhe que as levasse ao eirado para ali “verem o atum”1085

.

A apanha do figo, a pesca e venda do atum, tal como as festividades religiosas,

tornavam-se momentos de sociabilização. Para os cristãos-novos judaizantes,

constituiriam também oportunidades para a comunicação da crença na Lei de Moisés

para lá do círculo de relações em que se moviam quotidianamente1086

. A reunião com

mais cristãos-novos, o desvio das atenções alheias para outros focos de interesse e a

euforia exacerbada pelos abusos próprios do ambiente festivo encorajavam a tomada de

atitudes tão arriscadas quanto a partilha de uma fé que se queria secreta. E tal parecia

suficientemente credível para ser exposto na mesa da Inquisição.

As mulheres tinham na casa o espaço de trabalho mas também de lazer. Recebiam

visitas e retribuíam-nas. Havia ocasiões em que a casa se enchia de gente – no parto, na

morte, na festa. Sabiam das novas da terra, falavam dos filhos e dos maridos que

estavam longe, lamentavam-se da sua desdita ou rejubilavam pela boa sorte que Deus

lhes dera. Trocavam receitas para uma vida melhor, que podiam passar pela crença na

“lei velha” e pela observação dos seus rituais.

Aos homens estava reservado um conjunto mais alargado de divertimentos.

Caçavam1087

, iam “ao mar folgar”1088

, jogavam xadrez1089

e às cartas. Reuniam-se nas

casas ou nos quintais para jogar “ao trunfo”1090

. António da Gama refere uma casa em

Albufeira onde se “dava jogo”1091

. As cartas eram um divertimento comum e transversal

a todos estratos sociais, porém, legalmente reprovável, sobretudo quando envolvia

dinheiro. As constituições sinodais interditavam-no aos clérigos, as Ordenações

Filipinas proibiam-no a todos. Contudo, o jogo continuou a ser praticado e até tolerado

1084

Cf. Idem, Ibidem, p. 122. 1085

Cf. ANTT, IE, proc. 3208, fl. 36v. 1086

Elvira Mea também identificou esta relação entre os tempos de lazer e os momentos de comunicação

da fé judaizante nos processos da Inquisição de Coimbra (Cf. Mea, A Inquisição de Coimbra..., p. 465). 1087

Cf. ANTT, IE, proc. 2649, fl. 82v. 1088

Cf. ANTT, IE, proc. 6921, fls. 2v-3. 1089

Cf. ANTT, IL, proc. 1688, fl. 21; proc. 7773, fl. 15. 1090

Cf. ANTT, IE, proc. 4571, fl. 6; IL, proc. 10960, fl. 32v. 1091

Cf. ANTT, IE, proc. 2968, fls. 138v.

Page 248: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

248

pelas autoridades1092

. Em meados de Seiscentos, na vila de Albufeira, até se jogava na

casa de um escrivão do judicial1093

. E entre uma mão e outra, falava-se sobre a Lei de

Moisés. Todos os momentos de sociabilidade poderiam servir para a disseminação da

“herética fé dos judeus” – assim pensavam os inquisidores, assim confessavam os réus.

A proximidade também suscitava o conflito. No jogo faziam-se dívidas, nas visitas

domésticas surgiam discussões e nas festas havia toda a sorte de excessos que podiam

deflagrar em confrontos. Na sociedade dos séculos XVI e XVII, a violência fazia parte

do quotidiano. Dentro de portas, a relação entre marido e esposa chegava a tomar

contornos fatais, como no caso de Isabel de Sousa, que, segundo se dizia, tentara matar

o marido por duas vezes: a primeira com veneno, a segunda com a espada1094

. Saindo

para a rua, a mais simples discussão poderia terminar em cutiladas. As famílias

dividiam-se, os ódios passavam de geração em geração.

O risco de viver à mercê dos perigos trazidos pelo mar endurecia os homens.

Recordemo-nos como a cidade de Faro fora devastada em 1596, depois do saque das hostes

do conde de Essex. Nos anos finais da monarquia filipina, os ataques corsários adensaram-

se. Pedro Gomes, meses depois de lhe ter sido levantada a penitência, pedia licença para

andar armado. Justificava-se: “[...] por ser costa de mar e andarem nela sempre inimigos,

lhe é necessário trazer armas para defesa da sua pátria e pessoa, o que não pode fazer sem

licença de Vossas Senhorias [...]”1095

. Além dos inimigos do mar, os cristãos-novos estavam

sujeitos a investidas por terra, a partir de Évora. A ameaça vinha de duas direcções. O medo

impregnava-lhes o quotidiano.

4. “POR OBSERVÂNCIA DA LEI DE MOISÉS”. FÉ E RITUALIDADE.

A 18 de Novembro de 1536, menos de um mês após o estabelecimento oficial da

Inquisição em Portugal, o inquisidor-geral D. Diogo da Silva assinava um monitório,

enumerando todas as práticas heréticas que deveriam ser denunciadas perante o novo

Tribunal. A lista registava uma série de ritos e cerimónias identificados como

1092

Cf. Vítor Ferreira e António Gomes Ferreira, “Os jogos e a moral no Antigo Regime”, Desporto.

Ética. Sociedade. Actas, Porto, Universidade do Porto, 1990, pp. 191-199. 1093

João Nunes, meio cristão-novo, denunciado por Rodrigo Álvares (Cf. ANTT, IE, proc. 2649, fl. 84v). 1094

Cf. ANTT, IE, proc. 6056. 1095

Cf. ANTT, IE, proc. 4871, fl. 56.

Page 249: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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judaicos1096

. Era, porém, um rol demasiado breve para traduzir, na íntegra, a ritualidade

praticada pelos cristãos-novos forçados a abraçar a fé cristã, mas que, secretamente,

continuariam fiéis à religião dos seus pais. Haviam passado menos de 40 anos e alguns

teriam nascido ainda antes da conversão geral.

Não obstante, o Monitório estabeleceu o cânone do que a Inquisição entendia por

“culpas de judaísmo”. Fosse em Évora, Lisboa ou Coimbra, as confissões dos réus

presos também se repetiam incessantemente. Raras eram as que fugiam a esse cânone.

E, entre os cristãos-novos algarvios, a situação não diferiu particularmente.

O ensino da Lei Velha

O tempo do primeiro contacto com a Lei de Moisés era uma questão omnipresente.

“Quantos anos há que, depois do último perdão geral concedido aos cristãos novos deste

Reino, se apartou da nossa Santa Fé Católica e Lei Evangélica e se passou à Lei de

Moisés, esperando salvar-se nela [...]”1097

– nenhum preso conseguia escapar a esta

pergunta. Mesmo quando se mantinham negativos nas primeiras sessões, a maioria

acabava por ceder e confirmar as acusações.

Segundo I.-S. Révah, é possível distinguir duas formas de transmissão do

criptojudaísmo: uma contínua, de geração para geração; e outra descontínua, com

“rupturas cristãs no caminho do criptojudaísmo”. A cada uma correspondia um espaço

de doutrinação – o meio familiar ou o meio profissional1098

. A segunda forma de

trasmissão abrangia igualmente círculos de sociabilidade extra-profissionais (os

vizinhos, os amigos, os simples conhecidos). À formulação de Révah acrescentaríamos

mais uma destrinça, evidenciada nos processos: a iniciação na infância e a que ocorre já

na idade adulta. Na primeira vaga de prisões no Algarve, a maioria dos réus remontou a

aprendizagem dos primeiros rudimentos da Lei de Moisés à idade adulta, enquanto que,

nas duas entradas seguintes, predominaram os testemunhos de uma iniciação antes dos

1096

“Monitorio do Inquisidor Geral per que manda a todas as pessoas que souberem doutras que forem

culpadas no crime de heresia e apostasia o venham denunciar em termo de trinta dias” in Collectorio de

diversas letras apostolicas, provisões reaes, e outros papeis, em que se contém a Instituição, e primeiro

progresso do Sancto Officio em Portugal, e varios Privilegios que os Summos Pontifices, e Reis destes

Reynos lhe concederão..., Lisboa, 1596. Vide Herman P. Salomon, “The «Monitorio do Inquisidor Geral»

of 1536. Background and sources of some «judaic» customs listed therein”, Arquivos do Centro Cultural

Português, vol. XVII, 1982, pp. 41-64. 1097

Cf. ANTT, IE, proc. 8789. 1098

Cf. I. S. Révah, “Les Marranes Portugaises et l‟Inquisition au XVIe siècle”, Études Portugaises, Paris,

Fundação Calouste Gulbenkian / Centro Cultural Português, 1975, p. 224.

Page 250: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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20 anos de idade. Porém, se, nos processos de finais do século XVI, o ensino foi

atribuído maioritariamente aos pais, já nas décadas de 30 e 40 de Seiscentos, tal como

em meados da centúria anterior, foram mais os réus que referiram a iniciação por via

doutros cristãos-novos com quem não tinham qualquer ligação de parentesco.

Coloque-se as devidas reticências a estas confissões. Afinal, ao invés de delatar o

pai, a mãe ou mesmo um irmão mais velho, seria menos penoso denunciar um indivíduo

pouco conhecido e vagamente identificado – um estrangeiro que aparecera na cidade,

um parente distante do qual nem se sabia o nome. Em 1562, Isabel Fernandes confessou

que, havia 4 ou 5 anos, quando ainda vivia em Lagos, tinha estado com uma mulher de

Mazagão que lhe dissera para jejuar nesse dia. Relativamente ao nome da mulher, ela

hesitou: chamar-se-ia Beatriz Fernandes ou Beatriz Dias, não tinha a certeza1099

. Anos

mais tarde, em 1633, Beatriz Mendes referiu um cristão-novo de Huelva que, estando

em Faro a vender trigo, lhe ensinara a guardar os sábados de trabalho, a não comer

porco nem peixe sem escama e a rezar o Pai Nosso em honra de Moisés1100

.

Recordemos ainda como, pela mesma altura, Branca Dias e o irmão Custódio Mendes

mencionaram a doutrinação por parte de um parente distante, oriundo de Nantes1101

. De

facto, o Algarve era uma região permeável ao contacto com o estrangeiro, povoada de

mercadores e mareantes de origens remotas, alguns até de espaços onde se professava

livremente o judaísmo. Contudo, o ensino e a comunicação de uma fé proibida

dificilmente se processariam fora de um círculo de confiança sustentado por laços

familiares ou de amizade. Os próprios inquisidores sabiam-no e raramente davam

crédito à confissão de quem dizia ter sido ensinado por fulano que viera de longe, do

qual não sabia o nome, nem o paradeiro.

Preso em 1562, Gaspar Fernandes confessou que ensinara a Lei de Moisés aos seus

três filhos: Simão Vaz, então a aprender o ofício de ourives em Lisboa, Heitor e Grácia,

os dois ainda a viver na sua casa, em Tavira. Ensinou-os “[...] cada um como era sua

idade e lhe parecia que teria capacidade para isso [...]”1102

. E que idade seria essa?

Segundo refere, Gaspar começara a ensinar os filhos havia então perto de 6 anos. Em

1562, o filho mais velho tinha cerca de 20 anos – ou seja, fora iniciado por volta dos 14.

Os testemunhos presentes noutros processos, de réus que admitiam a iniciação no

criptojudaísmo antes da idade adulta, confirmam que o primeiro ensino ocorria entre os

1099

Cf. ANTT, IL, proc. 623, fls. 6-6v. 1100

Cf. ANTT, IE, proc. 2331, fls. 133v-134. 1101

Cf. ANTT, IE, proc. 3739, fls. 15-15v; proc. 6954, fls. 83v-84. 1102

Cf. ANTT, IL, proc. 2486, fl. 65v. Sobre Gaspar Fernandes, vide supra, pp. 54-55.

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10 e os 15 anos: em média, 13 anos para as raparigas e 15 anos para os rapazes1103

. Esta

era, aproximadamente, a “idade da discrição”, referida pelos regimentos inquisitoriais1104

.

Num lar onde os pais eram judaizantes, o ensino dos preceitos da Lei de Moisés

sucedia a uma primeira educação nos princípios da Lei de Cristo. Ora, a criança tinha de

atingir a “discrição” suficiente para compreender a necessidade desse comportamento

ambíguo1105

. Contudo, os limites etários não eram rigorosos e nem sempre uma

determinada idade era garantia de discernimento. Alguns réus usaram esse argumento,

justificando que, apesar de iniciados na fé judaica, tal acontecera quando ainda eram

demasiado jovens para compreenderem que estavam a enveredar pelos caminhos da

heresia. Vejamos o caso de Francisca Dias, presa em 1594, em Campo de Ourique.

Quinze anos antes, quando ainda vivia em Vila Nova de Portimão, por ocasião da morte

de uma vizinha, Francisca lançara fora a água que havia em casa para beber. Na

primeira sessão, afirmou que o fizera sem qualquer intenção judaizante e só porque a

avó lho ordenara. Nessa altura, Francisca tinha 15 anos de idade e “[...] era de muito

pouca idade e de menos perfeito juízo e entendimento e que o que fez foi

inconsideradamente e sem saber o que fazia [...]”. Interrogada sobre a sua fé, disse que,

nesse tempo, não cria em nada “[...] porque não tinha idade nem saber para isso [...]”.

Os inquisidores não ficaram convencidos: “[...] que esta idade era bastante para saber

em que Deus havia de crer e que necessariamente lho haviam de dizer as pessoas que a

ensinaram [...]”. Ainda no final dessa sessão, Francisca acabou por confirmar que já

acreditava na Lei de Moisés no momento em que lançara fora a água1106

.

Devido à repressão inquisitorial, o ensino do criptojudaísmo passou a restringir-se a

espaços e círculos sociais cada vez mais fechados. Assim confessavam os réus. No caso

dos rapazes, cujo percurso formativo os afastava ainda cedo do lar paterno, alguns

encontravam os seus mestres fora do núcleo familiar, preferencialmente noutras figuras

masculinas a quem deviam obediência. Encontramos dois exemplos em Francisco

Fernandes, o mancebo de Lagos relaxado em 1627, cujo patrão foi também o seu mestre

na Lei de Moisés, e em Henrique Dias, de Vila Nova de Portimão, iniciado pelo tio

Gabriel Dias, quando aprendia com ele ofício de sirgueiro1107

. Como também já se disse,

o pai estaria mais presente na educação dos filhos varões. Francisco Mendes fora iniciado

1103

Cálculo da média sobre todos os processados que confessaram a iniciação antes dos 18 anos de idade. 1104

Vide supra, p. 236. 1105

Cf. Huerga Criado, En la raya..., pp. 176-177. 1106

Cf. ANTT, IE, proc. 6441, fls. 43v, 79v-81v. 1107

Cf. ANTT, IE, proc. 7496, fls. 74-76; proc. 11297.

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no criptojudaísmo pelo pai, Diogo de Tovar, um ensino consolidado por alguns letrados

de Faro, na casa dos quais “[...] ouvia praticar cousas da sua Lei e que, de os ouvir, ficava

sabendo algumas tocantes à dita Lei [...]”1108

. Quem seriam esses letrados? Noutras

localidades portuguesas, há testemunhos de indivíduos com fama de rabis. Maria José

Ferro Tavares, no seu estudo sobre a comunidade de Trancoso, menciona a existência de

cristãos-novos com essa reputação, que presidiam ao amortalhamento dos defuntos e à

degolação ritual dos animais, comunicavam o tempo em que deveriam ser guardados os

jejuns, ensinavam as orações judaicas e possuíam livros proibidos1109

. No caso do

Algarve, não encontrámos referências similares, mas há nomes que se repetem ao longo

dos processos, constantemente denunciados pela transmissão dos princípios da Lei de

Moisés – homens e mulheres de idade já avançada que zelavam pela perpetuação dessa fé.

Se os primeiros rudimentos seriam preferencialmente ensinados dentro de um

círculo restrito, a partilha da fé e da ritualidade praticada tendia a extravasar esses

limites, enquadrando-se nas relações sociais e profissionais do dia-a-dia, cuja

abrangência variava conforme os diferentes níveis de mobilidade. Filipa Lopes Pinto,

presa em 1637, comunicara a sua fé com mais quatro cristãos-novos, num pomar no

lugar do Pombal, termo de Loulé. Numa romaria à ermida de Santa Catarina, a meia

légua da vila, tinha voltado a tocar no assunto. Mais ou menos pela mesma altura,

estivera num olival, junto ao sítio de Vale de Rãs, com um grupo de familiares, ocasião

na qual todos se tinham confessado judaizantes. Seis anos antes de ser presa, indo a

caminho da ermida de Nossa Senhora dos Pobres, na companhia de Isabel Coelha e da

filha Filipa Fernandes, encontrara na Rua de Nossa Senhora, em Loulé, mais dois

cristãos-novos e “entre outras práticas”, haviam falado sobre a Lei de Moisés. A

confissão de Filipa Lopes prosseguiu nesta mesma dinâmica – a comunicação da fé em

grupos mais ou menos numerosos, com indivíduos mais ou menos próximos, em

ocasiões mais ou menos identificadas no tempo e no espaço1110

.

Construíam-se redes de sociabilidade que preenchiam o quotidiano das famílias

cristãs-novas. Essas redes eram fomentadas na confiança, o alicerce da comunicação de

uma fé que se sabia ilícita e votada à clandestinidade. A confiança era testada. Branca

Ribeira, indo um dia à casa de Beatriz Fernandes, foi convidada pela anfitriã para jantar.

Porém, Branca declinou o convite. Estava de jejum. Beatriz soube, então, que lhe

1108

Cf. ANTT, IE, liv. 212, fls. 305v-306v. 1109

Cf. Ferro Tavares, “Os judeus da Beira interior...”, Sefarad..., p. 398. 1110

Cf. ANTT, IE, proc. 6826.

Page 253: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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poderia confiar o segredo: também ela não iria comer nada, pois era segunda-feira e

jejuava em honra da Lei de Moisés1111

. A partilha do segredo solidificava os laços.

Constituía um ritual iniciático de entrada no grupo dos que, secretamente, mantinham

viva a fé dos ancestrais.

Guardar os sábados e jejuar de estrela a estrela

O descanso sabático e todo o cerimonial de sexta-feira à noite – a preparação das

refeições para sábado, a troca da roupa da cama, as torcidas novas e o azeite limpo nas

candeias, deixadas acesas noite adentro – eram das práticas mais citadas pelos cristãos-

novos na mesa da Inquisição1112

.

Uns guardavam o sábado “na obra”, outros apenas “no coração”. O escrutínio dos

vizinhos, dos criados e de todos os que participavam do seu dia-a-dia obrigava o cristão-

novo a, por vezes, ficar-se pela intenção, ou mesmo a ludibriar a forma como cumpria o

preceito. Aproveitava as festas cristãs que calhavam ao sábado para vestir roupa nova, ia

visitar parentes que viviam noutras localidades. As mulheres simulavam trabalhar no tear

ou na almofada de bordar, os homens iam para fora em negócios e assim podiam cumprir

o descanso sabático longe da vista de quem os conhecia. Veja-se o exemplo de Manuel

Mendes, de Tavira, que só guardava os sábados na vontade “por não ousar”, mas que

chegou a mudar de camisa em dois sábados, no tempo em que esteve fora de casa1113

.

Na década de 30 e 40 do século XVII, proliferam as confissões de réus que diziam

não comer carne de porco, coelho, lebre ou peixe sem escama e que descreviam a forma

como retiravam todo o sangue e gordura à carne e a cozinhavam em azeite e cebola. Estes

preceitos dietéticos não têm grande expressão nos processos da primeira entrada da

Inquisição no Algarve, embora comecem a ser mais prolixamente referidos já no final do

século XVI. A tendência é inversa relativamente à guarda dos jejuns judaicos1114

.

De facto, nos processos dos anos 60 do século XVI, o jejum “que vinha pelo mês de

Setembro” é prolixamente mencionado. Seriam poucos os cristãos-novos que não

conheciam essa cerimónia, mesmo que não a praticassem. «Então vós andais fora do curral,

não sabeis que amanhã é o dia grande que nossos padres jejuavam» - Álvaro Nunes ouvira

1111

Cf. ANTT, IL, proc. 12778, fls. 66v-67. 1112

Vide em anexo, gráfico 11.1, p. 114. 1113

Cf. ANTT, IL, proc. 7175, fl. 5v. 1114

Vide, em anexo, gráfico 11.1, p. 114.

Page 254: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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estas palavras a João Lopes Cristino, quando estavam os dois na feira de Nossa Senhora da

Luz, em Tavira. O seu desconhecimento e a falta de interesse em guardar o jejum também

causara a consternação de Duarte Lopes Cristino, irmão de João Lopes: «Então esse

cavaleiro tem mais cuidado de andar em velhacarias que em cousas de Deus»1115

.

Os dois irmãos referiam-se ao jejum do Quipur. Dez dias depois do Rosh Hashana, o

“Dia Grande” é dedicado à oração e à penitência1116

. Devido à perseguição inquisitorial e

à perda da memória sobre o ritual, a celebração do Quipur passou a resumir-se, na grande

maioria dos casos, à prática do jejum. O Monitório de 1536 referia ainda outros

comportamentos: os celebrantes passavam o dia descalços e, depois de sair a primeira

estrela, comiam carne e tigeladas e pediam perdão uns aos outros1117

. Mas, nos processos

estudados, não encontrámos qualquer referência a outro ritual além da não ingestão de

qualquer alimento desde o anoitecer até ao surgir da primeira estrela do dia seguinte.

O grande obstáculo à prática do jejum do Quipur residia na determinação do dia em

que havia de ser guardado. Era senso comum que se celebrava em Setembro (o próprio

Monitório o refere1118

), mas poucos sabiam o dia exacto. Em Tavira, Clara Fernandes,

que vivera em Mazagão, onde fora “criada entre judeus”, sabia-o e comunicava-o a

outros cristãos-novos da cidade1119

. Mas este tipo de comunicação tendeu a retrair-se. A

observação de um jejum, necessariamente cumprido num tempo específico, exigia uma

arriscada troca de informações. Talvez tal explique a redução de menções ao “Dia

Grande” nos processos ulteriores, pouco mencionado na entrada de finais do século XVI

e ainda menos na vaga dos anos 30 e 40 da centúria seguinte.

O mesmo se aplica ao jejum da Rainha Ester, reminiscência da festa do Purim, na

qual se celebrava da libertação dos judeus da Pérsia. No cerimonial judaico, o jejum

antecedia a festa. João de Águila, em Amesterdão, participara dessa festividade,

celebrada no final de Fevereiro e inícios de Março “[...] com festas e alegrias e tendo

muitas iguarias e banquetes depois de saídas as estrelas, quando hão-de cear, e que o

outro dia, em honra da mesma lembrança, fazia festa com os mesmo judeus e se

1115

Cf. ANTT, IL, proc. 4135, fls. 8-8v. 1116

“Isto será para vós uma lei perpétua: no décimo dia do sétimo mês, jejuareis e não fareis trabalho

algum, tanto os que são naturais da terra, como os estrangeiros que residirem no meio de vós. Porque,

nesse dia, far-se-á por vós o rito da purificação, para serdes purificados, ficareis purificados de todos os

vossos pecados diante do Senhor.” (Lv. 16, 29-30). De acordo com esta determinação bíblica, o Quipur

era celebrado a 10 do mês de Tishré (Setembro-Outubro). 1117

Cf. “Monitorio do Inquisidor Geral...”, fl. 5. 1118

“[...] jejuam o jejum maior dos Judeus, que cai no mês de Setembro [...]” (Cf. Idem, fl. 5). 1119

Cf. ANTT, IL, proc. 2486, fls. 66-66v.

Page 255: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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embebedava como os demais [...]”1120

. Na clandestinidade, este clima de euforia

desapareceu e apenas restou a penitência. Bárbara Filipe fora ensinada por Beatriz Rica

que, depois do Natal, vinha o jejum da Rainha Ester, “[...] o qual havia de jejuar três

dias a réu, sem comer senão à noite e que melhor seria quem pudesse não cear senão no

terceiro dia [...]”1121

. As cristãs-novas partilhavam com Ester a condição de mulher

perseguida pela fé1122

. De facto, este jejum revelava-se particularmente popular entre as

mulheres judaizantes, mas não só1123

.

Por influência do Cristianismo envolvente, mas também para melhor ocultá-lo, o

jejum era guardado durante a Quaresma, o que, em determinados anos, deveria mesmo

coincidir com o tempo da festa do Purim, celebrada a 14 de Adar (Fevereiro-Março)1124

.

Porém, também encontramos indícios da observação do jejum da Rainha Ester fora

deste tempo. No final de Janeiro de 1555, antes de partir para Santo Domingo, nas

Índias de Castela, Garcia Gonçalves fizera um jejum da Rainha Ester por conselho da

sua mãe – Deus dar-lhe-ia boa viagem se o guardasse1125

. Anos depois, em 1587,

Guiomar Mendes, de Faro, admitia que, no mês de Dezembro do ano anterior, guardara

o jejum com Beatriz Pinta, sua companheira de cárcere1126

. Catarina Lopes, presa em

1592 e residente em Vila Nova de Portimão, disse perante os inquisidores que a mãe lhe

ensinara a jejuar às segundas e quartas-feiras e a oferecer esse sacrifício à Rainha

Ester1127

. Aliás, pela mesma altura, outras cristãs-novas de Portimão repetiram este

mesmo equívoco, associando os jejuns semanais ao ritual em honra da Rainha Ester.

Talvez fosse um costume que se disseminara entre as cristãs-novas da vila.

O nome do ritual não escapou à adulteração. Por afinidade fonética, “Ester” tornou-se

“estrela”. Em 1589, Violante Lopes, de Vila Nova de Portimão, denunciou que, algum

tempo antes da peste, vira da sua janela as vizinhas Grácia Gonçalves e Violante Dias a

rezarem no quintal. Ao perguntar-lhes o que estavam a fazer, Violante Dias respondera-

1120

Cf. ANTT, IL, proc. 7938, fl. 4. 1121

Cf. ANTT, IL, proc. 16695, fl. 71v. 1122

Cf. Miriam Bodian, “«Men of the Nation»: The Shaping of Converso identity in Early Modern

Europe”, Past and Present, n.º 143, Maio 1994, p. 63. 1123

Em 1563, António Vaz, disse ter feito o jejum da Rainha Ester na companhia da esposa, Leonor Dias,

e que, na casa do irmão Gaspar Fernandes, toda a família guardava este jejum e o do Quipur (Cf. ANTT,

IL, proc. 12419, fls. 20v-21v). Pela mesma altura, o seu conterrâneo Duarte Fernandes também admitiu

que costumava jejuar o último dia do jejum da Rainha Ester (Cf. ANTT, IL 12745, fl. 10). Muitos anos

mais tarde, em 1636, António Fernandes Castanho confessou que praticara esse jejum durante 3 ou 4 anos

(Cf. ANTT, IE, proc. 10531). 1124

Cf. Lipiner, Santa Inquisição..., p. 84. 1125

Cf. ANTT, IE, proc. 8491, fls. 4v-5. 1126

Cf. ANTT, IE, proc. 9012, fl. 139. 1127

Cf. ANTT, IE, proc. 7711.

Page 256: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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lhe que era “[...] um jejum da lei dos judeus à estrela [...]”1128

. Na origem de tal corruptela

poderá estar a forma como se definiam os jejuns judaicos – de estrela a estrela.

Em tempos de perseguição, seria mais simples cumprir os jejuns com uma

periodicidade regular. Guardados todas as segundas e quintas-feiras da semana, os

thanis (do hebraico ta’anit, jejum1129

) tornaram-se numa das práticas mais confessadas

pelos réus algarvios no final do século XVI1130

. Embora facultativos no Judaísmo

normativo, acabaram por constituir “um dos pilares invisíveis do judaísmo secreto”, nas

palavras de Elias Lipiner, chegando mesmo a superar, entre os cristãos-novos

portugueses, a observação dos jejuns obrigatórios1131

. Jejuar às segundas e quintas-

feiras seria uma forma de se penitenciarem dos ritos cristãos que eram obrigados a

cumprir e das cerimónias judaicas que deixavam para trás1132

.

Já no cárcere, alguns réus continuaram a guardar esses jejuns. São vários os casos que

encontramos ao longo dos processos, como o de Isabel Nunes, que entrara nos calabouços

da Inquisição a 26 de Julho de 1587. No início de Outubro, praticara uma série de “jejuns

pequenos”, tentando iludir os guardas em contrário: mantinha a rotina de preparação das

refeições mas não ingeria qualquer alimento antes de anoitecer1133

. Vejamos um outro

exemplo. Pedro Fernandes, alcaide do cárcere, testemunhou uma sequência de jejuns

praticados por Mécia Vaz, de Vila Nova de Portimão, no mês de Julho de 1560. Num

Domingo, o guarda levou-lhe uma panela com carne de vaca cozida, pão, dois cachos de

uvas e um pouco de queijo. Mécia cortou a carne muito miúda e lançou-a no lixo.

Reservou o resto e só comeu perto da meia-noite. Na terça-feira seguinte, voltou a receber

a refeição por volta das 11-12 horas: carne de carneiro, pão, uvas e queijo. Mécia

desossou a carne e cortou-a aos pedacinhos, oferecendo-a a um gato que entrara por uma

fresta da cela. Depois, tomou o pão, migou-o no caldo da carne e deu-o também ao

animal. Durante todo o dia, andou descalça no cárcere e só comeu quando o sol se pôs.

Mécia Vaz continuou a não comer até de noite nos dias seguintes, apesar da crescente

debilidade1134

. Pressionados pelos inquisidores a confessar o que criam e o que não criam,

obrigados a mentir para salvar a própria vida, os réus valorizavam a penitência do jejum,

intensificando o seu rigor e alargando-o no tempo.

1128

Cf. ANTT, IE, proc. 8751, fls. 3-3v. 1129

Cf. Gitlitz, Secrecy and Deceit..., p. 396. 1130

Vide, em anexo, gráfico 11.1, p. 114. 1131

Cf. Lipiner, Os baptizados..., p. 397. 1132

Cf. Lipiner, Santa Inquisição..., p. 92. 1133

Cf. ANTT, IE, proc. 4195, fls. 15v-16. 1134

Cf. ANTT, IL, proc. 2373, fls. 73-83v.

Page 257: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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Nas décadas de 30 e 40 do século XVII, os jejuns semanais e o da Rainha Ester

ainda ocupavam um lugar relevante entre as práticas criptojudaicas mais confessadas

pelos réus algarvios, mas os testemunhos da observação do jejum do Quipur tornou-se

meramente residual1135

. Em compensação, surgiram outros rituais, alguns sem paralelo

no Judaísmo normativo. Era o caso do costume de “varrer a casa às avessas”. Ausente

do Monitório de 1536, esta prática já constava no édito de fé da visitação de 15851136

.

Mas é no século seguinte que encontramos mais cristãos-novos a confessá-la1137

. A sua

origem é controversa. Elias Lipiner cita um autor do século XVII, Moisés Haguiz, que a

explica pelo facto de, nas casas judias, haver o costume de se fixar, nos umbrais das

portas, a mezuzah, rolo de pergaminho contendo os versículos do Deuteronómio citados

no Sema Israel. Assim, varria-se a casa da porta para dentro por respeito à mezuzah. Na

generalidade dos lares cristãos-novos já não haveriam mezuzot nos umbrais, mas o

costume ter-se-ia mantido1138

.

Da Páscoa ao São João

Escassas foram as festividades judaicas que se mantiveram na clandestinidade. Já

falámos de duas, o Quipur e o Purim, cujos resquícios permaneceram até bastante tarde.

A Páscoa judaica também continuou a ser mencionada nos processos inquisitoriais dos

cristãos-novos algarvios, embora parcamente.

O Monitório de 1536 enumerava três páscoas celebradas pelos judaizantes: a do Pão

Ázimo, a das Cabanas e a do Corno1139

. A Páscoa do Corno correspondia ao Rosh

Hashana, a celebração do início do ano litúrgico judaico, no primeiro dia do mês de

Tishri (Agosto-Setembro)1140

. Quinze dias depois, era a altura da Páscoa das Cabanas

1135

A mesma tendência foi registada entre os cristãos-novos de Elvas (Cf. Maria do Carmo Teixeira

Pinto, “Comportamentos e vivências quotidianas dos cristãos-novos seiscentistas: o caso de Elvas”,

Inquisição Portuguesa. Tempo, Razão e Circunstância. Coordenação de Luís Filipe Barreto et alii, São

Paulo, Lisboa, Prefácio, 2007, p. 531). 1136

Branca Simões refere que, após a visitação ter passado por Lagos, viu a sua vizinha Violante Fernandes

a varrer a casa da porta para dentro e alertou-a para que não o fizesse, “[...] que agora não podiam fazer o

que era defeso na visitação, como varrer a casa daquele modo [...]”. (Cf. ANTT, IE, proc. 5286). 1137

Por exemplo, Beatriz Álvares, de Faro, confessou que Maria Gomes lhe ensinara, entre outras

práticas, que “[...] varresse as casas às avessas, da porta para dentro, porque se lhe não fossem os bens

para fora [...]” (Cf. ANTT, IE, proc. 4406, fl. 2v). 1138

Cf. Lipiner, Santa Inquisição..., p. 140. 1139

Cf. “Monitorio do Inquisidor Geral...”, op. cit., fl. 5. 1140

O testemunho de um judeu de Fez, Felipe d‟Austria, consultado pela Inquisição de Lisboa em 1587,

revela a razão da celebração desta Páscoa e da sua designação: “A razão de guardar esta Páscoa era

segundo diziam os sábios do Talmude porque no primeiro dia da lua de aquele mês de Agosto havia

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ou dos Tabernáculos, o Sukkot, na qual os fiéis armavam cabanas de ramos de palmeiras

e ali viviam durante 8 dias, de sábado a sábado1141

.

Porém, só a Páscoa do Pão Ázimo é mencionada pelos réus algarvios. Nos processos

dos anos 50-60 do século XVI, ainda aparece com alguma frequência, diminuindo

drasticamente nas entradas seguintes1142

. O cerimonial consistia numa série de gestos

simplificados ao máximo, desempenhados sigilosamente e restritos ao ambiente familiar.

Em 1563, Gaspar Fernandes, de Tavira, confessou que chegara a guardar algumas páscoas

na companhia da esposa1143

. Leonor Fernandes, durante o tempo em que vivera em

Mazagão, celebrava a Páscoa e, ao regressar a Tavira, continuou a festejá-la1144

.

Tradicionalmente, a celebração da Páscoa judaica dura 8 dias. Foi o que Beatriz

Rica ensinou a Bárbara Filipe: “[...] que havia de guardar oito dias a réu e neles havia de

comer pão ázimo [...]”1145

. Porém, este período não era rigidamente cumprido por todos.

Para evitar suspeitas, reduziam-se os dias de celebração1146

. O calendário também

sofreu mutações, tentando coincidir com a celebração da Páscoa cristã1147

.

Mas nem todos os cuidados conseguiam evitar a denúncia. Aos ouvidos dos

inquisidores, chegavam notícias de fulano que fazia pães ázimos em casa e sicrano que

havia comprado louça nova para celebrar a “páscoa dos judeus”. Os pães eram

confeccionados sem fermento, cozidos em casa, no borralho, e acompanhados por

alfaces, a erva amarga que recordava o cativeiro no Egipto1148

. Os alimentos – não só o

subido o patriarca Abraão com seu filho Isaac ao monte de Moria a o sacrificar, segundo Deus o havia

mandado. E feito no dito monte o lume, tomou Abraão o dito seu filho Isaac e atado, estendido no chão e

tomando o cutelo para o degolar, ouvia uma voz do céu que lhe disse «Abraão, Abraão, no tiendas tu

mano al mozo ni hagas a él nada que ahora sé que temiente de Señor tu». Entonces alçou os olhos e viu

um carneiro preso dos cornos em uma rama e tomou-o Abraão e em lugar de seu filho sacrificou-o. Em

memória disto guardavam esta Páscoa e tangiam na sinagoga com certas cerimónias um corno que

chamavam sofar e por isso chamavam a primeira Páscoa «do corno»” (Cf. Herman Prins Salomon, “Uma

descrição em primeira mão e em português da vida religiosa judaica numa comunidade de Marrocos no

último quartel do século XVI”, CES, n.º 8, 2008, pp. 257-258) 1141

Cf. Gitlitz, Secrecy and Deceit..., pp. 356-357, 371-375. 1142

Vide em anexo, gráfico 11.1, p. 114. 1143

Cf. ANTT, IL, proc. 2486, fl. 71v. 1144

Cf. ANTT, IL, proc. 11v. 1145

Cf. ANTT, IL, proc. 16695, fl. 71v. 1146

Estêvão Dias confessa que, na companhia do pai e das irmãs, comia os “bolos ázimos” só durante três

ou quatro dias (Cf. ANTT, IL, proc. 364, fl. 15). 1147

Maria Antonieta Garcia nota-o na evolução da comunidade de Belmonte. (Cf. Maria Antonieta

Garcia, Judaísmo no Feminino. Tradição Popular e Ortodoxia em Belmonte, Lisboa, Instituto de

Sociologia e Etnologia das Religiões / Universidade Nova de Lisboa, 1999, p. 79). Segundo Maria José

Ferro Tavares, na comunidade de Trancoso, os criptojudeus festejavam a Páscoa judaica no Domingo de

Ramos e, na semana seguinte, reuniam-se aos cristãos para a celebração da Páscoa cristã (Cf. Ferro

Tavares, “Os judeus da Beira interior...”, Sefarad..., p. 398). 1148

Gaspar Fernandes, de Tavira, confessou que, durante 3 ou 4 anos, havia guardado alguns dias da Páscoa

dos judeus e “[...] comido bolos asmos que se faziam assim em sua casa e se coziam no borrelho e lhe

parece também comiam alfaces [...]” (Cf. ANTT, IL, proc. 2486, fl. 71v). A sua conterrânea Mor Mendes

Page 259: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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pão e as “ervas amargas”, como também grão, arroz, castanhas e outros géneros que não

carne – eram servidos em louça nova1149

. Rui Dias, rendeiro da louça de Tavira, teria

pedido ao sócio, Gonçalo Tojo, alguma louça nova “para fazer uma páscoa dos

judeus”1150

.

Menos comuns são as referências ao cordeiro pascal. O ritual tendeu a cair em

desuso, mas não desapareceu por completo no Algarve. Em 1634, Manuel Mendes de

Oliveira, mercador de Faro, era denunciado na sequência de um episódio que ocorrera

no mês de Maio desse ano, na armação do Zimbral. Manuel estava com o filho Afonso,

de 14 anos de idade, que, ao ver um lavrador pronto para matar um cordeiro, comentara

que era melhor guardá-lo para a “festa grande”1151

. Outras menções revelam-se bem

mais nebulosas. Vejam-se os casos do Lic. João Fernandes Quaresma, que “[...] correra

um bode em sexta feira ou sábado da semana santa na Fortaleza de Ferragudo [...]”1152

,

ou de Gaspar de Barros, acusado pelos vizinhos de, em sexta-feira de Endoenças, matar

um “bode ruivo” à porta de casa1153

.

O enquadramento de cerimónias ditas judaizantes no calendário de festividades

cristãs regista-se também no caso do Natal e do São João. Em ambas as datas, a

ritualidade repetia-se: eram deitadas brasas acesas na água que havia em casa para

beber. Notam-se, porém, algumas variantes. Em 1595, Catarina Dias confessava que,

pelo São João, tinha o costume de deitar um pedaço de pão na água1154

. Alguns anos

antes, Isabel Rodrigues cumpria o mesmo ritual porque, segundo lhe ensinaram, nesses

dias, “se turvavam as águas”1155

. Mais elaborada é a prática testemunhada por Mariana

dos Anjos, presa a 1636: nas noites de Natal e de São João, deitava na água que tinha

para beber pedras de sal, gotas de vinho, brasas acesas e miolo de pão1156

.

O Monitório de 1536 referia esse ritual: “[...] lançarão, & lanção às noites de Sam

Ioão Bautista, & do Natal, na agoa dos cantaros, & potes ferros, ou pão, ou vinho,

também aludiu que “[...] celebrou e guardou algumas vezes a páscoa do pão asmo, comendo-o nela sete ou

oito dias, e que ela fazia o dito pão asmo e que nos ditos dias da páscoa, comia castanhas, arroz e alfaces e

outras cousas que os judeus nos tais dias costumam comer [...]” (Cf. ANTT, IL, proc. 12530, fl. 4v). 1149

Cf. Maria José Ferro Tavares, “A religiosidade judaica”, Actas do Congresso Internacional

«Bartolomeu Dias e a sua época», vol. V, Porto, Universidade do Porto, Comissão Nacional para a

Comemoração dos Descobrimentos Portugueses, 1989, p. 373. 1150

Cf. ANTT, IL, proc. 7773, fl. 8v-10 1151

Cf. ANTT, IL, liv. 213, fl. 123. 1152

Cf. ANTT, IE, proc. 5071. 1153

Cf. ANTT, IE, liv. 221, fls. 41-44v. 1154

Cf. ANTT, IE, proc. 3446, fls. 146-146v. 1155

Cf. ANTT, IL, proc. 3874, fl. 46. 1156

Cf. ANTT, IE, proc. 4086, fl. 20.

Page 260: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

260

dizẽdo, que aquellas noites se torna a agoa em sangue [...]”1157

. Porém, não se tratava de

uma cerimónia judaica mas sim da reminiscência de uma superstição pagã vinculada aos

solstícios do Verão e do Inverno1158

– um tipo de “contaminação” ritual que seria

corrente na religiosidade criptojudaica.

No nascer e no morrer

A religião encontra-se presente na vida do judeu desde o berço. Recordando a

aliança consagrada entre Deus e Abraão, o ritual da circuncisão marca a entrada do fiel

na comunidade. Entre os criptojudeus, este terá sido um dos primeiros rituais a ser

abandonado. A marca física constituía um risco demasiado elevado. Pilar Huerga

Criado sublinha que, nas comunidades da raia da Extremadura, a circuncisão foi

substituída por uma outra cerimónia – a “de las hadas” – na qual familiares e amigos se

reuniam na casa dos pais da criança sete dias após o seu nascimento para comemorarem

e oferecerem presentes; o recém-nascido era banhado numa bacia cheia de ouro, prata,

aljôfar, trigo e cevada, enquanto se pronunciava uma oração1159

.

No Algarve, não encontramos nenhuma cerimónia similar. Porém, ao longo dos

processos, registam-se menções pontuais a indivíduos alegadamente circuncidados. Em

1620, no Convento dos Religiosos da Província da Piedade em Lagos, o deputado Lopo

Soares de Castro, enquanto recolhia testemunhos sobre o assassinato de Francisco

Lopes Serralvo, o pantufeiro de Beja degolado em Monchique, escutou que um

sobrinho de Beatriz Filipe teria sido circuncidado em bebé. Maria Cordovil, que numa

ocasião albergara Beatriz Filipe e outras mulheres na sua casa no lugar da Torre, termo

de Odiáxere, referiu um menino de 5 anos que as acompanhava, Pancrácio Tinoco, filho

de Branca Lopes de Mesquita. E continuou:

“estando à noite para se lançarem na cama, por serem muitas e não caberem,

disse ela, testemunha, que queria levar consigo o menino Pancrácio para dormir

com ela na sua cama, para ficarem mais à sua vontade, o que elas não queriam

consentir por nenhum caso, mostrando sentirem muito o querer ela, testemunha,

levar o dito menino, o qual, com efeito, levou, [...] todas as sobreditas mulheres

diziam para uma sua mulata que não despisse a camisa ao dito menino Pancrácio

e, mandando ela, testemunha, uma sua mulata, por nome Catarina, que levasse o

dito menino a urinar para não sujar, viu a dita mulata que o menino estava

1157

Cf. “Monitorio do Inquisidor Geral...”, fl. 5v. 1158

Cf. Herman P. Salomon, “The «Monitorio do Inquisidor Geral» of 1536. Background and sources of

some «judaic» customs listed therein”, Arquivos do Centro Cultural Português, vol. XVII, 1982, p. 48. 1159

Cf. Huerga Criado, En la raya...., p. 178.

Page 261: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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circuncidado e logo chamou a ela, testemunha, e lhe mostrou o dito menino com

o dito sinal da circuncisão [...]”1160

.

Nos capítulos anteriores, já abordámos outros dois casos de circuncisão: o de Gaspar

Dias, filho de Jorge Lopes, e o de Pedro Gomes, o primogénito de Branca Dias1161

.

Note-se que todos os testemunhos datam do século XVII. Mas são só três casos em

centenas de processos.

Mais frequentes são as menções a rituais ditos judaizantes praticados no outro

extremo do percurso da vida do crente. Na tradição judaica, o ritual da morte integrava

uma sequência de gestos: o corpo do morto era lavado em água quente e perfumada;

cortavam-se-lhe as unhas e rapavam-se-lhe os pêlos; vestiam-no com roupa nova e

amortalhavam-no num lençol novo, dobrado uma ponta sobre a outra e sem costura;

colocava-se o corpo numa câmara para ser pranteado pelos familiares e amigos; e, no

final, era enterrado em terra virgem, deitando-se fora toda a água que havia em casa

para beber1162

. O enterro em terra virgem foi um dos primeiros rituais a desaparecer

entre os criptojudeus. Seria muito difícil cumpri-lo sem levantar suspeitas. As outras

práticas também sofreram mutações e adquiriram uma maior discrição. Afinal, no

momento da morte, as portas não se encontravam fechadas aos cristãos-velhos. A

preparação do corpo e o velório eram momentos de partilha, independentemente da

“qualidade do sangue”, e seria arriscado vivê-lo de forma distinta da maioria1163

.

Vila Nova de Portimão, inícios dos anos 80: Beatriz Carrilhas amortalha o corpo da mãe

de Grácia Fernandes, Domingas Matosa cose a camisa que envolveria Isabel Gramaxa,

Constança Rodrigues assiste ao amortalhamento do corpo do filho de Beatriz Simões1164

.

As três são cristãs-velhas, os defuntos cristãos-novos. Quando Manuel Álvares Tavares

visita a vila, elas apresentam-se e denunciam comportamentos que tinham então achado

estranhos, mas que só associaram à fé judaica após a leitura do édito de fé – o

amortalhamento em pano novo e o vazamento da água que havia em casa1165

.

Ao contrário do que acontecia noutras comunidades, entre os cristãos-novos do

Algarve, o amortalhamento do corpo do morto era uma tarefa feminina, independentemente

1160

Cf. ANTT, IE, liv. 213, fls. 87-87v. 1161

Cf. ANTT, IE, proc. 5677, fls. 4-11; proc. 3739, fl. 5. Vide supra, pp. 136, 124, 215. 1162

Cf. Ferro Tavares, “A religiosidade judaica”..., p. 376. 1163

Cf. Olival, “A visita da Inquisição...”, III Colóquio Internacional..., pp. 510-511. 1164

Cf. ANTT, IE, procs. 7765, 7330 e 8844. 1165

Segundo Maria do Carmo Teixeira Pinto, também foram estas as duas práticas fúnebres que melhor

sobreviveram entre os cristãos-novos de Elvas (Cf. Teixeira Pinto, Os Cristãos-Novos de Elvas..., pp. 226-227).

Page 262: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

262

do sexo do defunto1166

. Por exemplo, o corpo de Francisco Lopes, pai de Pedro Lopes, foi

amortalhado por duas mulheres1167

. Também Filipa Henriques confessou que ela e a mãe

haviam feito a mortalha com que envolveram o corpo de um filho de Leonor de Santarém,

cristã-nova de Vila Nova de Portimão1168

. O morto era vestido com uma camisa comprida e

coberto com um lençol novo, em geral de linho. Para disfarçar, havia quem vestisse um

hábito franciscano por cima1169

. Outros colocavam na mão do defunto uma moeda, num

ritual que extravasava tradição judaica1170

.

Preparado o corpo, era altura de velá-lo. A casa abria-se a familiares, amigos,

conhecidos. Como é natural, a maioria abandonara o costume de carpir o morto com

cantigas da “lei velha”. A maioria, mas nem todos. Em 1578, faleceu Gaspar

Domingues, lavrador do lugar de Rogel, termo de Silves. Guiomar Tomé, cristã-velha,

estranhou o comportamento da família. A viúva, Branca Henriques, andava pela casa a

cantar: «Andechas, Andechas, Andechas direchas de mi perdiçon»1171

. Quando foi velar

o morto, Guiomar viu-a chorar, tal como à mãe, Beatriz Simões:

“[...] chorava cada uma delas um pouco e, quando uma chorava, não chorava a

outra, e logo ambas juntas fechavam as mãos e as lançavam à cabeça e diziam estas

palavras juntamente: «Hui por ele, hui por o escuro, hui pelo sem ventura, hui por

ele». E isto continuavam grande espaço de tempo [...]”1172

.

Durante a visitação de 1585, Branca Henriques apresentou-se e disse que tais

lamentos não passavam de expressões de dor pela morte inesperada do marido1173

. Mas

não convenceu o visitador – Branca Henriques e Beatriz Simões estariam a carpir o

1166

Maria José Ferro Tavares constatou o contrário na comunidade de Trancoso: aos homens cabia a

preparação e amortalhamento do corpo, enquanto que as mulheres ficavam responsáveis por velar e carpir

o morto e por lançar fora a água que havia em casa para beber. (Cf. Ferro Tavares, “Os judeus da Beira

interior...”, Sefarad..., pp. 396-397). 1167

Cf. ANTT, IE, proc. 8790, fls. 4-4v. 1168

Cf. ANTT, IE, proc. 5530. 1169

Maria Lourença, criada de Diogo Martins, cristão-novo de Lagos, contou que a mulher deste fora

amortalhada numa camisa nova de linho curado e, por cima, vestiram-lhe um hábito de S. Francisco. (Cf.

ANTT, IE, proc. 5286). 1170

Cf. Huerga Criado, En la raya..., p. 180. Isabel Jorge acusou Filipa Henriques e Beatriz Fernandes de

terem amortalhado o corpo de Isabel Mendes, mãe de Beatriz ao modo judaico, “[...] vestindo-lhe uma

camisa comprida e um lençol de linho que tiraram de uma arca, o qual diziam que lhe mandara uma

cristã-nova que não conhece, nem sabe o nome, nem sabe se o dito lençol era velho, se novo, porque era

moça e não atentou por isso e que, antes de a amortalharem, viu que as ditas duas mulheres lavaram a

defunta primeiro e que, depois de amortalhada, a dita Filipa Henriques lhe meteu na mão uma moeda de

real e meio [...]” (Cf. ANTT, IE, proc. 8654). 1171

Quase pela mesma altura, em Marrocos, as comunidades judaicas também pronunciavam a lamentação

das “endechas” por ocasião dos rituais fúnebres (Cf. Salomon, “Uma descrição...”, CES..., pp. 294-295). 1172

Cf. ANTT, IE, proc. 8844. 1173

Cf. ANTT, IE, proc. 11315.

Page 263: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

263

morto “ao modo judaico”. Já o Monitório de 1536 referia o modo como os judeus

choravam os defuntos “com suas diteiras cantando”1174

.

Porém, entre as cerimónias fúnebres citadas no Monitório, a que melhor sobreviveu no

Algarve foi o vazamento da água que havia para beber, quando alguém da casa ou da

vizinhança falecia1175

. Diziam alguns que “[...] a morte, depois que matava o defunto, vinha

lavar a espada na dita água que tinha para beber e, por isso, não era bom bebê-la [...]” e

outros que “[...] quando alguém morre, a alma do defunto se vai lavar na dita água e fica

lavada dos pecados [...]”1176

. Uma e outra justificação têm paralelo em superstições

populares de inspiração judaica mas também cristã: o anjo da morte a lavar a sua espada, a

alma a banhar-se antes de partir para a vida eterna. Segundo Herman P. Salomon, esta

prática não possui qualquer fundamento na Bíblia ou no Talmud e nem sequer nos códigos

judaicos. As suas raízes encontram-se no Cristianismo medieval do Norte da Europa,

posteriormente adaptada à tradição judaica, através da lenda do anjo da morte1177

.

A Torá e a toura

Em 1585, Belchior da Fonseca, vigário-geral do Algarve, escrevia uma carta ao

visitador, na qual narrava um episódio ocorrido em Faro:

“Um homem mareante cristão-velho achou em uma parte do muro desta cidade, em

parte escura, um resto de tourá já antigo, dourado. Trouxe-me este homem esta boa

peça a casa e a mandei depositar na mão de Belchior da Costa, escrivão, [...] julgam

que é cousa já velha e que é rosto de vaca de tamanho de duas mãos [...]”1178

.

As “touras” continuavam a aparecer em Faro. Em 1633, no inventário da fazenda

de Afonso Pinto Duarte, encontraram-se “[...] seis touras pequenas de barro de

Estremoz douradas, digo, borrifadas de ouro, com seus cornos, assim e da maneira de

uma vaca [...]”, todas embrulhadas em papel e guardadas numa gaveta. A Rodrigo

Lopes, familiar do Santo Ofício, pareceu “mal tanta toura junta” e remeteu-as à

Inquisição de Évora1179

. Pela mesma altura, algumas testemunhas acusaram Grácia

Mendes, sobrinha de Custódio Mendes, de dizer que fora ensinada pela mãe a rezar

1174

Cf. “Monitorio do Inquisidor Geral...”, fl. 5. 1175

Nas comunidades da raia castelhana, este teria sido um dos primeiros rituais a desaparecer (Cf. Huerga

Criado, En la raya., p. 180). 1176

Cf. ANTT, IE, proc. 5286 e 1548. 1177

Cf. Salomon, “The Monitorio...”, Arquivos do Centro..., pp. 48-60. 1178

Cf. ANTT, IE, proc. 4668. 1179

Cf. Romero Magalhães, E assim se abriu..., p. 44.

Page 264: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

264

uma oração “ao boizinho de ouro”. “É a lei de Moisés um boi?” – perguntara a Inês

Pousada, quando interrogada se cria na Lei de Cristo ou na de Moisés1180

.

A resposta à questão de Grácia Mendes é, num certo prisma, afirmativa. Tudo

decorre de um equívoco fonético. A “toura” é a Torá. Com o passar de gerações e

gerações de vivência clandestina da fé, em que quase não havia acesso aos textos

sagrados do Judaísmo, a recordação do que realmente era a Torá esfumara-se para

muitos. E a Torá tornou-se toura, e a toura, boizinho, bezerra, bezerrinha. Como se

chegou de uma coisa à outra? Segundo Maria Antonieta Garcia, poderia ser uma

associação à passagem do Êxodo em que o povo hebreu, sentindo-se abandonado por

Moisés, construiu um bezerro de ouro e passou a adorá-lo1181

.

O culto dessas imagens, considerado pelos inquisidores como prática judaizante, era

completamente contrário ao Judaísmo normativo. Resvalava para a idolatria. E não se

limitava às touras ou bezerras douradas. Sebastião Rodrigues Janeiro, cristão-novo

residente em Faro, tinha em casa uma figura de barro que representava Moisés, à qual

prestava culto1182

.

Estas deturpações da doutrina judaica nasceram do progressivo desconhecimento

dos textos sagrados em que se alicerçava a religião dos antepassados. Por um lado,

havia a repressão religiosa, a proibição da circulação de tais textos. Por outro, a perda

do conhecimento da língua hebraica e, em última instância, a baixa literacia que

afastava o judaizante da compreensão do texto que, comum às duas religiões, ainda

poderia constituir um ponto de contacto com a “lei velha”, a Bíblia, lida em latim nos

púlpitos das igrejas.

Porém, estes eram obstáculos contornáveis. Sobretudo, o segundo.

Nos espaços onde o Judaísmo era professado livremente, cedo se tomou consciência

de que os judeus expulsos da Península Ibérica e os cristãos-novos que, na diáspora,

regressavam à fé dos seus antepassados, tinham um conhecimento muito deficitário, ou

mesmo nulo, da língua hebraica. Conscientes desta situação, os líderes religiosos

promoveram a tradução dos textos basilares do Judaísmo para vernáculo. Logo no início

da década de 40 do século XVI, em Ferrara, tentou-se a tradução da liturgia do hebraico

para o português, mas só anos depois, em 1552, surgiram os primeiros livros impressos

1180

Cf. ANTT, IE, liv. 213, fls. 419-422v. Vide também Borges Coelho, Inquisição de Évora..., pp. 423-424. 1181

Cf. Maria Antonieta Garcia, Denúncias em nome da fé. Perseguição aos judeus no distrito da Guarda

de 1607 a 1625. «Caderno de culpas do bispado da Guarda e seu distrito e das visitações», Lisboa,

Instituto de Sociologa e Etnologia das Religiões / Universidade Nova de Lisboa, 1996, p. 71. 1182

Cf. ANTT, IE, proc. 4837.

Page 265: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

265

de orações judaicas em castelhano1183

. No ano seguinte, na oficina de Abraão Usque, era

impressa a tradução castelhana da Bíblia, a célebre Bíblia de Ferrara. Este movimento

de tradução e impressão de textos litúrgicos judaicos acabou por passar para as

emergentes comunidades sefarditas do Norte da Europa1184

. Perdurou o método de

tradução, palavra a palavra, mantendo a construção sintáctica do hebraico1185

.

Teriam estas vulgarizações dos textos litúrgicos judaicos chegado à Península

Ibérica, mesmo à revelia do controlo inquisitorial? Era impossível vedar todas as

brechas e, de alguma forma, houve cristãos-novos peninsulares que tomaram contacto

com esses textos1186

. No caso do Algarve, são muito raras as referências a livros de

orações. Recordemo-nos, porém, que Francisco Fernandes trouxera de Veneza um livro

com orações, cujo conteúdo consistia em:

“[...]os salmos de David, sem Gloria Patri, et cetera, e a oração que dizia «Adonai,

Adonai», que quer dizer que amaria o Senhor com todo o coração e com toda a alma

e com toda a vida e com todo o haver e aquele que bendiz Abraão, Isaac, Jacob, José,

Moisés e Aarão, David, Salomão, bendiga aos filhos de Jacob, grandes e pequenos, a

eles e a seus filhos, e a seus discípulos e lhe dê graças para o qual serviam e os leve

ao Monte de Sião e a Jerusalém, terra prometida a seus pais [...]”1187

.

Tratar-se-ia, possivelmente, de um Sidur. Quando regressou a Lagos, para ocultá-lo

do pai, enterrou-o ao pé de uma cepa de vinha, no termo da cidade.

A parcimónia das menções a textos litúrgicos judaicos no processos consultados

colide com o facto de o Algarve ser uma região prolixamente frequentada por

mercadores e homens de negócios oriundos do estrangeiro e, muitos deles, de espaços

onde o Judaísmo era livremente professado. Mais comum é a alusão a textos de teor

1183

Libro de Oracyones de todo el anno..., Ferrara, Yom Tob Atias, 1552; Sedur de Oraciones de mes...,

Ferrara, Yom Tob Atias, 1552; Orden de Silhot el qual comienxa en la luna nueva de Elul..., Ferrara,

Yom Tob Atias, 1552. (Cf. Meyer Kayserling, Biblioteca Española-Portugueza-Judaica, Nova Iorque,

KTAV Publishing House, 1971, pp. 81-86). 1184

Cf. Salomon, Portrait of a New Christian..., pp. 145-152; Aron di Leone Leoni, The Orden de

oraciones de mês arreo (Ferrara 1555) and a Bakasah composed by Abraham Usque”, Sefarad, n.º 62,

2002, pp. 99-124; Idem, “Il Sedur de Oraciones de mes di Yom Tob Atias (Ferrara, 1552)”, Sefarad, n.º

63:1, 2003, pp. 89-117; Fernando Diaz Esteban, “Literatura hebrea y literatura castellana”, Espacio,

Tiempo y Forma, série III, tomo 6, 1993, pp. 517-542. 1185

Vide Haïm Vidal Sephiha, Le Judéo-Espagnol, Paris, Editions Entente, 1986; Manuel Alvar, El

ladino, judeo-español calco, Madrid, Real Academia de la Historia, 2000. 1186

Vejamos alguns exemplos. Maria Gomes, esposa de um mercador de Lisboa, foi presa em 1662, quando

tentava esconder dos oficiais do Santo Ofício uma cópia manuscrita do Tefillah Quotidiano (Cf. Carla da

Costa Vieira, Maria Fernanda Guimarães e Susana Bastos Mateus, “Um tefilah manuscrito num processo da

Inquisição de Lisboa”, Caderno de Estudos Sefarditas, n.os

10-11, 2011, pp. 537-568). Tomás Gomes,

mercador de Celorico da Beira, possuía, em 1645, um caderno manuscrito com o Selihot (Cf. ANTT, IL,

proc. 11560, fls. 61-80v. Vide a transcrição deste caderno in “SelliRoth. Um caderno de orações apenso ao

processo de Tomás Gomes”, [Consult. 20 Fevereiro 2012]. Disponível online: http://www.catedra-alberto-

benveniste.org/_fich/15/Sellihoth_edicao_paleografica.pdf). Um outro exemplo é o de António Rodrigues

Ferreirinha, preso pela Inquisição em 1588, ao ser denunciado por um sócio que lhe vira escapar do bolso

um caderno com orações judaicas manuscritas (Cf. ANTT, IC, proc. 653, fls. 19-36v). 1187

Cf. ANTT, IE, proc. 7496, fls. 80-80v. Vide em anexo, p. 398.

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cristão que, por abordarem temáticas relativas ao Antigo Testamento e à história do

povo judeu, eram apropriados pelos judaizantes. Lidos à margem da interpretação

oficial da Igreja, tendiam a suscitar o reforço de atitudes e crenças heterodoxas e, dada a

difusão de interpretações marginais, alguns acabaram por integrar o Índex1188

.

A 16 de Outubro de 1652, o comissário do Santo Oficio apreendeu, no porto de Faro,

30 obras que haviam chegado num barco castelhano, destinadas a Frei Lourenço, capelão

da igreja de São Luís, em Lisboa. Entre estas, encontravam-se as duas partes do Flos

Sanctorum de Alonso Villegas (edições de Toledo, 1591, e Alcalá de Henares, 1609)1189

.

A primeira parte da obra de Villegas é dedicada, como refere o título, à “historia geral

da vida e feitos de Jesu Christo Deos Nosso Senhor [...] & de todos os mais sanctos de

que reza & faz festa a Igreja Catholica”, enquanto que, na segunda parte, o autor discorre

sobre a vida de Maria e “de los sanctos antiguos”, entre os quais, os patriarcas de

Israel1190

. Era uma obra piedosa que visava a educação dos crentes cristãos nos conteúdos

do texto bíblico. Porém, a segunda parte do Flos Sanctorum tornou-se particularmente

popular entre os judaizantes que, sem acesso à Torá, encontravam ali uma fonte

doutrinal1191

. Foi através deste texto que Francisco Fernandes descobriu a sua nova fé1192

.

Em 1636, Frei Ângelo de Santa Maria, capelão do convento das carmelitas em Lagos,

encontrou um exemplar do Flos Sanctorum com a seguinte inscrição manuscrita:

“Primeiro, sem dúvida que não deve de ser vindo o Mexias. 2º E assi temos por

cousa certa e tradição de nossos passados que há-de reinar no mundo e sujeitá-lo

todo a seu mando e império, pois se isto assi é, como o não vemos se é vindo?

Como, se ele está em o mundo, se não se vê? Como estamos ainda sujeitos aos

Romanos e ao Rei que eles puseram, estrangeiros à nossa nação que ainda professa

a Lei de Moisés, não é descendente de Abraão? 3º Virá de longe e com grande

furor e como deitando fogo de sua boca e como corrente grande de caudaloso rio

para perder as gentes que são os gentios que têm oprimido seu povo, como se vê ao

presente nos Romanos, e assi nos livrará de seu poder.”1193

Foi realizada uma diligência em Lagos, junto dos religiosos do convento. Era o ano

de 1636 e o Algarve sofria a mais intensa vaga de prisões inquisitoriais de que havia

memória. Por outro lado, os inquisidores reconheciam a popularidade do Flos

Sanctorum entre os judaizantes. O autor da inscrição foi revelado. Frei Ângelo

1188

Cf. Peña Díaz, “Libros permitidos...”, Cuadernos de Historia..., pp. 89-101. 1189

Cf. Rau, Subsídios para o estudo do movimento dos portos...., p. 260. 1190

Cf. Alonso de Vilhegas, Flos Sanctorum e historia geral da vida e feitos de Jesu Christo Deos Nosso

Senhor..., Lisboa, Simão Lopes, 1598; Idem, Flos Sanctorum: Segunda parte y Historia General en que

se escriue la vida de la Virgen sacratissima madre de Dios, y señora nuestra: y las de los sanctos

antiguos..., Toledo, Juan Rodriguez, 1586. 1191

Cf. Salomon, “Spanish Marranism Re-examined”, Sefarad, vol. 68:1, Jan.-Jun. 2008, pp. 404-406. 1192

Cf. ANTT, IE, proc. 7496, fls. 74-74v. Vide supra, pp. 115-118. 1193

Cf. ANTT, IE, liv. 240, fls.449-449v.

Page 267: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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reconhecera a letra como sendo de Madre Bernarda da Anunciação, da qual não se

conhecia qualquer ascendência cristã-nova. Tal pesou muito para o crédito dado aos

argumentos da freira: fizera esses escritos para o presépio e iria colocá-los junto a uns

profetas da Lei1194

. Encerrou-se o caso. Porém, o facto de ter chegado aos ouvidos dos

inquisidores de Évora indicia o clima de suspeita que se vivia então no Algarve, mesmo

numa cidade pouco atingida pela entrada dos anos 30, como era o caso de Lagos.

Outros livros de teor similar atraíam o interesse dos judaizantes. Em Fevereiro de 1564,

Gaspar Lopes confessou aos inquisidores que, indo de Tavira a Serpa, havia então 10 anos,

encontrara Diogo Fernandes, que lhe “[...] deu um livro que se chama Arpa de David e ele,

confessante, o levou para sua casa e lia por ele, e levava contentamento em ler por ele por

falar em David [...]”1195

– referir-se-ia, talvez, ao saltério parafraseado em castelhano por

Benito Villa, frade do mosteiro beneditino de Nossa Senhora de Monserrate, em Barcelona,

cuja primeira edição conhecida data de 15381196

. Quase pela mesma altura, em 1563, Luís

Fernandes denunciava o seu companheiro de cárcere, Gaspar Fernandes, também de Tavira.

Um dia, depois de jantar, ter-lhe-ia sugerido que ambos dessem graças a Cristo, ao que ele

respondeu: «Dêmo-las ao criador do mundo». E continuou:

“Se lerdes, Luís Gomes, o livro de Consolação dos Tristes da maneira que vos eu

dizer, é uma cousa tão doce a lei velha que, se se vos meter na cabeça, será cousa

impossível desencasquetar-se-vos porque é uma cousa tão doce que é pasmo, e que

isto ousarei a dizer na mesa, porque isto bem o sabem eles, e para isso vos darei

uma razão muito boa: que quando Deus prometeu de salvar o povo de Israel e não o

salvou e quando eles dizem que veio e que depois vieram os apóstolos e se puseram

a pregar para os povos, não no creram senão os gentios, e não já o povo de Deus,

que eram os judeus, povo escolhido, sem embargo dos apóstolos pregarem que era

vindo o Messias”1197

O “livro da Consolação dos Tristes” era o Espejo de consolación de tristes, de Juan

de Dueñas. A obra apresentava uma série de exemplos bíblicos que espelhavam a

maneira de bem viver e como tal se poderia aprender até nas maiores adversidades. As

sucessivas reedições (segundo Amiel, só no período entre 1540 e 1591, foram 40 as

edições) tornaram-na numa das obras religiosas mais lidas na Península Ibérica durante

o século XVI e, como grande parte das passagens bíblicas que lhe serviam de mote

provinham do Antigo Testamento, era particularmente popular entre os criptojudeus,

1194

Cf. ANTT, IE, liv. 240, fls. 456-458. 1195

Cf. ANTT, IL, proc. 12848, fl. 44v. 1196

Além desta edição, impressa em Barcelona por Carlos Amoros, Paulau y Dulcet identificou mais duas

edições posteriores – Medina del Campo, 1545, e Burgos, 1548 – com o mesmo título, Harpa de David:

en la qual se declaran los ciento y cincuenta Psalmos del psalterio... (Cf. Antonio Palau y Dulcet,

Manuel del Librero Hispanoamericano, tomo XXVII, Barcelona, Oxford, Antonio Palau Dulcet, The

Dolphin Book, 1976, pp. 88-89). 1197

Cf. ANTT, IL, proc. 2486, fls. 5v-6. Vide em anexo, pp. 268-269.

Page 268: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

268

que o usavam como veículo de doutrinação. Consciente dessa realidade, a Inquisição

Portuguesa integrou-a no Índex em 15641198

. Três anos antes, Garcia Ribeiro referia-a

na sua confissão. Ele comentara com Henrique Nunes, ao vê-lo ler a “Consolação dos

tristes”: «Olhai quantos modos buscaram os letrados para, em linguagem, declararem a

Sagrada Escritura aos que não fossem letrados»1199

.

A observação de Garcia Ribeiro exprime o quanto o latim se tornara num obstáculo

para o acesso popular ao texto bíblico, dada a escassez de “letrados”, leia-se, de

versados em latim. Através dos processos inquisitoriais consultados, foi possível retirar

algumas ilações sobre os níveis de literacia dos cristãos-novos do Algarve. Nas sessões

de genealogia, os réus eram questionados sobre os seus conhecimentos literários.

Embora essa informação não esteja omnipresente nos processos decorrentes da primeira

vaga de prisões no Algarve, a ausência da assinatura do réu, só por si, indiciava o seu

analfabetismo. Com base nesse pressuposto, conclui-se o seguinte: a esmagadora

maioria das mulheres era analfabeta, enquanto que a maior parte dos homens sabia ler e

escrever ou, pelo menos, assinar o próprio nome, sendo que só uma minoria tinha

conhecimentos de latim, mesmo que rudimentares. Essa minoria encontrava-se,

geralmente, ligada a um determinado estatuto sócio-profissional: médicos,

procuradores, estudantes. Os números não variam muito para as décadas seguintes. A

discrepância entre a alfabetização feminina e a masculina mantém-se mas, nos dados

relativos aos anos 30 e 40 do século XVII, revela-se menos acentuada – são mais as rés

que assinam os seus processos ou que alegam saber ler e escrever1200

.

Os níveis de alfabetização registados na amostra estudada não corresponderão,

necessariamente, aos da generalidade da população portuguesa no mesmo período.

Francisco Ribeiro da Silva apresenta alguns dados sobre a alfabetização da população do

Porto e do seu termo no período da Monarquia Ibérica, sustentando-se no exame da

assinatura e dos sinais dos signatários dos livros oficiais da Câmara. Notando a

discrepância entre a população rural e urbana, o autor concluiu que a taxa de alfabetização

da população masculina nesse espaço, em 1600, não ascenderia aos 25%, mas também

não seria inferior a 16%1201

. Rita Marquilhas, tendo como base os registos do século XVII

1198

Cf. Amiel, “Les cent voix...”, Revue de l’histoire des religions..., pp. 524-534. 1199

Cf. ANTT, IL, proc. 8489, fls. 40v-41. Vide em anexo, p. 267. 1200

Vide, em anexo, gráfico 10, p. 113. 1201

Francisco Ribeiro da Silva, “A alfabetização no Antigo Regime. O caso do Porto e da sua região

(1580-1650)”, RFL, II série, vol. III, 1986, pp. 101-163. O autor considerou quatro categorias: os que

assinam, os que não sabem assinar, substituindo a assinatura por um sinal; os que assinam tão mal que se

torna duvidoso que saibam escrever; os que não assinam nem deixam qualquer sinal (p. 111). As

Page 269: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

269

dos livros de denúncias e dos cadernos do promotor da Inquisição, chegou a outros

números: no total dos três tribunais inquisitoriais, 78,4% das testemunhas masculinas

assinam, enquanto que só 9,4% das femininas o fazem. A percentagem total ronda, assim,

os 60%1202

. Mas a assinatura não era um indício seguro de alfabetização. Para muitos, a

capacidade literária começava e terminava no rabisco do próprio nome. Por outro lado, a

realidade social com que os dois autores trabalharam é diversa e tal reflecte-se na

disparidade dos resultados. Recordemo-nos como, em todos os tribunais inquisitoriais

portugueses, a maior parte dos visados das denúncias eram cristãos-novos. Aliás, no final

do seu trabalho, Ribeiro da Silva salientava três conclusões essenciais: “[...] a vantagem

do morador da cidade sobre o do campo, do homem sobre a mulher, das elites sociais e do

dinheiro sobre o homem comum [...]”1203

. Ora, o cristão-novo encontrava-se

correntemente vinculado ao meio urbano.

Charles Amiel, no seu estudo sobre os processos de cristãos-novos de duas

localidades de Castilla-La Mancha, Quintanar de la Orden e Alcázar de Consuegra, em

finais do seculo XVI, conclui a discrepância entre os níveis de literacia da “gente de

nação” e da população cristã-velha: 72,3% dos homens sabiam ler e escrever, enquanto

que, num outro estudo para um período coevo sobre os paroquianos da diocese de

Cuenca, essa percentagem não ia além dos 34%1204

.

Numa sociedade com baixos níveis de alfabetização, a leitura não era, essencialmente,

uma actividade isolada, mas sim de grupo. Para muitos, o acesso ao texto escrito só era

possível através de um outro elemento, o leitor, que intervinha directamente nele, não só

na selecção dos excertos, como também na transmissão da sua própria exegese. No caso

de textos escritos numa língua desconhecida ao ouvinte, a intervenção do leitor-

intermediário revelava-se ainda mais essencial. A Bíblia era, correntemente, mais

escutada do que lida pela maioria dos cristãos cuja prática religiosa se inscrevia dentro

conclusões finais sobre a taxa de alfabetização baseiam-se nos que se enquadravam na primeira categoria,

ou seja, aqueles que sabiam assinar devidamente o seu nome. 1202

Cf. Rita Marquilhas, A Faculdade das Letras. Leitura e escrita em Portugal no séc. XVII, Lisboa, IN-

CM, 2000, p. 118. A autora salienta, porém, uma discrepância entre os três tribunais, sendo que as

percentagens de testemunhas que sabem assinar os respectivos nomes é mais elevada no tribunal de

Lisboa (85,5% dos homens, 16,5% das mulheres) do que nos de Évora (75,9% dos homens, 7,3% das

mulheres) e Coimbra (72,8% dos homens, 4,2% das mulheres). 1203

Cf. Ribeiro da Silva, “A alfabetização...”, RFL..., p. 160. 1204

Cf. Amiel, “Les cent voix...”, Révue de l’histoire..., pp. 511-512. Sobre a diocese de Cuenca, Amiel

cita o estudo de Sarah Nalle, “Literacy and Culture in Early Modern Castille”, Past and Present, n.º 125,

1989, pp. 65-98. Estes números referem-se ao período entre 1540 e 1600. Relativamente ao Brasil, mais

exactamente a Paraíba, Bruno Feitler também registou uma discrepância entre a alfabetização dos

cristãos-novos e do resto da população: de entre os processos com sessão de genealogia, todos os homens

sabiam ler e escrever e cerca de um terço das mulheres sabia, ao menos, ler (Cf. Bruno Feitler,

Inquisition, juifs et nouveaux-chrétiens au Brésil, Leuven, Leuven University Press, 2003, p. 291).

Page 270: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

270

dos limites da ortodoxia e que apenas acediam aos conteúdos doutrinais através da

interpretação do sacerdote no único momento da missa que lhes era inteligível, a

homilia1205

. Assim, a Igreja filtrava o acesso do fiel ao texto bíblico e monopolizava a sua

interpretação. Mas os próprios sermões, declamados nos púlpitos da igreja, também

inspiravam percepções marginais. Vejamos o caso relatado por Garcia Ribeiro:

“Um dia, pregando um frade de São Francisco da Santíssima Trindade, depois de

muitas razões e profecias que alegou, veio a dizer: «Quereis ver quão claro é o da

Santíssima Trindade além do que tenho dito, vós que sois curiosos vede a Joel no

primeiro ou segundo capítulo, e ali claramente está provado em dizer o profeta „A.

A. A. domine nascio loqui‟ porque aqui vereis que disse três vezes „A. A. A.

Domine‟ e fala em singular no „Domine‟ e se entende, por isto, o mistério da

Santíssima Trindade». E o dito seu cunhado olhara para ele, confessante, e lhe

dissera: «Que dizeis agora?». E que, acabada a missa, se vieram ambos para casa

dele, confessante, e viram o capítulo e ele, confessante, se sorrira. E o dito seu

cunhado lhe dissera: «De que diabo vós sorrides que não tem resposta o que diz o

pregador?». E ele, confessante, lhe respondera: «Este manjar não é pera vós,

porque o dizer o profeta três vezes „A. A. A. Domine nascio loqui‟ se entendia por

uma interjeição dolentis de que os gramáticos usam»”1206

Um estudante, um médico ou um advogado, versados em latim, prontificavam-se a

ler e a traduzir em voz alta passagens da Bíblia. Nos processos dos anos 50 e 60 de

Quinhentos, abundam os testemunhos de cristãos-novos que se reuniam para leituras

colectivas das Sagradas Escrituras. Havia, então, uma doutrinação para a heterodoxia,

um reavivar das crenças e da memória dos rituais dos antepassados através de uma

leitura seleccionada, da escolha de livros e excertos específicos. O Pentateuco e os

livros proféticos recolhiam as preferências: o primeiro constituía a base doutrinal do

Judaísmo, os segundos inspiravam o movimento messiânico emergente. Os salmos não

só eram ouvidos como também decorados e constituíam, para muitos, as únicas orações

recitadas “em observância da Lei de Moisés”.

Orar em segredo

Num contexto de perseguição religiosa, em que a fixação escrita da liturgia era um

risco corrido por poucos, a sua transmissão tendeu a inscrever-se no domínio da oralidade.

1205

Sobre a persistência da cultura oral, vide Ana Isabel Buescu, “Cultura impressa e cultura manuscrita

em Portugal na Época Moderna. Uma sondagem”, Memória e Poder. Ensaios de História Cultural

(Séculos XV-XVIII), Lisboa, Edições Cosmos, 2000, pp. 29-48; José Luis Sánchez Lora, “Retórica,

oralidad, lectura en la Edad Moderna”, Cuadernos de Historia Moderna. Anejos, I, 2002, pp. 65-84. 1206

Cf. ANTT, IL, proc. 8489, fls. 32-32v.

Page 271: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

271

Os conteúdos corromperam-se. Persistiu melhor o que havia de comum com a religião da

maioria, cuja ritualidade era livremente praticável, à margem de qualquer suspeita.

João Lopes Cristino rezava os salmos de David sem o Gloria Patri final. Só o

pronunciava quando estava alguém por perto, “[...] com a boca, mas não com o

coração [...]”1207

. Duarte Fernandes também costumava orar da mesma forma, apesar das

repreensões do pai, que lhe pedia “[...] que rezasse outra cousa [...]”1208

. Estes são só dois

exemplos de vários. A recitação dos salmos ateava suspeitas na sua selecção e na ausência

do Gloria Patri final. Os chamados sete salmos penitenciais (ou sete salmos de David)

eram constantemente associados às práticas judaizantes – os salmos 6, 31, 37, 50, 101,

129 e 142, recitados durante a Quaresma. Por outro lado, o Gloria Patri constituía a plena

afirmação da fé na Trindade e a sua ausência no final do salmo indiciava a recusa do

dogma cristão. O Monitório de 1536 já contemplava esta prática1209

.

Segundo Elvira Mea, desde meados do século XVI que há uma posição de quase

silêncio relativamente às orações judaicas, “[...] um misto de reacção de defesa e pudor

por algo de muito íntimo, o elo invisível que ligava o crente a Adonai [...]”, não

necessariamente um sinal da perda da memória das comunidades, mas uma ocultação,

uma forma de resistência e de protecção num momento em que a actividade inquisitorial

se tornava mais intensa1210

. Porém, não é um silêncio completo, sendo conhecidos

pontuais testemunhos da sobrevivência de orações alegadamente criptojudaicas, alguns

bem para lá da primeira metade de Quinhentos1211

.

No caso do Algarve, encontramos vestígios dispersos da sobrevivência na memória

dos cristãos-novos de algumas orações da “Lei Velha” ou, pelo menos, resquícios

destas. Francisco Nunes costumava rezar o Sema Israel na companhia doutros cristãos-

novos de Lagos que se reuniam na casa de Duarte Álvares1212

. Já no cárcere, Gaspar

Fernandes recitava a mesma oração1213

. Suprema afirmação da unicidade divina, o Sema

1207

Cf. ANTT, IL, proc. 1156, fl. 15v. 1208

Cf. ANTT, IL, proc. 12745, fl. 14. 1209

Cf. Salomon, Portrait of a New Christian..., p. 65. 1210

Cf. Mea, “A problemática do judaísmo...”, Inquisição Portuguesa..., p. 135. 1211

Vide, por exemplo, os casos apresentados por Maria Fernanda Guimarães e António Júlio Andrade, relativos

às comunidades de Lagoaça e de Carção, em Trás-os-Montes, in: Carção. A Capital do Marranismo, Carção,

Junta de Freguesia de Carção, 2008; “Marranos de Lagoaça no Tribunal da Inquisição”, Trás-os-Montes e Alto

Douro. Mosaico de Ciência e Cultura, Lagoaça, Comissão de Festas de Nossa Senhora da Graça, 2011, pp. 271-

282. Vide também Elvira Mea, “Orações judaicas na Inquisição Portuguesa: Século XVI”, Jews and conversos.

Studies in society and the Inquisition. Ed. Yosef Kaplan, Jerusalem, The Magnes Press, 1985, pp. 149-178. 1212

Cf. ANTT, IL, proc. 2601, fl. 22v. “Sema Israel Adonai Elohenu Adonai ehad baruch sem kebod

malchutho leholam vahed” correspondia ao versículo 4 do capítulo 6 do livro do Deuteronómio: “Escuta,

ó Israel, o Senhor nosso Deus é o único Senhor”. 1213

Cf. ANTT, IL, proc. 2486, fl. 86v.

Page 272: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

272

Israel foi a oração que melhor sobreviveu na clandestinidade. As primeiras palavras

continuaram a ser pronunciadas em hebraico, mesmo por quem não conhecia a língua.

Em 1561, Mor Mendes, a Buena Vida, também admitiu que rezava o Sema,

especialmente nos dias de jejum. Quem lhe ensinara a oração havia sido uma cristã-nova

de Santarém que viera fugida para Tavira e vivera durante dois meses na sua casa. Era

Isabel Fernandes, a Esquerda, conhecida no Algarve por Maria Rodrigues de Murça1214

.

Presa em Tavira, em 1558, Isabel Fernandes revelou conhecer outras orações:

«Lançou-se Moisés sobre suas faces e disse: Minha boca o diga e minha alma o

recebei, nunca me Nosso Senhor dê contas, nem preces por onde o esqueça.»

«Cedo coberto do alto e em sombra do abastado se adormece, digo eu: Meu Deus e

meu abrigo que me afiuso nele, que ele me guardará de laço, e de encantamento, e

de mortandades, que ele me guardará de trevas de talhamento.»1215

Fora a avó quem lhas ensinara. Isabel Fernandes tinha cerca de 60 anos de idade

quando foi presa. Portanto, a sua avó teria vivido a maior parte da sua vida antes da

conversão geral. De facto, os “mestres” desta primeira geração de judaizantes ainda

tinham frescas na memória as orações que rezavam na sua infância e juventude de

judeus públicos. Contemporânea de Isabel, Maria Lopes também aprendera com a avó

algumas orações que ensinou a uma outra cristã-nova, Grácia Mendes. Uma delas

começava assim:

«Lavarei cada manhã com lágrimas meu leito, andarei carreira limpa pelo

caminho direito.»1216

Voltamos a encontrar esta mesma oração, um pouco mais desenvolvida, no processo

de Mor Rodrigues, também natural de Loulé mas residente em Vila Nova de Portimão:

«Lavarei cada menhana com lagrimas my leito, andarei carreira lhana, caminho

direito, até que aya satisfeito todas mys culpas, danhos y malos, enganhos que a ty,

Senhor, tenho feitos.»1217

Rezava-a assim porque a aprendera com uma castelhana, da qual dizia não se

recordar do nome. A mesma oração, rezada em português e em castelhano, persistiu na

memória de duas mulheres, cujas fontes identificadas eram bem distintas – uma

castelhana anónima e uma decana de Loulé.

Maria Lopes fora interpelada por Grácia Mendes para que lhe ensinasse uma outra

oração, a qual começava assim:

1214

Isabel Fernandes era natural de Odemira e viveu durante muitos anos em Santarém. Devido à

perseguição inquisitorial, ela fugiu para o Algarve, disfarçada com hábito de freira, e acabou por mudar

de nome. (Cf. ANTT, IL, proc. 3114). 1215

Cf. ANTT, IL, proc. 3114, fl. 21v. 1216

Cf. ANTT, IL, proc. 3845, fl. 22. 1217

Cf. ANTT, IL, proc. 12185, fl. 49v.

Page 273: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

273

«Adonai é o teu nome, segundo nos é declarado, a quem deve todo hombre ser bem

inclinado por mais glorificado, em ti solo adorarei, em ti me afirmarei e livrar-me-ás

de pecado.»1218

Mor Mendes também ouvira Isabel Fernandes, a Esquerda, a rezar:

«Adonai es tu nombre que asy mo han declarado, onde deve todo hombre de crer

bem inclinado, en tu nombre adorarei, perdornarme as mi pecado.»1219

Cerca de 70 anos depois, em Faro, Branca Dias confessava perante o bispo D.

Francisco de Meneses que aprendera a seguinte oração:

«Adonai Senhor, es tu nombre segundo tens declarado a quien deve todo el hombre

crer en si, afirmando, lhorando porque hiseste este mundo de perdicion. Oye my

oracion por que yo no muera triste. Esta alma que hiziste no le desconsolacion, no

por mia perdicion, si no porque tu la hesiste.»1220

A sua prima Joana Jorge refere uma outra versão, mais desenvolvida e um pouco

mais próxima das mencionadas por Maria Lopes e Mor Mendes:

«Adonai é o teu nome, segundo é declarado para mais santificado, vosso nome

chamarei e em ti adorarei, livrai-me do meu pecado. Bendito seja el varon que em ti

tiene confiança, sacaste el Rei Faraó de tan grande tribulança, por debaixo de tu lança

passaram as doze tribos alegres, sanos e vivos, pues has mostrado vingança, cerca de

mar allegaron, Faraó ha perseguido, tan de vozes apellido a Moises se reclamaram e

serviram mui perdidos e Moises fizera o que o Senhor lhe mandou, o mar logo se lhe

abriu como a dous a pedido. Grande é teu poderio que não tem conto, nem par, nem

quem possa escrevê-lo, nem quem possa enumerá-lo. Deu-lhe certo alimento, sol,

luna, céu e estrelas, só Deus sabe o conto delas, pois as tem a seu contento.»1221

Que ligação têm estas quatro mulheres? Joana Jorge e Branca Dias eram primas

direitas. Mor Mendes era tia paterna de Grácia Mendes1222

, a mesma que pedira a Maria

Lopes para lhe ensinar a oração. Ora, Maria Lopes era bisavó do marido de Joana Jorge,

Manuel Camacho1223

. Teria esta oração passado, de boca em boca, entre quatro gerações?

É uma possibilidade, embora Joana afirme tê-la aprendido com a mãe. O pormenor com

que é recitada leva-nos a ponderar se não teria existido um suporte escrito que auxiliasse a

forma como foi memorizada e transmitida ao longo do tempo. Além do mais, a

linguagem, misto de português e castelhano, traz reminiscências do ladino dos livros de

orações impressos na diáspora. Mas estamos no terreno movediço das hipóteses.

Continuemos com as orações mencionadas pelos réus algarvios. Bárbara Filipe

aprendera com a mãe, quando tinha cerca de 16 anos, a oração “Fermosura de Adonai”:

1218

Cf. ANTT, IL, proc. 3845, fl. 22. 1219

Cf. ANTT, IL, proc. 13280. fls. 51-51v. 1220

Cf. ANTT, IE, proc. 3739, fls. 23-23v. 1221

Cf. ANTT, IE, proc. 824, fl. 25. 1222

Catarina Mendes, mãe de Grácia Mendes, denunciou Mor Mendes, “[...] que foi sua cunhada e que está

casada com Gaspar Gonçalves [...]”. Mor Mendes seria irmã de João Mendes, marido de Catarina e que, no

momento em que começaram as prisões na família, já havia falecido. (Cf. ANTT, IL, proc. 12909, fl. 58.) 1223

Vide, em anexo, genealogia 31, p. 181.

Page 274: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

274

«Seja fermosura de Adonai e seus santos sobre mi feita de nossas mãos que ele

comporá si no coberto em o alto está o nome do abastado Maynira Maino e dito

Adonai es grande senhor, meu castelo, meu abrigo, em que me eu afirmo e afiuso,

bendito vós, senhor, me livrareis do laço do encantamento, da mortandade, da

tortura, vossa bendita mão nos livrará e me amparará, et cetera.»1224

A mãe também costumava contar-lhe histórias do Antigo Testamento: a fuga do

povo hebreu do Egipto, a salvação do profeta Daniel do lago dos leões, a protecção do

arcanjo Rafael a Tobias. Eram passagens correntemente repetidas nas preces

criptojudaicas. Veja-se a oração pronunciada por Tomás Gomes, em 1560:

«Oh Deus de Abraão, Isaac e Jacob, tu tiraste os filhos de Israel da catividade do

Egipto e lhes fizeste o mar em doze carreiras e os passastes em salvo e os filhos de

Israel viram vingança dos egípcios e os passaste ao deserto e dali os pusestes na

terra de promissão e os mantivestes quarenta anos ao maná e a manjares delicados,

assim como isto é verdade, assim creio que sois o Deus de Verdade e não das

mentiras, a vós me encomendo e em vós ponho minha esperança e não em outras

coisas, porque vós me haveis de livrar de todos os perigos e me haveis de salvar e

perdoar todos meus pecados.»1225

A passagem do êxodo do Egipto é aludida ao longo do Sema Israel e doutras orações

e salmos que integram o serviço litúrgico diário. Também não podemos ignorar os

paralelismos entre a situação dos cristãos-novos na Península Ibérica e a do povo hebreu

escravizado no Egipto: a libertação do jugo de um elemento opressor (Faraó/Inquisição)

por intermédio de um escolhido de Deus (Moisés/Messias), os quarenta dias de provação

no deserto e os desvios do povo judeu (bezerro de ouro/Cristianismo), a condução à terra

prometida – a esperança numa nova era de livre confissão da fé dos antepassados.

A condição de judeu secreto, obrigado a renegar em público a fé que professava

secretamente, conduzia a um dilema moral, a um sentimento de culpa que teria

contribuído para popularidade das orações de contrição. Branca Dias refere uma prece

que costumava rezar:

«Tem misericórdia de mim, Senhor, segundo tua grande misericórdia e segundo a

multidão de tuas misericórdias apaga minha maldade mas me lava a maldade minha

e me limpa de meu pecado, porque eu conheço a minha maldade e meu pecado está

sempre contra mim.»1226

Esta oração corresponde ao início do salmo 50, um dos sete salmos penitenciais1227

.

A temática é a mesma de uma outra prece recitada por Mor Rodrigues, mais de sete

décadas antes:

1224

Cf. ANTT, IL, proc. 16695, fls. 70v-71. 1225

Cf. ANTT, IL, proc. 9445, fls. 15v-16. 1226

Cf. ANTT, IE, proc. 3739, fls. 23-23v. 1227

“Tem compaixão de mim, ó Deus, pela tua bondade; pela tua grande misericórdia, apaga o meu

pecado. Lava-me de toda a iniquidade; purifica-me dos meus delitos. Reconheço as minhas culpas e tenho

sempre diante de mim os meus pecados” (Sl. 51 [50], 3-5).

Page 275: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

275

«Ouvi Senhor mi boz y mi lhoro y mi gimido, quitai-me este dolor que me priva

my sentido se de ti for socorrida e de tua Santa misericordia, seria muy asinha meus

pecados perdoados e meus deseios cumpridos.»1228

Mor Rodrigues rezava-a quando cumpria os jejuns judaicos. Também Simão Nunes,

de Vila Nova de Portimão, pronunciava uma oração no dia do jejum do Quipur, ao ver a

primeira estrela:

«Bento, louvado, e exaltado e santificado seja vosso santo nome, Senhor, por tantos

bens, mercês e esmolas que nos fazeis hoje, este dia e cada dia, Senhor, perdoai-me

meus pecados pela vossa santa misericórdia e piedade porque vós sois meu

verdadeiro Senhor e sereis pera sempre.»1229

Os rituais eram acompanhados por orações específicas. Isabel Fernandes, a

Esquerda, aprendera com a avó que, nas noites de sexta-feira, quando acendesse a

candeia, deveria repetir as seguintes palavras:

«Bendito seja Nosso Senhor que nos encomendou suas encomendanças e acender

candeia à sexta-feira.»1230

E, ao amassar o pão, rezaria:

«Bendito seja o Senhor que nos encomendou suas encomendanças e a tirar a hala

do pão.»1231

A halá consistia no costume de deitar ao fogo um pedaço de massa do pão.

Encontramos testemunhos desta prática nos lares dos cristãos-novos algarvios até ao

final do período estudado1232

. Aliás, a tradição sobreviveu, sendo ainda praticada, no

século XX, em Belmonte1233

.

Com o avançar dos anos de repressão inquisitorial, as referências a orações

criptojudaicas tornaram-se mais escassas. Os casos de Branca Dias e da prima Joana

Jorge parecem ser uma excepção. Contudo, não nos esqueçamos das condições em que

ambas testemunharam, apresentando-se voluntariamente perante o bispo. Fora estes dois

casos, as menções revelam-se vagas e confusas. Em 1633, Isabel Pinta, de Faro,

1228

Cf. ANTT, IL, proc. 12185, fls. 44v. 1229

Cf. ANTT, IL, proc. 9243, fl. 4v. 1230

Um judeu de Marrocos, em 1587, referiu algumas fórmulas similares, como, por exemplo: “Bendito tu

Adonai nosso Deu, rei do mundo, que nos santificou com suas encomendanças e nos encomendou a pôr

tefelins”; “Bendito tu Adonai nosso Deu, rei do mundo que nos santificou com suas encomendanças e nos

encomendou por acender a candeia de Hanuca” (Cf. Salomon, “Uma descrição em primeira mão...”, CES...,

pp. 277, 280). Já no séc. XX, Samuel Schwartz testemunhou, na comunidade de Belmonte, a seguinte prece,

recitada nas noites de sexta-feira: “Bemdito meu Deus, meu senhor, meu Adonai, que nos mandou e nos

encomendou com suas encomendanças bemditas e bem-santas que acendessemos esta santa torcida para

alumiar e festejar a noite santa do Senhor, para que o Senhor nos alumie a nossa alma e nos livre de culpas,

penas e pecados” (Cf. Samuel Schwartz, Os Cristãos-Novos em Portugal no Século XX, Lisboa, Instituto de

Sociologia e Etnologia das Religiões / Universidade Nova de Lisboa, 1993, pp. 82-83). 1231

Cf. ANTT, IL, proc. 3114, fl. 21v. 1232

Em 1646, Domingos Rodrigues, de Albufeira, ainda referia que era costume, na sua casa, lançar fora

três pedaços de massa quando se amassava o pão (Cf. ANTT, IE, proc. 6059). 1233

Cf. Schwartz, Os Cristãos-Novos...., p. 31.

Page 276: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

276

confessou que Francisca Duarte lhe ensinara uma oração do “Santo Moisés”, da qual só

recordava as primeiras palavras: «As tribos de Israel por aquele mar vermelho e mar

salgado»1234

. Sebastião Dias ouvira, na casa da prima Beatriz Álvares, rezar uma oração

“[...] que entre outras palavras dizia: «Bendito e louvado sejais, Povo de Israel, Adonai

para sempre»”1235

. Anos antes, em 1592, Margarida Fernandes disse que Filipa Caldeira

lhe ensinara uma prece para que os seus filhos regressassem das Índias:

«Oma de maty madona, rica dona e rica senhora, mercês que fazeis às outras, fazei-

as a mi, assi como os peixes se não podem manter sem água, nem o corpo sem

alma, assi meus filhos não possam estar sem me vir ver ou me mandar.»1236

A origem da oração é ambígua. Tanto poderia ser dirigida a Santa Maria como à

“Santa” Rainha Ester. Aliás, Margarida alegou que, ao início, rezava-a como cristã e só

mais tarde ficou a saber que “[...] a dita oração era da Lei de Moisés [...]”.

O sincretismo entre a fé secreta e a religião publicamente professada abrangia

também a gestualidade que acompanhava a oração. Joana Jorge contou que fora

ensinada pela mãe a rezar com o terço nas mãos, dizendo a cada conta: «De nascente a

poente, bendito Adonai para sempre»1237

. Acabadas as contas, voltaria a corrê-las até

completar as 140, rezando «Bendita e louvada seja a formosura de Adonai», ou «Adonai

seja por mim, o povo de Israel não seja contra mim»1238

.

Não eram só as palavras invocadas que indiciavam um comportamento judaizante.

O Monitório de 1536 alertava:

“[...] se rezarão ou rezão orações Iudaicas, assi como são os psalmos penitenciaes

sem gloria patri, e filio, e spiritui sancto, e outras orações de Iudeos, fazendo

oração contra a parede sabbadejando, abaxando a cabeça, e alevandandoa, a forma

& modo Iudaico, tendo quando assi rezão os ataphalijs, que são hűas correas atadas

nos braços, ou postas sobre a cabeça.”1239

Nos processos consultados, não encontrámos qualquer referência ao uso do

“ataphalijs” (tefelins ou filactérios), pequenas caixas de couro, nas quais se guardavam

excertos dos textos sagrados, e que, durante a oração da manhã, eram presas ao braço

esquerdo e à cabeça através de correias1240

. No criptojudaísmo, os acessórios judaicos

de oração foram substituídos por símbolos cristãos, como o rosário. Porém, outros

comportamentos permaneceram. É o caso da lavagem das mãos que precedia a

1234

Cf. ANTT, IE, proc. 3749, fl. 76. 1235

Cf. ANTT, IE, proc. 2719, fls. 147-147v. 1236

Cf. ANTT, IE, proc. 7330. 1237

Esta frase continuou a ser repetida pela comunidade de Belmonte no séc. XX: “Desde o nascente até o

poente, seja o grande Deus de Israel louvado para sempre” (Cf. Schwartz, Os Cristãos-Novos..., p. 69). 1238

Cf. ANTT, IE, proc. 824, fl. 25v. 1239

Cf. “Monitorio do Inquisidor Geral...”, fl. 5. 1240

Cf. Lipiner, Santa Inquisição..., pp. 28-29.

Page 277: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

277

oração1241

. A sua referência é relativamente comum nos processos, sobretudo entre os

presos vigiados no cárcere. O mesmo se aplicava à postura no momento da oração: de

pé, voltado para a parede ou para uma janela, meneando a cabeça e o corpo para a frente

e para trás, de braços afastados, mãos abertas e olhos erguidos para o céu. No cárcere,

Bárbara Filipe fora vista a rezar assim:

“[...] Bárbara Filipe se pôs defronte da fresta em pé, com as mãos erguidas debaixo

da toalha, a rezar por espaço de uma ora e, de quando em quando, as abria fora da

toalha com as palmas para diante e bulia com os beiços e meneava a cabeça para

baixo e andou passeando e rezando por espaço de uma ora com as mãos debaixo da

toalha erguidas [...].”1242

Outro gesto a que o Monitório de 1536 aludia era a chamada “bênção ao modo

judaico”: “[...] se os pays deitam a benção aos filhos, pondolhes as mãos sobre a cabeça,

abaxandolhe a mão pelo rosto abaxo, sem fazer o sinal da Cruz, a forma, & modo

judaico [...]”1243

. A menção a esta forma de benzer também é corrente nas confissões

dos réus algarvios, inclusivamente nos processos dos anos 30 e 40 do século XVII.

Alguns acrescentam as fórmulas que acompanhavam o gesto: «Deus de Abraão, Deus

de Isaac, Deus de Jacob, que deu a lei no Monte Sinai»1244

, «Benta sejas da bênção de

Deus», «A bênção de Deus vos cubra e vos faça boas mulheres»1245

.

Mas a vigilância inquisitorial obrigou à dissimulação deste e doutros comportamentos.

Por volta de 1622, Baltazar Rodrigues fora ensinado por Aires Gomes, jurista de Tavira:

“[...] que, quando lançasse a bênção a seus afilhados, fosse pondo-lhe a mão aberta

na cabeça, correndo-lha pelo rosto abaixo até lha beijar na boca e, então, lhe lançasse

a bênção, fazendo uma cruz com a mão, como se costuma, sem dizer nada [...].”1246

.

Um comportamento judaizante protegia-se de olhares devassadores ao envergar os

trajes da ortodoxia cristã.

Um Padre Nosso ao Santo Moisés

Retomemos o processo de Mor Mendes, a Buena Vida. Já depois de presa,

continuou a endereçar as suas orações ao Deus dos Céus, suplicando-lhe que a livrasse

das agruras do cárcere:

1241

Mor Mendes, a Buena Vida, fora ensinada a lavar as mãos com terra, quando não tivesse água por perto

(Cf. ANTT, IL, proc. 13280, fl. 57v). 1242

Cf. ANTT, IL, proc. 16695, fls. 32-32v. 1243

Cf. “Monitorio do Inquisidor Geral...”, fl. 5v. 1244

Cf. ANTT, IE, proc. 9411, fl. 4v. 1245

Cf. ANTT, IL, proc. 874, fl. 103v e 85. 1246

Cf. ANTT, IE, proc. 4400, fl. 19v.

Page 278: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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«Senhor, assim como vós abristes o mar por doze carreiras e passaram as doze

tribos de Israel, me queirais vós livrar assim, Senhor, como vós livrastes a Jonas,

profeta, do ventre da baleia, me queirais livrar, Senhor. Senhor, assim como vós

livrastes a Daniel, profeta, do lago dos leões, assim queirais me livrar a mim.»

Por vezes, acrescentava à sua súplica:

«Senhor, assim como vós livrastes a Santa Susana de quantos aleives lhe puseram,

me livrai, Senhor piedoso, e assim como vós encaminhastes pela Santa Estrela os

três Reis Magos, assim me encaminhes, Senhor, em bem.»1247

A referência às histórias de Daniel e de Jonas, enquanto exemplos da misericórdia

divina é comum a várias orações criptojudaicas. Charles Amiel encontrou uma súplica

similar no processo de um cristão-novo de Quintanar de la Orden, Juan de Mora1248

.

Segundo o autor, era inspirada numa litania cristã que enumerava várias personagens

bíblicas milagrosamente salvas da morte, mas também num selihah invocando os

milagres operados pelo poder de Adonai1249

.

Ora, Mor Mendes também coloca Jonas e Daniel, figuras do Antigo Testamento, ao

lado de elementos da narrativa da natividade, como os três Reis Magos ou a “santa

estrela”. Ela própria confessa que “misturava tudo junto”, que tanto guardava os jejuns

judaicos, como tomava as contas na mão e rezava por elas o Padre Nosso, a Avé Maria,

o Credo e a Salvé Rainha, tudo com intenção de cristã1250

.

Poderia ser apenas uma estratégia de Mor Mendes para desvalorizar o seu “desvio”.

Contudo, a absoluta necessidade de manter o sigilo sobre a fé e a ritualidade criptojudaica

potenciava não só a simplificação (e até a fragilização) doutrinal, como também o contágio

de elementos da única religião licitamente professada. O processo de Mor Mendes remonta

aos anos 60 do século XVI. Porém, com a sucessão de décadas e décadas de repressão

religiosa, os processos inquisitoriais indiciam a tendência para o avolumar dos exemplos de

contaminação doutrinal. Um caso paradigmático é a oferta da oração do Padre Nosso a

Moisés ou, como também aparece na documentação, ao “Santo Moisés”1251

. A sua

1247

Cf. ANTT, IL, proc. 13280, fls. 61-61v. 1248

“Librame, Señor, como libraste a Daniel del lago de los leones, para que yo te sirva. Líbrame, Señor,

como libraste a Jonás profeta del vientre de la vallena, en las honduras de la mar, para que yo te sirua”

(Cf. Amiel, “Les cent voix...”, Révue de l’histoire..., p. 575) 1249

Cf. Idem, Ibidem, pp. 505-506. A oração a que Amiel alude é a seguinte: “Salvanos y respondenos oy, y

en todo dia y dia por nuestra oracion, que nuestro loor tu. El que respondió á pobres, respondenos. [...] El

que respondió à Ionáh en entrañas del pesce, respondenos. [...] El que respondió à Daniel en pozo de leones,

respondenos. [...]” (Cf. Orden de Ros Asanah y Kipur traduzido en español y de nuevo enmendado y

añadido el Keter Malhut y otras cosas, Amesterdão, David de Castro Tartas, 1663, pp. 33-35). 1250

Cf. ANTT, IL, proc. 13280, fls. 60-62. 1251

Isabel Pinta alegou que fora aconselhada por Estêvão Rodrigues, mercador, a encomendar-se ao

“Santo Moisés” para se livrar de uma dor de cabeça que a afligia (Cf. ANTT, IE, proc. 3749, fls. 87-87v).

A invocação do “Santo Moisés” (ou “Santo Moisésinho”) e também da “Santa Rainha Ester” manteve-se,

Page 279: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

279

confissão torna-se mais comum durante a terceira entrada da Inquisição no Algarve, quando

começam a rarear as referências a preces judaicas ou à simples invocação de Adonai. Note-

se que o Monitório de 1536 não contemplava esta prática, o que nos leva a crer que talvez

tenha sido adoptada posteriormente, fruto do recrudescer da opressão religiosa e, assim, de

um eventual processo de substituição da liturgia judaica pela cristã, mantendo a intenção

judaizante. Aliás, as confissões indiciam um esforço gradual em reduzir a exteriorização da

fé ilícita ao mínimo. E a este corresponde um segundo esforço – o de aproximação, pelo

menos aparente, ao Catolicismo.

Salvo casos extraordinários, todos os que se confessavam judaizantes também admitiam

fazer “obras de cristão para cumprimento do mundo”. Iam à missa, comungavam,

confessavam-se pelo Natal e pela Páscoa, jejuavam na Quaresma1252

. Examinados sobre os

conhecimentos doutrinais, a maioria recitava sem erros as principais orações cristãs (Pai

Nosso, Avé Maria, Credo e Salvé Rainha), em vernáculo ou latim, e referia os dez

mandamentos da Lei de Deus sem grandes dúvidas. Alguns até enumeravam os

mandamentos da Santa Madre Igreja, os artigos de fé, as obras de misericórdia e os sete

pecados capitais1253

. Sabiam a doutrina católica, talvez até melhor do que a maioria dos

cristãos-velhos, um conhecimento que se acentuava à medida que os anos avançavam e se

sucediam as entradas inquisitoriais1254

. Ao mesmo tempo, no segredo do lar, deixavam as

candeias acesas nas noites de sexta-feira, não trabalhavam aos sábados, jejuavam de estrela

a estrela. Esta dualidade angustiava alguns. Manuel Lopes rezava: «Senhor, leva-me à parte

onde vos possa servir sem temor», com a intenção de que “[...] Nosso Senhor o levasse para

terra de judeus para lá servir como judeu [...]”1255

.

Vestiram tão bem a pele que se lhes colou ao corpo? Elias Lipiner refere-se a esta

geração de cristãos-novos que tentou equilibrar a fé na “Lei Velha” com a que lhe foi

imposta pelo baptismo como a criadora de “[...] um judaísmo confuso, consistente num

misto de preceitos bíblicos e ritos católicos, uma espécie de sincretismo religioso tendente

até ao século XX, na comunidade marrana de Belmonte, onde ainda havia quem guardasse retratos dos

dois “santos” (Cf. Amílcar Paulo, Os Criptojudeus, Porto, Livraria Athena, [1970], p. 80). 1252

Inês Guterres ensinara ao neto António Francisco que, quando fosse à igreja, não deixasse de tomar a

água benta, mas dissesse: «Tomo-te por amor da gente e não por te haver mister». Quando estivesse na

missa e recebesse a hóstia, deveria pronunciar para si próprio: «Venho-te receber, não por te crer, nem te

adorar, senão por crer na Lei de Moisés bem e verdadeiramente». (Cf. ANTT, IE, proc. 5519, fls. 1v-2). 1253

Embora não seja uma discrepância muito acentuada, nos processos estudados verificamos que os homens

apresentam um conhecimento doutrinal mais sólido do que as mulheres, cuja grande maioria se limita a recitar

as quatro orações principais. Possivelmente, tal relaciona-se com os diferentes níveis de literacia. 1254

Vide, em anexo, gráfico 11.4, pp. 117-118. 1255

Cf. ANTT, IL, proc. 4467, fl. 53v.

Page 280: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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a caracterizar-se por um novo ritual [...]”1256

. A identidade do criptojudaísmo reside

exactamente nessa hibridez, propiciadora de uma heterogeneidade de comportamentos

religiosos. É uma realidade complexa, repleta de nuances. Nathan Wachtel define-a como

um “[...] largo leque que se abre entre os dois pólos dos judaizantes fervorosos e dos

cristãos sinceros, passando por toda uma série de casos intermédios e de combinações

sincréticas [...]”, um conjunto de práticas e crenças composto por elementos que chegam a

ser contraditórios mas que, ao mesmo tempo, apresentam uma unidade, sustentada na

reminiscência de um passado comum, na fé dos ancestrais1257

.

As confissões presentes nos processos da Inquisição revelam essa diversidade.

Havia os que conheciam alguns princípios da religião judaica com a profundidade

possível num contexto de clandestinidade. Eventualmente, até tinham vivido em terras

onde o Judaísmo era livremente professado ou mantido contacto com alguém de lá

oriundo. Sabiam quando celebrar os jejuns, o que fazer nas noites de sexta-feira,

conheciam uma ou outra oração judaica. Sabiam e transmitiam esses conhecimentos a

quem lhes era mais próximo. No outro extremo, encontravam-se os que apenas tinham

acesso a alguns resquícios dessa religiosidade, tornados senso comum a partir do

momento em que a Inquisição passou a estar mais presente e com ela os éditos de fé, os

sermões dos autos, a pregação antijudaica nos púlpitos das igrejas.

Uns criam na Lei de Moisés. Outros na Lei de Cristo. Outros ainda nem sabiam

bem no que criam. Como Domingos Rodrigues, trabalhador no lugar da Taboeira,

termo de Albufeira, preso nos cárceres da Inquisição de Évora em 1646. Segundo

referiu na sua confissão, a mãe ensinara-lhe que “[...] queresse na Lei de Moisés e que

rezasse um Padre Nosso pela alma do mesmo Moisés e que quisesse na Lei de Moisés

e não ofendesse a Cristo [...]”. Tal como vira fazer a outros cristãos-novos, Domingos

lançava imundices no vinho que tinha para vender e entendia que isso também “era

judiar”. E continuou a confissão:

“Perguntado que cousa era querer na Lei de Moisés, disse que era rezar um Padre

Nosso por salvamento de Moisés e que isto fazia ele, confitente, todos os dias, e

que sempre crera firmemente na fé de Cristo Nosso Senhor e nela espera e esperou

sempre salvar-se e rezava o terço do rosário à Virgem Nossa Senhora do Rosário e

que o querer na Lei de Moisés fora por sua mãe lho ensinar e entender que nisso

não ofendia a Cristo Nosso Senhor, nem à sua santa fé [...]”

Domingos Fernandes “queria” na Lei de Moisés e “cria” na de Cristo, uma

distinção que equivocou os inquisidores. Ao longo do processo, a confusão

1256

Cf. Lipiner, Os baptizados..., p. 397. 1257

Cf. Nathan Wachtel, A fé da lembrança. Labirintos marranos, Lisboa, Caminho, 2003, p. 15.

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permaneceu. Disse, na sessão de crença, que “[...] cria na lei de Moisés e a ele tinha

por Deus [...]”. Dias depois, explicava que “[...] entendia que querer na lei de Moisés

era o mesmo que crer nela [...]”1258

.

No fundo, Domingos Fernandes demonstrava não conhecer a natureza da sua fé. Era

cristão-novo e, como tal, naturalmente suspeito. Porém, mesmo quem se encontrava livre

de tais suspeitas, quem nascera sem o estigma do “sangue infecto”, não tinha,

necessariamente, um conhecimento mais profundo sobre os princípios que norteavam a

religião professada. A inacessibilidade aos textos sagrados fragilizava a educação

doutrinal do crente, fosse na Lei de Cristo, fosse na de Moisés.

Ao longo das sessões de confissão, os réus cristãos-novos deixaram transparecer um

manifesto pragmatismo na vivência da fé. Maria Pinta ouvira dizer que, se quisesse ter paz

com o marido e com os cunhados, deveria observar a Lei de Moisés, a qual também era boa

para salvar a sua alma e para ser rica e honrada1259

. Em Julho de 1631, Sebastião Dias

escutara Francisco Mendes, boticário de Faro, afirmar “[...] que esperava ter muita novidade

na sua vinha e em um pomar que ali tinha, porquanto cria na Lei de Moisés, que dava bens

a quem nela cria [...]”. Noutra ocasião, fora à casa do Dr. Gaspar Dias, o Mestre da Mula,

para lhe pedir um remédio para as pernas, ao que ele lhe respondera que o principal remédio

era crer na lei de Moisés1260

. A salvação eterna, a riqueza, a felicidade conjugal, a saúde, o

regresso dos que estavam longe, tudo era reservado a quem acreditasse na “lei velha”. E

isso tornava-a sedutora. Era essa a justificação que os réus apresentavam perante os

inquisidores. “Crer a lei de Moisés para salvação da alma” tornou-se numa fórmula,

permanentemente repetida. Aliás, demasiado repetida para se crer sincera.

A voz dos réus, escondida debaixo de inúmeras camadas de informação filtrada pela

instituição repressora, é predominantemente monocórdica. A maioria das confissões não

vai além da enumeração de um número restrito de práticas e de referências vagas aos

princípios doutrinais, muitas vezes confusas ou mesmo contraditórias. Segundo Amiel,

a opressão inquisitorial e a necessidade de uma disciplina de ocultação da fé, levou os

criptojudeus, como aconteceu com outras comunidades perseguidas, a reduzir o dogma

em proveito da ritualidade, entendida como uma forma de consciencialização e de

1258

Cf. ANTT, IE, proc. 6059. 1259

Cf. ANTT, IE, proc. 3939, fls. 165-165v. 1260

Cf. ANTT, IE, proc. 2719, fls. 108, 182v-183.

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comunhão entre os elementos de um grupo ameaçado1261

. Já vimos, porém, que muitos

elementos do “grupo” nem sequer comungariam essa fé oculta.

Os éditos de fé também privilegiavam a ritualidade. Herman P. Salomon sublinha a

sua dupla função pedagógica: do lado dos inquisidores, educavam a população para ser

capaz de identificar judaizantes entre os cristãos-novos; do lado dos cristãos-novos,

ensinavam às potenciais vítimas o que precisavam de confessar para garantirem a

sobrevivência. Os inquisidores também estariam conscientes de uma terceira função dos

éditos: o reavivar da memória, servindo de “manual de ritos e costumes judaicos ou

pseudo-judaicos”1262

. Discutível é se essa terceira função também constava dos

objectivos dos próprios éditos.

Verificamos que algumas práticas mencionadas no Monitório de 1536 tenderam a

desaparecer nos éditos posteriores, enquanto outras foram acrescentadas. Em 1611, um

édito de fé da Inquisição de Lisboa já não mencionava a celebração da “Páscoa do

Corno”, mas incluía o costume da halá e o de retirar a gordura à carne e a landoa do

quarto traseiro da rês miúda, práticas não mencionadas no Monitório1263

. Anos mais

tarde, um edital de 1640 omitia a degolação ritual das aves, os costumes das noites de

São João e do Natal, a bênção “ao modo judaico”, a circuncisão e a raspagem dos óleos

sagrados impostos no baptismo e no crisma1264

. As práticas que progressivamente

desapareceram ou foram acrescentadas ao conteúdo dos éditos de fé têm, em geral,

paralelo com a matéria das confissões dos réus.

Até que ponto terão sido os cristãos-novos influenciados pelo que escutavam ou

liam nos éditos? Qual a importância destes no reavivar de celebrações e costumes

ameaçados pelo esquecimento? É necessário distinguir o que era confessado do que era

vivido. Como refere Miriam Bodian, os padrões de comportamento dos conversos

também reflectem a mobilização de estratégias humanas para lidar com o conflito, o

estigma e a sobrevivência1265

. A sucessão de décadas e décadas de perseguição religiosa

teve reflexo na própria atitude dos cristãos-novos face à perseguição inquisitorial.

Ganharam defesas. Aprenderam a confessar aos inquisidores o que os inquisidores

esperavam ouvir. Sabiam como funcionava a máquina. Os éditos, os sermões, os

interrogatórios instruíam os confessantes, orientavam as confissões. Uns confessavam

1261

Cf. Amiel, “Les cent voix...”, Revue de l’histoire..., p. 541. 1262

Cf. Salomon, “Spanish Marranism...”, Sefarad, vol. 67:2, Jul.-Dez. 2007, pp. 385-386. 1263

Cf. ANTT, TSO, CG, liv. 256, fls. 247-250. Este édito é idêntico a um outro datado de 12 de Fevereiro

de 1594, também emitido pela Inquisição de Lisboa (Cf. ANTT, TSO, CG, liv. 369, fls. 303-308). 1264

Vide tabela comparativa, em anexo, pp. 86-88. 1265

Cf. Bodian, “Men of the Nation...”, Past and Present..., p. 50.

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“culpas” não cometidas porque sabiam que assim conquistariam um tempo de cárcere

mais curto e uma pena mais leve. Outros limitavam-se a satisfazer as expectativas dos

inquisidores. Entre um e outro caso, havia uma série de variações: os que seriam

realmente sinceros na sua confissão, os que não conseguiam fazer coincidir o que

confessavam com o rol de culpas e eram acusados de diminutos, os que se mantinham

negativos, ou então convictos no seu “judaísmo” até ao fim, ambos condenados à morte,

uns a invocar Cristo, outros Adonai. Mas o que ia na consciência de cada réu não se

reflecte, infelizmente, nos fólios dos processos.

Já constatámos, anteriormente, o quão comuns eram as violações do segredo

inquisitorial. Com a multiplicação das prisões no interior da comunidade, poucos

entrariam ingenuamente no cárcere, sem saber o porquê da sua prisão, quem os

denunciara e o que denunciara. Vejamos os processos resultantes da vaga de prisões em

Faro, na década de 30 do século XVII. A maioria das confissões parecem formatadas:

guardavam os sábados de trabalho em honra da Lei de Moisés, não comiam carne de

porco, lebre, coelho, ou peixe sem escama, jejuavam às segundas e quintas-feiras de

estrela a estrela, rezavam um Padre Nosso ao Deus dos Céus (ou a Moisés), varriam a

casa às avessas. Era isto o que restava da “lei velha”? Faro, primeira metade do século

XVII: uma cidade voltada para o comércio, com um porto muito frequentado por

mercadores estrangeiros, em constante movimento de mercadorias, pessoas e, por

conseguinte, de informações, de rumores, de ideias. Muitos réus tinham parentes a residir

fora de Portugal, inclusive em locais onde o Judaísmo era tolerado. Alguns até chegaram

a viver no estrangeiro. Como ignorar o que vinha de fora? Como soltar a amarra?

5. NÓS E ELES. ENTRE A ASSIMILAÇÃO E O OSTRACISMO

Uma religiosidade repleta de contaminações doutrinais e de vivências distintas – assim

poderíamos definir, em traços largos, a fé evidenciada pelos cristãos-novos que

povoaram os cárceres inquisitoriais e sobre a qual apenas restam testemunhos parciais e,

por vezes, muito ambíguos.

I. S. Révah distingue três tipos de atitudes religiosas: os cristãos-novos que abraçaram

sinceramente o Catolicismo; os que não possuíam convicções religiosas bem definidas,

fazendo-as depender dos seus interesses económicos; e os que realmente praticavam o que

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se pode chamar de “religião marrana”1266

. Talvez a realidade fosse ainda mais complexa,

incapaz de se inscrever em qualquer tipologia. Ora, essa diversidade extravasava o

domínio religioso, reflectindo-se no posicionamento do indivíduo na sociedade e, mais

especificamente, na interacção com a maioria cristã-velha.

Judeu!

O Corpo de Deus em Julho e a festa de Nossa Senhora da Vitória em Agosto – por

ocasião das duas festividades, fazia-se “a dança dos judeus” em Faro. Os participantes

andavam pelas ruas a berrar “mil vitupérios e injúrias” às portas dos cristãos-novos. É

Pedro de Seixas quem o refere, em 1635, nas contraditas do seu processo inquisitorial.

Alguns parentes da sua mulher eram dos mais assíduos participantes na “dança” e, por

isso, os cristãos-novos da cidade haviam jurado vingança. Ele fora a vítima1267

.

A “dança dos judeus” não era um reflexo da perseguição inquisitorial que, naqueles

anos, abalava a cidade de Faro. Tratava-se de algo mais enraizado, de uma tradição.

Recuando no tempo, encontramos outros exemplos do quanto o sentimento antijudaico

estava implantado na sociedade. Por altura da Quaresma de 1561, João Rodrigues,

andando a passear por Tavira com Garcia Fernandes, o Codorniz, viu uma altercação

entre dois rapazes – um chamara «judeu» ao outro. João ainda tentou apartá-los mas

Garcia Fernandes aconselhou-o a não o fazer: «Deixai-os que até aí pode chegar que, por

derradeiro, esses são filhos de Deus e toda a lei há-de ser a dos judeus e essa é a

melhor»1268

. Em 1561, a Inquisição ainda não havia entrado em força na cidade de Tavira,

como aconteceria logo no ano seguinte. Mesmo assim, “judeu” era já uma ofensa

suficientemente grave para acicatar os ânimos. Havia séculos que traduzia todos os vícios.

Obras medievais de apologética antijudaica traduziam os estigmas que viriam a

perdurar na memória colectiva: o deicídio, a usura, a traição, a cobardia, a maldade

congénita. A legislação promovia a segregação dos judeus, limitando-os a bairros

próprios e vedando-lhes o acesso a determinados cargos e ofícios. A convivência entre

os dois grupos era entendida como um perigo para a fé cristã. Com a expulsão e a

conversão geral, a minoria judaica foi substituída pela minoria cristã-nova. Em termos

legais, os recém-convertidos eram igualados aos cristãos-velhos, o que lhes permitiu,

1266

Cf. I.-S. Révah, “Les Marranes”, REJ, t. CXVIII, 1959-1960, p. 53. 1267

Cf. ANTT, IE, proc. 1836, fls. 77v-78. 1268

Cf. ANTT, IE, proc. 12818, fls. 23v-24.

Page 285: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

285

num primeiro momento, o acesso a cargos e profissões até então interditos. Os mais

altos estratos da sociedade abriam-se aos que haviam nascido judeus ou de pais judeus.

As rivalidades exacerbavam-se1269

. Em 1506, o massacre de Lisboa reflectiu os ódios

efervescentes1270

.

A abertura da sociedade aos recém-convertidos não foi plena. As disparidades

persistiram. Em Lagos, os cristãos-novos lamentavam-se da desigualdade na

tributação fiscal: “[...] dizendo que, quando nessa vila dá alguma aposentadoria, sendo

eles poucos, os cristãos velhos muitos, toda ou a maior parte da aposentadoria se lança

a eles [...]”. A mesma situação repetia-se no lançamento das fintas. A 3 de Dezembro

de 1521, D. João III respondia ao apelo dos cristãos-novos lacobrigenses,

determinando que “[...] se nessa vila houver de lançar alguma finta, se não lance sem

ser presente algum cristão novo com os lançadores, o qual será elegido pelos cristãos

novos dessa vila para estar por sua parte ao lançar as ditas fintas e taxas [...]”1271

.

Veremos que, anos mais tarde, o cristão-novo eleito lançador da finta seria

constantemente renegado pelos seus congéneres1272

.

O preconceito sobrevivera à conversão geral, alimentado pelas dúvidas sobre a

sinceridade da sua adesão ao Cristianismo. Ao cristão-novo era associada a propensão

para a heresia, para a traição da fé que abraçara, mesmo que só aparentemente, pelo

sacramento do baptismo. Sobre ele caía a suspeita de continuar fiel à “Lei Velha”.

Ao enumerar, nos éditos de fé, os comportamentos estranhos à ortodoxia católica, a

Inquisição definia o método de identificar o Outro e tornava a denúncia numa obrigação

moral do bom cristão, com vista à preservação pela integridade da Igreja e da própria

alma. O silêncio seria punido com a excomunhão. A questão da consciência, da

necessidade de uma boa confissão, servia de pretexto à vingança de ódios passados,

1269

Cf. Maria José Pimenta Ferro Tavares, “O Judeu na mentalidade portuguesa do século XVI”, I

Simpósio Interdisciplinar de Estudos Portugueses. Actas, vol. I, Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e

Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 1985, pp. 147-169; Idem, “Mentalidade antijudaica em

Portugal (séculos XIV-XVI)”, Judaísmo e Inquisição...., pp. 67-104; Humberto Baquero Moreno,

“Movimentos sociais antijudaicos em Portugal no século XV”, Marginalidade e conflitos sociais em

Portugal nos séculos XIV e XV. Estudos de História, Lisboa, Editorial Presença, 1985, pp. 79-88. 1270

Vide Susana Bastos Mateus e Paulo Mendes Pinto, Lisboa, 19 de Abril de 1506. O Massacre dos

Judeus, Lisboa, Alêtheia Editores, 2007. 1271

Esta carta foi confirmada por D. Sebastião a 28 de Março de 1578. (Cf. ANTT, Confirmações gerais,

liv. 9, fl. 189). 1272

Segundo artigos de contraditas, alguns cristãos-novos, ao servirem de lançadores de fintas, teriam

passado a atrair os desafectos da gente de nação. São os casos de Manuel Nunes (mencionado nas

contraditas do processo da cunhada Branca Dias: Cf. ANTT, IE, proc. 6726, fl. 87); Manuel Henriques e o

cunhado Francisco Lopes, lançadores em 1633 e 1630, respectivamente (Cf. ANTT, IE, proc. 8603, fl. 107.

Vide em anexo, p. 431); e Matias Dias, o Velho (referido no processo de Pedro de Seixas: Cf. ANTT, IE,

proc. 1836, fl. 77).

Page 286: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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uma catarse para o cristão-velho que se sentia lesado pelo crescente poder dos

descendentes da “raça hebreia”.

O baptismo não apagara os “vícios” dos antepassados. Vejamos alguns dos

argumentos apresentados por Cristóvão de Mendonça, na sua defesa:

“Que os Judeus façam mal e jurem falso, seu costume e ofício é antigo, mas que

sejam cridos é mais mofina e desgraça de quem se eles lembram que falta de seu

conhecimento [...].

“[...] mais que esta nação é toda feita de uma inveja que é um mal atractivo e

raivoso e que mais costuma tomar as dores na boa capa alheia do que sente a ruim

com que se cobre [...].

“[...] quando juram, mais se pode temer que põem mãos violentas nos Evangelhos

do que outorgam consentimento neles [...].

“ [...] a riqueza que ela [gente de nação] tem nós lha damos e de nós procede,

aproveitando-nos de seus cabedais para nossas misérias com que as acrescentam e

no-las fazem maiores, assim que o maná de que hoje se sustentam não é mais que

uma cobiça pouco escrupulosa e um modo de furtar com menos perigo que o das

estradas, a quem chamam trato e mercancia e outros disfarçam com nome de

negócio por se livrarem da pena das leis, porque em todas é proibido levar o alheio,

cuja malícia o direito preveniu, pois cada dia os castiga por onzeneiros [...].

“[...] ninguém lhe pode tirar serem homens de conta, peso e medida mas é porque

todas as suas são falsas, os pesos tão diminutos como eles nas confissões e a conta

só à espécie de multiplicar por qualquer caminho que seja [...]. 1273

A mentira, a inveja, a usura – as acusações de Cristóvão de Mendonça não diferem

muito das que povoavam os escritos antijudaicos medievais. O mesmo discurso

persistiu para lá da conversão.

Num contexto de perseguição, “judeu”, mais do que uma ofensa, era uma ameaça,

um nome potenciador de todas as suspeitas. António Vilarinho sentiu-o na pele. A 19 de

Junho de 1640, o seu filho, um bebé de 6 meses, foi atacado por uma porca pertencente

a duas irmãs de Faro, Maria e Domingas de Barros. O animal mordeu a mão da criança

e António, em reacção, esfaqueou-o. As duas mulheres acudiram, chamando-lhe

“[...] nomes muito infames e muito afrontosos [...]” e, ainda mais grave, caluniaram-no

de judeu, “[...] cuja afronta sentiu ele tanto que perdera antes trezentos cruzados e

quatrocentos que ver-se assim afrontado e injuriado por gente tão humilde [...]”. A

versão das duas irmãs é diferente. Além de ter ferido a porca, António Vilarinho

ameaçara que lhes faria o mesmo. Seguiu-se um chorrilho de calúnias. Maria e

Domingas responderam “[...] que melhor era ser mulata e ser seu irmão cão, como lhe

ele chamava, do que ser judeu, nem serem elas judias [...]”. Não o tinham chamado

judeu, diziam. Porém, António afirmava o contrário: “[...] com ânimo de o publicarem

1273

Cf. ANTT, IE, proc. 2699, fls. 326-341.

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por tal e por palavras expressas, lhe chamaram o dito nome [...]”. O caso prosseguiu

com trocas mútuas de acusações – António Vilarinho era “soberbo e mal falante”,

Domingas e Maria de Barros tinham “[...] parido de pessoas que não foram seus

maridos e é gente de lavadoiro e poço, pelo que mal articulam de recolhimento [...]”1274

.

Bem sucedido na sua defesa, António Vilarinho foi absolvido como cristão-velho.

O uso do hábito penitencial acentuava o estigma. Francisca Dias, a cumprir em

Ourique a pena que lhe fora imposta no auto-de-fé de 28 de Setembro de 1597,

costumava andar pela rua sem o sambenito, porque tinha “[...] medo de os moços lhe

tirarem as pedradas, porque o costumam a fazer na dita vila às pessoas que trazem

penitência [...]”1275

. Através do hábito penitencial, a Inquisição penalizava o judaizante

com a humilhação pública. A família também não ficava imune. No lugar da Raposeira,

termo de Lagos, Branca Dias era alvo de injúrias devido à prisão do marido, Fernão

Pinto, reconciliado com cárcere e hábito penitencial ao arbítrio dos inquisidores no auto

de 2 de Agosto de 1587. Ainda nesse mês, numa manhã de domingo, alguém colocou à

sua porta um boneco de palha vestido com um sambenito. Aos pés do boneco, estava

um rótulo. Segundo o padre Salvador Tomás, tratava-se de “[...] um papel pequeno,

escrito com umas letras que, segundo sua lembrança, estavam a modo de trovas e

falavam em sambenito [...]”. Um rapaz que pegou no boneco, quando Branca Dias o

arrancou da porta, referiu que “[...] nele se dizia que, por os tratos que ao dito Fernão

Pinto deram, confessara tudo [...]”. Sobre os responsáveis existiam suspeitas, mas

poucas certezas. Talvez dois rapazes da terra, cristãos-velhos, de famílias rivais do

casal. A única evidência era que o boneco representava Fernão Pinto, então a cumprir a

pena em Évora, e servia de afronta à sua família1276

.

Para o cristão-velho, cujo cônjuge fora penitenciado pela Inquisição enquanto

judaizante, a humilhação ganhava outros contornos. Ele via abater -se sobre si um

estigma que lhe era estranho pelo nascimento, mas comum aos seus descendentes. O

“sangue infecto” entrara-lhe na genealogia e o sambenito envergado pelo cônjuge

constituía a prova inequívoca de tal.

1274

Cf. ANTT, IE, proc. 133, fls. 67-71v. 1275

Cf. ANTT, IE, proc. 6441. 1276

Cf. ANTT, IE, proc. 2891.

Page 288: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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O que Deus uniu o sangue separou

“Maria Rodrigues,

Cá tive por notícia que se fizera o auto da fé e que não saístes como eu esperava.

Bom é confessar a verdade que quem assim o não fizer, não fará como cristã. Agora

o que resta é que me não escreva porque eu não sou o que vós cuidavas para haver de

virdes para meu poder, porque não quero ver em minha casa penitência de mulher

que tive por cristã. Podeis tratar de vossa vida como vos parecer melhor, pois sabeis

minha qualidade, que na vila ninguém me faz vantagem de muito nobre. Sendo esta

vila tão autorizada, me haverão a predicar se tal me viera para casa, pela boa

reputação em que estou, pois sendo cristão-velho, sem nenhuma raça, não posso nem

quero mulher com penitência, e com isto me resolvo. Albufeira, 15 de Abril de 1651.

Gaspar de Ataíde Mascarenhas, vosso marido que foi e já não é”1277

Maria Rodrigues tinha sido presa em Março de 1649. Uma quinta, figueirais, vinhas,

terras de pão e casas na vila de Albufeira - o inventário do seu processo evidenciava

alguma riqueza, fruto de um passado familiar ligado à terra e de um casamento anterior

com Domingos Nobre, lavrador cristão-velho. O pai também era lavrador e o seu avô,

Gonçalo Filipe, fora procurador do número. Através do casamento com cristãos-velhos,

a sua família fora “limpando o sangue”, geração após geração. Resultado: Maria

Rodrigues, tal como a maioria dos seus primos direitos, tinha apenas um quarto de

cristã-nova. Mas isso não poupou a família do cárcere inquisitorial. O pai, três dos

irmãos e alguns dos tios paternos foram presos pela Inquisição de Évora. Quanto ao

marido, temia a vergonha pública de receber em casa uma mulher de sambenito vestido.

Renegou-a, apesar dos quatro filhos em comum, todos ainda crianças, a mais pequena

com dois anos de idade. Pouco mais de um mês após a dita carta, os inquisidores

levantaram a penitência de Maria Rodrigues e mandaram-na em paz. Desconhecemos se

Gaspar de Ataíde a teria então recebido de volta.

O caso de Maria Rodrigues não foi o único. Em 1587, Leonor Simões suplicava que

lhe fosse levantada a pena porque era “[...] casada com um Pero Mendes, homem honrado

de Lagos, o qual não quer fazer vida com ela, antes se quer ir e deixá-la por não viver com

tanta honra [...]”1278

. Anos mais tarde, em 1637, o Padre Diogo Afonso Cabrita, de Loulé,

intercedia por Maria Custódia, casada com um cristão-velho, Bartolomeu Afonso, que

jurava abandoná-la se não lhe tirassem a penitência, deixando desamparados os seus

filhos, “[...] que são pequeninos e de peito [...]”1279

. Os maridos cristãos-velhos

ameaçavam deixar à sua sorte as mulheres penitentes. Por outro lado, as esposas cristãs-

1277

Cf. ANTT, IE, proc. 4264. 1278

Cf. ANTT, IE, proc. 6773. 1279

Cf. ANTT, IE, proc. 5281, fl. 32.

Page 289: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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velhas tentavam evitar a vergonha e o desprezo da família, pedindo aos inquisidores o

levantamento da penitência dos cônjuges ou, simplesmente, a sua permanência longe do

lar. Foi o que suplicou Maria Ribeira, de Vila Nova de Portimão, em 1592:

“[...] porque ela, suplicante, é de parentes muito honrados e dos principais da terra

e do regimento dela, com os quais se tiveram por mui afrontados em ela suplicante

casar com o dito seu marido, por ser cristão novo, e se o virem na dita vila com sua

penitência tratarão mal a ela, suplicante, e a vexarão e a porão em condição de não

fazer vida com seu marido e fará muito escândalo na terra e, além disso, tem duas

filhas mulheres de idade para casar e em termos de as casar e será parte, vendo-o na

dita vila com sua penitência, de não haver efeito ou amparo delas.”1280

Pela sua honra e pela das suas filhas, Maria Ribeira terminava pedindo que o

marido, Francisco Lopes, continuasse a cumprir a pena em Évora. Os inquisidores

acederam em parte – ele permaneceria na cidade, caso o desejasse. Mas não foi esse o

desejo de Francisco Lopes que, no ano seguinte, já estava em Vila Nova de Portimão,

preso na cadeia pública por incumprimento da penitência1281

.

Estes episódios são exemplares do número crescente de casamentos mistos no

Algarve. Se, nos anos 50 e 60 do século XVI, apenas uma minoria dos cristãos-novos

então processados estavam casados com cristãos-velhos (5%), com o avançar dos anos

e, sobretudo, com a crescente repressão inquisitorial, os casamentos mistos perderam o

seu carácter excepcional. Na segunda vaga de prisões no Algarve, entre os réus cristãos-

novos casados, cerca de 23% eram-no com cristãos-velhos. Já nas décadas de 30 e 40 do

século XVII, essa percentagem rondava os 50%1282

.

O casamento com um cristão-velho podia constituir um veículo de ascensão social.

Por outro lado, a fortuna associada a determinadas famílias cristãs-novas revelava-se um

atractivo. Não obstante as medidas propostas para desencorajar os enlaces entre nobres e

cristãos-novos1283

, ao longo do século XVII, assistimos, no Algarve, à crescente

aproximação da gente de nação endinheirada à nobreza local, vinculada à terra e ao poder

concelhio1284

. Recordemos o caso da morte de Francisco Lopes Serralvo: uma das

suspeitas, Guiomar de Leão, cristã-nova dos quatro costados, era casada com um vereador

1280

Cf. ANTT, IE, proc. 7534. 1281

Cf. ANTT, IE, proc. 6982. 1282

Vide em anexo, gráfico 9.3, p. 111. 1283

Em 1614 e 1642, foram publicados decretos proibindo o casamento de cristãos-novos com nobres.

(Cf. Francisco Bethencourt, “Cronologia....”, A Inquisição em Portugal..., pp. 25, 27). Porém, na

prática, tais enlaces continuaram a realizar-se. Aliás, em 1629, a Junta de Tomar aprovou outras duas

medidas que visavam impedir o casamento entre nobres e cristãos-novos, determinando que o dote da

noiva cristã-nova não poderia exceder os dois mil cruzados e que, caso o casamento se realizasse, o

noivo perderia o foro de fidalgo, honras, privilégios e cargos que detivesse (Cf. Figueirôa-Rêgo, A

honra alheia..., pp. 452-453). 1284

Cf. Romero Magalhães, O Algarve Económico..., pp. 348-349.

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de Lagos, também ele suspeito do crime1285

. Em Loulé, Inês de Sousa era filha de Manuel

da Aragão, homem nobre, e de Branca dos Santos, cristã-nova. Duas das irmãs tinha-se

casado com cristãos-velhos que “viviam de sua fazenda” e descendentes de ilustres

famílias da vila: Maria de Sousa com Diogo Ribeiro de Ataíde e Isabel Pinta com Diogo

de Faria Moniz1286

. Este último alegou, em defesa da esposa, que a sua família nunca fora

alvo da acção do Santo Ofício “[...] por ser gente grave e se emparentarem sempre com

gente honrada [...]”1287

. Não é por acaso que, em 1637, alegando-se inocente, Francisco

Mendes de Góis dizia-se alvo de uma conjura de “[...] todas as pessoas de nação e pessoas

nobres da cidade de Faro, por estarem misturadas com os da nação [...]”1288

.

A aproximação entre as famílias cristãs-novas e a aristocracia local não se limitava

aos laços matrimoniais, mas também ao vínculo espiritual criado através do

apadrinhamento1289

. Vejamos dois exemplos. O comendador Jorge Furtado de Mendonça

era padrinho de baptismo de Martim Pinto (filho do advogado Pedro Fernandes de

Oliveira) e de Fernão Gonçalves Duarte, o Cego, além de padrinho de crisma do

contratador Jorge Lopes da Gama1290

. Quanto a Beatriz Filipe, mãe de Guiomar de Leão e

uma das envolvidas no assassinato de Francisco Lopes Serralvo, dizia-se afilhada de um

homem nobre de Vila Nova de Portimão, Cristóvão Rodrigues1291

.

Os casamentos mistos quebravam o estigma de que os cristãos-novos apenas se

casavam entre si, visando a sobrevivência da fé mantida em segredo. Desta forma, tal

poderia servir de prova do quanto o réu se apartara do convívio com a “gente de nação”.

Assim argumentou Estêvão Lopes, mercador natural de Almodôvar e residente em Vila

Nova de Portimão, preso em 1619:

“Provaria que por ele ser tão bom cristão e ser pouco afeiçoado às pessoas de

nação, pretendeu apresentar seus filhos como cristãos-velhos, como o fez, casando

o seu filho Sebastião de Carvalho com Dona Margarida Cabral, filha de Nuno

Fernandes Cabral e de Dona Inês, sua mulher, que são fidalgos nobres e honrados,

e outro filho que ele, réu, tem o ia ordenando para clérigo e havia de tomar ordens

de epístola agora e por não ter idade, as não tem já há muitos dias [...]”1292

Desconhecemos se Nuno Fernandes Cabral teria promovido, com tamanho

entusiasmo, o casamento da filha com um cristão-novo. Com os exemplos de Maria

1285

Vide supra, pp. 104-109. 1286

Cf. ANTT, IE, proc. 8173. 1287

Cf. ANTT, IE, proc. 10762, fl. 87. 1288

Cf. ANTT, IE, proc. 3029, fl. 132. 1289

Cf. Miguel Maria Telles Moniz Côrte-Real, Fidalgos de cota de armas do Algarve, Camarate, Edição

de autor, 2003, p. 491. 1290

Cf. ANTT, IL 9829, fl. 16v ; IL, proc. 7941, fl. 45v; IE, proc. 3363, fl. 29v. 1291

Cf. ANTT, IE 5908. 1292

Cf. ANTT, IL, proc. 3071, fl. 31.

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Rodrigues, Leonor Simões e Mor Ribeira, vimos como as tensões se mantiveram no

seio das famílias, ateadas pela perseguição inquisitorial.

Retomemos o caso de Cristóvão de Mendonça que, não obstante os ofícios

desempenhados ao serviço da coroa – era executor da propriedade do reino do Algarve,

fora juiz da alfândega de Faro e chegara mesmo a substituir o capitão-geral –, também

acabou nos cárceres da Inquisição de Évora, acusado de judaizante. Ele nascera em

Lisboa, onde viveu até aos 15 anos, idade com que partiu para Coimbra e se colocou ao

serviço do reitor Afonso Furtado de Mendonça. A sua família era pouco conhecida em

Faro, salvo o seu pai, Jorge de Mendonça, que também desempenhara o cargo de executor

da propriedade. Ao casar-se com uma mulher “de nação”, Cristóvão consolidou a fama de

cristão-novo. Quando a Inquisição prendeu a sua esposa, a situação agravou-se.

O arrependimento por este enlace e o ódio da família da mulher alicerçaram a defesa

de Cristóvão de Mendonça. Toda a sua desdita começara no casamento, quando tomou

“[...] uma embarcação tão perigosa como a de uma mulher em que fiz naufrágio [...]”.

Tudo não passara de um erro “[...] em que a juventude embica muitas vezes e em que

uns acertam, outros se despenham, e muitos, de diferentes qualidade, as honras

empenharam na cobiça [...]”. O pai tinha falecido havia pouco tempo e a família de

Beatriz Gomes era afamada de muito rica. Cristóvão deixou-se enlear e casou-se. As

consequências fizeram-se sentir mais tarde1293

.

A ameaça de um casamento misto seria outra na perspectiva dos cristãos-novos, em

particular dos que judaizavam. O marido ou a esposa, sendo cristãos-velhos, tornavam-

se potenciais denunciantes. O lar deixava de ser um refúgio para a vivência clandestina

da fé interdita. Havia que esconder, havia que dissimular, mesmo entre quatro paredes.

Apesar de tudo, alguns conseguiram manter a dualidade religiosa longe das suspeitas do

cônjuge. Quando se apresentou perante a Inquisição de Évora, em 1561, Branca de

Sousa confessou que continuara a celebrar a Páscoa do Pão Ázimo, a guardar o

descanso sabático e a fazer os jejuns judaicos mesmo após o casamento com Francisco

Ribeiro, cristão-velho. Afinal, o marido era mercador e ausentava-se de Lagos por

largos períodos de tempo. Não passava 8 dias seguidos em terra, dizia Branca1294

. Ela

1293

Cf. ANTT, IE, proc. 2699, fls. 341v-342v. Vide o texto completo da defesa de Cristóvão de

Mendonça em Carla da Costa Vieira, “«Da cor do cárcere vestido». A defesa de Cristóvão de Mendonça

perante a Inquisição de Évora”, CES, n.º 10, 2010, pp. 503-536. 1294

Cf. ANTT, IL, proc. 6571, fls. 3-4.

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chegara mesmo a confidenciar a Diogo Lobo, também cristão-novo: «Vedes-me aqui,

estou casada com Francisco Ribeiro e ainda faço os jejuns da Rainha Ester»1295

.

A integração de um elemento estranho na família comportava riscos. Porém, entre os

processos estudados, não encontrámos qualquer testemunho de um cristão-velho que

tenha denunciado o seu cônjuge cristão-novo, isto apesar da profusão de casamentos

mistos. Nem sequer durante a visita inquisitorial de 1585. Embora não se tenha

concretizado na prática, a ameaça continuava a existir. Beatriz Lopes proibiu o casamento

da filha Guiomar Simões com um cristão-velho, Álvaro Lourenço, escrivão de notas.

Apesar da oposição dos pais, Guiomar acabou por se casar “a furto”. Não evitou, porém,

o castigo – foi trancada numa câmara da casa, sozinha e à fome. Segundo uma vizinha,

Beatriz Lopes repreendia a filha, clamando: «Mal aventurada, para que te casaste com

cristão velho? Casaras te com um da minha lei e dera-te quanto tinha». Álvaro Lourenço

havia reclamado o dote, mas o pai de Guiomar Simões recusara-se a dá-lo por ele não ser

cristão-novo1296

. Talvez reconhecesse as consequências do casamento da filha com um

homem que não era “de nação”: afastá-la-ia da fé em que fora clandestinamente educada,

mas também da própria família. Longe do círculo familiar, ela tornar-se-ia numa potencial

delatora, o que, de facto, veio a acontecer – Guiomar Simões acabou por denunciar os

pais durante a visitação de 1585. Além disso, havia as crianças fruto dessa união,

permanentemente num limbo, meio cristãos-novos, meio cristãos-velhos.

“Uma migalha de cristão-novo”

“Os judeus deste tempo não é só geração mas ofício, pois em todos se ocupam, e há

alguns que têm uns quartos e nesgas tão cerzidas que se o tempo, em uma ocasião

destas, lhe não descobre o fio, apenas se lhe enxerga a costura e em que, algumas

vezes, os comissários desta mesa se embaraçam [...]”1297

As palavras são novamente de Cristóvão de Mendonça. Consequência directa do

aumento do número de casamentos mistos, multiplicavam-se os indivíduos que apenas

possuíam as tais “nesgas” de cristão-novo. Ora, o executor não se enganava ao afirmar

que, por vezes, essas eram bem “cerzidas”. Alguém com dezasseis avos de cristão-novo,

ou seja, com um trisavô “de nação” perdido algures na sua genealogia, ainda era julgado

1295

Cf. ANTT, IL, proc. 3270, fls. 15v-16. 1296

Cf. ANTT, IE, proc. 8086, fls. 3-8v. 1297

Cf. ANTT, IE, proc. 2699, fl. 349.

Page 293: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

293

enquanto cristão-novo. Porém, a determinação da qualidade de sangue desses indivíduos

poderia ser muito problemática e criar os ditos “embaraços” à Inquisição.

Guiomar de Ataíde foi presa por culpas de judaísmo em 1638, junto com a irmã

Antónia Mascarenhas. As duas eram cristãs-novas da parte da mãe, segundo afirmavam

as testemunhas acusatórias. O “sangue hebraico” proviria do seu bisavô, Clemente Filipe,

cujas origens eram algo obscuras. Enjeitado à porta da igreja de S. Clemente, em Loulé,

Clemente Filipe fora criado na casa do governador D. Pedro de Mascarenhas, tendo-o

acompanhado para a Índia. Em África, combatera ao lado de D. Nuno de Mascarenhas e

fora armado cavaleiro. Numa devassa em Loulé, falou-se sobre um filho de Clemente que

teria sido preso pela Inquisição, Fernão Baldaia1298

. Porém, não se encontrou no Tribunal

de Évora qualquer notícia sobre a prisão desse alegado tio-avô de Guiomar de Ataíde. Na

verdade, Fernão Baldaia fora preso pela Inquisição de Lisboa, em 1566, acusado de

blasfémia, e, na mesa, afirmara ser cristão-novo por parte do pai1299

. Supostamente

desconhecido dos inquisidores de Évora, o processo de Fernão Baldaia não pesou na

resolução dos casos de Guiomar de Ataíde e Antónia de Mascarenhas. Quanto a Clemente

Filipe, segundo determinava a lei, a qualidade do seu sangue estava livre de qualquer

suspeita, “[...] pois os enjeitados, a que se não dá pai, nem mãe, serem sempre, conforme

a direito, tidos por cristãos-velhos [...]”1300

. Teria também pesado a ascendência social das

duas irmãs, ambas casadas com homens honrados de Loulé. Assim, a hipotética parte,

bem ínfima, de “sangue judeu” que correria nas suas veias foi esquecida. Antónia

Mascarenhas e Guiomar de Ataíde acabaram reconciliadas como cristãs-velhas.

As questões levantadas na determinação da qualidade do sangue dos réus não tiveram a

mesma expressão durante a primeira vaga de prisões no Algarve, na qual os cristãos-novos

inteiros constituíram uma maioria esmagadora entre os processados - 98%. O número

decresceu na vaga seguinte (84%) e, já no século XVII, a percentagem de cristãos-novos

inteiros presos durante as décadas de 30 e 40 tornou-se minoritária (35%)1301

.

Perante os processos inquisitoriais, é difícil avaliar a posição na sociedade de quem

só tinha uma parte de cristão-novo. As perspectivas chegam a ser contraditórias. Por um

lado, a documentação indicia que a mácula do “sangue infecto”, por mínima que fosse,

continuava a ser motivo de exclusão. Por outro, muitos réus sublinhavam a sua parte de

1298

Cf. ANTT, IE, proc. 5754, fls. 14-14v, 54-54v. Vide em anexo, pp. 445-447. 1299

Cf. ANTT, IL, proc. 12096. Fernão Baldaia era tabelião em Loulé, por carta de 6 de Junho de 1535

(Cf. ANTT, Chancelaria de D. João III. Padrões, Doações, Ofícios e Mercês, liv. 73, fl. 6v). 1300

Cf. ANTT, IE, proc. 5754, fl. 90. 1301

Vide em anexo, gráfico 9.4, p. 112.

Page 294: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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cristãos-velhos e, na sessão de genealogia, tentavam ocultar ou desvalorizar a “nesga de

sangue hebraico” que lhes corria nas veias.

Inês Martins, de Vila Nova de Portimão, referia que era cristã-velha, mas ouvira dizer

que a sua avó materna tinha “uma migalha de cristã-nova”. Também cristão-velho era o seu

marido, Manuel Gonçalves, almocreve que morrera em Alcácer Quibir ao serviço de D.

Sebastião. Recusando-se a corroborar as culpas que a conduziram aos cárceres, Inês Martins

apresentou as contraditas. O argumento era simples: a animosidade de todos os cristãos-

novos da vila por ela se recusar a manter qualquer tipo de conversação com eles1302

. Este

género de raciocínio é comum a muitos outros processos. Na sua defesa, o réu dizia ser bom

cristão, pertencer às confrarias paroquiais, auferir de cargos na Misericórdia, ser parente de

religiosos e da gente mais honrada da região e, sobretudo, não se relacionar com outros

cristãos-novos. Preso em 1635, Gonçalo Dias, neto de um cristão-velho, alegou que fora

irmão das confrarias das Almas do Purgatório e de Nossa Senhora do Rosário. A sua irmã

Júlia da Silva era casada com um cristão-velho, Manuel Mendes Neto, e os outros cinco

irmãos ingressaram na vida religiosa: Jerónimo Baptista, entretanto já defunto, fora cónego

da Sé de Faro; Francisco da Silva era clérigo teólogo; Isabel Baptista, freira professa no

convento de Nossa Senhora da Assunção; Serafina de São Francisco, freira no mosteiro de

Santa Catarina, em Évora; e Maria da Apresentação, também freira professa em Alcácer do

Sal1303

. Ele próprio, como já vimos anteriormente, estudara Cânones em Ossuna e em

Sevilha, antes de cursar Direito na Universidade de Coimbra1304

. A sua família evitava o

contacto com outros cristãos-novos:

“Provaria que sua mãe e irmã não tratavam com gente de nação e, nas igrejas, se

punham separadas delas, como era no colégio e em outras partes, pelas quais razões

toda a gente de nação lhe chamava a D. Ana Fidalga em desprezo, pelo que, em

ódio, juravam mal e contra ele e suas cousas [...]”1305

Mas Gonçalo Dias acabaria por admitir as culpas de judaísmo e, ao longo da sua

confissão, contradisse tudo o que alegara na defesa – mantinha, sim, contacto com muitos

outros cristãos-novos da terra, com quem partilhava a sua fé na Lei de Moisés. No auto de

14 de Junho de 1637, saiu com cárcere e hábito penitencial perpétuos, sem remissão, e

condenado a degredo nas galés por cinco anos, onde serviria a remo e sem receber soldo.

Teriam os que possuíam apenas uma parte de cristãos-novos mais possibilidades de

convencer os inquisidores da sua inocência e de beneficiar de uma pena mais leve?

1302

Cf. ANTT, IE, proc. 9408. 1303

Cf. ANTT, IE, proc. 3563, fls. 1v-3. 1304

Vide supra, p. 219. 1305

Cf. ANTT, IE, proc. 3563, fl. 80.

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Analisando apenas os processos da terceira vaga de prisões no Algarve que, como já

vimos, apresenta uma maior diversidade ao nível da qualidade do sangue dos réus,

verificamos que não existe uma diferença sensível entre as penas aplicadas aos cristãos-

novos inteiros e aos que eram, em parte, descendentes de cristãos-velhos.

Os filhos de um casamento misto sujeitavam-se a ter de enfrentar as consequências

da prisão de um dos progenitores. A família encarava, então, a vergonha e a exclusão

social. A reputação das filhas era abalada, tal como a esperança de um futuro bom

casamento. Aos filhos ficava vedado o acesso a cargos que poderiam garantir-lhes não

só o sustento, como também a ascendência social e o desvanecimento do miasma do

“sangue hebraico”. E estas eram as consequências menores. A prisão de um ou de

ambos progenitores colocava-os também sob a mira do Santo Ofício.

Foi o que aconteceu com Leonor Domingues, presa em 1589, quando tinha pouco

mais de 15 anos de idade. A sua mãe era Inês Martins, meia cristã-nova. O seu pai,

Vicente Gonçalves, era cristão-velho. Pouco depois de ter entrado nos cárceres de Évora,

Leonor Domingues confessou que fora iniciada na crença na Lei de Moisés pela mãe.

Acabaria reconciliada com cárcere e hábito penitencial ao arbítrio dos inquisidores. Mas

as consequências da sua prisão não terminaram na penitência. O tio António Domingues,

em nome do seu pai que, na altura, se encontrava nas Índias de Castela, apresentou uma

petição aos inquisidores. Ele não conseguira encontrar em Évora nenhuma casa que

pudesse acolher a sobrinha em segurança. Além disso, Inês Martins ainda estava na cidade

a cumprir a pena e, segundo o tio, tentava aproximar-se da filha. Por ser “[...] mulher mui

infame e por tal conhecida em toda a cidade e sua conversação ser-lhe muito nociva [...]”,

António Domingues pedia licença para levar a sobrinha para o Algarve, onde as suas tias

paternas, cristãs-velhas, a instruíriam nos princípios do Catolicismo. Os inquisidores

aceitaram o pedido e, a 13 de Maio de 1591, cerca de mês e meio após ter saído no auto-

de-fé, Leonor Domingues foi enviada de regresso a Vila Nova de Portimão, já sem hábito

penitencial. A família paterna afastara-a do contacto com a mãe, numa tentativa de cortar-

lhe os laços com a gente de nação.1306

1306

Cf. ANTT, IE, proc. 8088.

Page 296: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

296

Apartar a “infecta nação”

Tal tentativa não apagaria a marca que Leonor Domingues herdara da mãe. Por

melhor “instruída” que fosse, continuaria sujeita à segregação sustentada num critério

imutável e que extravasava a forma como vivia e sentia a fé cristã – o sangue.

Com a conversão geral, a religião deixara de ser um elemento distintivo. Pelo

menos publicamente, todos eram cristãos. A equivalência legislativa atribuída então

aos conversos não agradou à maioria cristã-velha, lesada nas suas expectativas e

sujeita à concorrência de quem passou a poder ocupar os lugares mais cimeiros da

hierarquia social. Como salienta Yosef Haim Yerushalmi, havia que engendrar um

outro critério que justificasse a segregação e o sangue foi a resposta encontrada.

Segundo esta concepção, não era mais a fé que determinava a amplitude dos direitos

de cada um, mas sim a sua origem familiar1307

. Referindo-se, em particular, à

realidade castelhana, Juan Hernández Franco sublinha como a limpeza de sangue se

tornou num elemento de controlo dos conversos e, sobretudo, das suas aspirações

sociais e políticas. Por outro lado, a limpeza de sangue converteu-se num privilégio

dos cristãos-velhos, uma forma de distinção e de reconhecimento da sua condição de

“verdadeiros cristãos”, em oposição aos cristãos-novos, a quem o sangue inclinava à

mesma conduta e costumes dos antepassados judeus1308

.

A ascendência judaica precisava de ser reconhecida e provada. Os inquéritos à

limpeza de sangue devassavam a qualidade dos pais, dos avós, dos bisavós e até de

gerações mais remotas. Mas havia excepções. Já vimos, no caso de Clemente Felipe, a

questão dos enjeitados, considerados cristãos-velhos quando ignorada a identidade dos

progenitores. A ênfase era dada ao reconhecimento “público e notório” da qualidade dos

ascendentes e na consciência que o próprio indivíduo tinha dessa herança. “[...] Nas

cousas antigas, principalmente quando se trata de provar pureza ou impureza de sangue,

1307

Cf. Yosef Hayim Yerushalmi, “Propos de Spinoza sur la survivance du peuple juif”, Sefardica. Essais

sur l’histoire des Juifs, des marranes & des nouveaux-chrétiens d’origine hispano-portugaise, Paris,

Éditions Chandeigne, 1998, pp. 195-196 1308

Cf. Juan Hernández Franco, “El pecado de los padres. Construcción de la identidad conversa en

Castilla a partir de los discursos sobre limpieza de sangre”, Hispania, vol. LXIV, n.º 217, 2004, pp. 515-

542. O autor aborda a construção de um discurso, por parte dos cristãos-velhos, para justificar a limpeza

de sangue, sustentado, sobretudo, em dois “depósitos doutrinais” – as autoridades escolásticas, às quais

foi beber os argumentos que associam os cristãos-novos, enquanto descendentes dos judeus, a uma série

de características que ameaçam a harmonia religiosa e política da sociedade; e a tratadística nobiliárquica,

na definição de honra e virtude, valores apenas transmitidos através do nascimento.

Page 297: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

297

não haja outra prova mais que a comum reputação [...]”, acrescentava o acórdão final do

processo de Antónia de Mascarenhas1309

.

Ao contrário de Castela, a aplicação dos estatutos de limpeza de sangue em Portugal

fez-se gradualmente e nunca chegou a constituir uma lei geral. As ordens regulares

foram as primeiras a adoptá-los. Em 1558, um breve vedava aos cristãos-novos a

possibilidade de ingresso na ordem franciscana. Os jesuítas só perfilhariam os estatutos

de limpeza de sangue já em finais do século, depois de muitas reticências1310

. Quanto às

ordens militares, os estatutos foram aplicados na sequência da bula Ad Regie Maiestatis,

publicada a 18 de Agosto de 15701311

.

Dentro do Santo Ofício, a imposição da limpeza de sangue no acesso a determinados

cargos aparece determinada logo no Regimento de 1552, referindo-se, em particular, aos

procuradores, que não poderiam ter “[...] suspeita de raça de Judeu ou Mouro [...]”1312

.

Mas é no Regimento do Conselho Geral da Inquisição, em 1570, que se estabelece a

obrigatoriedade de todos os oficiais do Santo Ofício, em particular dos elegíveis para o

Conselho Geral, não terem “[...] raça de mouro, judeu ou infiel [...]”, nem descenderem

“[...] de relaxados, reconciliados ou penitenciados pelo Santo Ofício [...]”1313

.

Porém, tais determinações acabavam por ser, na prática, contornáveis. Nas ordens

militares são conhecidos alguns casos de cristãos-novos que conseguiram obter a

habilitação1314

. Foquemo-nos no Algarve. Manuel do Rego da Silva, habilitado à

Ordem de Avis em 1674, era filho de Pedro do Rego Freire, cavaleiro-fidalgo da Casa

Real, que servira de vereador da Câmara de Lagos, e de D. Guiomar da Silva, também

ela filha de um nobre. Porém, a avó materna de Manuel do Rego, Beatriz de Sousa,

era cristã-nova, filha de Fernão Martins e de Isabel Gramaxo e, assim, oriunda de uma

das famílias mais lesadas pela entrada da Inquisição em Vila Nova de Portimão nas

décadas de 80 e 90 de Quinhentos1315

.

A mesma permeabilidade é visível no acesso a cargos públicos. Durante o século XVII,

os estatutos de limpeza de sangue alargaram-se ao poder central e local. Em 1611, D.

1309

Cf. ANTT, IE, proc. 5754, fl. 88v. 1310

Cf. Albert A. Sicroff, Los estatutos de limpieza de sangre. Controversias entre los siglos XV y XVII,

Newark, Juan de la Cuesta - Hispanic Monographs, 2010, pp. 361-378. 1311

Cf. Fernanda Olival, “Rigor e interesses: os estatutos de limpeza de sangue em Portugal”, CES, n.º 4,

2004, pp. 151-182. 1312

Cf. “Regimento (1552)”...., As Metamorfoses..., p. 130 (cap. 130). 1313

Cf. “Regimento do Conselho Geral da Inquisição”, As Metamorfoses...., p. 140 (cap. VII). 1314

Vide Fernanda Olival, “O acesso de uma família de cristãos-novos portugueses à Ordem de Cristo”,

Ler História, n.º 33, 1997, pp. 67-82. 1315

Cf. Côrte-Real, Fidalgos de cota de armas..., p. 269.

Page 298: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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Filipe III determinava que só os cristãos-velhos poderiam servir nas “governações” locais.

Sete anos depois, o cargo de almotacé também ficava vedado aos cristãos-novos. Estes

alvarás seriam confirmados por Filipe IV, numa carta de 13 de Abril de 1633, alargando a

exigência de limpeza de sangue a todos os “lugares públicos”, honras, ofícios de

governança, justiça, graça e fazenda. Em 1640, um novo alvará voltava a confirmar estas

restrições. Ora, tal insistência é, só por si, reveladora do incumprimento.

As brechas eram muitas e os cargos públicos continuaram permeáveis à entrada de

cristãos-novos. No Algarve, bem longe da administração central, tal era evidente.

Lourenço Fernandes, preso em 1635, desempenhava o ofício de tabelião de notas em

Faro1316

. Dois anos antes, em Lagos, fora detido Duarte Mendes, tesoureiro da

Câmara1317

. Pela mesma altura, Vicente Leitão era prioste das rendas do cabido da Sé de

Faro1318

. Antes, no tempo do bispo D. João Coutinho, o mesmo ofício estivera nas mãos

de Sebastião Reves, mercador e rendeiro de Faro que, em 1636, foi preso pela

Inquisição de Évora1319

. Todos tinham parte de cristãos-novos.

À falta do “sangue limpo” e da ascendência aristocrática, restava o poder

económico. Em 1620, na sequência do assassinato de Francisco Lopes Serralvo em

Monchique, o juiz de Silves aconselhava a adopção de uma medida exemplar para os

responsáveis: “[...] deve ser castigada com sumo rigor tanta ousadia e atrevimento da

gente de nação que, se nestas partes se não refrearem, se farão mais poderosos e

absolutos do que são [...]”1320

. Alguns anos mais tarde, Manuel Henriques afirmava-se

“o mais rico homem de Faro”, a quem até o bispo D. Francisco de Meneses devia uma

avultada quantia de dinheiro1321

.

Havia quem usasse esse poder económico para “comprar” o reconhecimento social.

Financiavam as festas dos padroeiros e as reformas dos altares, aplicavam grossos

cabedais em obras pias, tentavam o ingresso nas confrarias que reuniam a gente mais

1316

Cf. ANTT, IE, proc. 9942. 1317

Cf. ANTT, IE, proc. 4151. 1318

Cf. ANTT, IE, proc. 2719, fls. 102v-103. 1319

Cf. ANTT, IE, proc. 2719, fl. 199v. Sebastião Reves foi reconciliado com cárcere e hábito penitencial

perpétuos no auto de 1638, mas acabaria por ser novamente preso no ano seguinte, acusado de testemunhar

em falso contra cristãos-velhos (Cf. ANTT, IE, proc. 10501). Era natural de Almodôvar e, antes de se

estabelecer em Faro, estivera na Índia. Refere Cristóvão de Mendonça: “Porque Sebastião Reves é um

homem natural do Almodôvar e é de muito má consciência e rendeiro que ordinariamente anda em pessoas

vis e baixas, costumadas a jurar falso e assim o podia fazer contra ele, réu, por ocasião de vir com ele em

companhia, na qual chamando por ele, disse: «Ó senhor executor». Arregaçando o braço esquerdo, mostrou

nele o santo nome de Jesus e Maria, dizendo que na Índia o havia ali impresso [...]” (Cf. ANTT, IE, proc.

2699, fl. 98). Em 1633, Sebastião Reves era rendeiro da comenda de Santa Maria de Tavira (Cf. ADF,

Cartório Notarial de Tavira, 8-IV-155). 1320

Cf. ANTT, IE, mç. 2, fl. 4v. 1321

Cf. ANTT, IE, proc. 8603, fl. 112v. Vide, em anexo, pp. 433-434.

Page 299: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

299

honrosa da terra. Instrumentos de coesão social e de integração dos leigos na vida

religiosa, as confrarias garantiam o auxílio material e espiritual aos seus membros e

inspiravam um sentimento de equidade susceptível de criar uma consciência de grupo,

capaz de exercer pressão sobre os poderes locais1322

.

O ingresso na irmandade da misericórdia local era particularmente almejável,

sobretudo a partir do momento em que os compromissos incluíram o critério de limpeza

de sangue na selecção dos seus irmãos. Como refere Romero Magalhães, o acesso às

misericórdias tornou-se numa sólida manifestação de “pureza de sangue”, o único lugar

onde o mesteiral podia ser “irmão” do nobre, numa ilusão de equivalência da qual os

cristãos-novos estavam, à partida, excluídos1323

. Nem as divisões no interior da

instituição, entre irmãos nobres e oficiais, impediam que se continuasse a “[...] alimentar

uma ficção de justiça na ordem social instituída [...]”1324

.

Em 1580, um alvará régio autorizava à Misericórdia de Lagos a adopção do mesmo

compromisso atribuído à sua congénere de Lisboa três anos antes. O acesso à irmandade

ficava, então, interdito aos cristãos-novos1325

. As outras misericórdias do Algarve

acabaram por também seguir os compromissos da Misericórdia de Lisboa (o de 1577 ou

o de 1618), tal como aconteceu um pouco por todo o reino1326

. Em comum, exigiam que

todos os irmãos fossem “limpos”.

“Jorge de Oliveira e seus irmãos servem nas confrarias e irmandades da

Misericórdia, aonde se não admitem senão cristãos-velhos e de que se riscam os de

nação [...]”, referia o memorial apresentado em defesa de Jorge de Oliveira, de Loulé,

preso pela Inquisição de Évora em 16481327

. Também Pedro de Seixas, para provar que

era cristão-velho, recordou o tempo em que servira de irmão da Misericórdia de Faro e

1322

Vide Pedro Penteado, “Confrarias portuguesas da época moderna: problemas, resultados e tendências

de investigação”, Lusitania Sacra, 2ª série, tomo VII, 1995, pp. 15-52. 1323

Cf. Romero Magalhães, O Algarve Económico..., pp. 344-346. 1324

Cf. Isabel dos Guimarães Sá, “As Misericórdias nas sociedades portuguesas do Período Moderno”,

Cadernos do Noroeste, Série História I, n.º 15 (1-2), 2001, p. 353. 1325

Cf. Fernando Cecílio Calapez Corrêa, Elementos para a história da Misericórdia de Lagos, Lagos,

Santa Casa da Misericórdia de Lagos, 1998, pp. 42-50. 1326

Cf. Isabel dos Guimarães Sá, Quando o rico se faz pobre: Misericórdias, caridade e poder no império

português 1500-1800, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos

Portugueses, 1997, pp. 89-91; Maria Helena Mendes Pinto e Victor Mendes Pinto, As Misericórdias do

Algarve, Lisboa, Ministério da Saúde e Assistência / Direcção-Geral de Assistência, 1968, pp. 26, 50, 150

e 267. Vide também Portugaliae Monumental Misericordiarum, vol. 5: Reforço da interferência régia e

elitização: o governo dos Filipes. Coordenação de José Pedro Paiva, Lisboa, Centro de Estudos de

História Religiosa, Universidade Católica Portuguesa, 2002. 1327

Cf. ANTT, IE, proc. 7484, fl. 123.

Page 300: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

300

como, em 1634, havia até promovido a exclusão das listas da irmandade de João

Fernandes Guterres, Rui Gomes e Manuel Ribeiro, cristãos-novos1328

.

Quer Jorge de Oliveira, quer Pedro de Seixas, independentemente de todos os

argumentos, foram julgados como cristãos-novos. A própria Inquisição confirmava a

existência de brechas. Aliás, era público que, na prática, as misericórdias continuavam

permeáveis ao ingresso da “gente de nação”1329

. Ouvido sobre o caso de Jorge de

Oliveira, o Padre Álvaro Nunes, vigário de vara de Loulé, admitiu que o cargo de

tesoureiro da Misericórdia era, de vez em quando, desempenhado por cristãos-novos1330

.

Anos antes, em 1619, Estêvão Lopes referiu que fora tesoureiro da Misericórdia de Vila

Nova de Portimão durante 5 anos. Ele nunca escondeu ser cristão-novo. O ingresso nos

corpos da Misericórdia servia apenas de mais uma prova da sua piedade cristã, ao lado

doutras como não ser “[...] afeiçoado às pessoas de nação [...]” ou ter casado todos os

seus filhos com cristãos-velhos1331

.

Além das misericórdias, outras confrarias também envergavam o estandarte da

limpeza de sangue como elemento distintivo dos seus membros. António Vilarinho, na

sua defesa, alegou ter integrado a irmandade das Almas e as confrarias de São Pedro e

de São Sebastião, em Faro. Dizia que o ingresso nestas estava vedado a cristãos-

novos1332

. Duvidamos da rigidez deste critério. O que se passava nestas confrarias seria,

possivelmente, o mesmo que ocorria na irmandade das Almas na igreja de São

Clemente, em Loulé. Afirmou Manuel Gomes de Tomar, cristão-velho e uma das

testemunhas ouvidas sobre a qualidade de sangue de Jorge de Oliveira:

“[...] o compromisso da dita irmandade assim mandava que não aceitassem por irmão

nenhuma pessoa da infecta nação, mas que, contudo, aceitavam muitos que eram

infamados de cristãos-novos e que, servindo ele, testemunha, de recebedor da dita

irmandade no ano de mil seiscentos e quarenta, quisera o dito Domingos de Oliveira

[irmão de Jorge de Oliveira], serralheiro, assentar-se por irmão da dita Irmandade das

Almas, e um João Dias Carneiro, casado nesta cidade e irmão da dita irmandade, lhe

pôs embargos ao aceitarem o dito Domingos de Oliveira por irmão, dizendo

publicamente diante dos irmãos da mesa que era cristão-novo o dito Domingos de

Oliveira e, se o queria aceitar por irmão, o não conseguiu, mas que, no ano vindouro,

o aceitaram por irmão e logo no outro saiu por recebedor da dita irmandade [...]”1333

.

1328

Cf. ANTT, IE, proc. 6212, fls. 193, 195v. 1329

Isabel Guimarães Sá frisa como, décadas depois do compromisso de 1577, as Mesas das Misericórdias

de Coimbra e do Porto continuavam a perguntar ao rei como haviam de proceder com os cristãos-novos que

as integravam. (Cf. Guimarães Sá, “As Misericórdias...”, Cadernos do Noroeste..., p. 342). 1330

Cf. ANTT, IE, proc. 7484, fl. 34v. 1331

Cf. ANTT, IL, proc. 3071, fls. 30-31. 1332

Cf. ANTT, IE, proc. 133, fl. 18v. 1333

Cf. ANTT, IE, proc. 7484, fl. 45v.

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301

As exigências de limpeza de sangue poderiam ser contornadas mediante a rede de

influências construída no seio das confrarias. Podemos considerá-las um microcosmos.

O que se passava no seu interior repetia-se nos cargos públicos, nas instituições laicas e

eclesiásticas e até na hierarquia inquisitorial. As relações sociais e de parentesco

funcionavam tentacularmente nas sociedades de Antigo Regime, capazes de ocultar até

os estigmas mais enraizados, tudo mediante os jogos de influências e de poderes. E

havia cristãos-novos que conheciam bem as regras desse jogo.

As entreabertas portas da Igreja

Voltemos a Manuel Henriques. A sua família apresentava uma forte ligação a

instituições e ordens religiosas. Os primos Lourenço Soares e Henrique Soares eram

clérigos – este em Lagos e o primeiro no Peru, onde veio a falecer. Um outro primo,

Pedro Álvares, entretanto falecido, fora frade capucho de Santo António, em Roma.

Também algumas das suas primas ingressaram em conventos: Maria Soares, em Torres

Novas; Joana do Espírito Santo, no Mosteiro do Carmo, em Lagos; e Isabel Soares, no

Mosteiro de S. Bernardo de Tavira, onde já se encontrava recolhida uma filha de

Manuel Henriques, Isabel, então com apenas 9 anos de idade1334

.

Ora, como se viu, em 1633, grande parte das instituições religiosas em Portugal já

haviam adoptado os estatutos de limpeza de sangue. Porém, a integração de cristãos-

novos na hierarquia eclesiástica continuou a ser uma realidade no Algarve, tal como no

resto do reino. A aproximação aos órgãos da Igreja até se tornara mais apetecível,

passando a constituir não só um veículo de ascensão social ou uma prova de piedade

cristã, como também um sinal de distanciamento face à gente de nação.

Muitas aspirações concentravam-se no cabido. Apesar da proibição decretada por

Sisto V aos cristãos-novos no acesso aos benefícios reservados à Sé apostólica, e a

confirmação desse mesmo decreto pelo seu sucessor, Clemente VII, acrescentando que

nenhum descendente de judeus até à sétima geração poderia receber canonicatos,

prebendas e dignidades nas catedrais1335

, a aplicação de tais restrições tardou na Sé de

1334

Cf. ANTT, IE, proc. 8603, fls. 66-67v. 1335

Cf. Fortunato de Almeida, História da Igreja..., vol. II, p. 59.

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302

Faro. Só em 1641 é que o bispo D. Francisco Barreto incluiu a exigência de limpeza de

sangue nos estatutos do cabido1336

.

De facto, até então, a presença de cristãos-novos no cabido de Faro era uma

constante e inclusivamente, como já vimos, o cargo mais elevado na hierarquia capitular

chegou a estar nas mãos de um cristão-novo, Diogo Lopes1337

. Foi no tempo de D. João

de Melo que ele alcançou a conezia magistral e, em 1585, era um sexagenário com uma

longa carreira no cabido. Porém, a sua relação com os prelados que sucessivamente

ocuparam a cadeira episcopal foi pautada por constantes tensões e querelas, as quais

serviram de argumento de defesa, quando acusado perante a Inquisição. Sobre D.

Afonso de Castelo Branco alegou que “[...] oferecendo-se algumas cousas em que

queria agravar ao cabido sobre os beneficiados da igreja de Silves e tirar os quartanários

da Sé, que ele, réu, como daião, defendia por razão de sua dignidade, tiveram muitas

diferenças públicas, dizendo o dito bispo muitos males dele [...]”1338

. Com o sucessor,

D. Jerónimo Barreto, a convivência não foi melhor, sobretudo com a insistência de

Diogo Lopes em gerar polémica com os seus sermões. Em 1587, novamente durante o

tempo pascal, o deão afirmara numa homilia que Cristo fora concebido como todas as

outras criaturas. Resultado: mais uma acusação remetida ao Santo Ofício. E assim

prosseguiu durante os anos seguintes.

Mas o passado do deão jogava a seu favor: fora pregador do cardeal D. Henrique,

com 40 mil reis de ordenado, e chegou a pregar “nos principais púlpitos” de Lisboa,

“[...] diante de prelados e letrados, teólogos e juristas, e de religiosos e pessoas de bom

entendimento, e sua doutrina foi sempre bem recebida e havida por católica [...]”1339

.

Este e outros argumentos teriam convencido os inquisidores a reconciliá-lo com uma

pena leve. Quando Diogo Lopes ouviu a sentença final, a 31 de Janeiro de 1596, D.

Fernão Martins Mascarenhas já se encontrava à frente do episcopado algarvio. Sem sair

em auto público, o deão abjurou de levi e ficou suspenso de pregar durante um período

ao arbítrio do inquisidor-geral. A sua posição hierárquica servira de atenuante. O

próprio acórdão afirmou-o1340

.

1336

Cf. Romero Magalhães, O Algarve Económico..., pp. 355-356. 1337

Cf. ANTT, IL, proc. 3205. Vide supra, p. 62. 1338

Cf. Idem, fls. 143-143v. 1339

Cf. Idem, fls. 142v-143. 1340

Cf. Idem, fl. 327v.

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Note-se que, de entre as centenas de processos estudados, o número de religiosos

cristãos-novos residentes no Algarve que entraram nos cárceres inquisitoriais resumiu-

se a um. Mais frequentes eram as denúncias.

Exemplar é o caso do cónego Pedro de Barros Carneiro. Em Julho de 1634, acedeu a

uma carta de Lopo Soares de Castro destinada ao irmão Diogo Osório de Castro. O

primeiro era inquisidor no tribunal de Coimbra e o segundo em Lisboa. O cónego não

só abriu a carta, como a mostrou a outros dois padres do cabido, o cónego António

Farto e o beneficiado Sebastião Pinto. Tratava-se de uma “[...] grave ofensa e porque o

conhecimento dela pertencia ao Santo Ofício [...]”, arguiu Diogo Osório de Castro.

Depois de ouvidas as testemunhas de acusação e o próprio Pedro de Barros, o caso foi

remetido ao Conselho Geral, o qual decretou que o seu conteúdo não pertencia Santo

Ofício1341

. Fechava-se o caso sem se descobrir quais as razões que teriam levado o

cónego a abrir a dita carta. Sabemos que a sua relação com Lopo Soares de Castro não

seria a mais amistosa1342

.

Mas as denúncias contra Pedro de Barros já vinham de trás. Em 1627, o cónego

Duarte Mena de Almeida acusara-o de ter posto em causa o dogma da imaculada

concepção. Na diligência que se seguiu, a reputação do cónego foi alvo de acérrimas

críticas. Segundo o padre Luís Álvares, beneficiado da Sé de Faro, ele era “[...] homem

de má vida e costumes e revoltoso, e tanto que tirou um preso da cadeia desta cidade

que estava preso por culpas graves, abrindo as portas da cadeia com chave falsa, pelo

qual caso esteve preso e inda ora se livra no auditório da cidade de Évora [...]”1343

.

Cerca de uma década depois, as palavras e o comportamento de Pedro de Barros

Carneiro continuavam a gerar escândalo em Faro. Segundo António Figueira de Castelo

Branco, deão da Sé de Faro, ele “[...] dava ruim conta de si na matéria de honestidade e,

de presente, está amancebado e, de porta a dentro, tem a manceba e que, quando está no

coro às horas canónicas, ordinariamente está dormindo e sem rezar e que, quando vai

fora, não leva consigo breviário e que é mui desonesto em suas palavras e não lhe pesa de

ser tido e havido por tal [...]”1344

. O deão referia ainda uma carta anónima que circulara

pela cidade e cujo autor seria o próprio Pedro de Barros. Essa “carta infamatória”

parodiava uma sessão do cabido. Retratava-o povoado de “guelfos e gibelinos”, em que o

mestre-escola “[...] não sabe latim nem português [...]” e cónegos palavrosos, como o Dr.

1341

Cf. ANTT, IL, proc. 3255. 1342

Cf. ANTT, IE, liv. 212, fls. 2-2v. Vide supra, p. 113. 1343

Cf. Idem, fl. 11v. 1344

Cf. Idem, fl. 59v.

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Francisco da Fonseca, “[...] com mais escrúpulos que receita de médico [...]”, provocavam

o tédio doutros que não se continham a ridicularizar a situação – como o cónego “Nunes”

(seria Francisco Nunes da Costa, cónego da Sé de Faro em 1621?1345

) que “[...] estava

retendo o riso de ver a salsada do doutor [...]” e acabou a dar “[...] dois bocejos com que

encheu a casa de um insuprível vapor de vinho e alhos [...]”1346

.

Os anos passavam e Pedro de Barros continuava acutilante nos seus comentários. Ele

tinha um alvo preciso – a Inquisição. Em 1642, mais uma acusação chegava a Évora:

“[...] nesta mesa há informação que Pedro de Barros, cónego da Sé da cidade de

Faro, falando sobre os traidores presos e sobre as apertadas prisões em que estava o

Senhor Inquisidor Geral e o Arcebispo de Braga e António de Mendonça, dissera a

Miguel Pereira Borralho, capitão e alcaide, morador de vila de Castro Marim e ora

capitão de uma fortaleza da vila de Setúbal, as palavras seguintes: «É justo juízo de

Deus que estejam em casinhas tão apertadas quem tem os judeus em casinhas tão

apertadas, porque todos estes eclesiásticos presos ou foram inquisidores ou

deputados». E replicando-lhe o dito Miguel Pereira: «Não estão eles por isso

presos, porque fazem o que devem aos judeus». E o dito Pedro de Barros

respondeu: «Não fazem, senhor, que já na Inquisição não há justiça, nem fazem o

que devem, porque levam lá gente com falsidades»” 1347

Com ou sem “falsidades”, Pedro de Barros Carneiro nunca chegou a ser “levado” à

Inquisição. Não obstante as múltiplas acusações, dispersas por quase duas décadas,

nenhum processo lhe foi movido. Qual a razão dessa situação, com tantos cristãos-

novos presos por bem menos? Podemos buscar uma resposta à sentença do deão Diogo

Lopes, ou à entrada de Domingos Gomes na confraria das Almas de Loulé, ou a tantos

outros exemplos, no Algarve e fora dele, em que o poder e as influências revelaram-se

instrumentos capazes de ultrapassar os estatutos de limpeza de sangue mas também a

própria máquina inquisitorial.

“Todos eram uns”. A construção de uma identidade?

«Mal aventurada era a cristã nova que deixava uma cousa a cristã velha e que era

melhor lançá-la no rio que lha dar» - comentou Maria Rodrigues relativamente à notícia

1345

Cf. Pinheiro e Rosa, A Catedral do Algarve..., vol. II, p. 14. 1346

Cf. ANTT, IE, liv. 212, fls. 33-34. 1347

Cf. Idem, fls. 37-37v. Pedro de Barros Carneiro referia-se às prisões decorrentes da conspiração

planeada contra D. João IV em 1641. A iniciativa da conjura teria partido do arcebispo de Braga, D.

Sebastião Matos de Noronha (antes Inquisidor em Coimbra, depois em Lisboa e, por fim, deputado do

Conselho Geral), a quem se juntaram outras individualidades do alto clero e da alta nobreza, entre os

quais os referidos D. António de Mendonça, comissário da Cruzada, e o inquisidor-geral D. Francisco de

Castro. Primeiramente, o inquisidor-geral e o arcebispo de Braga estiveram presos no forte do Paço e,

mais tarde, foram transferidos para a Torre de Belém. Depois de quase dois anos de cárcere, D. Francisco

de Castro foi libertado a 5 de Fevereiro de 1643. (Cf. Teresa Leonor M. Vale, “D. Francisco de Castro

(1574-1653), reitor da Universidade de Coimbra, bispo da Guarda e inquisidor geral”, Lusitania Sacra, 2ª

série, tomo VII, 1995, pp. 352-356).

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que corria em Silves sobre o testamento de uma cristã-nova que deixara alguns bens a

uma cristã-velha. A herdeira andava a propagar a notícia e tal causou “reboliço” na

cidade1348

. Corria o ano de 1559. A Inquisição ainda não entrara em Silves, ao contrário

do que acontecia, mesmo ali ao lado, em Vila Nova de Portimão. Mas as palavras de

Maria Rodrigues revelavam a consciência de uma fractura social. A proximidade entre

os dois grupos parecia perturbar uma ordem preestabelecida.

Como já vimos, os vínculos familiares entre cristãos-novos e cristãos-velhos eram,

então, raros. Com o avançar dos anos, embora esses laços se tenham vulgarizado, a

“mancha” do sangue não desaparecera. A exclusão social e a ameaça do cárcere

inquisitorial persistiam.

No século XVIII, António Ribeiro Sanches notara como o ostracismo encorajava a

perpetuação da “cegueira judaica”. O cristão-novo, educado no medo da Inquisição e

“[...] no desprezo e odio, com que foi tratado pelos Christãos velhos, vem por si no

conhecimento errado da Ley de Moysés”1349

. Bem antes, Espinosa advogara a mesma

ideia no seu Tratado Teológico-Político: o ódio das nações ajudou a assegurar a

conservação dos judeus. Esta tese foi pioneira ao atribuir a sobrevivência do povo judeu

ao anti-semitismo e não à Providência Divina, embora, segundo Yosef Yerushalmi, se

tenha inspirado no debate então corrente sobre a validade dos estatutos de limpeza de

sangue e, por conseguinte, da discriminação legislativa dos cristãos-novos1350

.

De acordo com Nathan Wachtel, a construção de uma identidade criptojudaica

assentaria em dois pilares: a demarcação face a uma maioria que a marginalizava e a

aproximação entre quem sustentava na memória uma ancestralidade comum, a “fé da

lembrança”1351

. A noção de diferença de sangue, materializada nos estatutos, foi

interiorizada pelos próprios cristãos-novos, que passaram a manifestar orgulho no

mesmo sangue que os outros chamavam de infecto1352

.

Durante a visitação de 1585, Jordão Fernandes, bombardeiro na fortaleza da

Baleeira, apresentou-se perante o inquisidor Manuel Álvares Tavares e contou um

episódio ocorrido quase 30 anos antes. Por esse tempo, ele e Fernão Pinto (o marido de

Branca Dias, parodiado no boneco de palha) partiram de Raposeira, termo de Lagos,

para um “rebate de mouros”. Confiante nas proezas militares que o dia prometia, Fernão

1348

Cf. ANTT, IL, proc. 6370, fl. 15v. 1349

Cf. António Ribeiro Sanches, Christãos Novos e Christãos Velhos em Portugal, Porto, Livraria

Paisagem, 1973, p. 48. 1350

Cf. Yerushalmi, “Propos de Spinoza...”, Sefardica..., pp. 175-206. 1351

Cf. Wachtel, A fé da lembrança..., pp. 30-32. 1352

Cf. Contreras, “Family and patronage...”, Cultural encounters..., pp. 131-133.

Page 306: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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afirmara com orgulho que “[...] vinha do género que vencera o maior cavaleiro que

havia no mundo [...]”. Acabaria por ser preso na sequência desta denúncia. Na mesa da

Inquisição de Évora, Fernão revelou que, noutra ocasião, ao ver o seu brio posto em

causa por um cristão-velho, afirmara com orgulho: «Melhores cavaleiros são os meus

parentes, pois que mataram a Jesus Cristo»1353

. Anos mais tarde, em 1630, encontramos

o mesmo sentimento em Jorge Lopes de Castro, o beneficiado da igreja de S. Clemente,

em Loulé, que chegou a estar preso na cadeia de Faro1354

. Dizia-se cristão-novo e “[...]

por qualquer gota de sangue outro que tivera, me fora enforcar [...]”. Afinal, era essa a

“melhor posta” que tinha1355

.

O cristão-novo, independentemente da sua parcela de “sangue hebraico”, era sempre

o Outro, um estigma que tendia a aproximar quem o suportava desde o berço. O

sentimento de pertença a um grupo distinto estaria bem vivo entre muitos cristãos-

novos. Veja-se o convite que Luís Fernandes, surrador de Faro, recebera de um

escudeiro cristão-novo, Gomes Moniz:

“[...] se queria ele, confitente, escrever-se em um livro que ali tinha sobre um bufete

que era dos confrades da Lei de Moisés, e ele, confitente, lhe respondeu que sim, e o

dito Gomes Moniz lhe disse que havia de dar uns sete ou oito tostões de entrada e,

respondendo ele, confitente, que era pobre e os não tinha, disse o dito Gomes Moniz

que ele os pagaria, porquanto ele, confitente, era de sua obrigação e havia sido criado

de seu pai. E logo o dito Gomes Moniz escreveu a ele, confitente, no dito livro, o

qual seria de uma mão de papel encadernado em pergaminho [...]”1356

Este testemunho suscita algumas dúvidas. Afinal, não encontramos qualquer

referência à dita “confraria da Lei de Moisés” noutros processos, nem o próprio Luís

Fernandes adianta mais informações sobre esta ao longo da sua confissão. Porém, mesmo

que não passasse de um artifício para, eventualmente, culpar o dito Gomes Moniz, Luís

Fernandes julgava que tal seria credível. E isso é, só por si, bastante significativo.

A consciência de pertença a um grupo distinto ia muito além da vivência de uma fé

clandestina, espelhando-se noutras dimensões quotidiano. Em Faro, Gaspar Mendes era

conhecido de todos os mercadores da cidade, sobretudo dos cristãos-novos. Filho

ilegítimo de Manuel Filipe Preto, Gaspar vivia da tanoaria. Segundo Sebastião Dias,

todos os mercadores cristãos-novos encomendavam-lhe os barris para o figo e para o

atum porque ele era “de nação”1357

. Gonçalo Dias também recorria aos seus serviços.

Numa ocasião em que lhe encomendou uns cunhetes para o atum, Gaspar Mendes

1353

Cf. ANTT, IE, proc. 2891. 1354

Vide supra, pp. 164-165. 1355

Cf. ANTT, IE, liv. 212, fls. 435-436. 1356

Cf. ANTT, IE, proc. 5495, fls. 13-13v. 1357

Cf. ANTT, IE, proc. 2719, fls. 101v-102.

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recusou-se a receber o pagamento, não só porque serviam no mesmo ofício, mas

também por ambos “crerem na Lei de Moisés”1358

.

Vender fiado ou mesmo não cobrar aos clientes cristãos-novos são atitudes que se

repetem insistentemente nas confissões. A partilha da mesma “qualidade de sangue”

garantia a confiança no parceiro de negócio. Voltemos ao processo de Sebastião Dias.

Indo um dia pagar a dívida das rendas do cabido ao prioste Vicente Leitão, mas

faltando-lhe mil réis para saldá-la, este dissera-lhe que não tinha importância, pois

ambos eram cristãos-novos. Noutra ocasião, ele recorreu a Rui Gomes, avaliador do

conselho, e ao perguntar quanto lhe havia de pagar, este respondera-lhe que pagaria o

que quisesse porque “[...] todos eram uns [...]”1359

.

Já vimos, nas décadas de 30 e 40 do século XVII, casos de cristãos-velhos presos

nos cárceres da Inquisição de Évora, acusados de judaizarem e com indícios de sangue

hebraico. Os denunciantes eram cristãos-novos que aprenderam a usar as armas da

suspeita e da denúncia contra um inimigo comum. Os cristãos-velhos presos, por sua

vez, alegavam as conjuras da gente de nação e vinganças pessoais. Vendo por outro

prisma, é necessário sublinhar, novamente, que estamos perante um discurso construído.

A alegada “união” seria algo que os inquisidores esperavam ouvir e os réus sabiam-no.

Resta-nos ponderar até que ponto os próprios cristãos-novos não fomentavam esse

estereótipo na esperança de se salvarem da mordaça inquisitorial.

Mas também não podemos ignorar as consequências, entre os cristãos-novos, das

sucessivas entradas da Inquisição. As reacções revelam-se contraditórias. Vislumbra-se, até,

uma divisão. Para alguns, teria encorajado a construção de uma identidade de grupo e feito

recrudescer a consciência de uma herança comum. Independentemente do quanto a

herança dos ancestrais se encontrava viva nas suas crenças e no seu quotidiano, eles

partilhavam a mesma condição e uma ameaça afim. Para outros, promovera a

aproximação à maioria cristã-velha, expressa no crescente número de uniões exogâmicas e

de indivíduos de “sangue misturado” que viviam de lavrar a terra e não do comércio, que

pregavam nos púlpitos das igrejas e que conseguiam penetrar em cargos teoricamente

vedados pelos estatutos de limpeza de sangue.

1358

Cf. ANTT, IE, proc. 3563, fls. 182v-183. 1359

Cf. ANTT, IE, proc. 2719, fls. 102v-103, 191v.

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Oito escritos suspeitos aparecem em Lagos

Na manhã de 10 de Julho de 1647, quem se deslocou à Igreja da Misericórdia, em

Lagos, para assistir à primeira missa do dia, deparou-se com um cenário insólito.

Alguns homens olhavam perplexos para um papel na parede da igreja. Nele, lia-se:

«Viva a Nossa Santa Lei de Moisés». Por baixo, em letra menores: «D.º e Ant.º». Nessa

mesma manhã, descobriram-se mais 6 papéis iguais espalhados pela cidade. Um oitavo

escrito só seria encontrado no dia seguinte. Segundo alguns testemunhos, os papéis

foram afixados nos locais por onde passava a procissão do Senhor dos Passos. O

simbolismo era revelador – escritos pró-judaicos estrategicamente colocados no espaço

de celebração da morte de Cristo1360

.

Poucos dias depois, o juiz de fora de Lagos, Luís de Melo de Sequeira, recebia

ordens do governador para recolher depoimentos sobre o sucedido. Com igual rapidez, a

notícia chegou a Évora e a Lisboa. Passado menos de uma semana, o Conselho Geral já

havia sido informado pelo tribunal eborense de “tão grande excesso”. Sem mais

demoras, o inquisidor Manuel de Magalhães de Meneses foi enviado a Lagos1361

.

A 9 de Agosto, já se encontrava na cidade e, dois dias depois, começou a ouvir as

testemunhas. A diligência acabou por se estender para lá do esperado. As contradições

dos testemunhos, os vários suspeitos e os indícios contra alguns dos elementos mais

notáveis da sociedade lacobrigense exigiram a multiplicação das inquirições. Durante

quatro meses, Manuel de Magalhães de Meneses ouviu, pelo menos, 230 testemunhas,

na tentativa de descobrir o que realmente se passara na noite de 9 de Julho de 1647.

Não fora uma noite tranquila. Afinal, em pleno Verão, numa “noite de calma” e de lua,

muitas janelas permaneciam abertas, alguns homens conversavam até tarde nas escadas da

igreja do Espírito Santo ou junto à Praça do Cano, uns passeavam pelas ruas depois da ceia,

outros ainda reuniam-se a jogar às cartas até altas horas da noite. Ainda de madrugada, os

pescadores começavam a sair para a faina e os militares vigiavam as muralhas e as portas da

cidade, que enceravam entre as 9 da noite e as 5 da manhã. «Nesta cidade, anda toda a noite

muita gente», comentava uma das testemunhas inquiridas1362

.

Houve quem presenciasse movimentos suspeitos. Os depoimentos referem dois ou

três homens que vagueavam pela cidade, ora confidenciando entre si, ora andando

1360

Sobre uma eventual influência criptojudaica presente na proliferação em Portugal dos cultos

relacionados com a morte de Jesus Cristo, vide Moisés Espírito Santo, “O que é um judeu”, in Schwartz,

Os Cristãos-Novos em Portugal..., p. XX. 1361

Cf. ANTT, IE, liv. 629, fl. 388. 1362

Cf. ANTT, IE, mç. 1, doc. 5, fl. 253.

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apressadamente, como que em fuga. Mas a identificação desses homens revelou-se

confusa e até contraditória.As certezas eram poucas, as suspeitas muitas. Logo que os

escritos foram encontrados, as culpas recaíram sobre os cristãos-novos da cidade. Afonso

Claveiro, familiar do Santo Ofício, enquanto recolhia o papel afixado na parede da igreja

da Misericórdia, teria afirmado: «Ainda há diabos nesta cidade». Rodrigo Landeiro,

escrivão das fortificações, completara-o: “[...] que vivesse a Lei de Cristo, que essa era a

verdadeira e que todos eram uns cães, falando em geral pela gente de nação [...]”1363

.

O inquisidor tentou averiguar até que ponto o conteúdo dos escritos indiciava a sua

origem e isso tornou-se num dos alicerces da inquirição. Segundo Diogo Ribeiro de

Alvarenga, escrivão dos órfãos, o autor só poderia ser alguém de letras, “[...] porquanto a

palavra «Moyses» estava escrita com Y grande, sendo que todos, ordinariamente, dizemos

«Mouses» com U [...]”1364

. Depois, havia a assinatura: “D.º e Ant.º”, ou seja, Diogo e

António. E muito se especulou sobre estes dois nomes. Manuel Rodrigues Verdelho,

mercador cristão-velho, ouvira dizer que “[...] se entendia Diogo por um frade capucho e

outro por António Homem, que foram queimados pela Inquisição [...]”. Em 1647, na cidade

de Lagos, ainda se recordavam os casos de Frei Diogo de Assunção e António Homem,

condenados pelo Santo Ofício décadas antes. Mas surgiram ainda outras interpretações.

Domingos Gomes, tendeiro sevilhano, julgava que um dos nomes se referia a António

Rodrigues Castanho, boticário cristão-novo1365

. O seu passado não estava livre de mácula.

Alguns anos antes, António Rodrigues fora preso pela Inquisição1366

. Além disso, era

reconhecida a sua rivalidade com alguns cristãos-velhos de Lagos.

Porém, outras testemunhas duvidavam que a produção e a publicação dos escritos

fosse obra de um único homem. Dizia-se na cidade que, noites antes do sucedido,

Fernão Nunes, médico e também cristão-novo, visitara frequentemente António

Rodrigues Castanho1367

. Os dois costumavam ter discussões com os frades do convento

da ordem da Trindade sobre a interpretação das Escrituras. Frei Sebastião de Paiva

desconfiava do profundo conhecimento que eles tinham do Antigo Testamento,

chegando mesmo a repetir “[...] de memória muitos lugares [...]”1368

. Também havia

quem apontasse o nome de Diogo Rodrigues, hortelão. Este poderia ter actuado em

conjunto com António Rodrigues, pois eram “[...] grandes amigos e poetas [...]” –

1363

Cf. Idem, fls. 436-436v. 1364

Cf. Idem, fl. 82v. 1365

Cf. Idem, fl. 95. 1366

Cf. ANTT, IE, proc. 1030. 1367

Cf. IE, mç. 1, doc. 5, fl. 133v. 1368

Cf. Idem, fl. 199v.

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especulou Domingos Gomes, tendeiro cristão-velho, que lançou uma outra suspeita

sobre Diogo Nunes Álvares, mercador cristão-novo, também amigo de António

Rodrigues e cuja caligrafia era muito similar à dos escritos1369

.

Mas não seria algo assim tão temerário mera obra de rapazes? Diogo Ribeiro de

Alvarenga ponderou essa hipótese e até adiantou dois nomes – Brás Rodrigues, filho de

António Rodrigues Castanho, e António Fernandes, ambos cristãos-novos1370

. Brás

Rodrigues, em particular, costumava andar pela cidade noite adentro, na companhia doutros

estudantes, e tinha fama de ser um “semeador” de rumores1371

. O Padre Manuel de Abreu,

clérigo de epístola, queixava-se desse “moço intrometido” que, não obstante saber pouco

latim, ousava entrar em disputas teológicas com ele e com outros religiosos. Algumas

testemunhas referiam o orgulho com que ele afirmava ser “de nação”1372

.

Outros saíam em defesa dos cristãos-novos. O Padre Pedro de Sousa “[...] julgou

sempre que o feito não era de gente de nação, porquanto se não devia de querer entregar por

esta maneira à morte [...]” e que tudo não passara de uma vingança dos cristãos-velhos1373

.

Note-se que ele próprio era “de nação”. Porém, nada era tão linear quanto parecia. Joana

Gamboa, filha de um nobre da cidade, também não acreditava que os escritos fossem obra

de cristãos-novos porque “[...] estando ricos e poderosos na terra, não deviam de se querer

perder por essa via e quisesse Deus não fosse algum cristão-velho [...]”1374

.

Seria uma tentativa de incriminar a gente de nação? Esta suspeita espalhou-se pela

cidade e arredores. Duarte Rodrigues, mercador cristão-novo residente em Vila Nova de

Portimão, ouvira umas moças de Lagos a comentar que, na noite em que os escritos foram

afixados, tinham visto três homens na rua e um deles dissera: «Deste ferro nem o que está

em Lisboa há-de escapar»1375

. Referia-se a Marcos Pereira, cristão-novo, então a viver em

Lisboa e inimigo figadal dos vereadores Diogo Borges de Sousa e Manuel Jaques de Paiva.

No passado, Marcos Pereira fora agredido pelos dois e por um outro cristão-velho de Lagos,

Pedro Marreiro. Consequentemente, os três acabaram presos no Castelo de Sagres por

ordem do governador. Os cristãos-velhos de Lagos escandalizaram-se – como é que três

homens tão distintos foram presos por causa de “um judeu”1376

? Falava-se em vingança.

Além disso, algumas testemunhas identificaram-nos com os homens que, na noite do

1369

Cf. Idem, fl. 154v-156. 1370

Cf. Idem, fls. 86-87. 1371

Cf. Idem, fls. 112, 160-160v, 191, 238. 1372

Cf. Idem, fls. 191v-192, 200, 238v. 1373

Cf. Idem, fl. 265. 1374

Cf. Idem, fl. 343v. 1375

Cf. Idem, fls. 373v-374. 1376

Cf. Idem, fl. 396v.

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sucedido, andavam a vaguear pelas ruas de Lagos. Uma delas foi Aldonça Álvares. Mas

questionou-se a validade do seu testemunho. Segundo o capitão Vicente Neto, Aldonça e a

sua família, embora cristãos-velhos, tinham amizade com “os da nação”1377

.

Perante o inquisidor, Diogo Borges de Sousa tentou afastar todas as suspeitas de si e

do seu irmão, Manuel Jaques de Paiva. Segundo alegou, tal aleive fora levantado pela

família de Marcos Pereira, na qual se incluía o Padre Afonso da Costa, prior da igreja da

Misericórdia. Na noite do sucedido, estivera até perto da meia-noite na rua, na

companhia do irmão e de Pedro Marreiro, tal como costumavam fazer nas “noites de

calma” mas, depois, os três voltaram para as suas casas1378

. Tal não coincidia com o

conteúdo doutros testemunhos, mas o inquisidor não insistiu. Note-se que Maria

Francisca Abrantes, aguardenteira que, nessa noite, estivera a trabalhar madrugada

adentro, disse ter visto três homens suspeitos na rua quando já passava das duas horas

da manhã – respectivamente, Diogo Borges, Manuel Jaques e Pedro Marreiro. Porém,

corria o rumor de que Maria Francisca reconhecera um dos ditos homens como sendo

Afonso Claveiro, o familiar do Santo Ofício que recolhera dos escritos1379

.

De facto, Afonso Claveiro tornou-se no suspeito mais citado ao longo de toda

inquirição. António Rodrigues Castanho disse ter estranhado o “[...] modo e certeza com

que os [os papéis] foi tirar às partes donde estavam postos e também por ser um dos

primeiros homens que apareceu na dita manhã na praça, pelas seis horas ou antes delas, não

sendo acostumado a vir tão cedo a ela [...]”1380

. Porém, não era este o único motivo de

suspeita sobre Claveiro. Embora fosse familiar do Santo Ofício desde 16391381

, alguns dos

seus comportamentos pouco dignificavam tal posição. Dizia-se que era “homem de mau

viver” e que andava amancebado com uma mulata cristã-nova1382

. No passado, teria sido

acusado de escrever pasquins infamatórios anónimos1383

. Além do mais, sendo médico e

assistindo no convento do Carmo, suspeitou-se que andava a perverter as freiras, o que

acabou por lhe arruinar a carreira1384

. E motivos não lhe faltavam para compor e afixar

aqueles papéis. Era conhecida a sua rivalidade com um outro médico, Fernão Nunes,

cristão-novo. Este, chamado a depor, confirmou-a e acrescentou que Afonso Claveiro

1377

Cf. Idem, fl. 227. 1378

Cf. Idem, fls. 437v-438v 1379

Cf. Idem, fls. 35, 38v-40, 225. 1380

Cf. Idem, fls. 30v-31. 1381

Cf. ANTT, TSO, CG, Habilitações, Afonso, mç. 1, doc. 17. 1382

Cf. ANTT, IE, mç. 1, doc. 5, fls. 371, 378, 431. 1383

Cf. Idem, fls. 34, 392v-393. 1384

Cf. Idem, fls. 34v, 344, 348.

Page 312: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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costumava ameaçá-lo com as insígnias do Santo Ofício1385

. A sua situação agravou-se com

a angústia e o desespero evidenciados a partir do momento em que os rumores de que seria

o autor dos escritos começaram a circular pela cidade. A sua mulher, Leonor Claveira,

chegou mesmo a ser acusada de tentar subornar uma das testemunhas para que não o

denunciasse1386

.

Quando foi chamado a testemunhar, Afonso Claveiro desvalorizou a rivalidade com

Fernão Nunes e negou ter-lhe feito qualquer tipo de ameaça. Passara toda a noite de 9

de Julho em casa e só soube do sucedido no outro dia de manhã, bem cedo, quando foi

assistir um paciente. Embora o seu testemunho tenha entrado em contradição com o

doutras testemunhas, o inquisidor não insistiu.

O número de suspeitos crescia a um ritmo inversamente proporcional às conclusões

de Manuel de Magalhães de Meneses. A 27 de Setembro, um fidalgo de Lagos, Martim

Afonso Coelho, referia que já se tinham levantado suspeitas contra perto de 50 cristãos-

velhos, inclusivamente homens nobres como ele. Quase um mês depois, na recta final

da devassa, Frei Diogo de Lagos, guardião do convento da Esperança, fazia um balanço

sobre o estado da questão:

“[...] logo do princípio que ele, Senhor Inquisidor, veio para esta cidade, correu fama

contra cristãos-velhos, nomeando Afonso Claveiro, Diogo Borges e Manuel Jaques,

seu irmão. Porém, que hoje está mais calada e esta andou em algumas pessoas com que

falou, que das mais não sabe por não saber, por não sair fora de seu convento, e que o

fundamento que lhe davam era haverem as ditas pessoas tido brigas e diferenças com a

gente de nação e que, por lhe haverem mal, fariam os ditos escritos. E hoje se diz na

dita vila commumente que as testemunhas que souberam, ouviram alguma coisa a

princípio, estão subornadas e encobrem a ver de que a gente de nação anda hoje mais

pensativa e melancolizada, como que se receiam de alguma coisa [...]”1387

As trocas de acusações semeavam a dúvida. Martim Afonso Coelho acusava a

“gente de nação” de trazer espias pela cidade e que “[...] depois do sucesso, anda toda

em ranchos com maior continuação [...]”1388

. Com o avançar da devassa, surgiram

acusações de depoimentos forjados e de subornos a testemunhas. Dizia-se que Jorge

Pinto, armador, parente de Fernão Nunes, fora agredido por um filho do capitão da

fortaleza de Boliche, sobrinho de Afonso Claveiro, que o ameaçara “[...] que visse em

que se metia e olhasse como falava [...]”1389

. As rivalidades alargavam-se às famílias e

1385

Cf. Idem, fl. 333. 1386

Cf. Idem, fls. 269v-270. 1387

Cf. Idem, fls. 356-356v. 1388

Cf. Idem, fl. 172. 1389

Cf. Idem, fl. 253.

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aos círculos sociais. Existiam autênticas conspirações. João Álvares de Vilalobos,

escrivão das dízimas da comarca de Lagos, testemunhou o seguinte:

“[... ] ele, denunciante, se persuadiu logo que os escritos eram obra da gente de nação

desta cidade, a qual ele tem toda por judia, em tanto que nem missa ouve de sacerdote

cristão-novo, e a dita gente imediatamente lançou fama que cristãos-velhos o fizeram,

pondo boca em Diogo Borges de Sousa e Manuel Jaques, seu irmão, e Pero Marreiro,

escrivão de almotaçaria, cristãos velhos e homens nobres, e no dito Licenciado

Claveiro, e que esta fama foi fácil de se publicar em razão da muita gente pobre que há

neste lugar, que depende da de nação e vive de seu empréstimos e a causa que davam é

pelos ditos três homens primeiros haverem dado em Marcos Pereira, cristão-novo, que

a gente de nação venera por dizerem que é da melhor tribo de Israel e, em razão de lhe

haverem dado, cobrou a gente de nação aos sobreditos ódio [...]”1390

Os argumentos de João Álvares de Vilalobos revelam uma acesa oposição, não

simplesmente entre cristãos-novos e cristãos-velhos, mas sobretudo entre alguns dos

elementos mais notáveis dos dois grupos. Era um choque de titãs. Por outro lado, os

apoios a uma ou a outra facção não se regiam, necessariamente, pelo critério do

“sangue”. Vilalobos refere a “gente pobre” de Lagos, facilmente aliciada ou pressionada

pelo poder financeiro de alguns cristãos-novos. Tal reflectiu-se na devassa. Alguns

cristãos-velhos acusaram os seus congéneres e, em contrapartida, saíram em defesa da

gente de nação. Eram escravos ou criados de cristãos-novos, mas não só. Aliás, a maior

autoridade ouvida, o governador D. Vasco de Mascarenhas, revelou suspeitar dos

cristãos-velhos da cidade que, devido ao episódio ocorrido com Marcos Pereira e a

consequente prisão de Diogo Borges e de Manuel Jaques, poderiam querer vingar-se da

gente de nação. Apontou mesmo o dedo a Afonso Claveiro, do qual conhecia a má

fama. Foi o que lhe ocorreu logo que soube dos escritos1391

.

Não deixa de ser curiosa esta primeira impressão do governador quando informado do

aparecimento de oito escritos exortando a Lei de Moisés. Segundo Frei Sebastião de Paiva,

religioso do convento da ordem da Trindade, D. Vasco de Mascarenhas tentara proteger os

cristãos-novos de eventuais acusações. Logo no dia a seguir à descoberta dos escritos, o

governador escreveu ao ministro do convento para que aconselhasse Frei Sebastião a ser

“pouco fogoso” na sua homilia e a não “[...] falar em alguém em particular [...]”. Referir-se-

ia à gente de nação – assim entendeu o frade, visto “[...] que o governador lhe difere em

razão de correspondências e empréstimos que lhe faz a dita gente [...]”1392

.

A devassa de Manuel de Magalhães de Meneses não chegou a bom porto. No fim,

nenhuma conclusão. Nunca houve um culpado a dar entrada nos cárceres da Inquisição.

1390

Cf. Idem, fls. 233-233v. 1391

Cf. Idem, fls. 394v-397v. 1392

Cf. Idem, fl. 21v.

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Nos anos que se seguiram, as prisões em Lagos foram meramente residuais e nunca

relacionadas com o que acontecera na noite de 9 de Julho de 1647. Se nos ficássemos pelo

desenlace, este seria um episódio completamente irrelevante. Além do mais, nem sequer

fora inédito. A publicação de pasquins e escritos alegadamente pró-judaicos repetira-se

noutros momentos e noutros espaços do reino. Rita Marquilhas menciona um caso muito

similar ocorrido em Santarém, em 1689, quando foram encontrados, afixados nas portas das

igrejas, alguns escritos com uma inscrição semelhante à que se lera, anos antes, em Lagos:

«Viva a Lei de Moisés». A devassa inquisitorial revelou-se igualmente inconclusiva1393

.

Porém, a inquirição realizada durante o Verão e Outono de 1647, em Lagos, além de

nos fornecer um autêntico fresco da cidade e do dia-a-dia dos seus moradores, revela o

quanto as tensões sociais previamente existentes podiam ser exacerbadas pela ameaça

da actuação inquisitorial. Aliás, esta torna-se num instrumento de vindicta que, mais do

que sustentada num antagonismo étnico ou religioso, partia de questões pessoais e

sociais: o que separava Afonso Claveiro de Fernão Nunes era a rivalidade profissional;

o que opunha Diogo Borges e Manuel Jaques a Marcos Pereira era a humilhação de uma

pena considerada injusta e, sobretudo, desonrosa. A mácula do sangue estava presente, é

claro. A Afonso Claveiro revoltava ser superado por um outro médico, mais ainda se

cristão-novo. A prisão de Diogo Borges e Manuel Jaques fora particularmente

humilhante porque a justiça preterira a sua causa à de um “judeu”. Mas o sangue não

impedia Afonso Claveiro de andar amancebado com uma cristã-nova, nem D. Vasco de

Mascarenhas de, alegadamente, proteger a gente de nação. A permeabilidade das

relações entre cristãos-novos e cristãos-velhos era demasiado intensa para validar um

modelo de sociedade bipolarizada. Era-o em Lagos. Sê-lo-ia em todo o Algarve.

1393

Cf. Marquilhas, A Faculdade das Letras..., pp. 55-56. O caso de Santarém apresenta outras nuances

similares ao que ocorrera em Lagos: a forma dos pasquins, também escritos em grandes letras capitais; os

locais em que foram fixados (um deles na igreja da Misericórdia); as suspeitas sobre letrados ou estudantes.

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315

CONCLUSÃO

Terminemos pelo início. Mais exactamente pela citação do processo de Francisco da

Gama parafraseada no título. Garcia Gonçalves, o Velho, dizia-se com “[...] duas

amarras, uma no mar e outra à terra, e que cria o que criam os judeus e o que criam os

cristãos [...]”1394

. Estávamos em 1558, a Inquisição iniciava a sua primeira investida no

Algarve e, confiando no testemunho de Francisco da Gama, Garcia Gonçalves sentia-se

ancorado a dois portos, a duas fés. Não pensemos no Garcia Gonçalves real, o alfaiate

que se tornara mercador, marido de Isabel Gonçalves, presa pela Inquisição de Lisboa

no ano seguinte. Sobre ele pouco se sabe. Nunca chegou a ser processado e as

informações emanadas doutros processos não permitem confirmar, nem negar as

palavras de Francisco da Gama. Mas foquemo-nos neste Garcia Gonçalves de fé dúbia,

quiçá mero fruto da imaginação de um velho mercador de Vila Nova de Portimão.

Judeu e cristão, um homem dividido entre a Lei de Cristo e a Lei de Moisés –

contraditório, mas não impossível. Na larga maioria dos processos, a confessa

duplicidade religiosa enquadrava-se na distinção entre o público e o privado. O

judaizante demonstrava “na obra” a sua piedade cristã, enquanto que, no domínio

privado, na segurança das quatro paredes do lar, guardava o descanso sabático,

observava os jejuns judaicos, não comia carne de porco ou peixe sem escama. Porém,

essa mesma religiosidade, vivida em segredo, também fora contaminada pela religião

dominante. O judaizante rezava o Padre-Nosso ao Santo Moisés, fazia coincidir as

celebrações judaicas com o calendário cristão, desfiava as contas do rosário durante as

preces. Originalmente, talvez não fossem mais do que simples estratégias de

dissimulação. Porém, com o devir dos anos e das gerações, tais práticas enraizaram-se.

1394

Cf. ANTT, IL, proc. 12032, fl. 17.

O dominó que vesti era errado.

Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.

Quando quis tirar a máscara,

Estava pegada à cara.

Quando a tirei e me vi ao espelho,

Já tinha envelhecido.

Álvaro de Campos, “Tabacaria”

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As confissões dos cristãos-novos algarvios revelam a construção de uma

religiosidade progressivamente híbrida. Os rituais mencionados nos primeiros processos

evidenciam uma maior proximidade ao Judaísmo normativo e uma expressão mais

pública ou, pelo menos, aberta a círculos mais alargados do que o núcleo familiar. Já

nos anos 30 de Seiscentos, as práticas judaizantes praticamente se circunscrevem à

guarda do sábado e às respectivas cerimónias de sexta-feira, aos jejuns semanais (não

sujeitos a uma calendarização desconhecida à mor parte dos judaizantes), às prescrições

dietéticas e ao Padre Nosso votado a Moisés. Eram rituais facilmente transmitidos e

memorizados, passíveis de serem inscritos num universo meramente doméstico.

Este é o panorama oferecido pelos processos inquisitoriais. Que ilações podemos

retirar? Por um lado, reflecte um esforço do judaizante em adaptar a sua vivência religiosa

à repressão, simplificando a ritualidade e adoptando práticas facilmente identificadas com

o cerimonial católico. Por outro, indicia uma progressiva perda da memória da fé

professada pelos ancestrais judeus, dado o difícil acesso à liturgia judaica, quase só

possível por via do Cristianismo e dos seus textos sagrados. Pensemos em mais uma

hipótese, já adiantada atrás. O deficitário conhecimento que os inquisidores tinham sobre

o Judaísmo surgia sintetizado nos éditos de fé, lidos e escutados pelos cristãos-novos que,

dessa forma, tomavam consciência do que eles indagavam, do que esperavam ouvir. Com

o avançar da perseguição inquisitorial, eles passaram a saber o que era e como havia de

ser feita uma “boa confissão”. É isso o que exprime o conteúdo das suas confissões, cada

vez mais padronizado, cada vez mais repetitivo. Confissões verosímeis, não

necessariamente verdadeiras.

Afinal, se os alegados judaizantes realmente guardavam “no coração” a Lei de

Moisés, isso é algo ainda mais insondável para nós, no início do século XXI, do que o

fora para os inquisidores, seus contemporâneos. Sobre esses “corações” apenas

podemos tecer hipóteses. Certa seria, porém, a diversidade dos sentimentos e

comportamentos religiosos. Entre o Catolicismo mais ortodoxo e o Judaísmo normativo,

multiplicavam-se as matizes. As duas amarras não nos parecem assim tão absurdas.

Alguém poderia perfeitamente ser judeu e cristão em simultâneo e sem as fronteiras do

público e do secreto. Talvez Garcia Gonçalves vestisse as suas melhores roupas ao

sábado e não trabalhasse durante todo o dia, por observação sincera da Lei de Moisés, e,

no dia seguinte, ainda fosse à missa e recebesse a hóstia, crendo piamente que estava a

comungar o corpo de Cristo. Talvez, em momentos de aziago, rezasse aos santos da

Igreja e, não lhe valendo estes, invocasse a Santa Rainha Ester ou o Santo Moisés,

Page 317: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

317

pedindo a riqueza, ou a saúde, ou a sorte que lhe escasseavam. Talvez ajustasse as

crenças às suas vontades, às suas conveniências. Talvez outros, sem a mácula do

“sangue infecto”, fizessem exactamente o mesmo. Se perguntados sobre as matérias de

fé, provavelmente titubeariam na definição das suas crenças tanto, ou ainda mais, do

que os cristãos-novos que enchiam os cárceres da Inquisição. As “culpas de judaísmo”

muitas vezes não são mais do que meras questões de perspectiva. Um cristão-velho

poderia também varrer a sua casa da porta para dentro, jejuar do nascer ao pôr do sol e

duvidar do dogma da Santíssima Trindade, mas muito dificilmente seria acusado de

judaizar. Salvava-o o “sangue limpo”. Por isso, quando nos anos 30 do século XVII

alguns cristãos-velhos de Faro e de Loulé aparecem acusados de “culpas de judaísmo”,

a suspeita esvanece-se no momento em que conseguem provar a limpeza do seu sangue.

Na origem da dúvida não se encontra uma questão religiosa, mas sim “rácica”, a

qual alimenta a exclusão social. Um cristão-novo é naturalmente suspeito de ser

judaizante, como se a “heresia” lhe corresse no sangue. A bibliografia tem notado que a

alegada propensão natural do cristão-novo para o regresso à fé dos antepassados se

tornou um subterfúgio para justificar a exclusão de um grupo que, após a conversão

geral e, por conseguinte, com a abolição da distinção religiosa, pôde ascender aos mais

altos degraus da sociedade1395

. A maioria cristã-velha precisava de encontrar algo que a

distinguisse. Encontrou o sangue – o seu, limpo, o dos outros, conspurcado.

Refere Elvira Mea que “[...] o aproveitamento da paridade perante a lei de cristãos-

velhos e novos, por parte destes, determinou uma separação de tipo sociológico, não

consignado pela lei, determinando roturas e clivagens na sociedade portuguesa, uma

realidade que o funcionamento do Santo Ofício acentuou [...]”1396

. Duas questões emergem,

então: a “separação” social e a forma como a actuação inquisitorial a exacerbou.

Voltemos à problemática da construção da destrinça entre cristão-novo e cristão-velho.

Referi atrás que era uma questão “rácica”. Porque não “étnica”? Esclareçamos os conceitos

à luz da Sociologia. Anthony Giddens define o conceito de raça alicerçado em algo de fixo

e biológico, enquanto que etnia é uma noção puramente social, sem nada de inato, que

engloba “[...] práticas culturais e modos de entender o mundo que distinguem uma dada

comunidade das restantes. Os membros dos grupos étnicos vêem-se a si próprios como

1395

Cf. Ferro Tavares, Judaísmo e Inquisição..., p. 128; Yerushalmi, “Propos de Spinoza...”, Sefardica...,

pp. 195-196; Juan Hérnandez Franco, “El pecado de los padres...”, Hispania..., pp. 515-542. 1396

Cf. Elvira Mea, “Judeus e cristãos-novos em Portugal”, Minorias étnicas e religiosas em Portugal.

História e Actualidade, Coimbra, Instituto de História Económica e Social / Faculdade de Letras da

Universidade de Coimbra, 2003, p. 138.

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culturalmente distintos dos outros grupos de uma sociedade e são vistos por estes mesmos

grupos como tal [...]”. Prossegue o autor: “[...] através da socialização, os mais jovens

assimilam estilos de vida, normas e crenças das suas comunidades [...]”1397

.

O conceito de sangue é algo de fixo, biológico e inato, usando os termos de

Giddens. Trata-se, portanto, de um critério rácico. Um cristão-novo já nasce enquanto

tal e continua a sê-lo até ao fim dos seus dias, ciente de que irá transmitir às gerações

seguintes essa mesma condição, tal como a recebeu dos seus ascendentes. Só é possível

“limpar” o sangue através de uma contínua miscegenação – cinco gerações até que a

mácula desapareça. Alguém com um só trisavô cristão-novo continua a ser “de nação”.

Vimos, no Algarve, indivíduos com uma ínfima “migalha de cristão-novo” que não

conseguiram escapar ao cárcere inquisitorial. Alguns até tentaram negar essa “migalha”

ou simplesmente alegaram o quão plena era sua integração entre a maioria cristã-velha.

Porém, pressionados pelos inquisidores, muitos acabaram por ceder e confirmar as

culpas que os levaram aos calabouços. Natos em famílias cristãs-velhas, com um único

elo a ligá-los a um remoto antepassado cristão-novo (um bisavô, ou mesmo um trisavô),

que contacto teriam com o universo criptojudaico? As suas confissões podem revelá-lo,

referir a permanência da prática de um ou outro preceito judaizante, mas como confiar

em tais palavras depois de tanta pressão, depois até da tortura e da ameaça de morte na

fogueira? Não podemos partilhar do crédito dos inquisidores e afirmar convictamente

que eles, no seu íntimo, seriam de facto judaizantes. Afirmo novamente: esse é um

terreno insondável. Porém, sabemos o que os conduziu até ao cárcere. Foi o “sangue”.

Foi a memória que as testemunhas acusatórias tinham sobre a sua ascendência cristã-

nova. Foi o preconceito que lhes alimentou a suspeita. Estes ¼ ou 1/8 cristãos-novos

partilhavam entre si não necessariamente uma cultura comum ou uma “fé da

lembrança”, usando a expressão de Nathan Wachtel1398

, mas antes uma “lembrança da

fé”, não a sua ou a dos seus pais ou avós, mas sim a de um antepassado distante que

nascera judeu e morrera como cristão. Uma lembrança hetero-referencial que, para

muitos, se tornou auto-referencial. Colou-se-lhes ao corpo o fato imposto.

1397

Cf. Anthony Giddens, Sociologia, 8ª ed., Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2010, pp. 248-249. 1398

Centrando-se nas comunidades da diáspora sefardita, Nathan Wachtel define assim o elo que unia os

seus elementos: “[...] a identidade da «gente de Nação» definia-se, em certo sentido, como reacção ao

ódio que as outras nações lhe dedicavam (segundo a tese de Espinosa), mas envolvia, ao mesmo tempo,

uma componente fundamental e positiva: a fidelidade aos antepassados – pois, a despeito da sua

diversidade, os membros da «nação» comungavam, de facto, numa fé comum, a fé da lembrança.” (Cf.

Wachtel, A fé da lembrança..., p. 32).

Page 319: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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Porém, a associação do “sangue” a uma série de comportamentos – a disposição

para a heterodoxia, a endogamia, o comércio, a união do grupo, a residência em

determinados espaços –, perpetuada pelo Outro, confere uma dimensão étnica à noção

de cristão-novo. A dúvida reside se essa mesma dimensão se reflectia na forma como o

próprio se auto-percepcionava.

Salvo aqueles em que a dita “lembrança da fé” se desvanecera por completo, os

cristãos-novos tinham consciência da sua herança genealógica. Tal era-lhes recordado

quotidianamente, mesmo quando a ameaça inquisitorial se encontrava longe. O “sangue”

vedava-lhes o acesso a determinados cargos, o ingresso em várias instituições. Por outro

lado, também reconheciam os preconceitos que acompanhavam essa noção e, quando

presos, resistindo à confissão, alguns afirmavam que até se tinham casado com cristãos-

velhos, que se dedicavam ao labor da terra e que apenas mantinham comunicação com

gente de sangue limpo. Mais relevante ainda: alguns até conseguiam prová-lo.

Ver-se-ia o cristão-novo a si próprio como “culturalmente distinto” do cristão-

velho? Seria ele educado em “estilos de vida, normas e crenças” diferentes dos da

maioria? A resposta a estas questões acaba por esbarrar com o velho problema: a

heterogeneidade do conceito de cristão-novo, a sua multiplicidade, a ambivalência da

sua identidade. Yovel Yirmiyahu caracteriza a situação existencial do cristão-novo

como uma nova forma de alteridade, um Outro entre o Mesmo, um other within1399

.

Mas regressemos ao Algarve. Caracterizar univocamente o cristão-novo algarvio

revela-se uma tarefa ingrata, dada a diversidade de situações (as excepções, por vezes,

são tamanhas que inviabilizam qualquer regra) e a possibilidade de uma mesma

realidade suscitar várias leituras. A documentação inquisitorial é propícia a tal, já o

vimos logo no início. Exige um profundo trabalho crítico, que vislumbre para lá do que

está escrito, que leia nas entrelinhas. Assim, o cristão-novo algarvio é-nos revelado

gradualmente, através de sucessivas camadas de percepção.

Numa primeira camada – a mais imediata, a mais próxima da imagem transmitida

pela documentação –, encontramos um grupo distinto da maioria cristã-velha. Concentra a

sua residência nos núcleos urbanos e, em particular, em determinados espaços (alguns até

coincidentes com a localização das antigas judiarias), dedica-se preferencialmente ao

comércio e aos mesteres, os seus elementos tendem a casar-se dentro do grupo, uma parte

significativa mantém crenças e rituais estranhos à religião dominante. À primeira vista, no

1399

Cf. Yovel Yirmiyahu, The Other Within: the Marranos. Split identity and emerging modernity, New

Jersey, Princeton University Press, 2009, pp. 78-79.

Page 320: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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Algarve, os cristãos-novos constituem uma minoria étnica, com características identitárias

próprias e facilmente diferenciáveis da maioria. É a imagem transmitida pelo Outro, o

Outro repressor. Ao longo do presente trabalho tentei desconstruí-la, ver o que existia por

detrás desta percepção, exterior ao objecto de estudo. Enfim, tentei alcançar as camadas

inferiores. Algumas foram atingidas através de um exercício hermenêutico. Às outras,

apenas consegui ver as pontas e delinear hipóteses de interpretativas.

Sobre a questão religiosa, não me demorarei mais. Fiquemo-nos pela complexidade

e pela diversidade dos sentimentos, crenças e práticas religiosas. Passemos, então, aos

outros elementos. Primeiro, a residência. Vimos como, em Tavira, pouco mais de meio

século após a conversão geral, muitos cristãos-novos já haviam galgado as muralhas da

cidade, fixando-se junto ao rio, longe da área ocupada pelos seus antepassados. A

circulação de gente e de mercadorias animava a zona ribeirinha e tornava-a num espaço

mais atractivo para quem colhia o seu sustento no comércio e nas actividades mesteirais.

A situação repete-se em Faro e até em Vila Nova de Portimão, onde os cristãos-novos

passam a concentrar-se em, pelo menos, três áreas distintas da localidade, junto a três

das portas das muralhas. O pragmatismo pesava mais do que a tradição.

Por outro lado, há indícios que a concentração residencial prevaleceu. Algumas

artérias aparecem manifestamente associadas aos cristãos-novos, como, por exemplo, a

Rua de Santo António, em Faro. Mas a generalidade das informações recolhidas

limitam-se à identificação da morada dos réus. Portanto, só temos acesso a uma parcela

da realidade. É natural que as denúncias caíssem sobre indivíduos com quem o réu

convivia diariamente, com quem partilhava o mesmo tecto ou simplesmente a mesma

rua. As denúncias revelam uma concentração em três círculos de relações: a família, a

vizinhança e a profissão. E os outros? Apenas podemos traçar conjecturas. É provável a

existência de uma continuidade residencial familiar – pelo menos um dos filhos herdaria

a casa dos pais, tornando-a na sua própria residência. Além disso, um critério com

grande peso na escolha do espaço de residência seria, como se viu, a conveniência

profissional. Considerando que os cristãos-novos partilhavam uma mesma história

genealógica – a descendência dos antigos judeus que, por sua vez, tinham a residência

confinada a um espaço determinado – e uma propensão para o desempenho de

determinadas actividades económicas, a concentração geográfica do grupo seria uma

consequência natural.

Até meados do século XVII, o comércio e os mesteres eram as actividades

dominantes entre os cristãos-novos algarvios, tal como haviam sido entre os judeus.

Page 321: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

321

Uma continuidade profissional? Vimos a frequência com que um ofício perdurava numa

mesma família, de geração em geração. No Algarve, identificámos famílias de

mercadores, de sapateiros, de surradores. Predominavam os ofícios urbanos, mas não

existia uma desvinculação à terra e aos seus frutos. Embora sejam pouco significativos

os casos de cristãos-novos apresentados como lavradores, muitos dos mercadores e

mesteirais possuíam nos termos das cidades e vilas o seu quinhão de terra. Ali

cultivavam vinhas, oliveiras e árvores de fruto, especialmente figueiras. Na cidade, nas

tendas, nas feiras ou às embarcações que chegavam aos portos, vendiam vinho, azeite,

figo – enfim, vendiam (não só, mas também) aquilo que cultivavam. A actividade

agrícola vinculava-se com o mercado e não era um vínculo meramente estabelecido por

estes cristãos-novos mercadores-lavradores. Com uma economia especializada num

número restrito de produtos, o Algarve era uma região onde, como referem as relações e

corografias coevas, os figueirais, os olivais e as vinhas cobriam grande parte do

território agrícola, deixando pouco espaço à cultura de subsistência e, em particular, ao

trigo que, de quando em vez, escasseava nos mercados e nas mesas. As culturas que

povoavam as propriedades agrícolas dos cristãos-novos eram as mesmas que os

cristãos-velhos colhiam das suas terras. Não há uma diferenciação.

Provavelmente, a assimetria também não seria tão acentuada no que respeita às

actividades económicas desenvolvidas quanto se julga a uma primeira vista. Numa

região onde o comércio desempenhava um papel determinante no tecido económico, a

actividade mercantil atraía também capitais de cristãos-velhos, inclusivamente da

pequena nobreza algarvia1400

. A distinção sócio-profissional entre cristãos-novos e

cristãos-velhos talvez se operasse em termos de prioridades, os primeiros mercadores-

lavradores e os segundos lavradores-mercadores. Relativamente aos mesteirais, a

discrepância seria ainda menos significativa.

A situação mudava no acesso a determinados cargos administrativos e religiosos,

vedados aos cristãos-novos pelos estatutos de limpeza de sangue. Mas as barreiras não

eram impermeáveis, ainda para mais numa região tão afastada do poder central como

era o Algarve. Identificámos cristãos-novos no cabido de Faro, em ofícios

administrativos e até no seio de confrarias cujos estatutos exigiam aos seus membros o

sangue limpo. Lado a lado com cristãos-velhos.

1400

Cf. Romero Magalhães, Para o estudo do Algarve..., p. 227.

Page 322: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

322

Se a actividade económica condiciona a selecção do espaço de residência, também

determina as relações estabelecidas fora do círculo familiar. Correntemente, a escolha do

cônjuge ocorre dentro desse universo relacional. Olhando para as genealogias,

verificamos a tendência de sogro e genros partilharem a mesma actividade profissional ou

actividades complementares. No caso dos mercadores, o casamento solidifica alianças

profissionais, sela um vínculo que se quer de máxima confiança. O sucesso do negócio

sustenta-se no crédito entre os seus operantes e os laços matrimoniais sagram-no.

A endogamia não se limita ao grupo cristão-novo, como também ao grupo dos

mercadores, ou dos sapateiros, ou até dos cirurgiões, por exemplo. Subindo na escala

social, onde seria mais comum a existência de uma política matrimonial definida pelos

progenitores, não podemos negar o valor do “sangue”. Conhecemos pais cristãos-novos

que repudiaram o casamento “misto” dos filhos. A situação inversa seria ainda mais

comum. O enlace com alguém de “sangue infecto”, ainda para mais quando a família

suportava a mancha da prisão inquisitorial, era motivo de vergonha. Porém, a atraente

combinação honra-dinheiro acabava por falar mais alto. No Algarve, onde predominava

a pequena nobreza, assistimos a uma crescente aproximação dos cristãos-novos à

aristocracia local, o que lhes abria outras portas, outras perspectivas de ascensão social.

Esta é uma das transformações mais evidentes – o crescente número de casamentos

mistos e a multiplicação de indivíduos com “parte de sangue hebraico”. Nos processos

decorrentes dos anos 30 e 40 de Seiscentos, os réus cristãos-novos inteiros tornam-se

minoritários. Por outro lado, também passam a ser mais comuns as referências a

lavradores “de nação”, residentes nos termos das cidades ou nos espaços rurais do

barrocal. Detenhamo-nos, porém, num senão: esta vaga de prisões atinge Loulé e

Albufeira, até então praticamente livres da actuação inquisitorial, vilas onde a

actividade agrícola predominava.

Os cristãos-novos que encontramos na década de 30 do século XVII diferem

substancialmente dos que haviam sido presos pela Inquisição de Lisboa cerca de 70

anos antes. As características que os distinguiam da maioria cristã-velha atenuam-se:

multiplicam-se as uniões exogâmicas, a ligação à terra intensifica-se, alguns abandonam

a cidade rumo ao campo, as alegadas práticas judaizantes revelam-se mais simples, mais

padronizadas, mais distantes do Judaísmo normativo. Os cristãos-novos envelhecem.

No meio, três entradas da Inquisição, mais de 800 prisões.

É inegável que a acção inquisitorial constituiu um elemento desestabilizador das

comunidades cristãs-novas. Mas, sem a Inquisição, existiria o Cristão-Novo? Perante

Page 323: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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um cenário não repressivo, não teria ocorrido uma assimilação plena dos descendentes

dos “baptizados em pé”? A historiografia tem ponderado insistentemente sobre estas

questões. Recordemos a tese de António José Saraiva – o marrano enquanto uma

construção do elemento repressor. Anita Novinsky não nega que a Inquisição tenha

criado o mito do judaizante, porém, este foi igualmente assumido pelos próprios

cristãos-novos, mas não necessariamente enquanto atitude e sentimento religiosos: “A

Inquisição criou o «mito do judaizante», recriou-o continuamente, mas o «judaizante»

foi uma realidade que também se revitalizou, na maior parte não como participante

consciente da comunidade religiosa judaica, mas enquanto homem condicionado por

uma «situação» que o identificava com os judeus através da «exclusão»”1401

. No século

XVII, ao qual Novinsky se reporta, a identidade neocristã construiu-se em resposta a

uma instituição repressiva e, acrescentaria, a uma sociedade ostracizante. Nos antípodas

desta perspectiva, encontramos Elias Lipiner. Segundo o autor, o Judaísmo nunca

chegou a extinguir-se em Portugal, apenas regrediu “[...] tornando-se cada vez mais

vago, consoante o seu exercício, por medo da Inquisição, se ia tornando mais difícil, e o

isolamento religioso, mesmo nas suas formas residuais, se mostrava extremamente

incómodo”1402

. Ora, as diferentes perspectivas sobre uma mesma questão evidenciam a

dualidade do comportamento do Cristão-Novo face à repressão inquisitorial. Perante o

verdugo, a vítima adopta um de dois comportamentos: identifica-se com o Mesmo ou

aproxima-se do Outro.

No Algarve, presenciamos ambas atitudes. Por um lado, assistimos à afirmação de

uma identidade própria, o orgulho na herança hebraica que cresce proporcionalmente

aos “episódios dramáticos da Inquisição”, usurpando a expressão a António Baião. As

notícias sobre as vítimas do Tribunal inspiram um sentimento de pertença ao grupo

perseguido e injustiçado. António Homem ainda era recordado no Algarve (a tantas

léguas do cenário dos acontecimentos) passados vários anos, décadas até. Diogo Lopes

Ulhoa, no Brasil, mandara erigir uma capela em honra da filha “mártir”. Tais episódios

também instigavam a revolta. Alguns ousavam criticar em alta voz a máquina

inquisitorial, falavam dos “Neros Vespasianos” de Évora, dos abusos dos familiares do

Santo Ofício. Outros bradavam contra os cristãos-velhos em geral e envaideciam-se da

sua “melhor posta” (a cristã-nova, é claro) e de descenderem dos maiores “cavaleiros”,

1401

Cf. Novinsky, “Um problema de historiografia”, Cristãos Novos na Bahia..., pp. 6-7. 1402

Cf. Lipiner, Os baptizados..., p. 413.

Page 324: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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aqueles que haviam morto o próprio Cristo. Orgulhavam-se do sangue que o Outro

chamava de infecto.

Por outro lado, havia quem tentasse “limpar” esse mesmo sangue. E tal não passou

apenas pela progressiva exogamia e pelo desvanecimento da “cristã-novice” de geração

para geração. Houve um aproximar ao modus vivendi do Cristão-Velho. Trocaram a

mercancia pelo labor da terra, colocaram os filhos em conventos e mosteiros, tentaram

iludir os estatutos de limpeza de sangue e ingressaram nas misericórdias, nos cargos

municipais e até nas ordens militares.

Quando, no Verão de 1647, a suspeita ensombrou Lagos e o inquisidor devassou a

cidade em busca de culpados, os cristãos-novos passaram a “andar mais juntos”, como

referiu uma testemunha. Por outro lado, cristãos-velhos saíram em defesa da “gente de

nação”, apontando o dedo a quem se dizia de “sangue limpo”. A ameaça da prisão, que

nunca chegou a passar disso, acabou por criar uma clivagem – cresceram as suspeitas de

que haviam sido cristãos-velhos a tentar implicar cristãos-novos, ou cristãos-novos a

suscitar a dúvida sobre cristãos-velhos – que parece quase artificial no contexto da

sociedade lacobrigense de meados de Seiscentos. Cristãos-novos e cristãos-velhos eram

vizinhos, parceiros de negócios, amigos, parentes até.

A presença da Inquisição agudizou as fracturas, inclusivamente dentro do próprio

grupo. De 1647 passemos para 1585. Durante a visita inquisitorial de Manuel Álvares

Tavares ao Algarve, alguns cristãos-velhos testemunharam contra os vizinhos ou os

patrões. Porém, cristãos-novos também denunciaram os seus congéneres, alguns até

parentes muito próximos. Havia quem tentasse salvar a própria pele, atraído pela

misericórdia prometida pelos éditos de fé. Outros, porém, usaram a Inquisição para o seu

próprio interesse, em prol de vindictas pessoais. Não era só a pressão dos inquisidores ou

as agruras do cárcere que levavam à delação no interior do grupo ou mesmo da família.

Das três entradas da Inquisição no Algarve, só uma teve origem em denúncias de cristãos-

velhos. Na primeira e na terceira vagas, foram os próprios cristãos-novos a atear o

rastilho. Por detrás, encontramos desavenças familiares, sobretudo questões de heranças.

A multiplicação das prisões processou-se à margem dos cristãos-velhos. Estes só eram

convocados como testemunhas, nomeadamente na defesa dos réus. Então, muitos

confirmaram que os réus eram bons cristãos, que iam todos domingos à missa, que se

confessavam pelo Natal e pela Quaresma. Testemunharam em seu favor.

Portanto, a própria minoria cristã-nova encontrava-se dividida no seu interior. A

clivagem sentia-se até dentro da própria família. A Inquisição e, em particular, as

Page 325: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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diferentes atitudes face à perseguição acabaram por acentuar as divisões. Era maior a

ameaça que vinha de dentro do que a surgida de fora.

Referi dois comportamentos adoptados pelos cristãos-novos perante a repressão

inquisitorial. Deveria mencionar três. Afinal, além da resistência e da assimilação, uma

outra atitude foi adoptada: a evasão. Em Faro, quando começaram as prisões nos anos

30 de Seiscentos, alguns dos mercadores de maiores cabedais conseguiram transpor a

fronteira e estabelecer-se nas cidades andaluzes. Em finais do século XVI, também Vila

Nova de Portimão sofreu uma debandada da “gente de nação”, alguns rumo a outras

urbes algarvias, outros para fora do reino, inclusivamente além-Atlântico.

No Algarve, a actuação inquisitorial não provocou apenas uma transformação das

comunidades cristãs-novas. Também fez baixas. É possível identificar uma tendência: a

Inquisição entrava em comunidades emergentes e “secava-as”. Ao actuar sobre um

grupo com tamanho peso na economia urbana e ao provocar a sua desestruturação, a

repressão inquisitorial hipotecava o desenvolvimento dos núcleos citadinos. À vaga de

prisões seguia-se uma fase de decadência – aconteceu em Tavira, em Vila Nova de

Portimão e, mais tarde, também em Faro.

Após 1650, a Inquisição ainda voltou ao Algarve, embora não com a intensidade de

outrora. Na segunda metade da década de 60, um número considerável de prisões

afectou Albufeira. Entre 1666 e 1670, foram presos perto de 40 cristãos-novos, a

maioria lavradores. A incidência da acção inquisitorial nesta vila, profundamente ligada

à actividade agrícola, espelha uma realidade mais ampla – a ruralização do Algarve,

segundo Romero Magalhães, “[...] um processo lento e complexo que resulta da

conjugação da crise estrutural dos impérios peninsulares, iniciada por 1620, da

perseguição inquisitorial, das guerras europeias, de um confinamento crescente dos

grupos dominantes”1403

. Embora não tenha sido o único factor a contribuir para a

tendência ruralizante sentida no Algarve com o avançar do século XVII, antes pelo

contrário, não podemos negar o papel determinante que a acção inquisitorial exerceu

nesse processo.

Garcia Gonçalves nunca chegou a largar nenhuma das amarras. O Algarve também

não. Cresceu com uma amarra ao mar e outra à terra: de um lado, a vocação marítima e

comercial, do outro, a especialização de parte desse comércio em produtos agrícolas. O

crescimento urbano sustentou-se em alicerces rurais1404

. Os próprios cristãos-novos,

1403

Cf. Romero Magalhães, O Algarve Económico..., p. 395. 1404

Cf. Idem, Ibidem, p. 103.

Page 326: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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maioritariamente mercadores e mesteirais, nunca chegaram a cortar o vínculo à terra.

Perante a perseguição inquisitorial, por um lado, e a retracção do desenvolvimento

urbano, por outro, esse vínculo fortaleceu. Economicamente, a distinção face aos

cristãos-velhos desvanecia-se. As cidades perdiam gente. Supomos que tal se

evidenciasse, com maior intensidade, nas áreas urbanas associadas aos cristãos-novos,

os pólos mais fervilhantes de uma actividade comercial que entrava em recessão.

Alguns haviam abandonado as suas casas na cidade por quintas no campo, outros

tinham partido definitivamente da região, até do reino. Os casamentos mistos

proliferavam, as dúvidas sobre a qualidade de sangue cresciam. E constatamos que não

era só no plano económico que se atenuava a distinção entre cristãos-novos e cristãos-

velhos. A maioria dos cristãos-novos do Algarve preterira a resistência à assimilação.

Cem anos após as palavras de Garcia Gonçalves, parecia que uma amarra se começava a

romper. Mas não para todos. Mas não para sempre. Aos 43 anos de idade, Belchior

Navarro, advogado de Loulé, cuja esposa pertencia à melhor nobreza da vila, confessou

a um frade do Convento de Nossa Senhora da Graça que, na casa paterna, todos

mantinham a crença a Lei de Moisés, observando-a com “alguns jejuns e rezas”1405

. Era

3 de Novembro de 1755 e a terra tremera.

1405

Cf. ANTT, IE, proc. 2174.

Page 327: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

327

FONTES E BIBLIOGRAFIA

1. Fontes manuscritas

Faro: Arquivo Distrital

1º Cartório Notarial de Loulé

Códices: 1-1-13 (João Mendes. 1622-1623); 1-1-14 (João Mendes. 1627-1628); 1-1-

15 (Manuel Mendes. 1630-1631); 1-1-16 (Manuel Mendes. 1632-1633); 1-1-17

(Diogo Rebelo. 1638-1639); 1-1-18 (Diogo Rebelo. 1640).

Cartório Notarial de Tavira

Códices: 8-4-154 (Manuel Henriques. 1629); 8-4-155 (André Leitão. 1633-1634).

Registos Paroquiais do Algarve

Faro. Paróquia da Sé. Baptismos. Livros n.os

1 (1607-1642); 2 (1644-1647); 3

(1648-1676). Casamentos. Livro n.º 1 (1606-1640).

Faro. Paróquia de S. Pedro. Baptismos. Livros n.os

1 (1597-1658) e 2 (1658).

Casamentos. Livro n.º 1 (1597-1738).

Faro: Arquivo Episcopal

Visitas de D. Francisco de Meneses, 1631-1632 (Cx. 20-100).

Lisboa: Academia das Ciências

Série azul

Códice 288 (“L.º I do Governo do Algarve”)

Códice 402 (“Collecção dos Documentos dos Cartorios do Algarve, Civis e

Ecclesiásticos, copiados por ordem da Academia Real das Sciencias em 1790”)

Códices 403 e 404 (“Continuação dos Documentos dos Cartorios do Algarve, Com.ca

de

Beja, Montr.º de S. Vicente, e Annexos, copiados por ordem da Acad. R. das Sc.as

”)

Lisboa: Arquivo Nacional da Torre do Tombo

Chancelarias Reais

D. Afonso V, livro n.º 9

D. João III. Padrões, Doações, Ofícios e Mercês, livros n.os

11, 18, 25, 52 e 73.

D. João III. Privilégios, livro n.º 1.

Page 328: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

328

D. Filipe I. Confirmações gerais, livro n.º 9.

D. Filipe III. Perdões e Legitimações, livro n.º 15.

D. João IV. Doações, Ofícios e Mercês, livros n.os

18 e 25.

D. Afonso VI. Doações, Ofícios e Mercês, livros n.º 2 e 23.

Chancelaria da Ordem de Cristo, livros n.os

18 e 50.

Corpo Cronológico

Parte I, mç. 89, n.º 112; mç. 90, n.º 120; mç. 113, n.º 90.

Leitura Nova

Odiana, livro n.º 1.

Mesa da Consciência e Ordens

Habilitações da Ordem de Cristo, Letra M, mç. 42, doc. 30.

Núcleo Antigo

Doc. 893 (“Collecção dos documentos pertencentes ao Reyno do Algarve que se

achão no Real Archivo da Torre do Tombo, feita por ordem do Ill.mo

e Ex.mo

Senhor

Marquez de Pombal”).

Tribunal do Santo Oficio

Conselho Geral

Habilitações, Afonso, mç. 1, doc. 17; Baltazar, mç. 1, doc. 19; Lopo, mç. 1, doc. 2.

Livros n.os

44, 64, 97, 98, 164, 360, 367, 434, 461

Maço n.º 7

Inquisição de Coimbra, processos n.os

5453, 8686

Inquisição de Évora

Processos n.os

133, 191, 267, 309, 328, 331, 375, 376, 431, 458, 462, 463, 467,

468, 484, 584, 590, 627, 642, 680, 682, 736, 738, 756, 767, 824, 875, 1042,

1103, 1290, 1322, 1341, 1363, 1366, 1460, 1491, 1508, 1548, 1597, 1602, 1604,

1639, 1657, 1672, 1682, 1730, 1750, 1762, 1769, 1786, 1833, 1834, 1835, 1836,

2152, 2169, 2197, 2218, 2219, 2258, 2275, 2279, 2324, 2326, 2330, 2331, 2332,

2437, 2525, 2527, 2566, 2578, 2649, 2658, 2666, 2680, 2699, 2721, 2719, 2743,

2757, 2758, 2770, 2775, 2777, 2815, 2841, 2849, 2851, 2871, 2877, 2878, 2891,

2907, 2962, 2968, 2991, 3029, 3030, 3033, 3069, 3097, 3141, 3163, 3165, 3166,

3190, 3194, 3205, 3208, 3276, 3295, 3328, 3363, 3367, 3446, 3454, 3477, 3557,

3558, 3559, 3560, 3561, 3562, 3563, 3588, 3655, 3681, 3693, 3739, 3749, 3763,

3808, 3938, 3939, 3953, 3997, 4056, 4086, 4087, 4151, 4154, 4192, 4195, 4248,

4264, 4341, 4361, 4376, 4382, 4383, 4385, 4386, 4391, 4400, 4403, 4406, 4436,

4446, 4504, 4571, 4591, 4593, 4603, 4605, 4606, 4613, 4650, 4668, 4707, 4724,

4747, 4754, 4820, 4837, 4871, 4877, 4965, 5063, 5071, 5101, 5103, 5226, 5259,

5262, 5281, 5286, 5295, 5365, 5489, 5495, 5496, 5519, 5530, 5545, 5548, 5576,

Page 329: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

329

5579, 5603, 5606, 5671, 5677, 5686, 5718, 5753, 5754, 5755, 5805, 5830, 5831,

5895, 5906, 5908, 5909, 5994, 6009, 6015, 6017, 6021, 6023, 6056, 6059, 6091,

6092, 6095, 6208, 6209, 6212, 6298, 6341, 6355, 6359, 6383, 6385, 6438, 6441,

6444, 6446, 6465, 6485, 6519, 6721, 6722, 6725, 6726, 6727, 6773, 6779, 6826,

6854, 6919, 6921, 6924, 6926, 6954, 6969, 6970, 6974, 6978, 6980, 6982, 6984,

6988, 7053, 7188, 7212, 7330, 7331, 7334, 7335, 7345, 7356, 7357, 7406, 7424,

7448, 7464, 7496, 7516, 7531, 7534, 7585, 7653, 7711, 7723, 7765, 7792, 7838,

7842, 7856, 7881, 7906, 7911, 7912, 7922, 7934, 7939, 7941, 7942, 7966,

7973, 7974, 7984, 8043, 8057, 8086, 8088, 8092, 8149, 8173, 8185, 8211, 8215,

8261, 8265, 8266, 8372, 8397, 8516, 8526, 8541, 8545, 8569, 8603, 8654, 8698,

8721, 8735, 8751, 8783, 8789, 8790, 8817, 8844, 8925, 8928, 8973, 9005, 9012,

9034, 9039, 9040, 9056, 9071, 9130, 9361, 9380, 9408, 9411, 9465, 9615, 9829,

10523, 10531, 10580, 10762, 10785, 10932, 10967, 11045, 11123, 11297,

11315, 11368, 11735, 16695.

Livros n.os

16, 90, 92, 147, 212, 213, 217, 222, 227, 228, 229, 230, 232, 238,

240, 261, 589, 601, 629.

Maços n.os

1, 2, 10, 20, 23, 26, 36, 53, 56.

Inquisição de Lisboa

Processos n.os

65, 108, 168, 364, 367, 604, 623, 872, 874, 882, 886, 888, 895,

1014, 1105, 1106, 1107, 1112, 1156, 1212, 1316, 1325, 1416, 1519, 1583, 1651,

1688, 1695, 1754, 1833, 1835, 1838, 1840, 1867, 2035, 2060, 2166, 2180, 2190,

2215, 2302, 2319, 2369, 2373, 2374, 2375, 2486, 2511, 2518, 2601, 2859, 2887,

2888, 2891, 2897, 2928, 3071, 3093, 3104, 3114, 3116, 3118, 3124, 3162, 3165,

3227, 3255, 3264, 3270, 3278, 3285, 3513, 3542, 3545, 3837, 3839, 3845, 3868,

3874, 3886, 4092, 4095, 4134, 4195, 4244, 4388, 4458, 4467, 4510, 4511, 4517,

4519, 4527, 4528, 4794, 4823, 4983, 5039, 5081, 5084, 5117, 5289, 5290, 5498,

5516, 5520, 5733, 5755, 5762, 5787, 5759, 5783, 5807, 5923, 6046, 6053, 6143,

6204, 63706514, 6568, 6571, 6586, 6854, 7169, 7175, 7222, 7285, 7286, 7310,

7359, 7377, 7434, 7469, 7479, 7739, 7742, 7748, 7750, 7751, 7773, 7786, 7938,

7941, 8056, 8071, 8134, 8301, 8303, 8318, 8351, 8418, 8484, 8489, 8491, 8514,

8540, 8549, 8703, 8925, 8965, 8981, 8983, 8985, 9243, 9445, 9829, 9783,

10041, 10043, 10045, 10211, 10325, 10326, 10375, 10392, 10397, 10504,

10569, 10742, 10778, 10779, 10813, 10883, 10884, 10886, 10959, 10960,

10964, 11102, 11144, 11388, 11627, 11660, 11668, 11669, 11689, 11866,

11981, 12017, 12032, 12096, 12184, 12185, 12190, 12191, 12331, 12342,

12344, 12346, 12419, 12434, 12444, 12475, 12479, 12482, 12483, 12485,

12493, 12496, 12503, 12508, 12528, 12529, 12530, 12531, 12694, 12745,

12751, 12752, 12762, 12778, 12806, 12811, 12816, 12818, 12821, 12825,

12848, 12940, 12976, 12981, 12982, 12983, 12997, 13002, 13039, 13040,

13049, 13117, 13193, 13280, 13285, 13394

Livro n.º 228

Maço n.º 40, doc. 57.

Manuscritos da Livraria

Ms. 2063 (“Memórias da Santa Província dos Algarves da Ordem Seráfica”).

Page 330: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

330

Lisboa: Biblioteca Nacional de Portugal

Reservados

Códice 53 (“Catalogo dos Inquizidores Geraes, Inquizidores e Deputados das

Inquizições de Lisboa, Coimbra e Evora”).

Códices 224 e 10835 (Miscelânea de documentos relativos ao Algarve)

Códice 475 (“Geografia física e histórica do Brasil, das antigas possessões de

Portugal em África e na Ásia, e de Portugal”)

Códices 863 e 864 (“Collecção de listas impressas e manuscritas dos autos de fé

públicos e particulares da Inquisição de Lisboa [...]”).

Códices 867 a 869 (“Collecção de papeis impressos e manuscriptos originaes, mui

interessantes para conhecimento da historia da Inquisição em Portugal”).

2. Fontes impressas

BAIÃO, António, A Inquisição em Portugal e no Brasil. Subsídios para a sua História,

Lisboa, 1920. Separata de Archivo Historico Portuguez.

BALBI, Adrien, Essai statisque sur le royaume de Portugal et d’Algarve. Introdução de

Joaquim Romero Magalhães, Lisboa, IN-CM; Coimbra, Faculdade de Economia da

Universidade de Coimbra, 2004.

BEJA, Nuno, “Transcrição de documentos relativos à História do Algarve”, Anais do

Município de Faro, n.º XXIX/XXX, 1999-2000, pp. 195-247.

BONNET, Charles, Memória sobre o Reino do Algarve. Descrição Geográfica e

Geológica. Introdução de José Carlos Vilhena Mesquita, Faro, Delegação Regional

do Sul da Secretaria de Estado da Cultura, 1990.

CAMPOMANES, D. Pedro Rodriguez, Noticia geografica del reyno y caminos de

Portugal, Madrid, Oficina de Joachin Ibarra, 1762

Capitulos Gerais apresentados a El Rey D. Ioão [...] nas cortes celebradas em Lisboa

com os tres Estados em 28 de Ianeiro de 1641 [...], Lisboa, Paulo Craesbeeck, 1645.

Collectorio de diuersas letras apostolicas, prouisões reaes, & outros papeis, em que se

contém a Instituição, e primeiro progresso do Sancto Officio em Portugal, & varios

Priuilegios que os Summos Pontifices, & Reis destes Reynos lhe concederão [...],

Lisboa, Casas da Inquisição, 1596.

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do Algarve (1577) e Henrique Fernandes Sarrão, Historia do Reino do Algarve

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Joaquim Romero Magalhães, Lisboa, Livraria Sá da Costa, 1983.

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Lisboa, Prefácio, 2004.

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FEBVRE, Lucien, Le problème de l’incroyance au XVIe siècle. La religion de Rabelais,

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GODINHO, Vitorino Magalhães, Estrutura da antiga sociedade portuguesa, Lisboa,

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Page 333: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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Lisboa, Presença, 1998.

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Page 334: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

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1986, pp. 885-898.

“O zangão e o mel. Uma metáfora sobre a diáspora sefardita e a formação das elites

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ALMEIDA, C. A. Ferreira de, “Religiosidade Popular e Ermidas”, Studium Generale.

Estudos Contemporáneos. Religiosidade popular, n.º 6, 1984, pp. 75-83.

ALVES, Ana Maria Mendes Ruas, “Por quantos anjos pario a virgem”. Injúrias e

Blasfémias na Inquisição de Évora. 1541-1707. Dissertação de mestrado

Page 335: INTRODUÇÃO - Universidade NOVA de Lisboa II.pdf · 4 Cf. Carlo Ginzburg, I Benandanti. Richerche sulla stregnoneria e sui culti agrari tra Cinquecento e Seicento, Turim, Einaudi,

335

apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Coimbra, 2006.

Exemplar policopiado.

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“Les cent voix de Quintanar”, Revue de l’histoire des religions, vol. 218, n.º 2 e 4,

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