cultura material - richard bucaille e jean-marie pesez - enciclopeida einaudi

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Índice Cultura Material 1/43 Índice CULTURA MATERIAL Richard Bucaille e Jean-Marie Pesez in: Enciclopédia Einaudi , Lisboa, IN-CM, 1989, vol.16 - Homo — Domesticação — Cultura Material, p.11-47. ÍNDICE DO ENSAIO Nota introdutória 1. Pré-história da noção 2. História da noção 3. Cultura material e arqueologia 4. Cultura material: tentativa de definição 5. Cultura material e história 6. Cultura material e história económica e social 7. Cultura material e história das técnicas 8. Dimensões da cultura material Bibliografia Nota introdutória A noção e a expressão ‘cultura material* (a não confundir com o conceito equívoco de ‘ civilização material *) estão relativamente difundidas na história e, embora em menor grau, também em diversas ciências humanas. Não parece, no entanto, que alguém tenha delas alguma vez apresentado uma definição geral e rigorosa: os autores recorrem a elas sem propor acepções precisas ou, se o fazem, é de modo implícito, dentro da própria temática dos seus trabalhos e em função deles. Esta noção e esta expressão nem sequer parecem, aliás, ter sido objecto de controvérsias apaixonadas, ao contrário do que se observa com outros instrumentos intelectuais do mesmo género. Poder-se-ia portanto concluir que a ideia de cultura material é óbvia e que, por isso, é supérfluo dar-lhe uma definição explícita; também se pode pensar, porém, que desta falta de explicitação possam surgir ambiguidades e mesmo contra-sensos. Em resumo, pode-se para já dizer que, embora o seu significado global seja evidente, como muitas vezes acontece com as ideias e expressões que o investigador usa quotidianamente, a noção de cultura material continua a ser, de facto, imprecisa e simultaneamente a estar longe da ilusão de transparência; apresenta-se, mesmo assim, carregada de um conjunto de conotações bastante diversas, de que não se parece ainda ter feito nem uma recensão pormenorizada, nem um balanço. Tendo em conta a própria sorte da expressão, parece portanto útil e bastante urgente propor a sua definição da maneira mais clara e mais completa possível. Se é certo que a ideia de cultura material está difundida e implícita nos trabalhos que a ela se referem, é neles que necessariamente teremos de procurá-la, sem

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Índice Cultura Material 1/43

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CULTURA MATERIALRichard Bucaille e Jean-Marie Pesez

in: Enciclopédia Einaudi, Lisboa, IN-CM, 1989, vol.16 -Homo — Domesticação — Cultura Material, p.11-47.

ÍNDICE DO ENSAIO Nota introdutória1. Pré-história da noção2. História da noção3. Cultura material e arqueologia4. Cultura material: tentativa de definição5. Cultura material e história6. Cultura material e história económica e social7. Cultura material e história das técnicas8. Dimensões da cultura material Bibliografia

Nota introdutória

A noção e a expressão ‘cultura material* (a não confundir com o conceitoequívoco de ‘civilização material*) estão relativamente difundidas na história e,embora em menor grau, também em diversas ciências humanas. Não parece, noentanto, que alguém tenha delas alguma vez apresentado uma definição geral erigorosa: os autores recorrem a elas sem propor acepções precisas ou, se o fazem,é de modo implícito, dentro da própria temática dos seus trabalhos e em funçãodeles. Esta noção e esta expressão nem sequer parecem, aliás, ter sido objecto decontrovérsias apaixonadas, ao contrário do que se observa com outrosinstrumentos intelectuais do mesmo género. Poder-se-ia portanto concluir que aideia de cultura material é óbvia e que, por isso, é supérfluo dar-lhe uma definiçãoexplícita; também se pode pensar, porém, que desta falta de explicitação possamsurgir ambiguidades e mesmo contra-sensos. Em resumo, pode-se para já dizerque, embora o seu significado global seja evidente, como muitas vezes acontececom as ideias e expressões que o investigador usa quotidianamente, a noção decultura material continua a ser, de facto, imprecisa e simultaneamente a estar longeda ilusão de transparência; apresenta-se, mesmo assim, carregada de um conjuntode conotações bastante diversas, de que não se parece ainda ter feito nem umarecensão pormenorizada, nem um balanço. Tendo em conta a própria sorte daexpressão, parece portanto útil e bastante urgente propor a sua definição damaneira mais clara e mais completa possível.

Se é certo que a ideia de cultura material está difundida e implícita nos trabalhosque a ela se referem, é neles que necessariamente teremos de procurá-la, sem

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tentar dar-lhe uma definição a priori, que não teria em conta, de modo exaustivo,significados concretos resultantes do uso que os autores fizeram de tal ideia.Concluído este inquérito prático, interdisciplinar e cronologicamente regressivo,impõe-se uma dupla constatação, cujos termos parecem reciprocamente excluir-se:a noção de cultura material, que, no interior da bagagem de noções das ciênciashumanas, é relativamente antiga, teve uma evolução bastante longa para que nelase possam individualizar diversas etapas; no entanto, mesmo no seu evoluir, estanoção conservou sempre algumas características permanentes que constituem asua identidade e lhe garantem uma coerência duradoura. Mais precisamente: nopassado, e por um período bastante longo — cerca de um século —, a ideia decultura material sofreu a influência das rápidas e subtis modificações episte-mológicas que assinalaram as ciências humanas contemporâneas. Aliás, elaprópria se identifica com essas modificações, provando assim adaptar-se a umaconjuntura científica mutável; ao mesmo tempo, porém, através das variações destaúltima, conserva sempre uma grande estabilidade epistemológica, que demonstraas suas qualidades heurísticas precoces e permanentes no pensamento do nossotempo. O paradoxo inerente a esta dupla constatação é, por isso, apenas aparente,visto que, em ambos os casos, somos levados a concluir que existe uma grandecapacidade de adaptação da noção de cultura material às necessidadesintelectuais da nossa época e, como ela se afirma de tal modo estável esimultaneamente sempre adaptável às exigências do momento, é bastante provávelque corresponda a uma necessidade constante nas ciências humanas, e que asatisfaça.

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I. Pré-história da noção

Reconstruir a história da noção permitirá, por um lado, salientar que a suaflexível continuidade epistemológica é, na realidade, o resultado de umalonguíssima e prudente estabilização durante a qual, adquirindo direito decidadania, aperfeiçoou continuamente o seu objectivo; permitirá, por outro lado,integrá-la nos contextos sociológicos e científicos que lhe permitiram nascer e, maistarde, afirmar-se e desenvolver-se.

As origens da noção são difíceis de precisar; segundo parece, foi-se formandoprogressivamente no decurso da segunda metade do século XIX no seio dediversas correntes de pensamento e, mais tarde, como resultado da conjugaçãodessas mesmas correntes, cujos sistemas ideológicos eram, na altura,convergentes. E conveniente distinguir cuidadosamente não só essas correntes,mas também os laços que mantêm entre si e que as unem ao ambientesociocultural que as produziu, se se quiser compreender o contexto que irá permitiro aparecimento gradual da ideia de cultura material. Por volta de 1850 e nos anosseguintes, através de diversos trabalhos de grande ressonância, OS desígniosepistemológicos gerais que irão orientar a maior parte das produções científicasposteriores, até aos nossos dias, alcançam um ponto de maturidade. No que serefere às ciências que mais nos interessam, recordemos que se desenvolve poressa altura com rapidez o estudo da pré-história, sobretudo com Boucher dePerthes, que publica as Antiquités celtiques et antédiluviennes em 1847 e Del*homme antédiluvien em 1860; nesse mesmo período, Marx e Engels elaboramuma teoria da história e da economia das sociedades elevada à categoria deciência: o Manifesto do Partido Comunista (Manifest der kommunistischen Partei)data de 1848 e o primeiro volume de O Capital (Das Kapital) sai em 1867. Aantropologia social e cultural — à qual se pode também ligar o nome de Boucher dePerthes — só se desenvolve na realidade um pouco mais tarde, após algumasincertezas, com os mestres a quem deve a sua actual acepção e entre os quais nãose podem deixar de citar Tylor, autor de Primitive Culture 1871, e Morgan, autor deAncient Society (1877). Tão-pouco se podem esquecer OS contributos de ciênciasmais rigorosas como a paleontologia, com Darwin, cuja obra «On the Origin ofSpecies» é de 1859, OU a fisiologia e a medicina, com Bernard.

A simultâneidade destas transformações das ciências em ramos tão diversosé prova cabal da existência de uma «ruptura epistemológica», como lhe chamaAlthusser, essa mesma que Comte cedo compreendera — pelo menos desde 1826— e tão bem formulara em termos do seu tempo. Longamente preparada no séculodas luzes e no início do século XIX com Diderot, Rousseau, Buffon, Lamarck,Cuvier e tantos outros, favorecida pelas revoluções políticas da época, essa rupturaacompanha a revolução industrial e a formação definitiva dos estados da Europaactual, aos quais dará o enquadramento ideológico e científico de que asburguesias nacionais e o mundo contemporâneo necessitam. Nos seus primeirostempos, este universo sociocultural novo provoca também, portanto, uma

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renovação das ciências que corresponde a necessidades até aí insólitas; desde o«homem antediluviano» até à atenta observação das sociedades que mais diferemda nossa, passando pelo marxismo, o evolucionismo biológico, etc., todas as novasteorias científicas colidem com os defensores da ordem antiga. Os inovadoresacabam, no entanto, por obter a confiança dos seus contemporâneos, geralmentesob a forma de cátedras de ensino, nas quais substituem frequentementeprofessores tradicionalistas, a partir daí completamente esquecidos. As únicasverdadeiras excepções a este tipo de consagração social são Marx e Engels, quepunham precisamente em causa a nova ordem social. Este movimento geral, cujaamplitude não escapou aos contemporâneos, tem, evidentemente, causas ecaracterísticas comuns; é, em grande parte, o resultado de uma nova problemáticaideológica que, opondo-se ao imobilismo e à afirmação de absoluto exaltados peloconhecimento tradicional, restitui a cada coisa e a cada fenómeno um passado eum futuro diversos entre si e diversos do presente, sublinhando simultaneamente arelatividade e a contingência de todo o objecto da ciência. Como objecto de ciênciaé também considerado o homem, sobretudo pela ciência da pré-história e pelaantropologia.

Paralelamente, estas novas correntes de pensamento desencadeiam umametodologia adaptada ao seu objecto: a glosa e a exegése doutrinal desenvolvidacom base em referências milenares — como a bíblia ou os filósofos gregos — sãosubstituídas pela experimentação prática, o confronto de dados comprováveis, ademonstração com prova, um esforço por estabelecer leis verificáveis. Assim sechegou a um primeiro ponto fundamental para este tema: experimentações,confrontos, provas, leis têm uma necessidade imperativa de objectos materiais e defactos concretos: Boucher de Perthes reflecte sobre os depósitos estratigráficos dosubsolo, sobre os utensílios de pedra, sobre as ossadas; Marx baseia-se numaimpressionante documentação económica em que predominam quantidadesmensuráveis de matérias-primas ou de manufactos, elementos monetários, etc.; osantropólogos recorrem a uma escrupulosa observação etnográfica das civilizaçõese dos objectos por elas produzidos e Darwin trabalha com animais reais. Passa-seportanto ao exame exigente de realidades tangíveis; simplificando um pouco, podedizer-se que é nessa altura que o pragmatismo tem uma enorme vantagem sobre oidealismo. Poderemos captar a ideia de cultura material neste extraordinário fervorcientífico e nesta renovação epistemológica? Parece que não: não existem aindanem a expressão nem a noção de ‘cultura material , mas é esta a ocasião em quese elaboram as condições sociológicas e científicas graças às quais elas mais tardesurgirão. Esta noção, a semelhança de muitas outras ideias dantes inimagináveis,passa a ser possível a partir do momento em que, com todos os mestres já citados.muda a definição da finalidade e do objecto científico e se desenvolve umametodologia que pressupõe o recurso ao concreto, ao tangível, ao material. Assim,a ideia de cultura material que, de certo modo, está ainda enredada no tecido deonde desabrochará, surge em forma embrionária nos utensílios de pedraestratigraficamente bem colocados de Boucher de Perthes. Estes utensílios, ligadosa um estrato arqueológico, são testemunho não só de uma data do passado e,implicitamente. de uma civilização anteriormente impensável e que neles se

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materializa, como também — esses objectos e o tipo de arqueologia que osproduziu — se diferenciam radicalmente da arqueologia clássica que já existe e temobjectivos completamente diferentes. Boucher de Perthes substitui o objecto de arteexcepcional pelo objecto material comum e anónimo e, em vez de lhe exigir umaemoção estética isolada do resto da civilização que o produziu, procura um laçomaterial com a civilização que, por seu intermédio, quer entender; estascaracterísticas embrionárias irão desenvolver-se quando a noção se definir. Alémdisso, não é verdade que esta noção parece nascer do materialismo histórico deMarx que lhe oferece não só uma moldura intelectual, mas também uma orientaçãoterminológica? Por fim, as colecções etnográficas de objectos materiais que sefazem um pouco por todo o mundo nesta época não serão indício do estudo que osespecialistas da cultura material poderão fazer delas no seio da antropologia?

Assim, depois de 1850, a ideia de cultura material não está ainda isolada econtinua mal definida. Mas a análise da ruptura epistemológica desta época e dasnovas condições científicas que dela derivam permite descobrir uma sensibilidadeaté aí ignorada que irá possibilitar o aparecimento de numerosas noções originais,como aquela que aqui consideramos. Esta irá desenvolver-se naquele terrenopropício que a atenção dada ao concreto e a vontade de nele basear a explicação ea síntese. No período que vai de cerca de 1880 a 1920, as aquisições essenciais,cuja importância aqui se sublinhou, desenvolvem-se e aperfeiçoam-se; acomunidade científica esforça-se então por assimilar todas as suas implicações eextrair delas todas as conclusões. Nos últimos vinte anos do século XIX define-se eafirma-se uma ciência jovem que terá grande importância na sucessiva difusão danoção de cultura material: sociologia, chamara-lhe Comte na sua tipologiapositivista e, ainda antes de 1900, Durkheim levá-la-á à maturidade. Sabe-se quehoje em dia o significado da palavra ‘sociologia' é mais restrito e que esta ciênciase ocupa agora apenas do estudo — aplicado — das sociedades e das civilizaçõesocidentais; mas a sociologia de Durkheim é bastante mais vasta e podemosidentificá-la sem dificuldade com aquilo que hoje se chama antropologia social ecultural. No imenso projecto a que a destina estão teoricamente incluídos todos osfenómenos sociais e culturais, isto é, não são descurados os aspectos materiaisdas civilizações, aqueles que, na terminologia marxista, correspondem ao campodas infra-estruturas. E mesmo se, ao fim e ao cabo, Durkheim acabou por sededicar muito mais às manifestações simbólicas e às representações mentais dascivilizações — os domínios das supra-estruturas de Lévi-Strauss — o aparecimentoda noção de cultura material será muito facilitado por este espaço teórico que lhefoi atribuído. É preciso dizer que o espírito do tempo estava apto a acolhê-la:sobretudo em França, mas também em outros pontos da Europa, é a época das leissociais, da separação entre a Igreja e o Estado, da laicização; as classes operáriascombativas e os seus tribunos convictos centram a sua atenção na condiçãomaterial e exigem que seja melhorada; na literatura, o romantismo morreu e onaturalismo — Zola, por exemplo — observa com grande atenção e pretensões deobjectividade as particularidades materiais da vida campesina e operária. Osmestres cuja influência já referimos tinham revelado, em graus diversos, sersensíveis às ideias de progresso social; o próprio Durkheim tinha convicções

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socialistas. A partir desta época é evidente a relação, em seguida confirmada, entreestas opções políticas gerais e a atenção dada à vida material.

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2. História da noção

Nos primeiros vinte anos do século XX a noção de cultura material completa oseu longo processo de maturação e toma realmente corpo, tornando-se quaseindispensável em vastos sectores das ciências humanas, como a pré-história ecertas formas de arqueologia — em especial a céltica — que se alargaramconsideravelmente. Por outro lado, por razões metodológicas, é-lhe dedicadagrande atenção por parte dos intelectuais que descobrem e difundem opensamento marxista. A expressão específica «cultura material» surge nessa alturae, em 1919, um decreto de Lenine que cria na Rússia a Akademiia IstoriiMaterial’noi Kul’turv assinala o seu primeiro reconhecimento institucional. Esta datarepresenta uma marca na história da noção que, terminada a fase de elaboração,alcança a maturidade. Além disso, a criação deste instituto por parte dos marxistasmais intransigentes e, portanto, num contexto político dos mais difíceis, confirmaclamorosamente a ligação que sempre existiu entre a ideia de cultura material, osocialismo em geral e o marxismo em particular. Por fim, esta data sanciona umfacto relativamente novo, o ingresso oficial da noção no campo da história (odecreto de Lenine fala de «história» da cultura material; enquanto dantes asprincipais ciências humanas tinham participado na sua gestação, a cultura material,com instrumento intelectual acabado, passará a ser objecto de história.

Entre 1920 e a Segunda Guerra Mundial, a ideia de cultura material, já definidano plano epistemológico, passa a ser de uso corrente nas ciências humanas, masde um modo muito especial na história. De facto, naquela época — depois deJaurès, da revolução russa e da formação dos partidos comunistas ocidentais — osambientes intelectuais e universitários europeus observavam o socialismo. Assim,os historiadores franceses dos anos 30, em especial, sucedem a uma longageração de autores que, desde Michelet Fustel de Coulanges, se tinhamprincipalmente dedicado à elaboração de uma história nacional que legitimasse nopiano ideológico o novo Estado republicano e centralizado. A preocupação máximadestes velhos autores era «os quarenta reis que fizeram a França» (observa-se omesmo fenómeno, em modos e tempos diversos, nos principais países europeus);mas depois de 1920 e sobretudo depois de 1930, a situação muda: é como se oshistoriadores se tivessem libertado destas preocupações nacionais já satisfeitas,logo que se aperceberam que essa história da França era, quando muito, a históriados principais acontecimentos que apenas dizem respeito a alguns milhares deindivíduos, O exemplo francês não foi escolhido ao acaso: primeiro, porque emFrança a redacção da história nacional foi particularmente elaborada e sobretudoporque foi em França que a reacção a esta tendência levada à exaustão se mostroumais viva e brilhante.

Esta reacção está ligada a dois nomes: Marc Bloch e Lucien Febvre. O casode Bloch é particularmente elucidativo: nascido em 1886, depois de ter estudadocom os grandes historiadores nacionalistas, torna-se «maître de conférences» dehistória medieval em 1919 e professor de história da economia na Sorbonne em

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1936. Particularmente relevante é o título da sua cátedra parisiense, porque revelauma evolução da história, assinalada também por duas das suas obras principais:uma é «Les rois thaumaturges» (1924), onde a etnografia faz, de certo modo, umaprimeira incursão na grande história; mais tarde, em 1931, escreve «Les caractèresoriginaux de l’histoire rurale française», onde se confirma uma orientação definidapara o económico, o colectivo, o material, orientação essa reforçada com apublicação, em 1939-40, de «La société féodale». Patriota — em 1944 será fuziladocomo resistente — mas também militante socialista, Bloch é, a partir dos anos 20, ochefe de fila de uma corrente de pensamento que se prolongará até aos nossosdias no grupo dos «Annales», por ele fundado juntamente com Febvre. A conjunturasociológica e científica em que estes historiadores evoluem e chegam a lugares deresponsabilidade, mas também as suas convicções políticas e mesmo os seusgostos pessoais, levam-nos a constatar que os factos económicos e técnicos, ossistemas de produção, de distribuição e de consumo e, de modo geral, toda a vidarural, são praticamente ignorados. Ora, a população medieval é essencialmentecomposta por camponeses produtores. Mas o que é que produzem, em quequantidade, com que utensílios e segundo que técnicas? Quais são os circuitoscomerciais, como e com quê funcionam, quais são os preços dos génerosalimentícios de uso corrente e quem os pode adquirir? Como e de que vivem asmassas rurais, qual é, afinal, a sua vida quotidiana? Todas estas questões nãotinham resposta. A história, em suma, parecia muito parcial e, portanto, incompleta.Dando a palavra àqueles a quem Bloch chama «os mudos da história», oshistoriadores sujeitavam-se a uma tarefa imensa, ainda hoje longe de estarterminada.

Se é verdade que o estudo da cultura material se transforma, a partir de1920, sobretudo em história da cultura material, nem por isso as outras ciênciashumanas lhe são completamente estranhas. Assim os estudos pré-históricos,embora em parte dedicados à interpretação da arte rupestre, continuam a estudaressencialmente ossadas e utensílios; os estudiosos da pré-história foram desdemuito cedo levados, de certo modo obrigados pela força das circunstâncias, aoestudo da cultura material, porque os seus objectos arqueológicos, bastanteconcretos, não permitiam outra coisa e porque, ao contrário do historiador, quemestuda a pré-história não tem à sua disposição fontes de arquivo escritas. Por outrolado, dissemos já que a antropologia desenvolvida por Durkheim teve uma parteimportante na difusão da noção de cultura material: enquanto tentativa de descriçãodos mecanismos gerais do funcionamento das colectividades humanas, esta ciênciasempre dirigiu a sua atenção mais para os fenómenos socioculturais colectivos erecorrentes do que para os factos individuais ou excepcionais; enquanto antes deBloch, os historiadores descreviam sobretudo factos raros ou pontuais eindividualidades isoladas, os antropólogos esforçavam-se já por estudar — emborano presente — civilizações completas. É verossímil que os laços científicosbastante estreitos que o grupo dos «Annales» mantinha, no seu início, com aredacção do «Année sociologique», animado por Marcel Mauss — herdeiroespiritual e directo de Durkheim —, tenham sido para os historiadores do grupo umincentivo para não desviarem a atenção dos fenómenos de massa e quotidianos.

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Num plano mais lato, esse contacto bastante prolongado e cordial com aantropologia dos anos 30 parece ter dado aos historiadores uma visão da suamatéria mais semelhante à da antropologia que à dos seus antecessores. Aantropologia, apesar de parecer ter contribuído notavelmente para a substituição deuma história de gestas por uma história da cultura, continuou, no entanto, por suaprópria conta a atribuir aos fenómenos materiais propriamente ditos apenas umaimportância secundária. Durkheim, Mauss e os seus colaboradores, bem como osseus colegas anglo-saxónicos, parecem bastante mais atraídos pelos fenómenossimbólicos e pelas representações mentais do que pelas infra-estruturas dascivilizações. Assim, Mauss, embora atribua o justo espaço, no seu curso deetnografia, à tecnologia e à economia — devem-se-lhe, entre outras coisas,algumas belas páginas sobre as técnicas do corpo —, dedica a parte essencial dasua pesquisa sobretudo a fenómenos como a magia, a dependência socialexpressa pela dádiva, etc. A inclinação da antropologia para o estudo — rigoroso, écerto, mas talvez demasiado exclusivo — das formas socioculturais menosmateriais parece portanto representar quase uma constante desta disciplina, que adesvia, a longo prazo, da investigação da cultura material propriamente dita. Hojeem dia encontramos ainda esta tendência, já que os aspectos materiais surgemapenas como apoio, de modo contingente, das brilhantes sínteses baseadasprincipalmente nos aspectos mais supra-estruturais como, por exemplo, oparentesco, assunto privilegiado pela antropologia. Existem, evidentemente,insignes excepções no que diz respeito, por exemplo, à tecnologia, com o inglêsForbes e o francês Leroi-Gourhan; mas esses casos raros não são suficientes parareequilibrar a tendência dominante. No seu conjunto, a antropologia — embora nãose possa dizer o mesmo da etnografia propriamente dita — nunca se interessoumuito pela cultura material.

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3. Cultura material e arqueologia

Ligado à história, o estudo da cultura material ter-se-ia a breve trecho defrontadocom uma grave dificuldade, se se tivesse limitado à exploração das fontespropriamente históricas, isto é, aos documentos escritos. Os documentos tornam-secada vez mais raros à medida que se recua no tempo. Quando a escrita é privilégiode poucos, quando a sua raridade confere um valor e um carácter quase sagrados,ou, pelo menos, prestigiosos, quem escreve não se detém com certeza naquilo queconsideraria conversas ociosas: dizer, descrever aquilo que todos sabem porque otêm debaixo dos olhos, aquilo que a todos é familiar porque quotidiano. E o que háde mais familiar, conhecido e quotidiano que a cultura material dos objectos, dosgestos, dos hábitos de todos os dias? Se o copista casualmente menciona estesobjectos e estes gestos, fá-lo com uma palavra que levanta ao historiadorproblemas de interpretação, em vez de lhe fornecer informação. Basta pensar napalavra carruca e nas controvérsias que originou, ou então no barco viking queanima as metáforas da poesia escáldica e ao qual encontramos algumas refe-rências esparsas nas sagas; à parte algumas excepções, não podemos esperarmelhor dos documentos figurados: o barco é uma silhueta desenhada em algumaspedras rúnicas. Tudo o que se sabe, não mais que o essencial, deve-se àssepulturas feitas em embarcações, Gokstad, Oseberg, ou aos navios afundadosnos fiordes, como os de Skuldelev e, portanto, à arqueologia.

Graças à arqueologia, o estudo da cultura material deu um salto. Por um lado, aarqueologia afirma-se como um caminho vantajoso para aceder à cultura material;por outro, esta última depara-se-nos como o melhor objectivo que a pesquisaarqueológica poderia propor-se.

Os estudiosos da pré-história poderiam ter dado o exemplo: alguns dos seustrabalhos demonstram o que se poderá esperar de escavações organizadas,sistemáticas e precisas. Na realidade, o incentivo veio de outro lado: a conjunturapolítica do pós-guerra acelerou a conjuntura ‘científica. Na Europa de Leste, eparticularmente na Polónia, os historiadores esforçaram-se por rebater as tesesexpansionistas da escola histórica alemã, segundo a qual a Polónia, por exemplo,não teria sido mais que uma dependência histórica e cultural do Sacro Império.Para desmantelar esta afirmação, os estudiosos dos países eslavos não dispunhamde textos: restava a escavação para demonstrar que uma cultura e uma sociedadeoriginais, autóctones, existiam de facto antes do Drang nach Osten. Assim nasceuou, pelo menos, se desenvolveu a actual arqueologia medieval.

Quem diz arqueologia diz vestígios de habitações e de edifícios, de objectosdomésticos e de utensílios, etc., logo, de cultura material. E na Polónia aspesquisas foram, precisamente, quase sempre feitas pelo Instytut Historii KulturyMaterialnej. Os Polacos puderam finalmente demonstrar que as origens da Polónianada devem ao mundo germânico. Constatar este facto não significa terpreconceitos; volta apenas a admitir-se que a história da cultura material, como

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problemática, e a arqueologia, como método, reconfirmaram desse modo as suasgrandes qualidades heurísticas.

A arqueologia medieval também se desenvolveu, de maneira menos polémica,na Inglaterra, onde prevaleceu a pesquisa nas aldeias abandonadas; muitas foramas tarefas orientadas por iniciativa do Deserted Village Research Groups animadopor Maurice Beresford e John Hurst. No resto da Europa, na Alemanha, nos PaísesBaixos, na França, na Itália, a arqueologia medieval desenvolveu-se, sem dúvida,em grande parte sob uma dupla influência: o exemplo eslavo e o exemplo inglês;em França publicou-se um importante trabalho de pesquisa arqueológica sobre asaldeias abandonadas que se reportava aos princípios dos investigadores polacos.

Os motivos fundamentais não são, portanto, sempre aqueles que provocaram aafirmação e a consagração da arqueologia medieval nos países eslavos. Ésignificativo que, em Inglaterra, os historiadores e os arqueólogos se tenhamassociado na pesquisa. À necessidade geral de remediar as carências das fontesescritas — carências mais ou menos clamorosas consoante os países e os séculos— junta-se um outro facto: a documentação clássica, escrita ou visual, podeenglobar amplos sectores da cultura material, mas só dá deles uma imagemreflectida, subjectiva e já interpretada, necessitando, portanto, de certa prudência.Além disso, quando um texto cita um objecto concreto, não se pode, na maior partedos casos, dar dele uma imagem precisa; a arqueologia, pelo contrário, põe-nosdirectamente em contacto com o próprio material, que se pode tocar, examinar einterpretar sem o perigo de erro devido à subjectividade da documentação.

Mesmo a arqueologia tem os seus limites: os que, por exemplo, dependem daconservação dos diversos materiais; resta o facto de trazer luz a uma cultura que sepode chamar de hipermaterial. Embora uma documentação como a que permitiuque Le Roy-Ladurie escrevesse «Montaillou, village occitan» [19751 continue a serexcepcional em riqueza e exactidão, só a arqueologia, segundo Leroi-Gourhan, nãoconhece limites de documentação no espaço e no tempo; só ela, por conseguinte,pode fornecer informações bastante precisas, numerosas e bem repartidastopográfica e cronologicamente, aptas a elaborar sínteses gerais e particularizadas.O arqueólogo da cultura material tem, portanto, à sua disposição uma baseepistemológica e metodológica ampla e bem fundamentada, e os historiadorescontemporâneos não se enganam ao terem cada vez mais confiança nadocumentação que os arqueólogos lhes oferecem; por outro lado, historiador earqueólogo fundem-se muitas vezes numa mesma pessoa. Esta utilização dodocumento arqueológico está ainda pouco difundida na Europa Ocidental; é, pelocontrário, quase sistemática na Europa Oriental, nos Estados Unidos e, de modomais genérico, nos países cuja civilização não conheceu durante muito tempo aescrita (a África, a América do Sul, a Oceânia, etc.).

O estudo da pré-história usa hoje a própria expressão ‘cultura material* de modomais limitado do que o da história; pode, no entanto, dizer-se que a pratica numamedida não inferior, como demonstram as numerosas escavações pré-históricas eos seus admiráveis resultados. Enumerá-los levaria muito tempo: limitar-nos-emos

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ao conhecidíssimo exemplo da escavação feita por Leroi-Gourhan em Pincevent,próximo de Paris, onde conseguiu reconstruir as tendas, as lareiras, o ambientedoméstico dos caçadores magdalenianos, bem como a estação de caça, asquantidades de carne disponíveis (com prudência, é certo) para cada indivíduo ealgumas maneiras de cozinhar: não estará assim a arqueologia a desempenhar opapel atribuído por Marc Bloch à história da cultura material? Pode portanto dizer-se sem exagerar que esta última — como já muitas vezes aconteceu — será levadaa confundir-se cada vez mais com uma arqueologia metodológica e epistemo-logicamente renovada (que tem poucas analogias com a arqueologia clássica); éisso que caracteriza a evolução actual da noção de cultura material: não só aterceira fase da sua evolução não está ainda concluída, como parece, pelocontrário, destinada a um belo futuro científico.

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4. Cultura material: tentativa de definição

Confirmou-se ser necessário um exame, mesmo superficial, no tempo, no espaçoe em diversas ciências vizinhas para individualizar a origem, a evolução e a área deextensão da ideia de cultura material. Pode constatar-se como ela continua a estardifundida, dispersa nos países, nas disciplinas e nos últimos cem anos depesquisas das ciências humanas: isto prova sem dúvida a sua necessidade e o seuvalor, mas confirma também que nunca foi definida com exactidão e que sóprogressivamente, depois de ter percorrido todo o campo epistemológico em que sedesenvolve, se descobriram todos os seus aspectos. Depois de se apreender oessencial neste campo, e partindo dessa base, procurar-se-á então uma definição.Note-se sobretudo que a expressão específica ‘cultura material* é apenas umaformulação muito restritiva dos múltiplos aspectos que compõem essa noção e nãoabarca a sua totalidade: a cultura material é composta em parte, mas não só, pelasformas materiais da cultura. Podemos propor reduzir os numerosos aspectos danoção a quatro grandes características principais, enumerando-as segundo aordem de importância que lhes é atribuída.

Talvez seja, porém, melhor afastar logo um falso problema: ‘cultura* ou‘civilização* material? Podemos dissertar infinitamente sobre os diversos cam-biantes que distinguem estes dois termos. Consideremos que ‘civilização* tem umsignificado mais lato, que a palavra se refere a um sistema de valores que opõe ocivilizado ao bárbaro e primitivo e, por essa razão, pode acontecer dar-sepreferência a ‘cultura*, mais fácil de pôr no plural e que não implica hierarquias. Emalgumas línguas, como o francês, ‘cultura* e ‘material* podem ser entendidos comotermos antitéticos; mas os Alemães, os Eslavos e os Ingleses atribuem a 'cultura' osignificado que os Franceses dão a 'civilização', e 'cultura material' é umaexpressão consagrada pelo uso, pela origem e difusão da noção, em grande partedevidas aos estudiosos dos países da Europa Oriental. A expressão parecetambém encontrar ampla justificação no uso que se faz dessa palavra emantropologia e essa é a melhor referência possível, visto que a antropologiaoferece, apesar de tudo, a terminologia mais universal. Além disso não parece — eé isso o que mais importa — que a expressão ‘civilização material*, raramenteutilizada se exceptuarmos o livro de Braudel [1967], nos conduza a uma noçãodiversa.

Se tentamos, portanto, abordar uma definição de cultura material destacando demodo sistemático as conotações que ela implica, somos levados a evidenciaralgumas características essenciais. Antes de mais — paradoxalmente — a primeiracaracterística não será a materialidade, que constitui mais o substrato da noção doque o seu aspecto metodológico mais importante. A cultura material pode serdefinida antes de mais como a cultura do grosso da população. Quer isto dizer queé aquela que diz respeito à imensa maioria numérica da colectividade estudada;podem, evidentemente, fazer-se subdivisões dentro de tal maioria e distinguir, porexemplo, classes sociais, grupos rurais e urbanos, etc., mas não é isto o essencial:a cultura material, cultura do colectivo, contrapõe-se sobretudo à individualidade.

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Assim, nunca nos passaria pela cabeça falar da cultura material deste ou daqueleindivíduo específico e isolado: a cultura é sempre dividida com outros indivíduos,geralmente numerosos, e, neste conceito de colectividade, é fácil ver a influência, járeferida, da antropologia social e cultural. Note-se no entanto que, emboraparecendo recusar-se a priori a subdivisão do grosso da população em classes ougrupos de qualquer tipo, nem por isso a cultura material pode ser confundida com acultura popular (voltaremos mais adiante a este assunto). Quando Boucher dePerthes analisa ossadas e utensílios arqueológicos, pouco lhe importa saber aquem tenham especificamente pertencido ou qual o indivíduo que os fabricou: paraele, são sobretudo testemunho da presença do homem artífice de utensílios emgeral e é isso o essencial; a sua emoção intelectual é, portanto, muito diferente dado historiador especialista em Ramsés II quando se encontra frente à sua múmia oua objectos que lhe pertenceram. Por fim, quando o arqueólogo medievalista estuda,por exemplo, um esqueleto, não é a individualidade do ser humano a quempertenceu que lhe interessa, mas antes aquilo que as características morfológicasdo esqueleto lhe ensinam sobre o ambiente cultural material em que viveu aqueleser humano: para o arqueólogo, é muito mais importante que aquele esqueletorepresente a média da população e não a excepção; também neste caso aperspectiva é muito diferente da de quem escava os túmulos faraónicos esperandoencontrar múmias o mais excepcionais possível. Assim, colocando-nos numaperspectiva cultural no sentido que a antropologia dá a este adjectivo, o estudo dacultura material introduz nas ciência humanas, e particularmente no estudo da pré-história e da história, a dimensão do maioritário e do colectivo.

A segunda característica implícita na noção de cultura material estádialecticamente ligada à primeira; visto que o estudo dos fenómenos culturais(sejam ou não materiais) pressupõe um interesse pela quase totalidade dacolectividade de que se ocupa, concilia-se mal, por consequência, com aquelesfactos isolados ou excepcionais a que os historiadores chamam acontecimentos.Longe de ser um momento importante no estudo da cultura material, oacontecimento representa antes uma inútil fractura: pode, na melhor das hipóteses,ser interpretado como um efeito, explicando, por exemplo, uma certa luta comdeterminada organização sociocultural ou — em termos marxistas — com certascondições socioeconómicas. Este estudo, portanto, não só não tem necessidade deheróis como, para além disso, não tem necessidade de heróis que «fazem ahistória» ou pensam fazê-la à força de acontecimentos. Mesmo neste caso éevidente a influência da antropologia na definição interna da cultura material:também esta ciência está, de facto, muito mais atenta aos factos repetidos do queaos factos acidentais. Para indicar aquilo que é um não-acontecimento por umapalavra que não seja negativa, podemos recorrer à expressão, já bastantedifundida, de «facto quotidiano» que não é, porém, completamente satisfatóriaporque, se o estudo da cultura imaterial se limitasse à descrição da vida quotidiana,ficaríamos sempre ao nível dos microacontecimentos. Ao interessar-se pelainvestigação dos não-acontecimentos, o estudo da cultura material dedica-se, pelocontrário, a observar de preferência aquilo que na colectividade é estável econstante e que, como tal, a possa caracterizar: em vez da sucessão de factos

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diversos, procura os factos que se repetem suficientemente para sereminterpretados como hábitos, tradições reveladoras da cultura que se observa. Note-se urna vez mais que a etnografia utiliza o mesmo processo. Todos estes aspectosda noção de cultura material estão amplamente ilustrados pelos trabalhos quesobre ela se debruçam. Fundando, em 1919, a Akademiia Istorii Material'noiKul'tury. os dirigentes soviéticos procuraram dotar a Rússia de um organismo cientí-fico que, em vez de contar uma história de lutas, deveria mostrar as condiçõesconcretas de existência das massas rurais e, naturalmente, as lutas que estasempreenderam para as melhorar, mas lutas de classe, bem entendido, lutaspolíticas onde a batalha campal é só um episódio e um resultado. Saliente-se apropósito que o estudo da cultura material de modo nenhum nega, comopoderíamos ser tentados a acreditar, o dinamismo histórico: parece, no entanto,colocá-lo, não no acontecimento — uma revolução, por exemplo — mas sobretudonas condições técnicas, económicas, culturais e sociais que provocam talacontecimento e são por ele modificadas; estamos, como é evidente, muitopróximos da visão marxista da história. Eis outro exemplo que demonstra como oobjecto da história da cultura material não é o acontecimento: quando Bloch (1939)redige o seu quadro da sociedade feudal, não o faz para descrever a longa sériefactual dos inumeráveis acontecimentos conflituais que ela contém, mas paramostrar a organização dessa sociedade, onde o próprio conflito surge como urnaresultante sociológica constante e como uma característica entre tantas do mundofeudal e não como um facto interessante e em si mesmo explicativo. Outro casoexemplar: os arqueólogos fazem pesquisa e muitas vezes põem a descobertoagregados populacionais destruídos por uma catástrofe — cataclismos naturais,incêndios, etc. — onde os habitantes, que morreram ou se puseram em fuga, nadapuderam modificar da disposição habitual do seu universo) doméstico e quotidiano;tragédia para as vítimas, esta situação é providencial para o historiador da culturamaterial, que pode extrair dela uma infinidade de informações. Mas não é acatástrofe em si que o interessa: acontecimento contingente provocado por dadosnaturais ou culturais exteriores e preliminares, ela apenas catalisa a fixação precisade uma cultura material, único objecto de estudo do arqueólogo. Para o estudiosoda pré-história ou de antropologia da cultura material, o acontecimento, como vimosatravés destes exemplos, é apenas o resultado e, quando muito, uma ilustração dosubstrato cultural colectivo e repetitivo que ele quer estudar.

As duas primeiras características referem-se ao primeiro termo da expressão«cultura material», as duas que se seguem explicam o segundo. Definindo comcerta precisão — embora sempre implicitamente — em que consiste, neste caso, amaterialidade, os autores que a trataram dão à noção todo o seu valorepistemológico e heurístico; com efeito, enquanto as características colectivas erepetitivas da cultura material são apenas dois dos aspectos principais da noção decultura em geral, as seguintes determinam, através da ideia de materialidade, umcampo de pesquisa que demonstrou ser original, interessante e eficaz. Podemosver que, ainda mais que a colectividade e a repetição, estas duas outrascaracterísticas contidas na noção de cultura material estão dialecticamente ligadas

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e mantêm relações estreitíssimas, de tal modo que é difícil examiná-lasseparadamente.

Antes de mais, os fenómenos infra-estruturais — segundo a terminologiamarxista —- constituem um dos domínios mais evidentes e característicos dosestudos sobre a cultura material. Isso implica que esses estudos não sefundamentam nos diversos sistemas supra-estruturais das culturas: os sistemasestéticos, jurídicos, morais, religiosos, linguísticos, etc. são tratadossistematicamente apenas como elementos secundários, isto é, corno epifenómenos.Não porque os especialistas da cultura material os excluam formal-mente ou osignorem, mas, como é evidente, não lhes concedem um papel explicativo essencialnos fenómenos que estudam, nem na cultura em geral. Afastamo-nos assim doraciocínio global da antropologia, tanto quanto nos aproximamos do marxismo; aprimeira, de facto, com os seus numerosos e excelentes estudos dos sistemassimbólicos de representação, atribui-lhes implicitamente um grande valor explicativodos fenómenos socioculturais em geral, enquanto o segundo considera estessistemas apenas como produtos derivados das causas primeiras, que seriam aeconomia, a técnica, etc., em resumo, daquilo a que Marx chama infra-estruturas.Sem querermos ser demasiado sistemáticos, podemos dizer que, no seu conjunto,os especialistas da cultura material preferem este segundo ponto de vista: estudara cultura material significa atribuir uma importância causal, nos factos culturais, aoslimites materiais que devem ter em conta. Isso explica o facto de terem sidosobretudo socialistas de todas as tendências os primeiros a conceberem a noçãode cultura material, dando-lhe depois nome, desenvolvendo-a, aperfeiçoando-a eutilizando-a: explica também o modo como a noção se manifestou, principalmentenuma conjuntura favorável ao socialismo. É inútil apresentar outros exemplos:quando Lenine, em 1919, e, mais tarde, outros legisladores da Europa Orientalcriaram institutos de história da cultura material foi porque. como marxistas, aconsideravam sede dos «motores da história», para retomarmos uma imagemcélebre. Quando Bloch e Febvre reagiram contra a história évènementielle — enacionalista — dos seus antecessores, foi também porque procuravam nãomenosprezar a parte, considerada essencial, que a economia desempenhava naexplicação das situações e do dinamismo histórico. Não se trata aqui de examinar aimportante questão do interesse comparado de infra-estruturas e supra-estruturasna causalidade histórica e cultural: esse debate, delicado e não isento de aspectospolémicos, apresenta, aliás, matizes muito diversos. Basta ter em conta que, nestedebate, a noção de que nos ocupamos implica uma escolha: o estudo da culturamaterial é o estudo dos aspectos materiais da cultura entendidos como causasexplicativas, e isso, em certa medida, em prejuízo dos seus aspectos menosmateriais.

Esta atenção aos fenómenos culturais mais infra-estruturais justifica de imediatoque recorramos aos únicos documentos seguros onde podemos estudá-los: osobjectos concretos. São estes que, transmitindo da melhor maneira a culturamaterial, ocupam, pelo menos em parte, e alimentam com regularidade os camposde pesquisa, sobretudo da pré-história, mas também da história em ambos os casos

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através da arqueologia e da antropologia através da recolha etnográfica). Desde oinicio da Idade Moderna, os diversos tipos de arqueologia e uma etnografia antelitteram permitiram reunir importantes colecções organizadas de objectos imóveis emóveis, de seu pleno direito qualificados como «materiais» e que não são de modonenhum objectos de arte ou de luxo provenientes da nobreza dos grupossocioculturais que os produziram: arneses de pedra com usos diversos,instrumentos agrícolas, utensílios domésticos e armas de diversos materiais,ossadas humanas e de animais, unidades de grandes dimensões comoembarcações, casas e, às vezes, cidades inteiras, etc. Em seguida, esta tendênciapara juntar objectos que representavam o ambiente de onde provinham manteve-see confirmou-se. O facto é que, conforme se disse, estas três ciências têm neces-sidade, em graus diversos, de tais objectos: a pré-história baseia-se essen-cialmente neles e sem eles não poderia passar: a história, através da arqueologia,recorre a eles para esclarecer, no seu domínio, as partes pouco conhecidas ou maldocumentadas pelos textos, essas partes que, para a Idade Média, Michel deBouard define como «amplas orlas de pré-história»; a antropologia, por fim, atravésda etnografia, serve-se deles para caracterizar com exemplos precisos e tangíveisos conjuntos socioculturais que estuda. Podemos observar que é precisamente nosobjectos concretos que encontramos a explicação do diverso tipo de atenção queestas ciências dedicam à cultura material: à pré-história ( que tem dela absolutanecessidade para todas as suas análises e que conhece, portanto, as culturas,primeiro através do material, para depois tentar chegar ao não-material contrapõe-se a antropologia que, tendo a sorte de analisar culturas vivas, se interessa, entreoutras coisas, por aquelas delicadas construções que são OS sistemas ideológicose simbólicos e pode, por isso, permitir-se tratar os aspectos materiais apenas numasegunda análise, servindo-se, em caso de necessidade, de desenhos e descriçõesescritas dos objectos; a história, por fim, dispondo de textos, encontra-se numaposição intermédia entre as duas. Estes pontos de vista diversos, aparentementeopostos, são, de facto, complementares. Estes objectos não são, no entanto,apenas um meio cómodo de análise a que estas ciências poderiam ou não recorrer;a sua própria existência, a sua presença são vinculantes, visto que as ciênciastiveram rapidamente — e têm sempre — de explicar todos estes objectos, deintroduzi-los de modo satisfatório nas suas sínteses socioculturais, onde encontramo seu lugar e o seu significado. Para isso é indispensável o conhecimentosimultâneo dos objectos materiais — as suas dimensões, formas, matéria e,indirectamente, os seus modos do fabrico — e a sua proveniência exacta, de modoa reconstruir ou explicar o ambiente que os originou: já vimos isso quando nosreferimos à arqueologia. Podíamos dizer que estes objectos são fundamentais parauma parte mais ou menos importante das ciências cm questão. Na psicologia, porexemplo, o objecto material tem sobretudo um papel simbólico que não exigenecessariamente o conhecimento das suas características precisas ou a suapresença efectiva para explicar um dado factual; é por isso que o psicólogo chamageralmente — e com razão à faca «símbolo fálico». Pelo contrário, sobretudo nosestudos pré-históricos, mas também na história e na antropologia, o objectoconcreto é o suporte necessário da descrição ou da compreensão, que não podem

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passar sem ele: é por isso que a matéria, a forma e a cor exactas de uma faca, talcomo o lugar e época de onde é originária. são em geral indispensáveis para saberde que grupo sociocultural provém, de que época data, como e porquê foiconcebida, utilizada e compreendida. Na história, por exemplo, sucede comfrequência que os contactos económicos entre civilizações muito distantes entre sisejam apenas confirmados pelos objectos materiais. culturalmente típicos, que elastrocaram entre si; também na arqueologia as grandes obras de Levi-Strauss sobreas mitologias americanas demonstraram implicitamente que, mesmo nos camposmenos materiais, a explicação exigiu um excelente conhecimento das culturas edos objectos materiais De resto, os exemplos que poderíamos encontrar naarqueologia e na etnografia são tão abundantes que é supérfluo citar alguns.Percebe-se bem como, perante necessidades deste tipo, as três ciências tenhamde estudar estes objectos dentro do campo especial dos fenómenos socioculturaisque é a cultura material.

A noção de cultura material é, portanto, heterogénea e rica em matizes e issoexplica em parte por que foi tão difícil dar-lhe uma definição. Com efeito, aexpressão que a designa. que é, necessariamente, uma abreviatura, reúne eresume bastante bem numerosos elementos diversos, que são outras tantas opçõescientíficas tomadas pelos especialistas que recorrem a esta noção. Em primeirolugar, demasiadas vezes se ignora o facto de que a cultura material é, antes demais. tal como o seu nome indica, uma cultura. Nessa qualidade, possui dois dosseus aspectos principais: a colectividade (oposta à individualidade e a repetiçãopor oposição ao acontecimento dos fenómenos que a compõem. o que, emqualquer ciência, define uma importante situação epistemológica e, porconseguinte, opções ideológicas e metodológicas. Além disso, esta aproximaçãocultural é determinada pela angularidade da materialidade, que foi a escolha paraessa abordagem, tal como indica o adjectivo 'material*. Esta escolha damaterialidade revela dois aspectos precisos: o apego aos fenómenos infra-estruturais como causalidade heurística e a atenção aos objectos concretos queexplicam estes fenómenos: mesmo estes aspectos — sobretudo o primeiro —pressupõem orientações ideológicas e metodológicas evidentes e bem precisas.

Para concluir estas observações, notemos que as quatro característicasprincipais individualizadas na noção de cultura material se justificam com base narelação de filiação que a liga a algumas das principais correntes do pensamentocontemporâneo, primeiro com a ruptura epistemológica multi-científica que ocorreudepois de 1850; depois, com as ideias socialistas e, mais tarde, marxistas — logo,com a antropologia geral tal como a entendia Durkheim; e finalmente com o gosto,bastante característico do nosso tempo, pela história de um passado entendidocomo causa de um presente-efeito, baseada, sempre que necessário e cada vezcom maior frequência, na arqueologia. A variedade destas origens esclarece, semsombra de dúvidas, por um lado, o êxito e a flexibilidade da noção — já desde oinício sublinhados — e, por outro, a vasta interdisciplinaridade do campoepistemológico oferecido pela cultura material a diversas ciências. Procurámosdefinir a noção. Percorramos agora retrospectivamente e com espírito crítico a sua

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história, para verificar se realmente encontramos todas as características que lhesão atribuídas nas obras citadas e, em geral, em todos os trabalhos que tratam decultura material. Esta análise deverá permitir também uma melhor definição docampo da cultura material, através do estudo das relações que tem com outrasnoções sobre as quais é difícil afirmar a priori se fazem parte da cultura material ouse lhe são estranhas, embora próximas.

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5. Cultura material e história

É provável que a história nunca tenha ignorado totalmente a cultura material,mas concedeu-lhe, durante muito tempo, um interesse bastante limitado. Sepensarmos no que aprendemos quando jovens na escola e no liceu, é precisoreconhecer que a história da vida material ocupava uma parte mínima. Acabadas asidades da pré-história, que se definiam precisamente, mas excepcionalmente,através dos seus utensílios (Idade da Pedra, Idade do Bronze e do Ferro), não sefalava mais disso. Só mais tarde se introduziram capítulos dedicados à vidaquotidiana, onde também a cultura material tinha o seu lugar e a que se devemnotícias esporádicas sobre a vida antiga, sobre a toga do cidadão romano, sobre osutensílios do camponês egípcio, sobre a nave do mercador sírio. E evidente quenão é por acaso que estes capítulos eram mais numerosos nos livros de iniciação àhistória da Antiguidade: são tempos tão distantes que quase parecem pertencer aoutros mundos, a outras humanidades. E a história encara-os como a antropologiaencara outros povos igualmente remotos, mas com distância, descrevendo-ossimultaneamente através dos seus hábitos, alimentação, técnicas e costumes.Parte-se do princípio que estes povos exóticos não têm história, e os povos doOriente antigo, embora não sejam de todo desprovidos dela, oferecem ao pedagogoapenas uma crónica caótica e descontínua que ele julga, e com razão, poucoassimilável. E como se, à falta de melhor, a história se tenha voltado para a culturamaterial. Observa-se porém que a Antiguidade só é acessível, em grande parte,através das fontes arqueológicas, fontes materiais que, pela sua própria natureza,fornecem mais informações sobre os aspectos materiais das civilizações dopassado do que sobre OS acontecimentos ou as mentalidades.

Para além destes capítulos marginais, mal integrados no processo histórico eque desapareciam quase completamente nos manuais dedicados aos temposmodernos e contemporâneos, os livros de história limitavam-se a mencionarindiscriminadamente o moinho de água, o jugo, o timão do arado, o invento deGutenberg, o de Bernard Palissy, o salão de Madame de Sévigné, o tabaco deNicot e o tubérculo de Parmentier, até chegarem à máquina a vapor, que traziaconsigo uma série de progressos técnicos rapidamente passados em revista.Reevocava-se de certo modo o acontecimento na história material dos homens, umacontecimento em muitos casos lendário: Bernard Palissy poderia ter sido umimpostor que dominava mais as técnicas publicitárias do que as da cerâmicaesmaltada; e sabe-se que Parmentier não inventou o uso da batata: tentou apenasretirar dela uma farinha panificável sem o conseguir.

Limitada às civilizações mais antigas e aos inventos mais espectaculares, ahistória da cultura material ocupou durante muito tempo um lugar secundário. Nostempos em que eram professores universitários a construir o edifício dosacontecimentos, limitando assim os seus horizontes, a cultura material eraabandonada aos eruditos de província e aos diletantes sem ambição. Representavao relato das curiosidades do bazar da história. Mas basta-nos desfolhar as revistasdos círculos eruditos para nos convencermos do longo caminho que percorreu nos

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subterrâneos da ciência. O arqueólogo medievalista sabe que não pode esperarmuito dos manuais e das teses redigidos na primeira metade do século, mesmodaqueles que foram escritos por arqueólogos que eram, na realidade, historiadoresde arte (lembremo-nos de Camille Enlart). Sabe, em compensação, que os artigos enotas sobre a casa, os trajes, a cerâmica, as ferramentas, etc. não são raros nasrecolhas de textos dos círculos eruditos e mesmo se lamenta muitas vezes a faltade referências e a ingenuidade do discurso, regozija-se com a descoberta e aausência de preconceitos dos antigos eruditos. Essa mesma ausência de pre-conceitos, ou antes, uma previsão da evolução da história, é atribuída a algunscientistas de relevo, espíritos brilhantes e originais. Pertencem quase todos àsgerações anteriores à grande esterilização da história por parte dos professoresuniversitários. As vezes são investigadores que, por profissão ou por gosto, sebasearam estritamente nos documentos — Maurice Prou, Jules Quicherat, Doiletd*Arcq, Siméon Luce, Léon Gautier — mas também Michelet, demasiadopreocupado com a história do povo para ignorar as condições da sua vida materiale sobretudo Viollet-le-Duc, cujo Dictionnaire du mobilier français (1864) foidemasiadas vezes esquecido. Viollet-de-Duc achava estranho que se conhecessemmelhor os objectos usados pelos antigos do que os utilizados na Idade Média.

Os «Annales», que tanto alargaram o campo do historiador, introduziram tambémno seu horizonte a cultura material. Marc Bloch retomou — no melhor sentido, istoé, repercutindo, difundindo, amplificando — as pesquisas sobre as técnicas, sobreas modificações que o moinho de água introduziu na Idade Média no Ocidente, nasua economia, na organização social, na psicologia. Conquistado pela obra dosgeógrafos — Roger Dion, Jules Sion — Lucien Febvre [1922] foi o iniciador de umahistória «ligada ao solo, ou antes, ao ambiente, àquilo que rodeia os homens»,história nova, magnificamente ilustrada pelo título — e pelo conteúdo — da tese deFernand Braudel La Méditerranée et le monde méditerranéen à l*époque dePhilippe II [1949]. Lucien Febvre pôs a história em contacto com a etnografia, umdos caminhos mais seguros para chegar à cultura material. Marc Bloch e LucienFebvre lançaram ideias, iniciaram pesquisas, embora lhes tenha faltado tempo paraprogredir nesse campo. Fernand Braudel propôs temas, instigou a pesquisa,recolheu informações e é, afinal de contas, o autor da primeira verdadeira síntese:Civilisation matérielle et capitalisme [1967]. Este livro serve de referência a umainvestigação sobre o que é a cultura material e o que pode ser o seu estudo.

Pondo de parte o primeiro problema levantado pelo título, admitamos quecivilização e cultura são a mesma coisa. Mas a associação com o capitalismo temde ser esclarecida porque o termo ‘capitalismo* não serve aqui apenas para colocarcronologicamente o estudo: trata-se de uma abordagem que se inicia no século xve se encerra com o século XVIII. Braudel explica-se imediatamente: a vida materialé a que se desenvolve à flor da terra. ao nível inferior de uma construção —construção que é apenas intelectual, simplificação para mais comodamente seabarcar o real — cujo plano superior é a vida económica, também ela modeladapelo capitalismo nascente, E uma visão pejorativa da vida material que é, desde oinício, apresentada como servil e empírica, inferior à vida económica que, pelo

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contrário, é apresentada como privilegiada. Não há dúvida que esta, maissofisticada, mais intelectual, surgia como mais digna da atenção e dos esforços dohistoriador. Há talvez aqui um certo respeito pelos historiadores da economia quena época em que Braudel escrevia, estavam ainda no auge. Mas lá está a obra noseu conjunto para afirmar a dignidade do estudo da cultura material, proclamando ointeresse proeminente da história das massas, derrubando os esquemas habituaisda história, colocando em primeiro lugar precisamente essas massas, abrindo assuas páginas «à “civilização material”, aos gestos repetitivos, às históriassilenciosas e quase esquecidas dos homens, a realidades perenes cujo peso foiimenso, mas cuja repercussão foi apenas perceptível» [1967, trad. it. p.XXI].

Destas tomadas de posição podem deduzir-se dois factos. O primeiro. é que ahistória da civilização material é a história dos excedentes. O .segundo, é que vidamaterial e economia são ao mesmo tempo fortemente ligadas e nitidamentedistintas. Para Braudel, a vida é sobretudo feita de objectos, de utensílios, dosgestos da maioria dos homens: só esta vida lhes diz respeito na existênciaquotidiana, só ela absorve os seus actos e os seus pensamentos. Por outro lado,ela estabelece as condições da vida económica, «o possível e o impossível),constituindo o terreno em que se move a economia, a matéria que ela trabalha, asua base.

«A vida material é constituída pelos homens e pelas coisas, pelas coisas e peloshomens» [ibid., p.5]. Os homens estão portanto também incluídos, O livro abre coma demografia histórica, as suas conquistas e os seus problemas, os ritmosclimáticos, as calamidades. Alexander Gieysztor [1958. p. 149] afirmou também: «Onúmero global da população e a sua densidade, a estrutura demográfica e omovimento natural dos povos também fazem parte da existência material dassociedades». Mas ao pretender anexar a demografia histórica, a história da culturamaterial corre o risco de ser acusada de imperialismo e, sobretudo, de desequilibraros seus estudos. A demografia histórica é uma ciência jovem, mas que sedesenvolveu de maneira extremamente rápida. Os manuais e revistas que dela seocupam em França já seriam suficientes para encher várias estantes de uma biblio-teca. A história da cultura material não pode oferecer nada de semelhante no quediz respeito aos seus outros domínios. Deve, no entanto, aceitar estesdesequilíbrios e é evidente que nem todos os seus empreendimentos caminham aomesmo passo. Mas como poderia abster-se de estudar o homem e a humanidade?Como seria possível dissociar o corpo, as doenças e as práticas médicas da vidamaterial?

Nem sequer a alimentação continua talvez a parecer uma conquista da históriada cultura material. As carestias e as crises dos cereais há já muito tempo quedespertaram a atenção do historiador, tal como o comércio dos cereais e oconsumo de vinho têm alimentado as reflexões dos economistas do presente e dopassado. Mas nem só de pão vive o homem e a alimenta-cão é, para Braudel,também o regime de calorias, as boas maneiras à mesa, o apetite nas refeiçõesfestivas e a ementa dos ricos: o supérfluo lado a lado com o banal. O lugar dacarne e o lugar do peixe, o destino do chá e do café, o domínio do vinho e o da

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cerveja, as conquistas do álcool e do tabaco representam outros tantos capítulos deuma história da cultura material. Por outro lado, Braudel, mais do que uma históriado pão e do vinho, queria urna história dos regimes alimentares, das «associaçõesalimentares» (tal como os geógrafos e os botânicos falam de associaçõesvegetais).

No mesmo domínio do supérfluo e do necessário, Braudel inclui também aalimentação e o vestuário. Assim, aquilo que atrai a atenção é sobretudo adiferença, essa diferença que separa a casa do camponês da comodidade damansão burguesa, aquela que contrapõe civilizações ricas a civilizações pobres.Volta assim a propor-se a dimensão social e, com ela, a dimensão espacial que,aliás, em Braudel nunca está ausente e é sempre considerada. Mas em Civilisationmatérielle et capitalisme dedicam-se à habitação e ao vestuário ao todo umascinquenta páginas, duas ou três vezes menos do que à alimentação, o que uma vezmais põe em evidência os ritmos diversos seguidos pelas pesquisas em cada umdesses campos. A história da habitação e a história do vestuário ressentem-se,mais do que qualquer outra, de uma documentação muitas vezes limitada aoexcepcional e demasiadas vezes anedótica.

A difusão das técnicas surge mais tarde do que seria de esperar. A difusão —note-se bem — e não a invenção. Também neste domínio, o que conta é o facto deessa difusão ter como lei a quantidade e a duração, não a excepção nem oacontecimento. «Tudo é técnica», afirma Braudel [1967, trad. it. p. 250]. De facto,poderia pensar-se que a história das técnicas cobrisse por inteiro a história dacultura material e que os seus grandes mestres fossem Forbes, Lynn White, Singer.Isso não é verdade e Braudel avisa-nos também quanto às «transformaçõesrápidas a que nos habituámos a chamar, de modo um tanto apressado,revoluções», que não são mais importantes que o «lento aperfeiçoamento dosprocessos e dos utensílios» [ibid.]. Tudo é técnica, mas também «a técnica nuncaestá só» [ibid., p. 251]. O social, o económico, as mentalidades infligem aodesenvolvimento técnico as suas lentidões e os seus atrasos. «Cada invento quebate à porta tem de esperar anos e mesmo séculos antes de ser introduzido na vidareal» [ibid. ] - A civilização material é algo de complexo que não se limita à técnica.

O livro encerra com um capítulo dedicado à moeda e outro à cidade. o queparece surpreendente, embora tenhamos de admitir que a moeda tem aspectosmateriais, que é um instrumento e que modifica os dados da vida nos sítios em queaparece, embora concordemos que as cidades funcionam como aceleradoras dotempo da história e, portanto, também do tempo da vida material. Mas, de facto,Braudel admite que atinge neste caso o plano superior, o plano da economia: umavez mais somos avisados que é difícil separar vida material e economia.

O livro de Fernand Braudel é o único a oferecer uma síntese tão vasta. E, porém,nos países da Europa socialista que a noção de cultura material primeiro e melhorse integrou. Para dizer a verdade, embora possamos encontrar noutros sítiosantecedentes ou equivalentes, a ciência ocidental recebeu-os de Leste. As

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publicações da Europa socialista familiarizaram a noção por esta adoptada, ouadaptada, porque neste caso não é seguro que todo o mundo fale a mesma língua.

Na Polónia, a criação do Instytut Kultury Materialnej suscitou uma importantediscussão que continuou nas páginas de «Kwartalnik Historii Kultury Materialnej».As produções científicas seguiram-se em largo número. Os autores, tal como osteóricos, eram e são arqueólogos, historiadores, mais raramente etnógrafos. Oprimeiro director do Instytut foi Kasimierz Majewski, especialista em arqueologiaclássica. Nele se encontram agrupados quatro tipos de investigadores: arqueólogosda Polónia pré-histórica e medieval, arqueólogos do Mediterrâneo, etnógrafos ehistoriadores de economia. Devemos sobretudo sublinhar a intervenção dosarqueólogos: a associação de arqueólogos, historiadores e etnógrafos talvezsignifique apenas a necessidade de somar e confrontar três tipos de fontes paraescrever a história do passado material; mas tanto a responsabilidade que elesassumem como as obras que produzem, tudo demonstra o predomínio dosarqueólogos no novo campo de pesquisa. Regem-se como se os métodos, asfontes habituais e a problemática do arqueólogo fossem as mais próximas daspráticas e dos objectivos da história da cultura material.

Arqueólogos e historiadores alimentaram a discussão com as suaspreocupações especiais. Os arqueólogos levantaram o problema das relações danova ciência com a história da arte e não sem um certo mal-estar, não sem grandesdificuldades para eliminar a arte e o discurso estético das suas pesquisas. Tendodefinido a cultura material como a ciência dos ((artefactos», perguntaram-se qual olugar que deveriam atribuir aos objectos de arte ou aos realia, aos objectos etestemunhos do culto que, por formação, estavam habituados a considerarisoladamente ou em primeiro lugar. Esta dificuldade domina a reflexão teórica deJan Gasiorowski, cujas obras, antes e imediatamente depois da guerra, muitocontribuíram para fundar a nova ciência a que ele chamava «ergologia».Gasiorowski definia a cultura material como o conjunto dos grupos de actividadeshumanas que correspondem a uma finalidade consciente e possuem um carácterutilitário, que se exprime nos objectos materiais. Uma definição deste génerodeveria, segundo parece, excluir tudo o que se refere à arte ou ao «cultural». Masencontramo-la, no entanto, num estudo dedicado à relação da arte com a culturamaterial. Simples problema de fronteira entre duas pesquisas? Talvez, mas asolução não é assim tão fácil. As obras de arte têm um suporte material e, paraproduzi-las, recorre-se a instrumentos e técnicas que não são radicalmentediversos dos usados nas outras produções humanas. E mesmo os objectosutilitários têm uma potencialidade estética que interessa aos etnógrafos quandofalam de arte popular. Finalmente, Gasiorowski e Majewski reconhecem a forma doobjecto tanto quanto a sua função, ao ponto de recusarem a tecnologia, admitindoembora a técnica. De tal contradição resulta que qualquer tentativa de delimitar acultura material esbarra com a dificuldade de isolar um elemento ou um aspecto deuma civilização necessariamente global.

Os historiadores introduziram neste debate uma outra reflexão originada por umadificuldade do mesmo género que já se nos tinha deparado: a que diz respeito às

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relações existentes entre cultura material e economia. Fazer da vida material abase da economia é sedutor, mas é só uma ajuda teórica para o investigador, quese encontra perante a complexa evolução dos factos. Enfrentando a cultura materialcom os instrumentos da análise marxista, os historiadores polacos tinhamobrigatoriamente que procurar relacioná-la com os métodos de produção. Fazer dacultura material o ponto de partida da economia significava responsabilizá-la pelascondições da população, mas nem por isso deixavam de perceber que o consumodos bens produzidos também diz respeito à cultura material. A história económicaencontra-se de repente no centro do novo estudo, embora sem passar a ser eledependente ou auxiliar. Um historiador como Alexander Gieysztor está sobretudoconsciente da situação delicada da história da vida material, nas fronteiras dediversos campos tradicionais da pesquisa histórica ou no ponto em que se cruzam.O novo campo é, para ele, constituído pelos «meios de produção e pelos meios detrabalho, os objectos manufacturados, as forças produtivas e os produtos materiaisutilizados pelos homens» [1958, p.146]. Em resumo: tudo aquilo que se refere àprodução, excepto a própria produção?

Gieysztor retoma também de Henri Dunajewski a seguinte definição: «Objecto deestudo da história da cultura material são os elementos das pessoas e das coisasdo processo de produção e de reprodução da vida material das sociedades nocurso dos diversos estádios de desenvolvimento desses elementos» [ibid., p. 148].Estes elementos seriam: 1) os meios de trabalho; 2) o objecto do trabalho, ou seja,as riquezas naturais; 3) a experiência do homem no processo de produção; 4) autilização dos produtos materiais. Gieysztor acrescentava-lhes ainda as condiçõesde existência social: o ambiente geográfico e o homem. E, definindo os temas depesquisa próprios da história das condições materiais da vida humana, inclui apastorícia e a agricultura, as minas, a indústria, o artesanato, os transportes e ascomunicações; depois, no capítulo do consumo, a alimentação, o vestuário, ahabitação. Mas os historiadores como Gieysztor procuram evitar que a história dacultura material se limite à análise descritiva. Parece-lhes inconcebível que sepossa estudar o vestuário ignorando a fiação e a tecelagem, não tendo, afinal, emconta a organização da produção. Não podemos deixar de concordar com eles,confirmando embora a enorme dificuldade apresentada pela caracterização da vidamaterial em relação à vida económica.

É impossível dar ideia da riqueza da reflexão teórica desenvolvida na Polónianos últimos vinte anos; mas é claro que as orientações definitivas continuambastante imprecisas e o programa bastante vago em toda a sua amplitude. É,portanto, à produção científica que somos levados a dirigir-nos para saber qual oâmbito da expressão ‘cultura material*: a história da cultura material só pode seraquilo que dela fazem OS investigadores que a ela se referem. A produção éimpressionante. A pesquisa arqueológica, promovida pelo Instytut Historii KulturyMaterialnej, trouxe à superfície centenas de monumentos e povoações, enriqueceuos museus com documentos da vida material, multiplicou as publicações comresultados de escavações e levantamentos. Basta desfolhar estas publicações paranos convencermos de que na Polónia a arqueologia já não se confunde com a

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história da arte: os documentos que constituem objecto de estudo são as casas demadeira urbanas rodeadas por bastiões de terra e madeira, as cabanas térreas dosaldeamentos rurais, as louças de mesa e de cozinha, os utensílios da vida rural edo artesanato, sem esquecer nem os vestígios do consumo nem os homens,presentes através das suas ossadas e dos seus túmulos. Se percorrermos ascolecções dos «Kwartalnik Historii Kultury Materialnej», de «Archeologia Polski», oslivros de Witold Hensel e dos seus colaboradores do Instytut Historii KulturyMaterialnej, ternos de admitir que o programa foi em grande parte realizado.

Não é, no entanto, certo que historiadores e etnólogos tenham evitado todas asarmadilhas que a própria imprecisão do projecto lhes punha no caminho. Muitasvezes as suas pesquisas vêm desaguar naqueles terrenos limítrofes que são atecnologia, o estudo do povoamento, a história económica. Mas não podemoscensurá-los por se terem limitado a dar nova roupagem a pesquisas tradicionais:pelo menos os documentos construídos são novos. Pense-se o que se pensar, éuma novidade para um arqueólogo trazer à luz todos os humildes testemunhos davida quotidiana; interessar-se tanto pela loiça de uma comunidade como pelacerâmica decorada, pelos fragmentos de barro como pelo vaso intacto; recolhersementes, caroços de fruta, ossos de animais, escamas de peixe ou bocados detecido; reconstruir um tear ou um arado a partir de um fragmento de madeira ou demetal. Mesmo no que se refere às sínteses, os meios de abordagem são às vezesnovos e encaixam perfeitamente nos limites da cultura material, quer digam respeitoa um aspecto do consumo, como a história da alimentação na Polónia medieval,quer abordem toda uma parte da história dos Eslavos, como o compêndio queWitold Hensel [1956] dedicou aos Eslavos da Alta Idade Média. O índice desta obrapoderia ser o programa de toda a história da cultura material para a Idade Média:

I. A aquisição dos alimentos e das matérias-primas.

II. A produção artesanal.

III. A fixação e a construção.

IV. A higiene.

V. Os transportes e as comunicações.

VI. O comércio.

VII. O armamento.

Falta, no entanto, um capítulo nesta monumental publicação, aquele que deveria,precisamente, ser dedicado à cultura material dos Eslavos da Alta Idade Média,que, imaginamos, é muito diferente da soma pura e simples dos factos que acompõem. Este é, sem dúvida, o último problema levantado por tais pesquisas:superado o obstáculo representado pela definição de cultura material, restaultrapassar a dificuldade apresentada pela definição de uma cultura material.

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6. Cultura material e história económica e social

Estabelecer a posição de um estudo da vida material que seja diferente dahistória económica e social parece um problema delicado para os historiadores.Não para todos os historiadores, para dizer a verdade, nem sequer para todosaqueles que concedem aos factos socioeconómicos um lugar privilegiado noprocesso histórico. Com efeito, os únicos que enfrentaram verdadeiramente oproblema são aqueles para quem a matéria histórica pode ser organizada com basenuma teoria: os historiadores marxistas.

A história positivista, que aceita qualquer facto do passado, não teria nenhummotivo para negligenciar a vida material. Se muitas vezes o faz, é com certeza emfunção de um sistema de valores não confessado que privilegia, no entanto, o factopolítico ou então o facto de ordem intelectual e artística. Para esta história, a vidamaterial não é absolutamente indiferente, mas intervém apenas quando incidesobre factos de ordem superior: é a resistência que o material ou a técnica opõem àcriatividade do artista, é a arma nova que consegue vitórias e permite os grandesdesígnios políticos... Quanto ao resto, a vida material é unicamente o palco onde semovem os actores da história.

Estes historiadores que se opuseram à história «historicizante» e venceram abatalha contra o acontecimento estavam destinados a abrir o campo de pesquisasda cultura material. Esta faz parte daquela vida multiforme que pretende abarcar ahistória na sua globalidade e tem também, por direito próprio, um lugar de relevo noque se refere à ordem da longa duração, às maiorias e às estruturas, observandode mais perto o homem, que é o verdadeiro objecto da sua pesquisa. Preocupadaem não deixar escapar nenhum dos enriquecimentos que as outras ciênciashumanas possam trazer-lhe, a nova história, depois de ter ouvido com atenção aeconomia política e a sociologia, voltou-se também para a etnologia. E a promoçãoda cultura material é considerada como «o contributo imediato da etnologia àhistória», conforme afirma Jacques Le Goff [1973, pp. 239-40], que acrescenta, noentanto, que «a grande obra de Fernand Braudel — Civilisation matérielle etcapitalisme — não permitiu que o novo campo invadisse o campo da história sem oter subordinado a um fenómeno propriamente histórico, o capitalismo» [ibid.]. Narealidade, a subordinação parece ser menos evidente que a dificuldade emdelimitar estritamente os domínios de uma e de outra pesquisas, visto que a históriaglobal se preocupa mais em sublinhar as conexões do que em traçar limites nahistória vivida. Se pretende talvez subordinar a cultura material à históriaeconómica e social, é com certeza por temer que a história, à força de acolhermétodos e problemáticas das ciências vizinhas, acabe por perder a sua identidade.Mas a proeminência atribuída ao facto socioeconómico, o estatuto de fenómenopropriamente histórico que lhe é reconhecido, só se justificam fazendo umareferência ao materialismo histórico.

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É preciso portanto perguntar aos historiadores marxistas onde começa a históriada cultura material e onde acaba a história económica e social: foi precisamenteentre eles que a definição e a delimitação do novo campo suscitaram o maiornúmero de questões epistemológicas devidas a uma certa resistência dosfenómenos estudados a um cómodo enquadramento na teoria. Não é difícilcircunscrever o problema. Atribuir um estatuto independente ao estudo da culturamaterial implica correr alguns riscos: o de conceder aos factos estudados umaimportância semelhante à do fenómeno social, o de admitir que possam existirfactos históricos que não são sociais, o de propor explicar fenómenos sociaisatravés de fenómenos extra-sociais. Se é certo que as representações mentais eintelectuais se colocam para além da organização social, os factos da vida materialcolocam-se aquém dela. E se as supra-estruturas dependem do fenómenosocioeconómico, isso não será, por sua vez, determinado pela cultura material?

Os historiadores, no entanto, não tiveram dificuldade em encontrar em Marx oconvite para estudarem a história da formação dos órgãos de produção do homemsocial. Como poderia o materialismo histórico evitar estudar o substrato materialonde o modo de produção desenvolve a sua acção? Como poderia ignorar quer ascondições da vida social, quer os aspectos concretos da condição rural nos temposdo feudalismo ou do pauperismo da classe operária num regime capitalista?Proceder de modo diverso significaria esvaziar a história do seu conteúdo em favorda economia, expulsar o homem do estudo histórico e privar a teoria da verificaçãodos factos. Poder-se-á analisar o modo de produção, abstraindo dos meios de quedispõe e dos produtos que proporciona?

Parecia que, se podiam estudar estes factos sem introduzir uma mediação entreo facto social e o facto histórico, sem ser preciso apresentar uma explicaçãobaseada no desenvolvimento da matéria e da energia. Trata-se simplesmente deter em conta o contexto material onde se desenvolvem as relações sociais. Estudara cultura material equivale a estudar os meios materiais da produção. Braudel diriaque é pesar o possível e o impossível, não indicar o porquê nem o como.

Recordemos, para assentar ideias, que um dos melhores teóricos da história dacultura material, Jerzy Kulczycki [1955], indicou como seu objecto específico:

1) os meios de produção extraídos da natureza — os materiais e a energianatural — do ponto de vista da sua escolha e utilização, bem como dascondições naturais de vida e das modificações infligidas pelo homem aoambiente natural;

2) as forças de produção, ou seja, os instrumentos de trabalho ou os meioshumanos da produção, como o próprio homem, a sua experiência e aorganização técnica do homem no trabalho;

3) os produtos materiais obtidos a partir destes meios e destas forças, ouseja, os instrumentos da produção enquanto objectos fabricados e osprodutos destinados ao consumo.

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Cada um de nós pode avaliar se uma definição deste género preserva aautonomia do facto socioeconómico. Tem, em qualquer caso, a vantagem dedelimitar, em relação à história económica e social, o campo da cultura material queé, aliás, muito vasto. Esta definição leva a observar que a cultura material se colocaquer a montante quer a jusante do modo de produção, conforme se trate deinstrumentos que são também objectos fabricados, da natureza que é modificadapela produção ou do consumo, que é importantíssimo para as forças produtivas dohomem. O consumo é, no entanto, deixado um pouco de lado na definição deKulczycki, tal como, em geral, em todas as definições elaboradas pelos teóricosmarxistas, que insistem nas condições da produção ou nos objectos comoinstrumento ou como produtos e só acrescentam o consumo como uma viasecundária. Com o consumo, descobrem-se as necessidades que ele satisfaz.Estarão essas necessidades na origem do desenvolvimento da cultura material?Darão conta das suas variações no espaço e* no tempo? Reduzir a cultura ànecessidade foi uma coisa que já se fez sem convencer: é uma parte dofuncionalismo de Malinowski [1944]. Mas tratava-se da cultura em sentido lato.Poderemos, pelo menos, esperar que as necessidades materiais expliquem osdiversos aspectos da vida material? Mas as necessidades elementares foram desdesempre satisfeitas pelos comportamentos inatos à espécie. A cultura, quando muito,começa onde terminam as características inatas. A partir desse momento, asnecessidades não explicam a cultura: exprimem-na. São a cultura propriamentedita. As necessidades materiais constituirão, ao fim a ao cabo, a cultura material?

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7. Cultura material e história das técnicas

A técnica, acto criativo indissociável do trabalho e da produção, pertence,segundo parece, ao domínio da cultura material. No entanto, os historiadores daEuropa Oriental são quase unânimes em excluir a história das técnicas doshorizontes da cultura material. De resto — e Majewski parece deplorá-lo — osarqueólogos, na Polónia, basearam em grande parte as suas pesquisas natecnologia. Como explicar estas contradições?

De facto, a desconfiança em relação a tecnologia manifesta-se apenas noshistoriadores marxistas e depende, sem dúvida, do seu próprio escrúpulo, que osleva a subordinar o estudo da cultura material ao da vida económica e social. Adialéctica marxista dá grande atenção às «infra-estruturas tecno-económicas» paraexplicar os fenómenos sociais e o processo histórico. Ora, o conjunto dos objectosconcretos que constituem o campo da cultura material entra sempre no âmbito deinteresses do marxismo: com efeito, é compreensível que entre um campo deaplicação tão material e um método de explicação global da materialidade setenham estabelecido laços bastante estreitos, como os que se estabelecem entredois pólos complementares. Podemos, no entanto, acordar objectivamente que, noque se refere à cultura material, o método marxista demonstrou sersimultaneamente necessário e insuficiente: necessário, porque, pelo menos para ahistória de alguns conjuntos socioculturais, apresentou, através dos fenómenoseconómicos, esquemas de explicação interessantes; insuficiente, porque tratatalvez demasiado à pressa os fenómenos técnicos como efeitos derivadosunicamente da causa primeira, que seria a economia, e também — e dissovoltaremos a falar — porque considera as chamadas supra-estruturas (arte, direito,religião, moral, parentesco, etc.) como efeito remoto e pouco digno de interesse(Marx atribuía estas últimas à «fantasia popular»). O marxismo surge, portanto,como um terreno propício ao estudo da cultura material, mas não na sua totalidade;e como também — e acima de tudo — quer ser um método eficaz de explicação dahistória, é lógico que fossem sobretudo os historiadores a debruçarem-se sobre ele.Mas o estudioso da pré-história e o antropólogo do dia de hoje não podemcontentar-se com ideias sobre o «comunismo primitivo» que parecem adequadasaos materiais arqueológicos e sobretudo etnográficos de que dispunham Marx eEngels na época em que escreviam. A arqueologia (especialmente a pré-histórica)e a etnografia apresentam hoje uma imensa variedade sociocultural que, no fim doséculo XIX, era bastante menos evidente. A pré-história e a antropologia viram-se,por consequência, obrigadas a procurar rapidamente o apoio de outros tipos deexplicação, acrescentando — sobretudo no que se refere à cultura material —outros factores. Assim, por um lado, o estudo da pré-história foi levado a reconsi-derar a tecnologia para lhe atribuir um papel bastante mais causal do que aqueleque o marxismo autorizava que lhe fosse concedido; por outro lado, a antropologiaatribui, já há muito tempo, a importância fundamental às supra-estruturas,demonstrando que não era possível considerá-las apenas como um fantasmasubsidiário da cultura material. Podemos portanto desenvolver com utilidade estesdois grandes temas, que completam de modo eficaz a análise marxista, segundo os

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quais só seria, afinal, possível uma revolução económica quando, por um lado, astécnicas necessárias e adequadas estivessem aperfeiçoadas e «prontas afuncionar»; por outro, depois de as «resistências» supra-estruturais (que podem sermuito «irracionais» aos olhos do marxista, mas que o antropólogo não podeignorar) terem sido «vencidas» e de se terem individualizado novas formas desupra-estruturas. Este exemplo da «revolução» — fase de crise insólita — sugeridapelo contexto do marxismo é, evidentemente, parcial; mas é epistemologicamenteimportante, visto que o exacerbar dos mecanismos socioculturais provocado poresta fase permite reintroduzir, dando-lhe o devido relevo, outros tipos de explicaçãoque não se podem ignorar no estudo dos objectos materiais: a tecnologia, factorintrínseco da cultura material ligado à explicação económica e o lugar atribuído àssupra-estruturas em geral, rigorosamente exterior ao campo aqui estudado, masque serve para demonstrar como a cultura material é apenas uma parte de um todomuito mais vasto e complexo. Daqui resulta portanto que, para além daantropologia, geralmente vocacionada para o estudo das supra-estruturas, osespecialistas da cultura material podem dividir-se em dois grupos: aqueles —muitas vezes marxistas — que privilegiam a causalidade económica e aqueles quededicam o maior espaço a explicação tecnológica.

Podemos também interrogar-nos se a reacção de rejeição provocada pelahistória das técnicas se fundamentará numa reflexão teórica ou se não esconderá,pelo contrário, uma confissão de impotência. É como se a tecnologia aterrorizasseo historiador devido certamente à elevada, mas limitada, especialização que exige.Para um intelectual é, sem dúvida, cansativo inteirar-se de técnicas que já erammuito complexas na era pré-industrial. Ao arqueólogo, por fim, faltam muitas vezesas noções práticas à compreensão de um ofício, aparentemente tão simples, comoo do oleiro; de qualquer modo, os ceramistas não concordam de modo nenhumquanto às técnicas que poderão ter dado origem a uma ou outra característica dosvasos que estudam, quer se trate do aspecto do material, da cor do vaso ou dassuas particularidades morfológicas. Com muito mais razão, o historiador tem difi-culdade em abarcar domínios tão variados como a construção, a tecelagem, aagricultura, o armamento, a navegação, a arte do carpinteiro ou a do tanoeiro, doseleiro, do cesteiro, a siderurgia e o trabalho dos metais, etc. E quando passamosàs técnicas industriais, o trabalho é ainda mais árduo.

Seria demasiado fácil e desinteressante fazer ironia com a incapacidade dohistoriador: nem mesmo a melhor das boas vontades e um trabalho árduoconseguiriam superar o obstáculo. Parece difícil repetir a façanha da André Leroi-Gourhan que, em L*homme et la matière [1943], soube analisar todas as técnicas,embora se tenha limitado — e lembrá-lo não significa diminuir o seu mérito — astécnicas relativamente elementares das civilizações ditas tradicionais. Mas aquiloque ultrapassa a capacidade de um indivíduo passa a ser possível para um grupode investigadores: a especialização ao nível da análise não impede a síntese,prepara-a.

Porquê então marginalizar a história das técnicas, separando-a da história dacultura material? Muito antes de esta ter sido promovida, os historiadores da

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economia e das sociedades pensavam que não se podia, por exemplo, falar daagricultura do passado sem conhecer os instrumentos e os sistemas de culturaentão utilizados. Só uma certa prática da história das técnicas pode explicar adesconfiança que ela inspira: tal como a história das ciências, isolou-se por siprópria, propondo-se o estudo do facto técnico como um fim em si mesmo,privando-se do contexto económico. Deixou-se por vezes enganar pelo falsoproblema do invento, pelas questões relativas às origens e ao percurso dosinventos. É, aliás, verdade que à história pouco interessa que os antigosconhecessem a segadeira, o arado ou a ferradura, se o seu uso não erageneralizado ou era, pelo menos, limitado a algumas áreas isoladas de progressotécnico.

Sabe-se agora que o invento só se materializa quando corresponde a umanecessidade económica ou social e quando encontra um terreno técnico favorável.A Antiguidade não desenvolveu algumas das técnicas que conhecia, como omoinho de água, porque a escravatura fornecia mão-de-obra abundante. Osinventos que, segundo se afirma, dormiam nas pastas de Leonardo da Vinci nuncapoderiam ter vindo à luz porque faltavam os materiais e a competência necessáriospara os pôr em prática. Em compensação, os progressos da fiação em Inglaterra noséculo XVII foram exigidos pelo progresso da tecelagem: as técnicas antigas já nãoeram suficientes para fornecer fio aos teares equipados com naveta volante. Afiação constituía, por isso, um estrangulamento que a invenção técnica logoeliminou: no decorrer de poucos anos aperfeiçoaram a jenny de Hargreaves (1767),a water-frame de Highs (1768) e finalmente a mule-jenny de Crompton (1779).

Mas a autonomia da história das técnicas não é um facto geral. Levantandoprecisamente o problema dos «inventos» medievais, Marc Bloch [1935] voltou aligar a técnica ao social através da difusão do moinho de água, do jugo, etc. Fezcom que a história das técnicas voltasse a entrar no campo da história, ou melhor,dos historiadores, de onde não voltará a sair. Quanto ao seu lugar, não pode sersenão ao lado da cultura material, quer a consideremos como um momento daprodução ou uma componente do quotidiano.

Seria, aliás, muito cómodo servirmo-nos do nível técnico de uma sociedade paradefinir a sua cultura material. Não podemos, no entanto, evitar que o nível técnicovolte a ser incorporado em tal definição. Mas será possível? No que se refere àssociedades pré-industriais, André Leroi-Gourhan [1945] parece ter, em grandeparte, preparado o caminho. A sua ambição foi preparar, baseando-se no modelodas taxonomias das ciências naturais, uma tipologia geral das técnicas cujoscapítulos principais são os meios elementares da acção sobre a matéria(percussão, fogo, água, ar, força), os transportes, as técnicas de fabrico, astécnicas de aquisição (armas, caça, pesca, pecuária, agricultura, minerais), astécnicas de consumo (alimentação, vestuário, habitação). Os temas destescapítulos demonstram que a tipologia proposta por Milieu et techniques cobre todaa cultura material. Assim, tudo aquilo que Leroi-Gourhan pode apresentar a nível«técnico» é de interesse. Basta admitir que «tudo é técnica». Lendo Leroi-Gourhancompreende-se melhor o divórcio aparente entre história e técnica, na medida em

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que cada especialista tem uma ideia errada do domínio do outro: mesmo o antropó-logo tem reticências perante uma história que lhe pareça privilegiar os factospolíticos (e linguísticos). «A história, na imagem que dela em primeiro lugar impõe,é a história política; é, aliás, a única que justifica plenamente os seus métodoshabituais» [ibid., p. 324]. E precisamente esta história, em termos de áreas e deeras, que viria a impor às outras ciências humanas os quadros — as zonasintermédias — dentro dos quais deveriam funcionar para definir a linguística, aantropologia e a etnologia de um certo povo numa determinada época.

Pondo de parte o mal-entendido que pertence ao passado, a partir do momentoem que a história acolhe a cultura material e admite ritmos diversos, temposdiversos, de acordo com os fenómenos examinados, temos, no entanto, deperguntar ainda se a história aceitará os níveis propostos por Leroi-Gourhan e oscritérios de que se serviu.

O antropólogo começou por pôr em evidência as relações que se estabelecementre as técnicas. Quase nunca se reparou que quem possui o fuso possui tambémo movimento circular alternativo e que quem possui a dobadoura tem o moinho e otorno de oleiro. Já não se trata aqui de inventos, de processos isolados nascidos donada, mas, pelo contrário, de associações, aquelas associações que trazemcoerência ao fenómeno «civilização», tornando-o mais inteligível. Vem depois aideia de estádio, caracterizado pela posse de certas técnicas reveladoras: a noçãode estado técnico, de estádio, pressupõe a de uma evolução positiva, de menospara mais. Mas se é verdade que o termo ‘progresso* tem um sentido, é sobretudoneste domínio, o das técnicas, muito mais do que no campo da cultura material. Aideia de nível, de estádio, surge espontâneamente na mente do antropólogo,familiarizado com a evolução dos utensílios desde a alvorada da história dohomem. Mas ele também sabe que, depois do Homo sapiens, o homem biológicodeixou de evoluir ou, de qualquer maneira, a sua evolução é tão lenta que escapa àobservação. A capacidade craniana é hoje igual à do homem de Cro-Magnon. Apaleodemografia tende também a admitir que a longevidade (não, evidentemente, aesperança de vida) não é hoje maior do que era na Idade da Pedra. Logo, a únicacoisa a progredir foi o equipamento do homem. Mas isso não aconteceuuniformemente em toda a superfície da Terra e é provável que já existissem níveisdiversos desde os tempos pré-históricos. «Parece lógico admitir que os homens daIdade da Rena tenham tido os seus selvagens, pobres «primitivos» que ignoravamo propulsor e o arpão» [ibid., pp. 339-40]. A distância acentuou-se com o tempo,introduzindo uma hierarquia entre os grupos humanos.

A hierarquia técnica esboçada por Leroi-Gourhan engloba cinco estádios (de A aE definidos, o primeiro pela indústria, o segundo pela posse das três técnicas maisimportantes (agricultura, pecuária e metalurgia), o terceiro pela posse de, pelomenos, uma destas técnicas; com os dois últimos estádios, o número de técnicaspossuídas diminui: assim, os Australianos, que conhecem apenas as técnicas(significativas) de tecelagem e de entrançar cestos, estariam no quinto estádio.Dentro de um mesmo estádio introduzem-se, no entanto, algumas classes: «Semdeixarem de estar no estádio B, a China, a Coreia e o Japão passam (desde o

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início da nossa era até ao século XIX) do predomínio do bronze ao predomínio doferro, das loiças opacas às translúcidas, cada vez mais ricas e variadas, datecelagem com dois fios ao brocado em peça, etc.» [ibid., p. 349].

A classificação cautelosamente proposta em «L'homme et la matière» nãomerecia o silêncio com que foi recebida pelos historiadores. É certo que a podemoscriticar, recusar alguns dos seus critérios, acrescentar-lhe outros, mas deveremos,poderemos recusar o princípio em que se baseia? A definição de níveis técnicos,sobretudo quando não se põe de parte o consumo, assente nos critérios fixados porLeroi-Gourhan, parece um dos poucos caminhos que permitem que a história dacultura material fuja ao descritivo. É evidente que podemos sempre conceptualizar,partindo da cultura material e estudando as relações que a ligam ao níveleconómico, social, psicológico, ideológico... Mas isso significa sair do domínio quelhe é próprio, voltar a diminuí-la e considerá-la como um nível inferior da história.Reduzida a si mesma, não tem outra perspectiva senão introduzir uma certa coe-rência na confusão das suas manifestações e elevar-se a um certo nível deabstracção, elaborando tipologias e definindo áreas e níveis. A classificação e ahierarquia tentadas por Leroi-Gourhan eram talvez prematuras mas, no planometodológico, continuam insuperáveis.

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8. Dimensões da cultura material

Quando se introduzem modificações na cultura de um grupo humano, issoacontece por duas vias: a adopção de uma característica recebida de uma culturaestrangeira ou um processo interno. Mas dizê-lo não é suficiente, porque é bemevidente que o fenómeno de aquisição não tem nada de automático, é selectivo.Um determinado grupo só conserva, de uma cultura exterior, aquilo que lheconvém, talvez mesmo também no caso em que se exerce uma coacção: nãoestamos aqui a discutir as modalidades de aculturação, e um povo pode sempreaceitar ou recusar um novo uso ou um novo objecto produzidos pela moda ou pelatécnica. Temos de admitir que toda a cultura tem uma receptividade limitada. Seassim não fosse, inventos como o moinho de água ou o arado não teriam levadoséculos a conquistar o Ocidente, e o canhão teria sido inventado pelos Chineses,que conheciam a pólvora. De modo semelhante, as maneiras de vestir e os hábitosalimentares ter-se-iam rapidamente propagado em todo o mundo, dando-lhe umacultura uniforme, estandardizada, que nem mesmo o século XX, com os seuspotentíssimos meios de comunicação, conseguiu ainda impor-lhe.

Quaisquer que sejam as solicitações que dão à cultura material matizes variados,consoante os povos e as épocas, as diferenças que se estabelecem entre osgrupos humanos, justificando a definição de níveis ou estádios, conferem à culturamaterial duas dimensões: espacial e temporal. A estas duas dimensões convémacrescentar uma terceira, a dimensão social que, no interior de um mesmo conjuntohumano, introduz diferenças tais, que nos parece legítimo falar de níveis de culturamaterial que separam os grupos sociais. Estes níveis surgem dentro de um contextotécnico-económico que é, no entanto, uniforme: o capital técnico é o mesmo paratodos os grupos sociais, o que provavelmente induz a recusar a técnica comocomponente única da cultura material e como único critério de definição dos seuslimites.

A dimensão cronológica da cultura material exprime-se em termos de evolução,uma evolução extremamente lenta. Fernand Braudel insiste nesta imagem de umahistória da vida material que se arrasta, empírica, feita de permanências, derepetições. Uma história quase, mas não completamente, imóvel.

Assim, os estudos recentes sobre a arquitectura rural demonstram que, final decontas, a casa tradicional não existe. Para os etnógrafos, trata-se da velha casaque se supõe reflectir a tradição, porque não apresenta nenhuma das modificaçõesque o progresso contemporâneo impôs às casas vizinhas. Mas no século XIX aaldeia teria igualmente velhas casas e casas novas, sensivelmente diferentes entreelas. Será preciso recuar mais no tempo para chegarmos a uma casa ruralverdadeiramente fixada pela tradição? A arqueologia desilude essa esperança. NaBorgonha vitícola, a habitação rural do século XIV, descoberta pelas escavações deuma aldeia abandonada (Dracy), é um prenúncio da do século passado, mas não éidêntica. Os materiais e os volumes são os mesmos, mas o mesmo não acontecenem com a distribuição interior, nem com as aberturas e a pavimentação, nemsequer com a lareira ou o mobiliário. Quanto ao fim da Idade Média, as escavações

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efectuadas em Inglaterra descobriram uma casa rural feita de traves de madeira,mas chegou-se à conclusão que essa casa fora precedida, no século XIII, por umacasa de pedra que, por sua vez, sucedia a uma casa de madeira de outro tipo.Ainda antes disso, a casa rural foi talvez uma cabana semienterrada. O equilíbrioque os ecólogos do nosso tempo procuram no passado é um fantasma: o passadomaterial é feito de instabilidade, mas percorrido por movimentos tão lentos, que ohistoriador tem dificuldade em deles se aperceber.

Fernand Braudel aplicou à alimentação o seu esquema dos três tempos dahistória. Os banquetes principescos seriam neste caso o acontecimento. Aconjuntura é ilustrada pela austeridade imposta aos homens do final do século XVI,que situavam o país da Cocanha no tempo dos seus pais. A conjuntura longa érepresentada pela aclimatação das novas culturas, como milho, enquanto a longaduração estaria presente na alimentação actual, baseada na cultura dos campos:continuamos a estar em dívida com a revolução agrícola do Neolítico. Este mesmoesquema seria, sem dúvida, válido para outras componentes da cultura material. Nahistória do vestuário, o tempo longo seria o do material tecido, a conjuntura poderiaser o abandono das vestes compridas por parte dos homens, e os factores da modateriam, evidentemente, as características do acontecimento.

Estes movimentos de amplitude vária nem sequer intervêm ao mesmo tempo etocam de modo diverso os vários domínios da vida material. E, por isso, difícil aohistoriador circunscrever as mutações mais importantes, aquelas que alteram emprofundidade e por tempo considerável a civilização de uma região. Onde situar asgrandes viragens da cultura material do Ocidente? As cesuras propostas pelahistória política ou pela história das ideias são, evidentemente, inadequadas. Écerto que o Renascimento fez descobrir as muralhas dos castelos, viu o início daimprensa e a introdução de novos produtos vindos da América, mas estes aspectosserão ainda durante muito tempo apenas curiosidades, e os navios que atravessamo oceano não têm nada de revolucionário; acima de tudo, a vida das massas poucomuda. Diz-se que as verdadeiras transformações da cultura material estão ligadasàs da demografia. Assim, a época dos grandes arroteamentos, com a trans-formação da paisagem, a abertura de novos espaços, a conquista de novasenergias é também a época de um prodigioso salto demográfico. Mas os his-toriadores não estão ainda em posição de decidir se os progressos agrícolasprecederam e provocaram a multiplicação numérica dos homens ou se é o contrárioque acontece. Mesmo os estudiosos da pré-história perderam a sua segurança: jánão têm a coragem de fazer da revolução neolítica a resposta a uma pressãodemográfica e quase biológica. Mesmo a grande revolução do século XVIII tende aofuscar-se: os, progressos da maquinaria são evidentes na tecelagem, nasiderurgia, no uso do vapor, mas o que é que representam fora de Inglaterra? Serána verdade o século em que a vida venceu definitivamente a morte? Quanto à novarevolução agrícola, apesar do desenvolvimento das culturas de forragem, darotação quadrienal, do melhoramento das raças dos animais, hesita-se hoje emadmiti-la e colocar-lhe uma data.

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Porquê então diminuir inventos que se colocam entre estas pretensas ace-lerações da evolução material? Os tempos carolíngios assistem ao aparecimento edifusão de tantos progressos decisivos — como o arado de aiveca, a ferradura, quese segue ao estribo, o jugo e a rotação trienal —, que será talvez necessário datara revolução agrícola da Idade Média a partir dos séculos VIII e IX. E o tear depedal, a dobadoura, o relógio mecânico, a arma de fogo, que surgem entre o fim doséculo XII e o fim do século XIV, o arroz e o trigo mourisco, o feijão e o milho, quese adaptam ao Ocidente entre os séculos XIV e XVIII, todas essas conquistaspoderão ser consideradas de pouca importância para a vida material dos povoseuropeus?

Tendo tudo isto em conta, a única certeza continua a ser a de um progresso. Asrevoluções são duvidosas, as mutações bruscas, improváveis, mas odesenvolvimento da vida material é conhecido nas suas grandes linhas: é o de umprogresso contínuo em aceleração. Não é de admirar que, ao debruçarmo-nossobre um passado velho de alguns séculos encontremos apenas lentidão: a curvaé, no entanto, ascendente. Não é de admirar que os tempos que nos separam damáquina a vapor nos surjam envoltos na confusão de uma revolução permanente: acurva ascendeu e cresce cada vez mais rapidamente: segundo Rufflé [1976] épróprio da cultura, qualquer que seja o momento ou o campo considerado, seguiruma curva exponencial.

O progresso material é talvez o único progresso certo. Se é um facto que não háa mínima dúvida que o homem foi aumentando o seu domínio do mundo à medidaque passava a ser a espécie mais numerosa da Terra (pelo menos entre osmamíferos), não é tão certo que esse mesmo homem tenha aumentado o domíniosobre si próprio.

No entanto, muito embora limitado ao campo material, o progresso só é visívelglobalmente, na humanidade considerada no seu conjunto. E o peso dassociedades ocidentais neste conjunto é considerável e esconde talvez evoluçõesdiferentes, observadas em outras regiões do globo, culturas imóveis ou talvezmesmo regressões. Mais: a noção de progresso não parece ser universal. Algumassociedades ignoraram-na ou recusaram-na. O Japão, fechando-se a qualquerinfluência exterior, cultivou durante séculos o imobilismo. O caso da China é aindamais perturbador: depois de ter inventado tudo, viveu, a partir do início desta era,do adquirido, sem inovações, mesmo — e sobretudo — a nível da vida quotidiana.Pode ser que os Ocidentais, ao considerarem a história chinesa, sejam maissensíveis às permanências que às mudanças, porque estão atentos apenas àslinhas mais originais de uma cultura que lhes é, em grande parte, estranha. Resta ofacto de a China ter continuado a utilizar recipientes lacados, chibatas, encostosrígidos, espelhos metálicos redondos, esteiras de junco e indumentárias assi-métricas abotoadas ao lado, que aparecem já nas sepulturas dos príncipes dadinastia Flan. Entramos aqui no campo delicado das explicações, das iate-acçõesentre supra-estruturas e infra-estruturas, mas parece que a ideologia expressa pelafilosofia confuciana não foi estranha a este imobilismo geral da cultura material:uma inércia das supra-estruturas que se reflecte na vida material. Nem todas as

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civilizações têm da história a concepção evolutiva a que estamos habituados noOcidente e algumas delas substituem-na pela noção de ciclos fechados. Estasúltimas identificam a mudança com a desordem e a dor e fazem do imobilismo, dointangível, a condição da felicidade.

O estudo da cultura material na sua dimensão espacial pode ser encaminhadopara a análise das célebres «áreas culturais» e para a explicação das suasrelações recíprocas. As «áreas culturais» têm uma longa história na ciênciaantropológica: sede das escolas de pensamento — evolucionismo, difusionismo,funcionalismo —, basearam-se em parte em «provas» ou, de modo mais genérico,em argumentos extraídos da tecnologia e, em menor grau, La economia. Sabe-se,por exemplo, que o evolucionismo construiu em grande parte as suas tipologiashierárquicas baseando-se em níveis técnicos que individualizavam conjuntosculturais isolados; que o difusionismo ilustrou profusamente os contactos e oscontributos culturais com a difusão de técnicas ou de objectos materiais e que ofuncionalismo se preocupou em demonstrar a função das criações socioculturaispartindo essencialmente de objectos materiais, geralmente objectos de vocaçãotécnica que serviam para fabricar outros objectos. Mesmo se em cada uma destastentativas de explicação geral há algo que continua a ser válido, sabe-se agora quesão todas elas parciais e que necessitam, portanto, de ser integradas: de cada vezque recorrem a demonstrações baseadas na cultura material, elas confirmam serem parte exactas, mas insuficientes, e podemos pensar que o interesse daantropologia mais recente pelos sistemas simbólicos e de representação tenha sidoreforçado por esse facto. É certo que, precisamente por isso, o estudo das áreasculturais deixou em seguida um espaço maior aos fenómenos supra-estruturais, oque permitiu definir essas áreas de um modo mais completo, incluindo os domíniosmateriais e não materiais: constatou-se então com frequência que elas não têmverdadeiramente limites precisos, mas que se sobre-põem todas mais ou menos,conforme adoptemos o critério técnico, económico, religioso, linguístico, etc.Juntando assim os parâmetros não materiais aos parâmetros materiais, o estudodas áreas culturais tornou-se riais rico e apurado; mas parece que foi mesmo arigorosa cultura material que permitiu a sua aparição e lhe favoreceu as primeirasevoluções. preciso também dizer que esta dimensão espacial nunca pôde fugircompletamente, em antropologia, à influência da dimensão cronológica (e talveztenha acontecido o contrário). Assim, a ideia de diacronia aparece ligada, pelomenos, às doutrinas evolucionistas e difusionistas e, de modo mais limitado, aofuncionalismo (que pressupõe que um fenómeno cultural só pode existir enquantoassegura uma função efectiva no seu contexto): isto demonstra até que ponto estasdimensões espaciais e cronológicas são interdependentes e dialecticamenteligadas. Correlativamente, é evidente que o estudo da cultura material — e,portanto, dos objectos que a representam — não pode desenvolver-se, para ilustraras áreas culturais e as suas relações, senão num campo sincrético,simultaneamente espacial e temporal: excluir completamente uma ou outra destasdimensões significa talvez condenarmo-nos a deixar escapar uma parte darealidade objectiva.

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Se a cultura material agisse apenas no quantitativo, não teria, evidentemente,cabimento evocar uma sua dimensão social. Mas ela introduz também diferençasqualitativas, às vezes tão amplas que as duas extremidades da escala social nemsequer parecem pertencer ao mesmo mundo. As sociedades dos antigos estadoscoloniais da América Latina oferecem sem dúvida, a este respeito, as oposiçõesmais duras, mas o passado das nações ocidentais apresentaria facilmente níveis decultura material só ligeiramente menos contrastantes. No vestuário, por exemplo ofacto de vestir peles; na alimentação, provavelmente muito mais rica em proteínasonde as especiarias estavam largamente representadas; na habitação, melhoraquecida e iluminada; nas deslocações, que se faziam a cavalo; no seucomportamento quotidiano, o homem do castelo, da cidade ou do mosteirodistinguiu-se do «rústico» durante longos séculos. Hesitaríamos, no entanto, aodescrever minuciosamente estes contrastes, às vezes acentuadíssimos, outrasvezes tão ténues que não constituíam mais que simples matizes: os preconceitossão demasiados e é necessário examinar mais a fundo as vagas descrições da vidarural deixadas, por exemplo, pelos autores e pelos pintores do grand siècle, LaBruyere, Vauban, La Nain. Faltam ainda estudos rigorosos que permitam falar jánão em termos de pobreza e riqueza, mas de necessário e supérfluo, de normal eluxuoso, que permitam avaliar as diferenças através das quais se passa de umacultura material à outra. De qualquer maneira, parece ser legítimo falar de umacultura aristocrática e de uma cultura popular a propósito da vida material, como apropósito das representações e capacidades mentais.

Tais pesquisas não estão em contradição com a concepção de uma culturamaterial entendida como cultura de massas. A vida dos ambientes popularesdefine-se também pondo em evidência os contrastes que a opõem à das classesdominantes. Devemos porém incluir no âmbito da cultura material o estudo dosprodutos de luxo baseando-nos no facto de serem produzidos pelo trabalho dasmassas? É isso que parece pensar a ciência chinesa, que integra no estudo dacultura popular os túmulos aristocráticos ou imperiais com os seus ricos adornos:estes pertenceriam à cultura material porque construídos e fabricados pelo povo,embora a sua concepção corresponda, evidentemente, aos critérios e necessidadesdas classes dominantes. Existe aqui uma ambiguidade, uma extensão da noçãoque poderia ser perigosa, visto que os testemunhos do luxo são já privilegiados poruma longa tradição de pensamento, por uma expressa preferência da história e daarqueologia tradicionais; e são também valorizados pelo seu volume, pelo seumelhor estado de conservação devido à utilização de materiais menos perecíveis. Ahabitação aristocrática deixou vestígios mais eloquentes, mais evidentes do que osda habitação rural: não podemos pretender estudar a cultura material secontinuarmos a limitar as investigações à «vila» ou ao castelo.

Demasiado imprecisa para ser um conceito, a ideia de cultura material continua aser uma noção. Mas as obras, cada vez mais numerosas, que se referem a estanoção, bem como os ensaios epistemológicos a que dá lugar [Moreno e Quaini1976] atestam a sua vitalidade. Na realidade, a cultura material corresponde a umanecessidade actual das ciências humanas. Tem o atractivo de reunir, oferecendo-

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lhes um esquema, estudos dispersos, até agora mal integrados e sem estatutocientífico: as pesquisas sobre a vida quotidiana, por exemplo. Sem se identificarexactamente com a cultura material, a vida quotidiana decalca-a em grande parte,mas os estudos que lhe são dedicados conservam ainda um carácter marginal,mesmo anedótico. Nascida dos historiadores e sobretudo por eles utilizada, anoção de cultura material conserva, na história, toda a sua riqueza heurística. Podeainda conquistar terreno, exigindo a atenção do investigador para os aspectosconcretos da condição humana, para o homem, muitas vezes ignorado no jogo dosmecanismos económicos ou nas subtilezas da classificação social. É interessantepara o historiador marxista, porque põe em evidência as condições, as basesmateriais e técnicas do desenvolvimento dos sistemas socioeconómicos. Deveriater também sucesso entre os etnólogos, porque lhes lembra a importância das infra-estruturas. Mas, hoje em dia, oferece o melhor do seu programa ao arqueólogo. Aarqueologia descobre objectos concretos: sem impedir os desenvolvimentossugeridos pelas relações que se estabelecem entre estes objectos e que atingem onível das organizações sociais ou o das representações, a arqueologia será semprelevada, nas suas reconstituições, a privilegiar os aspectos materiais dascivilizações que estuda. Só graças a estes aspectos, cuja interpretação continua aser limitada e verificável, as suas análises atingem uma relativa segurança.

Deste ponto de vista, porém, o estudo da cultura material implica um risco, o deuma reificação da civilização. Mortimer Wheeler [1954] protestou contra a tendênciada arqueologia para materializar o humano, para passar da cultura do «machado deguerra» ou da cultura do «cálice» a unia espécie de personificação do machado deguerra ou do cálice. Ciência dos objectos, o estudo da cultura material tem de saberque o objecto tem mais que um significado. Um vaso não exprime apenas umatécnica ou uma função; pela sua forma, pela sua eventual decoração, correspondeigualmente a opções que são também de ordem supra-estrutural; pode, afinal, terum significado social, testemunhando simultaneamente um sistema económico.Mesmo se só a técnica e a função são de compreensão imediata e relativamenteevidente, é preciso não esquecer os outros significados que o objecto encerra. É,evidentemente, arbitrário fazer cortes como os que a noção da cultura materialinevitavelmente introduz na continuidade sociocultural. Mas esses cortes, essasclassificações arbitrárias, são uma necessidade intelectual: um dos processos damente para apreender o real é o de delimitar os seus campos. A noção de culturamaterial representa sem dúvida uma reacção excessiva que, no entanto, se opõe auma acção, também ela excessiva, a uma tendência durante muito tempoacentuada e já não justificada, que consiste em confundir cultura ou civilizaçãounicamente com os seus aspectos supra-estruturais. O seu papel é o de superarum atraso que se introduziu nas ciências humanas.

[R. B. e J.-M. P.].

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A noção de cultura material surgiu nas ciências humanas e em particular nahistória a seguir à formação da antropologia (cf. anthropos) e da arqueologia (cf.documento/monumento) e à influência exercida pelo materialismo histórico (cf.formação económico-social). Marca a sua distância em relação ao conceito decultura (cf. cultura/culturas), chamando a atenção para os aspectos não simbóljcosdas actividades produtivas dos homens (cf. símbolo), para os produtos e os uten-sílios (cf. utensílio), bem como para os diversos tipos de técnica (cf. em especialvestuário, habitação, agricultura, alimentação, cultivo, cozinha, domesticação, fogo,indústria, pesos e medidas), enfim para os materiais e os objectos (cf. objecto)concretos da vida das sociedades (cf. sociedade).

O estudo da cultura material privilegia as massas em prejuízo dasindividualidades e das élites; dedica-se aos factos repetidos (cf. ciclo, hábito,tradições), não ao acontecimento; não se ocupa das supra-estruturas, mas dasinfra-estruturas (cf. estrutura). Percebe-se assim como evoluiu sobretudo nospafses da Europa Oriental, entre investigadores predispostos a considerar de modoespecial a economia e o modo de produção. O homem também faz parte da culturamaterial; o seu corpo, enquanto transmissor semiótico (cf. signo) é igualmenteimportante para recompor o quadro geral de uma cultura ou de uma civilização, talcomo partindo de farrapos e moedas se pode delinear a cidade, a indústria e ocomércio ou a troca, o tipo de consumo das várias classes da população. Noentanto, os objectos materiais trazem consigo outras marcas inerentes às artes, aodireito, à religião, ao parentesco, que hoje já não são subvalorizados. Sóconsiderando este quadro de conjunto se pode individualizar o estado de umasociedade, o seu progresso (cf. progresso/reacção) e a sua evolução, vistos atravésdos utensílios. A cultura material tende, por fim, a lançar uma ponte para aimaginação do homem e pana a sua criatividade e a considerar como suas trêscomponentes fundamentais: o espaço, o tempo (cf. espaço / tempo) e o caráctersocial dos objectos. Embora seja ainda necessário defini-lo com mais exactidão eembora existam ainda nele algumas ambiguidades (cf. ambiguidade), o estudo da

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cultura material pertence à pesquisa histórica e com ela colabora através de ummétodo próprio pana reexaminar as espirais inerentes a todas as ruínas (cf.ruína/restauro) do passado (cf. passado/presente).

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