enciclopedia einaudi - parentesco - parte 2

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HOMEM/MULHER 164 que os homens. ~ para relações sociais sem referência no passado que nos orientamos. Isto projecta uma luz sobre os debates actuais e sobre o alcance das investigações que os antropólogos devem prosseguir com os historiado- res para reconstituir as razões e as formas objeetivas das relações entre as classes e entre os sexos, dado que o futuro não é nunca totalmente a repro- dução do passado, e aquilo que encontramos no passado não terá nunca a capacidade de evitar ou de autorizar inteiramente o futuro. [M. G.]. o Se é verdade que as relações de parentesco podem funcionar directamente como relações de produção (cf. modo de produção), tomando possível o controlo dos recursos, a organização da exploração da natureza e a redistribuição (cf. produçtlo/distribuição) dos produtos do trabalho, deve antes de mais dizer-se que esta não é uma situaçilo geral e que as relações de produção, sobretudo nas sociedades (cf. sociedade) de classes (cf. classes), apresentam-se e funcionam para além das re~ de parentesco. A famflia, quando é unidade de produçilo e de ccmsumodirecto, está submeuda a ambos os tipos de relação, até nos países socialistas nos quais a subordinação das mulheres aos homens subsiste, porque a economia doméstica continua a estar a cargo das mulheres. Para além.destas observações existe um princípio «II8tural»(cf. masculino/feminino, natureza/cul- tura), em que a fertilidade das mulheres (cf. sexualidade, nascimento), garantia da sobrevivência da espécie e do grupo, é um fenómeno central da relação homem/mulher, obtido ~través do mecanismo das .proibições» e das discriminações (cf. discriminaçtlo): basta pensar na proibição do incesto e no falso matriarcado das sociedades matrilineares. A subordinação das mulheres existe assim a três níveis: económica (cf. economia, reciprocidade/redistribuição, troca), simbólica (cf. anthropos, símbolo), mas também polftica (cf. também ideologia,seroo/senhor, exclustla/inte- gração), que assumem aspectos e formas do todo particulares nas sociedades consideradas «pri- mitivas» (cf. caça/coleeta, primitivo, selvagem!bárbaro/civilizado) que no entanto elaboraram for- mas de igualdade por nós desconhecidas. . MULHER Dicionários e enciclopédias defmem a1temadamente a mulher como fêmea do homem (Diderot, Tommaseo) ou, remontando à origem etimológica do termo, como senhora da casa (Larousse, Treccani). Ambas as defmições, ape- sar de aparentemente diferentes - incidindo a primeira sobre o aspecto natu- ralista, a segunda sobre a função historicamente determinada do sexo femi- nino -, consideram a mulher como uma entidade destituída de características próprias, unicamente defrnível em relação a outrem. Na Encyclopaedia Bri- tannica, que não propõe uma defmição precisa de mulher, a entrada women é seguida da especificação «education of», a de man de «evolution of»: o homem apresenta uma autonomia própria em evolução; a mulher é objecto de uma operação que remete para outros. Mesmo tendo em conta o facto de que, quando se fala de homem, se fala quer de homem quer de mulher, é todavia impensável, na nossa cultura, uma definição de homem como o macho da mulher, o que já nos diz alguma coisa sobre a possibilidade de existir uma reciprocidade entre os dois pólos. Esta oscilação entre definições aparentemente diversas parece, de facto, resumir o que a mulher tem sido considerada: fêmea do homem ou senhora da casa, ela resulta nalguma coisa para aquém ou para além do humano, de tal modo que a sua história existe ou enquanto história do homem que a engloba como objecto do seu desejo ou do seu poder, ou enquanto histó- ria da «casa»,como único objecto sobre o qual ela tem exercido a sua parte de poder e tem exprimido uma margem de desejo subjectivo. Mas a mulher, antes de ser a fêmea do homem ou a senhora da casa, é o ser humano fêmea, que existe para lá das funções que lhe são reconhecidas: a sua diferença natural em relação ao homem é tão autónoma como a diferença natural do homem em relação a ela. As definições que a consideram em termos par- ciais relacionando-a com outro são definições historicamente determinadas, na medida em que são ilações de uma história na qual a mulher teve um papel subalterno, relativo ao sujeito da sua subalternidade. A mulher nunca foi e nunca se considerou um sujeito histórico social, e é isto que torna difícil e quase impossível uma pesquisa antropológica que tente reconstituir as etapas da evolução da sua presença no mundo. Que história se poderá retraçar da fêmea do homem senão a do homem na qual a sua esteve sempre englobada? Que aspectos específicos individualizar nesta

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Page 1: Enciclopedia Einaudi - Parentesco - Parte 2

HOMEM/MULHER 164

que os homens. ~ para relações sociais sem referência no passado que nosorientamos. Isto projecta uma luz sobre os debates actuais e sobre o alcancedas investigações que os antropólogos devem prosseguir com os historiado­res para reconstituir as razões e as formas objeetivas das relações entre asclasses e entre os sexos, dado que o futuro não é nunca totalmente a repro­dução do passado, e aquilo que encontramos no passado não terá nunca acapacidade de evitar ou de autorizar inteiramente o futuro. [M. G.].

o Se é verdade que as relações de parentesco podem funcionar directamente como relaçõesde produção (cf. modo de produção), tomando possível o controlo dos recursos, a organizaçãoda exploração da natureza e a redistribuição (cf. produçtlo/distribuição) dos produtos do trabalho,

deve antes de mais dizer-se que esta não é uma situaçilo geral e que as relações de produção,sobretudo nas sociedades (cf. sociedade) de classes (cf. classes), apresentam-se e funcionam paraalém das re~ de parentesco. A famflia, quando é unidade de produçilo e de ccmsumodirecto,está submeuda a ambos os tipos de relação, até nos países socialistas nos quais a subordinaçãodas mulheres aos homens subsiste, porque a economia doméstica continua a estar a cargo dasmulheres.

Para além.destas observações existe um princípio «II8tural»(cf. masculino/feminino, natureza/cul­

tura), em que a fertilidade das mulheres (cf. sexualidade, nascimento), garantia da sobrevivênciada espécie e do grupo, é um fenómeno central da relação homem/mulher, obtido ~través domecanismo das .proibições» e das discriminações (cf. discriminaçtlo): basta pensar na proibiçãodo incesto e no falso matriarcado das sociedades matrilineares. A subordinação das mulheresexiste assim a três níveis: económica (cf. economia, reciprocidade/redistribuição, troca), simbólica(cf. anthropos, símbolo), mas também polftica (cf. também ideologia,seroo/senhor, exclustla/inte­

gração), que assumem aspectos e formas do todo particulares nas sociedades consideradas «pri­mitivas» (cf. caça/coleeta, primitivo, selvagem!bárbaro/civilizado) que no entanto elaboraram for-mas de igualdade por nós desconhecidas. .

MULHER

Dicionários e enciclopédias defmem a1temadamente a mulher como fêmeado homem (Diderot, Tommaseo) ou, remontando à origem etimológica dotermo, como senhora da casa (Larousse, Treccani). Ambas as defmições, ape­sar de aparentemente diferentes - incidindo a primeira sobre o aspecto natu­ralista, a segunda sobre a função historicamente determinada do sexo femi­nino -, consideram a mulher como uma entidade destituída de característicaspróprias, unicamente defrnível em relação a outrem. Na Encyclopaedia Bri­tannica, que não propõe uma defmição precisa de mulher, a entrada women

é seguida da especificação «education of», a de man de «evolution of»:o homem apresenta uma autonomia própria em evolução; a mulher é objectode uma operação que remete para outros. Mesmo tendo em conta o factode que, quando se fala de homem, se fala quer de homem quer de mulher,é todavia impensável, na nossa cultura, uma definição de homem como omacho da mulher, o que já nos diz alguma coisa sobre a possibilidade deexistir uma reciprocidade entre os dois pólos.

Esta oscilação entre definições aparentemente diversas parece, de facto,resumir o que a mulher tem sido considerada: fêmea do homem ou senhorada casa, ela resulta nalguma coisa para aquém ou para além do humano,de tal modo que a sua história existe ou enquanto história do homem quea engloba como objecto do seu desejo ou do seu poder, ou enquanto histó­ria da «casa»,como único objecto sobre o qual ela tem exercido a sua partede poder e tem exprimido uma margem de desejo subjectivo. Mas a mulher,antes de ser a fêmea do homem ou a senhora da casa, é o ser humano fêmea,

que existe para lá das funções que lhe são reconhecidas: a sua diferençanatural em relação ao homem é tão autónoma como a diferença natural dohomem em relação a ela. As definições que a consideram em termos par­ciais relacionando-a com outro são definições historicamente determinadas,na medida em que são ilações de uma história na qual a mulher teve umpapel subalterno, relativo ao sujeito da sua subalternidade.

A mulher nunca foi e nunca se considerou um sujeito histórico social,e é isto que torna difícil e quase impossível uma pesquisa antropológica quetente reconstituir as etapas da evolução da sua presença no mundo. Quehistória se poderá retraçar da fêmea do homem senão a do homem na quala sua esteve sempre englobada? Que aspectos específicos individualizar nesta

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história comum senão a hist6ria do seu corpo, dado que a reprodução foia única função que socialmente lhe foi reconhecida? Ou que história retra­çar senão a de uma sombra - cheia de peso e de significados, mas noentanto sempre sombra -, reflexo da hist6ria do homem, da sua subjecti­vidade, da sua capacidade de apropriação e de opinião sobre as coisas? Sea hist6ria do homem é a história dos altos e baixos do seu poder sobre anatureza e do poder de grupos de homens sobre outros homens, qual poderáser a história da mulher, presa do poder da natureza com a qual foi identi­flcada e objecto do poder do homem? De que poder foi ela o sujeito paraconseguir construir a sua pr6pria hist6ria?

A fêlllea do homem não tem outra hist6ria para além da história sempreidêntica da sua subordinação, e o ser. humano fêmea só há pouco começoua constI11í-la, tentando libertar-se dest~ sujeição. A sua hist6ria inicia-se nomomento em que a mulher principia 11 lutar pela conquista de uma huma­nidade completa nunca possuída; quando começa a medir-se consigo pr6­pria e com a realidade, a tentar modificá-Iae modiflcar-se. É uma luta radicalporque e~volve todos os aspectos da vida: é luta contra a natureza, contraa cultura, contra a assimetria do poder, pelo direito à pr6pria diferença,pelo direito a valores que - na sua eSq'avidão - ela conseguiu manter intac­tos, em nome de uma outra vida, de um outro mundo, de uma outra rela­ção. É à luz desta luta que se pode ver qual foi a história da fêmea doshomens, assim como é à luz desta luta que sé pode começar a entrever qualpoderá ser a hist6ria do ser humano fêmea.

1. A natureza

o princlpio masculino cria para conservar, o prin.

clpio feminino conserva para criar (Simone de Beauvoir).

A mulher é anatomicamente diferente do homem, assim como o homemé anatomicamente diferente dela. Mas enquanto o homem estabeleceu o seudireito a afirmar o seu ser diverso como um valor, a diferença da mulheré definida em relação ao homem, por defeito ou por excesso, relativamenteàquilo que o homem é.

Sustentar que a mulher provém de Adão (Adão, o homem criado porI) Deus, e Eva, a sua c6pia imperfeita) ou julgá-Ia anatomicamente um homem

I falhado significa negar-lhe um carácter específico natural para lhe imprimiruma natureza criada a partir de uma comparação: o que daí resulta não éa diversidade natural, mas aquilo em que esta se torna através do juizo quea relaciona como outro. Trata-se de uma diferença que se traduz logo emdesigualdade, de tal maneira que a mulher fica prisioneira de uma naturezamediada por esta comparação, que se torna hostil e inimiga, porque a desi­gualdade relativamente a qualquer coisa tem em si os limites e os modosem que se lhe consente que exista. É esta desigualdade que impede a uniãoda diversidade e que é a origem primeira da separação entre os sexos. O desi­gual é-o relativamente a um mais que pode deflni-Io, e nesta apreciação adiferença originária desaparece, submersa pelo valor que representará a suaverdadeira natureza.

É difícil reconstituir de onde advém ao homem este direito à sUa pró­pria natureza como valor absoluto: a história é infmnada por aquilo quesomos desde então, e é uma história na qual os papéis foram fixados exa­cerbando as suas diferenças naturais através dos diferentes valores atribuí­dos às partes. Se os maniqueístas pensavam que quando Deus criou o homemnão o tinha feito nem homem nem mulher, mas que a distinção entre ossexos era obra do diabo; e se alguns hebreus consideravam que o primeirohomem era andrógino e que um golpe de machado tinha separado os doiscorpo~, a hist6ria foi diabo e machadada ao exacerbar esta separação, consi­derando um dos corpos um ser humano e o outro um acess6rio deste. Masos princípios masculino e feminino são complementares: é da unidade destadiferença que nasce a vida. Não se pode criar para conservar sem que existaum elemento apto a conservar para criar. Em biologia, a tarefa do gâmetafeminino e do masculino é idêntica, se eles se fundem e se suprimem aocriar uma vida que os supera a ambos. Diabo e machadada são, de facto,a tradução desta diversidade biol6gica em termos de desigualdade, utilizandoa presumida passividade do princípio feminino como um menos qualitativo.

Mas será que esta desigualdade existiu sempre, ou houve um momentoem que teve início?

Se houve um tempo em que a mulher era igual, é um igual que a histó­ria apaga. São os mitos que falam de uma mulher senhora, amazona, guer­reira ou deusa das searas; mas deusa ou serva a mulher aparece sempre comoalgo para além do humano para que não possa ser humana. Mesmo no tempoem que era ela a primeira pessoa, que transmitia a linhagem através dosseus fllhos, a gensa que pertencia só existia através do fllho, e o matriar­cado, de que a história descobre sinais, na realidade não fala dela mas deela ser mãe de um fllho. É apenas o fllho que a legitima e lhe dá dignidadee é através do filho que adquire poder. A «grande derrotll» de que fala Engels- o declínio do direito materno, o poder adquirido pelo homem no reinoexclusivo da actividade feminina, a casa - destrona uma mulher que eraa mãe, mas nada diz sobre se era um igual, se o facto de ser ela a transmi-

t' tir o nome da sua gens significava alguma coisa que equivalesse ao mesmo. poder do homem, ou alguma coisa que agora se defme como «reciprocidade».Deusa ou mãe, esta mulher de tempos que a história não refere, e de quese tem conhecimento pelas lendas, pelos mitos, pela tradição e pelos ritos,parece existir enquanto via, percurso, corpo perpassado por uma presençaestranha, gesto feito em função dos outros, acolhimento de um sémen eexpulsão de um fruto, geradora de searas, de abundância, de vida - quetodavia não é sua.

Mas é-nos impossível formular uma hipótese sem utilizar juizos e cate­gorias que hoje são as nossas, que fazem parte da nossa cultura. Não sepode olhar para a pré-hist6ria e projectar os problemas que nos dizem res­peito: como falar da maternidade como alienação ou expropriação do corpo,relativamente a uma mulher que não tem consciência disso? Ou como falarde «alteridade», de falta de «reciprocidade», de falta de vida própria, se nãotemos elementos para dizer que coisa era - naquele tempo - a identi­ficação em termos de natureza e de corpo? S6 podemos fazer suposições

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- O próprio Engels fala de hipóteses - invalidadas pelo carácter que a his­tória imprimiu a estes problemas e pelo nosso conceito de igualdade que- no caso da mulher e do homem - só tem início quando a mulher começaa tomar consciência clara do facto de que, através dos séculos, nascer fêmeatem sido uma pesada condenação.

É o momento desta consciência, da recusa desta condenação que faz surgirsob novas cores o que a mulher tinha sido: o momento a partir do qualse pode começar a usar o verbo no passado, rompendo o fluir de um tempo;que é sempre presente porque é sempre igual a si próprio. É só a partirdesta consciência que a mulher sente o vazio da sua plenitude segUra ecomeça a ver a história com olhos diferentes e a senti-Ia como não sua.É como descobrir não se ter existido, ter acreditado existir, pensandol queaquela contínua azáfama para garantir a vida fosse mais importante que osempreendimentos do homem que com demasiada frequência têm nedessi­dade de morte. E apesar de, no fundo, ainda estar convencida disso, começaa sentir que não é ela a escolher o seu próprio destino e que, todavia,' nãopode fazer de outro modo porque quem distribuiu os papéis foi a na,t\jrezaou a história. Mas chegada a esse ponto não quer saber se a natureza foisua inimiga, porque é a história que quer mudar para unir o que a históriadividiu. Nascida inferior ou fabricada subordinada, deixa de fazer diferençase é a mulher a sair da tutela para se conquistar e se transformar a si ,pró­pria. Ter a confirmação de que o matriarcado tenha existido não é crhcialpara legitimar a nova consciência, de si própria que a mulher adquiriu: asexigências que nascem desta nova consciência propõem uma dimensãohumana ainda não vivida que não tem necessidade de reportar-se a um pre-

\ cedente para se realizar, mas que exige da mulher um conhecimento de si,i da sua própria natureza e do que a história dela fez.i Da natureza a mulher sabe apenas uma coisa, que se apresenta imutável

no tempo e que é a única a falar-lhe da sua história.Presa da espécie, transporta no corpo uma possibilidade contínua de tida.

É terra fecunda e, como a terra, participe do mistério da natureza: niêns­truos e procriação são obscuramente ligados ao ciclo cósmico peloq~al épossuída. Durante muito tempo o homem não estabelece uma ligação entreo acto sexual e a procriação, de maneira que a mulher representa a08 .seus

, olhos a plenitude autónoma de uma gestação contínua. O medo da' !)atu­I reza desconhecida, misteriosa e inimiga encarna-se nela: ela é natureza, ani­I mal, contingente, mistério e trevas. O caos do mundo está encerradd hela,

1,1 natureza hostil que só pode ser amiga ~e for dominada. Identificada coma terra nos ritos e nos mitos, aparece como algo a subjugar e a fec~\rtdar.

I A luta do homem com a natureza inclui-a portanto também, visto que edcarnaI e contém todos os seus medos. O homem já não terá medo de si mesmo,

da sua natureza animal, se a reconhece na mulher, de maneira que llloderásuperar os seus próprios terrores, submetendo-a. Plena como está da sua fun­ção essencial, bastará dominá-Ia para exorcizar os seus poderes, e quandoo homem aprende a subjugar a terra, a fazê-Ia frutificar de acordo com osseus desígnios e com os seus instrumentos, é também a ela que subjuga, por­que no domínio contém o mesmo mistério. O medo perante as forças

obscuras, das quais aos seus olhos a mulher faz parte, traduzir-se-á em forçae poder sobre uma natureza submetida e sobre uma mulher a quem com­pensará dos pesos com que a carregou e da humanidade de que a privou,com a sua protecção. Ela não é sua igual - é natureza dominada -, masserá ele a defendê-Ia, a protegê-Ia, a velar para 'que não seja perturbada nasua função essencial.

Se a mulher é natureza submetida ao seu poder, o homem poderá definir­-se como cultural, racional, espíritoj' transcendente, acção, ordem: esta seráa sua natureza, à qual gostará de escltpar para mergulhar e confundir-se nela,em quem encontra as suas raízes. Conservar para criar torna-se gradualmentediferente do criar para conservar: o ,instante parece vencer a continuidade,o espírito tem a ilusão de superar ~a imanência, ainda que um não possapassar sem o outro: porque o homem para sobreviver deve lutar contra asforças obscuras da natureza, de que a mulher constitui uma parte.

Quando o nómada se fixa para cultivar a terra e se apropria' dela for­jando os seus primeiros instrumentbs, a desigualdade e a sujeiçãd estão jáconfirmados: mulher e terra são submetidas aos desígnios do homem. Sãoprecisos fllhos a quem deixar a terta, são precisos fllhos para a élultivar ea mulher é importante por isto: parirá, criará os fllhos, cuidará da casa,dos campos, da tecelagem e será p~opriedade do homem como 6s filhos,a casa, os campos, os tecidos. Os p*péis doravante estão fixados: I>mundodiferente, inquietante e autónomo ,que a mulher representa já Mo metemedo, fechado entre as paredes da: casa, neutralizado por uma força quese apropria dele, delimitando a sua hatureza e as suas fronteiras. A mulhertorna-se tudo aquilo que está encerr.ado dentro dessas paredes, e li sua his­tória é a de um corpo cercado no interior de uma propriedade e anuladopor uma tutela. '

Corpo para o homem e para a procriação, a sua subjectividadlt é redu­zida e aprisionada numa sexualidad~,essencialmente para outrosl corpo deque já não é dona, à volta do qual se centra uma vida que não pode sersenão a história de uma expropriação'.A sexualidade da mulher -,enfatizadae exaltada como função essencial -, deve ficar contida no interior de limi­tes que impedem que sexualidade; e reprodução sejam verdadeiramente«suas». Que seria do homem se se~alidade feminina e procriaçã~ tivessemsido «da» mulher? De quem são os ftlhos que dá à luz? Que garailtias temo homem de ser o pai do ftlho? A' Ihulher tem a certeza da sua' materni­dade, mas ao homem, se a mulher 41ivre, só resta a dúvida. São as cercas, ,os muros, os limites que podem dar esta certeza: a prisão, a reclusão,a escravidão. E o homem encarcera-a e fá-Ia escrava porque é sua, mas sobre­tudo porque devem ser seus os filhqs ,a quem irá deixar a propriedade. Nãose pode arriscar a passar os bens a ftlhos que não são seus e permuta acontinuidade da propriedade com a ~iberdade da mulher que deverá ser vir­gem e depois fiel.

Superada a fase do direito materno, os raros momentos históricos nosquais a mulher é mais livre coincidem com a ausência da propriedade pri­vada, de maneira que a história da sua expropriação e da sua escravidão,assim como está ligada à variação do valor da maternidade, está ligada

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- no decurso dos séculos - ao destino da propriedade. Comprada, ven­dida, expropriada dos seus haveres, desposada sem o seu consentimento,repudiada em caso de esterilidade, lapidada em caso de adultério, subordi­nada ao pai e posteriormente ao marido como parte do seu património eoferecida à Igreja para que este se conserve nas mãos dos machos, enfaixam­-lhe os pés para ser mais frágil, tapam-lhe o rosto para não ser vista,encerram-na no gineceu para que não possa ver, cortam-lhe o clítoris paraque não possa ter prazer, cosem-lhe qs genitais ou impõem-lhe um cinto

de castidade para que não possa trair, ~ueimam-na para que não possa falarao homem dos mistérios do mundo dI! que provém e que quer esquecer.

Este é o símbolo de milénios da h+s~óriadurante os quais a mulher aco­lhe, abraça, contém, garante a continuidade, mas também propõe de novoao homem o mundo da imanênciall que ele tem a ilusão de escapar,aprisionando-a e a que pode renunciar porque é sempre ela a garanti-Io:ela, que continua a gerar a vida sem pdder intervir para a transformar, per­manece através dos séculos testemunha li juiz daquilo que o homem faz desta

vida, garante do seu significado mais' essencial.

2. A culturaCabe-te dar a conhecer, por meio do teu respeito,

que ele é senhor: fá-lo ser grande com a tua humil·dade (São Jerónimo).'

Subjugada no interior das paredes da casa, confirmados os papéis pelarígida divisão do trabalho, a mulher é objecto da lenta erosão da históriaque - até ao momento da tomada de cpnsciência da sua condição - a anula,negando-lhe espaço, subjectividade, autonomia.

Uma vez subjugada, o homem tem o poder de a definir. No Génesis,

Adão é explícito: «Estes ossos dos mCJlsossos, esta carne da minha carne,tomará o nome do homem, dado que 'foi tirada do homem». Mas defini-Iasignifica criá-Ia à imagem das próprias necessidades, porque quem tem opoder tem sobretudo a faculdade de estabelecer quem é o outro, quais as suasexigências, quais os limites das suas expectativas e das suas aspirações, porconseguinte qual é a sua natureza em 'relação com aquilo que se quer queseja. Esta faculdade de definir o outro de que o homem dispõe com baseno poder já assumido sobre a mulher fará dela um objecto à mercê das suasnecessidades: objecto que terá natureza e caracteres próprios, vari~veissegundo o variar dessas necessidades. A mulher será frágil, dócil, despreo­cupada, maternal, âncora segura, seguro ancoradouro, mãe do ftlho e dohomem; mas - simultaneamente - deverá ser corpo, objecto sexual, fontede sedução, de desejo: mulher e fêmea. Se for uma destas coisas, ser-Ihe-ácensurado que não seja a outra; se for uma e outra, deixará de saber quem é.

A imagem ideal a que a mulher se deve conformar para existir oscilaentre dois pólos, negando-a ambos: mãe dedicada a outros ou objecto dosdesejos alheios, a sua existência é justificada por quem determina os modosem que pode ou deve exprimir-se. A cultura actua impondo qual deve ser

a sua natureza que - criada à imagem de necessidades que não são suas ­não pode senão ser-lhe hostil. Percorrer de novo as etapas essenciais destacultura dá-nos uma medida daquilo que o poder pode fazer; da determina­ção constante em produzir uma dependência sem paralelo na história dohomem, apesar de ela ser a história do poder de um sobre o outro. Mitos,religiões, filosofia, leis, literatura e ciência dão as mãos para produzir esteideal de mulher - fêmea ou mãe, anjo ou diabo, fonte de vida ou de males,portadora de dons ou de culpas - elevando-a ao céu ou precipitando-a noInferl).o, sem nunca a admitir na Terra, onde vive como estranha.

Nós mitos dos Gregos, Pandora, criada por Zeus, tem a tarefa de arrui­nar os homens: «Tu regozijavas-te por teres roubado o fogo e por me teresengaqado, mas isso será para teu mal e dos homens futuros. Na verdade,eles receberão de mim, em troca do fogo, um mal de que se alegrarão,rodeando de amor aquilo que constituirá a sua desgraça» (Hesíodo). Esteé o castigo de Zeus a Prometeu, e Pandora será portadora de males e demorte. No Génesis, Eva é a causa da expulsão do Paraíso e da ira do deusque transforma a vida dos homens numa condenação de que ela será a res­ponsável. Na tradição cristã, Maria será a mãe do ftlho de Deus e resgataráa culpa de Eva, mas deverá ser virgem e a sua concepção será imaculada,confirmando assim simbolicamente a identificação da mulher, no sexo, como pecado.

Será o eco do poder misterioso que a mulher detinha e de que o homemaprendeu a defender-se subjugando-a e anulando-a? A mulher só poderá res­gatar a culpa - culpa de ter nascido e de representar a parte da naturezadesconhecida - aceitando as regras de um jogo imposto pelo homem que,de vez em quando, lhe transmitirá as mensagens de Deus e lhe dirá o queé e qual deve ser o seu lugar:

E Deus disse à mulher: «Eu multiplicarei as tuas fadigas e as tuas gesta­ções. Darás à luz os teus ftlhos na dor. Ficarás sujeita ao poder do machoe ele dominar-te-á» (Génesis).

Tu és a porta do diabo, és aquela que quebrou o sigilo da árvore, ésa primeira violadora da lei divina (Tertuliano).

É isto, sobretudo, que a vontade de Deus determinou para o homem:que a mulher mereceu ter o marido como senhor, não por natureza maspor culpa (Santo Agostinho).

Durante a infância, uma rapariga deve estar sujeita à autoridade do pai;na juventude, à do marido; e quando o seu senhor morre, à dos ftlhos: umamulher nunca deve ser independente. .. Por muito que um marido possaestar longe de todas as virtudes ou ser libertino ou desprovido de boas qua­lidades, uma mulher fiel deve adorá-lo sempre como a um deus (C6digo deManu).

As vossas mulheres são um campo para vós: ide, pois, ao vosso campocomo mais vos agradar (eorão).

Deus fala pela boca dos homens, e por isso a sua palavra é injusta e cruel.O nome que eles deram à mulher - campo, pecado, culpa -, o nome dos

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seus medos, torna-se mnldiçao divina que ela deve expiar. Acusada de cul­pas que s6 o mito inventou - a maça, o paraíso perdido, a boceta dosmales - continuará a pagar durante milénios.

Se não basta a voz de Deus, é a razão do homem que lhe explica o queé, como é, de onde deriva a sua enfermidade, que lugar deve ocupar:

Há um princípio do Bem que criou a ordem, a luz e o homem; e háum princípio do Mal que criou o caos, as trevas e a mulher (Pitágoras);

Se acontecer que ela deixe de lhe agradar. .. mande-a embora de casa(Deuteronómio) .

Se [as mulheres] porém não sabem nada, é a pr6pria limitação do seuespírito que as afasta de fantasias lascivas... seria bom fazê-Ias estar s6 comanimais mudos (Eurípides).

Deve afIrmar-se que convém aos machos o que é elevado e que tendepara a coragem; mas o que, pelo contrário, tende para a modéstia, paraa ponderação e para a temperança, seja no nosso discurso seja nas leis, deveapresentar-se como pertencente ao género feminino (Platão). ,

A mulher é como um homem estéril. De facto, a fêmea é marcada poruma impotência. .. O macho fornece a forma e o princípio da mudánça;e a fêmea, o corpo e a matéria... Nas relações do macho com a fêtnea,um é por natureza superior, a outra inferior; um comanda, a outra é coman­dada - e é necessário que entre todos os homens seja assim ... O corpotem origem na fêmea, a alma no macho (Arist6teles). ,

Se surpreenderes a tua mulher em adultério, matá·la-ás impunententesem processo; se fores tu a trair, ela não te tocará nem com um s6 dedo(Catão).

A mulher aprende em silêncio, com toda a submissão. Visto que nãopermito que a mulher ensine nem que tenha autoridade sobre o homem,mas quero que fIque tranquila. Porque Adão foi o primeiro a ser formadoe Eva depois, e Adão não foi seduzido; mas a mulher, tendo sido seduzida,caiu em transgressão. Contudo será salva criando fIlhos, se perseverar nafé, no amor e na santifIcação (São Paulo).

O homem é a cabeça da mulher, do mesmo modo que Cristo é a cabeçado homem ... A potência de geração na fêmea é imperfeita em relação àpotência de geração que existe no macho (São Tomás). '

Adão foi levado a pecar por Eva e não Eva por Adão. É justo que amulher aceite como senhor aquele que ela induziu a pecar (Santo Ambt?sio).

A v6s falei, jovens mulheres, I que tendes os olhos de belezas orriados II e a mente de amor vencida e pensattva (Dante).

A fêmea tem menos fé que uma fera, I raiz, ramo e fruto de todo o mal, II soberba, avara, tola, louca e austera, I veneno que corrompe o ãmitgo docorpo, I iníqua estrada para a porta infernal; I quando se chora, pica maisdo que o escorpião (Cecco d' Ascoli).

Costumava, longínqua, no sono consolar-me I com aquela sua doce angé­lica vista. I Senhora; ora me assusta e me entristece, I nem de dor nem demedo posso valer-me (Petrurca).

Em princípio a natureza deu ao homem espírito orgulhoso e elevado,enquanto fez a mulher humilde e submissa (Boccaccio).

Mulher. .. não convém que tu estejas de outra maneira que não sejade cabeça baixa e inclinada para fIcares sob a cust6dia do homem ... Sem­pre que estiveres na igreja deves andar com a cabeça baixa e coberta. Sabesporquê? Para não fazer cair ninguém em pecado (São Bernardino).

E todas as mulheres têm pouco cérebro; e mal há uma que sabe dizerduas palavras, apregoa-o, porque em terra de cegos quem tem olho é rei(Maquiavel).

Não está bem, e por muitas razões, que uma mulher estude e saiba tan­tas coisas (Moliere).

A mulher é feita para se sujeitar ao homem e para suportar até a suainjustiça. .. a mulher é feita especialmente para agradar ao homem; se ohomem por sua vez deve agradar-lhe, essa necessidade é menos fundamen­tal, visto que o seu valor reside na força, visto que ele agrada justamenteporque é forte. Essa não é a lei do amor, reconheço; mas é a lei da natu­reza, anterior ao pr6prio amor (Rousseau).

Oh! Celia, Celia, Celia, shits! (Swift).Todas as mulheres e, em geral, todos os que para assegurar a sua exis­

tência (para o seu sustento e para 4 sua protecção) não dependem da inicia­tiva própria mas das ordens dos oUtros (a não ser da autoridade do Estado)carecem de personalidade civil e li sua existência é de certo modo apenasinerência. .. A mulher não se prebcupa com a castidade do homem antesdo casamento; pelo contrário, paia o homem, a da mulher é muitíssimoimportante (Kant).

O destino de uma mulher é ser como uma cadela ou como uma loba:deve pertencer a qualquer um que a deseje (Sade).

A mulher não pertence a si pt6pria mas sim ao homem. .. o homem.é o administrador de todos os seus direitos... ele é o seu representantenatural no Estado e na sociedade inteira. .. A mulher não pode sobretudoconfessar a si pr6pria o instinto sexual, a satisfação do seu instinto sexual;e como, afmal de contas, qualquer' instinto deve no entanto ser confessado,este instinto não pode ser outro ~enão o instinto de satisfazef o homem(Fichte).

É improvável que as mulheres possam ter recursos sufIcientes para pro­verem ao sustento dos filhos. Quando por isso uma mulher se liga a umhomem sem estipular com ele um ,acordo relativo à sustentaçãó dos pr6­prios filhos, se o homem, consci~nte das difIculdades com que se podedefrontar, a abandona, estas criança~ deverão necessariamente set mantidas

a expensas da sociedade ou então n~orrer de fome. E para prevertit o recursofrequente de uma situação tão lamentável como esta, os homerls poderãoacordar entre si puni-Ia com a desonta, visto que seria bastante injusto punirum erro tão natural com uma coaação pessoal ou infligindo uma pena. Poroutro lado a transgressão é bastante mais 6bvia e evidente na mulher, e sãomenores os riscos de erro. Nem lIempre se consegue saber quem é o paide uma criança, mas é difícil que exista uma tal incerteza com respeito àmãe. Decidiu fazer-se recair a parte maior de responsabilidade onde é maisclara a prova da trangressão e onde ao mesmo tempo seria maior o prejuízopara a sociedade (Malthus).

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As mulheres podem ter boas ideias, gosto, delicadeza, mas não têm oideal. .. O destino da jovem reside, essencialmente, apenas na relação docasamento (Hegel).

Uma velha, isto é, uma mulher que já não é menstruada desperta a nossarepugnância. Juventude sem beleza tem sempre ainda atractivo; beleza semjuventude não tem nenhum ... A fidelidade no homem é artificial, na mulheré natural (Schopenhauer).

E recolhe no polido armário I a brilhllnte lã, o linho branco como a neve, II e junta ao bom, o esplendor e a lua I e nunca descansa (Schiller).

O sexo amante tem menos necessidlide do que nós da imortalidade sub­jectiva, da qual parece essencialmente desprovido (Comte).

A mulher casada é uma escrava que é preciso saber põr num trono(Balzac).

A mulher explica as coisas finitas, o homem vai à procura das infini­tas ... Uma relação negativa com a mulher pode tornar-nos infinitos; umarelação positiva torna o homem tanto qJlanto é possível finito (Kierkegaard).

O homem deve afligir-se com o mundo e com a vida; a mulher, como homem (Hebbel).

(Hortrude) é uma mulher que não conhece o amor. Com isto está tudodito, e é a coisa mais terrível. A sua natureza é política. Um homem polí­tico é repugnante, mas uma mulher política é horrível: eu tinha de repre­sentar esse horror (Wagner).

... Que se mais macios I e mais finos os membros, ela o espírito I menoscapaz e menos forte também recebe (Leopardi).

A felicidade do homem diz: eu quero. A felicidade da mulher diz: elequer ... Enredar-se na questão de fundo «homem-mulher», negar, a esserespeito, o antagonismo abissal e a necessidade de uma tensão eternamentehostil, sonhar talvez direitos iguais, uma educação igual, iguais exigênciase deveres; tudo isto é um indício típico de um espírito superficial ...O homem deve ser educado para a guerra e a mulher para o repouso doguerreiro; tudo o mais é tolice (Nietzsche).

Hesita em dizer-se, mas não podemos esquivar-nos à ideia de que o níveldo que é eticamente normal para a IÍlUlher seja diferente (Freud).

Que a mulher exista não significa portanto outra coisa senão que o homemafirmou a sexualidade. A mulher é somente o resultado desta afirmação,é a própria sexualidade. .. O animal não tem mais realidade metafísica doque a autêntica mulher; mas não fala e por consequência não mente (\Vei·ninger).

A semicriminalóide inócua que é a mulher normal... a sua estupidezdolorífica e darwiniana, para não dizer teológica; ela explica-nos porque éque volta a cair tão facilmente na gravidez apesar das dores do parto e ape­sar de tomar tão pouca parte nos prazeres do amor. O homem não fariao mesmo (Lombroso).

Nestas palavras sempre iguais do homem passam milénios de história,mas a mulher - da qual o homem continua a falar - reflecte-se idênticana idêntica imagem que pelos séculos fora permanece imutável. Mudam ossímbolos, a linguagem, a paisagem, a união dos grupos sociais, as formas

de domínio, a face do poder: mas, para o homem: a mulher é a mesma.~elegado por Deus, pela razão ou pela ciência, é sempre ele a defini.la à

l1~age~ das s~a~ pr6prias ~ecessidades que variam com a variação da suahIstóna. A relI?Ião ou .0 ~to querem-na submetida, inventando a culpa;a filosofi~ consIdera-a mfenor e chega a discutir se terá uma alma ou seserá destItuída ~ela; a lei não a considera como pessoa jurídica e impõe-lheuma tutela; a lIteratura não sabe se a há-de vestir de anjo ou de dem6niopara não lhe emprestar a máscara da «persona»;a ciência - de modos diver:s~s e com palavras diversas - defme o seu estado de inferioridade fisioló­gIca. f; uma orquestra de vozes que, no decurso dos séculos transmitem

1I a ~estna mensagem: os limites que a natureza te deu são int;ansponíveis,I ace!ta o lugar que te é reservado e serás agradável ao homem que te queri assIm.

O que é ~ue muda do Gorão a Rousseau, do Génesis a Santo Agostinhode Catão a FIchte, de Rousseau a Nietzsche, de Pitágoras a Lombroso? U~todos. as mesmas palavras para que a natureza, contra a qual todavia ohomem sempre lutou, exprima na mulher o seu pleno poder. Apenas escravada ~atureza, a mulher será escrava das necessidades do homem; mas deverásentIr-se .escr~~a~a natureza para aceitar ser escrava do homem; deverá senti­-Ia .hostIl e mIm1ga~para ser sua prisioneira. E o deus do Génesis por certoo tInha compre~ndI~o quando lançava a sua dupla mensagem: gerar a vida- por ele própno c~13dacomo o bem supremo - será uma condenação quea m~her deve expIar se tem de estar «sujeita ao poder do macho que adommará».

Mas o facto deo homem ter tido necessidade da palavra de Deus paraconfirmar o seu poder. significa .alguma coisa sobre a incerteza desse poder,q~~ portanto não. ?eVIa ser aSSImtão «natural», visto que precisava da leidIVma para o legItImar. Ou seria a desigualdade natural entre o homem ea mulher tão. pesada que levou o homem a inventar a maldição de Deuspara dar sent~do.à mulher e à sua sujeição? Mas então, porquê o esforço~ue, de há ~émos, os homens fazem para justificar o seu domínio e legi­tImar a deSIgualdade, se a desigualdade já é natural?

~sta insistência em ~efmir os limites que a natureza impôs à mulher fariamaIS pensar num conflIto perpétuo, no qual o homem continua a afirmara sua superi~ridade natural (física, moral, intelectual, espiritual) sobre umamulher dommada - que se cala, mas tem um poder subtil que não precisade ser .expresso. Se esta superioridade fosse assim tão natural o homem~o ten~ falado t~nto, .não teria sido constrangido a definir em 'que modose supenor. HaVIa ~vIdentemente alguma coisa que devia desmenti-lo:a. mulher ,e a neceSSIdadeque o homem tinha dela, igual à que a mulhertInha dele. É esta necessidade recíproca que continua, pelos séculos foraa colocar o problema nos mesmos idênticos termos: é esta necessidade reci:

proca qu~ é ,natural e que propõe de novo a mulher - anulada, subalterrrl­~ad~, opnmIda - c?mo um sujeito que continua a renascer para ser reob­JectIvado no domímo.

. Sub?rdinada. e ~encida, a mulher conserva este carácter de necessidadeImpossIvel de elImmar, e o próprio homem precisa de a elevar a sujeito, no

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momento em que a humilha e rebaixa a complemento das suas própriasnecessidades. À medida que estas necessidades se individualizam, passandoda relação puramente carnal e contratual para as exigências mais globais deuma subjectividade que se vai diferenciando do grupo, é o homem que ­no mundo de valores que vai produzindo e pelo qual simultaneamente éproduzido - procura uma complementaridade rejeitada por ele próprio, malcomprometa o seu poder seguro. Do casamento combinado e imposto combase na tutela do património - tal como se apresenta em traços largos arelação homem-mulher até ao fIm da Idade Média - ao encontro amorosoespontâneo e reciprocamente consensual que caracteriza a relação ~rótica«moderna», é o homem que se eleva, elevando a mulher, enquanto ela con­tinua a representar a resposta adequada às suas necessidades que vãomudando com o mudar dos valores e da vida social. Consensualidadel amorespiritual, amor cortês, ardor impetuoso, amor romântico, amor paixãci, com­plementaridade permanecerão no interior destas necessidades, dado que éo homem, condicionado pela cultura e pelas estruturas de poder qUe vãomudando, que continua a criar o ideal de mulher correspondente aos novosvalores, à nova cultura e às novas estruturas de poder: mãe sublimada eassexuada na visão cristã, mulher angelizada e idealizada pelas vozes do «doceestilo novo», remetida à opulência da carne no Renascimento, apat~cedenovo sublimada na perspectiva psicológica do drama romântico. A mulhercontinua a calar-se: abraça e consola ou faz troça e maldiz, mas nlio falade si e não luta. Uma voz isolada ou um qualquer destino difererlte nãobastam para mudar a história: a mulher continua a corresponder a unia qua­lidade, que continua a mudar, de necessidades que não são suas, tOrbando­-se de todas as vezes diferente, mas sempre idêntica à imagem que foi inven­tada. A gama· de possibilidades no âmbito desta invenção alarga ou reduzo espaço, mas não depende dela, mesmo continuando ela a existir e á repre­sentar o pólo de uma contradição que não se pode sanar facilmettte.

A inexistência constante em defInir os limites naturais dentro dos quaisa mulher deve desempenhar o seu papel é o sinal mais explícito deste con­flito contínuo que o homem procura exorcizar através da dominação, semchegar a resolvê-Io: porque resolver este conflito conservando o domínio sig­nifIcaria para o homem objectivar-se ao mesmo nível de quem foi objecti­vado por ele. A necessidade que o homem tem da mulher - igual àquelaque a mulher tem do homem - determina o evoluir da qualidade desse con­flito que nllo pode senllo resolver-se npma relaçllo entre iguais. A lerlta evo­luçllo desta relação, que acompanha o nascimento dos novos conce~tos bur­gueses de igualdade e de paridade formal, não pode senão resulvar numaigualdade e numa paridade reais, como única garantia para o horl1em deuma reciprocidade humana com a mulher e com os outros homens: Iaihuma­nidade do homem ainda não alcançada medir-se-á pela sua capacidade deviver com ela numa relação natural como «igualll, como expressão· da suacapacidade de viver com a natureza, com o outro e consigo própril'>.É por­tanto a mesma necessidade do homem que, seguindo a evolução da sua his­tdria, a pouco e pouco se enriquece de novos elementos até exigir umamulher diferente, q[ue seia sua companheira e sua igual; mas é esta necessi-

. .dade que ao mesmo tempo colide com o medo de perder o seu poder, detal modo que o homem acaba por se encontrar a vacilar entre aquilo quequer e que não quer. Neste sentido, a natureza de que a mulher é escravatranquiliza-o todas as vezes quanto a esse poder e de todas as vezes lhe servepara tornar a pôr o conflito sob controlo, voltando a separar aquilo que,para as suas próprias necessidades, se estava aproximando.

Mas o carácter de recíproca necessidade que produz o conflito podetornar-se uma arma nas mãos da mulher. Como a natureza - submetida

aos desígnios de homem - se vinga,libertando-se dos constrangimentos queeste lhe impõe, a mulher, em cativeiro, elabora técnicas de defesa e de ata­que, reivindicando a própria existência como ser humano, ou instrumenta­lizando a seu favor a situação a que se encontra constrangida. São estasdefesas que vão alimentar o conflito entre dois pólos que oscilam perma­nentemente entre a recíproca necessidade natural e a prepotência de um sobrea outra imposta como natureza. Mesmo se este conflito variar de acordocom a variação do valor dado à «nâtureza» e da medida em qUé a mulherse puder aí reconhecer e identifIcar, o homem terá de se haver com uminferior que não é para ele um companheiro e que, como em todas as situa­ções de subalternidade, procurará tirar do seu senhor o maior proveito.

A mãe será frequentemente umal fIlha incapaz, que transferirá a autono­mia de que foi privada para uma dependência pesada para o homem; a tutelaque a incapacitou e que criou a sua enfermidade produzirá uma criança quejogará com a sua menoridade para daí tirar vantagem; a incorporação depassividade e de fraqueza, defInidas!como sua natureza essencial, criará umente inferior que reagirá à sua própria impotência com a chantagem e coma tirania; o poder que só pode exercer na casa e sobre os fIlhos tornar-se-áum torno no qual todos serão esmlfgados e devorados; a fIdelidade que sódela se exige torná-Ia-á caprichosa, ,astuta e mentirosa; a beleza, .cnfatizadacomo seu dote principal, será a vingança e o seu poder sobre d homem,

dos quais o seu corpo será o instrpt,nento, e o sexo reunirá vítifua e car­rasco num jogo de que nllo se sabe quem seja o vencedor. Mas serva dócile submissa, cortesã intriguista ou prostituta, amante cruel e diabçlica, queaceite ou tenha a ilusão de zombar tias regras do jogo, a mulher permanecedefInida no interior destas regras onde o seu lugar - qualquer qUe seja ­já foi designado em funçllo do homem. Se o domina por meio do seu pró­prio corpo, é sempre, contudo, attavés do prazer que isto dá ao homemque conseguirá dominá-lo; e se escarnece dele ou dele se aproveita, é como preço da sua identidade, da sua própria venda e degradação que conse­gue realizar a dominação. Não terldo o direito de ser humana, a mulherapenas pode ser ou sub-humana ou desumana.

Educada a não pensar, a mulher é defInida como estúpida por natureza;estimulada a ser bela para prazer do homem, é julgada, por natureza, frí­vola e sexualmente insaciável; impedida de participar e de influir na reali­dade social, lançam-lhe à cara a s'ua inabilidade e incapacidade naturais.Prisioneira dos limites que lhe foram criados, não pode ser senão natural­mente limitada. Aceitação e adaptação ao seu papel, segundo a natureza, pro-

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duzem, portanto, um «negativo»natural, mas também a recusa e a rebeliãofazem parte dessa mesma natureza, no momento em que - julgadas não­

-naturais - estas atitudes são estigmatizadas e perseguidas como expressãode uma anomalia e não de uma subjectividade que tenta exprimir-se. A arma­dilha em que a mulher se encontra aprisionada alarga gradualmente asmalhas, mas cada novo elemento recai no interior da natureza de que é pri­sioneira, aumentando o palco que cobre a diversidade original - usado apartir daí como oportunidade para cOflter o conflito.

Quando não são as tradições ou as religiões, é a lei a definir à mulherqual é a sua natureza; quando não são as leis, são os costumes a impor-lhe

uma conduta segundo a sua natureza, qe tal modo que a função mais explí­cita da c~ltura permaneceu, durante sétulos, a de alargar ou restringir arti­ficialmeQte os limites desta natureza, sem nunca encarar de frente o pro­blema central da diversidade natural,' utilizada unicamente com vista àdominação. Tutela e protecção podem ter sido medidas capazes de com­pcnsar e~ta diversidade original dc funções e de papéis, mas traduziram-senuma mfJ;limizaçãoquando o valor dll~tas funções e destes papéis foi defi­nido como diferente, de tal modo que ~ diferença natural cresceu e alargouna meSma medida o fosso cavado Pclll fTIachadadado mito. Unidos e estra­nhos, ne<:,essáriosum ao outro mas peftencentes a dois mundos separados,o homem e a mulher continuam atravFs dos séculos a tentar conciliar esteconflito que, embora evoluindo com a evolução dos valores e da vida social,continua a colocar-se nos mesmos termos idênticos, até ao momento em quea pr6pria evolução dos valores e da vida social levar a mulher a tomar umaconsciência clara da sua condição e a começar a lutar.

3. A assimetria (1+ 1= 1)

Este processo de invenção da naturalidade da subordinação não será uti­lizado apenas para dominar a mulher. A diversidade natural representadapor outros elementos - cor da pele, raça, tradições e costumes diferentesdos do dominador, pobreza e miséria do dominado - será manipulada pelohomem para submeter o homem, através do mesmo processo. O êxito obtidona subordinação da mulher com base na diferença natural parece ter ser'"vido de ponto de partida para uma técnica de dominação utilizada, pelosséculos fora, em todos os sectores. Se a relação entre o homem e a mulheré a primeira relação natural, ela foi também a primeira contradição da nhtu­reza enfrentada e resolvida em termos de poder, matriz portanto de qual­quer outra divisão utilizada com objectivos de domínio.

Isto pode dizer alguma coisa sobre o significado social da assimetria depoder na relação entre o homem e a mulher. A vida gregária dos homens'parece assentar sobre uma subordinação que é funcional relativamente à orga­nização dos grupos sociais. A primeira palavra não poderia ter sido a defi­nição do Outro (era de Adão que, segundo o Génesis, a mulher devia tomaro «nome»), um outro tão diferente do homem que se confundiria com anatureza e com a terra, mas tão semelhante a ele que lhe seria necessário?

Defmi-lo podia ser uma maneira de esclarecer a ob~Úra vicissitude da iden­tificação da mulher na natureza hostil. Podia ser um modo dea tomar amiga,rcconheccndo-a como semelhante a si. «Não é bom que o homem esteja s6;demos-lhe uma ajudante semelhante a ele» (Génesis). Mas este «semelhante»não clarificou as coisas porque, se estabelece a distância entre mulher e natu­reza, confirma também a que existe entre o homem e a mulher, indispen­sável talvez à primeira coesão dos grupos sociais. Empenhada em garantira vida (Adão tinha-lhe chamado Eva por isso), talvez a mulher nem se desseconta fio que o homem pretendia com aquela definição, e quando percebeuque ClSemelhante»não significava Cligual»,era tarde de mais, porque o «seme­lhante» já se tinha tornado «inferior». E se, simplesmente, a mulher tivessetido mais que fazer do que inventar e transmitir as mensagens de Deus ouescutar a voz da razão? Talvez aquilo que se virá a tornar a sua «inferiori.dade origina!>.pudesse consistir nisto: no facto de estar totalmente ligadaà vida, por trazer no corpo o peso e a responsabilidade disso, acreditandoque o homem entretanto caçasse e a defendesse de todos os perigos e nãose delllorasse a procurar defmições, nomes e mensagens.

A IIbstracção, o conceito, a superação de si necessária à acção pressu­põem uma margem de liberdade indispensável à dl.1vida. A mulher podeter estado cheia da certeza da sua função, que é uma função do corpo, detoda ela mesma e não de um gesto seu isolado; função que a absorve demaneira total e não admite perplexidades subjectivas, porque procede desi, aut6noma e imutável. Este laço concreto com a continuidade da vidaserá determinante na criação de uma natureza-cultura ancorada nestas cer­tezas que, em conjunto, garantem ao homem a existência de alguma coisacom que se confrontar para continuar a avançar. Mas sem esta certeza _que o conserva ancorado à natureza e à vida - ter-se-ia aventurado no reinoda dl.1vidae da razão? O homem tem sempre necessidade deste confrontoque o pode confirmar ou desmentir, porque a mulher, na sua ligação con­creta com a natureza, com a vida e com a morte, no facto de conter emsi o passado com uma dimensão projectada para uma vida futura, continuaa representar o significado essencial de toda a procura. O espírito, de queo homem se fez o proprietário relegando a mulher para a imanência, é frutode uma incerteza que procura no mundo a sua justificação. A mulher podeter sentido obscuramente que estava justificada por si pr6pria - pelo menosaté ao momento em que garantir a vida representava um valor social. É estacerteza que a torna capaz de ser mãe do ftlho e do homem, e é esta certezaque poderia explicar os séculos de aceitação e de silêncio de uma mulherque encontra na sua função uma certa plenitude. Mas esta certeza, pela qualo homem atinge vida e confronto, torna-se pura imanência no momento emque é separada e invalidada, numa esfera que não admite laços de necessi­dade recíproca, como se se tratasse de um mundo diferente de que se podefalar à distância, inventando-lhe uma natureza mais adequada a fazê-localar-se.

Que esta separação seja uma invenção criada pela cultura para facilitaras relações sociais, resulta claro a partir da posição defendida pelos pais destacultura. Quando, por exemplo, Platão fala «daquilo que tende para a modés-

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tia, para a'ponderaçAoe para a temperança., precisa que se deve ocapresentá-Iocomo pertencente ao sexo feminino», e quando Arist6teles sustenta que o«homem é por natureza superior e a mulher inferior, um comanda e a outraé comandada», prossegue afirmando que «é necessário que entre todos. oshomens seja deste modo», assim como, mais tarde, Malthus dirá que «foidecidido fazer recair a parte maior de responsabilidade onde era mais claraa prova da transgressão». Trata-se portanto de uma oportunidade social decodificar os termos que possam facilitar o domínio, no sentido de que ascoisas são certamente mais simples se um manda e o outro obedece, mesmose acontece que um se aliena e o outro desaparece na prepotência. Mas seesta prepotência responde a um critério de necessidade (e pode ter sido facil­mente realizada sobre uma mulher saturada pela plenitude da sua função),isso significa também que a subordinação resultou, desde o início, comofisiológica em relação ao corpo social que, para se organizar, teve necessidadede estabelecer os espaços e os limites dos papéis e dos seus valores .. Queeste processo fisiol6gico do organizar do corpo social tenha no fim de con­tas produzido uma patologia - a mulher inferior, incapaz, impotente, ihaptapara o mundo do homem -, nisso consiste a erosão da cultura, que criouuma natureza incompleta e amputada, correspondente ao espaço reduzidoque lhe é concedido.

A assimetria de poder entre o homem e a mulher configura-se, de facto,

como uma medida política que passa por regras e normas aptas a sanc~onaro estado de tutela em que a mulher deve permanecer. Que se trate de. nor­mas religiosas ou jurídicas, não faz diferença que elas resultem intrarisponí­veis, fundamentando-se sobre uma invalidez que não pode ser discutida. Queseja São Paulo a dizer: ocamulher aprende em silêncio, com toda a submis­são ... quero que fique sossegada», porque considerada culpada de ter sido

seduzida; ou que seja a lei a não lhe reconhecer uma personalidade ju~ídicaporque incapaz de se representar a si própria, a conclusão não pode senãoconduzir à afirmação de S6focles: «À mulher o silêncio dá encanto», comum s6 juízo, priva a mulher da palavra e, ao mesmo tempo, estabelece ovalor deste silêncio para o homem e para a realidade social. I

As normas que à medida que definiram os termos definiram a legitimi­dade da dependência baseiam-se todas no princípio da M~la! fonte dei umainvalidação jurídica precedida, porém, de um juízo de valor estranho hs leis,e que as leis servem s6 para sancionar: a mulher é inferior e deve peJlI1lane­cer dominada, do que se deduz a necessidade de estabelecer pela lei a medidae os limites da sua sujeição. Isto explica o facto de que, quando a lei reco­nhece maiores direitos à mulher, as tradições ou os costumes recordam asua natureza «inferior», levando-a de novo para o ponto do qual tinha, par­tido. De facto, a mulher - salvo casos raríssimos - é considerada, atravésdos séculos, juridicamente um «menor»(o que não pode deixar de ter influídona evolução da sua psicologia), menor que passa da tutela do pai à do maridoe dos filhos, sem ter uma voz e um direito reconhecidos. O elemento deter­minante desta tutela será oCpag-~Qgio' que se transfere - juntamente comela - de um grupo familiar para um outro e que deve permanecer no inte-

rior do elA: núcleos patrimoniais bem definidos cujo interesse se sobrepõeà condição da pessoa singular e a cujo interesse a condição do indivíduoestá subordinada.

As sociedades de direito materno toleram a liberdade e a promiscuidadedas relações: castidade pré-matrimonial e fidelidade raramente são impostasà mulher. A procriação é um valor social que tem valor por si, num mundoem que a sobrevivência precária é assegurada pelo número de novos nasci­mentos. A vida está tão pr6xima dó perigo e da morte que cada nascimento

i é garantia de sobrevivência. É quando a vida se torna mais segura e se esta­i belece a .e.r.()Pri.e~adecomo um bem a transmitir, que a mulher - que se\ torna veículo de transmissão dos behs através do fIlho que nasce - se trans­

I forma ela pr6pria num «bem» que se compra e se vende. Isto implica. ~~atutela e um conjunto de regras que impedem que se confunda a legitimi­dade dos herdeiros: é daqui que nasce o corpo de normas jurídicas que esta­belecem a medida dessa tutela e o grau de autonomia consentida à mulher.

Para os Árabes o Corão é explícito: «Os homens são superioreS à mulherseja através das qualidades com que Deus manifestou a sua superioridade,seja porque são eles a dotar as mulheres»; e as muçulmanas serão obrigadasa usar véu, serão enclausuradas, subalternizadas, desprezadas como um«campo» para os prazeres do homem, sem voz nem direitos .. Entre os

Hebreus da época bíblica, os patriarcas praticam a poligamia, p04em repu­diar a mulher à sua vontade, exigêm a virgindade da esposa, a adúltera élapidada, a esterilidade é motivo de repúdio certo, por morte do maridoa viúva deve-se casar com o irmão deste: a mulher é um acessório em quese pode pegar ou largar impunemente. Na Grécia é submetida a um tutor,pai ou marido; o marido pode repucUá-Iaou cedê-Ia a outros, a herança passaaos fIlhos do sexo masculino, masi Il lei assegura-lhe, em caso dlj repúdio,a restituição do dote à fami1iade origem, à tutela da qual regressa. Dem6s­tenes resume em poucas palavras it condição da mulher grega, falando do

grau de perfeição a que estava ligada a divisão do trabalho na. cbdificaçãodas diversas espécies de necessidal1es do homem a que diversas mulhereseram incumbidas de satisfazer: «Temos as cortesãs para os prazeres do espí­rito, as concubinas para os dos se~tidos e a mulher para nos dar filhos».Em Roma a mulher conquista algllns direitos através do confli~o que opõeo Estado e a famflia: o Estado tOrn;\~seo seu novo tutor e garante, - árbitrodas questões relacionadas com a vida familiar, o repúdio, o div6rcio - mas,embora aumentando a gama de possibilidades de presença da mull1erna vidapública, mantém a sua integraçãol dentro do papel de mulher t de mãe.Invocando a fraqueza do seu sexo,' na realidade o Estado impede a mulherde agir e de exercer o seu peso na dimensão pt1blica, de que aparentementelhe abre as portas. É isto que faz d~er a Simone de Beauvoir:. «A romanada decadência era o tipo da pseudo-~mancipada, que possui apenas Uma liber­dade vazia num mundo em que os homens são e permanecem os donos abso­lutos: era livre "para nada"». O cristianismo, na aparente revalorização damulher, considerada ao mesmo nível de todos os oprimidos a quem a pala-

.vra do Evangelho se dirige, continua a sancionar o seu estado de sub-

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missão: por um lado, a mulher permanece a origem da queda e a fonte dopecado; por outro, queda e pecado serão remidos no culto de Maria que,todavia, é virgem, imaculada e sem pecado. A carne que a mulher repre­senta aos olhos do cristão não é resgatada por este culto, uma vez que Maria,virgem e mãe sem mácula, é assim privada de corpo para ascender ao céu.O seu culto pode portanto oferecer uma identificação com a mãe dolorosa,mas não com a mulher, dado que o cristianismo confirma o seu estado dedependência, limitando-se a dar-lhe um valor e um significado espirituais.Na Idade Média, as invasões bárbaras j;ontêm, com o relaxamento dos cos­tumes próprio da decadência, um abra~damento do direito romano atravésdo enxerto de novos elementos do direito germânico, mais tolerante em rela­ção à mulher: na falta de herdeiros, a JIlulher herda os bens, mas sempre,contudo, debaixo de uma tutela do homem que se torna seu administradore tutor. Quanto maiores forem estes bens, tanto mais rigorosa será a tutela,de tal modo que a mulher mais liberta do domínio do homem vem a seraquela qu~ é escrava da miséria: a miséria reúne o homem e a mulher nomesmo destino, ainda que, no seio deste destino comum, a mulher sejaobjecto da violência do homem, provocada por essa mesma miséria.

Salvo c;:asosexcepcionais que, de resto, confirmam plenamente a regra ­o Egipto, onde a mulher é mais livre e desempenha um papel social, estandoa propriedáde centralizada nas mãos do rei e das castas superiores; Esparta,fundada sobre um regime de propriedade comunitária, no qual a mulheré educada como uma igual do homem -, a figura jurídica da mulher segueo destino da propriedade e da família de que é garante: propriedade - entreoutras coisas - do homem, não· pode existir jutidicamente senão como

, objecto de tutela, de transacção e de contrato, sendo principalmente veí­culo de transmissão e de transferência de bens.

Direito can6nico, direito romano, direito germânico - que consideram,, embora em graus diversos, a mulher como uma menor incapaz, que é pre­

ciso tutelar - influenciarão a elaboração dos c6digos europeus. Através dosc6digos estabelece-se e sanciona-se o papel concreto, institucional, social­mente reconhecido à mulher, mas o dever de não existir como figura socialcontinua a dominar todo o direito. Única vantagem que a mulher tira é umreconhecimento de «irresponsabilidade>.que deriva do facto de ela ser, pordefinição, «menor». A tutela de que é objecto torná-Ia-á gradualmente maisfrágil e impotente, de modo que o homem - do alto da justiça e da equa­nimidade das suas leis - chegará a não lhe reconhecer a plena responsabi­lidade dos seus delitos e pedirá para ela uma pena reduzida, invocando oseu estado de inferioridade e debilidade naturais.

A assimetria de poder entre o homem e a mulher não é, portanto, umprocesso natural: leis, c6digos, normas «apresentaram-na» - como diriaPlatão - e estabeleceram-na por direito, negando à mulher uma personali­dade jurídica, de tal modo que se pudesse facilmente deduzir que a únicapersonalidade jurídica é representada pelo homem. Deste modo tornou-sepossível uma operação matemática considerada habitualmente errada: umhomem mais uma mulher produziram, durante séculos, um homem.

4. O direito

Se as mulheres tmbalhassem nos campos doshomens. .. seria duplicado o mlmero dos trabalha.dores e, por conseguinte, diminuiria outro tanto ovalor do trabalho (Moebius).

Durante séculos a mulher calou-se e o homem falou por ela. Durante

séculos vive e fala ~ara si, dentro das paredes de casa, onde trabalha, dáà luz, amamenta, cna os filhos, ri, chora, assegura um refúgio, um abrigopara o h~mem - que trabalha, faz a guerra, mata, escreve poemas, pintafrescos, mventa novos instrumentos para facilitar a vida: e dá-lhe protec­ção. Uma protecção que a encerra na prisão, mas de que talvez não tenha

c~nsciência, en~uanto o mundo de que o homem faz parte não for qualita­tivamente tão diferente dela e enquanto criar os filhos for um valor socialem que pode reconhecer-se e de que pode tirar compensações: o poder sobrea cas~, sobre os filhos e, por vezes, sobre o homem, naquela parte de sipr6pno que ele destina à casa e à família. Única alternativa é o poder sobre

o corpo do homem, que lhe advém do domínio profundo que pode exerceratravés do desejo e da necessidade que ele tem dela: mas é um domínioque fica sempre no interior do espaço que lhe é consentido e não ultrapassaos limites do seu corpo ou os da casa.

Serão dois eventos - de natureza diferentes, mas, no entanto, entrela­çados um no outro - a iniciar uma nova realidade e uma nova consciência

abr~do o caminho' ao desbloqueamento para um início de acção, linha divi~s6na entre um tempo sempre igual a si mesmo e uma hist6ria em que amulher começa a falar e a agir: por um lado, O nascimento do indivíduocomo entidade separada do grupo e a imposição dos conceitos de igualdade~ntre o~ homens, e, por outro lado - mais tarde -, o nascimento da eramdustnal. Estes eventos serão determinantes e, simultaneamente, expres­são da formação de uma nova consciência, e é apenas a partir do afIorar

desta n?va .consciência que se pode falar da mulher como problema, porquepela pnmelra vez começa a tomar forma nela - sobre bases concretas quevão mudando - o conhecimento da sua condição.

Enquanto eram os homens a falar dela, a imagem que construíam nãoera real: era um fantasma que correspondia às necessidades do homem enão podia ter as suas pr6prias, já que os fantasmas são s6 o objecto do pen­samento do outro. Mas enquanto não tinha uma voz activa ou não falava

~ai~ alto d~ que quem falava por ela - com as cumplicidades e as impo­tenclas contidas nesse silêncio -, a mulher existia s6 no quadro das pala­

vras .que lhe re;nviavam a imagem daquilo que era através da imagemdaquilo que deVIaser. Para chegar a esta nova consciência devia acontecerqualquer coisa que retirasse à mulher a sua ceneza origin'ária e que a ati­rasse, em igualdade com um homem, para uma situação precária na quala certeza sobre a sua pr6pria função, separada e isolada do resto do mundoque avançava e mudava, começasse a ser discutida.

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Por outro lado, os princípios de igualdade entre todos os homens pro­clamados pela Revolução Francesa e o carácter concreto das necessidadesque tinha conduzido a estes princípios provocam - de modo diverso - amesma incerteza.

A mulher começa a descobrir que, se se deve ser igual, ela tem algumacoisa a dizer sobre esta igualdade, porque, se existe um «desigual» desdesempre, esse desigual é ela. Já quando, do Renascimento ao Século da Razão,começava a ailorar o «sujeito» e se aguçavam as exigências do indivíduo,a mulher procurava um modo de exprimir a sua subjectividade. Mas a únicamaneira de a desenvolver - para além do domínio sexual sobre o homem ­era competir com ele no terreno da inteligência: em Itália e em Françamulheres instruídas são centro, em cortes e salões, de uma cultura de quea mulher se torna promotora. Mas são factos isolados: de elite; excepçõesque usaram o seu poder de classe para se inserirem numa cultura que con­tinua imutável e para influir obliquamente, como sugere Simone de Beau­voir, sobre o homem que tem o poder na mão. Estes casos falam dos privi­légios de que gozavam as mulheres pr6ximas dos «poderosos», mas' nãopodem dar a medida do que estava a mudar. ~ com a Revolução Francesa,na qual as mulheres participam na primeira pessoa, que este igual entre iguaispode provocar uma atitude diferente, porque parte de uma necessidade mate­rial que une a massa. A «Declaração dos Direitos da Mulher» proposta emParis, em 1789 - e que se afundará juntamente com a liberdade, a igual­dade e a fraternidade proclamadas -, é um sinal importante porque faz sen­tir a mulher presente com as suas exigências de cidadão igual entre os outros.

Mesmo se o reconhecimento dos direitos civis e não políticos acab~ pordesembocar na constituição do direito napole6nico que restabelece a adtori­dade absoluta do marido sobre a comunidade familiar, a proposta de :umacarta dos direitos da mulher, separada da dos direitos do homem, significaque a mulher reconhece por si pr6pria o carácter específico e particulár dasua opressão e é ela própria a propô-Ia como um problema diferente" masigualmente inserido na luta pela conquista dos direitos de quem prirlleironão tinha voz activa. '

O nascimento d~ ~l'!1_Í!1dustrial1eda !10Vl!.Jc5gicaecon6mica, que imprimeum carácter diferente ao trabalho do homem enquanto produtor de m~rca­doriasj será depois determinante no desenvolvimento desta consciência: lI1eces­sária à nova organização do trabalho e totalmente separada desta pela. hatu­reza diferente das suas actividades quoti<.ijanas,a mulher vê passar parll,umasituaçAo de subalternidade a sua funçAo essencial, subalternidade q~~ nllopode deixar de comprometer a sua certeza originária. Fazer filhos não' bastapara justificar a pr6pria existência: por um lado, toma-se uma parte dela- inevitabilidade da maternidade -, mas que já não lhe basta per~nte anecessidade de ser integrada no mercado do trabalho; e, por outro, ficá esva­ziada de todo o valor social, desde o momento em que o único valor !locial­mente reconhecido é o trabalho produtivo. Esta nova realidade prdpõe àmulher um exame concreto da sua situação: expropriada de uma subjectivi­dade nunca possuída na relação com o homem e com o mundo, cada vezmais separada do homem e do mundo pelo evoluir do contexto econ6mico

e social, encontra-se agora expropriada por uma nova exploração que uti­liza a sua inferioridade para lhe pagar menos do que ao homem, como sea sua remuneração - para trabalho igual - fosse diferente. ~ neste momentoque a Ínulher começa a organizar a luta pela conquista dos direitos que nuncapossuiu.

Mas isto comporta uma nova confusão, visto que o direito social, ao quala mulher exige aceder, passa também pelo direito individual na relação como homem. O homem, condicionado por uma cultura que tem milénios dehist6ria e cada vez mais condicionado pela nova organização do trabalho,exige à mulher sempre mais amparo, abrigo e refúgio: mas o refúgio quea mulher pode oferecer torna-se cada vez mais amargo. A partir de meadosdo século XIX, a mulher encontra-se empenhada numa dupla frente: a con­quista de uma igualdade de direitos no trabalho e na vida social e a con­quista de uma igualdade de direitds na relação com o homem.

E, todavia, o nascer da era burgtJesa funda-se sobre o reforço dos laçosfamiliares e sobre a delegação no homem para que vele por que a mulhernão transponha os limites da tutela e da submissão. Quanto mais li históriaevolui e a mulher se emancipa no plano dos direitos, tanto mais se explicitaa delegação deste controlo no homem. Perante a ameaça representada poruma mulher que começa a lutar pelo reconhecimento da sua própria exis­tência e das suas necessidades, a fartúlia, núcleo portador da burguesia emascensão, deve fortalecer-se através do reforço do poder do homem que endu­rece a sua posição e se defende rdtringindo os espaços de autonomia da

\ mulher. A ética do protestantismo servirá, assim, tanto para reforçar a famí-

I lia, controlando a mulher, como para sustentar e ajudar o desenvolvimentodo capital, a cuja 16gica a humanidade deve ficar sujeita.Mas o desenvolvimento do capital comporta a abertura do espaço social

à mulher através do seu ingresso na ~rodução, e proletárias e burgliesas têmmaneira de verificar - embora em híveis diferentes - qual é a sUa condi-I .ção real... '

A partir da segunda metade do StjfuloXIX, a mulher da classe mais baixaentra em massa no mercado do tn!balho. O processo de industÍ'ializaçlloselvagem abre-lhe as portas da exploração organizada (pondo-a 11 par do

-- hômem); mas produz, simultaneam~nte, a consciência quer desta explora­çllOquer da força da classe exploradora que começa, também ela, a dotar­-se de uma organização.

O ingresso no mundo do trabalhp acelera - na mulher - a cohsciênciada sua condição, privada como está ,qe serviços sociais e de assistência quepossam ajudá-Ia a levar a cabo a su!!:dupla função: os fIlhos e (j trabalho.

O Estado, que se vai estruturando cotrto garante do desenvolvimentd do capi­tal, começa a organizar as suas instItuições e a tomar sobre si o ~roblemada protecção e da educação dos fIlhos: a piutir do momento em que é neces­sário que a mulher trabalhe fora dj: casa, dá-se início a um conjunto demedidas institucionais (escolas, infaJ:ttários)que deveriam ajudá-Ia, mas queao mesmo tempo a privam lentamente de parte daquelas funções essenciais,motivo da primitiva anulação. Início lentíssimo, se ainda hoje se continuaa lutar para obter os serviços requeridos por estas necessidades, mas que

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dá a medida de uma deslocação nas relações desta «tutela», não mais enten­dida como facto individual da mulher e da família, mas de competênciadirecta de um Estado que precisa de um aparelho de controlo articulado,para organizar, através das diver.sas instituições, o corpo social. De facto,as mulheres proletárias encontram-se espoliadas do aspecto educativo da suafunção de mães por um Estado que declara tomar sobre si esta incumbên­cia, mas simultaneamente - dado que' isso não consegue responder às suasnecessidades concretas - encontram-se na situação de suportar à sua pró­pria custa e à dos fIlhos o peso da desvalorização desta sua função.

São portanto as exigências da pr04ução a incluir a mulher no mercadodo trabalho, abalando a primitiva ceriOta da unicidade da sua função, e são

estas meSmas exigências a produzir as primeiras contradições fundadas sobreo preconceito, habilmente mantido, 'qa inferioridade da mulher: discrimi­nação, para trabalho igual, dos salários entre homens e mulhe~es, .e por­tanto estímulo à revolta das mulheres subpagas. Uma nova consciência polí­tica se ~~i formando entre as classes inferiores, mas também entre asmulheres.

A mulher burguesa, que não é empurrada para o trabalho pela necessi­dade material, rebela-se por outro lado contra o estado de submissão: pre­tende o acesso à instrução, o sufrágio e o reconhecimento dos seus direitosenquanto' pessoa. Não tendo outro espaço - físico e psicológico - senãoos fIlhos, a casá: o amor pelo homem, vê gradualmente esvaziar-se de con­teúdos e de sentido a sua função. «O trllbalho doméstico desapareceu quandocomparado com o trabalho produtivo do homem: este era tudo; aquele, pelocontrário, um acréscimo insignificantel>(Engels). O refúgio que oferece, nointerior deste invólucro que se torna mais rígido e espesso à medida quese vai esvaziando, começa a tornar-se, para todos, uma ratoeira: o guerreironem sempre encontra o repouso evocado por Nietzsche. O homem, media­dor entre a realidade e a mulher ainda fechada dentro das paredes da casa,representa para esta a única conquista sobre o mundo, mas trata-se de ummundo que já não lhe reconhece nenhuma função social porque se movenum registo diferente. Neste sentido, o homem torna-se alvo inevitável doseu ataque, sinal de uma impotência que não encontra um modo de se expri­mir senão atacando aquilo que, voluntária ou involuntariamente, representaaos seus olhos a realidade e o poder - traço de união concreto com a reali­

dade e o poder. Lágrimas, chantagens, agravos, seduções, violência!!,ver­bais, histerismos, instrumentalizações são as armas do fraco que não sabeencontrar outros apoios, outros modos de gravar num bloco de pedra quenão seja deixar as marcas das unhadas: porque dentro das paredes intrans­poníveis da família burguesa o homem representa ainda para a mulher oúnico confronto, a única medida do que é, do que faz, do que quer. Numasociedade que se vai organizando em função da produção e do lucro comoúnico «valor», a maternidade vai cada vez mais perdendo o da reprodução

de um bem social, e a mulher burguesa encontra-se esvaziada també~ destafunção, sem ter em troca nenhuma relação com o mundo, que contmua apassar através do filtro representado pelo homem.

Proletárias e burguesas - empurradas por exigências materiais di­ferent~s - vão adquirindo simultaneamente a mesma consciência, porquese aquilo em que se tornou a sua natureza é o produto da cultura, esta cul­tura joga a todos os níveis: o social - que impede a mulher de participarde pleno direito na vida de grupo e no trabalho, de ter os mesmos direitose os mesmos deveres do homem, de contribuir para construir um Estadoque a proteja e responda às suas exigências - e o pessoal, privado da rela­ção com o homem que, através do controlo da sua sujeição individual _acentuada pelo esvaziamento da sua função essencial -, continua a sergarante da sua sujeição social. A mulher proletária sofre esta dupla opres­são, cuja natureza económica evidente e dolorosamente sentida a leva maisfacilmente à luta política; a mulher burguesa, dispondo de vantagens eco­nómicas a proteger e principalmente identificada, como está, com os valo­res dominantes, terá mais dificuldade em isolar a natureza política da suaopressão c tenderá a deslocar a sua intervenção para a conquista dos direi.tos civis que - primeiro passo indispensável à emancipação - se arriscama ficar no interior da mesma 16gica que produz a dominação.

A partir dos fmais do século XIX, os movimentos femininos avançamsimultaneamente em duas direcções que, por vezes, se fundem para volta­rem a separar-se: por um lado, as reivindicações econ6micas das mulheresproletárias, unidas às lutas mais gerais do proletariado pelo socialismo; por?utro, as reivindicações de carácter mais claramente «civil» da'SburguesasInstruídas que lutam pelo sufrágio, pela instrução, pela igualdade de direi­tos da mulher numa sociedade definida pelo homem. As primeiras arriscam­-se a perder, na generalidade da luta do proletariado, na qual a divisão pri­mária é a de classe, o carácter específico da opressão da mulher na relaçãocom o homem e com a realidade em que o homem tem uma posição dife­rente; as segundas, ao focalizarem a luta no carácter específico da opressãoda mulher, arriscam-se a perder o carácter político e o social.

Porque, assim como não se pode falar da mulher senão como de qual­quer coisa de historicamente construído e determinado, quem é concreta­mente o homem na sociedade capitalista que a pouco e pouco se foi estru­turando? Um homem, por sua vez, explorado, dividido, amputado, quebradopor um corpo social e por uma lógica econ6mica que, de vez em quandoe em modalidades sempre diferentes, se organizam para o reduzir a um sim­ples objecto manobrável na direcção pretendida; um homem a quem toda­via, a cultura ligada a este corpo social e a esta 16gica económica deixoucomo compensação individual - resquício de modalidades medievais derelação - a possibilidade de dispor de um objecto de propriedade sua - amulher - com a delegação explícita de velar por que ela continue a aceitaro seu papel de dependência. Numa sociedade assente sobre a exploraçãodo homem e da mulher, é isto o que torna o discurso sobre a opressão damulher por parte do homem mais difícil e mais ambíguo, mesmo se se tratade uma opressão manifesta e grosseira que, no entanto, não provém de umsujeito, por muitas que possam ser as vantagens que este daí retire. Esteentrelaçamento de papéis, delegações, explorações, privilégios, frustrações,recompensas, chantagens, expropriações, que continuamente deslizam do

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plano pessoal-privado para o social-público, ou vice-versa, torna sempre maisconfuso e indecifrável aquilo que deveria ser a primeira relação natural entrehomem e homem: a relação entre homem e mulher. E é esta sobreposiçãogradual de qualquer coisa de estranho à natureza sobre a natureza, para che­gar a criar um homem e uma mulher naturalmente mais aptos a aceitar odomínio preparado para eles, que impede de ver e de compreender clara­mente qual possa ser a via de saída desta opressão específica da mulher,produzida conjuntamente por uma organização social e por uma cultura quejogam sobre a sua inconsistência social, e pela presumível subjectividade mas­culina que joga sobre a sua inconsistência individual.

Resta todavia o facto de que esta presumível subjectividade do homemtem o privilégio de estar ideologicamente menos ligada à natureza do queo está a mulher, e de contribuir - por delegação social - para que se per­petue esta identificação da mulher com a natureza, como obstáculo à sualibertação e à conquista de uma subjectividade que poderia prefigurar umaoutra relação com a realidade e com o homem: logo, um outro homem euma outra realidade.

É neste sentido que, às graduais conquistas da mulher, apoiadas na suaevolução por raras e isoladas vozes masculinas (Poulain de Ia Barre, Con­dorcet, Stuart Mill, Saint-Simon, Fourier, Enfantin), se volta a propor, noinício deste século, um novo recurso à «natureza» para remeter a mulherao seu lugar. Desta vez não será a religião (mesmo se esta continua a fazersentir o seu peso) nem também a f1losofia (ainda que fllósofos ilustres nãose tenham calado a este respeito), mas um novo meio que a organizaçãosocial começa a utilizar como sistema de controlo e de domínio: a ciência.A voz dos médicos positivistas far-se-á sentir ao propor de novo, «cientifi­camente», a inferioridade fisiológica da mulher, deduzida de análises e pes­quisas sobre a sua inferioridade natural em relação ao homem. Como sem­pre, no decurso dos séculos, mal se abre uma fresta para um maiorreconhecimento do direito da mulher a existir como pessoa e como figurasocial, o quadro fecha-se remetendo a mulher para a natureza, para a suafunção natural, para a escravidão do corpo de que tenta libertar-se, Masesta operação demonstra já explicitamente a sua finalidade - por admissãoexplícita dos mesmos positivistas -, dado que as interpretações naturalistasservem para travar e ocultar o significado político-social da luta empreen­dida pelas mulheres.

Redefinida como «inferior», de novo,convidada a ficar em casa para aco­lher, dócil e sorridente, o marido cansado, a mulher do início deste séculocontinua, porém, a lutar.

5. A coerência

Pauvre ange, elle chantait, votre note criarde:-Que rien ici·bas n'est certain, •Et que toujours, avec quelque soin qu'iJ se farde,Se trahit I'égorsme humain;

Que c'est un dur métier que d'être beIJe femme,Et que c'es! le travail banalDe 'Ia danseuse folle et froide qui se pAmeDalls un sourire machinal. (Baudelaire).

A partir do século xx, os movimentos femininos têm como objectivoalcançar a primeira medida que I't1conheça à mulher uma figura social:o sufrágio. É uma batalha difícil que vê alinharem-se as mulheres de mui­

tos países e. é uma conquista gradual que exigirá anos de luta. As etapaspodem medIr-se no tempo. Algumas,datas essenciais assinalam os seus pas­

sos: 18~3 Nova Zelândia, 1906 F~ândia, 1907 Noruega, 1908 Austrália,1915 Dmamarca, 1917 Rússia, 1915Áustria, Checoslováquia e Alemanha,1919 Estados Unidos da América, 1922 Hungria, 1923 Holanda, 19i8 Ingla­terra, 1945 França, 1948 Itália: recohhece-se o direito de voto às tt1ulheres.

Na Europa, a Primeira Guerra Mundial, na qual as mulheres partici­pam com o seu trabalho, acelera os túmpos deste processo. Mas difll:ilmente

s~ aceita esta nova figura de mulher que luta por infringir a regra napole6­mca que a relega para a cozinha, a igreja e os fllhos. Primeiro passa - pre­cedido ou contemporâneo do acesso à instrução -, a obtenção do sufrágiosanciona juridicamente o direito e o dever da mulher de escolher e deter­minar o estado e o governo do seu país e de influir nos seus destinos. Masa luta sustentada pelos movimentosl de vanguarda não reflecte d 'nível deconsciência geral de todas as mulhl!:res. Subordinada por tradição secularao domínio da cultura do homem, d, caminho da sua automomia ~ncontra­-se ainda cheio de obstáculos porque - como sempre - o costume pode

fazer malograr o que ~e,obtém pela lei. E o costume continua a lrltpor umuso: que se é necessáno que a mulhl:r tenha uma opinião sua, essa opiniãodeve ser a do homem, sobretudo qtràndo ela é garante da ideologia domi-nante. "

A primeira metade do século xx é portanto caracterizada por uma con­

quista grad~al concreta no plano das reivindicações políticas e sindicais, e poruma conqUIsta gradual abstracta no ,plano dos direitos; conquistas que nãocomportam uma modificação substancial na autonomia geral da Imulher.Mesmo se as coisas começam a mudllr (o acesso à cultura e ao trabálho pro­duz os seus frutos e, sobretudo, conttadições novas que exigirão novas medi­das e novas respostas), a maior parte das suas mulheres identifica"se ainda- se bem que com cansaço - com o papel que lhe é exigido, ampliandoa gama das suas actividades que comportam um trabalho duplo ou triplo,constrangendo-a a exercícios de acrobacia para responder às expectativas detodos: a reprovação por não ser uma boa mãe, se exerce seriamente o seutrabalho, será um elemento constante.

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Mas nos anos 60 - numa fase de expansão do capital nos países de altodesenvolvimento - o acesso da mulher à instrução e ao trabalho cada ve.zmais qualificado começa a produzir contradições diversas. A sua nova POSI­ção no mundo produtivo - já não limitada à de mão-de-obra subpaga, comoacontecia no princípio do século, mas alargada, embora em funções geral­mente subalternas a vários sectores técnico-profissionais- leva gradualmentea mulher a ser u~ novo sujeito social. Ainda que dentro dos limites produ­zidos pela cultura que tarda em mudar, a mulher - pela própria contradi­toriedade destes limites em relação à realidade que já vive - começa a pôrexigências novas de participação real nos problemas ~olectivos, afi~m~n~oo emergir de uma subjectividade que começa a questionar a sua eXlst~nclaem relação à organização social de qu~ faz agora, formalmente, parte mte­grante. E portanto a mesma série de ppssibilidades que .se abrem à sua frente

que começa a influir na qualidade 4~s suas expectativas.No fmal dos anos 60, nos Estados 'Unidos - e mais tarde na Europa ­grupos ~e mulheres, empenhadas nos Plovimentos políticos de esquerda, dãoconta de'que mesmo com os seus «conp.panheiros»a relação é a mesma: autó­nomas, frequentemente empenhadas seriamente no trabalho e. na luta polí­tica, a sua «posição» no mundo' nãq 'sofre alteração substancIal, e. os. pró­prios companheiros as consideram «ij1ulheres»dentro do eterno clu:he queas quer disponíveis e submetidas. A ruptura é inevitável, nesta procura deser finalmente alguma coisa que tenha o direito de existir de acordo comaquilo que deseja ser, para si e para "s outros. O movimento feminist.a quenasce desta ruptura põe em foco, pela primeira vez, o carácter específico,particular, da condição da mulher, estabel~cendo a necessid:de de ~a. sepa­ração total dos outros movimentos po.lítlcos: esta se~ara~ao - mevltavel­mente sectária - tende a criar uma urudade e uma solldanedade que nuncaexistiram entre mulheres, até ao momento em que estejam seguras de si,daquilo ~ue são, do corpo de que foram expropriadas, das neces~i~ades edesejos de que ainda não conhecem a verdadeira natureza, condlclon~dasa responder a necessidades e desejos de outros, enquanto não consegurr~mdescobrir a sua sexualidade mutilada, de que ainda não sabem que cOIsa

poderia ter sido, e não é; enquanto não conseguirem ver qual pode ser oseu lugar no mundo e o seu futuro.

O risco desta «separação» que não quer confrontos é de resvalar paraa ideologia, para a apropriação de uma gíria, uma linguag~m 'p~ópria queteoricamente rejeite qualquer ligação com o homem, de facto mdivIduapnentevivida. E no entanto, nesta separação, está a proposta dos temas de fundoque percorrem a nossa cultura actual: o «sujeito» - eliminado e oprimidopor um sistema social homicida - volta lentamente a aflo~ar, ~través da rcas­sociação do grupo, e volta a interrogar-se sobre a sua Identidade, sobre oque quer do mundo, porque não o aceita como é, o que quer fazer parao fazer mudar e onde procurar o seu corpo perdido. São temas que põemem crise o «político», até agora separado do quotidiano, do privado, comose o homem estivesse dividido em duas partes que não têm nada a ver umacom a outra. E o «político» aproveitar-se-á disso para enriquecer qualitati­vamente o terreno das suas batalhas sucessivas.

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É importante. que ~ste.s temas de fundo sejam bropostos por ela, pelamul~er, ~or~ue IstOdiz amda alguma coisa sobre a sua história: encerradana .1~anencIa do homem, a mulher nunca experimentou o que fosse o«~UJCltO»;aprendeu, desde sempre, a não existir senão naquele espaço «objec­tlvo» reservado à natureza. Este «Eu», que se manteve adormecido e enco­

berto, enquanto esteve es~abelecido que não existia, ficou também ao abrigodo mun~o .e das suas. leIS ferozes. A sua ligação com o aspecto concretoe a c?QtmUldade da VIdamanteve-o vinculado aos sentidos mais profundosdaquilq que vale ou não vale nesta vida. Isto significa algo de muito impor­tan~e nest~ mom~nto: a m~lher não foi corrompida pela ideologia. Foi objectode IdeologIas, .fOl-se.Identificando com aquilo que o poder fazia dela, mas,não tendo podido dIspor dele, nunca foi corrompida pela ideologia com queo poder se .cobre. E agora começa a arriscar-se a cair nas suas malhas.

Mas ~ amda esta a força extraordinária que a mulher possui: duranteséculos VIUo h~mem proclamar o reinado do espírito e da razão, sabendoser ela a garantia do seu regresso à natureza e à imanência - e deixou-of~àr; durante século~foi testemunha das suas regressões, deixando-lhe a ilu­sa? de que ela não tinha necessidades e de que, pelo contrário, estava satis­feIta com o que o homem não dava; durante séculos assegurou a vida queo hom~m, entretanto, tirava. Foi ela que, como compensação das suas fadi­gas, alrmen!ou e garantiu o repouso do homem de acção, do revolucionárioou ~o ~lítlco que lutavam pela igualdade social, esquecendo que entre osdeSIguaIs também ~la se encont.rava. Testemunhaincómoda e importuna,~ mulher tr~ em SIuma .c.0rç.aamda não corrompida: é a força de um juizolI~ado às COIsas,às expenencIas concretas de vida, que não se deixa contra­dIzer ~elas pala~ras ou. pelas abstracções. A esta inteligência - que con­serva amda, fundid.ose mextricavelmente entrelaçados, o juizo sobre as coisasconcretas, a emoçao que provocam, a sensualidade de um corpo que estánelas ~ergulhado. e das quais faz parte, a ternura nos confrontos da vidae a antiga sabedona no~ confrontos da morte -, a esta inteligência foi dado

\ o nome degradado de (<lDtuição»fe111ÍnÍna>"para a recolocar no reino da natu­reza. Mas é esta inteligência que, no momento actual, poderia dizer pala­vras n~vas.e fazer novos gestos, porque - não obstante o processo de esqui­~ofremzaça~ de que somos todos objecto nesta sociedade - ela permanecel~gadaàs cOls.as,.às experiências, à ~atureza, ao corpo através dos quais con­tmua a exprrmIr-se e com os quaIs o homem já perdeu toda a relação

Que passo~ s~guir par~ impedir que esta força fique corrompida? Pa~aque e~ta coerenCla e~tre mtellgência e experiência, entre razão e emoção,entre JUizoe sensualidade, entre o que se faz e o que se diz não seja que­brada? Para que a mulher, além de ficar testemunha da ruptura que já ocor­reu no mun~o, na política, na cultura, no homem, entre o carácter con­creto d~s cOisas e das necessidades e a ideologia, possa contribuir paraconstruIr um ou~ro mundo, uma outra política, uma outra cultura e umoutro homem, .hgados às coisas essenciais, às necessidades, aos desejos,à vontade de VIver e de morrer depois de ter vivido?

~ mulher cont~nua a dizer que não é como foi criada e que já não aceitao disfarce. Está amda laboriosamente a procurar demonstrá-Io a si própria

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-'. ~MULIII!R

para depois o demonstrar aos outros. Mas ainda nllo sabe o que é e ageàs apalpadelas. O homem olha-a assustado e transmite mensagens e chanta­gens; ou voltas a ser como eras ou perdes-me. Mas a mulher já não querser a mãe deste homem e quer que ele cresça também - enquanto elacresce - e não tenha necessidade, para ser forte, de a ter sujeita, porquese muda a primeira prepotência, muitas coisas podem mudar: destrói-se aprimeira desigualdade e torna a fundar-se a primeira unidade sobre uma

\ relação entre iguais-diferentes.Mas pode a mulher ser igual num mundo fundado sobre a desigualdade?

Volta a emergir a chantagem que paralisa toda a acção, toda a tenta~iva demudança. É certo que mesmo entre os homens há quem seja mais igualao poder e quem seja diferente porque está demasiado longe dele, e d exac­tamente por isso que se continua a lutar para conseguir romper o cercb den­tro do qual estamos enclausurados. E até a mulher luta por isto, sabendo

no entanto que já no paraíso terrestre ela era desigual e não tem a çertezade que se tudo isto desaparecesse as coisas seriam assim tão diferentds paraela, porque já tem alguns exemplos disso. E então por que razão impedirque lute e que pergunte a si própria - já agora, num mundo de desiguais .que não o querem ser - de que modo poderia ser igual e se é verdade queela é natureza, escrava do corpo?

Isto significa a luta para que o seu corpo seja seu e já não possa serviolentado e vítima de estupro por parte do homem, invadido por materni­dades não desejadas ou - por outro lado - privado do fJ1hoque qu~r. Osproblemas políticos que tem de defrontar continuam para ela a passar pelocorpo, e é este facto que torna concreta a sua luta. Este corpo jamais pos­suído, encontra-o ela no seu peso e quer compreender de que modo 'é pos­SÍVeltornar-se dona dele e sentir que lhe pertence. Também o homem foiexpropriado do seu corpo, mas não sabe que não o possui. A mulhh temsobre ele a vantagem de nunca o corpo lhe ter pertencido, o que llie per­mite uma luta mais radical para se poder apropriar dele.

Um passo já tentado é a conquista do corpo através do sexo vivtdo emigualdade com o homem. Mais que das «bruxas» invocadas, pareceria umregresso da cortesã, dona de si através da «posse» do homem. Mas trata-sede uma posse simplesmente às avessas, que não propõe uma out~.a:quali­dade de relação: limita-se a inverter os termos da desigualdade, reduzindo

o mundo vasto e susceptível de alargamento da sensualidade à mera ,sexua­lidade, que se pode tornar mecânica, tal como se tornou para o homem.A fusão entre sensualidade, emoções, ternura, sentimento e sexualidade,como um todo global, é uma força que a mulher ainda conserva e que nãodeveria ser perdida. Está ligada à sua história de opressão e de vio,lência,ao espaço reduzido que lhe estava atribuído, à capacidade desenvolvida naescravidão de agarrar mesmo as pequenas coisas e tirar delas um prazer,uma compensação; está ligada à relação com a vida que nasce e qJe crescee que tem necessidade de mãos afectuosas, de um corpo que ábraça eenvolve, de uma boca que ri e que canta. É esta sensualidade difusa e totalque a cultura sempre tentou conter quer na mãe asséptica quer na' fêmeadevoradora de sexo. Mas a mãe nunca foi asséptica, tal como a fêmea sedeixou muitas vezes levar pelo amor.

13

Esta sensualidade' generalizada - quase desaparecida no homem - deve­ria ser um bem a proteger e a transmitir. Se a mulher foi definida, desdesempre, como «natural», é ela agora quem tenta apropriar-se conscientementedesta natureza, reivindicando a capacidade que conservou - num mundode mortos - de sentir e de compreender as coisas também com o corpoe de descobrir as mais imediatas necessidades deste. Mas apropriar-se cons­cientemente desta natureza significa; igualmente transformar a sua culturade sobrevivência num valor proponível ao mundo e que pode transformá­-10. Uma vez perdida a sua antiga cel1eza, também a mulher entrou na dúvidamas, antes de ser destruida pela razão - que é a razão dominante -, podeusar a dúvida para perceber que riqueza lhe resta ainda e que uso quer fazerdela. ,

Neste ponto, a mulher natural levaria certamente a melhor sobre ohomem artificial. Mas para que serviria esta vit6ria? E a quem?

6. A relação (l + 1=2)

Toda a mulher, na sua vida, per~orreo ciclo completo da hist6~ia femi­nina. Nascida diferente do rapaz, até à adolescência, partilha mais du menoso destino dele, conforme a diversificação mais ou menos acentuada Pela edu­cação: prepara-se para uma função diferente da do homem; há limites quan­titativos ou qualitativos que fazem prever um destino diferente, mas existeainda uma indiferenciação que a cohserva na categoria das «crianças» (quelonginquamente faz lembrar aquilo que a pré-história poderia ser). Na adoles­cência, ela pr6pria se descobre possuída pela natureza: pode sentir horrorpelo seu corpo que muda, pode senti·lo estranho, animal, e, para ó aceitar,deve apropriar-se dele e dominá-Io, ,estabelecendo uma distânciaerntre si eessa «coisa»que não reconhece e não,lhe pertence. Se consegue aceitar comoseu este corpo com uma vida aut6noma que é obrigada a suportar, terá acei­tado a sua feminilidade, mas existir:1sempre uma distância que o,/~eu«Eu»quererá manter com esta natureza invasora que se apropria dela, in)prlmindo­-lhe uma marca: o seu espírito proêurará dominar a natureza hostil e ini­miga mas simultaneamente será dominado por ela (é a operação realizadapelo homem no momento em que submeteu a natureza e a mulher, cbhservandopara si o reino da transcendência e relegando a mulher para a imanêntia). Masse consegue aceitar como seu este cotpo-natureza, a mulher permanece natu­reza aos olhos do homem que se apodera· dela: no seu amor por ele, natu­reza e cultura levam-na a um estado 'de dedicação e de submissãd total noqual se extravia e se perde. Esmaga'da pela maternidade e pela criação dosfilhos, não sentirá sempre o peso do limite e da tutela, antes vivê-Ids-ácomoprotecção e compensação: uma divi,sâo de trabalho justa em que cada umtem o seu papel e a mulher se sen~ maternal e responsável por uma vidaque depende dela (efectivada a sua $ujeição, durante séculos a mulher perma­nece preenchida e aprisionada por esta certeza que a justifica aos seus olhos e aos

olhos dos outros). Mas, se começa a sentir a necessidade de se debruçar e com­preender as coisas do mundo para 'tomar parte nelas, apercebe-se de que

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acreditou que tinha um lugar, mas que na verdade se tratava de um lugarde que podia apenas debruçar-se. Se tenta sair, se procura compreender oque aconteceu enquanto estava «dentro", começará a ser diferente daquiloque era e a querer alguma coisa (é a mulher que começa a tomar consciênciada sua condição e começa a lutar). O homem dir-Ihe-á que estas suas aspira­ções egoístas - para ele naturais - não fazem parte da sua natureza; queé bom que fique igual a si pr6pria, que a ele lhe agrada assim; e outrasvezes a reprovarão e a farão sentir-se estranha num mundo que não é seu.Mas, se continua a insistir, esta insistência torna-se suspeita: uma ameaçapara o homem mas também para o mundo que lhe deve arranjar um lugare começllr a tê-Ia em conta. Estas suM aspirações a existir como pessoa ­

para além do seu papel de ftIha, de m~lher e de mãe - tornam-se reivindi­cações pesadas que o homem não tolera, porque a primeira barreira contraa qual a mulher se defronta é o homem, que continua a querê-Ia conformeà imagem que corresponde às pr6prijls necessidades (as conquistas graduais

da mulhfr no plano social envolvem t'a~bém o seu papel no plano pessoal).A mulher apercebe-se então de que eSf~s6 - de qualquer maneira - e, senão se dá'por vencida para não perder aquilo que tem, decide dar a cara,libertar-se da tutela e medir forças. Perdeu a velha certeza que já não basta

para a jlf~tificar perante si pr6pria e o~ outros e quer experimentar mudare mudar as coisas: se deixar de ser tutelada, saberá fmalmente quem é, o quesabe fazer,' o que quer fazer, e torna-se diferente. O esforço que esta trans­formação lhe custará fará com que frequentemente seja agressiva, prontapara a defesa e para o ataque, de tal modo que o homem lhe dirá que nãolhe fica bem ser como ela, não condiz com ela essa força masculina, queperderá as suas prerrogativas pelo caminho, que uma mulher é acima detudo uma mulher. Mas, se ela quiser ser uma mulher-pessoa e não quiserser um homem, começa a falar uma outra linguagem e a tentar transmitirnovas palavras. Que são rejeitadas.

E então pergunta a si mesma o que será esta relação que existe s6enquanto ela não existe.

É neste ponto que começa o problema, e é a nossa história actual.É possível uma relação entre dois sujeitos ou deve aceitar-se que a pre­

potência de um sobre o outro seja natural, seja quem for aquele que vença?Se é natural a necessidade que une um ao outro, não deveria bastar partirdesta necessidade recíproca para construir alguma coisa que respeite as exi­gências de ambos? Neste último século, vivendo em condições gradualmentediferentes, a mulher demonstrou concretamente que a sua menoridade 'erao produto de uma inferioridade social, mantida e desejada durante séculos.Esta inferioridade social condicionou-a a crescer e a desenvolver-se segundoas medidas e os espaços que lhe foram concedidos: eram precisos esforçostitãnicos para os ultrapassar, e a mulher teve de lutar para demonstrar, sobre­tudo a si própria, que existia e que era alguma coisa que apenas intuía masque não quadrava com os espaços e com as medidas que lhe tinham sidoatribuídas.

Agora entrou no campo e pode ser amiga ou inimiga: pode propor algumacoisa de novo ou pode querer vencer depois de tantas derrotas. É este o

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drama que estamos a viver, o risco de uma nova «grande derrota", dife­rente, mas que assinalaria a falência de uma nova ocasião perdida: destavez para a mulher e para o homem e para a realidade em que vivem ohomem e a mulher.

Prisioneiros de uma 16gica arcaica e com raízes profundas, segundo aqual há sempre um vencedor e um vencido, conseguir-se-á sair deste jogoque permite, no máximo, que se invertam as partes? Que sentido tem recusara opressão de si mesmo pelo outro, para reivindicar o direito a oprimi-Iada mesma maneira e com os mesmos instrumentos? Como arrancar o poderdas mãos de quem o detém sem exercer o mesmo. poder sobre quem acabade ser tornado impotente? Como superar os tempos das reivindicações, dainversão dos termos que deixa intacta a natureza da opressão e a qualidadeda relação entre quem segura a faca pelo lado do cabo e quem se encontracom a faca apontada? É um problema que não diz respeito apenas à relaçãoentre p homem e a mulher mas também entre opressor e oprimido, entreforte e fraco, entre quem tem o poder e quem não o tem: são portanto per­guntas que envolvem toda a estrutura social e todos os valores produzidospor ela e que não podem ter respostas parciais. Mas no caso da relação entreo homem e a mulher, existe qualquer coisa de mais complicado e simulta- .neamente mais simples: a necessidade natural que reciprocamente os unee que a hist6ria separou. A prepotência de um sobre o outro apoia-se sem­pre sobre esta necessidade recíproca que pode ser garantia de uma mudança.

Reconhecer o mesmo peso às exigências, às necessidades e aos desejosde ambos - mesmo se a mulher, entre outras coisas, for mãe se assim oquiser - não deveria ser uma operação que exigisse um massacre. Se ohomem assimilou sempre a cultura da prepotência, a mulher incorporou sem­pre a da submissão e da inconsciência, e o esforço necessário ao homempara se modificar é necessário à mulher para se conquistar a si pr6pria enão recair nos mecanismos usados para se defender da prepotência. Estamodificação recíproca pode realizar-se unicamente através de um laço recí·proco que permita um confronto com a realidade das coisas, e é o posicio­namento aut6nomo de cada um dos pólos da relação com a realidade dascoisas que pode dar um significado diferente a este laço. Duas figuras quevivam uma relação directa, pessoal, aut6noma com o mundo são duas uni­dades que se fundem e que não precisam da morte do outro para a sua pró­pria sobrevivência nem de encontrar confirmação para a pr6pria força atra­vés da fraqueza de outrem. Quando a mulher afirma o seu direito a existire a ser reconhecida como pessoa, é uma nova possibilidade de vida que seestá a propor - ao homem e ao mundo -, e isto não significa automatica­mente atirar as culpas sobre o homem que assimilou uma cultura que nãoadmitia este direito. Nem sempre a conquista destes direitos é reivindica­ção pessoal e vingança: aceitar entrar no jogo da culpa e das reacções emcadeia que esta produz significa somente reduzir a um acto de emancipaçãoindividual o que é um movimento de libertação social. E, todavia, é tam­bém verdade que é difícil acordar uma manhã e sentir-se inocente.

De que modo conquistar esta nova inocência, como se a hi~t6ria nãotivesse existido?

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o homem, que representou o papel de mediador com a realidade e como poder, é agora o mediador também da opressão que a realidade e o poderlhe trazem. Neste sentido, já não está em posição de oferecer à mulher nemsequer a antiga tutela e pede-lhe protecção. A mulher que, pela primeiravez, se vê na situação de enfrentar directamente a realidade e o poder,é actualmente mais forte, mais inteira, mais íntegra no seu imediatismo emais nova como força social. Pode depender muito dela o modo como anda­rão as coisas. É uma vez mais pedir à mulher que pague o preço mais altoda crise que estamos vivendo? Talvez, mas de uma maneira totalmente dife­rente, porque é fmalmente pedir-lhe uma participação activa e determinante.Mas isto exige também uma tensão contínua: já não há refúgios para nin­guém, nem repouso, nem cantos onde esconder-se para recuperar o fôlego;exactamente como na vida social, já não há maneira de ocultar a prepotên­cia que se manifesta abertamente através da voz de quem deixou de estardisposto a tolerá-Ia.

E é uma luta fundada igualmente sobre uma nova fIrmeza que exi~e damulher que não entre também ela no jogo do pessoal e do político; quenão use palavras que a sua vida na prática desmente; que conserve a suacoerência frente ao poder e que se saiba julgar a si pr6pria como o fez como homem e com o mundo. ' .

O patrim6nio que provém do conhecimento padecido da sua escravidãodá à mulher a consciência do facto de que, enquanto existir um escravo,ninguém pode ser livre. Isto signifIca saber que o conceito mesmo de «liber­dade." tal como o conhecemos na nossa cultura e do qual a mulher rlunca

"!ÍI"clUproveito, é falso e inquinado, porque implica sempre alguém que paguepela liberdad<: do outro. Se a mulher conseguir conservar este juizo aindanão corrompido pela ideologia, será ela que poderá dizer uma palavra' dife­rente, mas isto requer clareza frente à ilusão de ter um poder. Porque sea. mulher nunca esteve inteiramente condicionada pela 16gica deste poder,Visto que esteve durante séculos excluída dele, é de um outro poder queestá em condições de começar a falar: o poder de fazer, de mudar ps coi­sas, de impor um caminho diferente, outras relações, de impor as netessi­dades vitais pr6prias como necessidades do mundo, o qual parece, pelo con­trárioj decidido a suicidar-se; o poder de se opor a este massacre qhe nosespera na volta do caminho.

Não é fácil ver como as coisas possam evoluir, a partir do momerltb emque dte problema se insere, obviamente\ no interior da crise geral que esta­

mos vivendo. Mas se a ética do protestantismo esteve na base do lleforçoda farntlia burguesa com vista ao desenvolvimento do capital, presentementea impossibilidade ou a insustentabilidade das relações corresponde à faseactual do desenvolvimento, que utiliza também estes conflitos para Perpe­tuar o domínio.

Isto deveria fazer repensar que coisa signillca criar relações e laços. Domodo como as coisas vão evoluindo, parece perceber-se que o sexo .liber­tado» não basta para os criar, se é vivido apenas como uma necessidade pri­mária do corpo. É uma componente importante e vital mas que torna com­pleto e encerra em si alguma coisa que já existe, ligado a uma forma de

entendimento ou de expectativa que produz a imaginação e a fantasia narelação. A descoberta recíproca do que o outro é através das expectativasrecíprocas é o que produz a união - quer ela seja duradoura ou breve -,porque é através desta descoberta recíproca que se vem a ser alguma coisaque antes não se era, alguma coisa que não existe num ou noutro, mas queexiste naquele dois que se cria. É a união que produz duas outras pessoas:a relação er6tica dá então corpo a esta invenção na qual ambas as partesse reconhecem, enriquecidas daquilo que o outro é ou daquilo que o outroespera. E se a união abre - e não fecha - esta unidade ao mundo e sedeixa atravessar pelo mundo, pode inventar ou projectar algo que se reflecteno mundo. Limitar-se a aceitar que se transforme o «sexo reprimido» noseu contrário signifIca que se renuncia a procurar outros valores que podemexistir nas relações entre os homeIts. Sair da fase repressiva na relação aosexo que, na nossa cultura, monopolizou, centrando no "pecado),L temidoe cometido -, a gama completa das relações humanas, sem conseguir indi­vidualizar que outros modos de relacionamento esta repressão tirlha poucoa pouco anulado, pode fazer-nos cair numa atitude simplesmentt de sinalcontrário que, na ilusão de uma liberdade conquistada, continua a ocultaras possibilidades infInitas da relaç~1)humana. Reduzir estas possibilidadesde afecto, de amizade, de ternura entre mulheres, entre homens, entremulheres e homens, entre adultos.e crianças, entre velhos e noVos a umúnico núcleo obsessivo - o sexo ..••que, assim como antes era reprimidoagora é saudado como um valor, significa aceitar o empobrecimento totalda nossa existência. O sexo é demasiado pouco para ser tudo e torna-se umamagra compensação para aquilo de que fomos desapossados. '

As mulheres que lutam estão tluhbém a dizer isto: estão à tlrocura deuma relação que seja mais completa, mais humana, mais rica, .h1ais terna,em que a sensualidade não se reduza a um acto mecânico de pura posse,mas que envolva todas as capacidades de perceber e de viver' ti mundo.

Apropriar-se do corpo deveria entãq ~ignificar também apropriar~se de todasestas possibilidades de relacionamento e poderia não ser um slogalt.: 'com estaspossibilidades reconquistadas, talv~;ãnos pudéssemos tornar mais fortes emais capazes de nos apropriarmos ';do mundo e de lutarmos para o tornardiferente. ' J

Se é verdade que a subordinaç(p' originária da mulher era fisiol6gica nomomento em que o corpo social se organizou, a sua insubord'irlação e asexigências humanas e vitais que coloca não poderão resultar fisiol6gicas nomomento em que se organiza um I)OVO corpo social, se ela tiver força parareivindicar o facto de ser diferente mas igual, numa 16gica que sobrevive àdiscriminação de uma diferença qualquer? Mas como?

O mundo actual é invadido por sons que cobrem o silêncio mortal queacompanha aquilo que se está a matar.

De que modo lutar para que a palavra não se torne ruído e para quea acção não seja um gesto aplaudido ou ignorado. É preciso percorrer aestrada até ao fundo, mas continuam a encontrar-se cartazes, r6tulos, papéis,definições, nomes. [F. O. B.j.

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D O espaço económico e o espaço social que a mulher tem ocupado mostram claramente qualtem sido a sua função historicamente determinada. Senhora, rainha da casa, foi-lhe frequente­mente atribuída a administração de um território circunscrito (e alguns campos de interessee sectores precisos em que o trabalho é fonte de alienação: por exemplo a cozinha, a moda,

a tutela e a gestão quotidiana da família, etc.) cujo código de valores já estava estabelecidoa priori: a ética da famOia bem organizada reproduz de facto sem nenhuma modificação opoder/autoridade que se constitui homologando os dois membros do par público/privado de maneiraa fazer interiorizar todo o conflito, exercendo uma censura, por meio do papeVestatuto do homem­-marido, que vai da esfera da sexualidade às diversas formas de cerimonial impostas pelo grupo

e pela comunidade, que organiza a repressão, obrigando também a mulher a papéis subalternos,a funções discriminatórias (cf. discriminação, exclusão/integração).

A história do misoginismo do Ocidente viu a mulher no centro de variadas crenças: sobre­tudo sede e via do diabo, implicada na bruxaria, mesmo se não faltaram fases (por exemploem certas formas de matriarcado de que restam ainda claros vestígios, entre outros nos nomesde parentesco) em que a mulher esteve no centro do mito (cf. mito/rito), guerreira e/ou deusaprotectora.

Em geral, em relação com o par natureza/cultura, quis-se, por outro lado, que a mulherfosse - veja-se a religião - fêmea do homem (cf. homem), nunca a reconhecendo como serhumano feminino, como pessoa, como sujeito histórico-social independente, e foi consagrada,com certos tipos de casamento (cf. endogamia/exogamia), unicamente à reprodução da espécie,

transmissorá passiva das caracterfsticas do cônjuge à prole; por outro lado, pretendeu-se, quasepor tradição, que ela tivesse um papel específico (cf. homem/mulher, masculino/feminino), cor­respondente a determinadas caracterfsticas e atitudes consideradas específicas, se não mesmoexclusivas dela.

Em certos casos negou-se, até, à mulher individualidade biológica, diferenciação no âmbitodo anthropos; qualidades genéticas peculiares (cf. gene, hereditariedade), autonomia física emrelação ao homem, ao qual se considerava que estava subordinada também, ou sobretudo, a nívelnatural (talvez, na nossa cultura, com base na história da criação).

A mulher, estando no centro de um comportamento e condicionamento diferentes dos do homem,suporta, e em certos casos verifica, a sua dependência, tanto nas diversas fases da vida (selec­cionada de maneira diferente no nascimento, na infância, na velhice), como em particular noexercício da sexualidade (medido pelo lugaNO/num do corpo como símbolo), na formação dodesejo, do prazer (cf. eros, pulsão) e até de neuroses/psicoses específicas, na definição, se se qui·ser, de um puro/impuro diferente do do macho (cf. incesto).

Superar tudo isto faz parte do projecto de uma sociedade nova, talvez de uma utopia, requeruma revolução também exterior a ele, ou não começará antes a ser um problema de toleron­

cia/intolerância, igualdade, liberdade, mesmo para e no amor, cuja solução positiva começa poruma educação com o homem para uma cultura (cf. cultura/culturas) se bem que diferente noseu interior, se quisermos, mas sempre unitária e comum?

CASTA

Na sociologia contemporânea a palavra 'casta' designa duas coisas dife­rente/l: uma forma rígida de «classe»ou a unidade que compõe um «sistemade castas» que existe apenas na sociedade indiana.

Para alguns estudiosos, o primeiro sentido abrange todas as formas rígi­das de desigualdade e de «estratificação» social; para outros, a estratificaçãodas classes, mesmo sendo rígida, é um fenómeno diferente da hierarquiadas castas. Esta última não é redutível apenas à desigualdade e à ausênciade mobilidade vertical, mas implica grupos de estatutos cujas funções rituais

;:, e económicas têm uma relação sistemática e conscientemente justificada por'·'JI';,./,uma ideologia que subordina as partes ao todo.

., A escolha de um uso lato ou restrito da noção de casta põe em jogo algunsproblemas fundamentais da sociologia.

1. A casta: fen6meno cultural ou estrutural?

Para alguns estudiosos (Bailey, Berreman, Barth), o uso «lato»da noçãode casta é justificado pelo carácter comparativo da sociologia. Os conceitosdesta ciência devem ter uma aplicação universal e não apenas regional. Asnoções específicas de uma sociedade ou de uma civilização são consideradasfactos culturais e não de estrutura social. O estudioso de sociologia compa­rada ocupa-se apenas da estrutura social, e por isso os conceitos de que seserve devem ser independentes das particularidades culturais [Berreman 1967,p.45].

Daí o dilema: a casta é um fenómeno da cultura indiana ou um fenó­meno muito geral de. estrutura social?

Ignorando a ideologia da casta e omitindo arbitrariamente algumas carac­terísticas da organização social, esses estudiosos não hesitam em inclinar-separa a segunda parte da alternativa. Tudo aquilo que, no sistema indianode castas, é específico da civilização indiana é, segundo eles, «cultural»(e, portanto, negligenciável) e não «estrutura"'.

A este ponto de vista podemos objectar que a ideologia não é só a racio­nalização, culturalmente variável, da «estrutura social», mas é, sim, parteintegrante desta última e não pode ser dela arbitrariamente separada. O soció-

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.'CASTA lUl CASTA

logo pretende chegar u um ponto de vista totuimente livre de pressupostosideológicos. Mas ignorando as ideologias e os valores das sociedades estu­dadas arrisca-se a substituir u própria ideologia e os próprios valores dessassociedades.

Como veremos, o método que isola estruturas «económicas» e «sociais»e Ihes atribui um poder explicativo privilegiado depende de uma ideologiaque considera a esfera económica como dominante em qualquer sociedade.Mas afirmar que as estruturas económicas e sociais, artificialmente isoladasdo seu contexto ideológico, são «objectivamente» inteligíveis significa atri­buir aos nossos valores «economicistas» uma aplicação universal, e projectara nossa sociedade moderna na sociedade das castas significa, além disso, con­siderar a ideologia, os valores que regem a acção do homem da casta, nãocomo factos sociais, mas como ilusões da consciência, racionalizações.

Por esta razão consideramos falso o dualismo entre cultural e estrutural.

2. A casta como limite da classe

As ambiguidades das definições modernas de casta encontram-se já emMa" Weber que, conforme observou Leach [1960, pp. 1-2], a considera,ou como um fenómenocultural, ou como um fenómeno estrutural, e nãoconsegue, portanto, transmitir aquilo que é especificamente indiand nestainstituição. Weber [1908-20] reconheceu, no entanto, a,distinção essencial,na índia, entre «classe»e «grupo de estatuto» (Stand), entre «econotnia» e«honra». Mas, para ele, o sistema das castas resulta de uma conjugação entre«grupos de estatuto» e «comunidades étnicas». Os grupos inferiores são tole­rados porque indispensáveis a nível económico. A sociedade das castasparece, portanto, ser fundamentalmente heterogénea: embora afirmando quea conjugação entre estatuto e etnia constitui uma Gemeinschaft 'comunidadepolítica', Weber não nos dá conta da sua organização sistemática e justapõeo aspecto étnico, o da divisão do trabalho e da hierarquia, sobrepondo umponto de vista europeu e «histórico» (origem étnica diferente das várias cas­tas) ao ponto de vista autóctone e sociológico.

Além disso, para Weber, a diferença entre Stand e casta depende ape­nas de uma racionalizaçãoculturalmente diferente da estrutura social: o grupode estatuto é uma casta quando a sua separação de outros grupos de ,esta­tuto é garantida, não tanto por leis e convenções, quanto por regras tituaisque dizem respeito ao contacto e à impureza [cf. Dumont 1966, p.\ ~08).

O estudioso que formulou de forma mais nítida a definição de castl1como

forma especial da classe social foi Kroeber. Para ele, as castas estão ~tesen­tes em todas as sociedades, «pelo menos tendencialmente. No entanto, ascastas diferem das classes sociais pelo facto de estarem a tal ponto atreiga­das na consciência nacional, que o costume e a lei tentam separá-Ias umasdas outras de forma rígida e permanente». Kroeber retoma em parte a defi­nição de Weber quando acrescenta que a casta é «uma subdivisão endógamae hereditária de uma unidade étnica que ocupa uma posição de destaqueou de estima social superior ou inferior em relação a outras subdivisões do

mesmo tipo» [1930, p. 254). Mas não distingue, como Weber, entre posi­ção de estatuto e classe. Aceite por Warner e pelos seus sucessores, a defi­nição de Kroeber está na base da corrente para a qual a casta é, definitiva­mente, uma forma rígida de classe.

A incapacidade de transmitir aquilo que é característico da noção de castadepende, aliás, de uma definição bastante vaga da noção de classe [cf. Leach1967, pp. 5-16]. Para Berreman, por exemplo, a classe é a instituição que«define a posição dos seus membros em função dos seus atributos e com­portamentos individuais». A casta é, pelo contrário, uma instituição que clas­sifica as pessoas em função do grupo a que pertencem pelo nascimento, istoé (como na definição de Kroeber); em grupos hereditários. Mas é difícilperceber a diferença entre uma sociedade de classes e uma sociedade de cas­tas, quando Berreman afirma: «O (acto de um sistema de castas constituiruma hierarquia implica que é um sistema de avaliaçõesdiferenciais, de pode­res e de recompensas diferenciais, em resumo, um sistema de desigualdadeinstitucionalizada» [1968, p. 334]. A hierarquia entre castas não parece assimmuito diferente da desigualdade entre classes. A diferença não estaria, porisso, nas relações entre grupos, que seriam da mesma natureza nos dois tiposde sociedade, mas no recrutamento dos membros desses grupos. Os mem­bros da casta são recrutados por filiação; os da classe, pelos seus atributose méritos individuais.

A oposição entre a casta (classe'sem mobilidade vertical) e atlasse noverdadeiro sentido da palavra, cadcterizada por essa mobilidade! permitea vários estudiosos identificarem o sistema rígido das relações raciais no Suldos Estados Unidos com o sistema indiano de castas, porque ambo~ se carac­terizam pela impossibilidade de os grupos entrarem em contacto dtravés do

casamento ou da convivência, etc. ter. Warner e Davis 1939, pp. 219-45].Mas será suficiente constatar a identidade de um conjunto de caracterís­ticas particulares (endogamia, tabu da convivência, etc.) para afirmar a iden­tidade de dois sistemas sociais? O sistema indiano de castas é, precisamente,um sistema e, como tal, deve ser comparado com outros sistemas [cf.Dumont 1966, p. 311). Uma mesm. característica pode ter funções opostasem dois sistemas diferentes. Além disso, a consciência autóctone di:> sistemasocial, a sua legitimação ideológica, 'deve ser considerada como eidnento decomparação. No sistema racial do 8\.11 dos Estados Unidos, o Negro nãoconsidera legítimo o sistema, mas itlta contra ele. Na índia, a relalj:ãotradi­cional de um inferior com um superior não implica necessariamente umadesigualdade de poder que coincida tom a diferença hierárquica; além disso,ambos têm em comum determinados valores e uma visão do sistema quejustifica, a seus olhos, a respectiva posição que nele ocupam. As suas rela­ções só mudam de sentido quando, ~om a transformação moderna da casta,o sistema global é posto em questão. A competição de estatutos tende entãoa transformar-se em conflito de classe, mas só porque o sistema das castasfoi entretanto contestado. Os inferiores combatem, então, não tanto os supe­riores, quanto o próprio sistema das castas [cf. Leach 1960, pp. 6-7].

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CASTA 202 203 CASTA

3. As castas e os sistemas etnicamente pluralistas

Embora afirmando que o sistema das castas não difere de um sistemade estratificação social, Berreman associa-lhe o «pluralismo étnico e cultu­ra),•. A sociedade das castas seria um sistema de integração entre gruposétnicos diversos que conservariam a sua diversidade quando, num verda­deiro sistema de classes, a perderiam. Deste modo, Berreman retoma umadas componentes da definição de Weber, desenvolvendo-a com uma teoriamais sofisticada da comunicação culturlll: as fronteiras entre as castas impe­diriam a circulação cultural e, portantp, cada casta ou cada grupo étnicoteria as suas instituições, a sua cultura, ou o seu modo particular de inter­pretar uma mesma cultura.

Por outro lado, a ausência de valores comuns caracterizaria quer a socie­dade «pl\lralista» quer a 'sociedade das castas: isso faria com que estas socie­dades se conseguissem manter unidas Illais pelo poder do que pelo consenso.Assim, estas sociedades integram, por um lado, grupos distintos sem osmodificarem culturalmente e sem os incorporarem e, para funcionarem,criam mesmo fronteiras institucionais e culturais que perpetuam as diferen­ças, especialmente as de profissão; por outro, mantêm o sistema por meiode coerçãoexercida por um grupo dotninante. Por isso, mais do que a inter­dependência entre as castas, se sublinha a sua independência cultural e ins­titucional, bem como a dependência política das castas inferiores em rela­ção às castas superiores [Berreman 1968, pp. 333-36].

Segundo esta teoria, dois princípios são, portanto, essenciais para defi­nir um sistema de castas: 1) todos os sistemas de castas são mantidos pelopoder relativo de cada casta e pelo facto de as sanções estarem nas mãosdo grupo dotninante. Isso deve-se à heterogeneidade cultural, ideológica einstitucional das castas; 2) na sociedade das castas, os papéis são indiferen­tes ou «somados».

Os sistemas de classes seriam, pelo. contrário, caracterizados mais peloconsenso do que pelo poder de uma classe dominante, e os papéis seriam

I, distintos.No que se refere ao primeiro princípio, se é verdade que as relações de

poder são importantes num sistema de castas, é igualmente verdade que asrelações hierárquicas são conceptualmente (e, em grande parte, também fac­

tualmente) distintas das relações de poder. A hierarquia é, no entanto, i~no­rada pela teoria que referimos e é considerada incompreensível ou inexis­tente como princípio aut6nomo. O sistema das castas apresenta-se, portanto,simplesmente como a perversão do sistema de classes.

Quanto ao princípio da soma dos estatutos, é precisamente o coroláriodo princípio anterior e afirma que as relações hierárquicas coincidem comas de poder. Quem possui um estatuto elevado do ponto de vista ritual temtendência a ter simultaneamente um estatuto elevado do ponto de vista eco­n6mico, político e social. Para Barth, este princípio permite defInir um sis­tema de castas, «estruturalmente», «como um sistema de estratificaçãosocia)", mais do que como um sistema ideol6gico e cultural [1960, p. 145].

Esse sistema seria típico das sociedades tradicionai; não homogéneas e múl­tiplas (ou pluralistas) do ponto de vista étnico e estaria ligado funcional­mente a um sistema complicado de divisão do trabalho numa economia essen·cialmente não-monetária. S6 com esta definição seria possível, segundo Barth,comparar as sociedades de castas no subcontinente indiano e em outroslugares.

.Observemos que a omissão da distinção fundamental entre hierarquia epoder surge na pr6pria expressão «soma dos estatutos». O estatuto socialou ritual é colocado no mesmo plano do estamto econ6mico e político. Narealidade, para Barth, só o chamado estamto <<social»se poderia definir comoestatuto no sentido estrito da palavra, enquanto os chamados estatutos polí­ticos e econ6micos deveriam ser considerados antes como ~Qéis».

Conforme observou Dumont, a f6rmula de Barth centra-se, em qualquercaso, no aspecto social, uma vez que pressupõe a combinação de funçõesque só são distintas na sociedade moderna, ao passo que o sistema dos Pathando Swat - de que fala Barth - se caracteriza mais pela indiferenciação quepela soma dos estatutos [Dumont 1967, p. 30].

Em conclusão: opondo o sistema de classes ao sistema de castas, comoum sistema aberto (no sentido de Popper) a um sistema fechado, os te6ri­cos da estratificação social definem o sistema de castas como uma perversãonão igualitária do sistema de classes e apresentam dele uma interpretaçãocentrada no factor social (modelada sobretudo pelo sistema das relações raciaisna América), que ignora a ideologia e os valores pr6prios do sistema indianoe a distinção fundamental entre hierarquia dos estatutos e distribuição dife­rencial do poder político e econótnico. Esta interpretação tem, aliás, muitoem comum com a teoria marxista do «despotismo oriental», segundo a qualum grupo dominante engloba, numa organização despótica do poder polí­tico, comunidades autónomas e sem relações de complementaridade econ6­mica e social (as «comunidades de aldeia») [cf. Dumont 1975, pp. 41-48].

4. A casta como fenómeno indiano

A discussão anterior fez com que surgisse a necessidade de compreen­der a especificidade do sistema indiano de castas, em vez de partir de umadefinição em aparência suficientemente lata para pertnitir a comparação, masna realidade inequivocamente reducionista e etnocêntrica. Não se trata deexorcizar a diferença mas de compreendê-Ia: este é o único ponto de vistapossível para uma comparação. .

Para compreender o sistema das castas é preciso, por isso, começar pelasua definição «etnográfica».

1) A casta (jl1t, jl1ti) é um grupo a que se pertence por nascimento eque é caracterizado, em princípio, pela endogamia. Significa isto que o cri­tério de inclusão é adscritivo e não modificável por um indivíduo. Comoa casta é endógama, os pais têm a mesma casta e o mesmo estatuto e, porisso, a miação não deixa nunca uma possibilidade de escolha entre perten­cer ao grupo paterno ou pertencer ao grupo materno, como acontece nos

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4.1. A noção de hierarquia\

Segundo Louis Dumont (1966, p. 269], o princípio fundamental ~ó sis­tema de castas é aseparação entre estatuto religioso e poder. Esta separa­ção não é entre duas categorias colocadas no mesmo plano, mas implica queuma seja subordinada à outra. Trata-se portanto de uma separação hierár­quica em que o poder é inferior a um princípio mais fundamental que osubordina e legitima, dando-lhe um sentido que não possui autonomamente.

Sem esta separação subordinante, não é possível falar de um sistema de.castasI propriamente dito. Dumont exclui, por exemplo, que se possa falar de cas­

tas no Ceilão, porque nessa sociedade o representante do princípio do pod~r,o rei, está no vértice da hierarquia. A ausência de separação hierárqUIca

p'.,\

sistemas hierárquicos caracterizados pela[ã.i!§gãiIlia \(isto é, pelo casamentoentre gruposde estatuto diverso). As relações de ji-arentesco são, por isso,

-'semprehorizontais e igualitárias em termos de casta, enquanto as relaçõesque não são de parentesco são sempre hierárquicas [cf. Leach 1960, p. 8).

I O casamento faz-se entre iguais, isto é, entre pessoas que possam. ter rela­ções sociais sem restrições importantes.

) 2) Cada casta tem uma posição defInida na hierarquia. Essa posição podeser alterada num grupo inteiro mas não em indivíduos isolados, a menosque algum deles seja expulso da sua casta e perca assim o seu estatuto. Osbrâmanes (a casta dos sacerdotes) estão no vértice da hierarquia dos estatu­tos e centralizam todo o sistema das castas.

) 3) A separação e a posição hierárquica das castas exprime~-se por sí~­bolos de pureza e de impureza. Os membros das castas supenores são maIs

puros que os das castas inferiores e arriscam-se a perder a sua purez~ sese associam aos das castas inferiores em contextos alimentares, sexuaIs erituais (que implicam a exclusão da exogamia e do convívio e uma divisãoprecisa dos papéis rituais das castas). .

4) As castas estão ligadas à divisão do trabalho: estão associadas a umaocupação tradicional e têm direitos e deveres precisos nos sistemas de pres­tações e contraprestações.

Os critérios etnográfIcos podem ser modifIcados ou multiplicados con­soante as variantes regionais ou o grau de diferenciação de um sistema decastas numa unidade territorial, mas os princípios subjacentes contil1uamidênticos e podem ser reduzidos a uma defInição mínima, apresentada porBouglé [1908] e retomada por Dumont [1966, p. 64]: o sistema de castasé constituído por grupos hereditários distintos e ligados entre si atravé~ de:1) uma gradaçã!u!e_estatut~,-ouhierarquia; 2) regras de separação; 3) adivisão do trabalho e a interdependência que daí resulta. ,

Para defInir o sistema de castas é portanto necessário explicar o que éa hierarquia, o que são as regras de separação (ritual, matrimonial tt ali­mentar) e a ideologia que opõe o puro ao impuro; como se caracteriza ahierarquia e como se articula com o poder político; o que é o sistema dadivisão de trabalho e das prestações e contraprestações.

/

CASTA205

entre estatuto religiOSOe poder político encontra-se precisamente onde obudismo deu ao rei prerrogativas religiosas, além de políticas. O rei é, defacto, considerado um «Buda vivo» ou «destinado a ser Buda» (bodhisattva)e um «imperador do mundo» (cakkravartin) [cf. Heine-Geldern 1956]. Destamaneira, o budismo tenta conciliar a contradição entre a prática da morali­dade e da religião e as necessidades da política e do uso da força.

Pelo contrário, desde a época das Brãhma1JQ(800-500 a. C.?), o hinduísmofez uma distinção radical entre religião e política, dando a esta última umaesfera de acção própria, mas subordinando-a à religião através dos brâma­nes. As duas actividades são distintas mas complementares. A teoria hinduda hierarquia defIne, com efeito, uma totalidade social em que se inscre­vem, cada uma delas no lugar que lhe compete dentro da escala de valores,as actividades humanas polarizadas efíl categorias hereditárias (e que excluem,por isso, a escolha individual). A hierarquia social corresponde portanto àhierarquia dos valores tal como é e:stabelecida por uma ideologia religiosaque justifIca uma totalidade social ârticulada em funções complementares.

A visão total é religiosa [cf. Dumont 1966, p. 92], mas nãO exclui asvisões parciais, correspondentes a actividades específIcas,que não tê!.n, neces­sariamente, um carácter religioso. A~ actividades «racionais»(economia, polí­tica, etc.) encontram assim o seu fugar numa esfera que lhes é atribuídapelo sistema global, mas têm de fIcat hierarquicamente subordinadas a elee aos seus representantes na socieqade: os brâmancs.

A separação subordinante ligada à hierarquia permite assim a diferen­ciação de actividades, integrando-as simultaneamente num quadro unitáriono sistema de valores da sociedade. beste modo, desenvolveram-sé na índiadois tipos complementares de reflexào: um, contido na literatura do dharma

, (lei religiosa), outro, na literatura d,o artha (as leis da política e, qa econo­, iiUa,da «aquisição raciona},». Aliás, com a Arthãsastra (a doutrina do anha),'3 'índia desenvolveu, antes da Europn, uma teoria «maquiavélica»do Estado.

A i6leologiahierárquica faz com (Iue não exista contradição entre o pontode vista religioso e o racional. Cad~ um deles é perfeitamente le~ítimo nasua esfera e pode por isso manter-s~ ,distinto, conservando embora, graçasao laço hierárquico, uma relação coto o todo. A hierarquia defIne~se assimcomo «princípio de gradação dos el~mentos de um todo em relaçAoa essetodo» (isto é, através do modo de relllçionaçãode cada elemento com o todo)

i [Dumont 1966, p. 92]. Trata-se, pohanto, de um conceito familiat à tradi­/ ção clássica europeia e à Antiguidade em particular [cf. Finley 1973, trad .. it. pp. 48 segs.], mas o sistema indiano de castas tradu-lo sistemàticamente

na actividade social, faz dele um princípio sociológico, além de lógico.A moral hierárquica não tem, p(lltanto, como sujeito o indivíduo, mas

a própria totalidade social. A articulaÇãoe a unidade sociais não sãd o resul­tado mecânico dos conflitos ou das, transacções entre indivíduos bu entregrupos (classes) que agem com base no princípio individualista da competi­ção. Para a ideologia hierárquica, a totalidade social é o pressuposto, nãoo resultado, das relações entre grupos diferenciados. A ideologia modernaimplica, pelo contrário, a ideia da llutonomia do indivíduo e dos grupos,

• conceptualmente prioritária às suas relações: a sociedade global ê, portanto,, o produto da sua interacção (contratual ou conflitual). Para a ideologia hie-

204CASTA

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CASTA 206 207CASTA •

rárquica, pelo contrário, os grupos nascem por diferenciação a partir da tota­lidade, que é um pressuposto orgânico e não um resultado mecânico. Asrelações precedem, conceptualmente e no plano dos valores, as coisas quesão relacionadas. A justiça está então no colocar as diversas funções sociaisno seu devido lugar, onde possam explicar as suas actividades: os _sacerdo­tes, representantes e garantes dos valores últimos da finalidade de toda a

, sociedade, estão, por isso, no vértice da hierarquia, mas não podem exercero poder, que contaminaria a sua purella moral.

O ideal de justiça da ideologia moderna é totalmente diferente: partindodo indivíduo e do pressuposto que todos os indivíduos são iguais por natu­reza e têrp o mesmo valor, a justiça tem o fim de realizar socialmente essaigualdade. Daí a primazia da política, que é concebida como a actividadepela qual indivíduos e grupos entram em competição para obterem o con­trolo dos recursos e dos circuitos de prQ,puçãoe de distribuição: numa pala­vra, para o controlo do poder.

Sintomaticamente, a sociedade das castas atribui à actividade política eaos seus representantes uma posição subordinada. Se o brâmane está no vér­tice da sociedade, não tem, por isso, e como tal, o controlo do poder, reser­vado, pelo contrário, ao rei. Mas, por outro lado, o rei está subordinadoao brâmane e aos valores que este representa na sua actividade. Sem a cau­ção e a legitimação moral do sacerdote, o poder político não tem relaçãocom o todo social. Daí a necessidade de «mecanismos para transformar opoder em estatuto» [Dumont 1975, p. 20]: por exemplo, a dádiva aos brâ­manes. Esta dádiva pode parecer uma confirmação de que a superioridadede estatutos corresponde a privilégios económicos; na realidade, indica queo brâmane não tem acesso directo aos recursos nem qualquer direito sobreeles. Pode apenas ceder os próprios «méritos» em troca de riquezas que lhepermitem viver. Reciprocamente, quem tem riquezas pode cedê-Ias paraadquirir méritos. Mas sem a separação hierárquica entre o estatuto, ligadoa méritos morais, e o poder, ligado ao controlo dos recursos, este intercâm­bio não teria qualquer sentido. As actividades ritualmente inferiores são por­tanto complementares, mas distintas das actividades superiores: completam-seporque não existem independentemente do intercâmbio, que lhes permitecontinuarem a ser distintas.

O brâmane só pode permanecer como tal na medida em que é puro:a sua pureza permite-lhe o contacto com a ordem religiosa, contacto de quetoda a sociedade beneficia. Mas a pureza só pode ser realizada socialminte

se as actividades impuras mas necessárias à existência forem assumidas pelosgrupos sociais, considerados impuros porque as exercem. A pureza e a impu­reza não são, portanto, apresentadas separadamente: a hierarquia implicaa complementaridade, não só a_~xc:tu~lio.Do nosso ponto de vista indivi­dú~li;ta, é revoltante que estejam reservadas a certos indivíduos actividadespuras e a outros actividades impuras; mas do ponto de vista indiano nãosão os indivíduos' que contam, mas as relações que representam e cuja con­tinuidade permitem. Pelo princípio da reciprocidade das funções, o intocá­vel é tão indispensável quanto o brâmane: um e outro obtêm méritos exe­cutando as próprias funções hereditárias. Não existe, portanto, uma moral

i_subjectiva, mas uma moral de estatutos; não existem"deveres universais por-lã' h .

que n o eXIsteum ornem «unIversal». Existem, sim, sacerdotes, príncipes,lavradores ou servos [Dumont 1975, p. 23]. Por outro lado, parece existiruma certa relação en.tre o sist~ma de castas e a teoria da !r.lII!~I!!.Ígr!ç~pelomenos em certas varIantes da Ideologia hindu. Nascer numa casta e não nou­tra, e, portanto, ter funções mais ou menos puras tem então um sentidoreligioso. A casta em que se nasce numa reencarna~âo depende do compor­tamentp .nas vidas anteriores. O princípio segundo o qual se pertence à castapor nal!CImentoé, portanto, ele próprio, englobado na ordem moral que pre­side aQ ~istema. [cf. Dumont 1966, pp. 77 e 79; 1975, p. 32].

I • Esta ~deologIaparece-nos escandalosa porque ignoramos a distinção entreI hIerarqUla e poder. A hierarquia é uma ordem conceptual e ritual ligada

some~te a certas esf~ras da existência: na esfera econ6mica e política, asr~laçoes po~em ser.dIversas e mesmo inversas às rituais, mesmo que a prio­l'ldade ~a hIerarqUla faça com que, como vimos, se estabeleça uma comple­ment~Idade entre as duas esferas. Uma casta inferior do ponto de vista hie­rárqu~co pode deter o poder político e econ6mico, ao passo que uma castaSUpe~I?~pode ser forçada a depender, neste plano, dos seus inferiores. EssapossIbIlIdade está mesmo ins~rita no pr6prio princípio da hierarquia, querelega par~ uma esfe~asubordmada o controlo do poder e da riqueza. Mas,e~bora .seJa econo~lllcamente dependente de inferiores, o superior hierár­qUlCOve reconhecIda a sua superioridade nas esferas rituais.

As coisas que são hierarquicamente estruturadas são, portanto, as fun­ções, as actividades sociais e os homens associados a essas actividades. As

I relações de poder não constituem a ordem global da sociedade. Tambémelas representam uma ordem, uma forma de organização. Mas essa ordemé considerada secundária, subordinada à ordem religiosa, que organiza asrelações ~ntre ?S homens e os grupos de modo diferente e em função deum «sentIdo»dIferente. Ambas as ordens são legítimas desde que cada umase limite à esfera que lhe compete. '

Em conclusão: na base do sistema de castas está uma ideologia de inter­dependência e de relatividade: das funções, das esferas de actividade e dos~rupos que as representam e as põem em prática. O valor essencial é estaI~terdependência, porque não existem unidades privilegiadas que sejam con­sIde.radascomo elementos que constituem o todo, pelos quais e através dosquaIs ele é produzido.

Para n6s, ciosamente fiéis a uma ideologia que faz do «homem indivi­dual.considerado como universal" [Dumont 1975, p. 22] o ponto de refe­rênc~ados valores fundamentais, é impossível admitir a relatividade das pers­pectIvas e dos valores e que uma relação regida por leis particulares a umcerto nível se modifique na sua estrutura, nas suas leis e no seu «sentido"a u~ outro nível... Mais ainda, é-nos impossível admitir que cada um do~~ve~s tenha ,o seu lugar, o seu sentido e as suas relações com os outrosmveISnum SIstemaglobal que justifica a sociedade inteira, dando uma vali­dade parcial a cada um dos seus aspectos e das suas esferas. E, no entanto,é este o .sentido profundo da hierarquia das castas e da sua ideologia. Quandoo redUZImosa uma ficção ou a uma racionalização <;10 nível que, para nós,

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CASTA 2UM 209 CASTA

subordina todo os outros, isto ~, o das relações de poder, eslamos incons­cientemente a exercer uma censura. Arriscamo-nos assim a ignorar que, emtodas as sociedades, os homens agem e pensam segundo valores próprios,que não podemos considerar irrelevantes sem corrermos o risco de os subs­tituirmos pelo nossos valores e pela nossa ideologia política. A relação entrea esfera do poder político-económico e a esfera religiosa é, no sistema decastas, exactamente inversa à que vigora no nosso sistema de classes sociais.É portanto impossível assimilar directa ou sub-repticiamente um sistema aooutro: a comparação s6 pode opor os dois sistemas e reconhecer que a suasemelhança superficial deriva de se terem isolado arbitrariamente as rela­ções de poder, que são o único aspecto do sistema de castas directamenteacessível à nossa ideologia. Mas, considerado no todo de que faz parte ecujos princípios tentámos sucintamente expor, este aspecto revela-se, na rea­lidade, completamente diferente do modo como o encaram os te6ricos, queconsideram a casta como limite da classe e a ela reconduzível. .'

4.2. Pureza e impureza como símbolos da hierarquia

A totalidade pressuposta pela ideologia da casta não é política netn eco­nómica, mas religiosa. Como tal, não subordina a natureza ao homem, masestabelece uma relação entre eles. Os fenómenos fundamentais da vida orgâ­nica têm, em especial, um valor de símbolo na vida social, porque permi­tem exprimir as distinções entre as castas. Os três princípios fundamentais

que, segundo Bouglé, estão na base do sistema de castas podem redpzir-sea um único princípio, o da oposição entre puro e impuro. Esta oposiçãoimplica, de facto, a hierarquia (superioridade do puro sobre o impuro),a separação (é preciso manter separados puro e impuro) e a divisão do tra­balho (as ocupações puras e impuras são distintas mas complementares) [cf.Dumont 1966, p. 65).

Dumont demonstrou que a oposição entre puro e impuro contém' a pró­pria essência da hierarquia, porque dela resulta que o todo consiste. na coe­

xistência necessária de dois opostos. A oposição máxima é dualista: 'por umlado, a categoria mais pura, o brâmane, que utiliza de forma pura, certosgéneros (os produtos da vaca, por exemplo); por outro, o «intocável», queos utiliza de forma impura (utiliza, por exemplo, a vaca de tal m,odo queimplica a sua morte: curte-lhe a pele, çonsome a carne, etc.). Mas dsta opo­sição implica também que ambos os comportamentos são necessários, que,'ambosfazem necessariamente parte do sistema: «Não existiria um brâman,e·se estenão tivesse à sua disposição especialistas da impureza que lha' evitam»[Dumont 1975, p. 29]. A unidade nasce, portanto, de uma oposição. Emtermos lógicos, a totalidade-hierárquica distingue-se radicalmente' de umatotalidade dialéctica de tipo hegeliano. A oposição que regula a primeira énão-contraditória; a segunda é, pelo contrário, dominada pelo princípio dacontradiçlio e da superação dos termos contraditórios e da sua distinção.

A oposição conceptual entre estados puros e impuros transfere-se, por­tanto, para o sistema das relações sociais. Todos os homens passam transi-

~'fII

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toriamente por estados de impureza: a menstruação, o parto e a morte sãoexemplos particularmente importantes. A inscrição destes estados no socialjustifica a impureza ou a pureza relativas das castas. De facto, aqueles quese ocupam dos cadáveres ou de lavar a roupa suja, etc. estão permanente­

mente em contacto com a impureza. Transferida para o sistema social dadivisão do trabalho, a impureza transitória (na medida em que os seus efei­tos não saem da esfera privada) de uns transforma-se assim na impurezapermanente de outros. Em quase toda a índia, o sacerdote das cerimóniasfúnebres (o barbeiro, no Sul) e o homem que lava a roupa são, por isso,particularmente impuros. Outras actividades, pelo contrário, implicam aausência de impureza ou a purificação imediata: o rei, por exemplo, nuncaé impuro porque não pode ser impedido nas suas actividades; o estudantebrâmane, ao contrário das outras categorias de pessoas, só fica impuro pelamorte de parentes muito chegados, 'porque, intrinsecamente puro, é muitomenos afectado pela impureza da morte [cf. Dumont 1966, p. 7~; Orens­tein 1968].

Se a relação com certos fenómehos orgânicos e naturais traz consigo aimpureza, a relação com outras entidades naturais, como a água, os cincoprodutos da vaca (urina, excrementos, etc.), é purificadora. Esta ideologiahierárquica da pureza foi formulada lá no século III a. C. e foi utilizada paraexplicar o sistema das castas que mais tarde se desenvolveu gradualmente.Os outros critérios de separação social remetem teoricamente para o simbo­lismo do puro e do impuro. A mul\iplicidade dos critérios de segmentaçãohierárquica produz, no entanto, uma certa relatividade: cada juizÓde esta­tuto formulado segundo um certo 4:ritério «solidariza uma casta cbm todasaquelas que dividem com ela a mesma característica, opondo-a li todas asoutras» [Dumont 1966, p. 81). '

Mas os critérios nem sempre são congruentes. É necessário então valori­

zar não só a posição de cada segmepto da casta em relação a udi ~erto cri­tério de segmentação, mas também' o valor relativo de cada u111dos crité­rios, de cuja combinação resulta a 'Posição de uma casta numa sdrie linearúnica que engloba todas as castas de um determinado território.Pbde entãoconstatar-se uma certa indeterminação: cada casta terá tendência à conside­rar o seu próprio estatuto de modo, diverso daquele com que as outras cas­tas o consideram. Por outro lado, a hierarquia não exclui a competição ea mobilidade [cf. Srinivas 1966, p;~4). A mobilidade vertical implica queos membros de uma casta procurem. que lhes seja reconhecido um estatutosuperior, adoptando as prescrições ',de pureza ligadas a esse estatuto. Quera nível local quer a nível pan-indiano, surge-nos, por isso, um processo cons­tante de «promoção»que explica a difusão da ideologia dos brâmartes e, semsombra de dúvida, o sistema das castas (<<sanscritização»).Srinivas definea sanscrit~l!Ç!o como o processo pelo qual uma casta de baixo estatutoou um grupo tribal não-hindu abandona os seus costumes, os seus rituais,a sua ideologia e o seu modo de vida para assumir formas de comporta­mento superiores do ponto de vis~a hindu. Se é um grupo tribal, passa aser hindu e integra-se como casta numa posição definida no sistema hie-

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CASTA 210 211 CASTA

rárquico; se já é hindu, expõe uma pretensão de estatuto expressa em ter­mos de comportamento que, em geral, não é reconhecida pela comunidadeantes de uma ou duas gerações.

A subida de um grupo na escala hierárquica implica a descida de outro,mas não modifica a hierarquia dos estatutos. Só as suas atribuições se modi­ficam [cf. Srinivas 1966, pp. 6-7; Cohn 1971, pp. 134-41].

4.3. A segmentação hierárquica e os seus paradoxos: vart}Q e casta

Até aqui falámos de casta como unidade de um sistema hierárquico defi­nido pela sua ideologia. É preciso agora mostrar a relação entre este sis­tema e os grupos concretos e, em especial, a forma como se verifica a seg­mentação entre unidades de ordem diferente.

Devem considerar-se quatro níveis.A unidade mais pequena é o Igrupo exógamo, o birãdarf !'bando dos

irmãos'. ,Os membros deste grupo constituído por parentes estão geralmenteestratificados por geração: os da geração de Ego são «irmãos,,; os da gera­ção do pai de Ego são "pais", etc. Sobretudo nas castas de condição médiaou infer~or, o birãdarf é um grupo solidário: os seus membros reúnem-se,por exemplo, por ocasião de ritos de passagem. Os chefes das famílias quecompõem o o birãdari participam nas reuniões (panchãyat) que arbitram osconflitos que surgem entre os seus membros. A extensão territorial do birã­

dafi depende da dispersão ou da concentração da sua população e está emgeral associada à ocupação da casta a que pertence. Na índia setentrional,as castas de agricultores de condição intermédia ou as de Chamar ('gentedo couro', intocáveis) tendem a organizar-se em birãdarf cujos membros seencontram em poucas aldeias ou numa só, ao passo que os birãdarf das cas­tas de artesãos ou serventes (oleiros, ferreiros, lavadeiros) estão geralmentedispersos por um maior número de aldeias. Entre as castas superiores, sobre­tudo nos últimos dois séculos, o birãdarf foi progressivamente perdendo asua importância.

Os ~biriIq(J.rJfazemparte de um grupo chamado Viiti(subc~~!a), que é a_unidade fundamental do sistema. Trata-se do grupo endógamo que circuns­creve os limites dentro dos quais os birãdari exógamos·pOdenicontrair matri­mónio. Enquanto o birãdafl é geralmente um grupo de agnatos, o jãti é umgrupo definido por laços de afinidade e de linhagem. Tem muitas vezes umnome próprio, uma divindade própria, um mito 'de origem específico~umaposição no sistema hierárquico. Pode, além disso, ter regras de comporta­mento próprias, costumes específicos, etc.

Diferentes jãti são, por sua vez, considerados membros de uma casta(jãt), que não é um grupo na verdadeira acepção da palavra, mas uma cate­goria. geral, com um nome, uma posição hierárquica, uma ocupação tradi­ciOlla1.Esta categoria permite que membros de subcastas diferentes possamreconhecer a sua própria posição hierárquica a nível regional e não só estri·tamente local (embora os critérios sejam, na realidade, muito mais compli­cados) [Cohn 1971, pp. 115-16, 125-26].

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Por sua vez, as castas identificam-se com uma das ~'uatro categorias~T1JfJ I \lJ .D

'cores, espécie') que as relacionam com a enunciação mais geral da hierar-quia e com o conjunto pan-indiano. '. .....

O sistema dos. varn.a é importante, entre outras coisas, porque permitea mobilidade social dos jã!!: Quando um grupo aspira a um estatuto'supe::­rior, não pode, evidentemente, fundir-se com um outro jãti que já tenhaesse estatuto (isso implicaria casamento com os membros daquele jati, con-.flitos, etc.), mas pode pretender ser membro de um vart}Q diferente daqueleque lhe é tradicionalmente atribuído, sem modificar os limites próprios dogrupo [cf. Lynch 1969].

Os quatro vart}Q são, por ordem hierárquica: 1) os brâmanes, ou sacer­dr,tes: 2) os k~atriya, ou g!l.er.reiros;3) os vaisya, ou !I1ercadores; 4) ossüdra, ou servos, gente de pouca importância. Os intocáveis não entram nestadivisão e não têm, aliás, uma etiqueta comum (hoje são chamados Harijan

'filhos de Deus').Na literatura védica, a divisão em vartlQ é originada por um princípio

de opOsição dicotómica. A primeira dicotomia opõe Ãrya e não-Ãrya (ouseja, Dasyu, identificáveis com os intocáveis), Os Ârya são dicotomizadosem «nascidos duas vezes" (os três primeiros vartla) e «nascidos uma vez"(Südra). Os «nascidos duas vezes" dividem-e em brâmanes e k~atriya, porum lado, e vaisya, por outro. Os brâmanes e os k~atriya, por fim, opõem­-se entre si. Esta divisão em quatro unidades é justificada pelo mito dePuru~a, segundo o qual os brâmanes nasceram da boca do homem originá­rio, os k~atriya dos braços, os vaisya das coxas e os südra dos pés. As ~ej!.de Manu [I, 87-91;cf. Bühler 1866] atribuem. a cada vartta os seus devéres:aos brâmanes, o estudo e ensino dos Veda, o sacrifício, o dar e receber esmo­Ias; aos k~atriya, a protecção do povo, a oferta do sacrifício, o estudo dosVeda; aos vaisya a criação dos animais, o comércio, a agricultura, a ofertado sacrifício e o estudo dos Veda; aos siidra por fim, uma única ocupação:servir os outros três vartlQ.

A complementaridade entre os va"!Q é parcialmente análoga à que existeentre castas. Assim os k~atriya ou os vaiSya, por exemplo, podem ordenaro sacrifício, mas só o brâmane o pode executar. O rei é assim privado dafunção sacerdotal: voltamos aqui a encontrar a divisão fundamental entreestatuto religioso e poder político.

A homologia entre o sistema dos va'1!a e o das castas (jãt) não deve, noentanto, ocultar as diferenças e sobretudo o problema levantado pela relaçãoentre eles. Na literatura védica, o brâmane é essencialmente aquele que sacri·fica, ao passo que no período hindu e no sistema de castas é caracterizadopela pureza. A teoria dos va'1!a e a das castas implicam sobretuto dois tiposdiversos de classificação e revelam dificuldade na passagem. da hierarquiaconceptual à hierarquia dos grupos reáIs.AS castas são hereditárias:á classi­ficação dá portanto ênfase ao nascimento. !'Tateoria dosva'1!a, pelo contrá­rio, a ênfase é posta na função, de tal fomia que dinastias de órigê'm não

. k~atriya tiveram frequentemente acesso à dIgnidade de k~atriya assumindoa função real (aliás, segundo alguns, nenhuma dinastia, após o fim dos Nanda

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•CASTA 111 213 CASTA

- século V a. C. - teve jamais origem k~l\triya). Isto demonstra que os_.'l!a~a não devem ser interpretados como grupos hereditários, à maneira dascastas, mas como categorias funcionais.

- A relação entre varl,la e casta foi objecto de interpretações contrastantes,nenhuma das quais satisfat6ria. A comparação dos pontos de vista de Tam­biah e Dumont é particularmente interessante e instrutiva, porque põe emjogo a própria definição de hierarquia e as dificuldades que temos para captaressa noção.

j Dumont pri~ilegia, como v~os, a hierarquia das castas, expressa em ter­mos de puro e Impuro. A classificação em val"Qa surge então como análogaà das castas.

Tambiah, pelo contrário, procura estabelecer uma relação mais directaentre os dois sistemas e deduzir as castas a partir dos va17,la. Segundo Tam­biah, s6 a classificação em va~a é efectivamente hierárquica, porque estascategorias são geradas por um princípio de segmentação onde o nível dico­t6mico de ordem superior engloba um nível de ordem inferior [1973, p. 196).As castas, pelo contrário, são ordenadas por categorias mediante o processoclassificador da sobreposição entre classes diferentes.

O modelo considerado por Tambiah é, de facto, o das Leis de MamJ (capí­tulos III e x), modelo que explica a hierarquia linear dos grupos de'castasatravés das uniões mistas (isto é, entre vama diferentes e entre castas dife­rentes) que estariam na origem de cada ca~ta. Dado o diferente vaitir atri­buído às uniões E.ip~gâDli(:~s e .hipogâmicas. e ao matrim6nio principal esecundário, obtém-se um certo número de categorias hierarquicamentJ orde­nadas, que Tambiah identifica com os jãti ou com os seus análogos. As regrasde formação desta ordem reflectem-se nas regras de pureza.

Podemos, no entanto, objectar a Tambiah que não é possível estabele­cer uma relação directa entre o modelo abstracto das Leis de Manu e li ideo­logia que se deduz do estudo sociol6gico da sociedad_~das castas. Mas op_roQle~afundamental diz respl;:Ítoà própria.!1~ão_c!t;:hierarquia. 1'ambiahparte de uma definição «lógica",universal, da hierarquia como processb clas­

sificador: parte, em suma, da definição de hierarquia como inclusãoerp clas­ses. Com esta definição s6 podemos considerar hierárquica a classi~caçãoem va~a. As castas são ordenadas segundo um processo diverso, que nãose pode considerar verdadeiramente hierárquico. Mas esta definição «lógica"da hierarquia corresponderá à definição indiana? ,

Aparentemente, Dumont utiliza um processo inverso: parte da formula­ção indiana da hierarquia. Esta formulação dá conta da posição da\;lcastasem termos de pureza e impureza. Quando, porém, Dumont apresenta umaformulação geral do conceito de hierarquia, não pode deixar de utilizar oconceito de inclusão em classes: «Uma relação hierárquica é uma relaçãoentre mais amplo e mais restrito ou, mais precisamente, entre aqllilo que

~\o(, inclui e aquilo que é incluído» [1967, p. 33]. É, no entanto, evidertte que,''I " se aplicarmos esta definição à hierarquia expressa em termos de puro e de

\ impuro e se afirmarmos que o termo superior (o puro) engloba d termo

11 inferior (o não-puro), temos uma contradição do ponto de vista l6gico. Asduas noções de hierarquia devem ser bem distintas; de outro modo, sería-

\ '

I·r

!

mos obrigados a admitir que A inclui não-A, isto é, o seu oposto. Mas emtermos de classes l6gicas, puro e não-puro, enquanto opostos, estão aomesmo nível de generalidade: um não pode ser englobado no outro semincorrer nos seguintes paradoxos: a) uma classe é membro de si própria (istoé, o puro é membro da classe «pura», dado que esta é simultaneamente a«englobante» e a classe dos brâmanes); b) uma classe é considerada comoum elemento entre os elementos classificados como seus não-membros, istoé, a classe do não-puro não é não-pura.

Encontram-se os mesmos paradoxos quando se passa da fórmula geralda hierarquia para a hierarquia dos grupos concretos: se os grupos são dis­tintos ritual e matrimonialmente, como se pode dizer que a relação hierár­quica é uma relação de inclusão? É, pelo contrário, verdade que as castassão «hierarquizadas" segundo um processo de sobreposição entre caracterís­ticas diversas (que não é necessariaIlJenteo contemplado pelas Leis de Manu).A hierarquia como «englobamento,j diz apenas respeito às funçõcs associa­das aos grupos: não se pode passar' da função ao grupo sem mud~r radical­mente a noção de hierarquia. Este tj:rmo parece, portanto, ter sentidos dife­rentes e nem sempre congruentes: a tentativa de Dumont de reduzi-los todosà f6rmula mais geral da hierarquia (a inclusão) não deixa de enfrentar gra­ves dificuldades.

A hierarquia entre castas é, portanto, mais uma gradação linear que umahierarquia de <<C1asses".Tanto no plano de classificaçãocomo no plano ritual,

. a categoria inferior não é englobaqa na superior, mas é-lhe simplesmentecomplementar. A hierarquia linear tem por isso duas características distin­tivas: é enunciada numa enumeração; é mais interactiva que atributiva.

As enumerações hierárquicas s~o uma característica típica da culturaindiana. Uma «sociedade globah, é 'definida integralmente pela eQumeração

em série de todos os grupos que a fompõem. A contradição imp!ícita nesteprocesso é sublinhada pelo próprio Dumont: o todo e as partes, o englo­bante e o englobado são colocados \00 mesmo plano, na série [efl Dumont

. 1957, pp. 142, 150, 152, para alguns exemplos)., I

O modelo hierárquico por inclusão, para além das dificuldades~ue encon­

tra quando se traduz na hierarquia',de grupos concretos, ou se dqtém arbi­trariamente num ponto que se decide ser final, ou recua ao infihito, por­que não é possível pensar sem cOlltradição numa classe final que englobetodas as outras e, ao mesmo tempo, se englobe a si própria (cf. acima).Mas o sistema de castas deve neceHsnriamenteser pensado como lIma tota­lidade (de outro modo, não pode ser pensado como uma hierarquia) e, por­tanto, como uma ordem finita. AssiJll, é obrigado a partir da aporia da classeque engloba todas as outras e siJllultaneamente se engloba a si própria e,por isso, de uma representação concreta da hierarquia em que o todo e aspartes estão no mesmo plano e em que a posição hierárquica de cada ele­mento depende da sua posição na!.drdem da enumeração. A totalidade é,portanto, concebida como linear e toma-se finita devido a uma oposiçãoentredois extremos absolutos e ideais: precisamente o puro e o impurd. O crité-

I rio de hierarquia é então dado pela posição de um segmento entre os\ dois segmentos que representam oS extremos conceptuais e não pelo nível

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CASTA 214 215 CASTA

de generalidade em que se encontra na representação piramidal da hierar­quia por inclusão. Este último é, no entanto, conservado a nível simbólicopelas funções que correspondem a cada segmento. A ideologia da casta éa síntese das duas formas de hierarquia: a casta inferior é o segmento que,embora continuando socialmente distinto em termos de "pureza••, é concep­tualmente englobado e subordinado pelo segmento superior. Os paradoxoslógicos implicados nesta síntese explicélmcomo, concretamente, e a um certonível de conceptualização da realidade social, prevalece a definição da hie­rarquia das castas em função da sua lqter-relação. McKim Marriott demons­trou a importância deste aspecto, súblinhando que a interdependência e aespecialização ocupacional das castas!e em particular os tributos alimenta­res são, critérios fundamentais para 'el'plicar a configuração hierárquica de

um sistema de castas territorialmente limitado. Para estabelecer a ordem hie­rárquica, a atribuição (característica d/l casta que depende do seu modo devida Pllro ou impuro) é menos imp01'lante que o tipo de relação que existeentre ali,'castas: é por isso necessário $aber de quem e a quem cada catego­ria social aceita ou dá qualidades diferentes de alimentos (frito, cozido, cru)ou a água do poço, com quem se pqde fumar do mesmo cachimbo, quaisos graus de impureza que reproduzew as castas inferiores e através de queveículos, etc. Os critérios variam re$ionalmente [cf. Marriott 1959].

4.4. A divisão do trabalho e o poder económico

A casta está tradicionalmente ligada a uma profissão, embora não sejauma corporação de ofícios. Nem todos os seus membros exercem essa pro- .fissão nem todos aqueles que a exercem pertencem à casta em questão [cf.as estatísticas in Blunt 1931]. O que importa é o estatuto de pureza relativade um ofício: assim, profissões igualmente puras ou quase podem substi­tuir ou completar a profissão tradicional de uma casta. Certas profissões são_neutras do ponto de vista ritual e podem por isso ser exercidas por castasdiferentes. A actividade I"neutra):,mais importante é a agricultura e o seuexercício é respeitável para todas as castas (só as castas mais elevadas nãopodem usar o arado); de facto, a relação entre profissões agrícolas e castasé a mais fluida. É, aliás, evidente que, numa economia predominantementeagrícola, a ocupação da maioria da população não pode deixar de ser agrícola.

Também na economia indiana moderna existe uma certa co-relação'entreo estatuto hierárquico e as profissões: os intocáveis estão nos graus profis­sionais inferiores (carregadores, mão-de-obra não qualificada, etc.). Na defi­nição do estatuto de uma casta é, de facto, determinante a sua especializa­ção funcional porque a relaciona com actividades ou estados impuros oupuros que, para várias castas, são só transitórios. A maior parte dos ofíciosé, portanto, ritualmente conotada: a hierarquia das castas é também funçãoda hierarquia dos ofícios que exercem. A associação tradicional, simbólica, comuma certa profissão restringe as opções profissionais reais de uma casta eé, no entanto, utilizada para exprimir a sua posição hierárquica. Também

a divisão do trabalho é dominada pela oposição ent;e puro e impuro' e temuma dimensão hierárquica: não se pode isolar uma dimensão econômica"pura••, o que não tem sentido na sociedade tradicional.

A subordinação do aspecto económico ao aspecto ritual está também pre­sente no sistema de prestações e contraprestações da economia fechada enatural de uma aldeia com várias castas. A própria etimologia do termo quedesigna frequentemente este sistema /.(jaj~~!!!t\evoca o aspecto religioso.Jajmá,. 'patrão', por oposição a prajã 'subordinado', é um termo que derivado sânscrito vajamãna, que significa 'sacrificante': «aquele que efectua um ~sacrifício por si•• [cf. Dumont 1966, p. 129]. O sistema jajmãni é um sis-

: tema_d~ clientela, baseado numa rede de relações pessoais e centrado naqu~les! que têfIl a propriedade da terra. Neste sistema, cada indivíduo tem privilé­

gios e ~everes na repartição dos recursos, dos produtos e dos serviços, quedependem da sua posição hierárquica.A divisão do trabalho está portanto articulada a uma rede de relações pes­

soais hereditárias: cada família dispõe de uma família de especialistas paracada tarefa. As prestações e contraprestações não são reguladas pelo mer­cado, mas pelo _éostume. A remuneração por cada prestação exc~p~jõ~~(;;U­ocasional é imediata mas, no caso das prestações contínuas e habituais, édistribuída ao longo de todo o ano. O sistema é muito complicado e apre­senta variantes regionais importantes. Wiser [1936] apresentou uma descri­ção pormenorizada do seu funcionamento numa aldeia do Norte da índia.Podem distinguir-se as seguintes categorias de "partners ••:

1) subordinados (por exemplo: ferreiro, barbeiro, aguadeiro, lavadeiro)que fornecem serviços permanentes em troca de retribuições fixas emcereais, recebidas duas vezes por ano, a seguir à ceifa;

2) subordinados com funções cerimoniais (por exemplo: em casamentos,funerais, etc.) que recebem uma remuneração habitual de cada vezque prestam os seus serviços;

3) mão-de-obra agrícola permanente e "não livre.. paga ao dia ou aomês;

4) artesãos da indústria transformadora remunerados em produtos natu­rais com uma percentagem, estabelecida pelo hábito, dos produtos quetransformam por conta do patrão;

5) artesãos e vendedores remunerados em dinheiro a preços estabeleci­dos pelo hábito e que são diferentes consoante as diferentes catego­rias de estatuto (o brâmane, por exemplo, paga a mesma quantidadede leite por um preço mais baixo).

Esta última categoria de pessoas não é constituída por subordinados.O sistemajajmãni foi objecto de importantes discussões. Segundo Wiser,

é um sistema igualitário porque se baseia na reciprocidade das funções edas remunerações: pondo de lado as castas mais baixas, para as outras éválida a regra de que cada membro de qualquer casta é - conforme asocasiões - patrão e subordinado, fornecedor de um bem e de um serviçoe destinatário de outro bem ou serviço.

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• CASTA 216 217 CASTA

Na realidade, a reciprocidade igualitária é parcialmente válida s6 paraas castas que se encontram numa posição hierárquica intermédia. O juizode Wiser não tem em conta o controlo da terra, que não é igualitário. A reci­procidade é hierárquica [Dumont 1966, pp. 134-35]. O sistema assegura aos«proprietários fundiários» os serviços dos especialistas e da mão-de-obra e

1 garante a estes últimos direitos sobre os produtos do solo. Alguns [Beidel­I mann 1959] consideram o sistema jajmãni como um sistema de «explora­! ção», mas outros [Orenstein 1962] observaram que as famt1ias abastadas e

dominantes têm obrigações imprescritíveis para com os seus subordinadose, por outro lado, dependem dos «pobres» porque têm de recorrer aos ser­viços rituais destes últimos.

As relações tradicionais de clientela implicam que certos papéis econ6­micos sejam um privilégio inalienável dos grupos inferiores e que li castadominante seja obrigada a depender deles sem poder modificar em seu pro­veito (através, por exemplo, dos mecanismos de mercado) as relações tradi­cionais: a «exploração••s6 é possível quando o grupo dominante pode deci­dir a seu bel-prazer os termos da permuta [cf. Leach 1960, p. 5].

O sistema de castas parece «injusto» ao observador ocidental, para quemo critério de justiça é o indivíduo concebido como universal e não aquiloque contribui para perpetuar o todo social. No sistema das castas li justiçaestá na hierarquia: está num sistema em que as actividades e remunerações

. de cada um são interdependentes porque orientadas para o todo. Este todoé a colectividade hierárquica que é regulamentada intencionalmente (em fun­ção de uma ideologia) e não automaticamente, como na economia indivi­dualista de mercado.

Constatámos que o princípio fundamental da hierarquia está na divisãoentre estatuto e poder. Isso faz com que o papel política e economicamentedominante (que, na teoria dos vaT1}a, é reservado aos k~atriya) po~sa per­tencer a qualquer casta que detenha efectivamente a força. A distinção entrecastas dominantes (que controlam a terra) e castas que s6 têm acesso li terrae aos seus produtos pelas relações de dependência com castas dominantesé, portanto, fundamental, porque permite introduzir a dimensão pO,líticanosistema das castas. O poder político e econ6mico é, porém, independenteda hierarquia dos estatutos: a casta dominante não é necessariamente Q castahierar'luicamente superior. -Na esfera' PolítiCa e econ6mica, as rehl.çõesde

:-pÕder têm as suas ieiS, podem mudar; a hierarquia, baseada no' sistema devalores, não muda. A autonomia do poder está, no entanto, subordinada,tem uma esfera de acção limitada. Também ele tem de ser relacionado coma totalidade, os valores últimos e, por isso, submetido ao princípio da hie­rarquia, medindo pela casta que representa, como vimos, a totalidadé. ,Quemdetém a força tem de ser, portanto, legitimado pelas suas relações, mesmona esfera econ6mica, com as categorias de estatuto - e com o brâmane emparticular - cuja cauçllo é necessdria.

Podemos, é certo, perguntar em que medida esta relação com a hierar­quia religiosa modificará as relações reais. Na realidade, acrescenta-Ihes um"'l/ido, mas nllo as altera substancialmente. No entanto, o problema·levan­1I1dopelo estudo dos sistemas de castas está precisamente aqui: qual

é, na sociedade, o' valor relativo da ideologia e das relações políticas e eco­n6micas? Ao fim e ao cabo, a importância dada a uma ou a outra dimensãoé sempre em função de uma ideologia, de um sistema de valores. O quenos leva ao problema da comparação: não se podem comparar as estruturasecon6micas e sociais sem ter em conta os valores em conjunto com os quaiselas existem nas sociedades. A vontade de isolar estruturas político­-econ6micas em si mesmas inteligíveis, independentemente da consciênciaindígena, é, ela mesma, um fenômeno ideol6gico que emana de certos valo­res. Implica que os nossos valoresleconômicos e políticos possam ser uni­versalmente aplicáveis, porque nos permitem perceber qualquer tipo de sis­tema que decidamos isolar numa sociedade concreta. A exemplaridade doestudo do. sistema das castas consiste na revelação do absurdo de tal pre­tensão. Não existem critérios de valor absolutos e cientificamente fundadosque permitam a compreensão de qualquer sistema social e dos seus corres­pondentes ideol6gicos. Quando os sociôlogos propõem semelhantes critérios,pelo menos no que diz respeito à índia, esses critérios revelam-se, na maiorparte dos casos, como projecções de um sistema ideol6gico específico quenecessita, ele próprio, de uma justi6cação. É certo que a sociologia não podeser s6 «compreensiva», tem de ser também «explicativa.,. A exemplaridadedo problema das castas está, no entanto, também no demonstrar que a «com­preensão» de um sistema ideol6gico é necessária à sua «explicação». Estaúltima procura-se sobretudo na ditnensão político-econ6mica. Mas a exten­são à totalidade do sistema dos princípios de explicação desta dimensão éum erro, não s6 porque implica a recusa em considerar os factos de cons­ciência e os valores como parte da realidade, mas também porque é pro­duto da ideologia do observador e, não é, portanto, mais que um juízo devalor oposto ao juízo de valor da' consciência indígena. A «compreensão»é, por isso, também uma forma de marcar as fronteiras entre a.hossa ciên­cia e a nossa ideologia. [v. v.].

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C Elementos da estruturação hierárquica de certas sociedades, as castas, ao cOnlrário das clas­

ses, implicam a existência de grupos de estatuto (cf. papel/estatuto) dotados de funções com·plexas não imediatamente redutíveis às relações eeonómicas (ef. economia) vigente no âmbitode uma determinada formarão ecollómico-social. Se, do POnlOde vista da eSlrulura, a casta defineuma cena forma de divisAo do Irabalho, a um dado nível de desenvolvimento das forças d,·produção (cf. produção/dislribuição e, em sentido mais lato, modo de produçdo), a explicaçao

deste tipo de organização social não pode deixar de ter em conta os seus aspectos culturais(cf. cullUra/culIUTOS, nalUreza/cullura), incluindo o aspecto ideológico (ef. ideologia) que funda­menla o sistema de '/Ialores com base no qual se articulam, precisamente, nas sociedades de

castos, as autoridades religiosa e polltica (cf. religido, poder/auloridade, sagradolprofallo). A oposiçAopuro/impuro é simbólica do princípio hierárquico que, a todos os níveis, desde o económicoao ritual (cf. rilO) está na base de tais sociedades, que não podem ser compreendidas etnocen.tricamente (cf. elnocenlrismos) em termos de estratificação mais ou menos fechada.

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TOTEM

O totemismo já não está na moda, apesar de o ter estado durante umtempo. No início do século suscitava um interesse considerável entre os etnó­logos, os sociólogos, os historiadores da pré-história, os historiadores de reli­giões, os historiadores da Antiguidade grega ou egípcia, os psicanalistas, e atéentre os filósofos: o número de publicações que lhe eram consagradas eraconsiderável e a soma dos esforços utilizados para reencontrar as sUas ori­gens ou vestígios era enorme. Ainda em 1920 se lhe predizia um brilhante'futuro científico. No entanto, depois desta data, a história da ideia toté­

mica só surge como uma longa agonia. Hoje em dia, dificilmente se ousapronunciar o seu nome.

Nestas circunstâncias, tentar dar uma definição do totemismo pode pare­cer um desafio insensato. No início do século, os antropólogos não conse­guiam chegar a acordo sobre uma definição e contavam-se quase tantas defi­nições quantos os autores: aetualmente, os antropólogos concordam emievitardar uma. À falta de uma verdadeira definição, contentar-nos-emos em deli­mitar o campo dos factos etnológicos aos quais foi aplicada a etiqueta toté-mb. '

Fala-se de totemismo, na sua forma mais clássica,' quando: 1) um~ tribo(ou sociedade) está subdividida em clãs (ou em outros grupos similares),2) cada um destes clãs está associado a uma ou a várias espécies animaisou vegetais, ou ainda a certas categorias de objectos inanimados (o clã édito totérnico; as espécies e/ou as categorias de objectos são os tótemes,3) cada clã observa relativamente ao seu totem um certo número de costu­mes, como por exemplo: o nome do clã é o mesmo do totem, o cl~ temum determinado brasão ou certas representações relativas ao seu··totem,

a associação entre o clã e o totem é baseada na mitologia, os memb~os doclã nllo podem casar-se com uma pessoa que tenha o mesmo totem ql1~eles,estilo proibidos de comer ou de utilizar o seu totem, respeitam-no oú obser­vam uma atitude ritual a seu respeito, têm o exclusivo de certas cerlmóniasrelativas ao seu totem, acreditam ser parentes do totem, etc. Em princípio,dentro da mesma sociedade, cada clã observa em relação ao seu totem res­pectivo o mesmo conjunto de costumes; mas, de uma sociedade para butra,eatea costumes, quanto ao mlmero e quanto à sua natureza, são extrema­mente varidveis.

Estas três proposições correspondem ao que se chamou o totemismo degrupo. Em primeiro lugar, sublinhemos que esta forma de totemismo é indis­sociável de uma organização social que divide de maqeira exaustiva os mem­bros da sociedade por clãs (ou grupos) distintos. Foi isto que foi conside­rado como o aspecto social do totemismo. Quanto à relação, o mais das vezesritualizada, que os homens mantêm com o seu totem, corresponde ao quefoi considerado como o aspecto religioso do totemismo. A diversidade dototemismo de grupo pode ser analisada segundo dois aspectos. Por um ladoexiste uma diversidade quanto à natureza dos grupos totémicos: podemtratar-se de clãs unilineares (matri- ou patrilineares) ou não-unilineares, declasses matrimoniais não redutíveis a clãs, etc. Por outro lado, existe umadiversidade quanto aos costumes observados em relação aos tótemes. Esco­lher entre esta multitude de costumes aqueles que podem ser apresentadoscomo típicos foi geralmente o objecto principal das controvérsias dos antro­pólogos no passado: era em função de tais escolhas que eram dadas as dife­rentes definições de totemismo. Pedinte a arbitrariedade de uma escolha feitaa priori, podemos abster-nos de qUllisquer considerações sobre os costumesrelativos ao totem. Somos assim ob!rigadosa chegar a uma definição formaldo totemismo concebido como um ~istema de correspondência entre grupossociais e classes de espécies naturais.

Por extensão, fala-se em totemismo individual quando existe uma asso­ciação entre um indivíduo e uma es'pécie animal (mais raramente tlma espé­cie vegetal ou ainda uma categoria d(~objecto inanimado). O indivfdJo observarelativamente ao seu totem um certo número de costumes, análogos aos quese encontram no caso do totemismode grupo. É evidentemente estll analogiaque está na origem da denominação comum de ((totemismo»aplicdda simul­taneamente ao clã e ao indivíduo. NÓsentido mais geral do termo,'totemismo'conota simplesmente a ideia de uma associação entre uma espécie animal (ououtra) e uma parte da sociedade, quer se trate de um grupo ou de um (oumais) indivíduos(s). A diferença entte totemismo clânico e totemismo indivi­dual não é apenas quantitativa. Um indivíduo adquire automaticamente o seutotem de clã pelo facto de pertence~ a esse clã desde o seu nascimento: mas,para possuir um totem individual, este mesmo indivíduo deverá buscar umacontecimento especial - sonho, alucinação, encontro no decurso de umacaçada, etc. - que interpretará conlo o sinal da sua associação com um ani­mal, que deste modo se torna o seu totem. O totem individual él antes demais, o resultado de uma busca individual. Por outro lado, a semelhança entrea atitude para com os tótemes sociais e a atitude para com os tóterrles indivi­duais apresentar-se-á muitas vezes óS\1perficia1.É verdade que certos costu­mes se encontram algumas vezes elllambos os casos - por exemplo, a proi­bição de matar ou de comer o aninta'! totémico -, mas, de um modo geral,o totem individual parece ser obj~cto de um maior respeito. Além disso,o totem individual, muito mais do que o totem social, desempenha o papelde protector - espécie de anjo da gtlarda - do indivíduo: é o que os antropó­logos de língua inglesa chamaram guardianspirit 'espírito guardião'. Pode dizer­-se que o problema da relação entre. totelIlismo' de grupo e totemismo indivi­dual nunca foi resolvido nem sequer formulado de maneira adequada.

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TOTEM 222 223 TOTEM •O totemismo não constitui de modo algum a única forma de relação ritua­

lizada entre o homem e o mundo animal ou vegetal. Lembrar uma tal evi­dência seria supérfluo se não tivessem sido tantas vezes qualificadas comototémicas atitudes que relevam de uma outra ordem de ideias: por exem­plo, na Austrália, o tabu que pesa sobre certas aves como a águia; no Norteda Eurásia e da América, os ritos da caça ao urso; em certas regiões daAfrica Negra, as crenças e os interditos que envolvem animais como o cro­codilo, a pitão e o leopardo. Nestes casos, as atitudes rituais interessam todosos membros do conjunto da sociedade. °que caracteriza o totemismo é, pelocontrário, a existência de atitudes diferenciadas segundo uma segmentaçãoda sociedade: cada segmento - clã ou indivíduo - está relacionado com um

animal diferente. Assim, a propósito dps ritos do urso, só se pode falar detotemismq se esses ritos forem observildos por um segmento da sociedadeenquanto os outros observam ritos semelhantes quanto à sua natureza masem relação a outras espécies.

I. O totemismo no mundo

1.1. Austrália

A importância da Austrália para o estudo do totemismo é dupla. Porum lado, entre as quase quinhentas tribos aborígenes da Austrália, não existepraticamente nenhuma que não apresente uma qualquer forma de totemismo.Por outro lado, o totemismo australiano é extremamente variado: a maioriadas formas existentes no resto do mundo está igualmente representada nocontinente australiano, possuindo ainda certas formas exclusivas. Neste artigodistinguiremos as diferentes formas de totemismo em função da natureza dogrupo social ao qual ele está associado; em seguida, tentaremos indicar afunção de cada uma dessas formas.

A primeira forma a considerar é o totemismo de clã matrilinear. Por defi­nição, um indivíduo pertence ao mesmo clã matrilinear que a sua mãe etem o mesmo totem matrilinear que ela. É assim entre os Dieri da Austrá­lia Central onde cada clã está associadó a um totem: a chuva, uma espéciede serpente, o pardal, o barro vermelho, uma espécie de rã pequena, umgénero de semente selvagem, um determinado rato, o morcego, uma âspé­cie de lagarta, o alcatraz, o emu, a águia, o cão selvagem, etc. O totemmatrilinear é geralmente designado por um termo que significa 'carne':maneira de exprimir que a relação com o totem é uma relação de paren­tesco, parentesco de carne e de sangue, análogo à relação com a mãe e comtodos os outros membros do clã que se considerem parentes. O totem matri­linear é geralmente objecto de uma proibição no que respeita ao seu con­sumo por parte dos totemistas. Ele é também exogâmico (proibição de casarcom alguém que tenha o mesmo totem matrilinear), o que resulta do carác­ter exogâmico do clã matrilinear australiano (proibição de casar com alguém

que pertença ao mes~o clã). Finalmente, o totem matrilinear desempenhatambém .em certas tribos o papel de protector. Foi a este tipo de totemismoque Elkm chamou de totemismo social.

No totemismo de clã patrilinear, cada indivíduo tem o mesmo totem do

seu. pai. 0. t?tem ~atriIine~r. parece ter nalgumas tribos a função de totemsocial (prOIbição abmentar, exogamia). Mas, na maior parte do continentetrata-se de ~m,totemismo a que Elkin chamou cultual: esta denominaçi1~ref~re:se à Idela de que, nesta forma de totemismo, o aspecto ..religioso é

·~als Importante que o aspecto sQ.Çial.Qtotem patrilinear cultual está asso:'­5~ado a mitos que ~xplicam a sua origeme a ritos que são celebrados peéio~'· dlca~lt;:nte:conhecimentos míticos e ritos devem ser rigorosamente secretosrelatIvamen~e.a. outros .clãs. Só .os homens do clã que passaramport~dos~sta~os de tnlcIação(ntos de passagem) têm acesso a esses, segredos. No

.' mtenor. de cada clã patrilinear forma-se, pois, uma organização secreta. ou" um.a .1olacul~ual ~ormada por homens adultos: as mulheres e as crianças

estao, em ~rmcípIo, e~cluídas. ~sta l?ja tem por objectivo a conservaçãodos. con~ecImentos rnfucos. A mItologIa australiana refere-se a um passadomulto dIstante, o «tempo do sonho», quando a ordem cósmica e social não

esta~a ainda .estabeleci~a ou melhor estabilizada. No «tempo do sonho», osherÓIStotémICOS- meio-homens, meio-animais nessa época em que aindanão há uma distinção clara entre os homens e os animais - percorrem omundo, modelam a paisagem, criam as espécies naturais inventam as téc-. " . 'mcas e os rItuaIS ou, amda, estabelecem leis para as gerações futuras. Cadaum dos seus actos - alto feito ou acontecimento quotidiano - deixou mar­cas na ~~sagem: rio,. nascente, rochedo, etc. ~~vés~alllitologia,poiscada

·clã patnhnear totémICOestá associado a um conjunto de sítios ou de cami.n~os a que chama a sua «pátria», a sua «terra ancestral». Alguns locais'toié='ml~os,sagrados têm um acesso rigorosamente regulamentado. Mencionemos

.dOls upos de locais totémicos: o primeiro é suposto ser a residência dosespír~tos-crianças que o herói mítico depôs no «tempo do' sonho»: estes­

.espíntos-crianç.as fecund~rão as esposas dos homens. dodií ...° segundõ.tip'ode local totémICO - multas vezes confundido com o primeiro' -' é aquelee~ que é celebrado periodicamente um rito de multiplicação da espécie toté-

_~Ica. Este ritual - o intichiuma entre os Aranda - é uma das tarefas maisImportantes da loja cultual associada ao clã: se a loja do totem canguru nãocumprisse a cerimónia de multiplicação, não haveria cangurus. A ordem do~lUndoe a ?róp~ia sobrevivência da sociedade são supostas depender desteupo de cerlmóma.

Em resu~o, o totemismo cultual é caracterizado pela tripla associaçãodo clã tot~~ICOcom I) um~ parte da mitologia da tribo, parte essa de queo ~l.ãé o umco c~nhecedor mtegral; 2) uma «pátria», conjunto de caminhosmIUCOSe.de locaIS~e que os mais sagrados não poderão ser profanados pelos

,outros clas; 3) um ntual de que o clã totémico tem a exclusividade. O carác­

ter secreto do tote~ismo cultual, e a noção de exclusão que ele implica,não deve .s~r.entendldo como um fenómeno de privilégio: qualquer homemadulto é mlc18do e pertence de pleno direito à loja do seu clã. Esta formade totemismo implica aliás ideias de complementaridade, de cooperação e

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• TOTEM 224 225 TOTEM

de interdepend!ncia entre os clds. Isto é visível a três níveis. Primeiro nível:a mitologia. O caminho mítico percorrido pelo her6i totémico no tempo dosonho compreende centenas de quil6metros, ultrapassando até as fronteirasda tribo: para obter a narrativa completa dos grandes mitos e ver cumprirtodos os ritos que com eles se prendem, seria necessário a deslocação suces­siva a cada grupo e a cada tribo. Cada loja é apenas guardiã de um capítuloda narrativa: os seus conhecimentos são complementares dos das outras einscrevem-se num conjunto que a ultrapassa. Segundo nível: a organizaçãodo ritual. É exclusivamente por razões de simplificação que apresentámosa loja como a guardiã exclusiva dos conhecimentos rituais totémicos. Emnumerosos casos, a presença dos membros de outros clãs é indispensávelao cumprimento dos rituais: estes (parentes por aliança ou parentes mater­nos) devem fornecer certos acess6rios cerimoniais ou devem executar certasfases do ritual. Algumas vezes, é a pedido expresso dos membros exterioresao clã que n cerimônia é efectuada. Existe, pois, cooperação ritual entre osclãs. Terceiro nível, e o mais importante: as cerimónias de tipo intichiuma.Já dissemos que era suposto estas cerimónias assegurarem a ordemlnatural,isto é, a reprodução das espécies animais e vegetais de que depende a ali­mentação dos homens. Em virtude de uma espécie de divisão social do tra­balho, cada clã é apenas responsável por uma parte da natureza: a sua ouas suas espécies totémicas. Ele é responsável para bem de todos: hli coope­ração mágica e interdependência. Mas quando a consumação da espécie toté­mica é proibida aos membros do clã, este é responsável por um bem quetodos poderão utilizar excepto ele. O privilégio aparente é, na realidade,apenas um dever do qual não se espera qualquer benefício material mas quese explica através da reciprocidade que liga os clãs entre si.

(~~1'. ;' I O totemismo do clã local está ligado a uma forma de clã específico da'.,{ ) Austrália. º-,t~tem d~ã]o~al éjndependente do totem da mãe oU do pai:

'iS, ,~~!Í'ya de,um laç.o_espirituaL que preteIlde ligaro ind.ivíduo a um I~ar tot~­

~ mico - daí o termo 'local'. Este laço é muitas vezes estabelécido no\f~. .'mõme'nto em que a mãe senteas primeiros sintomas da gravidez, o queo o DJ• 00 se explica pela introdução de um espírito proveniente do local toténUco mais

!t" \j próximo: fala-se então de totemismo local concepcional. Quando o que conta;-, " é o local totémico mais pr6ximo do lugar de nascimento, fala-Se,de tote-

o mismo local de nascimento. É evidente que tais crenças permitem ~rpa mani·pulação êonsiderável: na realidade, o totem local é muitas vezes' o do pai.No que respeita à sua função, o totemismo local é cultual, e tutib quantodissemos a propósito do totem patrilinear aplica-se igualmente ao t~tem local.

Para além destas três espécies de clã, existem outros grupos sociais asso­cllldos a t6temes: metades, secções, subsecções, semimetades. Lihtitar-nos­·emos 11 dar cantil dos dois primeiros. As metades podem ser consideradascomo o agrupamento em dois grandes conjuntos dos clãs da tribo. Silo matri­tlU palrilineares tal como os clãs que as compõem. São ex6gamas. Os t6te­me. de metade podem ser entendidos em dois sentidos. Em sentido restrito,

11110 os t6temes pr6prios a cada uma das metades, mas nenhum constitui umUltem porl os clAsque compõem estas metades. Em sentido lato, são todosoa h1lcmcs dos grupos (t6temes dos clãs, tótemes de metade em sentido res-

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trito, tótemes das secções, etc.) que estão incluídos em cada metade. Nestasegunda acepção do termo, a cada metade está associada uma lista formadapor um número considerável de tótemes: o totemismo de metade toma entãoo aspecto de uma classificação dualista do mundo. Os próprios aborígenesafmnam que todas as coisas podem ser integradas numa ou noutra metade:eles conferem até um lugar, neste sistema, às coisas estrangeiras às suas socie­dades, utensílios de ferro, animais importados pelos colonos como a vaca,

-etc. É sob esta forma que a função classificatória do totemismo é mais evi­dente. Acontece muitas vezes que as duas metades estejam mais especial­mente associadas a duas espécies animais, caso da águia e da gralha emnumerosas tribos do Sudeste. Os nomes de animais servem, então, paradesignar as metades, como os homens que as compõem: fala-se da metade«águia», dos homens «águia», etc. Vários mitos narram as peripécias destesantepassados-animais no tempo do sonho: à luta permanente travada entrea águia e a gralha corresponde a oposição ritual entre as duas metades. Aindaaqui, evocar a divisão do mundo em duas metades, ou falar da sua oposi­ção, não pode fazer esquecer que aS metades só existem enquanto depen­dência mútua: cada metade exógamd depende da outra para obter cônjugese assegurar a sua reprodução; a iniciação dos seus membros recai geralmentesobre os membros da outra metade,' tal como os funerais e numerosas ceri­mónias que assentam sobre um prtncfpio de complcmentaridadc ritual.

A organização em quatro secções é definível através do esquema seguinte(o sinal = liga os cônjuges, o sinal - a mãe e os filhos):

(As secções A e C são duas SUbdiV,'isõesde uma metade matrili,near AC;A e D são também duas subdivisões',de uma metade patrilinear AO. O tote-o mismo de secção associa a cada u$a das secções um totem ou' "ma listade tótemes. Esta forma de totemismo é muito semelhante ao totethismo de

metade quanto ao seu aspecto classipcatório: classificação cósmica em qua­tro em vez de ser em duas. Todavia" diferenças importantes surgem do factode a secção ser um grupo social muho particular. Este não é unilihear: pordefinição, um indivíduo não pode pertencer (salvo funcionamento ,irregulardo sistema) à mesma secção que o ,'seu pai ou a sua mãe. Uma secção, aocontrário de uma metade, não é ullt reagrupamento de clãs. É tIm factoque existem tribos onde o totemismc:lde secção coexiste com o totemismode clã, mas os dois sistemas não' podem integrar-se harmonidsamente:

o maior desenvolvimento de um pa~ece acarretar a atrofia do outro. De umlado encontramos tribos com clãs totémicos mas com um totemismo de sec­ção reduzido a quatro espécies naturais, uma por secção; do outro, um tote­mismo de secção com carácter classificatório, mas com clãs que não são toté­micos. Neste último caso, o totemismo classificatório de secção levanta umoutro problema que a comparação com o totemismo de metade ajudará a

('I

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TOTEM 226 227 TOTUM •compreender melhor. Entre os tótemes de cada metade, um indivíduo estámais particularmente associado ao do seu clã, e esta associação faz-se auto­maticamente: o totem pr6prio de um indivíduo é o do seu pai (caso patrili­Ilear) ou o da sua mãc (caso matrilinear). Mas como escolher entre a listados tótemes de secção? Três soluções são possíveis. A primeira: não esco­lher: cada um dos membros da secção tem como tótemes todos os da lista.A segunda, muito rara: associar por pares os tótemes de duas secções (porexemplo: o emu da secção A com a gralha da C) e estabelecer uma regraque determine automaticamente o totem dos filhos em função do totem deum dos pais (por exemplo: uma mulher A emu tem filhos C gralha). A ter­ceira: escolher para o fllho, aquandQ do seu nascimento ou da sua inicia­ção, um totem da lista de secção por meio de um método qualquer de adi­vinhaç~o. Mas nenhuma destas soluçõ~sé satisfatória. A primeira, ao associarglobalrpente um quarto da tribo a U111 quarto do universo, torna pouco pro­vável uma atitude ritual privilegiada entre o homem e os seus tótemes:a proibição alimentar representaria' um handicap económico demasiadogrande,' e a responsabilidade de rituais de multiplicação seria uma tarefademasiado pesada. A segunda solução consiste em reconstituir o clã em detri­mento da secção: é o caso do exemplo proposto, a unidade totémica emu­-gralha-define um clã matrilinear da metade AC. A terceira solução estámuito próxima do totemismo individual: a secção conserva apenas um aspectototémico pertinente enquanto limitar a escolha do totem do indivíduo.

Existe uma última forma de totemismo de grupo, o totemismo sexual,no qual cada sexo está globalmente associado a uma ou mais -espéCies ani-­mais. É o caso de certas tribos do Sudeste onde o morcego é o totemdos homens, o mocho o das mulheres. O totem sexual é o companheiro(o "irmão» ou a "irmã») do grupo sexual ao qual está ligado: protege o grupo,e o grupo protege-o. Cada sexo se abstém de comer, de matar ou de ofen­der o seu totem: a sua morte efectuada por representantes do outro sexoé considerada uma provocação. A expressão <<avida de um morcego é a vidade um homem» implica uma identificação entre o sexo o o seu totem.

Por último, falámos do totemismo individual na Austrália. Se bem quea literatura seja confusa sobre este assunto, podem distinguir-se dois casos.O primeiro corresponde a algumas tribos do Sudeste que não possuem clãs.Nestas tribos, cada indivíduo, homem ou mulher, está assoCiadoa uma espé-

, Cie natural. É geralmente no momento da puberdade ou da iniCiação que, o adolescente adquire o seu totem pessoal: este é-lhe muitas vezes dado pelo

pai. A associação do indivíduo com a espéCie totémica é, portanto: dife­rente da que caracteriza o totemismo clânico, pelo facto de, por um lado,esta assoCiaçãonão ter sido determinada à nascença e, por outro, por nãoser baseada na pertença de um indivíduo a um grupo. O totem individualé muitas vezes chamado "irmão»(ou "irmã» para uma mulher): é um <<amigo»a quem não se fará mal e que não se gosta de ver maltratado. Vem emsocorro do seu totemista, avisa-o dos perigos em sonhos premonit6rios, etc.O segundo caso de totemismo individual melhor descrito corresponde à asso­Ciação do curandeiro com uma ou mais espéCies naturais, geralmente ani­mais. O curandeiro (o xamã das regiões árcticas) é um homem que detém

certos poderes mágicos: cura os doentes, desempenha o papel de adivinhoe exerce a magia negra contra os grupos inimigos. A sua função é reconhe­cida pelo grupo: o curandeiro, se bem que temido pelos seus poderes ocul·tos, está ao serviço do grupo, e não deve ser confundido com o feiticeiro.O totem individual do curandeiro é um totem de função: normalmente osoutros homens não têm um tal totem. Este é adquirido aquando da iniCia­ção do curandeiro (iniciação feita por um outro curandeiro já confirmado,muitas vezes pai do primeiro); é um amigo, uma ajuda e um duplo.Enquanto tal, é estritamente proibido ao curandeiro comer-o'seu totem; qual~quer dano causado ao totem atinge o próprio curandeiro; este pode_tomar

_a forma animal da espécie totémica, etc. A prÍncipal função do totem é àde ajudar o curandeiro. .

Para concluir, é necessário lembrar que diversas formas de totemismose podem encontrar numa única tribo. No exemplo já menCionadodos Dieri,cada indivíduo possui um totem de clã matrilinear (totem soCial: exogamiae tabu alimentar), um totem de clã patrilinear (totem cultual para o qualse realizam cerimónias de multiplicação) e um totem sexual; para além disto,mantém relações privilegiadas com o totem patrilinear da sua mãe. Os tóte­mes de clãs matrilineares estão agrupados em duas metades, o que nos dáconta do aspecto classificat6rio do totemismo matrilinear dos Dieri. Quantoao totem patrilinear, este também desempenha a função de totem do sonho.

1.2. América do Norte

Depois da Austrália, é sem dúvida a América do Norte a mais impor­tante região no que diz respeito ao estudo do totemismo, quer do pontode vista histórico, porque foi aqui que o fenómeno totémico foi descritopela primeira vez, quer do ponto de vista teórico, dada a extensão geográ­fica do totemismo americano e a variedade das suas formas. Quando se com­param os factos americanos com os factos australianos, duas observações ocor­rem imediatamente. Por um lado, o totemismo individual, sob a forma doespírito guardião, é muito difundido na América e reveste uma importânCiade primeiro plano nas crenças e na vida dos índios. Por outro, o totemismode clã, se bem que largamente difundido, tem Um conteúdo muito pobre:

- regra geral, não há na América nem cerimónia de multiplicação da espéciei totémica nem mesmo proibição de ordem alimentar. A parte estas conside~ ­rações gerais, parece difíCilfazer uma síntese dos fenómenos totémicos ame­ricanos. Seguindo o exemplo dos próprios americanistas, contentamo-nos emapresentar uma série de exemplos escolhidos de modo a sublinhar antes demais as diferenças de uma região para outra.

Na região dos Grandes Lagos, os Ojibwa estão subdivididos numa pro­fusão de clãs, cada um associado a um~'espécie animal,. mais raramente vege-

I tal (totam). Além disso, cada indivíduo está ele próprio associado a uma outraespécie que é o seu espírito guardião (manitú). O totem do clã é exogâmico(como o clã); existem mitos relativos à origem destes tótemes que se teriamposteriormente subdividido em tantos quantos os clãs que se podem obser-

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• TOTEM 228 229 TOTEM

""var na sociedade real; finalmente, existe uma crença segundo a qual umhomem se parece com o seu totem (por exemplo: um homem do clã dourso passa por guerreiro ou, um outro, do clã do grou, por ter uma vozestridente). Mas são estes os únicos atributos do totem clânico: não há qual­quer respeito pelo animal que pode ser morto e comido. Vejamos apenasalgumas variações sobre este mesmo tema entre outros povos dos GrandesLagos. Os Winnebago classificam os seus clãs e tótemes em duas metades;cada clã pretende descender do seu animal totémico e esculpe, tece ou gravarepresentações deste animal: mas nenhum tabu alimentar lhe está ligado.Os Iroqueses classificam os seus tótemes em duas metades, mas não têmnenhuma crença nem nenhum ritual relativo aos seus tótemes, de tal maneiraque estes aparecem pura e simplesmente como nomes de clãs.

Inversamente, o animal que desempenha a função de espírito guardiãoé, entre os Ojibwa como noutras zonas da América, objecto de respeito.As crenças parecem por vezes contraditórias. Por um lado, o índio abstém­-se de matar e de comer o seu animal tutelar: certos iroqueses identificam--se com o seu espírito guardião a ponto de temerem a morte de um animaldaquela espécie como se ela devesse causar a sua própria morte. Mas, poroutro lado, o índio acredita que será particularmente afortunado nu~ caçadaao animal que constitui o seu espírito guardião: em virtude do laçb privile­giado entre o homem e o animal, este oferecer-se-á espontaneamente no caça­dor. Para conciliar estes dois aspectos contraditórios, os Iroqueses e oJ Algon­kin dizem que cada espécie animal tem um «irmão mais velho••: é este queprotege o homem de quem é o espírito guardião e que o ajuda ria caça elhe envia os seus «irmãos mais novos... Mais geralmente, o espírito guar­

dião ajuda o indivíduo na realização dos seus projectos, quaisquer qJ1e.estessejam: exercício da magia negra, predizer o futuro, vencer os seUs inimi­gos, seduzir uma mulher, etc. Neste sentido, pode dizer-se que ~ finali­dade do espírito guardião é puramente individual: não serve, comÓ o totemcultual australiano, para a realização de um objectivo de interesse tdlectivo.A llquisiçãOdo espírito guardião resulta também de um esforço que é pura­mente individual: o homem, chegado à idade adulta, impõe a si mesmo umjejum austero e retira-se para longe das aldeias, a fim de ter um sonho ouuma visão, revelação mística da espécie animal à qual ficará associado. Esteesforço nem sempre é coroado de êxito: certos indivíduos nunca chegamo ter uma vistlo e viverão sem espírito Ruardião.

011 011I111111"i"~1II nll Misslluri ~ constituem IImll ~xc~pção nll'Américlll'CII' ~'IIllSIl1111~'lIl'1k'I~'I'1'lIl'lkuhH'lll~ntcI'ku lIu scu tlllclllislllOd~'dll'. A triollc"1I1,11,,11111111C'1ll,IIIIIS1II~'tllll~'s:,'111111lllC'tllll~'~,\IIllI'I\"\'nd~'dnl,\l dl\s! li nmiol'1'11I'11'1111"clã" suhdi"ide-se POI' SUIl vez num subclil. Deste modo, o pri­meiro cla da primeiro metade é o clã wapiti. Os seus membros nilpdevemnunca comer ou mesmo tocar num wapiti macho; também estão proibidosde comer carne de veado; quando morrem silo enterrados dentro d~ pelesde veado; este clll nllo estaf subdividido em subcllls. O segundo clã tem onome de «ombro negro••: segundo a tradiçllo, os seus antepassadds foramos bisonres e, quando a totalidade da tribo caça este animal, as tendas docla sao decoradas com representações de bisontes. O clã está subdividido

em quatro subclãs. Os membros do primeiro não devem comer a línguado bisonte nem tocar na cabeça deste; os do segundo não comem milhovermelho; os do terceiro são os pregoeiros da tribo; os do quarto não devemtocar nos chifres negros (do bisonte). O terceiro clã, também associado aobisonte, está subdividido em dois subclãs. O primeiro é designado por nomesque podem ser traduzidos «em relação com a casca do salgueiro sagrado••,ou «os que não comem os flancos dó bisonte ••, ou ainda «os que não comemos gansos, os cisnes e os grous ••; para além disto, não devem comer a lín­gua do bisonte. O segundo subclã é chamado «em relação com a pele sagradada fêmea branca do bisonte.. ou «eles não podem comer as línguas debisonte ••; todavia, ao contrário dos membros do subclã precedente, têm

direito a comer os flancos do bisont~. Igualmente, os outros clãs, pelos seusnomes ou pelas proibições que os seus membros observam, estão associa­dos a animais, plantas, objectos ou tenómenos naturais. Por um latlo, trata­-se de um totemismo público ou c1assificatório: a multiplicidade Idas refe­rências - referências míticas, denominações, nomes, proibições, etc. - defmeuma classificaçãoa três níveis taxin6inicos: metades, clãs, subclãs. Por outrolado, os tótemes são muitas vezes «tótemes parciais••: não é a espécie animalna sua totalidade que representa o totem, mas uma parte apenas, seja essaparte anatómica (línguas, costelas, :,etc.), seja uma parte dos an~imais(osmachos, os que têm a pelagem delumacerta cor, etc.). Entre os Omahaeste aspecto explica-se facilmente eni função da proibição alimentar'que pesasobre o totem. Os Omaha vivem principalmente da cultura do triilho e dacaça ao bisonte: ter por totem um d"stes dois recursos alimenta~es de basee proibir o seu consumo represent,ria um inconveniente maior. Por isso,o milho só constitui o totem de u'nj subclã enquanto variedadb (o milho

[ vermelho), e o bisonte, se bem qu~ ,diversas vezes totem, nunca é objecto

I global das proibições que apenas yisam uma parte do animal. . ,ICada clã omaha dispõe de uma fista de nomes pessoais que lhé são pró­prios e que existem em relação com'o totem. Deste modo, no clã do wapiti,o primogénito será geralmente chalriado «chifre mole••; o segundo, «chifreamarelo••, etc.: os outros nomes dOldã referem-se quer aos diferentes esta­dos dos chifres do wapÍti segundo a' sua idade quer a outras partes do corpodo animal ou a diferentes aspectos do animal. De igual modo, cáda clã sedistingue dos outros por um pente~do característico que lembrá por vezeso seu totem. É o caso das crianças do clã Ombro Negro (do bisonte) queusam duas mechas de cabelo a imitar os chifres do bisonte. Os ritos de nas­cimento e de morte fazem também :referência ao totem do clã. Finalmente,certos clãs e subclãs cumprem cenos ritos baseados na ideia de um con­trolo mágico da espécie totémica pat parte dos. homens do clã correspon­dente. Por exemplo, os membros do subclã do pássaro pretendem que afas­tam magicamente os pássaros dos Cfitnposde milho na época da ceifa; osmembros do clã do vento agitam dobertores para que o vento se levantee afaste os mosquitos quando estes se,tornam muito numerosos, etc. Comonas cerimónias intichiuma, estes ritos assentam na ideia de um controlomágico privilegiado da espécie totémica por parte do clã correspondente evisam um objectivo de interesse colectivo. Mas a semelhança fica por aí.

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TOTEM 230 231, . TOTEM

Particularmente, os ritos omaha não pretendem de modo algum multiplicara espécie tlltémica e têm apenas um objectivo negativo: evitar certos acon­ll'l'imentlls naturais nefastos. Os diferentes aspectos do totemismo c1ânicotul clImo os acabamos de descrever entre os Omaha encontram-se algumasvezes, mas com menor importância, noutras tribos das planícies centrais daAmérica do Norte. Em todas essas tri]:>os,o espírito guardião é importante.

No Noroeste do continente, entre os povos de língua salish que vivem

no interior, não existe org~ni~ação clân~c~~e a crença nos e~~íritos guar­diães representa o traço pnnclpal da lrehglao. A fim de adqumr um pode­roso allimal protector, os jovens trClinam-seinterminavelmente, impõem asi próprios longos períodos de jejum:ou duras provas de resistência à dor,submefem-se a ritos de purificação epmo o banho de vapor. O animal queaparecçu em sonho deve ser morto f\'P decurso de uma caç~da e a su~ peleserá gllardada como relíquia. O inqiyíduo é suposto possUIr as quahdadesda espécie animal à qual pertence O íseu espírito guardião e passa por umbom caçador no que respeita à perseguição de animais dessa espécie. Mui­tas vezes o animal sonhado por um adolescente é o mesmo que o do seupai: o espírito guardião tende a ser herdado do pai. Está também relacio­nado com a especialidade do indivíduo: os que se ocupam mais da caça terãopor espírito guardião os animais de peles; os guerreiros terão o sangue oudiferentes armas; os xamãs (ou curandeiros), estrelas ou animais associadosà magia, etc.

Os índios da costa oeste do Canaaá são célebres pelos seus «postes toté­micos» imensos troncos de árvores esculpidos, erigidos no momento dos, .funerais dos chefes, das construções das casas ou de outros acontecimentosimportantes. No Norte da região, as tribos estão divididas em metades.' clãse linhagens associados a espécies naturais reais ou miticas, ou a obJectosinanimados. Os mitos explicam geralmente a associaçãodo clã com uma espé­cie animal: um homem ajudou um animal, uma mulher casou-se ou foi rap­tada por um animal, etc. Mas nenhuma proibição existe relativamente à uti­lização da espécie associada; nenhum ritual lhe diz respeito. O animal serveapenas de nome e de brasão a uma parte da sociedade, clã ou linhagem.A utilização deste brasão e das representações animais que se lhe referemé um privilégio deste grupo. Deste modo, quando ele erige um poste toté­mico, o grupo esculpe nele as representações do animal que lhe s~rve debrasão bem como outros animais aos quais este se encontra associado ou, 'Ioposto na tradição mítica. .

Em certas regiões da Califórnia, existem clãs e metades. Entre os Mlwok,por exemplo, todos os fenómenos naturais são repartidos ente as duas meta­des, uma associada à água, a outra à terra. Os nomes pessoais são igual­mente repartidos entre as duas metades e referem-se aos animais e vegetaisque aí são classificados. O totem é geralmente designado por um termo quesignifica 'cão', conotando deste modo a ideia de que o totem é o animaldoméstico ou favorito do homem. As proibições totc!micassão pouco desen-

, volvidas na Califórnia. Na época em que estas sociedades foram estudadas,as metades não eram forçosamente exog4micas.

É sem dúvida entre os índios Pueblo do Sudoeste ~ue o aspecto classifi­catório do totemismo é mais desenvolvido. Os diferentes clãs dos Zui'li estão

associados cada um a um totem. Para além disso, estão classificadossegundosete direcções: os quatro pontos cardeais, o zénite, o nadir e o centro. A cadadirecção está associada uma cor e uma espécie animal.

No México e na Guatemala, o espírito guardião é conhecido sob o nomede nagual. A etimologia desta palavra parece evocar a ideia de esconder-se,de se m~tamorfosear ou de se mascarar: os feiticeiros aztecas, para cumpri­rem os ~eus malefícios, eram considerados como tendo o poder de se trans­formare," em animais que constituíam os seus nagual. O nagual é tambémo animal que está associado a cada um dos indivíduos em função da suadata de nascimento através do calendário divinatório azteca que combinadez animais com treze números. Este animal é um companheiro com o qualo indivíduo se identifica espiritualmente: existem numerosas histórias querelatam que, no mesmo instante em que o animal foi morto no decurso deuma caçada, um indivíduo que tinha como nagual um animal da mesmaespécie morria na aldeia vizinha. No Yucatán, cada um dos bebés era depo­sitado durante uma noite num templo aberto e no dia seguinte interpretavam­-se as pegadas que indicavam a visita de um animal ao qual o bebé ficavaa partir desse momento associado.

1.3. Melanésia e Polinésia

Na Nova Guiné e nas outras ilhas melanésicas, a associação dos clãs edas metades com seres vivos e inanimados é um fenómeno corrente. Citare­mos apenas alguns casos dignos de nota.

Em Buin, nas ilhas Salomão, existem oito clãs matrilineares exogâmi­co~, cada um dos quais associado a um pássaro qualquer, coruja ou papa­gaIo, que nenhum membro do clã deve matar ou comer. Estes animais sãomesmo de tal modo sagrados que qualquer ofensa perpetrada contra elespor um outro clã deverá ser vingaaa: daqui resulta que ninguém dá caçaa estes animais. A proibição totémica está, pois, generalizada junto da tota­lidade da tribo.

I Em Mo.ta, nas ilhas de Banks, cada criança é, considerada a encarnaçãode um al11mal ou de uma planta, encontrada ou comida pela mãe nomomento da gravidez. É proibido ao indivíduo comer a espécie animal ouvegetal com a qual está desse modo identificado. Trata-se de uma formade totetismo concepcional, fen6meno de ocorrência rara fora da Austrália.

Nas outras ilhas de Banks existe uma outra forma de associação entreindivíduo e animal. Esta associação mítica s6 é criada a pedido do indiví­duo e graças aos serviços de um mágico. O animal associado é uma espéciede duplo que ajuda magicamente o indivíduo. Estes fen6menos são corren­tes no mundo no que respeita ao totem pessoal ou espírito guardião mas

'Ih ' ,nas I as de Banks, parece ser um animal especial e não a espécie toda queestá associada a um indivíduo: este animal é respeitado, e da sua vidadepende a do homem de quem ele é o duplo.

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•TUTliM 232 233 TOTIlM

Na Polinl!sia, o totemismo n40 I! nem muito difundido nem muito desen­volvido. Em Tikopia, os habitantes est40 repartidos em quatro grupos nãoexogâmicos, estando cada um associado a um vegetal e a vários animais.O consumo destes animais é proibido aos membros do grupo. Inversamente,as plantas totémicas são consumidas livremente por todos: mas cada grupoé obrigado anualmente a proceder a um rito agrário relacionado com a plantaà qual está associado. Este modelo só vale estritamente para três das quatroplantas: o inhame, o taro e a árvore-de-pão. Quanto à quarta, o coqueiro,não releva de nenhum ritual agrário por parte do seu clã, mas os seus mem­bros só podem utilizar o seu fruto se obedecerem a «certos tabus». Estacuriosa complementaridade entre ritual e proibição alimentar constitui umanotável característica do sistema totémico de Tikopia.

1.4. Indonésia

Quando os clãs existem, como em Sumatra, estão geralmente associadosa tótemes. Em Bornéu, os Iban ou Dayak marítimos têm uma espécie deespírito guardião a que eles chamam nyarong. É durante um sonho que surgeo nyarong muitas vezes associado a um antepassado do sonhador. Nem todaa gente tem um nyarong: para obter o sonho que o revela, os jovens vãodormir sobre o túmulo de um homem importante ou na floresta. O quetiver recebido a sua revelação sai a caçar para matar o animal que reconhe­cerá como seu através de um sinal insólito. Depois abster-se-á de matar qual­quer outro animal dessa espécie, testemunhando assim o seu respeito pelonyarong que lhe assegurará ajuda e protecção. Os seus descendentes 'respei­tam muitas vezes as mesmas proibições sem no entanto beneficiarem de umaidêntica protecção.

1.5. índia

Na índia o totemismo está difundido, por um lado, na maior parte doDecão, e por outro, no Assame. O totemismo individual está quase total­mente ausente e foi apenas registado um único caso. O totemismo ihdianoconsiste numa associaçãode clãs exogâmicos patri- ou matrilineares com espé-

'cies animais ou vegetais, bem como com um número incrível de objectosIheter6clitos. Muitas vezes os tótemes são objecto de proibições estritas que

protbem qualquer utilização. Mas os outros costumes relativos ao totem ocor­rem excepcionalmente: reverência ao totem, saudação, funerais, cerimónias,representação, etc. Não existe em parte alguma o ritual de multiplicaçãodo totem. Vários autores chamaram a atenção para a fraca importância doaspecto religioso do totemismo na índia e julgaram ver nesta instituição umamaneira de reforçar a exogamia do clã.

1.6. Arrica

O totemismo clânico está presente em numerosos povos da Africa Negra.• O tabu sobre a utilização ou o consumo da espécie totémica é frequente.I Encontram-se em Africa quase todas as variedades de totemismo de que já

falámos a propósito dos outros continentes. Totemismo classificatório: os

I Dog0!1LPor exemplo, associam a cada grupo ex?gam~ u~a parte ~o corpo• humano, uma estrela ou uma constelação, e espécies ammals e vegetaIs. Tote­-mismo parcial: os pastores de Leste têm como tótemes a vaca de uma certacor, a vaca prenhe de um segundo vitelo, a vaca de chifres rectilíneos, etc.Totemismo bilinear: os· Ashanti têm um duplo sistema de proibições toté­micas, uma matrilinear, a outra patrilinear. Atentemos, no entanto, em certascrenças específicas de Africa. Entre os Edo da Nigéria, a espécie totémicaé tabu, e a esposa não pode nem cozer nem consumir o totem do seu marido;mas o totem será ritualmente levado aos lábios durante certas cerimónias,entre as quais as fúnebres. Os Senufo acreditam na transmigração das almasentre os homens de um clã e os seus animais totémicos. Entre os Nuer,o homem respeita profundamente o seu animal totémico: evita fazer-lhe qual­quer mal, não consome a sua carne, saúda-o quando o encontra, e faz umsimulacro de enterro quando encontra o seu cadáver. Este respeito é recí­proco: o animal, mesmo quando se trata de um animal feroz, não faz malao homem de quem ele é o totem. Estas crenças são correntes, mas, entreos Nuer e noutras populações africanas, o respeito dos humanos vai ao pontode efectuarem sacrifícios, de dirigirem orações ao espírito do totem e a dedi­carem gado. É o caso dos da linhagem do crocodilo, que mungem as vacasconsagradas ao espírito-crocodilo e deitam o leite num rio habitado por cro­codilos: ou ainda os da linhagem da pitão, que sacrificam uma cabra aoespírito desse animal, atiram um pedaço a um curso de água e deixam um

\ outro na margem. Aqui, aquilo a que chamámos o aspecto religioso do tote­mismo é levado a um extremo raramente atingido noutros luga,res.Na Africa Ocidental, acredita-se que todas as pessoas tenham o seu duplo

num animal selvagem, nunca num animal doméstico ou numa planta. Esteestá aparentado com o homem, e o destino dos dois seres é solidário: a mortede um tem como consequência fatalII1entea morte do outro. A crença baseia­-se na ideia de que uma das almas humanas, a alma da selva ou a almaexterior, vive no animal. Tal como no caso do espírito guardião da Amé-

, rica, o homem abstém-se de matar ()u de fazer mal aos animais da espécieque lhe está associada. No entanto; o animal não parece desempenhar umpapel de protector do homem. .

2. Historial das teorias sobre o totemismo

O termo 'totem' surge pela primeira vez na literatura etnográfica no livrodo intérprete índio Long, publicado em 1791. 'Totam', 'toodaim' ou'dodaim' é um termo ojibwa pelo qual os Peles-Vermelhas designavam o

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TOTEM 234 235 TOTEM

scu lotcm de chl: todavia, sob este termo, Long descrevia na realidade o espí­rito guardil10ou totem individual. A palavra 'totem' é reutilizada no iníciodo sc!culo XIX por diferentes autores que estudam os índios. Em 1841,(,corge Grey, antigo governador da Austrália do Sul, publica o seu diáriode viagem onde descreve as instituições dos aborígenes do Sudoeste. Nessac!pocu,u Austrália só era colonizada pelos Europeus há meio século. As obser­vaç/'lesetnográficas de Grey estão, pois, entre as primeiras, e a sua pertinên­da é notável. O contributo de Grey pode resumir-se em três pontos: 1) osaborígenes estão distribuídos em .<famíllas»(a que chamaremos clãs) matrili­neares e exógamasj 2) cada "família» fem como brasão um animal ou umaplanta chamada kobongj além disso, "existe um elo misterioso entre a famíliae o seu kobong, tal que um membro da família não matará jamais um animalda espécie a que pertence o seu kobonlJ,. .. Do mesmo modo, um indígenaque tenha por kobong uma planta não qeverá colhê-Ia sob nenhum pretexto»j3) os costumes (transmissão, exogamia, interdito alimentar) relativos ao kobongsão idênfÍCos aos dos índios da América relativamente ao totem. Eis, pois,dados de 'uma só vez os elementos essllnciais que estarão na base das refle­xões de uma ou de duas gerações de antropólogos. Todavia, lltribui-se geral­mente a ••descoberta» do totemismo li. John Ferguson McLennan, autor de

um ensaló publicado em 1869.-70,três qécadas depois do diário ~e Gre~, como título Pn the Worship o/ Anlmals and 'Plants: Totem and TotemlSm. A unpor­tância histórica do ensaio de McLennap. explica-se por uma série de factoresconvergentes. Antes de mais, ele aparece no momento do desenvolvimentoda antropologia social: os anos que se seguem vêem a multiplicação das refle­xões comparativas e das especulações sobre as origens das instituições sociaissimultaneamente com o desenvolvimento das observações etnográficas. Poroutro lado, McLennan é considerado como um dos fundadores da antropo­logia social, e as suas teorias serão durante muito tempo discutidas no mundocientífico. Por último, o seu ensaio sobre o toternismo, como o título indica,acentuando o carácter religioso da instituição, encontrava uma recepção favo­rável numa época assaz interessada nas origens e na evolução da religião nomundo. Para McLennan, o totemismo constitui um estado da evolução atra­vés do qual a humanidade passou, e a partir do qual se desenvolvem siste­mas religiosos mais aperfeiçoados.

Depois do ensaio de McLennan, as teorias antropol6gicas sobre a ori­gem do totemismo multiplicam-se. Entre 1870 e 1920 podem contar-se cercade quarenta: não falaremos senão das principais. Herbert Spencer, John J.ob­bock e Andrew Lang propõem ~xplicações de tipo nominalista: os tótemesteriam sido no início apenas nomes de animais através dos quais eram desig­nados os diferentes grupos ou indivíduos em função da sua semelhança comtal ou tal espécie animal. Só posteriormente, em virtude da indeterminaçãodas línguas primitivas, ou então em virtude do elo místico que se pensaexistir na mentalidade primitiva entre nome e coisa nomeada, é que o totemteria sido investido de uma significaçãoreligiosa. O problema principallevan­tado por este estilo de explicação é o de saber por que razão os grupos huma­nos foram designados por nomes de espécies animais e não por qualqueroutra espécie de nome: por outras palavras, pode objectar-se que o problema

essencial do toternismo, que consiste na concepção do elo entre sociedadehumana e espécies naturais, permanece por resolver. Neste sentido, a expli­cação proposta por Haddon permite ir um pouco mais longe: cada um dosgrupos humanos localizados se alimenta de preferência da espécie animalou vegetal mais abundante no seu território, e ao trocar o seu excedentealimentar com os grupos vizinhos, teria acabado por ser chamado pelo nomedessa espécie e por ser identificado segundo a designação de «os comedoresde ... ". O principal defeito da teoria de Haddon reside no seu carácter pura­mente especulativo: não se pode citar nenhum exemplo etnográfico em seufavor, e os grupos totérnicos reais, ou seja, os clãs, estão geralmente asso­ciados a territórios demasiado exíguos para que possa existir uma especiali­zação alimentar, tal como essa teoria a imagina. Todavia, a ideia de queo toternismo tenha as suas raizes em preocupações alimentares, ou mais gene­ricamente econ6micas, da sociedade será retomada pelos funcionalistas e peloste6ricos alemães partidários dos Kulturkreisen. As teorias nominalistas bemcomo ade Haddon procuram razões positivas para o estabelecimento do tote­mismo e não podem dar conta de modo imediato daquilo a que se chamouo seu carácter religioso: para explicar por que razão existe uma proibiçãosobre o animal que não teria sido inicialmente outra coisa além de um nomeou de um alimento, as teorias precedentes devem socorrer-se de outras con­siderações.

Certos antrop610gos, pelo contrário, dirigiram-se imediatamente ao tote­mismo como a um fen6meno religioso. Para Tyl()r ou Wilken, trata-se de

uma forma de culto dos antepassados cujas almas teriamreincarnado emanimais ou plantas: a crença na IIIletê"xni>si~osi1explicariasimultaneamenteo parentesco imaginado entre os homens e os animais, assim como o cultoque é prestado a estes últimos. Esta teoria apoia-se sobretudo em factos indo­nésios, e contra ela se fez valer que, ~~<ie_a crença na reinc~!laçãº.era

_ corrente, particularmente na Indonésia, o totemismo era pouco desenvol­vido, enquanto o inverso prevalecia nà América do Norte e na Austrália.Por último, a reincarnação da alma numa forma animal e a identificaçãode um homem com o seu totem animal representam duas formas de relaçãoprivilegiada do homem com o animal, e não se vê a priori por que razãose deveria fazer derivar uma da outra e não o inverso.

Outras teorias sobre a origem do totemismo apoiam-se directamente emobservações etnográficas da época. Americanistas como Boas ou Hill Tout,ao constatarem a importância entre os índios dos espíritos guardiães quecoexistem com os t6temes clânicos, fazem derivar os segundos dos primei­ros: o totem de clã seria o espírito guardião de um antepassado influenteque o teria legado aos seus descendentes. Frazer, cuja obra em quatro volu­mes Totemism and Exogamy ficará provavelmente como a mais importantepublicação sobre o assunto, defendeu posteriormente três teorias. A primeiraestá próxima da teoria da reincarnação. As outras duas seguem de muitoperto a descoberta das instituições totémicas dos Aranda na obra de Spencere Gillen (The Native Tribes o/ Central Australia, 1899). A excepcional impor­tância que revestem na época as crenças dos Aranda para a discussão dototemismo provém de um facto e de um preconceito te6rico. O facto é que,

••

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•TOTEM 236 237 TUTHM

.'em 1900, ao contrário das outras populações conhecidas da Austrália, osAranda quase não foram atingidos pela colonização: podemos, pois, esperarencontrar entre eles instituições imunes à contaminação por parte da civili­zação. O preconceito te6rico consiste em acreditar que, pelo facto de estapopulação habitar o centro desértico do continente, não pôde evoluir nummeio tão desfavorável e é por essa razão uma das mais primitivas. A segundateoria de Frazer apoia-se directamente na descrição das cerim6nias intichiumados Aranda, nas quais cada um dos clãs totémicos tem a tarefa de multipli­car magicamente a sua espécie totémica: o totemismo teria consistido na suaorigem numa espécie de divisão interclânica das tarefas mágicas necessáriasà sobrevivência da tribo. A terceira teoria de Frazer apoia-se no facto deo totem dos Aranda não ser hereditário, mas de tipo concepcional: na igno-

Irância das causas reais da maternidade, a mulher grávida teria eXPlicàd.o os

seus primeiros sinais de gravidez pela introdução de um animal ou de umaplanta do seu ambiente mais pr6ximo.

Neste início de século muitas outras teorias foram formuladas, mas falta­

-nos espaço para delas darmos conta. Todas se propõem o mesmo ~bjec-tivo - encontrar a origem do totemismo. Todas apresentam a mesma estru­tura e sofrem do mesmo defeito. Tomam como ponto de partida um únicoaspecto do totemismo (o totem como nome, o totem como alimento, etc.)ou ainda uma das suas manifestações particulares (o espírito guardião, o tote­mismo concepcional, etc.), e, a partir deste ponto de partida muitas vezesbastante an6dino, contam-nos de certa maneira uma pequena hist6ria quese poderia intitular: Como foi inventado o totemismo. .. Por essa ~zão ahist6ria contada toma sempre a forma de uma série de acontecimentos itnpre­visíveis e muitas vezes incoerentes, com tantos acrescentos sucessivos ~uan­tos os diversos aspectos totémicos que não estão contidos no ponto dê par­tida a fim de reconstituir a imagem completa do totemismo. O pOI\to de

1 partida da hist6ria é amiúde ridículo: para Frazer (na sua terceira teoria)o totemismo nasce da fantasia das mulheres grávidas. A ideia pode ser tliver­tida, mas, para Frazer, ela parece mais s6lida do que a de uma divisão ,'socialdas tarefas mágicas, porque, precisamente, ela é mais simples. Esta sImpli-cidade passa por um carácter distintivo do pensamento primitivo. Mas éa· antropologia da época que ainda é primitiva. As pseudo-explicaç~s dototemismo não fazem mais do que contar historietas: nenhuma delailcolis­titui verdadeiramente uma teoria, nenhuma se preocupa em tirar um~ sig-niflcàÇão profunda dos fen6menos totqnicos. .

Na sua obra Les formes élémentaires de Ia vie religieuse, purkheilll f semdúvida o primeiro a fornecer uma verdadeira teoria do totemismo. Segundoele, s6 a sociedade está apta a despertar a sensação do sagrado e do divino.O deus do clã não é mais do que o pr6prio clã, mas hipostatizado e repre­sentado sob as espécies sensíveis do vegetal ou do animal que serve de tOtem.O emblema totémico é como o corpo visível do deus, e os animais e os yege­tais da espécie totémica participam do sagrado, o que explica a proibição de

Ique eles são objecto. Na medida em que Durkheim concebe o sistema toté­_!J!i.cocomo a expressão\religiosa\ da socieda~e primitiva dividida em clãs, for­nece uma síntese elegante dos dois aspectos - social e religioso - do tote-

mismo. A força da abordagem durkheimiana do fen6meno totémico é dupla.Por um lado, liga indissoluvelmente o totemismo à forma particular da socie­dade: a organizaçãOem clãs. Por outro lado, pressupõe que é o pr6prio socialque gera o totemismo sem ter necessidade de fazer apelo a qualquer cos­tume estranho ou ex6tico. O totemismo não provém já das fantasias ou doserros de um pensamento primitivo o balbuciante. Através do clã, é a socie­dade que se adora a si pr6pria, mas,: como a origem do sentimento divinoque o grupo suscita não pode ser claramente captada pelos seus membros,esta adoração é desviada. para a representação do clã, o emblema tt>témicoe as espécies animais. A despeito do seu engenho, a explicação propostapor Durkheim tem limites. O caráeter religioso do totemismo parece sermuito exagerado: os documentos austrUJianossobre os quais se baseia a expo­sição são fortemente solicitados no sentido da religião. Mas a principàl objec­ção não reside nisso. Durkheim propÕe uma divisão do totemismo ~m queé a relação da sociedade consigo prÓpria que é fundamental: o recurso aespécies animais para representar o clã surge como uma solução puramentecontingente. A relação com a natureza está quase excluída da análise. ParaDurkheim, a sociedade pensa-se a si pr6pria no totemismo, e se esta rela­ção reflexiva da consciência social consigo pr6pria é mediatizada peia natu­reza, é porque os agentes sociais não podem ter uma consciência clara dasua sociedade. Mas por que razão artimais e vegetais? A posição durkhei­miana sobre o totemismo constitui um pouco um paradoxo na hist6ria dasideias. Os primeiros te6ricos tinham concebido o totemismo antes de maiscomo um culto animal: inversament~, no início da sua explicaçãoj Durk­heim exclui toda e qualquer referência ao mundo animal, e seguidamentetem alguma dificuldade em reintegrd-la.

Um dos momentos mais curiosos ·,da hist6ria do totemismo él) do seuencontro com a psicanálise. Na sua libra Totem e Tabu (Totem unJ, Tabu),

. Freud encara essencialmente o totemismo como um duplo sistema de proi­biçOes':-proibição do incesto (não se t>ode casar com uma pessoa que temo mesmo totem) e proibição de matAr o totem. A partir desse momento,a relação com as ideias essenciais da )sicanálise impõe-se por si mesma. Asduas proibições totémicas são paraleJ:.\saos dois interditos do complexo deÉdipo: a proibição de casar com uma ~ulher do mesmo totem (muit~s vezesmatrilinear) corresponde à proibição J<!b incesto materno, e a proibição dematar o totem (muitas vezes identific.do com o antepassado do clã)' corres­ponde à proibição do assassínio do pai. Se os dois interditos funliamen­tais da sociedade primitiva são idênticoS aos dois mandamentos do Supereu,é porque os dois desejos reprimidos do complexo de Édipo se encontram nabase das instituições primitivas totémicas. No entanto, o paralelismo entretotemismo e complexo de Édipo não ~ perfeito: as sociedades totémicas típi­cas estão organizadas em clãs e, neste regime de fIliação unilinear, o paie a mãe não podem pertencer ao mes'mo clã. Se se trata de um clã matrili­near, a proibição de casar com uma pessoa do mesmo totem significa real­mente que um homem não poderá casar com a sua mãe que pertence aoseu clã e ao seu totem, mas a proibição de matar o totem não pode remeterpara o desejo de matar o pai que pertence a um outro clã totémico. Se se

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.. TOTEM .'IruIu de um clã patrilinear, o problema é inverso. Por isso, Freud. não podeupoiur-se completamente na etnografia das .sociedades: ~ nec~ssárlo ~ressu­por um estado anterior ~~ sociedad~. É aquI que ele.faz Intervir a teoria dar­winiana da horda primitiva: nas origens da humamdade, os velhos machosler-se-iam apoderado de todas as mulheres, deixando os filhos sem compa­nheiras. Depois, a explicação freudiana continua sob a forma de um pequen?conto: «Um dia, os irmãos afastados reuniram-se, ma~aram e comer~ o pai,o que pôs fim à existência da horda paferna». SegUidamente, o s~ntimentode culpabilidade dos filhos teria gerado 10Sdois tabus funda~entals do tote­mismo, fundamento da moral humana, mas também da sO~ledade: Porquefoi apena~ neste momento que se atingirqm as sociedades reais descritas ~e~~setnógrafQs. A avaliação de TOlem e Tablf depende evid~ntemente da 0plmaoque se tem da psicanálise. Se excluirmos Géza Rohelm, que consagrará asua vida à antropologia psicanalítica e que retoma~á ~s teses de Freud num~obra enOrme sobre o totemismo australiano, a maIOriados antropólogos vai

ajuizar dernodo muito negativo o ensaio de Freud. ~esm.o <:Iue.s~ reconheçao valor ciéntífico da psicanálise para o estudo da pSicologiaIndlvl~ual, a sua

, utilização na abordagem da etnologia levanta pro~lemas .. F~e~d J~ga co.ns­tantemente sobre a equação contestável que identifica primitiVO, Infantil e

't1'co"E na história da humanidade que ele nos conta, reconhecemosnevro. , _sem dificuldade as fases da história individual: TOlem e Tabu. par~e n~o pas~arde uma projecção sobre a história social dos dados da hlstó~~apSlcoI6.glc~individual tal como ela é revelada pela psicanálise. Para um SOCIO~O~O,é difícilconceber ~s sentimentos como origem única das instituições SO~laIS:uma dasregras de ouro do método sociológico for~ulado.por Durkhelm é o de queo social se explica pelo social. Os dados do InconSCientepostos a nu por ~reude pela sua escola enraízam-se em práticas sociais da sociedade europela dofim do século passado: o complexo de Édipo interpret~-se melh?r e~ funçãodas características particulares da família, numa socIedade hls~orlcamentedeterminada, do que como um traço psicológico universal. Por IS~Os~ P?deconsiderar que Freud ultrapassa largamente o campo d.asua com~~encla cien­tífica quando pretende explicar a evolução da família e da relIgião atravésde dados tirados da psicologia individual. .

Nas vésperas da Primeira Guerra Mundial, nunca o totemlsmo terá pare­

cido tão importante para o pensamento europeu: .em 1910 surg~ a obramonumental de Frazer que resume todos os conheCimentos etnograficos da

época; em 1912 aparece o ensaio de Durkheim, e em 1913 o de Freu~. ~ote­-se que o totemismo não interessa apenas os antropólogos: os estudiOSOSda

pré-história discutem sobre o tot~tnismo e tent~~ encontrar ~astos dele ~osdocumentos paleolíticos; os histOriadoresdas reItgloes, os .helemstas.e os eglp­tólogos tomam conta do problema; mais tar~e, um fIlosofo de ta.o gran.denomeada como Bergson oferecerá o seu contrlbut? Quanto aos dOISe~salosmais célebres os de Durkheim e de Freud, surgidos com um ano de Inter­

valo, ambos ~artilham a mesma abordage~ ev~lu~i.onistaque prevalece naépoca. As sociedades australianas são as maISprlmltlV~S,e o seu estudo per­mite reconstituir as instituições mais antigas da humamdade: de onde a aten­

ção privilegiada prestada por Durkheim e por Freud aos factos etnográficos

australianos. Tanto para um como para outro, o totemismo é a religião maisprimitiva: é neste contexto evolucionista que o estudo do totemismo assume

toda a sua significação. Trata-se de esclarecer as origens da religião: paraDurkheim é o próprio objecto do seu ensaio, mas também Freud visa expli­car o desenvolvimento ulterior das religiões a partir das suas origens toté­micas. A convergência de pensamento dos dois autores está patente até nospormenores, como por exemplo no renovado interesse pela «refeição toté.mica» através da teoria de Robertson Smith. Este último tinha formuladoem 1899 ,a ideia assaz engenhOSade queo sactificJoconsistia na origem numacomensalidade dos homens e dos deuses: oferecendo uma parte do animalsacrificado ao deus e consutnindo o resto, os homens afirmavam o seu paren.tesco com o deus e tinham a garantia da sua ajuda. Smith tinha até imagi­nado que o totem devia ter sido ele próprio objecto de um repasto sacrifi­cial. A descoberta, uma dezena de anos mais tarde, das cerimónias intichiuma,de que já falámos, parecia fornecer uma confirmação clamorosa da teoriade Smith: no termo desta cerimónia, os anciãos, que nela presidem, conso­mem uma parte do seu totem. Durkheim retoma a ideia e vê na inlichiuma

todos os princípios essenciais do sacrifício. Freud dá muito crédito à teoriade Smith e desenvolve a ideia da refeição totémica que se seguiria ao assas­sínio do pai-totem: a ambivalência dos sentimentos - o luto do animal-totemcondenado à morte e a alegria da festa no momento do banquete totétnico _remete para a ambivalência dos sentimentos relativos ao pai.

O período que antecede imediatamente a Primeira Guerra Mundial éaquele em que o totemismo recebe o máximo de atenção. Nunca ele voltaráa ter tanto prestígio: depois da guerra suscitará um desinteresse crescenteaté ao momento actual, em que o termo já quase se não utiliza. Dois facto­res principais explicam esta evolução. O primeiro reside na dificuldade emdar uma defmição precisa do totetnismo. Os diferentes fenómenos que foramclassificados como totémicos apresentam poucas características comuns:a crença num parentesco com o totem é pouco divulgada, a proibição dematar o totem não é de modo algum universal, a lei da exogatnia totémicatem excepções, etc. Muitas vezes, o totem aparece apenas como um nome.Se se quiser ver no totemismo outra coisa para além de um sistema de deno­

minação derivado do reino animal e vegetal, é necessário dar uma definiçãomais restrita que inclua outros costumes mais significativos, como por exem.

-. pio o tabu alimentar sobre o totem: quando estes costumes não estão em":( ;, vigor, poder-se-á admitir que estamos perante um totemismo degenerado

e que a denominação totémica é apenas a sobrevivência de um sistema toté­mico anteriormente mais rico de significações. Uma tal perspectiva nãolevanta problemas para uma abordagem evolucionista. Mas isto leva-nos aosegundo factor que explica o desinteresse crescente pelo totemismo: é o aban­dono de toda a abordagem evolucionista. Na sua grande maioria, os sábiosdo período precedente eram evolucionistas: nem Frazer nem Durkheim nemmesmo Freud duvidavam que o totemismo representasse uma fase univer­sal da história humana. É em virtude desta ideia que o estudo do tote-

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Ól,

mismo apresentava um interesse gemI. A partir do momento em quc estainstituição, inversamente, parece scr apenas apanágio de algumas popula­ções, o seu estudo rcvcste cxclusivamente um interesse local, por assim dizerexótico.

O livro de Van Gennep L' état actuel du probleme totémique (1920) é umbom ponto de referência. O autor faz justiça de todas as teorias que prc­tendiam encontrar o totemismo na Pré-hist6ria e na Antiguidade; por outrolado, dá conta do facto de o totemismo não ser de modo algum universalentre as populações ditas primitivas. Para os antrop61ogos evolucionistas deantes da guerra, as sociedades mais primitivas eram as dos Australianos ede certos índios da América do Norte, caçadores-recolectores que não pra­ticavam qualquer forma de agricultura ou de criação de gado. Estas etniaseram geralmente organizadas em clãs totémicos. Por isso, se bem que commodalidades diversas segundo os autores, o evolucionismo estava geralmenteligado à ideia do carácter primitivo dos clãs e do totemismo. O aprofunda­mento dos conhecimentos etnográficos revela que os caçadores-recolectoresde outras regiões do mundo não conheciam nem os clãs nem o totemismo:basta citar os Pigmeus da Africa e da Asia. Deste modo, tornava-se fácilrefutar a universalidade das teses que tinham constituído a gl6ria da antro-pologia evolucionista. .

Mas o abandono de toda a perspectiva evolucionista não obedece,unica­mente a preocupações de ordem científica: está relacionado com um jogocomplexo de factores gerais da evolução do pensamento ocidental. Um dos'factores é político. No século XIX, na época do capitalismo triu~fante,o evolucionismo s6 pode aparecer à classe dominante como uma visão satis­fat6ria da hist6ria da humanidade: progressão linear das sociedades ~rimiti­vas ou selvagens para sociedades civilizadas cujo estádio superior é consti­tuído pela sociedade capitalista burguesa. Mas quando o marxismo recuperapara si as teses de Morgan, um dos mais famosos antrop610gos evohicionis­tas, e prolonga a evolução social para além do estádio capitalista, o, evolu­cionismo já não é aceitável por parte da burguesia. A ameaça implícitacontida nas teses evolucionistas concretiza-se em 1917; além disso, o evolu­cionismo de Morgan, revisto e completado por Marx e Engels, torna-se refe­rência principal do pensamento soviético em matéria de antropologia, Note­mos de passagem que o único país onde ainda se fala abundantemente detotemismo depois da guerra é a URSS: os etn610gos soviéticos procuramainda encontrar sobrevivências totémicas nos povos da Sibéria. Mas, no Oci­dente, o evolucionismo social é em toda a parte substituído por norás esco­las, e é em função destas que convém analisar o destino do totemismo.

Nos países de língua alemã, a escola dominante é a de Viena, cujd repre­sentante mais conhecido é Wilhelm Schmidt. São duas as ideias diJettrizes:por um lado, a dos Kulturkreisen, que impede que se tenha uma vlslio uni­forme da evolução cultural; por outro, a ideia de que as instituições maisprimitivas são a monogamia e o monoteísmo que diferentes investigadorestentarão descortinar entre os Pigmeus e entre outros caçadores-recolectores.Daqui se conclui que o totemismo não é para esta escola nem primitivo nem

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universal: os fen6menos totémicos estão associados aos diferentes Kullur­

kreisen. O carácter fortemente apologético e totalmente especulativo destaescola reduz consideravelmente o seu interesse.

Na América, o totemismo nunca gozou de grande fortuna. Vimos queas únicas teorias americanas sobre o totemismo o faziam derivar dos t6te­mes individuais, isto é, os espíritos guardiães. Em 1910, Goldenweiser (queviria a mudar de opinião pouco tempo depois) contestava a unidade dos fen6­menos totémicos e negava ao termo 'totem' qualquer validade científica.Através de antrop610gostão influentes como Boas, Kroeber ou Lowie, o rela­tivismo cultural, o historicismo e o empirismo que caracterizavam a antro­pologia americana deviam levar rapidamente à liquidação do problema toté-

i mico. Citemos Lowie que, para evitar o termo 'totem', pergunta se não nospodemos contentar em observar que alguns grupos sociais no interior de

, uma tribo se diferenciam frequentemente através de nomes muitas vezes tira­dos dos reinos orgânicos, através de emblemas heráldicos de origem aná­loga ou através de tabus distintivos, etc.·

A escola de pensamento mais influente entre as duas guerras é a do fun­cionalismo, teorizado por Malinowski e Radcliffe-Brown. Malinowski limitou­-se a algumas observações gerais sobre o totemismo: este teria naturalmentea sua origem na utilidade alimentar das espécies animais e vegetais; o aspectocultural do totemismo visa antes de mais controlar as espécies llteis ou pre-

· judiciais; finalmente, cada ritual de lnultiplicação das espécies deve tornar­-se, por via de especialização, privilégio de uma família cujo clã não é senãouma forma alargada, o que dá conta do aspecto social do totemismo. Nada,portanto, de muito inovador nestas bbservações, a não ser uma concepçãobastante linear da organização dos tlãs. Radcliffe-Brown dá uma aborda­gem um pouco mais consistente do totemismo, graças.à influência muitoprofunda do pensamento de Durkh~im e também dos seus pr6prios traba­lhos sobre a Austrália. Radcliffe-Brown retoma o problema onde este tinhasido deixado por Durkheim: porquê animais e vegetais? Porque são úteisao homem, sobretudo a populações' que vivem da caça, da çolheita e dacolecta. Radcliffe-Brown estabelece como lei sociol6gica geral que qualquer

\ objecto ou acontecimento que tem e~~ltosimportantes sobre o bem1estar deuma população tende a tornar-se um lobjecto de atitude ritual. O totemismo· é apenas uma das formas possíveis de~ta relação ritualizada do horrlem com

a natureza. Ao juntar a segmentaçã<lda sociedade em clãs, dá-se çonta do· aspecto social do totemismo. ChamaQ-tpsa atenção para o facto de ti solução, proposta por Radcliffe-Brown diferir trluito pouco da de Malinowslti; A prin­! cipal diferença reside na ideia do c'1'ácter necessariamente ritualizado das! espécies naturais economicamente impClrtantes.Mas a ideia apresentada como

uma lei universal é pouco defensável: em muitas sociedades os rituais maisespectaculares são na verdade relativos aos alimentos de base, mas noutraspassa-se exactamente o contrário. Pot isso, os animais que surgem mais vezesnas listas totémicas australianas não 'são de modo algum artigos alimentaresimportantes, mas animais de valor simbólico, tal como a gralha oU a águia.Abundam os exemplos similares, e' os etn610gos não terão dificuldade emrefutar a validade da explicação funcionalista. Um dos outros aspectos da

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TOTEM 242 243 TOTEM\'

lrllrlll de Rlldcliffe-Urown é o de colocar o totemismo no quadro mais geraldllNrl'lll<;ôeNritulllizadas do homem com a natureza. ~ curioso ver como11 IlllellliNlllonAoplIrece encontrar teoria que lhe sirva: por um lado, o empi­riNllloamericano fragmenta-o numa multidão de parcelas heterogéneas deque N6o seu estudo teria sentido; por O\~tro,o funcionalismo inglês dissolve-o

.na generalidade vazia de leis pretensamC1nteuniversais. As duas atitudes ted­ricas nAosilo aliás de maneira alguma 4ncompatíveis. Radcliffe-Brown que,

, no entanto, queria apresentar uma teoria do totemismo, afirmou que estenão era uma realidade, mas apenas um nome dado a numerosas instituiçõesdiferentes que têm ou parecem ter todas um elemento comum.

Na ausência de uma teoria geral u~ficadora, é preciso fazer justiça aosantropólQgos que, como Elk.in, Firth, Evans-Pritchard, etc., oferecem infor­mações Illais precisas sobre os diferentes aspectos regionais do totemismo.Mas o fenómeno totémico surge fractlirado noutras tantas variantes regio­nais: até o excelente estudo de Elk.in sqbre o totemismo australiano desem­boca na fdeia de que existem diversas wrmas de totemismo, entre as quaisnão se peteebe muito bem a relação. "

No seó' livro Le totémisme aujourd'Jlui (1962), Lévi~Strauss analisa estalonga evolução das ideias para concluir" que o totemism.o-é-uma «ilusão».Para tanll) basta-lhe retomar os argumep.tos dos empiristas americanos, bemcomo as óbservações de antropólogos cépticos quanto à unidade dos fenó­menos tQtémicos. Para acabar com aquilo a que chama o «pretenso problematotémico», Lévi-Strauss propõe colocar-se a um nível de análise suficiente­mente geral para que todos os casos observados possam figurar nela comomodos particulares. O exame de certos exemplos sugere-lhe que a denomi­nação totémica cobre uma correspondência entre dois sistemas de diferen­ças: diferenças entre as espécies naturais, diferenças entre os clãs. Algumas

, observações formuladas por Radcliffe-Brown, em 1951, permitem precisaras ideias; na Austrália, os tótemes de metade ou os tótemes sexuais expri­mem uma oposição entre espécies qué têm pelo menos um carácter comum

! que permite compará-Ias. ~ assim que um falcão e uma gralha se opõemcomo um predador a um abutre: ambos são aves carnívoras. O trepadore o morcego opõem-se enquanto são, respectivamente, um animal diurnoe um animal nocturno: mas ambos são arborícolas, pois vivem nas cavida­des das árvores. Lévi-Strauss conclui que o pretenso totemismo apenasexprime à sua maneira correlações e oposições que poderiam ser formula­das de outro modo; o seu carácter distintivo reside na utilização de umanomenclatura formada por termos animais e vegetais. Finalmente, contra·pondo a teoria utilitária dos funcionalistas à sua, Lévi-Strauss propôs a céle-

, bre fórmula: as espécies naturais não são escolhidas por serem «boas paracomer» mas por serem «boas para pensar».

Com efeito, é impossível não notar que o que sobressai na explicaçãode Lévi-Strauss é o seu carácter intelectualista. O totemismo é reconduzidoa um sistema de pensamento para o qual as espécies naturais não são porassim dizer senão um pretexto: pretexto que serve para formular relações

';:. de oposição e de complementaridade. Mas as práticas económicas e as ati­/ tudes rituais que estão o mais das vezes associadas ao totemismo são excluí-

das da análise de Totémísme aujOl4Y'd'hl4i:quando, em ta pensée sauvage, Lévi­-Strauss toma em consideração as proibições alimeni:ares-qiié-díiem-respeitoaos tótemes, é para as reduzir a signos de uma lógica que pode funcionartanto com a ajuda de comportamentos como de imagens. A solução estrutu·ralista do problema totémico só é puramente intelectual porque o totemismofoi inicialmente reduzido a um fenómeno exclusivamente intelectual: homo­logia en~re dois sistemas de diferenças, correspondência entre uma série ani­mal e uma série humana, etc. Se o totemismo é deste modo amputado dariqueza de práticas e de atitudes que a elas se ligam, não nos devemos sur­preender que a solução proposta seja tão vazia de conteúdo. O que é que

1\se compreende do totemismo quando dele se diz que apenas exprime corre·ilações e'oposições? Não é istp válido para todos os sistemas simbólicos e para

todos 08 modos de pensamento? A solução apresentada por Lévi-Strauss é,com efeito, geral, mas podemos interrogar-nos se, a este nível de generali­

dade, el~ continua a ser operativa. Vimos como Radcliffe-Brown tinha abertoo caminho ao dissolver o totemismo em considerações gerais e vazias: Lévi­-Strauss prossegue posteriormente nesta direcção. A semelhança entre as duasabordagens tedricas é clara: a sua diferença provém apenas do nível diferenteem que se procura a generalidade, a utilidade ou a inteligibilidade.

Um ano antes de Totémisme aujourd'hui, surgia uma obra muito diferentena sua orientação, L'origine de l'exogamie et du totémisme de Raoul e LauraMakarius. O ponto de partida, que era já o de Robertson Smith, era o de

f que a consan~inidade (o parentesco de sangue,) ~ão é basea~a u"ru,'cam,entena descendêncIa comum mas também na comurudade de alImellta.çª9. Asobservações etnográficas mostram que a comensalidade (o acto de comer emconjunto) é concebida como criadora de consanguinidade. Disto decorre quea exogamia deve incluir um aspecto alimentar: não é necessário ser-se comen·sal para se poder casar. Para respeitar a proibição a que os Makarius cha­mam «li exogamia alimentar», a solução mais simples é a partilha de ali­mentos disponíveis entre dois grupos exógamos. A «grande partilha» divideas espécies animais e vegetais em duas classes associadas às duas metades:cada metade come as espécies da sua classe e proíbe a si própria as da outra.Os autores passam em revista certos aspectos das classificações primitivaspara mostrarem que estas se podem interpretar como sistemas de listas ali·mentares. Falta dar conta do totemismo. Na «grande partilha», cada grupoexógamo come as espécies da lista que lhe está associada: são as únicas espé­cies permitidas. No totemismo, pelo contrário, é proibido consumir o totemassociado ao grupo. Para explicar esta dupla transformação - concentraçãoe inversão dos tabus - os Makarius imaginam um processo de simboliza­ção que se teria efectuado a partir de uma troca entre as listas: cada grupoteria dado aos outros uma espécie natural pertencente à sua própria lista,e esta espécie (o totem) ter-se-ia tomado tabu para o grupo doador ao mesmotempo que se lhe mantinha associada. Esta teoria leva a um ponto extremoa explicação de tipo alimentar do totemismo. Mas este aspecto demasiadoflagrante não deve esconder o que faz a força essencial desta obra: conce­ber o totemismo como a síntese de três elementos - exogamia, classificaçãoe aspecto alimentar - que sempre tínhamos visto associados ao totemismo,

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•TOTEM 244 245 TOTI!M

mas de que nunca tínhamos captado a relaçllo íntima. Poucos investigado­res conseguiram conceber de maneira tllo nítida a relaçllo entre exogamiae totemismo. Paradoxalmente, numa abordagem que atribui tanta impor­tância ao aspecto alimentar, é finalmente a explicação do interdito alimen­tar no que se refere ao totem que permanece o ponto mais fraco. Com efeito,na última fase da exposição, a explicação toma totalmente o aspecto daquiloa que se chamou, a propósito das teorias da viragem do século, uma «histo­rieta», que poderia intitular-se: como os alimentos permitidos se tornaramproibidos. " A despeito dos esforços desenvolvidos pelos autores para pro­varem, através de numerosos materiais etnográficos, a realidade histórica datroca entre as listas, é evidente que esta visão é puramente especulativa.A necessidade teórica de uma tal troca apenas aparece em função da con­cepção que os Makarius têm de uma grande divisão: porque existe umainversão entre lista autorizada e totem proibido. Mas por que não conceberque na grande partilha as espécies associadas a cada grupo exógamo nãoeram permitidas, mas pelo contrário proibidas? Esta mudança de concep­ção não altera de modo algum as ideias essenciais desenvolvidas pelosMaka­rius. Assim, no caso da grande partilha, de uma divisão dualista da socie­dade em duas metades A e B, em vez de supor que A devia comer A comexclusão de B, suponhamos que A não devia comer A, mas podia apenasalimentar-se de B: nas duas hipóteses, existem exogamia e partilha alimen­tar. Mas esta alteração aparentemente insignificante tem pelo menos duasconsequências fundamentais. Por um lado, suprime a necessidade de umrecurso a uma hipotética troca para dar conta da inversão entre graride par­tilha e totemismo: entre os dois fenómenos já não existe mais do que umadiferença quantitativa, e a «grande partilha» poderia muito bem chamar-setotemismo múltiplo de metade ou classificação dualista. Por outro lado - eisto é o mais importante -, acentua-se ainda a analogia entre exogamia etotemismo: tal como não se deve desposar uma pessoa do mesmd grupo,também se não deve comer uma espécie alimentar do seu próprio grupo.Perante a identidade dos dois fenómenos, é preciso concluir que ambcls'expri­mem a mesma coisa, um no plano matrimonial, o outro no plano. alimen­tar. Assim ,se confere o peso exacto ao conceito de exogamia alImentar.

Uma última observação: uma das dificuldades do totemismo prdvém dofacto de o totem, ao mesmo tempo que é interdito ao consumo,assumiro carácter de alimento por excelência,'aquele com que se identific~ aqueleque é o mais apto a ser caçado ou controlado, etc. E se a explicl'lçlioali­mentar constitui a maior dificuldade da teoria dos Makarius, istQ~penasem aparência constitui um paradoxo: todas as teorias centradas ptincipal­mente no carácter alimentar do totemismo tropeçaram na mesma dificul­dade. O facto é que este aspecto é eminentemente contraditório: b totemrepresenta o alimento do grupo que proíbe a si próprio o seu consumo. Aopolarizar a atenção num dos dois aspectos, não conseguimos compreendero outro. A comparação com a exogamia permite encarar a questão sob um

aspecto novo. Os membros do clã pertencem a esse clã, tal como o totem:se é assim indispensável afirmar a propriedade sobre uns e outros, é paramelhor sublinhar que é a eles que se renuncia. Os Arapesh da Nova Guinédizem:

A tua própria mãeA tua própria irmãOs teus próprios porcosOs teus próprios inllames que tu amassaste,Não os podes comef.A mãe dos outrosAs irmãs dos outros

Os porcos dos outrOsOs inhames dos outros que eles amassaram,Podes comê-Ios.

\

Não se pode mais claramente ex*essar a identidade entre a consumaçãodo acto sexual e o consumo alimentar: identidade que fundamenta o tote­mismo e a exogamia. Mas os aforimos arapesh exprimem também outracoisa: a negação de que aquilo que me pertence seja para mim. Analogamente:os meus tótemes, não os como. Parli melhor acentuar que se trata dos meus

tótemes, direi: é a minha alimentaç!lo. Deste modo não é necessál'~oimagi­nar uma sequência histórica de troc~para explicar a associação privilegiadaque existe entre o clã e o seu totem, li despeito da proibição que pesa sobre

a utilização deste último. Os dois tej-tn~s da contradição coexistetli no in~e­rior de uma mesma concepção: renUncia-se, e s6 se pode renunciar àquI10: que nos pertence. Finalmente, se sd,renuncia, é em favor do outrd, em seuI benefício. Compreende-se assim coIhp o totemismo - paralelamente à exo­

i gamia - poderia ser encarado no qUadro de uma teoria da reciprocidade.A obra dos Makarius não obteve a atenção que merecia. Em contrapar­

tida, a Le totémisme aujourd'hui foi :'âtribuída uma importância relacionadacom o prestígio do seu autor, fundáidor do estruturalismo em antropologia.Este ensaio devia exercer uma influ~ncia duradoura e suscitar urp consensoentre a maior parte dos antropólogos que evitarão a partir daí ô j empregodo termo 'totem'. Assinalemos, nó entanto, algumas vozes discordantes,umas que por fidelidade ao espírito,'do funcionalismo recusam aüiterpreta­

ção intelectualista em proveito do, estudo das atitudes; outraSj Eais nu­merosas, vêm da Austrália e levant~in-se contra a liquidação dci roblematotémico; Peterson, por exemplo, interessou-se pelo totemismo eu tual aus­traliano, insistindo no seu carácter 'Ibcalizado e tentou interpretá-Io comoum mecanismo de distanciamento 'territorial.

Só o futuro dirá se a Fénix remisterá das suas cinzas. Entretanto, poderesumir-se a situação actual do tot~mismo em relação às principais corren­tes de pensamento das últimas déçadas. Por um lado, o estrutura1i!mo, cujainfluência é predominante na Europa, dava o golpe de misericórdia no tote­mismo. Por outro lado, as escolas lÍntropológicas americanas, mais interes­sadas no estudo dos factos materiais - ecológicos e económicos -, negli­genciavam o estudo de sistemas simbólicos como o totemismo. Duas causasindependentes mas complementares que agiram no mesmo sentido. Por uma

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ICIIIIM 246 PLANO DA OBRA

I 1111••_11 lWlIlII 11•• Ilr"1 lU", ~ finalmente a escola estruturalista, a mais indi­111,111, .Irvlll •• fi" "1I11MoricUUtt;I'K:H, para o estudo dos sistemas simbólicos, quemIIII1IM lollrlllcUlr Pl'lldlllllOIl n morte do totemismo. [A. T.).

I I D.f1nir d. modo pr.ciRo e exauRtivo o totemismo apresenta enormes dificuldades. Def.uo, 01 .livenoR fenómenoR palentes nas populações .primitivas. (cf. primitivo) que foram c1as­.Ulu,lol como tot~micORapresentam poucas características comuns: a crença (cf. crenças) numpartnl"co com o IOlem ~ eRCIRRamentedifundida, a proibiçAo de matar o totem DAoé de modoalllum univerllll, a lei da exogamia (cf. endogamia/exogamia, incesto) apresenta excepções; a istoacrellCenta-ae a grande fortuna do termo, que hoje decerto nAo encontra a mesma aceitaçAo.ARpróprias explicações do totemismo, demasiado variadas e contraditórias, reduziram-no atéagora a um !en6meno nominalístico privado, pelQ menos na generalidade, de um sentido reli.gioso (cf. religillo), tal como outros o reduziram a uma pura preocupaçAo alimentar (cf. ali­

mentaçllo) ou mais correntemente económica (cf. economia, mas também caça/colheita). Sinteti­camente, pode dizer-se que o totemismo mostra a ligaçAoentre a estrutura da sociedade humanae o mundo animal e vegetal, referindo-se também a partes do corpo (ce. soma/psique), orienta­ções astronó,rncas (cf. astrologia), individualidades pessoais (cf. pessoa) como os espíritos guar'diAes, e fmalmente cores (cf. sentidos), e é síntese - nem sempre completamente verificllvel­de trés elementos relacionados com vínculos e proibições: sexualidade, c1assificaçAo(cf. siste­mática e classificação), aspecto alimentar. Por outras palavras, o totemismo constitui uma dasformas possíveis da relaçAo ritualizada (cf. ri/o) do homem com a naturtlia (ef. natureza/cultura),

e em todos os casos nAo parece poder reduzir-se - como o fez Lévi-Strauss - a uma expres­sAo de correlações e oposições que poderiam ser formuladas de outro modo.

Volume 1Volume 2Volume 3Volume 4Volume S

Volume 6Volume 7Volume 8Volume 9Volume 10Volume 11Volume 12Volume 13Volume 14Volume IS

Volume 16Volume 17Volume 18Volume 19Volume 20Volume 21Volume 22Volume 23Volume 24Volume 2S

Volume 26·Volume 27Volume 28Volume 29Volume 30Volume 31Volume 32VQlume 33Volume 34Volume 3S

Volume 36Volume 37Volume 38Volume 39Volume 40Volume 41

Memória·HistóriaLinguagem-EnunciaçãoArtes-Tonal/atonalLocal/globalAnthropos-HomemOrgânico/inorgânico-EvoluçãoModo de produção - Desenvolvimento/subdesenvolvimentoRegiãoMatéria-UniversoDialécticaOral/escrito-ArgumentaçãoMythos/logos-Sagrado/profanoLógica-CombinatóriaEstado-GuerraCálculo-ProbabilidadeHomo· - Domesticação - Cultura materialLiteratura-TextoNatureza-Esotérico/exotéricoOrganismo-HereditariedadeParentescoMétodo-Teoria/modeloPolítica-Tolerância/intolerânciaInconsciente-Normal/anormalFísicaCriatividade-VisãoSistemaCérebro-MáquinaProdução/distribuição-ExcedenteTempo/temporalidadeReligião-RitoSignoSoma/psiche-CorpoExplicaçãoComunicação-CogniçãoEstruturas matemáticas - Geometria e topologiaVida/morte- Tradições·GeraçõesConceito-FilosoflalfJlosoflasCapitalSociedade-CivilizaçãoDireito·ClassesConhecimento

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