introduÇÃo psicolÓgico objeto · 2018. 1. 30. · . terapeuta, segundo lacan5, não é mais o...

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SABER MÉDICO; SABE R PSICOL OGIC O: OPERAÇÕES DO OLHAR Jane da Fonca ença * RESUMO - Estudo que consta de reflexões sobre o modo como o olhar opera no âmbito da prática, em duas abordagens nítidamente disti ntas (o- lhar objetivo versus olhar escuta) e, conseqüentemente, o lugar reservado ao terapeuta e o paciente, dentro da lógi ca de cada olha r. ABSTR ACT - This study has shown how reflections on the way of seeing operates on praticai boardings cleary distinct (seG an objective versus see hearing) and consequentely the place reserved to the therapeutics and the patient on the log ic of each sight. 1 INTRODUÇÃO Es estudo, por se atar de um tema tão complexo, cente não o abrangerá em sua tolidade, mas procu entendê-lo a pr d�s tOdos que o designa. Como método, en- tende-se um conjunto de cnicas de פsquisa dian as quais estuda-se um deino conjunto de fenÔmenos. Designa também uma esagia, mais ou menos explíci, de como o fenÔno foi consído e como será aboado. É neste sentido que se supõe ser, cada sar, deflnido por um estatuto e por uma naza, em nção do qual o é tado: a- de foas de olhar. O olh objevo enndendo que a natuza do fenÔmeno se defl r sua apancia e", o olhscuta, enndendo que a naza do fenÔmeno é consída por oפ- s simb6licas que confem ao objeto u valor (sujeito). Vale salien que ess fo os cams esפccos da clínica ch⌒otia, que se de- ve aפnas no olh conmplação, e da clínica udiana, que ao olh pa o coo da his- ca, entendeu suas encenações no cao simb lico e atou desse corpo visto פla mediação da palav. Face ao exposto, pode-se entender, des mo, a dœnça segundo uma diversidade de enquas óricos: tendo ao gis do biológico, onde pu estud as inter- vençs en a esa do sisma neoso e o coento (neulogia, anatomia patológi- ca, r exemplo) ou ainda mendo ao da constuição ha - enfoque psicológico - de modo culado, descdo aí uma exisn- cia determinada dian da qual o sujeito é o único responsável. O pmeiro campo coloca a doença sob a égide de um olh puro - clínica médica - e o segundo, de um olh equipado - clínica psi- cológica 2 SABER MÉDICO, SABER PSICOLÓGICO O saber médico t em como objetivo exclusi- vo justiflcar um conjunto de práticas que se ar- ticulam deno do espaço hospil - פdag6gi- co e, porisso, nunca . é colado em queso. Espaço instituído e legitimado פlo pr6prio desvio anexando a ele o seu discurso (da dœn- ça - cu). FAULTl ao se fer a queso do olh, fa de uma esra de clusão pro- jeda por Bentham como o espaço em que o olh está alea à toda parte, para vigiar as de- sordens: os panópticos**. . . Trata-se de um modo de olhar do pr6pno olh, aquele que não alcança, visto que s6 classca. Tem aí, já no XV, a mon- gem que se constii como o pursor das s- tuiçs hospitals e de ouas. O saber dico nciona no ntido de busc uma ão pa a dœnça, den " suas foas difenciais e antar de foa ab- soluta a patologia. O diagnóstico é absoluto e o anto nta obr um tomo ao equilo do coo e os pedintos cnicos conole minucioso e detalhado do coo. * Mese em Enfeagem Psiquiáica. Profer Adjunto Enfeagem Psiquiáica UFF. Psicóloga CUnica .. Estura quitetônica criada r Ben, constída em el com l individuais e a toe cenal de onde o vigia con· trolava cada rlo que 6 mpre objeto de infoaç, nunca sujeito. Espo que segura o ncionento do poder onde o recluso 6 visto não vê aquele que o conola. 149 R. Br. Enferm. , BrasOía, 45 (53): 149- 1 51, abriVset. 1992. século

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Page 1: INTRODUÇÃO PSICOLÓGICO objeto · 2018. 1. 30. · . terapeuta, segundo LACAN5, não é mais o sUjeito da certeza e sim do suposto saber, pois nem saber real sobre o paciente ele

SAB E R MÉ D I CO; SAB E R P S I C O LO G I CO: O P E RAÇÕ E S DO O LHAR

Jane da Fonseca Proença *

R E S U MO - Estudo que consta de reflexões sobre o modo como o olhar opera no âmbito da prática, em duas abordagens nítidamente disti ntas (o­lhar objetivo versus olhar escuta) e, conseqüentemente, o lugar reservado ao terapeuta e o paciente, dentro da lógica de cada olhar.

ABSTRACT - This study has shown how reflections on the way of seeing operates on praticai boardings cleary distinct (seG an objective versus see hearing) and consequentely the place reserved to the therapeutics and the patient on the logic of each sight. •

1 INTRODUÇÃO

Este estudo, por se tratar de um tema tão complexo, certamente não o abrangerá em sua totalidade, mas procurará entendê-lo a partir d�s métOdos que o designa. Como método, en­tende-se um conjunto de técnicas de pesquisa mediante as quais estuda-se um determinado conjunto de fenÔmenos. Designa também uma estratégia, mais ou menos explícita, de como o fenÔmeno foi construído e como será abordado. É neste sentido que se supõe ser, cada saber, deflnido por um estatuto e por uma natureza, em função do qual o objeto é tratado: trata-se de formas de olhar. O olhar objetivo entendendo que a natureza do fenÔmeno se deflne por sua aparência e", o olhar-escuta, entendendo que a natureza do fenÔmeno é construída por ope­rações simb6licas que conferem ao objeto seu valor (sujeito).

Vale salientar que esses foram os campos espec(flcos da clínica charcotiana, que se dete­ve apenas no olhar contemplação, e da clínica freudiana, que ao olhar para o corpo da histéri­ca, entendeu suas encenações no campo simb6-lico e tratou desse corpo visto pela mediação da palavra.

Face ao exposto, pode-se entender, desse modo, a doença segundo uma diversidade de enquadres teóricos: remetendo ao registro do biológico, onde se procura estudar as inter­venções entre a estrutura do sistema nervoso e o comportamento (neurologia, anatomia patológi­ca, por exemplo) ou ainda remetendo ao drama da constituição humana - enfoque psicológico -

de modo articulado, destacando aí uma existên­cia determinada diante da qual o sujeito é o único responsável.

O primeiro campo coloca a doença sob a égide de um olhar puro - clínica médica - e o segundo, de um olhar equipado - clínica psi­cológica.

2 SAB E R MÉDICO, SABER PSICOLÓGICO

O saber médico tem como objetivo exclusi­vo justiflcar um conjunto de práticas que se ar­ticulam dentro do espaço hospitalar - pedag6gi­co e, porisso, nunca .é colocado em questão. Espaço instituído e legitimado pelo pr6prio desvio anexando a ele o seu discurso (da doen­ça - cura). FOCAULTl ao se referir a questão do olhar, fala de uma estrutura de reclusão pro­jetada por Bentham., como o espaço em que o olhar está alerta à toda parte, para vigiar as de­sordens: os panópticos** .

. . Trata-se de um modo de olhar do pr6pno olhar, aquele que não alcança, visto que s6 classiflca. Tem aí, já no X VII, a monta­gem que se constitui como o precursor das insti­tuições hospitalares e de outras.

O saber médico funciona no sentido de buscar uma razão para a doença, determinar

" suas formas diferenciais e apontar de forma ab­soluta a patologia. O diagnóstico é absoluto e o tratamento tenta obter um retomo ao equilíbrio do corpo e os procedimentos técnicos realizam um controle minucioso e detalhado do corpo.

* Mestre em Enfermagem Psiquiátrica. Professor Adjunto de Enfermagem Psiquiátrica da UFF. Psicóloga CUnica

.. Estrutura arquitetônica criada por Benthan, construída em anel com selas individuais e uma torre central de onde o vigia con· trolava cada recluso que 6 sempre objeto de informação, nunca sujeito. Espaço que assegura o funcionamento do poder onde o recluso 6 visto mas não vê aquele que o controla.

149 R. Bras. Enferm. , BrasOía, 45 (213): 149- 1 5 1 , abriVset. 1992.

século

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Quando isso não é possível no corpo-sintoma, é no corpo-cadáver que o olhar médico vai buscar alcançar a fundamentação dos sintomas, tendo­se assim apenas a faceta do imediatamente visí­vel.

Indubitavelmente, . trata-se de um olhar que transforma o clínico em sujeito da certeza, cer­teza de que vê a doença em toda a sua amplitu­de e o coloca numa posição de detentor do sa­ber e de dominação sobre o corpo. É uma re:' lação de poder, conforme assinala FOUCAULP.

. Essa forma de saber clínico reserva ao pa­

ciente o espaço da alienação, da submissão às práticas interventivas que o método impõe e o substitui por uma categoria cuja nomeação se deu por um olhar (r6tulo) que tenta se aproxi­mar do sintoma a partir de uma teoria - o olhar que vê o que já foi visto no espaço pedag6gi­co' . Olhar que nega a subjetividade e a sua construção e encontra no corpo sensível o único suporte para a sua existência.

Toda uma construção imaginária e anteci­pat6ria da anatomia patol6gica permeia essa clínica, que intenta desvelar no vorpo vivo a d?ença, através dos sintomas referidos pelo pa­ciente. Olhar silencioso que vê no imediatamen­te sensível o seu pr6prio equívoco: o círculo das aparências, o discurso ultrapassado da con­templação.

Evidentemente, . são formas como o olhar opera e produz um saber. Entretanto, este méto­do qu.e ele encerra, desconhece a subjetividade, ou seja, desconhece o discurso do sintoma suas origens e as formas de decifrá-lo. É um

'saber

que privilegia o corpo-cadáver, aquele despro­vido da liguagem, cuja única palavra que im­porta é a do clínico, porque contém a "magia" do saber (Poder). Esta forma de operação do olhar permitiu, no século XIX, a inclusão da medicina nas ciências exatas pela correlação: investigação clínica e investigação anátomo-pa­tol6gica.

A abordagem inicial de Charcot sobre os fenômenos histéricos foi um exemplo vivo do olh� pw:o, mas a partir desta tentativa de expli­caça0, Slgmund Freud fez uma ruptura episte­mol6gica com o saber pré-existente, fundando um novo saber, um novo modo de olhar e

'de in­

tervir. Agora, a 16gica não é mais de uma inten­cionalidade consciente, mas sim de uma deter­minação inconsciente da qual o sujeito é o úni­co responsável. Da dispersão à unidade, ele vai se constituindo enquanto subjetividade, o que s6 é possível com o apoio da linguagem. A esse respeito, TRILLAT8 é bastante elucidativa ao admitir que:

"Charcot tornou-se cego pelo visível e Freud transformou-se em vidente pe

lo invisível. Aí, tem-se então um des­cobrimento que se opera a partir de uma outra parte que se põe num jogo de espelho e numa relação dual com a histérica" .

Disso depreende uma aproximação de um olhar �ue �ê o sintoma como constituição de uma hlst6na fabulosa. De uma subjetividade que emerge a partir de Outro (humano) e o seu nome (sujeito), diferentemente do nome (da doença) tratado pelo olhar puro. Obviamente o faz por colocar o sujeito em causa. Nesse olhar in�tt:mnental�ado por um saber psicol6gico � sUjeito (paciente) é produtor do saber embora não saiba que sabe. FREUO', destaca que:

" . • • muitas vezes o que está em q�estão é uma experiência que o pa­c�ente não gosta de discutir, mas prin­cipalmente porque é verdadeiramente incapaz de recordá-la e, freqüente­mente nada desconfia da conexão cau­sal entre o fato desencadeante e o fenômeno patoI6gico". E, o único instrumento capaz de cortar o

corpo e desvelar o sintoma, não é mais o bistu­ri, é a palavra.

? . terapeuta, segundo LACAN5, não é mais o sUjeito da certeza e sim do suposto saber, pois nem saber real sobre o paciente ele tem, o que faz é testemunhar a reconstituição da hist6ria daquele que realmente sabe de suas determi­nações e responsabilidades em relação ao sin­toma - o paciente.

" ... 0 Sujeito revive, rememora, no sentido intuitivo da palavra, os even­tos formadores de sua existência. Este fato não é em si mesmo importante. O que conta é que disso ele recons­troi • . • 6 "

3 CON S I DE RAÇÕES F I NAIS

_O que se fez foi tentar correlacionar as ope­raçoes que o olhar provoca em duas abordagens nitidamente distintas. Entretanto, entendendo que são dois momentos do olhar: um que silen­cia e outro que intervem, mas que entre ambos há � _vínculo de necessidade, ou seja, para aqwslçao do olhar intervenção .há sempre que se passar pelo olhar puro.

Privilegia-se assim o olhar equipado por en-tender ser pertinente as metas traçadas no âmbi­to da prática. As indagações extraídas da litera­tur.a orientou para estabelecer questões entre os dOIS métodos de operações do olhar:

R. Bras. Enferm. , BrasOia, 45 (213): 149- 1 5 1 , abrillset. 1992 150

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a) privilegiar a abordagem dialética, enquanto relação poder-saber que remete o terapeuta e o paciente a um lugar determinado (eu-Ou­tro);

b) Aprofundar o conhecimento no que se refere

à clínica psicológica enquanto modelo teóri­co-prático;

c) Compreender que o olhar na clínica psicoló­gica não interpreta

RE F ERÊNCIAS BIB L I OGRÁ FICAS

1 FOCAULT, M. Vigiar e Punir. 9. ed . . Petrópolis: Vozes, 199 1 .

2 --o . Microjrsica do POtkr. 9 . ed. , Rio de Janeiro: Graal, 1 990.

3 --.Nascimento do ClInica. Rio de Janeiro: Forense -Universitária. 1977.

4 FREUD, S., BRENER, S . , Sobre o mecanismo psfquico dos fenômenos histéricos. COTTIllnicação Preliminar. ( 1 893). Rio de Janeiro: Imago, 1 974 p.43.

5 LACAN, J . Os Escritos Técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.

6 TRILLAT, E. Miradas sobre a Histeria. In: KRELL, J . (comp). La Escuclul, la histeria. Buenos Aires: Paidos, 1 984 p.38

1 5 1 R. Bras. Enferm. , Brasma, 45 (213): 149- 1 5 1 , abriUset. 1992.