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7 INTRODUÇÃO O sistema prisional brasileiro encontra-se em situação caótica, compondo um dos mais graves problemas sociais da atualidade: rebeliões de proporções alarmantes, crescente poder do crime organizado, violência, morte e insegurança generalizada. Um olhar sobre este cenário punitivo nos remete a uma reflexão a respeito do modelo carcerário brasileiro e da efetividade dos princípios constitucionais na execução das penas privativas de liberdade. A dignidade da pessoa humana foi consagrada pela Constituição Federal de 1988, no artigo 1º, inciso III, como alicerce do Estado brasileiro. Em consonância com o valor expresso neste dispositivo, o inciso XLIX do artigo 5º eleva a integridade física e moral dos apenados à categoria de cláusula pétrea e o artigo 1º da Lei de Execuções Penais dispõe que a finalidade da execução penal é a integração social do apenado. Estabelecendo-se um estudo sobre as teorias da pena, a pesquisa visa a apurar se o modelo de execução penal praticado no Brasil contempla o mandamento constitucional da dignidade da pessoa humana e se a teoria adotada pelo ordenamento penal permite a reintegração social do apenado e a prevenção da criminalidade. Para tal análise, partiu-se do pressuposto de que garantir segurança à sociedade não pode ser sinônimo de restringir a dignidade humana dos presos. A inobservância deste princípio tornaria inviável a consecução das finalidades sociais da pena. Como parâmetro, adotou-se a estrutura penitenciária do Estado de São Paulo, em razão de que o sistema prisional paulista, segundo dados oficiais, abriga mais da metade da população carcerária brasileira, o que representa uma amostragem satisfatória para efeitos do trabalho ora proposto.

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Page 1: INTRODUÇÃO - univem.edu.br · beccariana está assentada no idealismo humanista em voga no século XIX, na Europa, enquanto Foucault, século XX, assenta-se na desconstrução dos

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INTRODUÇÃO

O sistema prisional brasileiro encontra-se em situação caótica, compondo um dos mais

graves problemas sociais da atualidade: rebeliões de proporções alarmantes, crescente poder

do crime organizado, violência, morte e insegurança generalizada.

Um olhar sobre este cenário punitivo nos remete a uma reflexão a respeito do modelo

carcerário brasileiro e da efetividade dos princípios constitucionais na execução das penas

privativas de liberdade.

A dignidade da pessoa humana foi consagrada pela Constituição Federal de 1988, no

artigo 1º, inciso III, como alicerce do Estado brasileiro. Em consonância com o valor expresso

neste dispositivo, o inciso XLIX do artigo 5º eleva a integridade física e moral dos apenados à

categoria de cláusula pétrea e o artigo 1º da Lei de Execuções Penais dispõe que a finalidade

da execução penal é a integração social do apenado.

Estabelecendo-se um estudo sobre as teorias da pena, a pesquisa visa a apurar se o

modelo de execução penal praticado no Brasil contempla o mandamento constitucional da

dignidade da pessoa humana e se a teoria adotada pelo ordenamento penal permite a

reintegração social do apenado e a prevenção da criminalidade.

Para tal análise, partiu-se do pressuposto de que garantir segurança à sociedade não

pode ser sinônimo de restringir a dignidade humana dos presos. A inobservância deste

princípio tornaria inviável a consecução das finalidades sociais da pena.

Como parâmetro, adotou-se a estrutura penitenciária do Estado de São Paulo, em razão

de que o sistema prisional paulista, segundo dados oficiais, abriga mais da metade da

população carcerária brasileira, o que representa uma amostragem satisfatória para efeitos do

trabalho ora proposto.

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Para consecução da pesquisa, foram utilizados dados estatísticos oficiais da Secretaria

de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo e de pesquisa empírica iniciada na

Penitenciária de Assis no ano de 2004, com o objetivo de concretizar o tratamento estatístico

previsto pelo projeto.

Quanto aos procedimentos metodológicos, realizou-se, num primeiro momento, uma

revisão bibliográfica dos direitos fundamentais assegurados pela Constituição Federal em face

do apenado e uma leitura das teorias que informam o sistema penal, visando a apurar se o

Direito positivado brasileiro tem como foco a reintegração do egresso à sociedade ou se

assume caráter meramente retributivo, identificando diagnósticos e perspectivas que

envolvem o sistema prisional brasileiro.

Numa segunda etapa, buscando seguir os passos de Foucault, partiu-se de uma

macro-estrutura, onde foi analisado o sistema penitenciário paulista, para uma micro-

estrutura, apresentando-se os resultados de pesquisa empírica realizada na Penitenciária de

Assis, envolvendo membros da população carcerária e funcionários da Instituição, guardando-

se uma mesma proporção entre os dois grupos.

Com a adoção deste procedimento procurou-se comprovar as hipóteses levantadas e

apurar o olhar do preso e o olhar do agente público acerca do sistema prisional, viabilizando a

reprodução das relações de saberes e poderes que se desenvolvem no espaço carcerário e a

forma pela qual esta complexa rede reflete-se em nossa sociedade.

A fundamentação teórica que serviu de modelo a este projeto percorreu três etapas:

Beccaria, Foucault e Luigi Ferrajoli.

De Beccaria, salientou-se a questão da humanização do sistema punitivo, os

fundamentos do direito de punir e os meios necessários para prevenir os delitos. De Foucault,

explorou-se a idéia de que tudo se estabelece em torno das relações entre saber e poder e de

que a finalidade ressocializadora do sistema prisional não passa de utopia, nos remetendo ao

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pensamento de que não há um sistema punitivo que possa extinguir as práticas criminosas,

porque o problema da prisão está em seu próprio fundamento, que é a segregação.

De Beccaria a Foucault, há deslocamento do eixo interpretativo. A metodologia

beccariana está assentada no idealismo humanista em voga no século XIX, na Europa,

enquanto Foucault, século XX, assenta-se na desconstrução dos sujeitos (anti-humanismo), ou

seja, a abordagem adotada por ele é depuradora dos elementos humanistas.

Quanto a Luigi Ferrajoli, utilizou-se a obra “Direito e razão – teoria do garantismo

penal”, em que o autor analisa a teoria e a prática penal, seus fundamentos e princípios,

tomando como paradigma a teoria geral do garantismo.

A utilização desta obra foi de fundamental importância, especialmente para a

compreensão do ordenamento infra-constitucional e das teorias que informam o sistema

criminal, cuja leitura forneceu os subsídios necessários para se definir qual doutrina orienta a

execução penal no Brasil.

A pesquisa realizada, sem a pretensão de esgotar o assunto, dada sua complexidade e

extensão, buscou uma discussão acadêmica sobre o tema, questionando os fundamentos do

direito de punir do Estado, as condições em que tal poder tem sido exercido, as disposições

legais acerca da pena de prisão, diagnósticos e perspectivas relacionadas à execução penal no

Brasil.

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I- DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DIREITO PENAL

A Constituição Federal de 1988 previu a dignidade da pessoa humana como

fundamento do Estado brasileiro e, dentre suas disposições, assegurou princípios que instruem

o Direito Penal. Para se constatar a efetividade deste princípio, iremos abordar a dignidade da

pessoa humana e os direitos fundamentais assegurados pela Constituição Federal pela

legislação infra-constitucional em face do apenado.

1- Considerações preliminares sobre a dignidade da pessoa humana

1.1- Antecedentes históricos

Para a compreensão do conceito e do significado de dignidade da pessoa humana,

faremos uma breve retrospectiva histórica acerca de sua evolução, partindo do pensamento

clássico e do ideal cristão na Idade Média até os contornos que assumiu no mundo ocidental

em tempos atuais.

Na Antiguidade Clássica, a dignidade da pessoa humana não era reconhecida de

forma igualitária a todos os membros da comunidade, sendo diretamente proporcional à

posição que o indivíduo ocupava no grupo social a que pertencia, conforme afirma Ingo

Wolfgang Sarlet:

No pensamento filosófico e político da antiguidade clássica, verifica-se que a dignidade (dignitas) da pessoa humana dizia, em regra, com a posição social ocupada pelo indivíduo e o seu grau de reconhecimento pelos demais membros da comunidade, daí poder falar-se em uma quantificação e modulação da dignidade, no sentido de se admitir a existência de pessoas mais dignas ou menos dignas (2007, P.30).

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Segundo o relato de Michel Renaud (1999, p.137), pensadores como Platão, Cícero

e Aristóteles defendiam a idéia de que o ser humano ocupa uma posição superior em relação

aos demais seres viventes, assim como o modelo agostiniano que também distinguia o ser

humano das coisas e dos animais, tempos depois na filosofia medieval. De acordo com o

autor, a partir destes pensadores, a dignidade passou a ser vista como a característica que

distinguia o homem dos outros seres viventes, atribuída a todos os indivíduos de forma

igualitária, independentemente da posição que ocupasse no grupo social.

No que se refere à filosofia estóica, Comparato (2001, p.19) afirma que os valores

morais e a dignidade do homem eram fatores indissociáveis para aquele povo. O homem era

considerado filho de Zeus e portador de direitos de maneira igualitária, da mesma forma que,

para a tradição bíblica, fora feito à imagem e semelhança de Deus, idéia arraigada no

pensamento medieval de São Tomás de Aquino.

Segundo Starlet, foi no contexto do pensamento jusnaturalista dos séculos XVII e

XVIII que se iniciou o processo de secularização do conhecimento elementar de dignidade

humana, destacando o pensamento de Samuel Pufendorf, para quem a dignidade da pessoa

humana era considerada como “a liberdade do ser humano de optar de acordo com sua razão e

de agir conforme o seu entendimento e sua opção” (2007, p.32).

Conforme o relato do autor, este processo de laicização da dignidade da pessoa

humana atingiu o seu ponto mais alto com o pensamento do filósofo alemão Immanuel Kant,

para quem o homem era um ser dotado de racionalidade.

Na concepção kantiana, a racionalidade estaria intimamente ligada à idéia de

liberdade, no sentido de que somos livres para realizar escolhas e tomar decisões em

detrimento de nossos próprios interesses, o que nos diferencia dos animais. Nesta linha de

raciocínio, tratar um homem com dignidade seria considerá-lo como um fim em si mesmo e

não como meio de satisfação de interesses outros.

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Em Fundamentação da metafísica dos costumes, Kant estabelece tal formulação:

“age de tal forma que trates a humanidade tanto em sua pessoa quanto na pessoa de qualquer

outro sempre como um fim e jamais simplesmente como um meio” (1980, p.18).

Segundo Oscar Vieira Vilhena, esta noção impõe um tratamento recíproco entre as

pessoas, na medida em que um homem deve atribuir ao outro o mesmo valor que atribui a si

mesmo, porque todos são merecedores do mesmo respeito. Como as pessoas são dotadas de

razão, todas merecem ser tratadas com dignidade de maneira igualitária (2006, p.38).

Ao longo do tempo, uma série de contrapontos ao pensamento Kantiano foi redigida

por outros pensadores, mas suas idéias representam, até hoje, um marco para os estudos da

dignidade da pessoa humana.

1.2- Perspectiva constitucional

Para Oscar Vilhena, a dignidade assume diferentes dimensões, sempre relacionada a

uma enorme gama de condições ligadas à própria vida humana, como integridade física e

psíquica, moral, condições de liberdade e materiais de bem-estar. Por isso, não constitui um

valor intrínseco ao ser humano, mas uma “construção de natureza moral”, em processo

permanente de desenvolvimento, sempre relacionada à proteção de condições indispensáveis a

uma existência também digna (2007, p.36).

De qualquer maneira, após seu reconhecimento como valor moral, a dignidade

humana foi erigida à condição de valor fundamental da ordem jurídica dos Estados chamados

“Democráticos de Direito” constituindo o alicerce, as bases de suas constituições.

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Após a Declaração da Organização das Nações Unidas em 1948, que a reconheceu

como “valor jurídico universal, a maioria dos países ocidentais a adotou expressamente em

suas constituições (KRIELE, 1983, p. 47-54).

No Brasil, a Constituição Federal de 1988 positivou a dignidade da pessoa humana

como fundamento do Estado Democrático de Direito que ora se constituía (art.1º, inciso III).

A partir daí, a proteção da dignidade humana foi expressa na nossa ordem jurídica como

princípio constitucional do mais alto grau de relevância, ocupando o cume da pirâmide

hierárquica do ordenamento jurídico (HESSE, 1991, p.35).

Da leitura do texto constitucional brasileiro, afere-se que a dignidade da pessoa

humana está prevista logo no primeiro título que trata dos princípios fundamentais, sugerindo,

segundo Starlet (2007, p.63), que o legislador instituiu a eles a função de fundamentar toda a

ordem constitucional, especialmente no que diz respeito às normas que definem os direitos e

garantias fundamentais, previstos no título II.

Explícito em outras palavras, isto significa que a dignidade humana constitui não

apenas o fim a que se dirige o ordenamento jurídico, mas, antes, o seu próprio fundamento, o

que está expresso no inciso III do artigo 1º, ao tratar a dignidade da pessoa humana como

alicerce do próprio Estado. No dizer de Comparato (1999, p.30), "a dignidade do ser humano,

fonte e medida de todos os valores, está sempre acima da lei, vale dizer, de todo direito

positivo".

Na perspectiva dos direitos humanos fundamentais, observa-se, da apreciação do

artigo 5º da Constituição Federal de 1988, a presença implícita do princípio da dignidade da

pessoa humana tanto nas vedações a determinados tipos de pena, à tortura e a tratamentos

desumanos e degradantes, como na proteção ao direito à vida e à integridade física e psíquica,

que constituem o centro pétreo da Constituição Federal Brasileira.

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Embora não prevista explicitamente no rol dos direitos e garantias fundamentais, a

dignidade da pessoa humana se faz inerente a todo o texto da Constituição e, por via de

conseqüência, a toda a ordem infra-constitucional, representando limite intransponível tanto

na esfera de atuação do Estado, quanto na do cidadão. Afirmar que a dignidade constitui um

direito fundamental, é dizer apenas parte de seu significado, uma vez que ela é o próprio

fundamento da instituição de direitos e de deveres estabelecidos pelo ordenamento jurídico.

2- Constituição Federal e sistema penal

A Constituição Federal representa fundamento de validade para todo o ordenamento

jurídico de um Estado Democrático de Direito. Existe para conduzir a existência do próprio

Estado que nela se funda.

As disposições de uma Constituição vinculam todos os atos normativos de um

sistema jurídico, inclusive, os de âmbito penal, conferindo legitimidade ao ordenamento assim

chamado infraconstitucional.

Deste modo, é possível afirmar que o Direito Penal, para ter validade, deve ser

estruturado a partir dos valores expressos ou implícitos na Carta Magna, entre eles, o

mandamento da dignidade humana.

Fernando Capez salienta que o tipo incriminador deve descrever como infração

somente aquelas condutas que representam uma real lesividade aos bens jurídicos

considerados mais importantes para a sociedade e. somente assim, é possível se falar em um

Direito Penal “Democrático” (2002, p.10).

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2.1- Princípios constitucionais penais

Como já mencionado, todas as normas infraconstitucionais, entre elas, as normas

penais, têm sua validade vinculada à observância dos princípios constitucionais.

É a Constituição Federal quem determina que nenhum homem livre pode ser punido

por fato que a lei anteriormente o tenha previsto como crime, nem receber uma punição legal

se não previamente cominada (Princípio da reserva legal).

Também é a Carta Constitucional que determina que a privação da liberdade e dos

bens do indivíduo somente pode se dar através de um processo judicial (Princípio do devido

processo legal), em que o réu tenha pleno e amplo direito à defesa contra a acusação que lhe é

imposta (Princípio do contraditório e ampla defesa), sendo-lhe ainda assegurado o direito de

não ser considerado culpado antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória

(Princípio da presunção de inocência).

Dentre os valores preconizados pela Constituição Federal e que têm no Direito Penal

seu campo de projeção, o princípio da dignidade da pessoa humana, surge como diretriz

fundamental do sistema, conforme esclarece Capez:

Do Estado Democrático de Direito partem princípios regradores dos mais diversos campos da atuação humana. No que diz respeito ao âmbito penal, há um gigantesco princípio a regular e orientar todo o sistema, transformando-o em um direito penal democrático. Trata-se de um braço genérico e abrangente, que deriva direta e imediatamente deste moderno perfil político do Estado brasileiro, a partir do qual partem inúmeros outros princípios próprios afetos à esfera criminal, que nele encontram guarida e orientam o legislador na definição das condutas delituosas. Estamos falando do princípio da dignidade humana (2002, p.10).

Sendo a dignidade da pessoa humana o fundamento do Estado e, conseqüentemente,

de sua ordem constitucional, todas as demais normas jurídicas, inclusive a penal, têm sua

validade vinculada à observância deste princípio, que, segundo o mesmo autor, deve orientar

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tanto o legislador no momento da criação das figuras típicas, quanto do intérprete no

momento em que estabelecer a relação do caso concreto com o tipo penal.

É com alicerce na dignidade que o sistema deve funcionar. Isto dito em outras

palavras: a dignidade da pessoa humana deve ser o vértice do sistema penal. A partir deste

princípio orientador, derivam outros princípios que regem e servem de limite ao Direito Penal

(Capez, 2002, p. 13-25).

Assim, segundo o princípio da insignificância ou bagatela, o Direito Penal deve

ocupar-se somente de tipos incriminadores que descrevam condutas realmente lesivas a bens

jurídicos de grande interesse à sociedade. Aplicar uma pena a quem praticou um fato

insignificante na esfera da lesividade penal é contrário aos ideais de um Estado Democrático

de Direito. Importante observar, entretanto, que delito insignificante ou de bagatela não se

confunde com os crimes de menor potencial ofensivo assim definidos pelo artigo 61 da Lei

9099/95 e que possuem um certo nível de gravidade. Trata-se de um princípio a ser observado

no plano concreto, não abstrato, conforme escreve Capez:

Tal princípio deverá ser verificado em cada caso concreto, de acordo com suas especificidades. O furto, abstratamente, não é uma bagatela, mas a subtração de um chiclete pode ser. Em outras palavras, nem toda conduta subsumível ao artigo 155 do Código Penal é alcançada por este princípio, algumas sim, outras não (2002, p.15).

Do princípio da dignidade humana decorre também a idéia de que só pode ser punido

aquele que lesiona bem jurídico de terceiros, ou seja, aquele cujo comportamento transcenda

sua esfera individual e alcance a esfera do outro, na medida em que não se pode punir aquele

que causou um mal apenas a si mesmo, salvo a hipótese em que houver comprovada intenção

de prejudicar terceiros. Basta imaginar-se a situação daquele que atentou contra a própria

vida. Não consumada a morte, impor uma pena a quem tentou o suicídio seria um desrespeito

a sua faculdade de se auto-determinar, o que implicaria em ferir a sua dignidade. Trata-se

aqui do princípio da alteridade ou transcendentalidade.

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Também alinhado com o princípio da dignidade humana, o princípio da intervenção

mínima fundamenta-se no artigo 8º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do

Cidadão (Capez, 2002 p.18), segundo o qual seria defeso ao sistema legislativo e jurídico

prever ou aplicar punições desnecessárias. Seguindo a lógica constitucional, a imputação de

uma pena só pode ocorrer naqueles casos em que a lei descreve um fato como crime,

limitando a atuação do Estado no sentido de privar ou restringir a liberdade do indivíduo

somente nos casos em que tal privação ou restrição seja realmente indispensável.

Também decorrente da dignidade, o princípio da proporcionalidade estabelece a

necessidade de se avaliar a relação custo-benefício ao se criar tipos incriminadores, porque

estes limitam a liberdade das pessoas ao mesmo tempo em que protegem determinados bens

jurídicos.

Para Capez (2002, p.22), um Direito Penal Democrático não pode prever uma

incriminação que represente mais ônus do que benefício coletivo. O interesse tutelado pela

norma incriminadora deve ser relevante do ponto de vista social, sob pena de

inconstitucionalidade.

No âmbito preventivo, o princípio dispõe a necessidade de que a pena seja

proporcional ao delito praticado. Beccaria, no século XVIII, já defendia a idéia de que uma

pena, para ser eficaz, deve ter tão-somente o rigor necessário para prevenir a criminalidade,

conforme afirma em sua clássica obra Dos delitos e das penas: “Para que a pena não seja a

violência de um ou de muitos contra o cidadão particular, deverá ser essencialmente pública,

rápida, necessária, a mínima dentre as possíveis, nas dadas circunstâncias ocorridas,

proporcional ao delito e ditada pela lei.” (2001, p.107).

O artigo 5º, inciso XLVII da Constituição Federal de 1988 traz implícito este

princípio ao preceituar a abolição de determinados tipos de pena, bem como ao estabelecer a

exigência da individualização da pena (inciso XLVI).

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Tais preceitos, assim como a vedação constitucional da tortura e do tratamento

desumano ou degradante também estão relacionados a outro princípio decorrente da dignidade

da pessoa humana: o princípio da humanidade que impede a cominação de penas que atentem

contra a incolumidade física ou moral de qualquer pessoa. Este princípio deve orientar todas

as relações que envolvem o direito penal e consiste no reconhecimento de que o condenado

deve ser tratado como pessoa humana.

O princípio da humanidade é decorrente das idéias iluministas em voga na Europa

dos séculos XVII e XVIII. Partindo da idéia da elaboração jurídica de um Estado

constitucional, os direitos humanos surgem como limite intransponível da execução penal,

dos quais emergem diversos princípios constitucionais penais, visando à proteção do

condenado contra os arbítrios do poder estatal.

A doutrina define ainda vários outros princípios deduzidos do mandamento

constitucional da dignidade. Entretanto, para efeitos do presente trabalho, os princípios acima

mencionados são suficientes para demonstrar que o Direito Penal encontra seu fundamento de

validade nos princípios constitucionais e, dentre eles, a dignidade da pessoa humana

representa a pedra angular do sistema.

2.2- Direitos fundamentais em face do apenado na Constituição Federal

Inicialmente, far-se-á um breve levantamento a respeito dos direitos fundamentais

assegurados pela Constituição Federal e pela ordem infraconstitucional em face do apenado

para, em momento oportuno, analisar se a execução penal contempla o princípio da dignidade

humana viabilizando a reintegração social do egresso e a prevenção da criminalidade.

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Conforme já analisado anteriormente, a validade de todo e qualquer ordenamento

infraconstitucional está diretamente relacionada à observância dos princípios e valores

expressos pela Constituição Federal. Assim, o sistema penal tem sua validade vinculada a sua

fidelidade com relação aos mandamentos constitucionais, em especial, ao da dignidade da

pessoa humana.

O artigo 5º da Constituição Federal de 1988 elenca, em seus setenta e oito incisos,

um rol de direitos e deveres individuais e coletivos, dentre os quais, alguns asseguram aos

apenados direitos fundamentais invioláveis em razão de seu perfil constitucional. Isto

significa que os agentes do poder público são chamados obrigados a observar estes direitos,

os quais se colocam como limites ao jus puniendi.

Da leitura do inciso III do artigo 5º, afere-se a relevância que o constituinte

pretendeu atribuir à afirmação da dignidade da pessoa humana, ao estabelecer que “ninguém

será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante” (CF, art.5º, inciso III).

Tal dispositivo, ao sugerir como indeterminado o sujeito “ninguém”, inclui, portanto,

os apenados, que, conservam todos os seus direitos não atingidos pela privação ou restrição da

liberdade.

A inobservância deste mandamento é punível e, uma vez configurada a prática de

tortura, classifica-se como crime inafiançável e insuscetível de graça e anistia, conforme

dispõe o inciso XLIII do mesmo artigo, punível nos termos da Lei 9455/97 que define os

chamados crimes de tortura.

O artigo 5º traz um rol taxativo de penas aplicáveis e a vedação expressa de

outras.Também a separação classificatória dos presos encontra na Constituição Federal o seu

fundamento, visando à individualização do tratamento penal e o controle da criminalidade, na

medida em que se evita o contato de infratores ocasionais com os chamados “profissionais”

do crime. Portanto, tem perfil constitucional a regra de que os presos devem cumprir suas

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penas em estabelecimentos distintos segundo o sexo, idade e natureza do delito (CF, artigo 5º,

inciso XLIX).

No aspecto processual, a Constituição Federal também estabelece uma série de

direitos e garantias ao apenado, como, em título exemplificativo, a de que só é possível a

privação de sua liberdade através de processo judicial (CF, artigo 5º, inciso LIV), de que só

será considerado culpado após o trânsito em julgado de sentença penal condenatória (CF,

artigo 5º, inciso LVII), de só ser preso em flagrante delito ou mediante ordem fundamentada

de autoridade judiciária (CF, artigo 5º, inciso LXI), de assistência familiar e de advogado,

além de poder permanecer calado durante o seu interrogatório (CF, artigo 5º, inciso LXIII).

No mesmo artigo, inciso LXXV, a Carta Magna estabelece ao Estado o dever de

indenizar o apenado naqueles casos em que ele ficar preso além do tempo definido na

sentença condenatória, situação que ocorre freqüentemente no cenário da execução penal no

Brasil, raríssimas vezes, devidamente indenizada.

2.2.1- Direitos fundamentais e execução penal

Em matéria penal, é a Constituição Federal quem estabelece as regras e princípios a

partir dos quais se efetivarão a legislação, o processo e a execução penal. Qualquer lei que

contrarie as disposições constitucionais não tem validade e deve ser retirada do ordenamento

jurídico, da mesma forma que a investigação, o processo e a execução penal devem ser

praticados de acordo com o que está constitucionalmente previsto, especialmente no que diz

respeito ao mandamento constitucional da dignidade, pedra angular do sistema penal.

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O cumprimento das penas privativas de liberdade no Brasil é disciplinado pela

Constituição Federal, pelo Código Penal e regulamentado pela Lei 7210/84, Lei de Execuções

Penais (LEP). Todas as normas que instruem a execução penal encontram como limite as

previsões constitucionais relativas aos direitos fundamentais do apenado. O legislador

infraconstitucional, ao estipular qualquer regra referente ao cumprimento da pena de prisão,

deve considerar tais pressupostos, sob pena de que a produção legislativa já tenha um

nascimento eivado de inconstitucionalidade.

Far-se-á, então, uma breve exposição a respeito das regras disciplinadas pela

legislação infraconstitucional no tocante à execução penal para, em ocasião oportuna, analisar

se a construção teórica do sistema penal contempla o mandamento constitucional da

dignidade humana e se o mesmo tem sido observado no cumprimento das penas privativas de

liberdade no Brasil.

2.2.1.1- Regimes penitenciários

Conforme o disposto § 1º do artigo 33 do Código Penal, são três os tipos de regimes

penitenciários a serem aplicados ao condenado: fechado, semi-aberto e aberto. Esta pesquisa

tem como objeto o regime fechado, mas, somente em título de ilustração, registram-se

algumas diferenças entre os três regimes.

No regime fechado, a pena é cumprida em estabelecimento penal de segurança

máxima ou média. No período diurno é previsto o trabalho coletivo e, no período noturno, o

recolhimento individual, ficando restrita, em regra, a saída do interior da penitenciária.

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No regime semi-aberto, o infrator cumpre a pena em colônia penal agrícola,

industrial ou estabelecimento similar. Este tipo de regime caracteriza-se pelo trabalho diurno,

com vigilância moderada e recolhimento coletivo durante o repouso noturno. A saída do

estabelecimento para freqüentar cursos profissionalizantes é permitida.

No regime aberto, o apenado trabalha ou freqüenta cursos em liberdade durante o dia

e se recolhe em Casa do Albergado ou estabelecimento adequado à noite, sábados, domingos

e feriados. Como há poucas casas especializadas, na prática, o apenado cumpre sua pena em

regime de prisão domiciliar.

Para os condenados femininos e para os maiores de 60 anos a pena deve ser

cumprida em regime especial e em estabelecimento próprio. Às mulheres presas é garantido o

direito de permanecer com seus filhos durante o período de amamentação (CF, artigo 5º,

inciso L) em celas especiais. Trata-se de direito fundamental assegurado pela Constituição

Federal no tocante aos cidadãos com mais de 60 anos e às mulheres que respondem a uma

condenação penal.

2.2.1.2- Espécies de penas

O artigo 32 do Código Penal prevê como espécies de pena as privativas de liberdade,

objeto de estudo deste trabalho, as restritivas de direitos e a de multa.

O artigo 5º da Carta Constitucional, em seu inciso XLVIII, estabelece que “a pena

será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o

sexo do apenado”.

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A diversificação do sistema carcerário tem previsão constitucional, com finalidade de

proporcionar ao apenado tratamento particularizado, não aplicável a outro cidadão que

responde a processo crime em situação semelhante, seguindo o princípio da individualização

da pena prevista no inciso XLVI do mesmo dispositivo. Trata-se de direito indisponível do

apenado.

Pelas razões expostas, a legislação penal considera como espécies de penas

privativas de liberdade a reclusão e a detenção, conforme dispõe o artigo 33 do Código Penal.

São comuns as dúvidas quanto às diferenças entre as penas de reclusão e detenção. Na

essência, são equivalentes e suas diferenças se destacam no plano de seus efeitos, sendo a

reclusão destinada a crimes mais graves e a detenção para os de resultados menos gravosos.

Segundo o disposto no artigo 33 do Código Penal, a pena de reclusão admite seu

cumprimento tanto no regime fechado, quanto no semi-aberto e aberto, enquanto que a pena

de detenção é prevista para infrações menos graves, sendo vedado o regime fechado para tal

espécie, salvo em caso de regressão. Ou seja, a pena de reclusão admite a possibilidade de o

cumprimento da pena iniciar-se no regime fechado, o que não ocorre na detenção. O regime

fechado só é aplicável aos crimes apenados com detenção em caso de regressão de regime, a

ser oportunamente conceituado.

No âmbito de seus efeitos, as diferenças entre as penas de reclusão e de detenção são

mais visualizáveis. No caso de o fato criminoso ser praticado por inimputável, punível com

reclusão, a medida de segurança aplicada consiste na internação do agente em hospital de

custódia e tratamento psiquiátrico. Se o fato for apenado com detenção, a medida de

segurança será o tratamento ambulatorial.

O efeito civil da perda de pátrio poder, curatela, tutela e poder familiar, decorre

somente de crimes apenados com reclusão, não sendo previsto nos casos de aplicação da pena

de detenção (Jesus, 2002 p.207).

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Importante considerar que é direito do apenado, decorrente do princípio

constitucional da proporcionalidade, derivado da dignidade humana, que a punição a ser por

ele cumprida tenha um rigor proporcional à gravidade da infração praticada. Considerando

tais pressupostos, assim foram definidas as espécies de pena adotadas pelo ordenamento penal

no Brasil.

2.2.1.3- Regras do regime fechado

No § 2º do artigo 33 do Código Penal, é possível identificar as hipóteses em que o

apenado inicia o cumprimento da pena em regime fechado: condenados à reclusão

reincidentes, qualquer que seja a quantidade de pena imposta e condenados por prática de

crime cuja pena seja superior a oito anos, reincidentes ou não.

Caso a pena não seja superior a 4 anos e as circunstâncias judiciais previstas no

artigo 59 do Código Penal sejam favoráveis ao condenado, em sendo ele reincidente, o regime

inicial será o semi-aberto e não o fechado. Neste caso, o regime inicial será fechado somente

se o réu for reincidente e as circunstâncias judiciais não lhe forem favoráveis.

Conforme já examinado, o cumprimento das penas privativas de liberdade no Brasil

foi regulamentado pela Lei 7210/84, a Lei de Execuções Penais (LEP), que posteriormente

sofreu algumas modificações.

As principais regras dispostas nesta lei sobre o regime fechado estabelecem que a

pena deve ser cumprida em estabelecimento penitenciário (artigo 87), de segurança máxima

ou média, onde o condenado deve trabalhar no período diurno e ficar isolado durante o

repouso noturno, em cela individual com dormitório, aparelho sanitário e lavatório (artigo 88).

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Segundo o parágrafo único de referido artigo, a unidade celular deve ter por requisitos a

salubridade do ambiente e área mínima de seis metros quadrados. Aqui, inicia-se a inevitável

verificação do enorme distanciamento que existe entre as previsões legais e a realidade do

sistema carcerário brasileiro.

No início do cumprimento da pena, o condenado deve ser submetido a exame

criminológico para individualização da execução da pena (artigo 8º), seguindo o princípio

constitucional estabelecido no artigo 5º, inciso XLVI. Este exame tem por finalidade

classificar os presos, no sentido de aferir as características singulares de cada um,

particularizando a execução no sentido de torná-la mais eficaz no que diz respeito à

reeducação do apenado.

Segundo as disposições legais, que posteriormente sofreu reformas, este exame

deveria ser realizado por uma Comissão Técnica de Classificação existente em cada

estabelecimento prisional, composta por psicólogos e assistentes sociais, no início do

cumprimento da pena e também nos casos de progressão e regressão de regime.

Isto porque a sentença penal condenatória estabelece o regime inicial de

cumprimento da pena. Entretanto, observados alguns critérios, é possível ao preso progredir

de um regime mais gravoso para um outro regime mais suave, sendo vedada a progressão

“por salto”, ou seja, do regime fechado, não se pode progredir diretamente para o aberto, mas

inicialmente para o semi-aberto.

A chamada progressão de regime pode ser aplicada, desde que obedecidos os

requisitos legais estabelecidos pela LEP, conforme disposto no artigo.112: “A pena privativa

de liberdade será executada em forma progressiva, com a transferência para regime menos

rigoroso, a ser determinada pelo juiz, quando o preso tiver cumprido ao menos um sexto da

pena no regime anterior e seu mérito indicar a progressão”.

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Segundo a LEP, a progressão deveria ser precedida de parecer da Comissão Técnica

de Classificação e de Exame Criminológico, mas, como será examinado, a Lei sofreu

modificações. O Ministério Público, obrigatoriamente, deve manifestar-se acerca da

progressão do sentenciado, uma vez que atua como fiscal da lei.

O artigo 118 da LEP estabelece a obrigatoriedade da regressão de regime para

qualquer regime mais gravoso, quando o condenado pratica falta grave ou crime doloso, ou,

ainda, quando sofre condenação por crime anterior, cuja pena, somada ao restante da que está

cumprindo, torna incabível o regime aberto ou semi-aberto.

Estas são as disposições da Lei de Execuções Penais que sofreram algumas

modificações com a Lei 10.792/03 que deu nova redação aos artigos 6º e 112. A nova Lei

dispensou o o exame criminológico, para as progressões e regressões de regime, para as

concessões de benefícios e para as conversões de pena.

Portanto, de acordo com a lei vigente, o exame criminológico é exigido apenas para

individualização do tratamento penal, embora, na prática, tal exame não venha sendo

realizado ou, quando realizado, tem sido aplicado de maneira não satisfatória.

O requisito objetivo para a progressão da pena também foi mantido, ou seja, o

condenado deverá ter cumprido ao menos 1/6 da condenação. O requisito subjetivo, o mérito

do apenado, deve ser atestado pelo diretor da penitenciária. Entretanto, mais uma vez, a Lei

foi omissa, não definindo o que seria o “bom comportamento” do apenado.

Polêmica tem sido a discussão em torno da progressão do regime para os crimes

previstos na Lei 8072/90. O artigo 2º desta Lei prevê o cumprimento da pena em regime

integralmente fechado para crimes hediondos, tortura, terrorismo e tráfico ilícito de

entorpecentes. O artigo 1º, § 7º da Lei 9455/97, que trata dos crimes de tortura, dispõe que o

condenado por este crime deve apenas iniciar a pena em regime fechado, permitindo,

portanto, a progressão do regime, o que não ocorre nos demais crimes acima mencionados. Há

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entendimento de que conferir tratamento diferenciado para crimes de igual gravidade incide

em violação ao princípio da proporcionalidade.

O Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade do § 1º do artigo 2º da

Lei 8072/90 que estabelece o cumprimento integral em regime fechado para os crimes

previstos nesta Lei.

Os fundamentos da decisão sustentavam-se no fato de que a vedação da progressão

afronta o direito fundamental da individualização da pena e a derrogação tácita de tal

dispositivo pelo § 7º do artigo 1º da Lei 9455/97, que permite a progressão para os crimes de

tortura, equiparado, pela Constituição Federal a crime hediondo, no artigo 5º inciso XLIII.

Entretanto, tal decisão foi proferida em Hábeas Corpus, produzindo efeitos “entre as

partes” o que não impede que outros juízes e tribunais possam decidir em contrário, até

porque o Supremo Tribunal Federal sumulou que a progressão de regime admitida no crime

de tortura não se aplica aos demais crimes hediondos (Súmula 698).

Quando o assunto está relacionado aos direitos dos presos, é de suma importância

lembrar o artigo 38 do Código Penal que dispõe que o apenado, ao ser preso, conserva todos

os direitos não atingidos pela perda da liberdade, devendo ser preservadas sua integridade

física e moral, em observância ao princípio da dignidade humana.

A integridade física e moral dos detentos também é prevista como cláusula pétrea na

Constituição Federal, por tratar-se de direito e garantia fundamental, previstos no artigo 5º,

inciso XLIX da Carta Magna.

Em fidelidade à disciplina constitucional, a Lei de Execuções Penais regulamentou,

em seu artigo 41, diversos direitos dos detentos como alimentação e vestuário, atribuição de

trabalho remunerado, previdência social, descanso e recreação, assistência à saúde, jurídica e

de educação, proteção contra sensacionalismo, entrevista pessoal e reservada com o

advogado, audiência especial com o diretor do estabelecimento, entre outros direitos.

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A mesma Lei, artigo 183, e o Código Penal, artigo 41, garantem o direito ao

condenado de ser transferido para hospital de custódia e tratamento psiquiátrico, nos casos em

que a pena for convertida em medida de segurança, por superveniência de doença mental.

Manter um condenado, nestas condições, preso em estabelecimento carcerário, constituiria

flagrante afronta aos princípios constitucionais, em especial, ao princípio da dignidade da

pessoa humana.

Um benefício importante, o benefício da detração, está previsto no artigo 42 do

Código Penal, que consiste em computar-se tanto na pena privativa de liberdade quanto na

medida de segurança o tempo de prisão provisória e administrativa, no Brasil ou em país

estrangeiro, e o de internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico (LEP, art.66,

III, c).

Segundo André Estefam (2006, p.190), existe uma lacuna na lei que se omite com

relação à admissibilidade da detração para penas alternativas. Para o autor, deve-se suprir

referida omissão com a aplicação da analogia in bonam partem, porque não haveria razão em

admitir a detração para pena mais grave, no caso, a prisão, e vedá-la para as penas

alternativas, o que violaria princípios constitucionais.

Quanto ao trabalho do preso, segundo dispõe a Lei de Execuções Penais, as

atividades devem ser pautadas em alguns critérios como, por exemplo, ter finalidade

educativa e produtiva, ser remunerado, jornada normal de trabalho de 6 a 8 horas diárias com

descanso nos domingos e feriados, desconto de um dia de pena para cada três dias de trabalho

(remição da pena).

Embora o trabalho seja obrigatório ao preso, a Constituição Federal vigente veda,

como cláusula pétrea, o trabalho forçado, em seu artigo 5º inciso XLVII. O trabalho do preso

é obrigatório, conforme a regra do inciso V do artigo 39 da LEP, que dispõe sobre os deveres

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do preso. Se ele não trabalha, perde os benefícios da remição. Ficam isentos da obrigação

somente o preso provisório e o preso político, para os quais o trabalho não é obrigatório.

Mas a atribuição de trabalho, sua remuneração, previdência social, proporcionalidade

entre o tempo de trabalho, descanso e recreação também estão previstos entre os direitos

estabelecidos aos presos pela mesma Lei em seu artigo 41.

O artigo 39 do Código Penal brasileiro dispõe sobre o trabalho do preso que deve ser

sempre remunerado e sobre o direito de usufruir dos benefícios da Previdência Social. No

mesmo sentido, a Lei de Execuções Penais em seu artigo 41, inciso II, estabelece que

constitui um direito do preso a atribuição de trabalho e sua remuneração. Portanto, o trabalho

é um dever do Estado e um direito/dever do preso. Direito no que diz respeito à remuneração

e remição, e dever na medida em que, recusando-se a executá-lo, comete falta grave, segundo

o estabelecido nos artigos 39, inciso V e 50, inciso VI da LEP.

Segundo as disposições legais, àqueles que trabalham, os valores recebidos devem

ser utilizados na seguinte ordem: primeiro, para indenizar a vítima; segundo, o Estado;

terceiro, sua família; quarto, para seu uso pessoal. Do que restar de seu salário, em regra, não

inferior a ¾ do salário-mínimo, fica como pecúlio. Mas, na realidade, o que efetivamente

motiva o preso a trabalhar é a possibilidade de remição.

Os artigos 31 a 37 da Lei de Execuções Penais disciplinam de que maneira deve ser

realizado este trabalho. O artigo 32 dispõe que, ao se atribuir à atividade laboral ao apenado,

devem ser consideradas suas habilidades pessoais, suas condições físicas, as necessidades

futuras do preso, ao deixar o sistema e as oportunidades oferecidas pelo mercado. No entanto,

esta é a teoria. Na prática, é muito diferente.

Em tese, o trabalho deveria ser um aliado importante no processo de recuperação do

infrator, preparando-o para sua reintegração no mercado de trabalho quando recuperar a

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liberdade. O trabalho deveria ter como intuito maior desenvolver no preso a idéia de resgatar

sua dignidade.

Quanto ao trabalho externo, a Lei de Execuções Penais, artigo 36, considera-o

admissível somente em serviço e obras públicas, ficando a remuneração por conta da entidade

ou empreiteira a remuneração do preso.

O artigo 37 estabelece como requisito para a concessão deste direito que o preso

tenha cumprido no mínimo 1/6 de sua pena. Importante observar a súmula 40 do STJ, que

considera como tempo de cumprimento de pena aquele cumprido em regime fechado. No que

se refere à prestação de trabalho a entidades privadas, a lei também estabelece como requisito

o consentimento expresso do preso (LEP, artigo 36, § 3º).

No que diz respeito aos limites temporais da pena de prisão. O ordenamento jurídico-

penal brasileiro não reconhece a prisão perpétua. Trata-se de vedação constitucional, prevista

como cláusula pétrea, no artigo 5º inciso XLVII.

Caso o preso tenha mais de uma condenação, suas penas serão “unificadas”,

utilizando terminologia corrente da doutrina, desde que observados alguns critérios

específicos. No Brasil, a pena máxima é de trinta anos, trata-se de regra prática, ainda que o

condenado tenha mais do que este tempo de pena para cumprir. A previsão legal deste limite

encontra-se no artigo 75 do Código Penal que dispõe que “o tempo de cumprimento das penas

privativas de liberdade não pode ser superior a trinta anos”.

Além disso, é preciso observar a regra do § 2º do artigo 75 do Código Penal:

“Sobrevindo condenação por fato posterior ao início do cumprimento da pena, far-se-á nova

unificação, desprezando-se para esse fim, o período de pena já cumprido”.

Assim, se o condenado a trinta anos, que já tenha cumprido vinte anos, sofrer nova

condenação de trinta anos por fato posterior, deverá cumprir mais trinta anos de pena

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unificada. Não cumprirá os quarenta anos que resultariam da soma de dez que faltavam com

os trinta anos da nova condenação.

Para a concessão de benefícios legais, como o livramento condicional, a

jurisprudência majoritária considera a pena aplicada e não os 30 anos. Por exemplo, um réu

que tenha sido condenado a cem anos de prisão, para adquirir o direito ao livramento

condicional não lhe bastará cumprir 1/3 de trinta anos, mas de cem anos, que foi a pena

aplicada. (art. 83,I CP).

No que diz respeito ao livramento condicional, trata-se também de direito assegurado

ao apenado pela legislação infraconstitucional. O artigo 83 do Código Penal admite esta

possibilidade para as penas privativas de liberdade iguais ou superiores a dois anos. O

dispositivo estabelece que, se o condenado não for reincidente em crime doloso e tiver bons

antecedentes, basta que tenha cumprido mais de 1/3 da pena. Caso contrário, para a concessão

do benefício, deve ter cumprido mais da metade da pena. No caso de condenação por crime

hediondo, tortura, terrorismo e tráfico de entorpecentes, é exigência legal o cumprimento de

mais de 2/3 da pena, conforme estabelece o inciso V de citado artigo.

A legislação penal também prevê como direito do apenado a possibilidade de

substituição da privação da liberdade por uma das penas restritivas de direitos classificadas

no artigo 43 do Código Penal, com a redação da Lei 9714/98, também chamadas de penas

alternativas. Assim como o livramento condicional, o sursis, o regime aberto, a anistia, o

indulto e a graça, as penas restritivas de direito são medidas alternativas que visam ao

desafogamento das prisões. Trata-se de um rol taxativo, expressamente disposto pelo Código

Penal:

a. prestação pecuniária: consiste no pagamento à vítima, seus dependentes ou

entidade pública ou privada de destinação social de um valor em dinheiro a ser fixado pelo

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juiz, não inferior a um salário mínimo, nem superior a trezentos e sessenta salários

(ESTEFAM, 2006, p.199);

b. perda de bens e valores: esses valores são equivalentes ao prejuízo causado ou ao

proveito obtido pelo infrator com a prática do crime;

c. prestação de serviços à comunidade: para substituir a pena de prisão superior a seis

meses. Foi prevista para não prejudicar a jornada normal de trabalho do apenado, portanto, é

estabelecida na proporção de uma hora de trabalho em hospitais, creches, escolas,

estabelecimentos públicos, por um dia de condenação;

d. interdição temporária de direitos: são substituições específicas previstas no artigo

47 do Código Penal, compreendendo a proibição de exercer cargos ou funções públicas e

mandatos eletivos, bem como exercer profissões que dependem de habilitação especial,

proibição de freqüentar determinados lugares e suspensão da habilitação para condução de

veículos automotores;

e. limitação de fim-de-semana: prevista no artigo 48 do Código Penal, o apenado

deverá permanecer em casa de albergado aos sábados e domingos por cinco horas diárias.

Ao sentenciar, o Juiz aplica uma pena de prisão prevista na lei e, se observados os

requisitos legais, o cárcere pode ser substituído por uma pena alternativa. Tais requisitos são

estabelecidos pelo próprio Código Penal em seu artigo 44. A conversão da pena privativa de

liberdade em uma pena alternativa, segundo referido dispositivo legal, é possível quando o

condenado não é reincidente no mesmo crime doloso, quando a pena aplicada não é superior a

quatro anos, quando o crime não é praticado com violência ou grave ameaça a pessoa e

quando, qualquer que seja a pena aplicada, a condenação seja por crime culposo.

Além destes requisitos, o juiz deve considerar ainda os elementos subjetivos para a

substituição, ou seja, o mérito do apenado, devendo ser observado se as condições pessoais do

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condenado indicam a substituição, devendo ele demonstrar que está apto a cumprir a pena

substitutiva.

De acordo com o § 2º do mesmo artigo, a pena de prisão igual ou inferior a um ano

pode ser substituída por multa ou por restritiva de direitos; se superior a um ano, a prisão pode

ser convertida em uma pena restritiva de direitos e multa ou por duas penas alternativas.

Se as restrições impostas, ou seja, se as penas alternativas não são cumpridas pelo

apenado sem razão justificável, conforme prescritas, a medida se converte em prisão, nos

temos do § 4º de referido artigo. O mesmo ocorre se houver outra condenação por outro

crime, ressalvada a hipótese em que seja possível a aplicação de outra pena alternativa.

Além das penas restritivas de direito, a Lei 9099/95 e a Lei 10259/01 estabelecem

medidas processuais alternativas, como a transação penal e a suspensão condicional do

processo para os crimes de menor potencial ofensivo e para as contravenções penais. Tais

medidas representam uma alternativa para aqueles infratores que têm condições de cumprirem

suas penas em liberdade, o que representa uma contribuição ímpar no sentido de diminuir a

superlotação carcerária.

2.2.1.4.- Sanções disciplinares - Regime disciplinar diferenciado

A Constituição Federal brasileira, conforme já exposto anteriormente, elencou uma

série de diretrizes ao legislador infraconstitucional no tocante à execução penal. Os princípios

que emanam da constituição federal devem ser observados pelos agentes públicos durante

todo o período em que o apenado fica sob a custódia estatal. Assim, as sanções e obrigações

impostas aos presos durante o período de encarceramento devem estar alinhadas aos valores

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constitucionais, principalmente àqueles que dizem respeito à dignidade da pessoa humana.

Qualquer sanção que represente ofensa à integridade física ou moral dos presos é

incompatível com tal princípio e, por via de conseqüência, inconstitucional à luz do

ordenamento jurídico brasileiro.

Cumpre observar que a legislação penal atribui não apenas direitos aos presos, mas

também deveres. De acordo com o artigo 39 da Lei de Execuções Penais, constituem-se

deveres do condenado: comportamento disciplinado e cumprimento fiel da sentença;

obediência aos servidores públicos da instituição e respeito a qualquer pessoa com quem

deverá relacionar-se; respeito no trato com os demais condenados; conduta oposta aos

movimentos individuais ou coletivos de fuga ou de subversão à ordem ou à disciplina;

execução do trabalho, das tarefas e das ordens recebidas; submissão à sanção disciplinar

imposta; indenização à vítima ou a seus sucessores; indenização ao Estado quando possível,

das despesas realizadas com sua manutenção, mediante desconto proporcional da

remuneração do trabalho; higiene pessoal e asseio da cela ou alojamento; conservação dos

seus objetos de uso pessoal. Assim, o descumprimento de tais deveres pode implicar na

aplicação de sanções disciplinares consistentes, conforme disposição do artigo 53 da LEP, em

advertência verbal, repreensão, suspensão ou restrição de direitos, isolamento e inclusão no

regime disciplinar diferenciado.

Segundo dispõe o artigo 50 da LEP, o condenado à pena privativa de liberdade que

participar de movimentos de subversão da ordem interna, fugir, portar instrumentos com

potencial para ofender a integridade física de alguém, provocar acidente de trabalho ou

descumprir seus deveres, comete falta grave, punível com sanções de suspensão ou restrição

de direitos (banho de sol, visitas), isolamento ou inclusão no regime disciplinar diferenciado,

conforme estabelece o artigo 57 da mesma Lei.

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Este regime, conforme se afere da leitura do artigo 53 da LEP, alterado pela Lei

10792/03, constitui sanção disciplinar destinada àqueles presos que cometerem falta grave por

crime doloso ou por perturbação da ordem interna, àqueles que representam alto risco para a

sociedade ou para o estabelecimento carcerário ou sobre os quais recaiam fundadas suspeitas

de envolvimento ou participação em organizações criminosas, podendo ser aplicado tanto ao

preso provisório, quanto ao condenado (art.52, § 1º e 2º).

Segundo o mesmo dispositivo, o regime disciplinar diferenciado caracteriza-se pelo

recolhimento do preso em cela individual, com direito a duas horas diárias de banho de sol,

duas horas semanais de visita de duas pessoas e duração máxima de trezentos e sessenta dias,

podendo ser reiterado por nova falta grave da mesma espécie até o limite de um sexto da pena

aplicada (art.52, incisos I a IV).

A inclusão do preso em regime disciplinar depende de requerimento do diretor do

estabelecimento prisional e a autorização judicial deve sempre ser precedida de manifestação

do Ministério Público, conforme estabelecem os parágrafos 1º e 2º do artigo 54.

A instituição do regime gerou muita discussão em torno da sua constitucionalidade,

havendo entendimento no sentido de que o regime é muito gravoso e de que configura

verdadeira afronta ao princípio da dignidade da pessoa humana.

Ao tempo de sua criação, acreditava-se que um endurecimento da disciplina

carcerária seria a melhor forma de conter a violência e as rebeliões que se alastravam nos

estabelecimentos prisionais. Entretanto, segundo os dados da Secretaria de Administração

Penitenciária do Estado de São Paulo, o índice de reincidência no Regime Disciplinar

Diferenciado é de 48%, mais alto do que os percentuais relativos aos outros regimes, o que

parece demonstrar que tornar o regime mais gravoso não tem assegurado maior eficácia social

ao sistema penitenciário paulista, assunto que será discutido oportunamente.

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36

II- CONSTRUÇÃO TEÓRICA DO DIREITO PENAL

Expostos os fundamentos constitucionais e os direitos fundamentais assegurados pela

Constituição Federal e pela legislação infraconstitucional em face do apenado, far-se-á uma

leitura das teorias que informam este sistema, visando à sua compreensão e à identificação da

teoria adotada pelo legislador penal no Brasil.

A doutrina convencional divide as teorias em absolutas, relativas e mistas. Em linhas

gerais, as teorias absolutas atribuem à pena a função de retribuição do mal injusto praticado

pelo infrator por meio de um mal justo (a pena) que se impõe ao condenado. Assim, todas as

doutrinas que concebem a pena como um fim em si mesmas, ou seja, as teorias

retribucionistas são, por conseguinte, absolutas.

Por outro lado, as teorias relativas concebem a pena por seu caráter utilitário, qual

seja, o de prevenir a prática de futuras infrações às normas penais, divididindo-se em duas

versões: prevenção geral e prevenção especial.

Embora esta divisão seja a mais adotada pela maioria dos manuais de Direito Penal

estudados no Brasil, optou-se por seguir o caminho percorrido por Ferrajoli, que trata as

teorias absolutas e relativas como doutrinas de justificação, distinguindo-as das tendências

contemporâneas que oscilam do minimalismo ao abolicionismo penal.

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37

1- Doutrinas de justificação

O Direito Penal adotado pela maior parte dos ordenamentos jurídicos da atualidade é

produto da Modernidade, definida pelos historiadores como o período que vai do

renascimento cultural até a Revolução Francesa e os princípios da industrialização inglesa.

Após o grande sono intelectual pelo qual passou a humanidade, no período medieval,

o homem passou a ser observado de forma racional e humanista. Constituiu-se um modelo de

racionalidade que evoluiu para uma série de transformações sociais, políticas, institucionais e

tecnológicas desenvolvidas no mundo ocidental no século XVIII.

Kant definiu este processo como aquele em que a humanidade atinge seu estágio de

maioridade, ou seja, quando o homem faz uso de sua razão sem se submeter a nenhuma

autoridade.

Com a valorização do homem, instalou-se um conjunto de concepções e novas formas

de pensar o mundo e seus fenômenos, enfim, um longo processo que culminou no Iluminismo

e na Modernidade.

Entretanto, a ideologia moderna dominou também no plano econômico e não apenas

na esfera das idéias com a filosofia das luzes. A Europa tornava-se capitalista e o crescimento

das capacidades e das diversas tecnologias intensificava as relações de poder, frustrando boa

parte das promessas iluministas, fundamentadas em princípios de liberdade, igualdade,

fraternidade.

No âmbito do Direito, o positivismo jurídico passou a ser o porta-voz das classes

economicamente favorecidas, constituindo um dos pilares do “garantismo”, fundamentado,

por um lado, no princípio da legalidade, mas abrindo espaço, por outro, a práticas absolutistas,

conforme se aferirá oportunamente.

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Segundo Ferrajoli (2002, p.29), muitas são as doutrinas e teorias que integram esta

tradição, as quais não são homogêneas entre si, nem tampouco traduzem os ideais iluministas,

informando, paradoxalmente, tendências penais autoritárias e antigarantistas, justificadas pela

legalidade que encerram.

Segundo o autor, a questão central que envolve o garantismo reside na esfera de

validade e de efetividade das normas, na medida em que os modelos normativos são

tendentemente garantistas, enquanto que as práticas operacionais são flagrantemente

antigarantistas, revelando um Direito que, embora válido pela legalidade que encerra, pode

não ser efetivo do ponto de vista fático (2002, p.685).

No caso do Brasil, observando os valores penais expressos pela Constituição Federal

vigente, de acordo com a escala gradativa sugerida por Ferrajoli, constata-se um elevado grau

de garantismo, enquanto que, em se considerando sua prática efetiva, os patamares são

baixíssimos.

Um dos significados de garantismo trazido por Ferrajoli diz respeito à sua

perspectiva filosófico-jurídica, que exige do Estado a justificação de sua atuação com base na

finalidade de garantia dos interesses que tutela (2002,p.685).

No plano penal, uma das questões mais debatidas pelos doutrinadores é exatamente a

que diz respeito à justificação do direito/dever de punir do Estado, dos fundamentos e

finalidades do jus puniendi. Visando a um esclarecimento de tais questões, apresentar-se-ão, a

seguir, as teorias mais discutidas entre os penalistas.

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1.1 Teorias absolutas - justificação retributiva

A pena sempre traduziu a idéia de vingança, o caráter de retribuição e de expiação,

desde as vinganças (vindictas) praticadas pelos povos primitivos, passando pela justiça do

Talião, pelas ordálias do Direito Germânico até as práticas inquisitivas do Direito Canônico.

Na perspectiva de Ferrajoli, conforme já informado, são teorias absolutas todas

aquelas que possuem uma justificação retributiva (2002, p. 204). Trata-se de uma cultura

muito antiga, que foi se desenvolvendo em diferentes momentos históricos e que ainda

persiste em nossos dias.

Alguns doutrinadores, entre eles Bitencourt (2001, p.106), afirmam que as funções

da pena, historicamente, estão relacionadas ao Estado Absolutista e ao Estado Burguês. No

absolutismo, a pena tinha um caráter de expiação de pecados.Concebia-se que o infrator, ao

desobedecer ao monarca, desobedecia ao próprio Deus. A partir do Iluminismo, o crime

passou a ser visto como uma infração ao pacto social e a pena tinha por finalidade evitar esta

violação. (BITENCOURT, 2001, p.106).

Em linhas gerais, os adeptos das teorias absolutas concebem a pena como “castigo”,

“restauração”, “reparação”, “retribuição”, “vingança”. Pune-se porque a pena é um castigo

merecido pelo infrator pelo mal que praticou. A pena é analisada como um fim em si própria,

de caráter aflitivo, opondo-se a qualquer finalidade utilitária. O caráter da punição é retribuir

um mal injusto praticado pelo infrator com um “mal justo” previsto no ordenamento jurídico

(MIRABETE, 2003, p.244).

Ferrajoli (2002, p.205) informa que a justificação retributiva circunda idéias de

caráter religioso, quais sejam, vingança, expiação e proporcionalidade entre pena e delito. O

caráter laico nasceu com os estudos de Kant e Hegel.

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Segundo o autor, as teorias absolutas encontraram seu caráter secularizado nos

estudos de Kant e Hegel. Kant concebia a pena como um castigo imposto por uma exigência

ética, sem qualquer conteúdo ideológico, devendo ser aplicada como uma conseqüência

natural do delito. Segundo a concepção kantiana, somente com a aplicação do “mal da pena”

imposto ao “mal do crime” seria possível reestabelecer uma igualdade que reparasse a moral.

Para tanto, Kant adotava os princípios taliônicos em sua tese para determinar a qualidade e a

quantidade da pena (1980, p.50).

Conforme já verificado, quando se discutiu o conceito de dignidade humana, Kant

concebia o homem como um fim em si mesmo, não como instrumento dos desígnios de seus

semelhantes. Assim, a pena deve ser imposta ao culpado pela única razão de ele haver

cometido um crime, porque, na sua concepção, a pena fundamenta-se na infração praticada,

sem qualquer finalidade preventiva. A gravidade do crime é que determina o castigo a ser

imposto ao infrator e por isso a retribuição kantiana tem natureza ética (1980, p.50).

Enquanto a tese kantiana atribuía ao ato de punir uma justificativa ética, para Hegel,

a pena era uma retribuição jurídica. Na concepção hegeliana, ao cometer um crime, o infrator

violava o Direito. A pena, portanto, seria um instrumento para restabelecer o ordenamento

violado (1980, p.50).

De acordo com o que Corrêa Junior e Shecaira (2002, p.130), Hegel adotou o método

dialético em seus estudos sobre a pena. A vontade geral expressa na lei seria a tese; o crime

praticado pelo infrator seria uma negação desta lei, uma antítese; e a pena seria a síntese, ou

seja, a negação da negação do Direito.

Para Ferrajoli, as distinções entre as duas teorias são apenas aparentes porque a idéia

da “retribuição jurídica”, em Hegel, também se baseia no valor moral ligado ao ordenamento

jurídico violado.

Para o autor, ambas as concepções são insustentáveis:

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Trata-se da sobrevivência de antigas crenças mágicas que derivam de uma confusão entre direito e natureza, vale dizer, a idéia da pena como restauração ou remédio ou reafirmação de uma ordem natural violada, ou ainda daquela religiosa do contrapasso e da purificação do delito por meio do castigo, ou aquelas igualmente não razoáveis da negação do direito por parte do erro e da simétrica reparação deste pelo direito (2002, p. 206).

Zaffaroni, em sua obra Em busca das penas perdidas, trata da “deslegitimação” da

pena retributiva. Para o autor, a indenização material e moral do ofendido é uma forma mais

efetiva de se reparar o prejuízo causado pelo crime do que a opção pelo “castigo”, pela

retribuição.

Defende a idéia de que a retribuição do mal causado pelo crime por um “mal justo”,

que seria a pena, envolve os mesmos problemas do contratualismo, ou seja, poderia funcionar

em uma sociedade igualitária, em que a pena não atingisse apenas as parcelas menos

favorecidas da sociedade, mas a todas as classes sociais.

Para o autor, não é o que ocorre numa sociedade real. As penas retributivas

alcançam apenas a porção marginal da sociedade, restando impunes aqueles que ocupam o

ápice da pirâmide social (2001, p.82).

Ferrajoli, em seus estudos sobre o garantismo penal, estabeleceu uma escala

graduada que oscila entre dois extremos que denomina “direito penal mínimo e direito penal

máximo”. O modelo minimalista assegura uma gama maior de garantias ao cidadão contra o

arbítrio estatal, representação própria dos Estados Democráticos de Direito. Por outro lado, os

modelos que se aproximam do direito penal máximo configuram sistemas próprios dos

Estados absolutistas, autoritários.

O autor afirma que as doutrinas absolutas e as penas retributivistas revelam-se

legítimas apenas para fundamentar modelos não liberais de direito penal máximo, uma

espécie de “talião”, tendo como único objetivo a “troca do mal com o mal” (FERRAJOLI,

2002, p.208).

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A maior parte dos autores contemporâneos, entre eles Corrêa Junior e Shecaira, não

são partidários do retributivismo, embora alguns entendam que a teoria contribuiu para se

estabelecer regras para a dosimetria penal e a concepção de proporcionalidade. De qualquer

maneira, retribuir “o mal com o mal”, “expiar” o crime, “castigar” o infrator, são modelos

incompatíveis com a dignidade da pessoa humana, fundamento do Estado Democrático de

Direito.

1.2 Teorias relativas - justificação utilitarista

Em contrapartida às teorias absolutas que justificam a pena por seu caráter

retributivo, as teorias relativas defendem uma fundamentação utilitarista, segundo a qual a

finalidade do ato de punir seria a de prevenir a prática criminosa. A doutrina tradicional

identifica esta tendência com a Escola Clássica.

Segundo Ferrajoli (2002, p.205), as teorias absolutas são quia peccatum, ou seja,

relacionam-se a um tempo passado, na medida em que a pena é voltada a retribuir um mal já

praticado; enquanto que as teorias relativas são ne peccetur, ou seja, dirigem-se a um tempo

futuro, uma vez que a aplicação da pena é orientada a prevenir a possibilidade fática de

acontecer um crime que ainda não aconteceu .

As doutrinas relativas são estudadas em duas perspectivas: prevenção geral e

prevenção especial, concebidas em um sentido negativo e em um sentido positivo. De

qualquer forma, para as justificações utilitaristas, ao contrário das retributivas, as penas não

são consideradas como um fim em si mesmas. Embora os seus adeptos entendam a pena como

um mal necessário, assim como nas doutrinas absolutas, os utilitaristas defendem a idéia de

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que o ato de punir não esteja orientado a retribuir o crime praticado, mas a prevenir a prática

de novos crimes.

Os manuais de Direito Penal brasileiro informam que, de acordo com a teoria da

prevenção geral, ao se aplicar a pena, promove-se a prevenção de novas práticas ilícitas e esta

finalidade preventiva é dirigida a todos os membros do meio social, enquanto que, segundo a

teoria da prevenção especial, o intuito da prevenção é voltado à pessoa do infrator.

Para os manualistas, a prevenção, analisada sob seu aspecto negativo, tem a

finalidade de “intimidar” a prática de novos delitos, quer em sua versão geral, quando dirigida

a todos os membros da sociedade, quer em sua versão especial, quando dirigida ao infrator,

cujo instrumento, por excelência, é a prisão.

Por outro lado, quando observada sob seu aspecto positivo, relaciona-se à

consciência da vigência da norma. No dizer de Corrêa Junior e Shecaira, em seu sentido

positivo, dirige-se à finalidade de estimular o cumprimento das normas jurídicas, à formação

do conhecimento e necessidade de sua vigência (2002, p.132). No que diz respeito à

prevenção especial, o sentido positivo está relacionado à finalidade educativa e

ressocializadora, alvo de muitas polêmicas, o que será discutido oportunamente.

Em síntese, as correntes utilitaristas sempre atribuíram à pena um propósito comum:

a prevenção de futuros delitos. Entretanto, em breve olhar sobre as teorias defendidas por

aqueles autores que se identificam como “utilitaristas”, é possível reconhecer algumas

nuances que os diferenciam uns dos outros.

Ferrajoli (2002, p.212) observa que, até o final do século XVIII, não havia vertentes

diferenciadas do utilitarismo penal. Somente a partir daí os doutrinadores passaram defini-las

segundo a finalidade preventiva constituir ou não o objeto único da pena. Desde então, foram

definidos os critérios de prevenção geral, prevenção especial, bem como os sentidos positivo e

negativo que, combinados, deram origem a quatro tipos de doutrinas utilitaristas: prevenção

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especial positiva, prevenção especial negativa, prevenção geral positiva e prevenção geral

negativa.

1.2.1- Prevenção geral positiva

Na maioria dos trabalhos de Criminologia, encontra-se uma divisão da teoria da

prevenção geral positiva em duas vertentes: a fundamentadora, cujos expoentes são Welzel e

Jakobs, e a limitadora, defendida por Hassemer e Roxin.

Convergem os autores no sentido de que a prevenção geral positiva limitadora

vislumbra na pena o caráter de limitar o poder punitivo estatal paralelamente à difusão e

confirmação dos valores contidos na norma penal. O Estado que, ao exercer o jus puniendi,

extrapolar tais limites estará exercendo um poder arbitrário.

Corrêa Júnior e Shecaira, ao explorarem o trabalho de Hassemer, sintetizam-no na

idéia de que a pena pode ser entendida como uma reação estatal voltada à difusão da

consciência social da norma e ao auxílio ao infrator para sua reinserção social, obedecendo

aos critérios de proporcionalidade (2002, p.132).

Segundo os mesmos autores, Roxin, outro expoente da versão limitadora da

prevenção geral positiva, acrescenta à finalidade preventiva da pena a idéia da subsidiariedade

do Direito Penal, questionando a sua legitimação e eficácia no que diz respeito à reintegração

social do apenado, o que aproxima as suas idéias ao minimalismo penal.

A prevenção geral positiva fundamentadora tem como principais defensores Welzel

e Jakobs.

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Segundo Bitencourt, Welzel vislumbrava uma função social ao Direito Penal,

enquanto que Jakobs repetiu a teoria de Hegel, segundo a qual a pena é a “negação da

negação do Direito”. Desta forma, suas idéias assumiram contornos retribucionistas, pois

concebia a idéia de que após a prática do crime, é necessária a intervenção do Estando,

visando à reforçar para a sociedade que a norma continua vigente (2002, p.86).

Ferrajoli afirma que Jakobs nada mais fez do que repetir a teoria sistêmica de Niklas

Luhmann que justificava a pena como fator de equilíbrio do ordenamento e de fidelidade dos

cidadãos nas instituições, devolvendo à coletividade a confiança abalada pelas infrações. No

plano sociológico, Jakobs em nada inovou a teoria de Emile Durkheim que havia concebido a

pena como instrumento para reafirmar os sentimentos coletivos de solidariedade contra os

agressores, constituindo-se, portanto, como um fator de estabilização social (2002, p.222).

1.2.2- Prevenção geral negativa

Conforme Bitencourt, a teoria da prevenção geral, em sua concepção negativa,

prevê como finalidade da pena a intimidação da coletividade no sentido de atemorizar

possíveis infratores, coibindo-os da prática de quaisquer delitos (1993, p. 115).

Tal concepção coloca o infrator na posição do “bode expiatório”, quando não do

hommo saccer, o “matável não sacrificável”, citado por Aganben, na medida em que o

princípio orientador desta tendência parece ser no sentido de que “os fins justificam os

meios”, o que contraria a concepção kantiana de que cada pessoa constitui um fim em si

mesma.

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Beccaria e Bentham foram os principais nomes desta doutrina, dentre os

reformadores e pensadores jusnaturalistas do século XVIII.

Segundo os historiadores, foi inspirado pelo contratualismo de Rousseau que

Beccaria escreveu Dei deltiti e delle Penne, obra em que estabeleceu diretrizes para a reforma

penal fundada no princípio utilitarista, defendendo a humanização das penas e o fundamento

do direito de punir. A tendência prevencionista manifesta-se em seu conhecido

posicionamento de que é preferível a prevenção à punição dos delitos (2002, p.101).

Jeremias Bentham adotou, como Beccaria, o utilitarismo da pena, com a finalidade

principal de prevenção dos delitos pela intimidação da coletividade por meio da imposição de

uma pena. Idealizou o Panoptismo, “o olhar que tudo vê”, como a estrutura ideal para o

sistema carcerário, consistente em uma estrutura periférica anelar, dividida em células, tendo,

no centro, uma torre, do interior da qual um vigia, que materializa o olhar do poder estatal,

tudo pode ver no interior das celas, sem nunca ser visto por quem as ocupava. (FOUCAULT,

2003, p.166). O cárater intimidatório pode ser facilmente vislumbrado.

Segundo Michel Foucault (2003, p.79), o verdadeiro objetivo da reforma visava

tornar o poder de punir mais eficaz, diminuindo seu custo econômico e político. A questão

não era punir menos, ao se tentar excluir os suplícios, mas punir melhor e mais eficazmente.

Para tanto, foram idealizadas algumas novas técnicas de punir, baseadas em algumas

regras:

Regra da quantidade mínima: deve existir uma proximidade entre a pena e o

crime, uma "quase-equivalência".

Regra da idealidade suficiente: o corpo do condenado não é o sujeito do

sofrimento, mas objeto de uma representação. O que deve ficar na memória é o que representa

a pena e não a realidade corpórea: "não mais o corpo, a alma".

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Regra dos efeitos laterais: os efeitos da pena devem ser mínimos para o condenado

e mais intensos para os que a imaginam

Regra da certeza perfeita: devem ser claras as leis que definem os crimes e

prescrevem as penas. Nenhum crime deve ficar impune.

Regra da verdade comum: a verdade do crime será equiparada a uma verdade

matemática e só será admitida após inteiramente comprovada.

Regra da especificação ideal: as infrações devem ser claramente qualificadas e

especificadas, classificadas em um código explícito que defina os crimes e fixe uma pena

(2003, p. 79).

Ocorre que tal concepção utilitarista da pena pode legitimar tendências penais

orientadas à intervenção máxima (“pena proporcional ao delito”), que atendem, antes de mais

nada, aos interesses das classes economicamente favorecidas, punindo com rigor os setores

marginais de nossa sociedade, assunto a ser oportunamente discutido.

Para a teoria da prevenção geral negativa, a pena seria nada mais do que um meio

para garantir a eficácia da lei penal, ou seja, para justificar o Direito Penal. Ela não tem por

finalidade o infrator como indivíduo.

Em uma linha paralela, Feurbach, Romagnosi e Schopenhauer concebiam a pena não

por sua perspectiva paradigmática, como Bentham e Beccaria, mas por um caráter de

“ameaça” contida na Lei Penal. As idéias defendidas por estes autores também têm uma

nuance de “Direito Penal do terror”, na medida em que essa ameaça, ou intimidação, será

mais eficaz, quanto mais severas forem as punições estabelecidas pelo legislador. É o que

informa Ferrajoli (2002, p.225).

Feuerbach, criou uma teoria, a que chamou teoria da coação psicológica, segundo a

qual só é possível a extinção da criminalidade se a pena representar uma ameaça capaz de

coibir a prática criminosa:

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Entre todas as imagináveis medidas de segurança das ofensas em geral, nenhuma é tão geralmente eficaz como a ameaça de males físicos, com as quais a ação ofensiva vem condicionada. Essa age diretamente de modo contrário ao fundamento último dos desejos antijurídicos e elimina, causando o medo, o mesmo princípio interno do qual aqueles provêm (FERRAJOLI apud FEURBACH, 2002, p. 255).

O autor prenuncia a idéia de que as pessoas deixam de cometer infrações na medida

em que existir uma previsão da aplicação de uma pena para todos os que praticarem condutas

criminosas. Eis a idéia da coação psicológica.

A obra de Giandomenico Romagnosi tem alguns pontos em comum com o

pensamento de Beccaria, entre eles, a idéia de que a pena tem como uma de suas finalidades a

defesa social. Entretanto, Romagnosi contestava a hipótese utilitarista do pacto social. Mas a

idéia principal de Romagnosi é a de que a pena não constitui o únido meio de defesa social.

Entendia que, antes de sua aplicação, deveria ser feito um trabalho preventivo das infrações,

através da melhoria das condições sociais (BARATTA, 1982, p. 34).

Schopenhauer defendia a idéia de que o direito de punir é fundado na lei positiva,

que fixa uma pena, que representa uma ameaça destinada a impedir a sua violação, visando à

segurança da sociedade. Assim, todas as infrações devem ser previstas em lei, positivadas,

encerrando uma ameaça que tem por finalidade a prevenção da criminalidade através de uma

intimidação (FERRAJOLI, 2002, p.256).

Estabelecidas tais considerações, fica latente a idéia de que a prevenção geral em seu

caráter intimidatório até pode justificar a aplicação da pena e, num sentido mais amplo, o

próprio Direito Penal. Entretanto, num Estado Democrático de Direito, o homem deve ser

considerado “como um fim em si mesmo”, conforme a concepção kantiana. Então, o critério

utilitarista, tal e qual o retributivista, parece incompatível com o valor da dignidade da pessoa

humana, na medida em que aquele que infringiu a lei penal receberá uma punição que servirá

como meio de intimidar os demais membros da sociedade a fim de não cometerem infrações.

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1.2.3- Prevenção especial

Aqui deitam as raízes daquilo que se configurou como “ressocialização”. Conforme

informado anteriormente, a prevenção especial centraliza a finalidade da pena na pessoa do

infrator. A doutrina convencional a concebe em dois sentidos: um sentido positivo e um

sentido negativo, que não necessariamente se excluem entre si.

Claus Roxin, em sua obra Problemas fundamentais de Direito Penal, comentando a

prevenção especial, afirma que a pena atua sobre o infrator “corrigindo o corrigível”,

“intimidando o intimidável”, e “neutralizando o incorrigível e aquele que não é intimidável”,

através da prisão (1993, p.20).

No mesmo sentido, Ferrajoli (2002, p.213) subdivide a prevenção especial em duas

finalidades: uma positiva, ligada à reeducação (ressocialização) do infrator corrigível; e uma

negativa, ligada à neutralização ou eliminação daquele transgressor tido como incorrigível.

A prevenção especial, em seu sentido negativo, está relacionada à exclusão do

infrator do meio social, cujo mecanismo, por excelência é a prisão. No sentido positivo, a

prevenção especial também se concentra no indivíduo que infringe a lei penal, mas concebe a

ressocialização do apenado como objetivo da punição.

Importante observar que a terminologia “ressocialização” tem sido entendida como

uma prática orientada à re-educação do apenado, voltada a atender aos interesses das classes

dominantes. Hoje, a criminologia crítica prefere adotar a expressão “re-inserção social”, ao

referir-se àqueles procedimentos da execução penal que visam a proporcionar condições para

que o apenado retorne à liberdade em condições de conviver no meio social.

As doutrinas que tinham como fundamento a “correção” do infrator atingiram seu

apogeu na passagem do século XVIII para o século XIX, refletindo tendências autoritárias do

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emergente Estado Liberal e marcando um momento de transição das práticas penais que

coincidem com as experiências terapêuticas do poder, conforme pontua Michel Foucault, em

sua obra Vigiar e punir:

Chegará o dia, no século XIX, em que esse “homem”, descoberto no criminoso, se tornará o alvo da intervenção penal, o objeto que ela pretende corrigir e transformar, o domínio de uma série de ciências e de práticas estranhas – “penitenciárias”, “criminológicas” (2003,p. 63).

Ferrajoli (2002, p. 214) identifica três diferentes orientações da prevenção especial:

as doutrinas pedagógicas da emenda, as doutrinas terapêuticas da defesa social e o projeto

ressocializante da diferenciação das penas.

Pontua o autor que as doutrinas pedagógicas da emenda trazem uma conotação

espiritualista do homem e inspira-se em seu livre arbítrio, traduzindo a idéia de que o Estado

pode não apenas exercer seu direito de punir sobre aquele que infringe a lei penal, mas pode

obrigá-lo a tornar-se “bom”.

A tendência traz implícita a idéia do remorso, da penitência, do sofrimento como

remédio saudável dos pecados, concepções típicas de diversas tradições religiosas, em

especial, da católica. Esta disposição orientou todo o direito penal praticado na Idade Média e

consistia numa reformulação, por São Tomás, da idéia platônica da poena medicinalis, tendo

sido retomada no século XIX por autores como Karl Roeder, Francesco Carnelutti e Ugo

Spirito, e que se encontram, de certa forma, com as doutrinas da retribuição moral

(FERRAJOLI, 2002, p.215).

As doutrinas terapêuticas da defesa social, citadas por Ferrajoli, têm, como germe

embrionário, o pensamento de representantes da Escola Positivista, assim classificada pela

doutrina tradicional, e que iniciou a etapa científica da Criminologia: Lombroso, Ferri e

Garófalo.

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Em linhas gerais, as doutrinas terapêuticas colocam o infrator como ponto central,

tomando-o como um indivíduo “doente”, razão pela qual deve ser “curado”, e/ou como

“perigoso” e, por isso, deve ser “segregado”. Ou seja, há na pena uma dupla finalidade: cura

e/ou segregação (2002, p.215).

De César Lombroso, tem-se a idéia do criminoso nato, considerado sob o ponto de

vista biológico. Apontam os historiadores penais que ele realizou inúmeras experiências

empíricas com criminosos vivos e mortos, defendendo idéias um tanto exageradas, conforme

aponta Garcia Pablos de Molina:

De acordo com o seu ponto de vista, o delinqüente padece de uma série de estigmas degenerativos comportamentais, psicológicos e sociais (fronte esquiva e baixa, grande desenvolvimento dos arcos supraciliais, assimetrias cranianas, fusão dos olhos Atlas e occipital, grande desenvolvimento das maçãs do rosto, orelhas em forma de asa, tubérculo de Darwin, uso freqüente de tatuagens, notável insensibilidade à dor, instabilidade afetiva, uso freqüente de um determinado jargão, altos índices de reincidência, etc.) (1997, p. 152).

Para Lombroso, o crime é entendido como um fenômeno, portanto, biológico, e o

infrator representa um ser antropologicamente inferior, apresentando características físicas

específicas que o identificam como tal.

De Enrico Ferri, a idéia da pena como instrumento de defesa social e do crime como

fenômeno social. Segundo Pablos de Molina (1997, p.156), Ferri dividiu os criminosos em

nato, louco, habitual, ocasional e passional e defendia a atuação do Estado na prevenção dos

delitos, através de políticas econômicas, sociais e de educação, aplicando a pena com a

finalidade de defesa social, mas sempre com caráter educativo.

Por outro lado, conforme informam os doutrinadores penais, Raffaele Garofalo não

adotava a finalidade correicional da pena, admitindo o seu caráter de segregação, na medida

em que entendia ser necessário eliminar do meio social aquele infrator que não se adaptasse à

vida em sociedade, levando este entendimento ao limite da adoção da pena de morte

(MOLINA, 1997, p.156-157).

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Na terminologia de Ferrajoli, tratam-se de medidas “higiênico-preventivas,

terapêutico-repressivas, cirúrgico-eliminatórias” e a segregação sempre se dá por “tempo

indeterminado, com revisões periódicas das sentenças e adaptação dos meios defensivos às

categorias antropológicas dos delinqüentes” (2002, p. 215).

Como última orientação correicionalista, o autor relata o projeto ressocializante da

diferenciação das penas. O modelo proposto traz, como inovação, a individualização das

penas, que tinha um caráter “reeducativo”. Franz von Liszt foi seu expoente e elaborou um

modelo em que a pena podia assumir um caráter ressocializador, neutralizador ou

intimidatório, de acordo com os diversos tipos de infratores: “adaptáveis, inadaptáveis ou

ocasionais” (2002, p.216).

Segundo Ferrajoli, a neutralização, em Liszt, é entendida como “servidão da pena”,

com a rígida imposição de trabalho e sanções disciplinares consistentes em penas corporais. A

segregação celular poderia ser combinada com o escuro e com rigoroso jejum (2002, p.217).

As três doutrinas correcionais apresentadas refletem um modelo de Direito Penal máximo,

sem limites, com penas extremamente gravosas, visando à transformação, à neutralização da

personalidade do apenado ou a sua segregação. Nas três tendências, o condenado, não a

natureza do crime praticado, é colocado em primeiro plano ao se estabelecer a quantidade e

qualidade da pena.

Lembrando a fórmula Kantiana de que o homem deve ser tratado como “um fim em

si mesmo”, é possível afirmar que o fim “reeducativo” sustentado por tais tendências busca a

transformação do apenado de acordo com os interesses das classes que detêm o poder

econômico. Este é o significado prático da ressocialização, que em nada lembra os objetivos

de reintegração social do apenado, voltados a proporcionar seu retorno à liberdade em

condições de conviver e de ser respeitado no meio social.

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2-Direito Penal mínimo

Segundo Ferrajoli, o Direito Penal tem por objetivo impedir o exercício das próprias

razões. No delito, assim como na vingança, ocorre uma violência que é solucionada, via de

regra, pelo uso da força. e ambos constituem-se exercício das próprias razões. No delito, é a

força do réu; na vingança, a força do ofendido. A função da lei penal está voltada ao

monopólio destas forças visando à proteção do fraco contra o mais forte. Na lei penal, o

elemento proibitivo é dirigido a prevenir a prática dos delitos, ou seja, o exercício das próprias

razões expresso pela infração. O elemento punitivo, por sua vez, o exercício das próprias

razões que a vingança expressa (2002, p.270).

O Direito Penal, portanto, é dirigido a proteger os direitos fundamentais tanto do

ofendido quanto do réu, conforme informa o autor:

Garantismo, com efeito, significa precisamente a tutela daquels valores ou direitos fundamentais cuja satisfação, mesmo contra os interesses da maioria, constitui o objetivo justificante do direito penal, vale dizer, a imunidade dos cidadãos contra a arbitrariedade das proibições e da pessoa do imputado e, consequentemente, a garantia da sua liberdade, inclusive por meio do respeito a sua verdade. É precisamente a garantia destes direitos fundamentais que torna aceitável por todos, inclusive pela minoria formada pelos réus e pelos imputados, o direito penal e o próprio princípio majoritário (2002, p.271).

O garantismo expressa um modelo penal baseado na necessidade de previsão legal

do delito e da pena, na imputabilidade e culpabilidade do autor do delito, na necessidade da

produção probatória de comprovação de autoria e materialidade, num processo dirigido por

um juiz imparcial em procedimentos previamente estabelecidos pela lei. É o modelo que

impõe limites ao poder punitivo do Estado, identificado, por isso, com o Estado de Direito. Os

modelos autoritários, ao contrário, são caracterizados pela ausência de alguns destes limites,

identificando-os, portanto, a Estados absolutos ou totalitários.

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Ferrajoli chama a estes dois extremos “direito penal mínimo” e “direito penal

máximo”, entre os quais existem diversos sistemas intermediários. O Direito Penal mínimo

pressupõe o máximo de tutela dos direitos dos cidadãos com relação ao arbítrio estatal e a um

ideal de certeza de que nenhum inocente seja punido, certeza esta que é garantida pelo in

dubio pro reo.

O minimalismo penal tem como elemento orientador a utilização cada vez menor da

pena privativa de liberdade, propondo a utilização cada vez maior das penas alternativas. O

modelo representa uma fase transitória, segundo alguns autores, rumo ao abolicionismo penal,

ainda impraticável no contexto social da atualidade, mas de qualquer modo, marcando a

necessidade de se iniciar uma fase de redução do Direito Penal, conforme a informação de

Zaffaroni:

Em nossa opinião, o direito penal mínimo é, de maneira inquestionável, uma proposta a ser apoiada por todos os que deslegitimam o sistema penal, não como meta insuperável e, sim, como passagem ou trânsito para o abolicionismo, por mais inalcançável que este hoje pareça (...) (2001, p.106)

Alessandro Baratta defende uma política de redução do Direito Penal, como forma de

contenção da criminalidade, conforme afirma:

Defesa, antes de tudo, do direito penal em face dos ataques realizados em nossos dias contra as garantias liberais asseguradas nas constituições dos Estados de direito. Defesa, em segundo lugar, em face do próprio direito penal, no que signifique contenção e redução de seu campo de intervenção tradicional e, sobretudo de seus efeitos negativos e dos custos sociais que pesam, particularmente, sobre as camadas mais débeis e marginalizadas do proletariado, e que contribuem, desta forma, para dividi-lo e para debilitá-lo material e politicamente. Defesa, finalmente, através do direito penal, na medida em que, no momento, pode ser ainda considerada como uma resposta legítima ante a falta de alternativas para resolver os problemas sociais, no marco de um modelo integrado (1982, p. 222).

Para o autor, o funcionamento do sistema penal reflete a distribuição desigual de

recursos e de poderes no meio social, bem como as relações de subordinação e de exploração.

Segundo Baratta, a transformação do sistema penal depende de uma transformação de tais

relações, a partir da qual os interesses das classes subalternas possam ganhar espaço.

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Baratta não acredita que o abolicionismo seja possível na sociedade atual, por isso

seus estudos se reduzem a definir critérios de transição do paradigma vigente para uma futura

superação do sistema penal, considerando-se os custos sociais e os efeitos nocivos do cárcere

(1982, p. 221).

A prisão é vista como um instrumento ineficaz e incompatível com o princípio da

dignidade da pessoa humana, estruturando-se como uma violência legitimada pela legalidade

que a fundamenta, cujas finalidades são irrealizáveis simplesmente porque não foi criada para

cumprir os princípios sobre os quais se constituiu. Por isso, somente deve ser aplicada para

aqueles casos em que seja realmente inevitável, em que não seja viável a utilização de uma

pena alternativa.

Assim, a perspectiva minimalista, amplamente difundida nos países europeus, tem

por base os princípios da descriminalização e da intervenção mínima, segundo o qual, só se

impõe a restrição ou privação de liberdade do acusado naqueles casos extremos em que não

seja possível outra forma alternativa de solução de conflitos (1982, p.219).

De qualquer modo, é importante observar que a aplicação do direito penal mínimo,

como elemento de descriminalização e de contração do sistema penal, implica em grandes

mudanças sociais, ainda que menos radicais do que aquelas que seriam necessárias à

implantação do abolicionismo penal. Por isso, afirma Zaffaroni que o direito penal mínimo é

um “momento do caminho abolicionista” (2001, p.105).

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3- Doutrina abolicionista

Ao contrário das propostas de justificação do Direito Penal afirmadas pelas doutrinas

retributivistas e utilitaristas da pena, o abolicionismo e o direito penal mínimo têm em comum

a proposta de deslegitimação do sistema penal.

Conforme já analisado anteriormente, o minimalismo penal é entendido pelos

abolicionistas como um trajeto a ser percorrido até que um dia seja possível a convivência

numa sociedade em que os conflitos possam ser solucionados em instâncias alternativas ou

informais, uma vez que a busca é pela supressão de todo o sistema penal.

Segundo Ferrajoli (2002, p.205), a expressão “abolicionismo” comporta inúmeras

vertentes, todas elas negando qualquer justificação à pretensão punitiva do Estado. Afirma o

autor que as mais radicais, como a defendida por Max Stirner, negam qualquer tipo de

coerção, tanto a coerção do Estado como aquela que possa advir do meio social.

Fundamentadas no “desvalor moral dos julgamentos”, por serem realizados “por homens

contra homens”, tratou-se de uma proposta que permaneceu isolada.

Outras contestam a pena por entenderem-na uma medida inútil no combate à

criminalidade, produto de problemas sociais. Escritores anárquicos como Goldwin, Bakunin e

Kropotkin identificam a infração como produto de patologias sociais. Por tal razão, tais

doutrinas defendem a eliminação da pena e do direito penal, porque inúteis, sem fazer

qualquer objeção a outras formas de controle social (2002, p.206).

Na perspectiva ferrajoliana, os modelos de sociedade adaptáveis ao abolicionismo

seriam aqueles da sociedade selvagem, sem regras, ou aquele das sociedades disciplinares,

nas quais os conflitos seriam resolvidos por mecanismos “ético-pedagógicos”, de qualquer

forma revelando uma tendência utópica e impraticável nos termos propostos (2002, p.203).

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Não obstante a rigidez de tais críticas, Ferrajoli reconhece dois méritos na doutrina

abolicionista: favoreceu a autonomia da criminologia crítica e denunciou a arbitrariedade, os

custos e os efeitos nocivos do sistema penal.

A proposta de Ferrajoli parece tendente ao minimalismo penal e não ao

abolicionismo. Admite os efeitos danosos da prisão mas, ao mesmo tempo, identifica na pena

um instrumento assecuratório do acusado contra os arbítrios de outros meios extra-jurídicos

de controle da criminalidade que poderiam advir como decorrência da abolição penal,

conforme é possível aferir de sua leitura:

Um sistema penal é justificado se, e somente se, minimiza a violência arbitrária na sociedade. E atinge tal objetivo à medida que satisfaz as garantias penais e processuais do direito penal mínimo. Estas garantias se configuram, portanto, como outras condições de justificação do direito penal, no sentido que somente a atuação destas vale para satisfazer-lhes os objetivos justificantes (2002, p.276).

Conforme Zaffaroni (2001, p.98), o abolicionismo penal, representado por Louk

Hulsman, Thomas Mathiesen e Nils Christie, foi amplamente difundido pelos países europeus

nos últimos anos e inspirou os trabalhos de vários autores abolicionistas da atualidade. Seus

trabalhos se diferenciam pela metodologia e pela fundamentação filosófica que orientam suas

propostas.

Hulsman, por exemplo, defendeu a total abolição do sistema penal e sua substituição

imediata por esferas sociais alternativas de solução de conflitos. Mathiesen, seguindo uma

tradição marxista, propôs não apenas a abolição do sistema penal, mas de todas as instâncias

repressivas da sociedade, pois vinculava a existência dos sistemas repressivos à lógica

capitalista. Christie, na mesma linha, observava um caráter destrutivo nas relações do sistema

penal e um corporativismo perigoso nas relações verticais deste sistema. Afirmava que os

excluídos do mercado de trabalho eram fortes candidatos para o sistema punitivo, razão pela

qual seus estudos representaram uma importante contribuição para a compreensão das porções

marginais da sociedade (ZAFFARONI, 2001, p.98).

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Em sua obra Em busca das penas perdidas – a perda da legitimidade do sistema

penal, Zaffaroni defende a deslegitimação do sistema penal, uma vez que este tem se

configurado como instrumento ineficaz de controle social, preconizando a implantação de

radicais mudanças na sociedade, através de políticas públicas de educação e minimização das

diferenças sociais, antes da total abolição do sistema penal. Por esta razão, sua proposta se

aproxima, em alguns pontos, do minimalismo penal defendido por Baratta.

Para Zaffaroni, a ausência de legitimidade do sistema penal é evidenciada na medida

em que ocorre uma hiper-valoração do plano abstrato em detrimento do concreto. Por tal

razão, os conceitos de “legitimidade” e de “legalidade” confundem-se na prática. Por

legitimidade do sistema penal, entende a “característica outorgada por sua racionalidade”

(2001, p.16). Enquanto o sistema penal extrai sua validade da legalidade formal, observa-se

uma evidente ilegitimidade no exercício do poder:

Isto porque, em sua ótica, o não-emprego dos mecanismos de solução entre as partes

em conflito, coloca o Estado na posição de ofendido, de forma que o sistema penal configure-

se como um exercício de poder verticalizado e centralizador, a demandar respostas das

porções marginais fundamentadas na perda de legitimidade do sistema penal e na supremacia

dos direitos humanos.

Segundo Zaffaroni, o desprestígio dos discursos jurídico-penais não se produziu de

forma abrupta, mas foi fruto de um longo processo. Conforme seu relato, Pasukanis via no

Direito um produto do capitalismo, defendendo a idéia de que os delitos constituem-se

problemas médico-pedagógicos, de forma que, para solucioná-los, não há porque se recorrer

ao sistema penal, perdendo o sentido, portanto, a sustentação da “forma jurídica”. Para os

frankfurtianos, as penas recaem sobre as porções marginais da sociedade, piorando suas

condições de existência e não cumprindo o discurso que as fundamentou. Quinney sustentou a

idéia de que o Direito Penal desapareceria com o advento do socialismo, já que é fruto da

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sociedade capitalista (2001, p.51-59). No interacionismo simbólico, Zaffaroni destaca a

“teoria da rotulação”, que denuncia a deslegitimação do sistema penal de modo mais evidente:

A tese central desta corrente pode ser definida, em termos muito gerais, pela afirmação de que cada um de nós se torna aquilo que os outros vêem em nós e, de acordo com esta mecânica, a prisão cumpre uma função reprodutora: a pessoa rotulada como delinqüente assume, finalmente, o papel que lhe é consignado, comportando-se de acordo com o mesmo. Todo o aparato do sistema penal está preparado para essa rotulação e para o reforço desses papéis (...). Com esta descrição, o discurso jurídico-penal ficou irremediavelmente desqualificado pela demonstração incontestável de sua falácia (...) (2001, p.60).

Embora seja partidário da deslegitimação do sistema penal, Zaffaroni não defende

um abolicionismo imediato. Para o autor, antes, é necessário trilhar o caminho do direito

penal mínimo, até que, um dia, seja viável a supressão do sistema penal.

4- Finalidades do cárcere na perspectiva foucaultiana

A discussão em torno da prisão e das finalidades da pena nos remete invariavelmente

ao pensamento e à obra de Michel Foucault. Não obstante tenha sido um crítico mordaz do

sistema prisional, Michel Foucault não pode ser considerado um abolicionista porque sua

discussão é estranha a esta relação. Para o autor, tudo se estabelece em torno das relações

entre saberes e poderes e da idéia de que as transformações sociais não ocorrem de cima para

baixo.

Em sua perspectiva, o poder não está centralizado nas macro-relações, mas nas bases,

onde se concentram os “micro-poderes” resultantes das relações cotidianas inter-pessoais. O

indivíduo está no centro do poder, de tal forma que todas as mudanças que se processam nas

estruturas sociais instituídas pelo saber do homem e no seu modelo de liberdade, estão

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vinculadas às modificações que ocorrem, ao longo da história, na sua própria maneira de

pensar.

Portanto, seu trabalho não contempla a discussão abolicionista, porque não vislumbra

solução nas macro-relações de poder. Tampouco defende a idéia de aprimorar os mecanismos

da prisão como instrumento de contenção da criminalidade, porque, em sua ótica, o problema

da prisão está em seu próprio fundamento. Simplesmente, não foi criada para funcionar.

É tônica na obra foucaultiana o uso da história para explicar a sociedade. No caso de

“ Vigiar e punir”, o autor percorre a evolução histórica do sistema penal, especialmente no

que diz respeito aos métodos utilizados pelo poder público para reprimir as práticas

criminosas ao longo do tempo.

A sua perspectiva é sempre a das classes marginalizadas da sociedade, entre elas, a

dos loucos e dos encarcerados. Sintetiza as finalidades das instituições destinadas a

internamento qualificando-as como um mecanismo utilizado para eliminar do grupo social os

elementos considerados nocivos e para excluir do ângulo de visibilidade o que não interessa

ser visto, conforme se afere da leitura de A história da loucura:

É evidente que o internamento, em suas formas primitivas, funcionou como um mecanismo social, e que esse mecanismo atuou sobre uma área bem ampla, dado que se estendeu dos regulamentos mercantis elementares ao grande sonho burguês de uma cidade onde imperaria a síntese autoritária da natureza e da virtude. Daí a supor que o sentido do internamento se esgota numa obscura finalidade social que permite ao grupo eliminar os elementos que lhe são heterogêneos ou nocivos, há apenas um passo. O internamento seria assim a eliminação espontânea dos “a-sociais” (2003, p.79).

Para o autor, a estrutura panóptica do sistema penitenciário constitui um “laboratório

do poder”, um mecanismo que aprimora o exercício das coerções sutis de uma vigilância

permanente, de um controle exaustivo por parte do Estado, visando a uma disciplina

hierarquizada, que torne os criminosos “dóceis e úteis” através de um trabalho preciso, com

técnicas e procedimentos especializados.

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Define a prisão como um “zoológico real”, em que o animal é substituído pelo

homem, produzindo nele a sensação de vigilância e visibilidade contínuas, que asseguram o

funcionamento automático do poder. É “o olhar que tudo vê”, sem ser ele mesmo visto (2003,

p. 168).

Entretanto, cumpre observar que, muito embora sua discussão não contemple solução

nas macro-relações de poder e não ofereça reflexões práticas sobre a supressão do sistema

penal, idéias abolicionistas surgem como inspiração e desdobramento natural da leitura de sua

obra.

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III. FUNÇÕES DA PENA NO DIREITO BRASILEIRO: TEORIA E

PRÁTICA

Em posse dos fundamentos constitucionais e das teorias da pena, é possível

identificar a fundamentação teórica que orienta o sistema penal no Brasil. A partir deste

levantamento, estabelecer-se-á um confronto entre a teoria e a realidade penitenciária

brasileira, visando a apurar se a execução penal aqui praticada viabiliza a readaptação social

do infrator, ou se tem cumprido um papel meramente retributivo.

Para tal análise, adota-se como parâmetro o sistema carcerário do Estado de São

Paulo em razão de as prisões paulistas abrigarem, hoje, mais da metade da população

carcerária brasileira, o que representa uma amostragem satisfatória para os efeitos da pesquisa

proposta.

1. Fundamentos da prisão

Em regra, os autores que defendem o abolicionismo e o minimalismo penal afirmam

que o problema da prisão está em sua própria origem.

Michel Foucault informa que a prisão, até o final do século XVIII, não tinha a

finalidade punitiva que se apresenta na atualidade. Seu papel era, na realidade, manter os

condenados sob a custódia do Estado, viabilizando a aplicação da pena que lhes fora

efetivamente imposta.

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Para o autor, a substituição dos suplícios judiciários pela prisão foi fruto de avanços e

retrocessos, acompanhando os processos históricos do poder e do saber a partir dos quais

surgiram as várias instituições sociais, conforme declara:

A forma prisão preexiste à sua utilização sistemática nas leis penais. Ela se constituiu fora do aparelho judiciário, quando se elaboraram, por todo o corpo social, os processos para repartir os indivíduos, fixá-los e distribuí-los espacialmente, classificá-los, tirar deles o máximo de tempo, e o máximo de forças, treinar seus corpos, codificar seu comportamento contínuo, mantê-los numa visibilidade sem lacuna, formar em torno dele um aparelho completo, de observação, registro e notações, constituir sobre eles um saber que se acumula e se centraliza (FOUCAULT, 2003, p. 195).

Durante o encarceramento, os presos suportavam verdadeiros suplícios corporais,

trabalhos forçados e todas as outras formas punitivas degradantes e cruéis, até que se

cumprisse, por fim, a pena capital.

Alguns historiadores relacionam sua origem às celas eclesiásticas da Igreja Católica,

instituídas para a punição das infrações religiosas na Idade Média, traduzindo a idéia da

“penitência”, origem da expressão “penitenciária” utilizada hoje.

Foucault esclarece que, na França, a prisão teve origem com as lettre-de-cachet,

utilizadas no regime monárquico-absolutista do século XVIII, que consistiam em uma ordem

do rei determinando alguma conduta dos cidadãos. Outras vezes, consistia em um instrumento

de repressão moral e religiosa e, por fim, havia as lettre-de-cachet com finalidade punitiva,

que resultava na prisão do infrator, de qualquer forma, sempre expressando o poder real:

A prisão, que vai se tornar a grande punição do século XIX, tem sua origem precisamente nesta prática pára-judiciária da lettre-de-cachet, utilização do poder real pelo controle espontâneo dos grupos. Quando uma lettre-de-cachet era enviada contra alguém, esse alguém não era enforcado, nem marcado, nem tinha de pagar uma multa. Era colocado na prisão e nela devia permanecer por um tempo não fixado previamente (2003: 98).

Segundo o relato foucaultiano, até o século XVIII a justiça penal foi marcada por

verdadeiras “ostentações de suplícios”: roda, guilhotina, fogueiras, em cujos excessos se

investia todo o poder do soberano e daqueles que detinham o poder econômico.

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Foi uma época em que as penas corporais foram levadas aos seus limites, razão pela

qual foi também um período marcado por protestos contra as atrocidades praticadas e por

projetos de reforma das teorias penais.

Com os ideais da reforma penal, a forma punitiva idealizada pelos filósofos era

fundamentada num afrouxamento da execução penal e na conseqüente humanização das

punições, com base no contrato social, conforme relata Foucault:

Na passagem do século XVIII para o século XIX, uma nova legislação define o poder de punir como uma função geral da sociedade que é exercida da mesma maneira sobre todos os seus membros, e na qual cada um deles é igualmente representado; mas ao fazer da detenção a pena por excelência, ela introduz processos de dominação característicos de um tipo particular de poder (2003, p.195).

Com o panoptismo idealizado por Bentham, inicia-se uma fase a que Foucault

chamou de ortopedia social, caracterizada por uma prática disciplinar de vigilância e controle

contínuos:

Daí o efeito mais importante do Panóptico: induzir no detento um estado consciente e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento automático do poder. Fazer com que a vigilância seja permanente em seus efeitos, mesmo se é descontínua em sua ação; (...) (2003, p.166).

O panóptico materializou o modelo que norteou as fábricas, hospitais, escolas e

prisões que foram surgindo na passagem do século XVIII para o século XIX, constituindo

uma sociedade a que Foucault chamou “sociedade disciplinar”.

Na concepção foucaultiana, a disciplina é uma forma de poder, que se exerce por um

conjunto de procedimentos e de técnicas, uma “anatomia”, utilizando sua linguagem,

praticadas pelas diversas instituições de internamento como penitenciárias, escolas, hospitais

e fábricas (2003, p.177).

Por tal razão, para Foucault, a prisão não foi criada para promover a contenção da

criminalidade. Serve tão-somente como depósito daqueles indivíduos considerados nocivos ao

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meio social, os quais são qualificados como força produtiva e sobre os quais recaem todos os

arbítrios do poder:

A grande maquinaria carcerária está ligada ao próprio funcionamento da prisão. Podemos bem ver o sinal dessa autonomia nas violências “inúteis” dos guardas ou no despotismo de uma administração que tem os privilégios das quatro paredes. Sua raiz está em outra parte: no fato, justamente, de que se pede à prisão que seja “útil”. (...). E para essa operação, o aparelho carcerário recorreu a três grandes esquemas: o esquema político moral do isolamento individual e da hierarquia; o modelo econômico da força aplicada a um trabalho obrigatório; o modelo técnico médico da cura e da normalização (2003, p.208)

Em decorrência da pobreza que se disseminou no continente europeu, na Idade

Moderna, com o aumento da criminalidade e dos infratores e com o desenvolvimento do

capitalismo, a mão-de-obra gratuita da população carcerária passou a ser utilizada, de tal

modo que a sua manutenção atendia aos interesses capitalistas, por este duplo aspecto:

segregação e aproveitamento econômico da população carcerária. Este foi um dos principais

fatores relacionados ao desenvolvimento da prisão como forma punitiva, muito mais do que

os ideais de humanização das penas propostos por Beccaria.

2- Finalidades da pena na legislação brasileira

Até o início da colonização do Brasil, o Direito Penal praticado entre as tribos

indígenas aqui existentes baseava-se no talião, com práticas próprias da vingança privada.

Com a chegada dos colonizadores, as relações sociais passaram a ser regidas basicamente de

acordo com o Direito Consuetudinário Português, sendo introduzido, posteriormente, o

período das ordenações, com práticas arbitrárias, cruéis, desproporcionais ao fato e variáveis

de acordo com a classe social do apenado (SHECAIRA, 2002, p.36).

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Segundo Fernando Salla, em As prisões em São Paulo, durante o período das

ordenações, as prisões faziam parte das câmaras municipais, prédios militares e fortes,

normalmente no andar térreo das construções, onde ficavam presos não apenas criminosos,

mas também escravos fugitivos e desordeiros em condições subumanas. A prisão só passou a

ser efetivamente utilizada como pena a partir do Código Criminal do Império em 1830, que

trouxe a forma prisão simples e prisão com trabalho, visando a aproveitar a mão-de-obra do

cárcere (1999, p.41).

Realizando um salto no tempo, a Proclamação da República no Brasil legou ao

universo jurídico o Código Penal de 1890, que estabeleceu a abolição da pena de morte e a

separação classificatória dos presos, reduzindo a pena perpétua ao período de trinta anos,

instituindo os institutos da prescrição e da remição de penas (DOTTI, 1998, p. 55).

Anos depois, com a Constituição Federal outorgada na vigência do autoritarismo do

Estado Novo, ao final da década de 30, viu-se projetado o Código Penal de 1940, em vigência

ainda hoje no ordenamento jurídico brasileiro. O novo diploma adotou outras formas

punitivas acessórias como a perda de função pública e a interdição temporária de direitos, mas

a detenção e a reclusão continuaram sendo a base do sistema de penas.

Em 1984, a legislação penal sofreu algumas modificações. A lei 7209/84 modificou

o Código de Processo Penal, a parte geral do Código Penal e a Lei 7210/84 (Lei de Execução

Penal) passou a disciplinar a pena de prisão. Com a reforma, o artigo 32 do Código Penal

passou a dispor sobre as penas privativas de liberdade, a restrição de direitos e a pena

pecuniária, além de criar o sistema progressivo de cumprimento de penas, o livramento

condicional e o sursis.

Em 1988, com a Constituição Federal previu novas sanções penais, como a perda de

bens e valores. A Lei 9714/98 introduziu novas penas restritivas de direito, ao alterar o artigo

43 do Código Penal, que instituiu a prestação pecuniária, a perda de bens e valores, a

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prestação de serviços à comunidade ou entidades públicas, a interdição temporária de direitos,

a limitação de fim de semana, prevendo a possibilidade da substituição da pena privativa de

liberdade, satisfeitas determinadas condições, pelas novas modalidades.

Não obstante as modificações realizadas na legislação penal brasileira, a prisão

nunca se eximiu da idéia de violência, de retribuição e de segregação daqueles indivíduos

considerados a-sociais. O sistema penitenciário tem sido objeto de vários debates,

representando um dos mais graves problemas sociais da atualidade.

Os elevados índices de reincidência e a realidade que tem sido frequentemente

denunciados pela imprensa suscitam a hipótese de que segregar os infratores nas prisões não

tem sido instrumento eficiente para se atingir os fins sociais previstos na legislação penal.

Hoje, o cumprimento das penas privativas de liberdade é disciplinado pela

Constituição Federal, pelo Código Penal e regulamentado pela Lei 7210/84, a Lei de

Execuções Penais (LEP).

O Código Penal brasileiro dispõe:

O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime: I- as penas aplicáveis dentre as cominadas; II- a quantidade de pena aplicável, dentro dos limites previstos; III- o regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade; IV- a substituição da pena privativa da liberdade aplicada, por outra espécie de pena, se cabível (CP, artigo 59).

O artigo 1º da Lei de Execução Penal, por sua vez, destaca: “A execução penal tem

por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições

para a harmônica integração social do condenado ou do internado".

Da leitura do artigo 59 do Código Penal, apreende-se que, no momento da aplicação

da pena, esta assume um caráter retributivo, no sentido de reprovar o mal do crime, e

utilitarista, constituindo-se uma pena exemplar.

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Da análise do artigo 1º da Lei de Execução Penal, observa-se firmada, ainda que

formalmente, a finalidade de prevenção especial positiva, no sentido de priorizar a integração

social do apenado.

Na prática, a hipótese é de que a pena de prisão, no Brasil, tem cumprido somente o

caráter retributivo e de prevenção especial negativa, aqui entendida no sentido de promover a

mera clausura do apenado, deportando-o do meio social, “enjaulando-o”, sem a oferta de

condições propícias a sua reintegração social.

Teoricamente, a finalidade das penas privativas de liberdade é a reintegração social

dos egressos, controle e prevenção da criminalidade. Entretanto, existe um enorme vazio entre

a teoria e a realidade. Na prática, as condições humanas e ambientais do cárcere no Brasil

configuram-se como a mola propulsora para a profissionalização criminal dos apenados.

Um dos reflexos do universo interno das prisões é a reincidência. Ao retornarem à

liberdade, os egressos são vítimas freqüentes de preconceitos, porque a comunidade também

reconhece a ineficiência do sistema. Estigmatizados pela prisão, não conseguem emprego e

retornam à criminalidade, muitas vezes prestando serviços para os traficantes que conheceram

no cárcere, para quem devem favores.

No Estado de São Paulo, Estado que abriga mais da metade da população carcerária

brasileira, os índices oficiais de reincidência, conforme apontam os dados da Secretaria de

Administração Penitenciária, apurados pela FUNAP, diferem de acordo com o regime de

cumprimento de pena. O regime disciplinar diferenciado (RDD) apresenta o maior índice,

48%, enquanto que o regime fechado produz 42% de reincidência e o semi-aberto, 37%.

Estes índices já são considerados altos, ainda que não sejam números compatíveis

com a realidade, muito mais pavorosa do que revelam os percentuais. A realidade a que

assistimos em nosso cotidiano, já seria suficiente para demonstrar que a prisão é uma fábrica

de infratores profissionais.

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Foucault afirmava que a prisão sempre produzirá delinqüentes em razão das

condições a que submete a sua população. Em suas pesquisas, o autor fez um levantamento

histórico visando a apurar quantos daqueles que passaram pelas primeiras penitenciárias e

casas de correção instituídas na passagem do século XVIII para o século XIX, voltaram a

praticar crimes. Os resultados foram apresentados em sua obra Vigiar e punir:

A detenção provoca a reincidência; depois de sair da prisão, se têm mais chance que antes de voltar para ela, os condenados são, em proporção considerável, antigos detentos; 38 % dos que saem das casas centrais são condenados novamente e 33% são forçados; de 1828 a 1834, de cerca de 35.000 condenados por crime, perto de 7.400 eram reincidentes (ou seja, um em cada 4,7 condenados); em mais de 200.000 contraventores, quase 35 mil o eram também (1 em cada 6); no total, um reincidente para 5,8 condenados; em 1831, em 2.174 condenados por reincidência, 350 haviam saído dos trabalhos forçados, 1682 das casas centrais, 142 das 4 casas de correção submetidas ao mesmo regime que as centrais. E o diagnóstico torna-se cada vez mais pesado ao longo de toda a monarquia de julho: em 1835, contam-se 1486 reincidentes em 7.223 condenados criminosos; em 1839, 1749 em 7858; em 1844, 1821 em 7195. Entre os 980 detentos de Loos havia 570 reincidentes e, em Melun, 745 dos 1088 prisioneiros. A prisão, conseqüentemente, em vez de devolver à liberdade indivíduos corrigidos, espalha na população delinqüentes perigosos (2003, p.221).

Com relação à realidade brasileira, a estrutura penitenciária aqui implantada tem

função meramente simbólica do ponto de vista social. Enquanto instituição, tudo parece

funcionar: torres, vigias, grades, o olhar do Estado que “tudo vê”, sem ser visto. Entretanto, ao

se examinar os altos índices de reincidência, vê-se comprovada a tese de Foucault de que as

finalidades da prisão não passam de utopia. No cárcere, o condenado tem sido preparado para

a prática de crimes mais graves, com um alto custo operacional para os cofres públicos.

O Estado, pressionado pela opinião pública e pela mídia, elabora leis, aumenta o rigor

das penas e constrói novos estabelecimentos penitenciários, como tentativa de organizar-se

enquanto poder controlador.

Entretanto, diante dos elevados índices de reincidência, a hipótese é de que o sistema

penitenciário, como se apresenta na atualidade, não é eficaz do ponto de vista social. Não

reintegra socialmente o egresso, ao contrário, serve de degrau para o crescimento na

criminalidade, afrontando, flagrantemente, o princípio da dignidade da pessoa humana. Trata-

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se de um sistema que, na realidade, pune quem age corretamente, na medida em que devolve à

sociedade indivíduos especializados no crime.

A fim de comprovar tal hipótese, serão analisados os principais fatores relacionados

ineficácia do sistema no Brasil, adotando-se como parâmetro a estrutura carcerária paulista,

conforme informado anteriormente.

3. Dignidade humana: pedra angular do sistema penal brasileiro

A dignidade da pessoa humana, conforme já analisado nos capítulos precedentes, é a

pedra angular de todo o sistema penal, constituindo-se no fundamento do direito de punir do

Estado. A hipótese é de que este princípio tem sido flagrantemente violado na execução das

penas privativas de liberdade no Brasil.

A integridade física e moral dos detentos são previstas como cláusula pétrea na

Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso XLIX . O artigo 38 do Código Penal, em

consonância com os valores constitucionais, dispõe que o preso conserva todos aqueles

direitos não atingidos pela perda da liberdade, como, por exemplo, alimentação suficiente e

vestuário, proporcionalidade na distribuição do tempo para o trabalho, descanso e recreação,

assistência à saúde, jurídica e à educação.

Teoricamente, ao ser condenado à pena de prisão, o réu tem restrita apenas a sua

liberdade, mas, na prática, o sentenciado é privado de vários direitos fundamentais, em

especial, ao mandamento constitucional da dignidade humana. Os valores preconizados pela

Constituição Federal não são observados na rotina carcerária. A prisão submete o detento a

condições de superpopulação, ócio, promiscuidade e violência, desenvolvendo nele um

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sentimento intenso de revolta e de baixa-estima, incompatíveis com as finalidades de

reintegração social.

A começar pelas instalações carcerárias. A Lei de Execução Penal dispõe que o preso

deve ficar isolado durante o repouso noturno, em cela individual com dormitório, aparelho

sanitário e lavatório (artigo 88). A unidade celular deve preencher os requisitos de salubridade

e possuir área mínima de seis metros quadrados (§ único do artigo 88).

Um breve olhar sobre as instalações da maioria dos estabelecimentos penitenciários

brasileiros permite a constatação de que o encarceramento é incompatível com o valor da

dignidade da pessoa humana. As condições ambientais das celas são péssimas. A elevada

umidade, a precária circulação de ar, a falta de luminosidade e de água são fatores que,

associados à superlotação das celas, fazem do espaço carcerário um local sujo, insalubre e

propício ao desencadeamento de diversas epidemias e enfermidades.

Oferecer instalação higiênica, assistência médica e odontológica adequadas aos

presos, não significa oferecer-lhes “regalias”. São direitos fundamentais dos presos, inerentes

às circunstâncias que viabilizam a sobrevivência humana. Se a reeducação social do apenado

não for possível nestas condições, como o será tratando-o como um animal enjaulado?

4. Superlotação carcerária e escassez de funcionários

Estabelecendo um confronto entre as disposições legais e a realidade, observa-se que

os requisitos mínimos da boa condição penitenciária, preconizados pela legislação penal

brasileira estão longe de serem cumpridos.

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Para esta constatação, basta um breve olhar sobre as prisões existentes no país. No

Estado de São Paulo, os estabelecimentos carcerários estão subordinados à Secretaria de

Administração Penitenciária do Estado. Atualmente, existem cento e vinte unidades prisionais

na capital e interior paulista, divididas em categorias distintas. Em regra, têm capacidade para

abrigar aproximadamente setecentos e cinqüenta presos, número este que, na maioria dos

casos, é ultrapassado em centenas.

Segundo dados oficiais da Secretaria de Administração Penitenciária, a estatística de

junho de 2006 apontou uma população carcerária de cento e quarenta e três mil, trezentos e

oitenta e quatro presos no Estado de São Paulo, número este que distribuído entre as cento e

vinte unidades prisionais existentes aponta claramente o problema da superlotação. Diante

desta superpopulação, a área mínima de seis metros quadrados por preso, estabelecida pelo

artigo 88 da LEP fica num plano imaginário, muito distante da realidade.

De acordo com levantamento de dados da Secretaria Nacional de Segurança Pública,

atualmente há cinco mil, quinhentos e quarenta condenados cumprindo penas em regime

fechado e que já poderiam ser contemplados com o benefício da progressão da pena, passando

ao regime semi-aberto e desafogando os estabelecimentos compactos. Entretanto, estes

apenados continuam a ocupar vagas nas penitenciárias em razão de não havê-las em colônias

penais agrícolas, industriais e similares.

O problema da superlotação carcerária é agravado pela escassez de funcionários.

Trinta mil agentes públicos integram a Secretaria de Administração Penitenciária, revelando

uma média de quatro funcionários para cada preso, sendo que a maior parte exerce funções

administrativas.

O número de agentes penitenciários, que são aqueles que têm um contato mais direto

com os presos, é mínimo se comparado ao número de detentos e o relacionamento entre eles é

muito complicado. Mal-preparados, mal-remunerados e mal-equipados pelo Estado, além de

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conviverem com a tensão comum ao ambiente, têm como rotina diária transitar entre o poder

Estatal e o poder dos grupos formados pela população carcerária.

Cumprindo uma jornada de trabalho desgastante, remunerada com baixíssimos

salários, em horários de folga, ocupam-se com atividades informais para garantir seu sustento

e de sua família. Os funcionários que não se rendem às pressões das organizações criminosas

também não passam de vítimas do sistema. Os demais representam terreno fértil à corrupção,

mecanismo que alimenta o poder das facções que atuam no interior das prisões e um dos

principais fatores que inviabiliza a reabilitação social do infrator.

5. Classificação do apenado e exame criminológico

Quanto à classificação dos presos e ao exame criminológico, a Lei de Execuções

Penais dispõe que os presos devem ser classificados segundo os seus antecedentes criminais e

personalidade, adequando a pena ao condenado e separando os presos reincidentes dos

primários. Assim, o exame criminológico, realizado de maneira adequada, possibilitaria uma

individualização do tratamento penal. Cada estabelecimento penitenciário deveria possuir

uma comissão técnica composta por psiquiatras, psicólogos e assistentes sociais para tal

finalidade.

Na prática, estas juntas técnicas não existem. Quando existem, os profissionais

acabam ocupando posições antagônicas, uma vez que sofrem cobranças constantes: de um

lado, por parte da sociedade e da instituição prisional que exige deles posturas mais

repressivas, e de outro, da população carcerária, pois de seu parecer depende a manutenção ou

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não do preso no sistema carcerário. Considerada a superlotação, a separação classificatória

dos presos é praticamente inviável na maioria dos estabelecimentos prisionais do país.

Foucault, crítico mordaz do sistema prisional, via no exame um dos mecanismos de

exercício do poder. Para o autor, o sucesso do poder disciplinar da prisão estaria na aplicação

deste procedimento:

Finalmente, o exame está no centro dos processos que constituem o indivíduo como efeito e objeto de poder, como efeito e objeto de saber. É ele que combinando vigilância hierárquica e sanção normalizadora, realiza as grandes funções disciplinares de repartição e classificação, de extração máxima das forças e do tempo, de acumulação genética contínua, de composição ótima das aptidões (2003, p. 160).

Em sua perspectiva, a disciplina é uma técnica específica do poder que se realiza pela

sanção normalizadora e pela vigilância contínua combinados ao exame, diferenciando os

indivíduos e qualificando-os como força produtiva.

Não obstante a rigidez de sua análise, no contexto carcerário brasileiro, entende-se

que esta classificação seja uma medida essencial no sentido de se evitar o contato de

infratores ocasionais, que praticam crimes menos graves, com aqueles que são “profissionais”

na prática criminosa, minimizando-se os efeitos negativos do cárcere e evitando-se a

reprodução da delinqüência.

6. Assistência médico-psicológica

No que diz respeito à assistência à saúde, a Lei de Execuções Penais dispõe, em seu

artigo 14, sobre a obrigatoriedade de se assegurar este direito ao preso. Na prática, este é mais

um aspecto que descortina as barbáries do sistema.

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O ambiente prisional, em regra, é insalubre, promíscuo e violento o que desencadeia

a disseminação rápida de algumas doenças, como as dermatites, problemas odontológicos,

ortopédicos, infecções gerais e, em especial, as respiratórias.

Conforme demonstram as estatísticas oficiais da Secretaria de Administração

Penitenciária do Estado de São Paulo, o índice de ineficácia do tratamento oferecido nos

estabelecimentos penitenciários é muito elevado. O mais alto é nos casos de AIDS: 92% dos

presos submetidos a tratamento não têm melhora dos sintomas. Em segundo lugar, os

tratamentos ortopédicos: 55 % de ineficácia. As doenças respiratórias vêm em seguida: 47%

dos presos submetidos à assistência médica do estabelecimento não obtêm melhora no quadro.

De acordo com as mesmas fontes, no ano de 2005, ocorreram trezentos e cinqüenta e

oito mortes naturais. Até 31 de maio de 2006 já contamos cento e cinqüenta e três registros.

Embora passíveis de dúvidas, estes números indicam que, no tocante às condições

sanitárias e de assistência médica, o sistema prisional vem falindo em progressões alarmantes.

A saúde emocional dos presos também é constantemente ameaçada em razão das

condições humanas e ambientais das prisões. O ócio, a violência, o medo, a insalubridade do

espaço carcerário são fatores alimentam nos internos um sentimento constante de revolta, o

que é incompatível com qualquer proposta de reeducação social.

Essa idéia pode ser demonstrada pelo número de suicídios cometidos pelos presos.

Segundo aponta a estatística oficial do ano de 2005, foram registrados quatorze suicídios nas

prisões paulistas. Em 2006, até 31 de maio já havia treze registros.

Este cenário fúnebre constitui um dos efeitos mais intensos do panótico. A prisão

encerra práticas que atuam diretamente sobre a “alma” do apenado. Mesmo aquelas

aparentemente inofensivas, são dotadas de grande poder destrutivo. Castigos físicos e

humilhações morais são procedimentos típicos realizados não apenas por agentes públicos que

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agem com abuso de poder, mas pelos próprios grupos que se formam entre os integrantes da

população carcerária.

Estes fatores desencadeiam diversos distúrbios emocionais que passam da depressão

a verdadeiros surtos psicóticos, agravados pelo uso de substâncias entorpecentes. Com

tratamento psicológico inadequado, quando existente, os apenados optam pela extinção da

própria vida, como forma de se livrar de um castigo que lhe “tripudia” a alma ou como forma

de punir, pela culpa, todos aqueles que, de uma forma ou de outra, sejam “responsáveis” pelo

seu “inferno em vida”. Assim pensam os suicidas.

7. Violência

Um outro aspecto relevante que não se pode desconsiderar ao se fazer uma análise

sobre o sistema prisional diz respeito à violência que se alastra pelas prisões brasileiras. O

ambiente hostil a que são submetidos aqueles que ingressam no sistema prisional afronta

flagrantemente o que está disposto como cláusula pétrea na Constituição Federal de 1988: a

integridade física e moral dos detentos. Este é um dos principais fatores que fazem do cárcere

um multiplicador de criminalidade.

Segundo dados oficiais da Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de

São Paulo, de uma população carcerária de cento e nove mil, cento e sessenta e três presos,

considerada em 2004, houve vinte e nove mortes de natureza criminal e, em 2005, o cárcere

paulista já registrava nada menos que cinqüenta homicídios.

Em 2004, foram registradas quatro grandes rebeliões no Estado de São Paulo. Em

2005, este número foi triplicado: treze grandes rebeliões. Em 2006, até 20 de junho, o cárcere

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paulista já contava dezessete registros de grandes proporções, totalizando cento e cinqüenta e

nove, quando se computam as de menor porte.

O relacionamento entre apenados e funcionários, em regra, é circundado de violência

ou, no mínimo, de ameaças veladas. Trata-se de uma relação tensa que inviabiliza qualquer

projeto de recuperação da delinqüência e de controle da criminalidade. A prisão torna

inexeqüível a reabilitação social do apenado, alimentando nele um sentimento constante de

revolta e tornando cada vez mais invencível o seu comportamento. Foucault abordou

amplamente esta questão:

Nos últimos anos, houve revoltas em prisões em muitos lugares do mundo. Tratava-se bem de uma revolta, ao nível dos corpos, contra o próprio corpo da prisão. O que estava em jogo não era o quadro rude demais ou ascético demais, rudimentar demais ou aperfeiçoado demais da prisão, era sua materialidade na medida em que ele é instrumento e vetor de poder; era toda essa tecnologia do poder sobre o corpo, que a tecnologia da ‘alma’ – a dos educadores, dos psicólogos e dos psiquiatras – não consegue mascarar nem compensar, pela boa razão de que não passa de um de seus instrumentos. (2003, p. 29).

Para exemplificar a complexa rede de relações e de poderes que se desenvolvem na

comunidade carcerária, observe-se o depoimento pessoal de Z. P. A. S., egresso do sistema,

ao ser indiciado por prática de motim de presos: “na prisão, você é castigado por tudo e por

todos, pelo que fez e pelo que não fez. Começou com um “sangue-bom” colocando fogo no

colchão e mandando todo mundo sair pra fora da cela, dizendo que quem não obedecesse

morreria ali mesmo. Saí da cela e fiquei quieto no pátio para não ser morto pelo colega e hoje

estou aqui sendo punido porque não quis morrer naquele dia”.

O depoimento deste apenado demonstra como vivem os presos e, como muitos, a

carreira do entrevistado começou com pequenos furtos como garantia ou da própria

sobrevivência, em razão do desemprego, ou como conseqüência do círculo vicioso do tráfico

de entorpecentes.

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Na prisão, em razão da superpopulação, a separação classificatória dos internos,

muitas vezes é inviável. Os que praticaram pequenos delitos acabam tendo contato com

infratores profissionais e aprendem a prática de crimes mais graves.

Buscando a proteção que não encontram na Administração Penitenciária, os

encarcerados agrupam-se entre si e esse agrupamento gera uma violência maior. Como

ocorreu nos primórdios da civilização, o agrupamento entre a população carcerária se dá até

por uma questão de sobrevivência, deflagrando verdadeiras guerras de facções.

Agrupados, o poder dos mais fortes se concentra e se torna mais efetivo. Agregam-

se, organizam-se, criam códigos de ética e de comportamentos, verdadeiras leis que se fazem

cumprir com rigor, mais eficazes e efetivas que as leis de nosso ordenamento jurídico.

Na concepção foucaultiana, a prisão favorece a organização hierarquizada de sua

população em razão das condições de existência a que submete os internos e pelo fato de que

todo o seu funcionamento se dá com abuso de poder. Ao experimentar um sentimento de

injustiça, o caráter do condenado torna-se cada vez mais indomável. Não há como curar

violência com violência.

As péssimas condições humanas e ambientais do ambiente carcerário estão entre os

principais motivos que desencadeiam a violência tanto dos presos contra os funcionários,

quanto dos funcionários contra os presos e destes entre si.

Privar alguém de sua liberdade já é um ato de violência, porém “justificada”, por

tratar-se de uma punição praticada pelo Estado contra um membro da sociedade que

descumpriu o contrato social, infringindo a lei penal. Entretanto, garantir segurança ao meio

social não deveria ser sinônimo de restringir o direito à dignidade humana dos presos.

Desde a segunda metade do século XVIII, surgiram protestos contra a violência

física como forma de punição. Filósofos, juristas e legisladores vêem a necessidade de uma

nova forma de penalizar alguém pela prática criminosa.

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Beccaria já defendia a moderação das penas, no sentido de que estas somente se

justificariam na medida em que alcançassem a finalidade de prevenir a prática criminosa:

Poderão os gritos de um desgraçado nas torturas tirar do seio do passado, que não volta mais, uma ação já praticada? Não. Os castigos têm por finalidade única obstar o culpado de tornar-se futuramente prejudicial à sociedade e afastar os seus concidadãos do caminho do crime (2001, p. 49).

A Lei de Execuções Penais dispõe em seu artigo 45, § 1º que as sanções disciplinares

a serem aplicadas não poderão colocar em risco a integridade física e moral dos apenados.

Não se tem uma estatística oficial que apresente o número de violências praticadas por

agentes públicos penitenciários contra os detentos e nem destes contra os primeiros. Mas

sabe-se que elas ocorrem.

A imprensa, no Brasil, está sempre a denunciar tais excessos. Um episódio marcante

ficou conhecido como “o caso do ônibus 174”, documentário produzido ao vivo no ano de

2000, no Rio de Janeiro, em que a omissão do Estado e a péssima atuação da Polícia fizeram

duas vítimas: a vítima em si do homicídio e o infrator “Sandrão”, sobrevivente do Massacre

da Candelária, que morreu asfixiado quando vários policiais se deitaram sobre ele para

“protegê-lo” da população enfurecida.

Sem contar a desastrosa ação policial que, em 1992, no pavilhão 9 do Complexo

Penitenciário do Carandiru, resultou na morte de 111 detentos, evento mundialmente

divulgado como o “Massacre do Carandiru”, além de tantas outras tragédias que ocorrem no

interior dos estabelecimentos prisionais do Brasil.

Estes são apenas exemplos dos abusos praticados por funcionários despreparados

para o trato com os infratores, sem falar nas últimas rebeliões e nos episódios terríveis que

envolveram o sistema prisional, exaustivamente divulgados pela mídia. Verdadeiras

catástrofes que vitimizaram não apenas a comunidade carcerária, mas vários agentes públicos

e a população em geral, como a super-rebelião liderada pelo PCC em maio de 2006 no Estado

de São Paulo.

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Os últimos fatos veiculados pela imprensa, a respeito do sistema prisional brasileiro,

representam mais um trágico efeito da superpopulação, do ócio e da violência que se alastram

pelas prisões no Brasil.

8. Trabalho e estudo como perspectivas de reinserção social

O trabalho e o estudo são peças fundamentais para perspectivas de reabilitação

social, ocupando seu tempo na prisão de forma sadia, isto porque a ociosidade gera no preso

um sentimento de inutilidade, incompatível com as finalidades de recuperação.

Contudo, o ócio se alastra pela maioria dos estabelecimentos penais do país e, tanto

no que diz respeito ao trabalho quanto ao estudo, o preso não é motivado a exercer tais

atividades, muito embora, na concepção de agentes públicos despreparados e preconceituosos,

“preso não trabalha porque é vagabundo”. Alguns sim, mas nem todos.

8.1. Estudo

Pesquisa oficial da Secretaria de Administração Penitenciária realizada pela FUNAP

apurou que a situação da educação dentro dos presídios é muito grave: 89% da população

carcerária masculina e 79% da feminina não se motivam aos cursos profissionalizantes

oferecidos na prisão. Até maio de 2006, apenas 16,40% dos presos paulistas participam dos

programas à disposição no sistema.

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A educação oferecida dentro dos presídios não viabiliza perspectivas futuras. As

condições em que as aulas são ministradas desestimulam tanto os professores quanto a

comunidade carcerária: o material didático é escasso e os locais, improvisados.

Quanto ao grau de escolaridade dos apenados, na ocasião de seu encarceramento, o

último censo penitenciário apontou que 83% dos presos paulistas, possuem apenas ensino

fundamental. Estes dados, de certo modo, refletem a realidade social do brasileiro.

Um dos principais fatores do alto nível de criminalidade é o desemprego e deste, um

mercado de trabalho cada vez mais exigente. Por esta razão, aqueles que não tiveram acesso à

cultura e à educação adequadas são condenados à exclusão.

Conforme revelam os dados oficiais, de um total de cento e um mil, duzentos e

cinqüenta e dois delitos julgados, 59 % foram relativos a crimes praticados contra o

patrimônio. Trata-se de um círculo vicioso: má-formação escolar, desemprego, criminalidade

e aumento da população carcerária. Evidentemente, nem todos os desempregados se entregam

a práticas criminosas, mas desemprego e criminalidade são fatores que estão intimamente

ligados.

8.2. Trabalho

Teoricamente, o trabalho constitui um direito do preso e um dever do Estado, com

finalidade pedagógica, no sentido proporcionar a reintegração social do apenado. Na prática,

as condições humanas e ambientais da prisão não viabilizam esta alternativa.

O trabalho do preso nos estabelecimentos carcerários brasileiros como instrumento

de reeducação social do apenado tem suscitado muitos debates em razão de possível violação

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do princípio da dignidade humana na exploração desta mão-de-obra e de favorecimento do

Estado no processo de seleção de empresas que contratam estes serviços.

8.3. Inserção do trabalho nas prisões

Segundo Michel Foucault, as primeiras prisões leigas surgiram no século XVI, como

o sistema Rasphuis de Amsterdan. Inaugurado em 1596, foi destinado, em princípio, aos

mendigos e malfeitores. Neste sistema, o trabalho era obrigatório aos presos, remunerado com

um salário e realizado em comum. As celas destinavam-se apenas ao repouso noturno. Com

relação aos horários e obrigações dos presos, a disciplina era rígida e a vigilância, contínua.

(FOUCAULT, 2003, p. 100).

O aprendizado profissional foi implantado na Casa de correção de Gand, na Bélgica,

final do século XVIII. O trabalho penal era considerado como instrumento de correção, mas,

na perspectiva foucaultiana, seu foco era o exercício do poder para dominação das massas e a

utilização econômica dos presos:

Essa pedagogia tão útil reconstituirá no indivíduo preguiçoso o gosto pelo trabalho, recolocá-lo-á por força num sistema de interesses em que o trabalho será mais vantajoso que a preguiça, formará em torno dele uma pequena sociedade reduzida, simplificada e coercitiva, onde aparecerá claramente a máxima: quem quer viver tem que trabalhar (FOUCAULT, 2003, p.100).

Nos Estados Unidos, o modelo de Ausburn, foi inaugurado nas primeiras décadas do

século XIX. Também conhecido por Silent System, o modelo seguia o mesmo paradigma das

casas de correção da Europa com uma inovação: o silêncio absoluto. O trabalho era aplicado

aos detentos em comum nas celas e a vigilância também era permanente (FOUCAULT, 2003,

p.101).

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A partir do século XIX, as prisões passaram a adotar o sistema progressivo de penas,

o Mark System.. Este sistema foi idealizado pelo diretor de um presídio da Ilha Norfolk, na

Austrália, para onde a Inglaterra encaminhava seus infratores mais perigosos. O modelo

consistia em um sistema de vales, cuja quantidade representava o trabalho e a boa conduta

exercida pelo preso. Para cada dia trabalhado, correspondia um número de vales, do qual eram

descontados os custos para a sua própria manutenção dentro do presídio. Caso o preso tivesse

uma má conduta, perdia um determinado número de vales. (CARVALHO FILHO, 2002, p.

27).

No Brasil, o cárcere só passou a ser efetivamente utilizado como pena a partir do

Código Criminal do Império em 1830. Neste período, foram inauguradas duas Casas de

Correção no Brasil, sendo uma em São Paulo, em 1852 e outra, no Rio de Janeiro em 1850.

Estes dois estabelecimentos tinham, em comum, oficinas de trabalho e um regulamento

baseado no sistema de Auburn (trabalho em silêncio e recolhimento nas celas à noite); eram

destinadas não apenas a presos sentenciados, mas também a presos correcionais, mendigos,

vadios, menores e escravos fugitivos. (CARVALHO FILHO, 2002, p.38).

8.4. Re-inserção social pelo trabalho: mito e realidade

Para Milchel Foucault, as finalidades da prisão são uma utopia, porque o seu

fundamento é a segregação e a utilização do poder como forma de dominação das massas.

Não vislumbra eficácia social num sistema assim. Para o autor, prisão reproduz um modelo

que garante o funcionamento automático do poder.

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Em sua concepção, o trabalho configura-se como um instrumento de transformação

do infrator em uma peça útil, cujo salário constitui uma “ficção jurídica”, na medida em que

não representa uma recompensa por sua produção, mas uma “técnica que se supõe eficaz”

como meio de correção:

A utilidade do trabalho penal? Não é um lucro; nem mesmo a formação de uma habilidade útil; mas a constituição de uma relação de poder, de uma forma econômica vazia, de um esquema da submissão individual e de seu ajustamento a um aparelho de produção (2003, p.204).

Não obstante a crítica mordaz que norteia a análise foucaultiana, se não há como

zerar os índices de criminalidade, é necessário, no mínimo, mantê-los em níveis toleráveis,

aprimorando os mecanismos voltados à reabilitação social do apenado.

Sob este aspecto, o trabalho do preso teria importância fundamental. Entretanto, não

é o que acontece, pelo menos no Brasil, porque as atividades de trabalho são atribuídas em

sentido contrário aos fins sociais, agravando os problemas da prisão e gerando inúmeras

polêmicas em torno do assunto.

O cumprimento das penas privativas de liberdade no Brasil foi regulamentado pela

Lei 7210/84, Lei de Execuções Penais (LEP) que traz, entre suas disposições, regras que

disciplinam o trabalho do preso. Entretanto, há uma distância significativa entre as

disposições legais e a realidade.

Segundo a Lei de Execuções Penais, o trabalho do preso deve ser pautado em alguns

critérios como, por exemplo, ter finalidade educativa e produtiva, ser remunerado, jornada

normal de trabalho de 6 a 8 horas diárias com descanso nos domingos e feriados, desconto de

um dia de pena para cada três dias de trabalho (remição da pena).

Cumpre consignar que Constituição Federal vigente veda, como cláusula pétrea, o

trabalho forçado, em seu artigo 5º inciso XLVII. O trabalho do preso é obrigatório, conforme

a regra do inciso V do artigo 39 da LEP, que dispõe sobre os deveres do preso. Se ele não

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trabalha, perde os benefícios da remição, salvo o preso provisório e o preso político, para os

quais o trabalho não é obrigatório.

Mas a atribuição de trabalho, sua remuneração, previdência social, proporcionalidade

entre o tempo de trabalho, descanso e recreação também estão previstos entre os direitos

estabelecidos aos presos pela mesma Lei em seu artigo 41.

O artigo 39 do Código Penal brasileiro dispõe sobre o trabalho do preso que deve ser

sempre remunerado e sobre o direito de usufruir dos benefícios da Previdência Social. No

mesmo sentido, a Lei de Execuções Penais em seu artigo 41, inciso II, estabelece que

constitui um direito do preso a atribuição de trabalho e sua remuneração. Portanto, o trabalho

é um dever do Estado e um direito/dever do preso.

Àqueles que trabalham, os valores recebidos devem ser utilizados na seguinte ordem:

primeiro, para indenizar a vítima; segundo, o Estado; terceiro, sua família; quarto, para seu

uso pessoal. Do que restar de seu salário, em regra, não inferior a ¾ do salário-mínimo, fica

como pecúlio. Mas, na realidade, o que efetivamente motiva o preso a trabalhar é a

possibilidade de remição.

Os artigos 31 a 37 da Lei de Execuções Penais disciplinam de que maneira deve ser

realizado este trabalho. O artigo 32 dispõe que, ao se atribuir a atividade laboral ao apenado,

devem ser consideradas suas habilidades pessoais, suas condições físicas, as necessidades

futuras do preso, ao deixar o sistema e as oportunidades oferecidas pelo mercado. No entanto,

esta é a teoria. Na prática, é muito diferente.

Em tese, o trabalho deveria ser um item importante no processo de recuperação do

infrator, uma terapia, preparando-o para sua reintegração no mercado de trabalho quando

recuperar a liberdade. O trabalho deveria ser aplicado visando-se a desenvolver no preso a

idéia de resgatar sua dignidade. Entretanto, as atividades relacionadas ao trabalho, hoje,

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aumentam o sentimento de injustiça, não desenvolve habilidades profissionais, é mal pago e

pouco valorizado. Com raras exceções, não leva em conta as habilidades pessoais do apenado.

Os percentuais apontados pelas estatísticas de 2004, realizada pela FUNAP,

Fundação de Amparo ao Preso, são reveladores desta realidade. Da população carcerária do

Estado de São Paulo, considerada naquele período, 42% não trabalhavam. Dos que

trabalhavam, a metade recebia remuneração de até R$ 20,00 por mês. Apenas 5% recebiam

salário entre R$ 81,00 e R$ 120,00.

O trabalho, nas condições em que vem sendo aplicado, suscita hipótese de

exploração econômica dos presos por parte das empresas que contratam estes serviços. Há

denúncias de que, em muitos casos, não há sequer o cumprimento de regras mínimas de

segurança e de salubridade, ensejando violação clara ao princípio da dignidade humana. Em

tais condições, não há que se falar em re-inserção social pelo trabalho. O que motiva o preso a

trabalhar não são as perspectivas futuras, mas a possibilidade de remição da pena.

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IV. ANÁLISE DE CASO: PENITENCIÁRIA DE ASSIS – SP.

Com a finalidade de comprovar a hipótese de ser a prisão no Brasil uma pena

meramente retributiva, procurou-se empreender pesquisa empírica em uma unidade

penitenciária, elegendo-se, para tanto, a Penitenciária de Assis como parâmetro.

Os estudos iniciaram-se no ano de 2004, envolvendo aproximadamente 10% da

população carcerária e 10% dos funcionários públicos em atividade, visando a apurar os

diversos aspectos relacionados ao funcionamento do sistema carcerário, seus mecanismos de

reintegração social, o perfil e a origem dos apenados, suas perspectivas futuras e os efeitos da

prisão sobre os encarcerados, bem como o olhar do funcionário público e da comunidade

penitenciária a respeito do sistema como um todo.

1. Primeiro olhar

Após a leitura do trabalho de Michel Foucault, tudo o que possa estar posto em

referência às instituições sociais lembra sua perspectiva acerca do exercício do poder e de

suas práticas disciplinares.

No primeiro passo para adentrar uma penitenciária, o pensamento parece ouvir uma

voz distante: “instituições austeras e completas”. Muralhas, torres, vigias armados. Tudo

lembra o panóptico de Bentham, citado por Foucault (2003, p.165), com seus mecanismos de

vigilância para tornar o corpo “dócil e útil”. Tudo e todos funcionando, numa atividade

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constante, de forma análoga a todas as instituições que se desenvolveram do século XVII até

o XIX, sejam hospitais, escolas ou prisões.

O primeiro contato é com um agente público que fica na primeira portaria: uma

construção de aproximadamente dois metros quadrados com uma janela aberta, sem grades,

ladeada por dois portões fechados a cadeados.

Um agente penitenciário, educadamente, atende ao visitante e entra em contato, via

interfone, com o interior do presídio, pedindo autorização para a entrada. Mais uma vez, o

pensamento pode viajar em Foucault: “será que este olhar tudo vê?”.

Os cadeados do portão são abertos e o visitante segue caminhando por uma distância

aproximada de duzentos metros até uma segunda portaria. O tempo e o espaço são suficientes

para vir à memória a desastrosa ação policial que, em 1992, no pavilhão 9 do Complexo

Penitenciário do Carandiru, resultou na morte de 111 detentos, evento mundialmente

divulgado como o “Massacre do Carandiru”, a exemplo de tantas outras tragédias que

ocorrem no interior dos estabelecimentos prisionais do Brasil.

Outro portão de ferro. Este com uma abertura bem menor do que a da primeira

portaria. Outro agente penitenciário abre os cadeados viabilizando a entrada a um pequeno

espaço, em que se consegue o mínimo movimento. Detector de metal. Tudo aciona um agudo

estridente-cacofônico: brinco, pulseira, anel e todos estes metálicos adornos femininos que,

depois da primeira experiência, acabam sendo abolidos. Depois deste segundo obstáculo, o

visitante passa por um setor de identificação, onde se é mais uma vez atendido por

funcionários públicos, que cumprem seus papéis.

A presença de torres e muralhas induz a uma viagem imaginária que vai dos

Rasphuis de Amsterdan às Casas de Correção de Gand, lembrando as frases de Vigiar e

Punir: “instituições austeras”, “punição generalizada”, “vigilância hierárquica”, “sanção

normalizadora”. Um grande caminho de poucos metros, muitas fobias e inúmeras indagações.

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2. Criação da instituição

Segundo registros da unidade, a “Penitenciária de Assis”, foi inaugurada em 07 de

novembro de 1991, durante a gestão do Governador Luiz Antonio Fleury Filho e do Prefeito

Romeu José Bolfarini, idealizada como “Casa de Detenção de Assis”.

Inicialmente, visava à custódia de presos provisórios da região de Assis até

julgamento final. Entretanto, nunca cumpriu a finalidade de somente custodiar presos

provisórios, sendo utilizada como Penitenciária desde a sua inauguração, em razão da

superlotação dos estabelecimentos carcerários do Estado de São Paulo.

Apenas em 1998, por meio do decreto nº 43.277, que tratava da reorganização do

Sistema Penitenciário do Estado de São Paulo, assinado pelo governador Mário Covas, a Casa

de Detenção passou a ser denominada “Penitenciária de Assis”.

Classificada como instituição de segurança máxima, é destinada, desde então, a

condenados à pena de reclusão em regime fechado. A capacidade do estabelecimento é para

custodiar aproximadamente 750 apenados, assim como o projeto das demais penitenciárias

compactas no Brasil.

3. Perfil do apenado

É necessário despir-se de qualquer idéia pré-concebida tendenciosa à generalização,

quando a questão está relacionada ao complexo universo que envolve o sistema penitenciário.

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Todos os que estão envolvidos nesta rede de relações têm histórias, experiências, trajetórias e

perspectivas individuais e diferentes entre si, tanto no que se refere aos agentes públicos,

quanto aos presidiários.

No tocante ao perfil do preso da Penitenciária de Assis, características interessantes

podem ser analisadas. Em primeiro lugar, destaca-se que a capacidade do estabelecimento é

para abrigar setecentos e cinqüenta presos.

Atualmente, como reflexo do aumento constante da população carcerária em todo o

país, a Penitenciária de Assis abriga aproximadamente um mil, cento e trinta e um apenados,

administrados por duzentos e oitenta e dois funcionários, de acordo com o relatório de dados

consolidados do programa de reintegração social da unidade no mês de agosto de 2007.

Conforme se pode observar, este número ultrapassou de forma assustadora a

capacidade do estabelecimento. Ou seja, é um campo minado que pode explodir a qualquer

momento, a exemplo do que tem ocorrido na maioria das prisões brasileiras.

Quanto à origem dos apenados, a grande maioria dos entrevistados, 49,5% são

procedentes da grande São Paulo; 30,3% são originários do interior paulista; 11,1%, do litoral

do Estado de São Paulo; 4% originam-se de outros Estados, como Mato Grosso, Mato Grosso

do Sul, Paraná e Rio de Janeiro e apenas 5% são da própria cidade de Assis, o que sugere que

a maioria dos sentenciados está segregada de seus vínculos familiares.

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3.1. Situação processual

Michel Foucault (2003, p.223) afirma, em Vigiar e Punir, que “a prisão é um duplo

erro econômico: diretamente pelo custo intrínseco de sua organização e, indiretamente, pelo

custo da delinqüência que ela não reprime”.

A pesquisa comprova este postulado: 49,5 % dos presos da Penitenciária de Assis

são reincidentes, percentual aproximado do resultado obtido pela estatística oficial realizada

no sistema prisional do Estado de São Paulo, que é de 42%.

Muito embora 50,5 % da população carcerária de Assis tenham se declarado como

sendo réus primários, é necessário considerar que nem todos os presos têm conhecimento de

sua situação processual, sendo que uma parcela considerável não sabe, sequer, quanto tempo

de pena ainda resta para cumprir.

Situação processual %

Réu primário 50,5

Reincidente 49,5

3.2. Trabalho antes da prisão

Questionados sobre a atividade de trabalho antes de serem presos, a maioria

esmagadora dos apenados entrevistados, ou seja, 82,8 %, responderam que exerciam alguma

atividade laboral anteriormente à sua entrada no cárcere.

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Entretanto, tais resultados parecem contraditórios considerando que,

aproximadamente 90 % dos casos de prisão na Penitenciária de Assis, resultaram de crimes

contra o patrimônio, como roubo, furto, estelionato, apropriação indébita e receptação.

Considerando que 50 % dos entrevistados responderam que o principal fator que leva

alguém à prática criminosa é a baixa-renda e o desemprego, as respostas parecem mais

paradoxais ainda, principalmente num país em que o índice de desemprego atinge proporções

alarmantes, como é o caso do Brasil.

Conforme os dados da Secretaria de Administração Penitenciária relativos ao Estado

de São Paulo, 59 % dos delitos julgados em 2004 estavam relacionados a crimes praticados

contra o patrimônio. Muito embora nem todos os desempregados procurem o caminho do

crime, é de conhecimento geral que a carência de empregos no país é um dos principais

fatores ligados à criminalidade.

3.3. Grau de escolaridade

O problema da educação no Brasil não está apenas relacionado ao acesso à escola,

mas também à qualidade do ensino oferecido, tanto em nível de ensino fundamental e médio,

quanto superior.

A criminologia aponta a educação, ao lado do desemprego e da baixa-renda, como

um dos principais fatores que contribui para a criminalidade. Não é de causar espanto o fato

de que 83% da população carcerária paulista tenham apenas o ensino fundamental.

Entretanto, é preciso lembrar que algumas idéias disseminam-se no meio social e

tendem a ser generalizadas. Uma das mais comuns está relacionada à questão das

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comunidades marginais das favelas. Não se pode ignorar o fato de que das favelas saem

grande parte daqueles que compõem a comunidade carcerária, mas é lá também que mora a

enorme massa operária que constrói este país.

Se os morros produzem trombadinhas e viciados comandados pelos traficantes, a

classe média também produz outros tantos. Entretanto, a Justiça Penal no Brasil pune com

rigor as classes marginalizadas, deixando muitas vezes impunes aqueles que se beneficiam de

uma melhor condição sócio-econômica e também cultural.

Na Penitenciária de Assis, os resultados apurados entre os entrevistados

demonstraram que, embora 19,2% dos entrevistados tenham iniciado o II grau, somente 5%

deles concluíram o ensino médio. A maioria dos entrevistados, 49,5%, não chegaram a

terminar a 8ª série, conforme se observa no quadro abaixo:

Grau de escolaridade %

Analfabeto 6

I Grau completo 15,2

I Grau incompleto 49,5

II Grau incompleto 19,2

II Grau completo 5

Superior incompleto 4

Superior completo 1

A pesquisa apurou um dado estatístico interessante: quatro dos entrevistados

iniciaram um curso superior, sendo que um deles concluiu a graduação. Esta informação

contraria a visão preconceituosa de que só pobre, negro e analfabeto praticam crimes, mas

confirma a tese de que é esta a parcela da população que vai para a prisão.

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3.4. Rotina dos internos

A Penitenciária de Assis, a exemplo do que ocorre com a maioria dos

estabelecimentos prisionais do Brasil, depara-se com o problema da superlotação. Sua

população hoje ultrapassa em centenas a capacidade para abrigar setecentos e cinqüenta

apenados.

É de conhecimento geral que a prisão, em regra, gera nos presos muita revolta, incita

a violência, gera grupos dominantes e dominados. Há violência generalizada, instaura-se um

clima constante de tensão, uma ameaça velada, não só entre os apenados, mas também entre

estes, os funcionários e dirigentes.

Não há dados oficiais disponíveis referentes às fugas e às rebeliões ocorridas na

unidade de Assis. Informação extra-oficial dá uma idéia do grau de violência que existe na

prisão. Segundo se pôde apurar das entrevistas, em uma das revoltas, integrantes de uma

facção da população carcerária serrou a cabeça de um colega “dedo-duro”, que foi usada para

simular uma bola, como em um jogo de futebol, sob o aplauso dos demais integrantes do

grupo.

A estrutura carcerária no Brasil não gera um sentimento de confiabilidade, e provoca

extrema insegurança tanto nos presos, quanto nos funcionários. A sociedade, diante dos altos

índices de criminalidade, passa a exigir do poder público uma atuação mais efetiva, tendendo

a uma crença de que se o sistema for mais austero e rigoroso, o problema da criminalidade

será resolvido. Mas, a solução não é tão simplista assim, haja vista que, no Estado de São

Paulo, o maior índice de reincidência se dá no Regime Disciplinar Diferenciado (48%), o

mais rígido do nosso sistema penal. A administração da Penitenciária de Assis tem

consciência desta problemática.

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O programa de reintegração social do estabelecimento conta com um corpo de sete

psicólogos, três estagiários de Psicologia e seis assistentes sociais. Estes profissionais se

desdobram, sob a orientação do diretor do departamento, para dar um atendimento adequado

aos apenados. Estudam, elaboram projetos e desenvolvem programas, visando a oferecer

melhores condições para atender às finalidades sociais da pena previstas pela nossa legislação.

Apesar da incansável disposição destes agentes públicos, os projetos são

praticamente inviáveis diante da superlotação e dos escassos recursos humanos e materiais

para a concretização dos programas. Em título exemplificativo, a tabela abaixo ilustra os

atendimentos referentes ao mês de agosto de 2007:

Ações continuadas Nº de

presos

atendidos

Procedimentos de inclusão 120

Entrevistas de inclusão 120

Atendimentos a demandas subjetivas 90

Atendimentos a demandas sociais 180

Encaminhamento à Educação 6

Encaminhamento ao Jurídico 40

Encaminhamento à Saúde 14

Proposição de terapêutica prisional 8

Trabalho interno e externo 20

O departamento desenvolve também ações dirigidas aos familiares, como

convalidação de vínculo afetivo, orientação para guarda dos filhos, providências relacionadas

ao registro de nascimento dos filhos, reconhecimento de paternidade, colocação dos filhos em

família substituta, orientação para inclusão em programas sociais e intermediação de vínculos

de uma maneira geral.

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Entretanto, a carência de recursos humanos e financeiros inviabiliza qualquer projeto

destes profissionais. Para o Estado, basta que os infratores sejam “deportados” da sociedade.

Não obstante o empenho da diretoria de reintegração social da “Penitenciária de Assis”,

observa-se que o descaso dos governantes não instrumentaliza seus projetos.

No que diz respeito ao trabalho, no início da pesquisa, cinco empresas privadas

ofereciam aos presos trabalho remunerado por produção. Em média, os sentenciados recebiam

uma remuneração mensal que variava de R$ 30,00 a R$ 120,00. Não se pode dizer que era

este salário o fator que motivava o preso ao trabalho. O que efetivamente os estimula a

exercer tais atividades é a possibilidade de remição da pena. Segundo o diretor de

reintegração social, evita-se, ao máximo, deixar o preso sem atividade, pois o ócio aliado à

superlotação é um dos principais fatores que inviabiliza os projetos voltados à reintegração do

preso à sociedade. A pesquisa demonstrou que a grande maioria dos entrevistados realmente

exercia alguma atividade laboral na Penitenciária de Assis:

Trabalho do preso %

Exerce algum tipo de trabalho na prisão 81,63

Não exerce nenhuma atividade laboral 16,33

Hoje, apenas 41,4 % dos entrevistados exercem algum trabalho na penitenciária.

Talvez, estes resultados sejam a conseqüência do afastamento de quatro das cinco empresas

que contratavam esta mão-de-obra na Penitenciária de Assis.

O desligamento das contratantes se deu em decorrência das rebeliões ocorridas no

ano de 2006 que resultou em graves prejuízos materiais tanto para as empresas quanto para a

Administração do estabelecimento.

A única empresa que, atualmente, contrata o trabalho dos presos de Assis é a

“Regina”, empresa do ramo de fabricação de artigos para festas, que oferece oportunidades

para aproximadamente cento e cinqüenta apenados.

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A Fundação Nacional de Amparo ao Preso (FUNAP) administra os trabalhos

executados pelos sentenciados em título de remição de pena. As opções oferecidas no

estabelecimento são as seguintes:

Trabalho do preso entrevistado %

“Regina” 9

Artesanato 7

“Amigo da escola” 6

Limpeza da escola 4

Horta 2

Cozinha 2

Biblioteca 1

Jardinagem 1

Espécie de trabalho não relatada 9,1

Em depoimento pessoal, uma das psicólogas do estabelecimento afirmou ser preciso

resgatar no preso a crença de que existe nele algo além do criminoso e o trabalho é um item

importante neste processo. Afinal, quando o infrator é autuado em flagrante por furto, por

exemplo, várias vezes é chamado de “ladrão”: algumas vezes, por agentes públicos

despreparados para o trato com os infratores, outras, pela população e, finalmente, por sua

sentença condenatória que o declara “criminoso”. Se o sistema penitenciário continuar a tratá-

lo como “bandido”, fatalmente ele retornará à liberdade e praticará novas condutas

criminosas.

De acordo com os dados levantados, 91% dos entrevistados, entendem que os cursos

e trabalhos executados na prisão podem ajudar na reintegração social quando recuperarem sua

liberdade.

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Entretanto, a população carcerária de Assis tem consciência de que, ao deixar a

estrutura prisional, sofre preconceitos por parte da sociedade. Esta é a visão de 93 % dos

entrevistados.

Indagados sobre a forma de uso da remuneração recebida pelo trabalho exercido, a

maioria respondeu gastar o salário com despesas pessoais. Tal resposta não poderia ser

diferente, considerando os valores recebidos. Uma pequena porcentagem, 2%, informou

investir em “associações”.

Embora não se tenha informação oficial por parte da administração, tampouco uma

declaração expressa por parte dos presos, sabe-se que quase que a totalidade da população

carcerária é afiliada ao PCC, para o qual pagam uma “mensalidade”.

Além das atividades relacionadas ao trabalho, os internos têm acesso ao ensino

médio e a cursos profissionalizantes mantidos pela FUNAP, como de garçons, padeiros,

idiomas, culinária, datilografia, informática, música e carteiro.

Fora dos horários de trabalho e de estudo, são disponibilizados dois horários diários

destinados a atividades de lazer. Embora alguns cursos sejam disponibilizados aos apenados,

parece que o estudo exerce menos motivação do que o trabalho para o preso.

De acordo com os dados levantados, cinqüenta e três dos presos entrevistados

freqüentam cursos na prisão.

Embora o percentual indique que a maioria se envolve em atividades relacionadas à

educação, 46,5 % desta população não se motivam aos estudos, muito embora a parcela

majoritária dos entrevistados, entenda que os cursos e trabalhos executados na prisão podem

ajudar na sua re-inserção social.

Além destes instrumentos, a assistência religiosa também é oferecida na

Penitenciária de Assis. Indagados sobre a religião que freqüentavam anteriormente à prisão, a

maioria respondeu que eram católicos, conforme se verifica pelos resultados obtidos:

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Religião que freqüentavam antes da prisão %

Budismo 1

Catolicismo 54,5

Espírita 7

Judaísmo 1

Protestantismo 22,2

Umbanda/Candomblé 4

Não professava religião 10,3

Em regra, as igrejas católica e evangélica são as que mais prestam atendimento à

população carcerária. Entretanto, apenas 37,4 % dos entrevistados se inseriram nas pastorais e

outros programas de atendimento religioso oferecidos na Instituição. O número daqueles que

deixaram de professar suas respectivas religiões é bastante elevado e representa 62,6 % das

respostas.

4. DIFERENTES OLHARES SOBRE OS MESMOS PROBLEMAS

No início da pesquisa, foram propostas algumas questões comuns a funcionários e

apenados, guardando-se a proporção de 10% entre os dois grupos entrevistados. Observaram-

se alguns pontos convergentes e outros em que os olhares se diferem no que diz respeito ao

sistema prisional.

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4.1. Instituição carcerária

De início, procurou-se avaliar o grau de importância atribuído pelos funcionários e

pela população prisional no que diz respeito a algumas medidas, visando à melhoria do

sistema penitenciário enquanto instituição.

Em primeiro lugar, foi proposta a exigência de II Grau completo como requisito

mínimo para ingresso na carreira de agente penitenciário. Ocorre tratar-se de uma medida que

já foi adotada pela Secretaria de Administração Penitenciária. Entretanto, apenas 15,38 % dos

funcionários observaram que essa medida já era vigente. Os percentuais são aproximados,

demonstrando opiniões convergentes entre os dois grupos. A maioria dos funcionários (64,1

%) e apenados entrevistados (66,33 %) concorda que medida é necessária e urgente.

Com relação à implantação de um Conselho Penitenciário, nos moldes dos artigos 69

e 70 da LEP, com finalidade de inspecionar os estabelecimentos penais e fiscalizar a execução

da pena privativa de liberdade, também a opinião majoritária em ambos os grupos é de que se

trata de uma medida necessária e urgente, no sentido de proporcionar uma ampliação da

estrutura funcional do sistema prisional, instrumentalizando o processo de recuperação do

apenado, através de pessoal qualificado e condições materiais essenciais ao trabalho.

Apenas 7% dos funcionários entrevistados manifestaram-se no sentido de que tal

Conselho já existe, tendo havido uma observação de um deles de que “existe, mas não

funciona”. Tal medida é de interesse tanto dos funcionários, quanto da população carcerária

de Assis. Entretanto, um percentual maior de apenados (79,6 %) do que de funcionários

(61,53 %) observa a urgência e necessidade de sua implantação.

Talvez os apenados vejam neste Conselho um dos poucos procedimentos que possam

ter efetividade no sentido de fiscalizar o cumprimento de suas penas, já que o grupo seria

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formado por membros da comunidade, em conjunto com professores e profissionais da área

de Direito Penal, Processual Penal e Penitenciário, segundo disposição da LEP.

Outra proposição feita aos entrevistados dizia respeito ao desenvolvimento de um

programa de informatização ligando o sistema penitenciário, o Ministério Público e o Poder

Judiciário, no sentido de agilizar as informações entre os três órgãos da execução penal.

Também houve comunhão de idéias entre os funcionários e os encarcerados. A maior parte

dos dois grupos, 84%, entendeu tratar-se de medida necessária e urgente.

Atualmente, 52,5 % dos presos entrevistados não fizeram exame para progressão.

Dos que já fizeram, 47,5 % estão aguardando decisão judicial para concessão do benefício ou

aguardam vagas no regime semi-aberto.

Para os funcionários, esta informatização é importante no sentido de agilizar o

serviço prestado pelos agentes públicos que atuam na administração do presídio. Para os

presos, a medida pode beneficiá-los no sentido de que as decisões proferidas tanto pelo

Ministério Público, quanto pelo Poder Judiciário, no que diz respeito à execução de suas

penas, chegariam imediatamente até o estabelecimento prisional.

A proposição referente à promoção de cursos de reciclagem e aperfeiçoamento dos

diretores e agentes penitenciários, com ênfase nos Direitos Humanos, revelou que a medida

interessa mais aos presos (74,49 %) do que aos funcionários (53,85%), embora a porcentagem

da população carcerária que entende ser a medida desnecessária seja maior entre os presos

(9,18%) do que entre os funcionários (5,12%). Talvez este percentual represente a parcela dos

apenados quase que totalmente descrentes de que algo possa melhorar no sistema quando se

depende da atuação estatal.

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4.2. Garantias asseguradas pela Lei de Execuções Penais

Num segundo grupo de questões, buscou-se observar o posicionamento dos dois

grupos no que diz respeito a algumas garantias constitucionais e estabelecidas pela LEP aos

apenados.

Em todas as proposições, a diferença percentual dos funcionários e presos, no tocante

à urgência e necessidade da medida, é visivelmente indicativa de que a ótica dos funcionários

é de que o sistema deve ser mais rígido, enquanto que a posição dos presos é de reivindicação

de seus direitos.

Quanto ao atendimento médico e psicológico, a Lei de Execuções Penais, em seu

artigo 14, dispõe sobre o direito do preso à assistência à saúde. A população carcerária da

Penitenciária de Assis é assistida por um grupo de quatro médicos, um dentista, uma

enfermeira e sete psicólogos profissionais concursados pelo Estado.

Dos problemas de saúde citados pelos apenados, destacam-se os seguintes:

Deficiências de saúde %

Não têm problemas de saúde 37,4

Problemas respiratórios 13,1

Problemas digestivos 12,1

Problemas dermatológicos 11,1

Problemas emocionais 11,1

Problemas circulatórios 6

Problemas nos ossos e coluna 3

AIDS 3

Problemas cardíacos 1

Problemas oftalmológicos 1

Problemas renais 1

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Indagados sobre a assistência médica e psicológica, 92 % dos apenados entrevistados

entendem que o atendimento deve ser aprimorado.

Quanto ao desenvolvimento de programas de trabalho e cursos profissionalizantes,

apurou-se que a maioria da parcela entrevistada da população carcerária de Assis, 91,4%,

vêem no trabalho e nos cursos oferecidos pela Instituição, uma medida capaz de proporcionar-

lhes um retorno à sociedade como cidadãos aptos a ingressarem no mercado de trabalho.

Entretanto, conforme apresentado anteriormente, apenas 41,4 % dos apenados realmente

trabalham na prisão.

No que diz respeito à garantia de acesso ao ensino fundamental, a assistência

educacional assegurada aos presos está disciplinada nos artigos 17 a 21 na LEP. A unidade de

Assis, neste aspecto, é atendida por professores da FUNAP. Neste ponto, 53,85% dos

funcionários e 80,61% dos presos entendem tal acesso ser necessário e urgente.

Para o preso, o acesso à educação é visto como instrumento que pode auxiliá-lo no

seu processo de reintegração social quando retornar à liberdade, a exemplo do que ocorre com

o trabalho.

Quando as entrevistas passaram a tratar dos programas de lazer, as respostas obtidas

dos funcionários mais uma vez acusaram que este grupo entende que o sistema da execução

penal deve ser mais rigoroso.

É comum ouvir-se agente penitenciário dizer que “preso é folgado, não quer

trabalhar e ainda quer lazer, enquanto muitos pais de família, trabalhando honestamente, não

conseguem oferecer as suas famílias todas as regalias que o apenado tem nas prisões”.

Segundo o diretor de reintegração social da unidade, são oferecidos diariamente dois

horários com atividades de lazer. Os presos podem desfrutar destas atividades, desde que não

estejam em horário de estudo ou trabalho.

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Esta medida alivia a tensão entre os presos. Observando os números, nota-se uma

diferença gritante de posicionamentos entre os dois grupos. Indagados sobre a necessidade e

urgência da medida, 74,49 % dos apenados atribuem grande importância ao desenvolvimento

de programas de lazer, enquanto que apenas 10,26 % dos funcionários compartilham a mesma

opinião.

4.3. Corrupção no sistema penitenciário

A questão proposta não visou a apurar se há ou não corrupção na Penitenciária de

Assis, mas sim avaliar se as medidas de fiscalização e combate à corrupção são entendidas

como necessárias pela população carcerária e pelos agentes públicos.

Aqui, observa-se uma inversão: é maior o número de funcionários do que de presos

que entendem tais medidas como necessárias e urgentes. A maioria esmagadora dos agentes

públicos entrevistados, 97,44%, entende necessário e urgente abolir a corrupção do sistema

prisional.

Entre os apenados, existe um número significativo dos que entendem ser a medida

desnecessária (19,39 %), representando a parcela da população carcerária que tem interesse

em que a corrupção se mantenha viva no sistema para garantir seus interesses dentro do

estabelecimento prisional.

A corrupção, na estrutura da prisão no Brasil, de uma maneira geral, é um poderoso

aliado dos líderes das facções que se constituem dentro da comunidade carcerária. O dinheiro

e as vantagens são oferecidos aos funcionários públicos em troca de alguns favores. Este

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elemento constitui um dos principais fatores pelo qual a prisão não recupera o infrator, mas

aperfeiçoa-o na prática criminosa.

4.4. Fatores da criminalidade

Apesar de 89,8 % dos apenados terem sido criados junto às respectivas famílias,

13,26 % dos entrevistados afirmam que a má estrutura familiar é o principal fator que leva

alguém à prática criminosa. A metade deles entende que o desemprego e a baixa renda são os

grandes responsáveis pela criminalidade. Contrariamente à posição deste grupo, 43,59% dos

funcionários atribuem à falta de estrutura familiar o principal vetor da prática criminosa.

É possível que uma das principais causas que levam as pessoas a praticarem

infrações seja a desestrutura familiar. Um percentual importante, 24,1 % dos presos

entrevistados, não teve convivência familiar durante a infância e adolescência, sendo que 11,1

% deles passaram pela FEBEM.

Mas é indiscutível também que um dos principais fatores do alto nível de

criminalidade é o desemprego e deste, um mercado de trabalho cada vez mais exigente. Neste

contexto, aqueles que não tiveram acesso à cultura e à educação adequadas, para atender a tais

exigências, são condenados ao desemprego e muitos deles acabam se tornando infratores.

Claro: nem todos os desempregados praticam crimes.

Indagados sobre os crimes já praticados, observa-se um percentual importante de

crimes praticados contra o patrimônio e mediante violência contra a pessoa, conforme se pode

observar com as respostas abaixo relacionadas:

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Crimes % de

crimes

praticados

pelos

apenados

Roubo 55,5

Porte de arma 33,3

Furto 24,2

Tráfico de entorpecentes 21,2

Latrocínio 14,1

Homicídio 11,1

Receptação 9,1

Estelionato 4

Extorsão mediante seqüestro 2

A este respeito, Olney Queiroz Assis (2002, p.540), em Estoicismo e o Direito:

Justiça, Liberdade e Poder, afirma que, na sociedade capitalista, somos apenas uma força de

trabalho. Portanto, podemos ser considerados “produtos descartáveis”, quando não atendemos

às necessidades de otimização de produção e maximização de resultados:

Estamos inseridos em um mundo paradoxal do excesso e da escassez que é, ao mesmo tempo, barbárie e civilização. A imensa concentração de riqueza, além de sustentar o luxo de uma determinada classe social, financia formas catastróficas de desperdício: as aventuras imperialistas, as guerras, a contaminação ecológica, a destruição da natureza. Mas não podemos sucumbir a essa realidade. Não chegamos ao estágio final da evolução da humanidade. A crise pode não ser apenas do paradigma científico mas de um certo modo de produção que já esgotou todas as suas possibilidades.(2002, p. 540).

As instituições sociais são espelhos do meio social e a falência do sistema carcerário

é um dos reflexos da crise dos paradigmas da sociedade capitalista moderna, que leva a um

modelo de exclusão social e de criminalidade de proporções alarmantes.

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4.5. Assistência psico-social às famílias dos presos

A maioria do grupo dos presos entrevistados, 64,28% deles, manifestou preocupação

com atendimento psicológico às respectivas famílias. Desta forma, interpreta-se que, para esta

parcela da população carcerária, a família continua sendo o centro de seu processo de

reeducação social.

O percentual de presos entrevistados que julgam a medida desnecessária é quase o

mesmo dos que revelaram problemas na estrutura familiar (14,28%). A grande maioria

entendem a urgência e necessidade da medida.

Importante observar que um número importante de funcionários considera tal

medida desnecessária, ou seja, 17,95%.

4.6. Dignidade humana nas revistas em dias de visitação

Como resultado da corrupção que alimenta as facções que se formam dentro da

comunidade carcerária, surge uma guerra velada, uma concorrência de forças que envolvem

os presos e os agentes públicos que não se corrompem. Esta observação é válida de uma

maneira geral para todos os estabelecimentos carcerários do país.

Sob constante ameaça, é conseqüência natural que estes servidores tenham uma

tendência a intensificar a rigidez na revista, até mesmo por exigência da própria

Administração Penitenciária, que por sua vez está sendo sempre observada pela mídia,

denunciando constantemente a entrada de armas, celulares e substâncias entorpecentes nos

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estabelecimentos prisionais do país, transportadas pelas visitas de familiares, amigos,

advogados e religiosos.

Em razão de tais circunstâncias, os excessos funcionais praticados pelos funcionários

públicos, ao fazer a revista nos visitantes dos apenados, muitas vezes acabam tipificando

violações ao princípio da dignidade humana, vitimizando, em alguns casos, aqueles

integrantes do círculo de relações dos presos que não mantêm envolvimento com o crime.

Não se está aqui afirmando que tais fatos ocorrem na unidade em estudo. Sob este

aspecto, a pesquisa visou a apurar qual a visão dos funcionários e dos presos a respeito da

garantia de um tratamento mais digno aos visitantes.

Indagados sobre a garantia de que as revistas sejam procedidas com respeito à

dignidade humana e à integridade física dos visitantes, os resultados obtidos demonstraram

que 81,63 % dos apenados entendem a necessidade e urgência da adoção do princípio da

dignidade humana nas revistas aos visitantes.

A maioria dos funcionários entrevistados entendeu que tal medida é realmente

necessária, 87,5 % deles. Entretanto, um percentual importante, 12,5 % deles, entendem ser

esta uma medida desnecessária.

É preciso reverter tal postura, na medida em que o desrespeito à integridade física e

dignidade humana dos visitantes, de maneira generalizada, gera mais revolta e violência

dentro da unidade carcerária, além de em nada contribuir para o combate à corrupção. A

própria Secretaria de Administração Penitenciária admite que a garantia desses princípios e as

boas condições internas em dia de visita implicam em um maior equilíbrio e tranqüilidade na

rotina diária da prisão.

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4.7. Classificação da população carcerária

A atual gestão da Secretaria de Administração Penitenciária tem procurado

especializar as unidades prisionais por tipo de delito. Assim, por exemplo, a Penitenciária de

Paraguaçu Paulista abrigaria em seu maior percentual os apenados por prática de homicídio, a

de Osvaldo Cruz, os condenados por estupro e atentado violento ao pudor. Em Assis, os

apenados por crimes contra o patrimônio, furto e roubo, representam a porção majoritária da

população carcerária.

Segundo informações obtidas junto à instituição, esta classificação apresenta duplo

aspecto: ao mesmo tempo em que se evita que os apenados por pequenos crimes tenham

contato com traficantes e assaltantes mais experientes, prevenindo-se a especialização na

prática criminosa, por outro lado, pode ocorrer de o apenado cumprir sua pena em um

estabelecimento prisional que dificulta, pela distância, o contato com seus vínculos familiares,

que muitas vezes pode fazer uma grande diferença em seu processo de reeducação social.

Em razão desta segregação dos vínculos familiares, um número considerável, 31,3 %

dos presos entrevistados, não recebem visitas na prisão; 19,2% recebem menos de uma vez

por mês; 29,3 % são visitados apenas uma vez por mês; 14,1% duas vezes a cada trinta dias e

somente 6 % são visitados toda semana. Daqueles que recebem visitas, 49,5% são mais

frequentemente visitados pela companheira e 24,2% pelos pais.

O ideal seria que cada unidade carcerária tivesse condições para fazer esta

classificação internamente, não só por tipo de delito, mas por grau de periculosidade e

também por reincidência/primariedade.

A classificação dos presos é importante em vários aspectos, entre os quais são

apontados como principais o fato de se evitar a chamada profissionalização do crime, a

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diminuição da violência interna e a dificuldade de formação de facções dentro da população

carcerária. Entretanto, dada a superlotação e a precariedade das instalações na maioria das

unidades prisionais no Brasil, tal medida é impraticável.

Sobre esta questão, a maior parte dos funcionários entrevistados, 69,23 %, entende

que tais medidas são necessárias e urgentes, enquanto que um percentual importante dos

representantes da população carcerária entende que tal procedimento é desnecessário, 37,75%.

Essa postura dos presos pode ser um indicativo de que realmente a separação não lhes é

interessante, na medida em que a classificação pode diluir determinados grupos que exercem

controle e proteção no interior do cárcere.

4.8. Prisão e seus efeitos

A eficácia social da prisão no sentido de recuperação do infrator e de devolvê-lo à

liberdade em condições de convívio na comunidade são as principais finalidades das penas

privativas de liberdade previstas pela legislação penal brasileira.

Indagados sobre os efeitos da prisão, os percentuais apurados entre os entrevistados,

no que diz respeito ao combate à criminalidade, à reintegração social do apenado e às penas

alternativas, apresentaram resultados interessantes.

Nenhum funcionário, entre os entrevistados, entende ser eficaz a pena de prisão

como vem sendo aplicada. Um percentual importante (46,15 %) demonstra acreditar que o

sistema pode ser eficaz, caso torne-se mais rigoroso. Outra parcela significante dos

funcionários entende que o sistema, como está, é ineficaz, e deve oferecer melhores condições

de reintegração para o apenado (38,46 %).

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De qualquer maneira, a postura geral dos entrevistados é de que a pena de prisão,

conforme vem sendo aplicada, não tem eficácia no combate à criminalidade e à reintegração

social do preso.

Quanto aos apenados, a grande maioria dos entrevistados vê no cárcere um

instrumento ineficaz e incompatível com suas finalidades ressocializadoras (71,43%). Apenas

uma minoria dos entrevistados considera a eficácia no sistema (11,22 %).

Com relação às penas alternativas, observa-se que os funcionários entendem que a

eficácia de um sistema punitivo depende de seu rigor. Para a maioria dos entrevistados

(61,53%), a pena alternativa não funciona de uma maneira geral, quer por ser muito leve, de

acordo com seu entendimento, quer por não haver fiscalização. Os que vêem nas penas

alternativas uma forma punitiva eficaz entendem-na eficiente somente para os crimes

praticados sem violência (28,20%).

Para os presos, as penas alternativas representam forma punitiva mais eficaz do que a

prisão. Entretanto, o “código de ética”, que vige entre os apenados por crimes praticados

contra o patrimônio, a grande maioria da população carcerária de Assis, dispõe que criminoso

violento deve ser punido com mais rigor, razão pela qual a posição majoritária é de admitir a

pena alternativa somente para os crimes praticados sem violência (40,81%).

Indagados sobre as perspectivas futuras, alguns dos entrevistados mantêm a

esperança de um amanhã promissor, com muito trabalho e longe da criminalidade como o

depoimento de um dos apenados:

Os meus objetivos: é sair e voltar trabalhar na mesma impresa que eu estava trabalhando no dia que eu vim preso num porte de arma. E cuidar da minha família, que minha família é tudo de mais precioso que eu tenho em minha vida. Porém quando eu vinho preso eu estava de carteira resistrada. O meu patrão so deu baixa na minha carteira para eu receber auxilio reclusão. Mais eu saindo meu emprego esta garantido em nome de Deus. Como eu também tenho algumas profições. Apesar de eu esta em uma prisão, mais no meu conciente eu não faço parte do crime. (sic)

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Outros se mostram agradecidos à Instituição pelos cursos que frequentaram durante o

período de encarceramento. Acreditam que os ofícios aprendidos possam viabilizar seu

processo de reintegração social para quando recuperarem a liberdade:

Eu vou trabalha com artesanato porque agradeço muito a deus ter aprendido esta profisão. Pinto quadros e decoro vidros. Agradeço o diretor da penitenciaria (...). Faço qualquer tipo de artesanato. (sic)

Há ainda aqueles que atribuem suas condições de vida na prisão à situação financeira

que não lhes permite um acesso adequado à Justiça:

Moro na ala A cela 18 à mais de um ano. Já estou nas condições de montar um regime semi-aberto + não tenho condições financeiras de pagar um defensor particular, os da casa, não querem me ajudar + Deus é mais e quando eu conseguir sair desse lugar eu pretendo resgatar todos meus docomentos e atualizar minha carteira de motorista e trabalhar de motorista de ônibus pois é o que eu sei fazer e vou lutar para conseguir e poder cuidar da minha esposa Liliane e meus filhos que Deus me deu. Sem + só precizo de uma ajuda em nome de Jesus. Eu errei sim + já paguei pelo meu erro agora quero uma chance de provar para mim mesmo que sou capaz de viver sem querer fazer o mau para com os meus próximos. (sic)

Algumas declarações sugerem que a experiência vivida na prisão foi difícil, razão

pela qual não pretendem voltar:

Pretendo aproveita bem essa nova oportunidade e cuida de minha família e não cometer os mesmos erros. E que sirva de lição para meus filhos, pois jamais vou querer que eles passa pelo que passei e passo até hoje. (sic)

O sentimento de exclusão social e a consciência de que deixam o sistema prisional

estigmatizados pelo cárcere manifesta-se também em diversos discursos:

Eu pretendo continuar fazer o que eu fazia antes; trabalhar. Apesar que quem está entrevistando vai achar que é a mesma de sempre: “sempre eles nunca fez nada”. Mas resumindo vou continuar trabalhando mas o sistema que eu considero mesma coisa que uma faculdade do crime e que não recupera ninguém. Mas eu estou adqurindo experiência porque sei que a sociedade é bonita por fora e podre por dentro e trata nós como lixo, também não vou generalizar todos. Pretendo ser um cidadão trabalhador, mas se a “sociedade” tratar eu mal e dou a eles tratamento “vip” a eles, só que eu não sou igual a todos que anda no berço da inginorancia a cada dia que passa adquiro mais experiência, porque se um dia eu voltar para o crime não vou ser tratado como ladrão e sim como “corrupto” e isso a sociedade não vê, mas para eu chegar a esse patamar é estudando, trabalhando e adquirindo experiência. Esta é essa minha visão que eu tenho do mundo dos excluídos. (sic)

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Outros sugerem um arrependimento em relação aos atos que praticaram e que os

levaram à prisão:

Tenho emprego fixo, mas por precisão eu dei cabeçada e estou até hoje, e sou músico e compositor e já perdi boa parte da minha vida trancado, sem poder mostrar o talento que adiquiri na infância e até hoje eu luto pra que um dia eu possa vir mostrar o meu talento quando me encontrar la fora perante a sociedade. Sem mais. Obrigado. (sic)

Nos presos de idade mais avançada, esse arrependimento vem acompanhado de um

sentimento intenso de desesperança:

Adentrei no sistema penitenciário em 22/2/1979 – saí em 4/2000 – tinha eu 19 anos – estou agora com 48 anos não vividos. Que resta-me a mais do que o prenúncio da cova. A certeza de não ter vivido e de que o que se tem a viver: é a velhice, a decreptude... Estou exaurido de todas as fantasias e sonhos que a mim se tornaram seqüelas da inconseqüência. Quero apenas vivenciar meus laços familiares, viver minha pouca vida que a tenho. Nada mais tenho ou posso perder, desperdiçar. Liberta que será tamém.O senhor será meu pastor: nada me faltará – aprendi na carne – no cerne, - a lição. (sic)

Há ainda aqueles que demonstram um alto grau de revolta contra o sistema prisional

e a sociedade de maneira generalizada. Sentem-se injustiçados e não assumem a autoria das

condutas que o levaram ao cárcere:

Pretendo conduzir minha vida ao sair do “sistema prisional” de forma progressiva e onesta. Buscar à cada dia educação, trabalhar para dar o pão de cada dia a minha casa como sempre fiz. Quero me formar em “bacharel de Direito” e futuramente poder revindicar muitos direitos da cidadania, pois nosso sistema de governo “faz as leis”. Só que diversos órgãos como por exemplo algumas “varas de execuções locais”, como essa em que encontro-me, fazem “mau” uso dessas “leis” acredito que para benefício próprio. Pos todos apresentam na mídia um “sistema penitenciário superlotado”. Sabe porque? Porque as “leis de execução penal” não são cumpridas. Não implantam educação nas cadeias, trabalhos dignos e ainda por cima nos tiram até os direitos de “presos” estarmos perto de nossos familiares. Querem reeducar alguém? Eu respondo, não querem! Muito pelo contrario, o governo quer construir mais 193 penitenciárias até o fim do ano que vem. Segundo eles para dar “início ao combate da superlotação nos presídios”. Quanto vão lucrar nestas obras superfaturadas? Alguém sabe responder se amanhã o objetivo deles não é colocar nestas unidades prisionais os meus filhos? Ou os seus Advogada? É... Os seus, você está podendo educar! Já os meus... Vou finalizar, pois até por criticas pode ser que eu venha sofrer mais retaliações nesse “sistema corupto” que é designado verbas para tudo, mas infelizmente desde que nos jogam dentro desse “inferno” nos tiram além dos direitos a dignidade e nosso liberalismo. Quem dirá nossos utilitários do dia-a-dia como: alimentação, frutas, legumes, uma caneca, uma colher, um cochão, calsa, camiseta, lençóis, sabonete, creme dental,

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toalha. Caso trabalhe, nos roubam nossos direitos de receber ¾ do salário e INSS, que também é lei. Peço o favor a senhorita que deve conhecer estes advogados da unidade. Pois formulei pedidos de defesa que vou protocolar no fórum. Só quero que me devolvam carimbados. (sic)

Transcreve-se, abaixo, a opinião de um dos presos entrevistados que, talvez, possa,

grosso modo, resumir parte da problemática da pena de prisão:

Para que qualquer medida reeducativa atinja o objetivo desejado, é extremamente necessário que seja extirpado todo tipo de corrupção por parte do sistema penitenciário (agentes). Devem ser construídas unidades onde todos obrigatoriamente terão que trabalhar e receber pagamento justo, que o possibilite a sustentar a família. O estudo tem que ser obrigatório. Todos os que cometerem infrações dentro do sistema, precisam ter tratamento diferenciado durante todo o cumprimento da pena. Por outro lado, os que realmente querem uma oportunidade e mostram isto através do bom comportamento dentro do estabelecimento penal, devem ter como recompensa os julgamentos de benefício em prazo recorde. No regime semi-aberto deve haver continuidade de oportunidade, bem como oportunidade garantida por lei para trabalhar, estudar ou efetuar qualquer atividade lícita ao reeducando em questão, isto no seio da sociedade. (sic)

Estes depoimentos podem confirmar a hipótese de que o sistema prisional precisa

ser repensado, a fim de que sejam minimizados seus efeitos negativos, até que um dia seja

viável uma sociedade sem prisão. Este é um dos grandes desafios do sistema penal do mundo

contemporâneo, carente de novos paradigmas.

5. Último olhar

A História atravessa um período de mudanças de paradigmas nas relações de poder,

que se deve, em parte, à globalização que desestruturou o modelo sócio-político vigente. Tais

transformações demandam reflexões éticas em torno do Direito, dos valores que vigem na

sociedade contemporânea e, neste contexto, do significado da pena de prisão na realidade

social brasileira.

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O modelo carcerário, na realidade, pune quem age corretamente, na medida em que

devolve ao meio social indivíduos especializados na arte do crime. Este é um dos grandes

paradoxos da realidade carcerária no Brasil: privar a liberdade do apenado, para depois

devolvê-lo à sociedade sem condições de ser livre.

Os resultados obtidos em Assis demonstraram os mesmos problemas existentes na

maioria das prisões paulistas: a pena de prisão não contribui para recuperar o infrator, nem

para diminuir os índices de criminalidade.

No que diz respeito à superpopulação, a realidade penitenciária assisense reflete a

realidade paulista. No início da pesquisa, a instituição abrigava aproximadamente 750

apenados. Hoje há mais de 1000 presos na unidade. O problema é agravado, considerando que

há apenas 282 funcionários na instituição e que a maior parte deles exerce funções

administrativas.

O mesmo é possível afirmar quanto ao grau de escolaridade: 83% dos presos

paulistas possuem apenas o ensino fundamental; 4% deles mal sabem escrever o próprio nome

e apenas 1% freqüentou os bancos universitários. Em Assis, apenas 24,2 % dos presos

entrevistados tiveram acesso ao II grau; 15,2% completaram o ensino fundamental e o índice

de analfabetismo também é aproximado do percentual paulista, ou seja, 6%.

Outra questão analisada foi com relação às estruturas de poder que se desenvolvem

no espaço carcerário. Os apenados não reconhecem no cárcere a autoridade do Estado.

Submetem-se à liderança dos grupos mais fortes e procuram se agregar àqueles que detêm o

poder para assegurar sua proteção.

Também no que diz respeito à reincidência, a Penitenciária de Assis reflete um

número aproximado dos índices do Estado de São Paulo. Segundo a resposta dos

entrevistados, 49,5 % deles são reincidentes. A estatística estadual aponta um percentual de

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42 % para o regime fechado de cumprimento de pena, demonstrando que grande parte

daqueles que passam pela prisão voltam a praticar crimes, o que denuncia sua ineficácia.

Em linhas gerais, observou-se com as entrevistas que a ótica dos funcionários é de

que o sistema deve ser mais rígido para se tornar eficaz, enquanto que a postura dos apenados

é de reivindicação de seus direitos. Nenhum entre os funcionários entrevistados entende ser

eficaz a pena de prisão nos moldes em que vem sendo praticada.

Há o entendimento geral de que diminuir a superlotação carcerária é uma das mais

urgentes medidas necessárias para amenizar os efeitos negativos da segregação. Inicialmente,

é necessário reservar prisão somente para aqueles casos em que realmente a prisão seja

imprescindível e, para estas hipóteses, criar instrumentos capazes de minimizar seus

resultados nocivos.

Se, por um lado, é necessário reservar a prisão apenas para aqueles crimes em que

não haja outra forma punitiva aplicável, por outro, é necessário reavaliar os seus mecanismos

pedagógicos para os casos em que ela seja inevitável. De nada adianta manter infratores

presos se o cárcere não propicia condições mínimas de atendimento às finalidades sociais da

pena.

Defende-se a idéia de que é necessário combater a superlotação carcerária.

Entretanto, é preciso consignar que não basta criar novas penitenciárias. É necessário reduzir

o número de infratores que são encaminhados e mantidos nas prisões, com um melhor

acompanhamento de execução da pena, haja vista que há casos em que, mesmo cumprido o

tempo de segregação, o apenado continua encarcerado por absoluta falta de controle do

estabelecimento penal, por carência de vagas no regime semi-aberto ou por morosidade da

Vara de Execuções.

O desenvolvimento de programas de informatização ligando o sistema penitenciário,

o Ministério Público e Poder Judiciário, agilizaria as informações e representaria uma

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contribuição ímpar para o desafogamento das prisões com um melhor acompanhamento da

execução penal.

É unânime a opinião de que a separação classificatória dos presos também é

indispensável para se evitar que infratores ocasionais se “especializem” pelo convívio com

infratores “profissionais”. Neste sentido, é urgente um investimento em capacitação técnica de

profissionais para realização adequada do exame criminológico, tanto para a classificação dos

presos, quando ingressam no sistema prisional, quanto para a concessão de benefícios aos

mesmos.

No tocante ao trabalho como instrumento pedagógico, trata-se de assunto que tem

gerado muitos debates porque, embora esteja previsto na legislação penal, não tem a sua

forma regulamentada. Muitas discussões surgem em torno do tema, entre elas, questiona-se

sobre a possibilidade de que estas relações gerem vínculos empregatícios. Os

posicionamentos não são unânimes.

Os que defendem a exclusão do trabalho do preso do rol das atividades consideradas

entre aquelas que constituem relações de emprego, justificam seu posicionamento no artigo 28

da Lei de Execuções Penais que dispõe que o trabalho realizado pelo apenado não está sujeito

às normas da Consolidação das Leis do Trabalho, é instituído com o caráter de dever e tem

finalidade educativa.

Por outro lado, observando o trabalho do preso, verifica-se que a relação estabelecida

entre o apenado e as empresas que se utilizam desta mão-de-obra preenche todos os requisitos

de uma relação trabalhista. O trabalho é prestado com continuidade. O contrato que as

empresas firmam com a FUNAP, responsável pelas contratações, são, em regra, válidos por

cinco anos, prorrogáveis. Ou seja, tem habitualidade. O preso tem subordinação pelo menos

técnica e econômica com relação às empresas que oferecem serviços aos presidiários. O

trabalho é oneroso, embora remunerado com salários simbólicos, prestado pessoalmente pelo

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preso, por conta alheia e não por conta própria, sendo o risco da atividade integralmente do

empregador.

Apesar de preencher todos os requisitos essenciais para configurar um contrato de

trabalho, as relações que envolvem os presos não estão regulamentadas e a sua não

regulamentação pode favorecer explorações por parte dos empresários. Afinal, o custo desta

mão-de-obra é muito atrativo para as empresas, vai ao encontro dos interesses capitalistas e da

materialização da “mais valia”, muito embora seja inegável a importância da participação das

empresas nos estabelecimentos penais durante a execução das penas.

A pesquisa realizada na Penitenciária de Assis apurou que apenas 41,4 % dos presos

entrevistados exercem algum trabalho na penitenciária. Isto significa que nem mesmo a idéia

de remição da pena estimula a grande maioria dos internos ao exercício das atividades

laborais.

Talvez, estes resultados se devam também ao afastamento de quatro das cinco

empresas que contratavam esta mão-de-obra na Penitenciária de Assis, o que diminuiu o

número de vagas. O desligamento das contratantes se deu em decorrência das rebeliões

ocorridas no ano de 2006 que resultou em graves prejuízos materiais tanto para as empresas

quanto para a Administração do estabelecimento, comprovando a hipótese de que a população

carcerária não é composta somente por sujeitos vitimizados pelo sistema.

O trabalho nas prisões não cumpre sua função educativa porque não desperta no

preso a idéia de que é possível ter uma vida digna longe da criminalidade. Também neste

aspecto a pena privativa de liberdade opera na contramão de suas finalidades.

Enquanto não é viável uma sociedade sem prisão, é urgente aprimorar seus

mecanismos pedagógicos para os casos em que ela for insubstituível. No que diz respeito ao

trabalho do apenado, é necessária uma regulamentação destas atividades a fim de que, regidas

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ou não pela CLT, elas sejam atribuídas em observância ao princípio da dignidade humana, a

fim de cumprirem sua função social.

Cumpre ressaltar que, juridicamente, a prisão atinge apenas a liberdade do indivíduo.

O trabalho está fora desta relação. Com exceção da liberdade, todos os outros direitos e

garantias do preso lhe devem ser assegurados.

Entretanto, sublinha-se que é indiscutível a importância do papel que as empresas

exercem no ambiente prisional. Não é justo que sofram prejuízos materiais como vem

ocorrendo em decorrência das rebeliões. Tais perdas acabam desencadeando o afastamento

dos empresários e, consequentemente, ocasionando a diminuição do número de vagas para as

atividades laborais.

Os cursos oferecidos na prisão também não motivam a população carcerária por não

ensejarem perspectivas futuras e as atividades de lazer são mal dirigidas, não despertando o

interesse na participação.

O desenvolvimento de atividades artísticas e esportivas também poderia contribuir

para o equilíbrio não só do mundo interno do apenado, mas para a estabilidade de toda a

comunidade carcerária.

Entretanto, esta não é a opinião dos agentes públicos. A grande maioria defende a

idéia de que “preso tem que ser tratado com rigidez, porque praticou um mal à sociedade, não

gosta de trabalhar e ainda quer programa de lazer”, utilizando expressões típicas dos agentes

penitenciários de uma maneira geral, sem referência específica aos funcionários da

Penitenciária de Assis. Esta é uma postura equivocada. Não é possível vislumbrar mudanças

de comportamento sem que se considere o mínimo de humanidade que pré-existe ao caráter

criminoso de cada apenado.

Qualquer projeto de readaptação social deveria considerar as diferenças entre os

internos. Entretanto, os integrantes da população carcerária são tratados como um todo

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igualitário, desprezando-se as particularidades de cada um e a complexa rede de poderes e

saberes que se desenvolve em sua estrutura.

O medo e o mau-treinamento dos agentes públicos agravam o problema e favorecem

a organização hierarquizada da população prisional, com poder efetivo o suficiente para

afrontar a gerência do Estado, menos organizado e mal aparelhado.

Os agentes públicos, em regra, assumem uma postura meramente defensiva. São

precariamente capacitados para enfrentar o meio carcerário, e, principalmente, para educar

infratores, pois acabam agindo com excessos o que acaba gerando mais violência dentro das

prisões.

Nos moldes atuais, os egressos saem estigmatizados do cárcere, porque a sociedade,

por razões evidentes, não tem um sentimento de confiabilidade com relação ao sistema

penitenciário. Em liberdade, não conseguem a inserção no mercado de trabalho e acabam por

reincidir no crime.

Embora a dureza da análise foucaultiana nos leve a um certo ceticismo, é preciso

buscar perspectivas de melhoria das condições ambientais nas penitenciárias brasileiras até

que elas possam ser substituídas por propostas mais condizentes com a dignidade da pessoa

humana.

Como está, não dá para continuar. O cenário caótico do sistema prisional brasileiro

ultrapassa o limite das grades. Dentro e fora, vive-se um momento de extrema restrição de

direitos e garantias fundamentais, como conseqüência do colapso do cárcere como

instrumento de recuperação do apenado e de controle da criminalidade. A falta de dignidade

humana que impera dentro do cárcere reflete-se no meio social sob a forma de violência,

medo e insegurança.

A estrutura de poder que se desenvolve nos grupos formados pela massa carcerária

extrapola os limites das grades. Aciona poderes externos estatais e paraestatais. Dentro e fora

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das grades vivemos um momento de extrema restrição dos direitos fundamentais em

conseqüência da falência do sistema.

Simbolicamente, o eco dissonante do detector de metais das penitenciárias ressoa as

contradições do poder. Idéias foucaultianas refletem a realidade: “arte das distribuições”,

“composição de forças”, “organização das gêneses”, “disciplina hierarquizada”, “utopia

ressocializadora”.

Indagado sobre uma possível solução para a crise do sistema, em entrevista ao

colunista Ronaldo Jabor, divulgada no jornal “O globo” de 26/01/2007, “Marcola” citou

Dante: “Lasciate ogna speranza voi che entrate. Percam as esperanças. Estamos todos no

inferno”.

Quisera fosse esta a descrição da viagem meramente imaginária guiada por Virgílio

pelas trevas. Mas não é. Nem “Divina comédia”, nem o lugar subterrâneo da alma dos mortos:

eis o inferno em vida da sociedade brasileira, a exposição circunstanciada dessa humana

tragédia.

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CONCLUSÃO

Esta pesquisa visou a investigar o modelo de execução penal praticado no Brasil, sob

o enfoque do princípio da dignidade da pessoa humana. Para tanto, percorreram-se quatro

etapas:

No primeiro capítulo, abordou-se este princípio na Constituição Federal e na

legislação penal em face do apenado. Observou-se que, do ponto de vista teórico, há

consonância entre a norma constitucional e a norma infra-constitucional, sugerindo que o

problema da prisão não está relacionado a sua disposição legal.

No segundo capítulo, realizou-se uma leitura das teorias que informam este sistema,

visando a sua compreensão e à identificação da teoria adotada pelo legislador penal no Brasil.

Para concretização destes objetivos, partiu-se do estudo das doutrinas absolutas e relativas,

bem como das tendências contemporâneas graduadas entre o minimalismo e o abolicionismo

penal.

Após a revisão bibliográfica de tais doutrinas, foi possível identificar que a teoria

adotada pelo ordenamento brasileiro tem suas raízes tanto na prevenção especial, explícita no

artigo 1º da Lei de Execuções Penais, quanto na teoria retributiva, expressa no artigo 59 do

Código Penal. Ou seja, apresenta como finalidade a idéia de retribuir o “mal injusto”

praticado pelo infrator com um “mal justo”, a pena, previsto pelo Direito, assim como a

prevenção dos delitos pela ressocialização do apenado.

Percorridas as duas primeiras etapas, no terceiro e quarto capítulos, realizou-se uma

análise a respeito da prática carcerária no Brasil, visando-se a apurar se a execução penal

viabiliza a readaptação social do infrator ou se assume um caráter meramente retributivo, uma

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vez que os princípios da boa condição penitenciária, idealizados pelos reformadores penais no

século XVIII, encontram-se expressos na nossa legislação penal.

Para tanto, foram utilizados dados estatísticos da Secretaria de Administração

Penitenciária do Estado de São Paulo, adotado como parâmetro por abrigar mais da metade da

população carcerária brasileira, e de uma pesquisa empírica realizada na Penitenciária de

Assis, envolvendo 10% da população carcerária e 10% dos funcionários públicos da

instituição.

Com este procedimento, foi possível analisar os aspectos subjetivos relacionados às

experiências pessoas dos internos, os diferentes olhares acerca do sistema prisional, bem

como se estabelecer um confronto entre as disposições legais e a realidade prisional brasileira.

Após o desenvolvimento da pesquisa, constatou-se que:

1º - Existe um enorme distanciamento entre a teoria e a prática. Não obstante a

finalidade “ressocializadora” prevista pelo ordenamento jurídico, a pena de prisão no Brasil

assume um caráter meramente retributivo o que a torna ineficaz do ponto de vista social e

incompatível com as finalidades previstas pela lei, considerando as péssimas condições

ambientais a que são submetidos os internos, a denunciar flagrante afronta ao princípio da

dignidade da pessoa humana. Tal hipótese foi demonstrada com os dados relativos ao Estado

de São Paulo, apurados pela FUNAP, que revelaram um índice de 42% de reincidência,

considerando o regime fechado de cumprimento de pena. Embora passível de dúvidas, este

percentual demonstra que uma parcela significativa daqueles que passam pelo sistema

prisional voltam a praticar crimes, denunciando a ineficácia do sistema. Utilizando-se de

procedimento analítico e empreendendo-se pesquisa de abordagem quantitativa, apuraram-se

dados na Penitenciária de Assis que coincidem com os percentuais no Estado de São Paulo.

Segundo a resposta dos entrevistados, 49,5% deles são réus reincidentes.

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2º - O sistema prisional brasileiro encontra-se em verdadeiro caos. No espaço

carcerário, desenvolveu-se uma complexa rede de micro-poderes e saberes, estruturada em

facções e organizações criminosas, melhor planejadas e equipadas que o próprio Estado.

3º - A prisão é a forma punitiva típica do sistema capitalista porque exclui da

visibilidade os problemas sociais compondo um mero depósito de sujeitos, em sua imensa

maioria composto por excluídos do sistema capitalista. O cárcere, no Brasil, inviabiliza o

controle da criminalidade na medida em que, não funcionando, parece funcionar. A

superlotação dos estabelecimentos carcerários a ociosidade a que são submetidos os internos,

a impossibilidade de uma classificação adequada, a promiscuidade, a violência e a corrupção

são os grandes responsáveis pela profissionalização criminal do sentenciado.

4º - O ambiente prisional favorece a ordem hierarquizada da população carcerária em

organizações criminosas que envolvem não apenas os infratores, mas também os grandes

chefes do staff, os quais, na maioria dos casos, permanecem impunes de seus crimes.

5º - A deficiência de políticas públicas voltadas ao atendimento dos principais

problemas sociais brasileiros, como a má distribuição de renda, a miséria, o desemprego e a

péssima qualidade dos serviços oferecidos de saúde e de educação está diretamente

relacionada à criminalidade e, conseqüentemente, ao congestionamento de nossas prisões que

cumprem meramente o papel de depositárias de nossas mazelas sociais.

6º - O problema central da prisão tem origem em seus próprios fundamentos, mais

especificamente, na segregação. Esta forma punitiva não atende às finalidades que

fundamentaram sua instituição. Por tal razão, deportar pessoas para o interior das grades não

tem sido e nunca foi instrumento eficaz de controle da criminalidade, uma vez que as

condições subumanas a que são submetidos os apenados inviabilizam qualquer projeto neste

sentido.

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7º - O trabalho o estudo e o lazer são aplicados de maneira não satisfatória, razão

pela qual não são instrumentos eficazes no sentido de viabilizar perspectivas futuras de

inserção social do egresso. Estigmatizado pelo cárcere, volta a praticar crimes.

8º - Existe um consenso entre a maior parte dos agentes públicos de que um

endurecimento do regime seria a forma mais apropriada de se controlar a criminalidade. Esta

é também a opinião da sociedade de uma maneira geral. Entretanto, não é o que demonstram

os dados oficiais: o regime disciplinar diferenciado, o mais rígido do nosso sistema penal,

apresenta o maior índice de reincidência: 48%.

9º - Há uma grande diversidade de sujeitos no ambiente carcerário. Alguns,

vitimizados pelo sistema e outros que representam um risco efetivo ao meio social. Por isso, a

extinção do cárcere também não se apresenta como uma solução que possa trazer resultados

práticos imediatos, até porque a sociedade, no momento, não comporta a abolição do sistema

penitenciário. Não há, no contexto atual, alternativa diversa para aqueles infratores

considerados “perigosos”. Portanto, o abolicionismo penal ainda permanece como um projeto

para longo prazo, num plano imaginário, ainda muito distante da nossa realidade.

10º - Defende-se um início da retração do Direito Penal, ou seja uma proposta

próxima àquela vislumbrada pelo minimalismo penal, apresentado no segundo capítulo, com a

descriminalização de algumas condutas de pequeno potencial ofensivo e com o uso reservado

do cárcere somente para casos imprescindíveis, até que um dia seja viável a total extinção da

pena de prisão. Neste trajeto, é urgente e necessário repensar seus mecanismos pedagógicos a

fim de minimizar as conseqüências danosas da segregação e de manter os índices de

criminalidade em níveis, pelo menos, toleráveis.

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