corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento...

114
10 INTRODUÇÃO A utilização do Direito, como instrumento da legitimação das atividades políticas de um soberano que atua segundo os interesses econômicos de grandes grupos econômicos, é um tema bastante debatido hodiernamente fora do ordenamento jurídico brasileiro. Aqui, o tema além de pouco discutido é bastante recente, o que, pelo menos em um primeiro momento, já demonstra a necessidade de estudá-lo. Hoje, vê-se duas grandes lutas: uma para colocar em prática os ideais do Século XIX, que não foram realizadas no Século XX; outra, a tentativa de se conciliar os interesses muitas vezes antagônicos existentes entre mercado e a democracia, interesses que surgiram em virtude daquelas mesmas promessas do Século XIX, irrealizadas no Século XX. Como disse o sociólogo português, Boaventura de Souza Santos, pelo menos no que diz respeito às questões científicas, é possível dizer que vivemos ainda no Século XIXs e que o Século XX ainda não começou. Diante de tal crise, é de fundamental importância a compreensão do papel do Direito na sociedade, principalmente em relação às questões voltadas para a construção do conceito de soberania na modernidade, pois além de externar-se de forma antagônica ao conceito clássico, surge nos marcos de um Estado Liberal, que traz consigo o germe do totalitarismo. Dentro dessa linha, o limiar da modernidade política é representado pelo momento histórico em que o nascimento com vida define o cidadão e, nesse contexto, a vida é confiscada pelo soberano, passando a figurar como um elemento definidor da esfera de poder da decisão soberana.

Upload: phamnhu

Post on 02-Jul-2018

213 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

10

INTRODUÇÃO

A utilização do Direito, como instrumento da legitimação das atividades

políticas de um soberano que atua segundo os interesses econômicos de grandes grupos

econômicos, é um tema bastante debatido hodiernamente fora do ordenamento jurídico

brasileiro.

Aqui, o tema além de pouco discutido é bastante recente, o que, pelo menos em

um primeiro momento, já demonstra a necessidade de estudá-lo.

Hoje, vê-se duas grandes lutas: uma para colocar em prática os ideais do Século

XIX, que não foram realizadas no Século XX; outra, a tentativa de se conciliar os interesses

muitas vezes antagônicos existentes entre mercado e a democracia, interesses que surgiram

em virtude daquelas mesmas promessas do Século XIX, irrealizadas no Século XX.

Como disse o sociólogo português, Boaventura de Souza Santos, pelo menos no

que diz respeito às questões científicas, é possível dizer que vivemos ainda no Século XIXs e

que o Século XX ainda não começou.

Diante de tal crise, é de fundamental importância a compreensão do papel do

Direito na sociedade, principalmente em relação às questões voltadas para a construção do

conceito de soberania na modernidade, pois além de externar-se de forma antagônica ao

conceito clássico, surge nos marcos de um Estado Liberal, que traz consigo o germe do

totalitarismo.

Dentro dessa linha, o limiar da modernidade política é representado pelo

momento histórico em que o nascimento com vida define o cidadão e, nesse contexto, a vida é

confiscada pelo soberano, passando a figurar como um elemento definidor da esfera de poder

da decisão soberana.

Page 2: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

11

Para manter tal relação, o soberano cria o terror constante, ao fabricar a figura do

amigo/inimigo, e alberga, sob sua responsabilidade, um povo segregado e temeroso. O estado

de exceção constante se transforma em fonte criadora de um Direito, que atua na sociedade

segundo os interesses de grandes grupos econômicos nacionais e supranacionais existentes no

centro do capitalismo, pelas mãos do soberano e apoiados nos corpos-dóceis.

Estudar-se-á, o poder do Estado, mas muito mais do que isso, estudar-se-á o

Poder do Estado como uma conseqüência dos poderes nele existentes e divididos, e não o

contrário, como se faz nas teorias clássicas da soberania. Nesse sentido, podem ser descritas,

como clássicas, as teorias de soberania de Jean Bodin, Hugo Preuss, Hugo Grotius, Jean-

Jacques Rousseau e, até mesmo, Hans Kelsen.

Para tanto, o presente trabalho terá como supedâneo internacional, a Teoria

Constitucional de Carl Schmitt; o biopoder e a biopolítica de Michel Foucault; a teoria do

Homo Sacer trazida à luz por Giorgio Agamben; a discussão da norma e exceção atualmente,

ilustrada por Willian Scheuerman; a formatação da soberania no mundo pós-Segunda Guerra

Mundial, por Hannah Arendt e, hodiernamente, por Luigi Ferrajoli e Ernst Jünger. Por fim,

integra-se a importante contribuição de Antonio Gramsci, com sua tese de que o Estado

Moderno, representado pela figura do soberano, é o novo príncipe.

No Brasil, ao mesmo tempo em que Gilberto Bercovici discorre sobre A

constituição e o estado de exceção constante, Clèmerson Merlim Clève demonstra a

sobreposição legiferante do Poder Executivo sobre o Legislativo e o Judiciário, transformando

uma de suas atividades atípicas em praticamente típicas. Lúcia Avelar e Antonio Octávio

Cintra também forneceram contribuições importantes, por demonstrarem, de forma ímpar, a

formatação do sistema político do Brasil e sua corroboração no seqüestro do jurídico pelo

político, e do Legislativo pelo Executivo.

Page 3: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

12

Em um segundo momento, diante do cenário narrado, mostrar-se-á como o

Direito entra em crise, sem muitas vezes responder questões simples; em outros momentos,

no afã de legislar sobre tudo, e nos mais diferentes ramos da ciência jurídica, percebe-se um

Direito construído segundo interesses particulares muito bem identificáveis.

Em seguida, a pesquisa empreende uma análise da figura da exceção na maioria

das constituições brasileiras, e o agigantamento histórico do Executivo sobre os demais

poderes, onde estes últimos se colocam como meros legitimadores dos atos daquele,

legitimação que se efetua por meio de decretos e medidas provisórias em números crescentes.

Neste contexto, cada um dos poderes será analisado, segundo dispositivos

constantes no ordenamento jurídico nacional.

Seguindo-se essa linha de raciocínio, verificar-se-á como a exceção, manipulada

pelo soberano, está presente no ordenamento jurídico brasileiro, e o quanto tal cenário é,

atualmente, apenas uma conseqüência das intenções econômicas dos grandes grupos

internacionais.

É importante dizer aqui que, com este trabalho, não há o intuito de se dizer que há

um nome, seja este de uma pessoa física ou jurídica, atrás de um movimento, escolhendo um

culpado, como na teoria marxista. Nem se quer demonstrar a existência de conspirações

realizadas por governos de países mais desenvolvidos ou grandes corporações que agem

conjuntamente para um só fim, como na teoria da conspiração.

A dominação se dá por meio de uma intrincada relação de interesses, os quais estes

que se encontram espalhados por todo o tecido social, como aduziu Michel Foucault em seu

livro Microfísica do Poder.

Desta forma, tornar-se-ia impossível relatar todas as pessoas, organismos e

mecanismos de legitimação do poder, durante o curto período concedido à realização das

pesquisas para o mestrado, se é que tal relato é possível.

Page 4: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

13

Porém, entre tantas pessoas, organismos e mecanismos de legitimação do poder,

por vezes o Poder Executivo figura como soberano, ou seja, como aquele que tem poder sobre

o estado de exceção.

O fato de se ter escolhido como figura do soberano um membro do Poder

Executivo, o que se verificará com mais clareza a partir do segundo capítulo, não significa

que a dominação pode se dar exclusivamente pela vontade de alguém ou de um pequeno

grupo que o erige e o mantém.

Na maioria das vezes, tal poder não deixa de demonstrar seus interesses, criando-

se, em muitos casos, a exceção para justificar seus atos de governo. Foi sobre esta pessoa, em

particular, que se resolveu dissertar, muito embora, como dito, o soberano não é uma pessoa

só e, além de não sê-lo, não é uma coisa única, um grupo único.

Dessa forma, ver-se-á, com bastante clareza, como a exceção vem aos poucos se

transformando em regra pelas mãos de um soberano, que se coloca como a própria encarnação

da norma, e dissemina o terror como forma de justificar a necessidade das decisões e

legislações por ele tomadas e criadas, sem que, para tanto, utilize-se de subterfúgios ilegais,

mas da exceção para normatizar suas pretensões.

É nesse quadro que o Direito atua como desfecho, pois é por meio dele que a

vontade soberana é travestida de vontade geral, apesar de não exibir traços, mesmo os sutis,

de uma vontade popular. Mesmo assim, ela é transformada em lei, migrando assim do estado

de exceção ao ordenamento jurídico, sem qualquer vestígio de ilegalidade, fato este que

justifica, desde o nascimento do Estado Liberal à atual conjuntura política, a necessidade de o

soberano tomar para si o Direito, para o utilizar como mecanismo de cálculo e, com isso,

justificar seus atos, e não como organização jurídica do Estado.

Ademais e, por fim, será possível perceber, sobretudo no Direito brasileiro, não

somente os motivos da situação em que se encontra o sistema jurídico do País, mas, também,

Page 5: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

14

a razão de ser das anacrônicas, letárgicas e ineficientes reformas políticas, administrativas,

jurídicas e sociais do País, explicitadas por via de processos infindáveis, excesso de

burocracia, insuficientes e ineficazes prestações de serviços públicos, direitos mínimos, em

todas as suas gerações, sendo vilipendiados, descréditos na justiça pública, entre outros, bem

como os motivos da atuação dos representantes legais do povo brasileiro, como se vê nos

sucessivos escândalos políticos, há décadas, para não dizer, séculos.

Por outro lado, poder-se-á ter um novo ponto de visão das razões pelas quais o

País é afligido por de graves problemas sociais, onde o Direito deveria se colocar como uma

prótese, cujo implante tem como intuito suprir, corrigir ou aumentar uma função, no caso,

uma função de justiça social, mas que nem sempre cumpre esse papel.

Por fim, mister se faz salientar que, para o desenvolvimento deste trabalho de

natureza essencialmente jus-filosófica, a metodologia empregada é, prima face, hermenêutica;

foi feita a leitura, fichamento e interpretação de textos teóricos.

No entanto, por versar também sobre o momento social, econômico, político e

legal, imprescindível tornou-se ainda a coleta de dados de natureza empírica, discriminados

ao final no anexo, para que se pudesse confrontar a teoria à conjuntura.

Este trabalho permitiu que se chegasse à conclusão de que o Direito hodierno

encontra-se institucionalizado como um mecanismo de cálculo, que o soberano utiliza para

realizar seus anseios, sem precipitar-se na ilegalidade. Soberania é a relação simbiótica

instaurada entre governo, entidades econômicas, em todos os seus níveis, e o ordenamento

jurídico. Como mencionado anteriormente, foi atribuída maior relevância ao estudo da figura

do Poder Executivo, pelas razões que o texto a seguir se encarregará de elucidar.

Page 6: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

15

1. DA EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE SOBERANIA À CONSTRUÇÃO DO

CONCEITO DE DEMOCRACIA, A PARTIR DA EXCEÇÃO

1.1 O conceito clássico de soberania

O antigo conceito de soberania, suprema potestas superiorem non recognoscens -

poder supremo que não reconhece outro acima de si, ainda muito estudado nas faculdades de

Direito, há muitas décadas não mais estabelece uma correspondência entre esta idéia e a

realidade.

Segundo Luigi Ferrajoli, Grotius sustentava a idéia da [...] “sujeição dos soberanos

às leis divinas e ao direito natural, o direito de os súditos a desobedecer às ordens que com

aqueles (as leis divinas e o direito natural) contrastem: [...]1.

Muito embora esta tese ainda seja bastante estudada, como elucida Celso Fernandes

Campilongo, [...] não existe mais, entre os juristas, quem assuma sem reservas as teses

clássicas. [...]2.

Ademais, ainda sob as alegações deste mesmo pensador:

[...] o que se viu, nos últimos quatro séculos, foi, no interior dos Estados, a crescente dissolução da soberania e a afirmação dos Estados Democráticos e Constitucionais e, externamente, a progressiva absolutização do conceito. [...]3.

Este conceito de soberania parece ter se dissipado há muito tempo, pois dá-se à

soberania, a acepção há muito tempo elaborada pelos pensadores clássicos, uma antinomia

entre ela e o conceito de Direito.

1 GROTIUS, Hugo. Apud. FERRAJOLI, Luigi. (2002). A soberania no mundo moderno: Nascimento e crise do Estado nacional. São Paulo: Martins Fontes. p 79. 2 CAMPILONGO, Celso Fernandes. Apud. FERRAJOLI, Luigi. (2002). A soberania no mundo moderno: Nascimento e crise do Estado nacional. São Paulo: Martins Fontes. p VIII. 3 CAMPILONGO, Celso Fernandes. Apud. FERRAJOLI, Luigi. (2002). A soberania no mundo moderno: Nascimento e crise do Estado nacional. São Paulo: Martins Fontes. p VIII.

Page 7: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

16

1.2 O conceito de moderno de soberania e a Teoria Constitucional de Carl Schmitt

A Teoria Constitucional de Carl Schmitt ainda é muito pouco estudada nos

cursos de Direito, e mal é conhecida pelos profissionais dessa ciência, sobretudo em nosso

país.

No Brasil, e em grande parte dos países ocidentais cujo Direito é alicerçado em

teorias positivistas, e a aplicação da justiça é profundamente dogmática, desde os primeiros

instantes dos cursos jurídicos às mais complexas teses e peças processuais, vê-se, com

clareza, a defesa dos ideais do Direito segundo as concepções kelsenianas, de acordo com as

quais o político depende do Estado, que por sua vez é controlado pelo império da norma.

Muito embora não se pretenda refutar Hans Kelsen, aqui haverá uma inversão de

preceitos, tendo em vista que o que se prega em teoria não tem respaldo consistente na

prática, e o que se pode aduzir é que o Estado é que depende do político, como bem ponderou

Gilberto Bercovici:

[...] Schmitt inverteu a abordagem clássica e, ao rejeitar a tentativa de derivar a concepção do político de uma teoria do Estado, fez com que o Estado dependesse do político: “O conceito de Estado pressupõe o do político”. Portanto, de conceito do direito público, o Estado, para Schmitt, se tornou uma questão sobre a essência do político, o Estado deveria ser pensado a partir e em função do político, sem o qual perderia o sentido. O Estado é, assim, um meio de continuação e de organização da luta política pré-existente a ele, que cria sua própria ordem política. [...]4

Uma vez criada a referida ordem política, é possível que se empregue mais os

pensamentos kelsenianos no ordenamento jurídico, quando as questões versarem sobre fatos

da normalidade. Porém, antes de se estabelecer o que é normal, para se instituir a própria

esfera jurídica de aplicação da lei, antes de se afastar o que porventura ameaça a situação que

4 BERCOVICI, Gilberto. (2004) Constituição e estado de exceção permanente. Rio de Janeiro: Azougue Editorial. p.69

Page 8: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

17

sustenta o soberano no poder (seja ele uma pessoa, um grupo de pessoas ou uma norma5),

para não mover-se na ilegalidade, o detentor do poder utiliza-se, em situações anormais, de

expedientes que Carl Schmitt mais tarde estudou e analisou em sua Teoria Constitucionalista,

como se infere logo a seguir.

[...] A partir do conceito schmittiano de político, entender o Estado como unidade política significa entendê-lo como unidade pacificada por meio político. (...) Deste modo, a relativa homogeneidade do povo mantém seus nexos de unidade e a política interna tenta manter os conflitos dentro dos parâmetros de coexistência pacífica, ou seja, evitando que estes atinjam a intensidade das relações entre amigo e inimigo. O político, portanto, não se manifesta visivelmente em situações de normalidade, apenas nos momentos de ameaça à unidade política. [...]6

Eis o cerne teórico da relação necessária entre a normalidade da regra e a

emergencialidade da exceção.

O soberano encontra-se dentro e fora do ordenamento jurídico, pois utiliza-se de

elementos internos deste mesmo ordenamento para tomar suas decisões, inclusive a de

suspendê-lo, total ou parcialmente, nas situações de emergência ou de exceção. Dessa forma,

embora utilize-se de elementos internos da legalidade, atua sobre situações externas a ela, mas

não legaliza o ilegal, uma vez que a situação de exceção se encontra em uma linha que

tangencia o legal e o ilegal.

Para Schmitt, o elemento essencial do fenômeno jurídico é construído pela decisão

sobre o estado de exceção, que define a soberania política ao mesmo tempo em que a torna

acessível à racionalidade jurídica.

5 Segundo Antonio Gramsci: [...] O moderno príncipe, o mito-príncipe, não pode ser uma pessoa real, um indivíduo concreto; só pode ser um organismo. Um elemento complexo de sociedade no qual já tenha se iniciado a concretização de uma vontade coletiva reconhecida e fundamentada parcialmente na ação. Este organismo já é determinado pelo desenvolvimento histórico, é o partido político: a primeira célula na qual se aglomeram germes de vontade coletiva que tendem a se tornar universais e totais. [...].GRAMSCI, Antonio. (1991). Maquiavel, a política e o Estado Moderno. 8. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. p. 6. 6 BERCOVICI, Gilberto. (2004) Constituição e estado de exceção permanente. Rio de Janeiro: Azougue Editorial. p. 70 e 71

Page 9: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

18

Neste sentido:

[...] O Soberano, que pode decidir sobre o estado de exceção, garante sua ancoragem na ordem jurídica. Mas, enquanto a decisão diz respeito aqui à própria anulação da norma, enquanto, pois, o estado de exceção representa a inclusão e a captura de um espaço que não está fora nem dentro (o que corresponde à norma anulada e suspensa), “o soberano está fora [steht ausserhalb] da ordem jurídica normalmente válida e entretanto, pertence [gehört] a ela, porque é responsável pela decisão quanto à possibilidade da suspensão in totto da constituição” . [...]7.

No passado, o Rei era o representante de Deus na terra e, como tal, agia de acordo

com a vontade divina, a qual se encontrava acima e, posteriormente, transformou-se em fonte

da própria lei. Na modernidade, a exceção é definida e decidida pelo soberano.

Segundo Giorgio Agamben, quando esta suspensão do ordenamento passa a ser a

regra, os atos daquele que decide sobre tal estado passam a ter um sentido letal:

[...] O estado de exceção é o dispositivo que deve, em última instância, articular e manter juntos os dois aspectos da máquina jurídico-política, instituindo um limiar de indecidibilidade entre anomia e nomos, entre vida e direito, entre auctoritas e potestas.(...) quando o estado de exceção em que eles se ligam e se determinam torna-se regra, então o sistema jurídico-político transforma-se em uma máquina letal. [...]8.

Inclusive, segundo o raciocínio de Paul Gottfried:

[...] “The concepts of friend, foe and struggle only gain their significance through the fact that they relate in particular to the real possibility of killing” the other. “War is only the utmost realization of enmity in politics. [...]9.

Levando-se pessoas à morte, em nome de um profundo desacerto ideológico

entre o soberano e aquele que se coloca como obstáculo, como ameaça à situação mantida por

7 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. (2004) São Paulo: Boitempo. p. 56 e 57. 8 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. (2004) São Paulo: Boitempo. p. 130 e 131. 9 A tradução que se segue, foi elaborada pelo autor desta dissertação: [...] O conceito de amigo, inimigo e luta apenas ganha sua significância pelo fato de eles se relacionarem com a verdadeira possibilidade de matar um ao outro. A guerra é apenas a extrema realização da inimizade na política. [...]. GOTTFRIED, Paul. Apud. SCHEUERMAN, William E.. (1994). Between the norm and the exception: the Frankfurt School and the rule of law. – Baskerville: Maple-Vail Book Manufacturing Group. p. 18.

Page 10: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

19

este, o qual passa a ser seu inimigo. Basta apenas que alguém se coloque como um

impedimento, e o soberano passará a buscar as justificativas que lhe pareçam plausíveis para

se imputar a devida culpa àquele que é tido como uma ameaça inimiga.

George Schwab, sobre a questão acima, lecionou:

[...] The final decision about who the foe is can be legitimated on the basis of any conceivable ground, and it suffices for Schmitt to comment that “[the foe] is simply the Other, the Alien,” and that political action gains guidance from “a pure decision not based on reason and discussion and not justifying itself, that is, . . . an absolute decision created out of nothingness. [...]10.

Percebe-se que todo aquele que se coloca como entrave ao poder do soberano é

eliminado, inclusive fisicamente, para que este possa legitimar a sua vontade, a qual nasce na

exceção, e se torna norma pela captura dos órgãos responsáveis pela criação e manutenção do

ordenamento jurídico, situação esta que aclara, de forma evidente, que o Direito legitima os

atos do soberano, a regra nasce a partir da exceção e a estrutura da soberania, espinha dorsal

do Estado, nasce pelo e não para o político. Em momento algum tais atos exibem traços de

ilegalidade.

Atos de governo, aos quais se convencionou chamar de atos de soberania, são bem

definidos por Hannah Arendt, ao evocar Thomas Hobbes, em seu Livro Origens do

totalitarismo:

[...] A profunda suspeita alimentada por Hobbes em relação a toda a tradição ocidental de pensamento político não nos surpreende, e lembrarmos que ele procurava nada menos que justificar a tirania, que, embora houvesse ocorrido muitas vezes na história do Ocidente, nunca havia sido homenageada com um fundamento filosófico. Hobbes confessa orgulhosamente que o Leviatã é realmente um governo permanente de

10 A tradução que se segue, foi elaborada pelo autor desta dissertação: [...] A decisão final sobre quem é o inimigo pode ser legitimada em qualquer terreno que se possa conceber e neste sentido dá guarida para que Schmitt possa comentar que “[o inimigo] é simplesmente o outro, o estranho,” e que a ação política ganha direcionamento da “pura decisão não baseada na razão e discussão e não justificada nela mesma, mas ela é, ... em absoluto um decisão criada a partir do nada. [...]. SCHWAB, George. Apud. SCHEUERMAN, William E.. (1994). Between the norm and the exception: the Frankfurt School and the rule of law. – Baskerville: Maple-Vail Book Manufacturing Group. p. 20.

Page 11: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

20

tirania: “a palavra Tirania significa nem mais nem menos que a palavra Soberania. (...) Acho que o ódio declarado à Tirania é tolerar o ódio à comunidade em geral” [...]11

Melhor dizendo, ao apoderar-se do Direito para legitimar seus atos de governo e,

portanto, de soberania, no âmbito da Teoria Constitucional, o soberano solidificou o

ordenamento jurídico com as mesmas estruturas da exceção.

Porém, à medida que há a inclusão da exceção no ordenamento jurídico, casos

particulares extraordinários de necessidade transformam-se em casos públicos ordinários, e

com esta sobreposição jurídico-política, a exceção incluída no ordenamento, ou pelo menos o

esforço para incluí-la, transforma-se em regra.

Segundo Hannah Arendt, a necessidade se coloca como premissa fundamental,

mas, ela mesma, permanece indemonstrável:

[...] O pensamento ideológico arruma os fatos sob a forma de um processo absolutamente lógico, que se inicia a partir de uma premissa aceita axiomaticamente, tudo mais sendo deduzido dela; isto é, age com uma coerência que não existe em parte alguma no terreno da realidade. [...]12

Sob essa nova roupagem, o Direito, sobretudo com o nascimento do estado liberal,

com intuito de atender as necessidades dos soberanos (eliminar seus entraves, sem que para

isso tivessem que ferir o próprio ordenamento), passou a legitimar o domínio integral sobre a

própria vida, desde que houvesse uma justificativa, situação esta que, como visto, começou a

nascer apenas na exceção, muito embora tal situação, aos poucos, passou a determinar a

própria regra. Ou seja, a necessidade é tida como justificadora da exceção.

Michel Foucault, ao explanar essa nova roupagem da soberania, que por sua vez

exigiu uma nova abordagem da questão amigo/inimigo, enfatizou:

11 ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 174. 12 ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 523.

Page 12: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

21

[...] E eu creio que, justamente, uma das mais maciças transformações do direito político do século XIX consistiu, não digo exatamente em substituir, mas em completar esse velho direito de soberania – fazer morrer ou deixar viver – com outro direito novo, que não vai apagar o primeiro, mas vai penetrá-lo, perspassá-lo, modificá-lo, e que vai ser um direito, ou melhor, um poder exatamente inverso: poder de “fazer” viver e de “deixar” morrer. O direito de soberania é, portanto, o fazer morrer ou de deixar viver. E depois, este novo direito é que se instala: o direito de fazer viver e de deixar morrer. [...]13

Luigi Ferrajoli, ao citar Grotius, exemplificou, por extensão, a teoria schmittiana,

ao dizer quem decidia sobre o estado de exceção, situação esta que pareceu demonstrar as

razões de tantas guerras, cruzadas, e matanças em todo novo mundo:

[...] (...) Grotius, de fato, torna o direito das gentes autônomo não apenas em relação à moral e à teologia, mas também em relação ao Direito natural, definindo-o id quod gentium omnium aut multarum voluntate vim obligandi accepit (o que por vontade de todas ou de muitas gentes assume força de obrigação): ou seja, como aquele cuja força obrigatória depende do consenso de todos ou da maior parte dos Estados e, mais exatamente, daquele que Grotius chama de moraiiores (mais civis). É assim que o direito deriva do fato e, precisamente, da vontade e dos interesses dos sujeitos mais fortes da comunidade internacional [...]14

Neste sentido, o soberano, sempre que necessário e interessante, começou a criar

teorias para definir o amigo/inimigo, e com isso, a determinar situações de normalidade e de

exceção.

Para realizar tal diferenciação, o que Michel Foucault chamou mais à frente nesta

mesma obra de racismo do estado15, demonstrou-se, de forma bastante clara, o momento em

que a soberania perdeu sua forma classicamente jurídica, e se transformou em biopoder e

biopolítica. Veja-se:

[...] A raça, o racismo, é a condição de aceitabilidade de tirar a vida numa sociedade de normalização. Quando vocês têm uma sociedade de normalização, quando vocês têm um poder que é, ao menos em toda a sua superfície e em primeira instância, em primeira linha, um biopoder, pois

13 FOULCAULT, Michel. (1999) Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes. p.287. 14 FERRAJOLI, Luigi. (2002). A soberania no mundo moderno: Nascimento e crise do Estado nacional. São Paulo: Martins Fontes. p 17 e 18. 15 FOULCAULT, Michel. (1999) Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes. p.285.

Page 13: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

22

bem, o racismo é indispensável como condição para poder tirar a vida de alguém, para poder tirar a vida dos outros. A função assassina do Estado só pode ser assegurada, desde que o Estado funcione no modo do biopoder, pelo racismo. [...]16

Entre os Estados, muitas guerras foram justificadas a partir de teorias, cujas

máximas garantiam que a única possibilidade de sobrevivência era a morte. A instauração da

exceção como paradigma de governo permitiu ao soberano inclusive o domínio sobre a

própria vida de seu povo, de modo a utilizá-la de acordo com suas pretensões.

Em Vontade de Saber, Michel Foucault deixa claro que a ameaça deve ser

eliminada a título de castigo, sem que, quem a elimine, incorra em qualquer punição:

[...] Entre soberano e súditos, já não se admite que seja exercido em termos absolutos e de modo incondicional, mas apenas nos casos em que o soberano se encontre exposto em sua própria existência: uma espécie de direito de réplica. Acaso é ameaçado por inimigos externos que querem derrubá-lo ou contestar seus direitos? Pode, então, legitimamente, entrar em guerra e pedir a seus súditos que tomem parte na defesa do Estado; sem “se propor diretamente à sua morte” é-lhe lícito “expor-lhes a vida”: neste sentido, exerce sobre eles um direito “indireto” de vida e morte. Mas se foi um deles quem se levantou contra ele e infringiu suas leis, então, pode exercer um poder direto sobre sua vida: matá-lo a título de castigo. [...]17.

Em outras palavras, [...] São mortos legitimamente aqueles que constituem uma

espécie de perigo biológico para os outros. [...]18.

No entanto, o domínio do soberano sobre a vida de seus súditos ganha uma nova

forma de dominação com o surgimento da Revolução Industrial, e o capitalismo encontra o

adequado nicho para efetivamente se desenvolver.

Muito embora a ameaça continue a ser eliminada legalmente, há a necessidade

premente de mão-de-obra, e a força de trabalho deve ser fomentada e garantida para que o

Estado possa se sustentar.

16 FOULCAULT, Michel. (1999) Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes. p.306. 17 FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: Vontade de saber. (1998), Rio de Janeiro, Edições Graal. p. 147. 18 FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: Vontade de saber. (1998), Rio de Janeiro, Edições Graal. p. 150.

Page 14: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

23

Neste sentido, leciona Foucault:

[...] Se fizéssemos uma história do controle social do corpo, poderíamos mostrar que, até o século XVIII inclusive, o corpo dos indivíduos é essencialmente a superfície de inscrição de suplícios e de penas; o corpo era feito para ser supliciado e castigado. Já nas instâncias de controle que surgem a partir do século XIX, o corpo adquire uma significação totalmente diferente; ele não é mais o que deve ser supliciado, mas o que deve ser formado, reformado, corrigido, o que deve adquirir aptidões, receber um certo número de qualidades, qualificar-se como corpo capaz de trabalhar. Vemos aparecer assim claramente a segunda função. A primeira função do seqüestro era de extrair o tempo, fazendo com que o tempo dos homens, o tempo de sua vida se transformasse em tempo de trabalho. Sua segunda função consistem em fazer com que o corpo dos homens se torne força de trabalho. [...]19.

Em A História da Sexualidade, Michel Foucault completa:

[...] Concretamente, esse poder sobre a vida desenvolveu-se a partir do século XVIII, em duas formas principais; que não são antitéticas e constituem, ao contrário, dois pólos de desenvolvimento interligados por todo um feixe intermediário de relações. Um dos pólos, o primeiro, a ser formado, ao que parece, centrou-se no corpo como máquina: no seu adestramento, na ampliação de suas aptidões na extorsão de suas forças, no crescimento paralelo de sua utilidade e docilidade, na sua integração em sistemas de controle eficazes e econômicos – tudo isso assegurado por procedimentos de poder que caracterizam as disciplinas: anátomo-política do corpo humano. O segundo, que se formou um pouco mais tarde, por volta da metade do século XVIII, centrou-se no corpo-espécie, no corpo transpassado pela mecânica do ser vivo e como suporte dos processos biológicos: a proliferação, a duração da vida, a longevidade, com todas as condições que podem faze-los variar; tais processos são assumidos mediante todas uma série de intervenções e controles reguladores: uma bio-política da população. As disciplinas do corpo e as regulações da população constituem dois pólos em torno dos quais se desenvolveu a organização do poder sobre a vida. A instalação – durante a época clássica, desta grande tecnologia de duas faces – anatômica e biológica, individualizante e especificante, voltada para os desempenhos do corpo e encarando os processos da vida – caracteriza um poder cuja função mais elevada já não é mais matar, mas investir sobre a vida, de cima para baixo.

A velha potência da morte em que se simboliza o poder soberano é agora, cuidadosamente, recoberta pela administração dos corpos e pela gestão calculista da vida. Desenvolvimento rápido, no decorrer da época clássica, das disciplinas diversas – escolas, colégios, casernas, ateliês; aparecimento, também, no terreno das práticas políticas e observações econômicas, dos problemas de natalidade, longevidade saúde pública, habitação e migração; explosão, portanto, de técnicas diversas e numerosas

19 FOUCAULT, Michel. A Verdade e as Formas Jurídicas.(2002) Nau Editora. p. 119.

Page 15: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

24

para obterem a sujeição dos corpos e o controle das populações. Abre-se, assim, a era de um “bio-poder”. [...]20.

Com o início das políticas sociais, sobretudo sanitárias, o advento das indústrias e

o encadeamento destas duas idéias, o capitalismo exige a retomada dos conceitos de tempo,

trabalho, relações de consumo, a dicotomia entre o público e o privado, e entre economia e

democracia.

A vida biológica, até então, desprovida de significação e relevância política,

assume o papel central na definição das relações de soberania. Como mostrou Foucault, os

conceitos de biopolítica e biopoder marcam a passagem de um tipo de soberania fundada na

lei (definida como poder de deixar viver e fazer morrer), para uma soberania que assume a

vida natural em seu campo de decisão.

O Direito é a organização jurídica da sociedade política e, como a relação do Direito

com a violência é visceral e não acidental, então todo enquadramento estatal e jurídico da

política, nas condições do biopoder, recoloca o problema de se saber como uma soberania,

que agora se define como poder de fazer viver pode exercer legitimamente o direito de matar.

1.3 O capitalismo, a soberania e o biopoder

Como visto, a estrutura criada pelo Rei, para justificar seus atos, apesar da lei,

tinha como base o fato de ele ser o representante de Deus na terra e, portanto, tal fundamento

legitimava, por antecipação, suas decisões.

Percebe-se, facilmente, o alegado, nas palavras de Ferrajoli:

[...] (...) o paradigma hobbesiano do Leviatã e a metáfora antropofomórfica da soberania estatal deixam de ser uma ficção e são levadas a sério, abrindo espaço para uma metafísica de cunho idealista e autoritário, que reconhece

20 FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: Vontade de saber. (1998), Rio de Janeiro: Edições Graal. p. 151 e 152.

Page 16: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

25

o Estado como única fonte de direito. Disso derivam duas importantes conseqüências. A primeira é a já relembrada configuração dos direitos fundamentais, não mais como limites externos, mas como “autolimitações” da soberania do Estado, conseqüentemente remetidos à sua disponibilidade. A segunda é a elaboração da conhecida e bizarra doutrina organicista, ainda hoje no auge em quase todos os manuais de direito público, segundo a qual não apenas a soberania, mas também o povo e o território, podem ser considerados como outros tantos “elementos constitutivos do Estado. “O povo” em particular, declara Santi Romano, “não tem existência jurídica a não ser no Estado” [...]21

Nas condições da modernidade política, consolidada a hegemonia da razão

instrumental, o Rei viu-se impedido de atuar acima das leis, pois a justificativa de ser o

verdadeiro dignitário de Deus na terra passou a ser inaceitável fora dos quadros metafísicos

ou religiosos, abalados pela mentalidade leiga desde então dominante.

Então, a teoria da soberania passa das mãos de Deus, ao povo, sendo teorizada

como o brocardo de que o poder emana do povo e por ele será exercido por intermédio de

seus representantes. Agora, a vontade geral será externada pelo soberano, por meio das regras

do Direito.

No entanto, como aduziu Rohan, [...] “os reis comandam os povos e os interesses

comandam os reis”; o interesse objetivo é a “única [lei] que não falha”, e que, “mal ou bem

compreendido, o interesse é responsável pela existência e pelo desaparecimento dos governos.

[...]22.

Em outros termos, se os poderes se sujeitavam à lei, e esta à vontade do soberano,

então os poderes se sujeitavam aos interesses objetivos.

[...] De fato, a divisão dos poderes, princípio de legalidade e direitos fundamentais correspondem a outras tantas limitações e, em última análise, a negação da soberania interna. (...) Sob esse aspecto, o modelo do estado de direito, por força do qual todos os poderes ficam subordinados à lei,

21 FERRAJOLI, Luigi. (2002). A soberania no mundo moderno: Nascimento e crise do Estado nacional. São Paulo: Martins Fontes. p 31 e 32. 22 ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 396.

Page 17: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

26

equivale à negação da soberania, de forma que dele resultam excluídos os sujeitos ou os poderes legibus soluti(...) [...]23

Neste sentido, o soberano necessitou apoderar-se do sistema econômico para

financiar o Estado, e fomentou as políticas de saúde e saneamento para garantir que os

“pobres sujeitinhos mansos”24 trabalhassem por mais tempo, em melhores condições e,

conseqüentemente, garantissem, a exemplo das molas, mancais e rodas dentadas, peças as

quais o sistema garante o funcionamento do relógio, o funcionamento de toda a máquina

estatal.

Quem muito bem elucidou tal cenário, foi Giorgio Agamben:

[...] Como o economista e o comerciante são responsáveis pela economia dos valores materiais, assim o médico é responsável pela economia dos valores humanos... É indispensável que o médico colabore para uma economia humana racionalizada, que vê no nível de saída do povo a combinação do rendimento econômico... As oscilações da substância biológica e aquelas do balanço material são geralmente paralelas. (Ibidem. p. 40.) [...]25.

O trabalho passa a ter preço, mas, muito mais do que isso: pela razão do

amigo/inimigo, é inimigo do Estado aquele que não trabalha, pois o trabalho dignifica o

homem.

O trabalho é então explorado por uma nova classe, a burguesa, e quantificado, para

efeitos de remuneração, como se pode ver logo a seguir:

[...] Ele pinta um quadro quase completo não do Homem, mas do homem burguês, uma análise que em trezentos anos não se tornou antiquada nem foi suplantada. “A razão (...) é nada mais que cálculo”: “um súdito livre, uma vontade livre (...) [são] palavras (...) sem significado, isto é, um absurdo”. O homem é essencialmente uma função da sociedade e é, portanto, julgado de acordo com o seu “valor ou merecimento (...) seu preço: ou seja, aquilo que se lhe daria pelo uso da sua força”. Esse preço é

23 FERRAJOLI, Luigi. (2002). A soberania no mundo moderno: Nascimento e crise do Estado nacional. São Paulo: Martins Fontes. p 28. 24 ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 164. 25 AGAMBEN, Giorgio. (2002) Homo Sacer – O Poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, p. 152.

Page 18: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

27

constantemente avaliado e reavaliado pela sociedade, fonte de “estima dos outros” de acordo com a lei da oferta e da procura. O poder, segundo Hobbes, é o controle que permite estabelecer os preços e regular a oferta e a procura de modo que sejam vantajosas a quem detém este poder. [...]26

Dando continuidade a este pensamento, Newmann complementa:

[...] (…) the market offered real chances for advance to most economic actors. In that long-ago world, legal institutions and norms were meant to preserve more than a mere set of formal but also “factual” liberties; the notion of equality before the law was intended to give actors a “factual chance” of taking advantage of them. [...]27.

A economia cresceu a uma velocidade sem precedentes, tomou grande parte da

mão-de-obra disponível, forçando o êxodo rural. Em decorrência disso, nações despontaram

no cenário mundial, mas parte deste capital adquirido permaneceu ocioso, pois a relação

biunívoca existente entre oferta e procura atingiu seu apogeu.

Neste instante, sob a pressão de uma classe burguesa que financiava o Estado

mantido pelo Soberano, este vê-se forçado a expandir suas políticas internacionais com o

fomento ao comércio.

Inicia-se a fase imperialista que tem como necessidade o expansionismo.

[...] O imperialismo surgiu quando a classe detentora da produção capital rejeitou as fronteiras nacionais como barreira à expansão econômica. A burguesia ingressou na política por necessidade econômica: como não desejava abandonar o sistema capitalista, cuja lei básica é o constante crescimento econômico, a burguesia tinha de impor sua lei aos governos, para que a expansão se tornasse o objetivo final da política externa. [...]28

26 ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 169. 27 A tradução que se segue, foi elaborada pelo autor desta dissertação: [...] (...) o mercado ofereceu chances reais para a maior parte dos atores econômicos avançar. No passado, as instituições legais e as normas foram concebidas para preservar mais do que uma mera liberdade formal, mas, também, uma liberdade “factual”; a noção de equidade em decorrência da lei foi criada para dar aos atores “chances factuais” para tirar vantagem sobre isso. [...]. MANN. APUD. SCHEUERMAN, William E.. (1994). Between the norm and the exception: the Frankfurt School and the rule of law. Baskerville: Maple-Vail Book Manufacturing Group. p. 49. 28 ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 156.

Page 19: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

28

Justificada pela necessidade de progresso da humanidade, o comércio exterior e as

relações internacionais iniciam suas discussões propiciando que aquele quadro de

discriminação existente entre burgueses e operários, que até então era mantido intra-Estado,

passe a vigorar inter-Estados, pois as nações que se industrializaram, apoiadas nos corpos

dóceis, passaram a fornecer produtos manufaturados às nações cujo desenvolvimento

industrial ainda não se havia iniciado, ou que ainda se encontravam nos primeiros passos

deste processo.

É o que pode ser depreendido a partir da seguinte leitura:

[...] Mais antigo que o capital supérfluo era outro subproduto da produção capitalista: o lixo humano, que cada crise, seguindo-se invariavelmente a cada período de crescimento industrial, eliminava permanentemente da sociedade produtiva. Os elementos tornados permanentemente ociosos eram tão supérfluos para a comunidade como os donos do capital supérfluo. Durante todo o século XIX, reconheceu-se que ameaçavam a sociedade de tal modo que sua “exportação” foi promovida, ajudando, aliás, a povoar os domínios do Canadá e da Austrália, bem como os Estados Unidos. O fato novo da era imperialista foi que essas duas forças supérfluas para o capital supérfluo e a mão-de-obra supérflua – uniram-se e, juntos, abandonaram seus países. O conceito de expansão, a exportação da força do governo e a anexação de todo o território em que cidadãos tivessem investido a sua riqueza ou seu trabalho, parecia a única alternativa para as crescentes perdas econômicas e demográficas. O imperialismo e sua idéia de expansão ilimitada pareciam oferecer um remédio permanente para um mal permanente. [...]29

Para estabelecer um liame entre a existência de um terror eminente e a

necessidade de que este soberano ali esteja para rechaçá-lo, não é necessário que se destruam

convicções e, sim, que estas sejam criadas de acordo com uma linha de desdobramento causal,

o qual é delineada e veiculada por todos os meios de comunicação.

[...] depende das classes dominantes a manutenção ou não da fé do proletariado na democracia. A superioridade econômica coloca nas mãos da classe dominante os meios para controlar financeiramente os partidos políticos, a imprensa, o cinema e a literatura, além da dominação social

29 ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 180.

Page 20: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

29

sobre escolas e universidades. Tudo isto gera uma enorme influência sobre a opinião publica, a burocracia e nas eleições Desta forma, a classe dominante pode preservar as formas democráticas e instaurar uma ditadura que falseia a representação e faz da democracia uma ficção [...]30

Assim, para se adestrar os corpos-dóceis, de acordo com a necessidade burguesa,

essa classe manipula os meios de comunicação, e com isso difunde suas idéia e controla as

informações que até aqueles chegam. [...] Os formuladores e executores das políticas desejam,

assim, que seus interesses sejam garantidos pelo direito estatal e que o aparato de poder do

Estado se coloque à disposição de seus interesses. [...]31

Como um pensamento darwiniano, a idéia da sobrevivência dos “mais aptos” é

introduzida no curso da ideologia política, e têm-se como “mais aptas” determinadas classes

sociais, os mais civilizados, aqueles que se propõem a financiar o Estado para manter o

soberano.

Dessa forma, com os idéias criacionistas – os homens são irmãos, pois descendem

dos mesmos pais – sendo substituídos pelos ideais evolucionistas – sobrevivência dos mais

aptos – e, tendo o Estado que lutar pela evolução humana, o progresso passou a ser visto, e

segundo essa ideologia, justificado, como privilégio.

Uma vez incutidos tais sentimentos em um povo, a receptação rotineira se

automatiza e se transforma em idolatria. Nesta “guerra de todos contra todos” sobreviverão os

“mais aptos”. Como estes, grosso modo, fazem parte do governo, estabelecem-se as regras por

meio de leis e, assim, o fazem por meio do Direito.

Este é um dos aspectos dominantes no pensamento do final do Século XIX, que se

arrastou por toda a metade do Século XX. O Estado é visto como a fonte de poder absoluto e,

portanto, quem dirige e cria a Lei. Porém, como alguns Estados comandam os demais –,

30 BERCOVICI, Gilberto. (2004) Constituição e estado de exceção permanente. Rio de Janeiro: Azougue Editorial. p.126 31 BERCOVICI, Gilberto. (2004) Constituição e estado de exceção permanente. Rio de Janeiro: Azougue Editorial. p.115

Page 21: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

30

embora haja a igualdade de direito entre Estados, a desigualdade de fato é explicita – o

pensamento se mantém vivo e latente até hoje.

1.4 Democracia e totalitarismo: uma relação necessária

Diante de todo o alegado, pode-se argumentar que, sob as condições de uma

soberania, que é biopolítica, existe uma passagem, não uma ruptura, entre democracia e

totalitarismo.

O totalitarismo não representa um rompimento com a tradição da democracia

liberal. Ao contrário, o estado liberal e o jurídico abrigam em si, como elemento de sua

lógica, o totalitarismo.

Hodiernamente, o totalitarismo, seja hitlerista ou stalinista, seguiu estas mesmas

lições. Capta-se, com nitidez, que a origem do governo totalitário, ao contrário do que parece,

não tem suas raízes em posições diametralmente opostas à origem da democracia moderna.

A dominação ideológica procura a atomização do sujeito e a identidade de reações

da coletividade, pois, individualmente, ao sentir-se solitário, o homem dirige-se, por falta de

incentivos, modelos e conjunção de forças, à inércia. Concomitantemente e

conseqüentemente, a coletividade formada por indivíduos inertes, precipita-se à estagnação e,

desnorteada, é presa fácil à dominação ideológica.

Tal modelo pode ser visto nos campos de concentração. Este é o paradigma do

modelo conjuntural da sociedade pós-moderna, tanto lá quanto cá, tal modelo de sociedade

encontra-se cientificamente controlado, ou, como expôs Hannah Arendt, [...] (...) os campos

são não apenas la societé la plus totalitaire encore réalisé (David Rousset), mas também o

modelo social perfeito para o domínio total em geral. [...]32

32 ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 489.

Page 22: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

31

A dominação total transforma o homem em objeto descartável, e o Estado fomenta

esta situação.

[...] Apenas uma coisa parece discernível: Podemos dizer que esse mal radical surgiu em relação a um sistema no qual todos os homens se tornaram igualmente supérfluos. Os que manipulam esse sistema acreditam na própria superfluidade tanto quanto na de todos os outros, e os assassinos totalitários são os mais perigosos porque não se importam se eles próprios estão vivos ou mortos, se jamais viveram ou se nunca nasceram. O perigo das fábricas de cadáveres e dos poços do esquecimento é que hoje, com o aumento universal das populações e dos desterrados, grandes massas de pessoas constantemente se tornam supérfluas se continuarmos apenas em nosso mundo em termos utilitários. Os acontecimentos políticos, sociais e econômicos de toda parte conspiram silenciosamente com os instrumentos totalitários inventados para tornar os homens supérfluos. O bom senso utilitário das massas, que, na maioria dos países, estão demasiado desesperadas para ter medo da morte, compreende muito bem a tentação a que isso pode levar. Os nazistas bolchevistas podem estar certos de que as suas fábricas de extermínio, que demonstram a solução mais rápida do problema do excesso de população, das massas economicamente supérfluas e socialmente sem raízes, são ao mesmo tempo uma atração e uma advertência. As soluções totalitárias podem muito bem sobreviver à queda dos regimes totalitários sob a forma de forte tentação que surgirá sempre que pareça impossível aliviar a miséria política, social ou econômica de um modo digno do homem. [...]33

Esta situação permitiu a construção e o funcionamento dos campos de

concentração nazistas, que segundo Giorgio Agamben, [...] é um híbrido de direito e fato, no

qual os dois termos tornaram-se indiscerníveis [...]34.

Porém, o mesmo embasamento da construção dos campos de concentração, bem

como das atrocidades nele cometidas, deram sustentação ao Velódromo, na ex-Iugoslávia, a

Guantánamo, em Cuba, e a AbuGraib, no Iraque.

É neste sentido que Hannah Arendt aduz que [...] O objetivo da educação

totalitária nunca foi insuflar convicções, mas destruir a capacidade de adquiri-las. [...]35

33 ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 510 e 511. 34 AGAMBEN, Giorgio. (2002) Homo Sacer – O Poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, p. 177. 35 ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 520.

Page 23: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

32

Este conceito de soberania parece ter se dissipado, pois neste sentido, entre

soberania e Direito haveria o que se convencionou chamar de antinomia.

Aliás, neste mesmo sentido, leciona Hannah Arendt:

[...](...) En efecto, el poder puede ser destruido por la violencia; es precisamente lo que ocurre en las tiranías, donde la violencia de uno destruye el poder de la mayoría, las cuales, por tanto, de acuerdo a la teoría de Montesquieu, son destruidas desde dentro; perecen porque engendran violencia en vez de poder. Ahora bien, el poder, contrariamente a lo que podríamos pensar, no puede ser contrarrestado, al menos de modo efectivo, mediante leyes, ya que el llamado poder que detenta el gobernante en el gobierno constitucional, limitado y legítimo, no es, en realidad, poder, sino violencia, es la fuerza multiplicada del único que ha monopolizado el poder de mayoría. Las leyes, por otra parte, se ven en peligro constante de ser abolidas por el poder de la mayoría, y debe notarse que, en un conflicto entre la ley y el poder, raras veces la victoria es para la ley. [...]36

Em Origens do totalitarismo, Hannah Arendt conclui:

[...] Sempre que galgou o poder, o totalitarismo criou instituições políticas inteiramente novas e destruiu as tradições sociais, legais e políticas do país, Independentemente da tradição especificamente nacional ou da fonte espiritual particular de sua ideologia, o governo totalitário sempre transformou as classes em massas, substituiu o sistema partidário não por ditaduras unipartidárias, mas por um movimento de massa, transferiu o centro do poder do Exército para a polícia e estabeleceu uma política exterior que visava abertamente ao domínio mundial. [...]37

No estado de exceção, a supressão dos direitos fundamentais da população é

diametralmente oposta ao acréscimo de poder incorporado e exercido pelo soberano, em que a

eliminação física da vida nua é, não só permitida, como realizada:

[...] O totalitarismo moderno pode ser definido, nesse sentido como a instauração, por meio do estado de exceção, de uma guerra civil legal que permite a eliminação física não só dos adversários políticos, mas também de categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não integráveis ao sistema político [...]38.

36 ARENDT, Hannah. Sobre la revolución. Madrid: Revista de Occidente, 1967. p. 160. 37 ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 512. 38 AGAMBEN, Giorgio. (2004) Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo. p. 13.

Page 24: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

33

Foi neste mesmo segmento que Michel Foucault inverteu a máxima de

Clausewitz e declarou que [...] a política é a guerra continuada por outros meios. [...]39

Ao se criar o terror, o soberano reforça a necessidade de dependência da massa

em relação ao seu governo, e à medida que o cria, o homem se configura mais e mais como

engrenagem de um sistema. Se não, veja-se:

[...] (...) enquanto o governo totalitário não conquista toda a terra e, com o cinturão do terror, não transforma cada homem em parte de uma humanidade única, o terror, em sua dupla função de essência de governo e princípio não de ação mas de movimento, não pode ser completamente realizado. Do mesmo modo com a legalidade, no governo constitucional, é insuficiente para inspirar e guiar as ações dos homens, também o terror no governo totalitário não é suficiente para inspirar e guiar o comportamento humano. [...]40

A soberania pertence ao soberano, e os súditos devem respeitá-la, porque, o

discurso daquele é legítimo, em virtude de sua regulamentação pelo Direito.

O soberano não muda. Ele constrói as leis, respeitando, para tanto, todos os

pressupostos necessários à sua efetiva legitimidade. E estas, sim, mudam. E mudam conforme

a conveniência da situação.

Tais contingências são mutáveis no tempo, pois o espírito humano é altamente

dinâmico e, em assim sendo, sob seu domínio, novas leis e instituições devem ser criadas.

Desta forma, diante da instabilidade humana, a construção de novas leis ou a

reconstrução de uma legislação antiga parece funcionar como uma equação que lê as

contingências conjunturais, e passa tais informações ao soberano, para que este, por meio

delas, institua as regras que se estabeleceram como parâmetros mínimos de convivência

social, entre os iguais, e instrumento de manipulação, entre os desiguais.

39 FOULCAULT, Michel. (1999) Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes. p.22. 40 ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 519.

Page 25: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

34

É assim que a lei se comporta como instrumento legitimador da vontade do

soberano e, por outro lado, como instrumento repressor a todos aqueles que contra este

sistema dinâmico se contrapõem.

Criando tais leis, o soberano garante sua dominação, sem ferir o princípio da

legalidade, ou seja, sem arremessar-se na “arbitrariedade” ou na falta de justificativa de seus

atos.

Em virtude de tal quadro, poder-se-ia realizar um questionamento levantado por

Michael Hardt e Antonio Negri, em sua obra Império: [...] Que fonte jurídica, que norma

fundamental, e que comando podem apoiar uma nova ordem e evitar o iminente mergulho na

desordem global? [...]41.

A ausência de respostas convincentes, apesar de marcar esta época, gera

instabilidade científica, e esta, por sua vez, parece demonstrar um cenário crítico, nebuloso,

que nada responde, nem explica, mas se instaura e solicita soluções rápidas e pertinentes.

41 HARDT, Michael e NEGRI, Antonio. (2001). Império. Rio de Janeiro: Record. p. 26.

Page 26: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

35

2. DIREITO EM CRISE

O palco temático, por onde se envereda a discussão sobre o ensino, interpretação

e aplicação da ciência jurídica, não tem demonstrado grandes avanços nos últimos três

séculos, mostrando-se, com isso, que grande parte dos debates se mantém estagnados e

anacrônicos, o que, por conseguinte, sinaliza a existência de um momento de transição ou

crise.

Neste sentido, aduziu Boaventura de Souza Santos:

[...] A época em que vivemos deve ser considerada uma época de transição entre o paradigma da ciência moderna e um novo paradigma, de cuja emergência se vão acumulando os sinais, e a que, à falta de melhor designação, chamo ciência pós-moderna. [...]42.

Essa crise é perceptível à medida que suas discussões parecem inserir, em retas

paralelas, o senso crítico e a realidade social, em que o Direito se insere, jamais vindo a se

tocar, portanto.

É possível compreender que, muito embora se viva em uma era cibernética, o

ensino jurídico e os órgãos institucionais diretamente ligados à existência e à manutenção do

Direito continuem na era da dogmática e do positivismo, com poucos avanços quanto à sua

estrutura e metodologia.

Como ciência humana e social, o Direito exige de quem o estuda, aplica e o

ministra, uma visão ampla e interdisciplinar de todo o campo das relações humanas e sociais,

ou seja, uma sólida formação cultural e humanista.

A ausência desta formação dirige este modelo clássico do Direito positivo

ocidental à falência, uma vez que os agentes conhecem debilmente os cenários ou as

disciplinas onde atuam e, menos ainda a realidade social onde suas discussões se inserem, fato

42 SANTOS, Boaventura Souza. (1989). Introdução a uma ciência pós-moderna. Rio de Janeiro: Graal. p. 11.

Page 27: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

36

este que leva à pobreza de argumentações, uma vez que é com o confronto de posições e

perspectivas que o objeto torna-se mais claro.

Supõe-se, portanto, com vontade máxima, buscar despertar a consciência jurídica

por meio de um senso crítico, formando-se, assim, construtores do Direito, e não meros

operadores da lei, pois esta é apenas uma forma de expressão, sendo a formação social o

objeto da pesquisa, e não o contrário.

A propósito, Kirchheimer, afirmou: [...] the democratic state “tends to disappear

behind its own legal mechanism”. [...]43.

Se não desaparece, também não se torna evidente, aos olhos do homem, pois a lei

se refere com maior freqüência ao que não se deve fazer, e não ao que se pode. Por isso, não

causa inspiração e nem permite que o homem a descumpra, como dito por Hannah Arendt:

[...] Se a essência do governo é definida como a legalidade, e se fica compreendido que as leis são as forças estabilizadoras dos negócios públicos dos homens (como realmente sempre o foram desde que Platão invocou em suas Leis a Zeus, o deus dos limites), surge então o problema do movimento do corpo político e dos atos dos seus cidadãos. A legalidade impõe limites aos atos, mas não os inspira; a grandeza, mas também a perplexidade, das leis nas sociedades livres está em que apenas dizem o que não se deve fazer, mas nunca o que se deve fazer. [...]44

A justiça, como premissa, dá a fundamentação, mas, ela mesma é muitas vezes

indemonstrável, no plano do direito positivo.

[...] Neste passo, não havia conforto ideológico nas casas legislativas. O debate parlamentar se prestava, mesmo, para, no contexto de uma identidade ideológica, produzir leis genéricas, abstratas e impessoais. Portanto, aí, nesse tempo, a lei era mesmo uma expressão da vontade geral, compreendida esta como vontade expressada pelos representantes da nação (que, em ultima instância, eram apenas os representantes de uma classe).

43 A tradução que se segue, foi elaborada pelo autor desta dissertação: [...]O Estado Democrático “tende a desaparecer sob o seu próprio sistema legal” [...]. KIRCHHEIMER, Otto. APUD. SCHEUERMAN, William E.. (1994). Between the norm and the exception: the Frankfurt School and the rule of law. Baskerville: Maple-Vail Book Manufacturing Group. p. 26. 44 ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 518 e 519.

Page 28: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

37

Tudo muda com o sufrágio universal. Os novos eleitores farão novos representantes. O Parlamento deixa de ser o lugar com a identidade ideológica. Ao contrário, sérias fissuras passam a ocorrer no seio das casas legislativas. Fissuras que darão lugar aos partidos políticos organizados, que substituem os antigos blocos parlamentares, o debate parlamentar passa a ser um debate ideológico, onde diferentes concepções a respeito do papel do direito e do Estado passam a se confrontar. A lei não consistirá mais na expressão da vontade geral. Não é possível encontrar uma vontade geral descoberta pelo debate parlamentar orientado pela razão. A lei passa, sim, a ser, talvez, apenas expressão de uma “vontade política”. A vontade política do grupo majoritário no seio do Parlamento. Aparece aqui talvez o primeiro atentado contra a concepção sacralizadora da lei. E porque constitui expressão da “vontade política”, cada vez menos os juristas se importam com o conteúdo da lei. A lei é forma. Não importa o seu conteúdo. Importa, sim, o fato de que o processo de democratização pelo qual passou a humanidade nas últimas décadas tenha contribuído para o surgimento de um direito formalizado, destituído, em princípio, de conteúdo. [...]45

Complementando o pensamento de Clèmerson Merlin Clève, Hannah Arendt

explana:

[...](...)y de acuerdo a las regulaciones de una constitución, la cual, a su vez, no es expresión de una voluntad nacional ni esta sometida a la voluntad de una mayoría en mayor medida que un edificio es la expresión de la voluntad de su arquitecto, o esta sometido a la voluntad de sus habitantes. [...]46

Ademais, não só o ordenamento jurídico não parece condizer com a vontade

popular, mas o soberano não cria condições para que um dia essa vontade possa se efetivar.

Em outras palavras, o verdadeiro papel do “Príncipe Moderno”, segundo o entendimento de

Antonio Gramsci, não é apresentado, e o povo, no processo político, sob o ponto da

tecnologia do discurso, continua coadjuvante dentro de seu próprio Estado, como pode ser

aduzido no trecho a seguir, extraído de sua obra, Maquiavel a política e o Estado moderno:

45 CLÈVE, Clèmerson Merlin. A atividade legislativa do Poder Executivo no Estado contemporâneo e na Constituição de 1988. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1993. p. 48 e 49. 46 A tradução que se segue, foi elaborada pelo autor desta dissertação: [...] de acordo com as regulações de uma Constituição, a qual, por sua vez, não é a expressão da vontade nacional e nem está submetida à vontade de uma maioria representada pelo parlamento, é a expressão da vontade de seu arquiteto, ou está submetida a vontade de seus habitantes. [...]. ARENDT, Hannah. Sobre la revolución. Madrid: Revista de Occidente, 1967. p. 175.

Page 29: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

38

[...] O moderno Príncipe deve e não pode deixar de ser o propagandista e o organizador de uma reforma intelectual e moral, o que significa criar o terreno para um desenvolvimento ulterior da vontade coletiva nacional-popular no sentido de alcançar uma forma superior e total de civilização moderna. Estes dois pontos fundamentais: formação de uma vontade coletiva nacional-popular, da qual o moderno Príncipe e ao mesmo tempo o organizador e a expressão ativa e atuante, e reforma intelectual e moral, deveriam construir a estrutura do trabalho. Os pontos programáticos concretos devem ser incorporados na primeira parte, isto é, deveriam, “dramaticamente” resultar do discurso, não ser uma fria e pedante exposição de argumentos. [...]47.

Percebe-se, com a concatenação das leituras anteriores, que o povo, mais do que

coadjuvante, é utilizado como meio para as realizações das políticas de interesse do soberano.

Ademais, tão logo estes objetivos são alcançados para aquele fim, o povo não é convidado a

usufruir dos frutos colhidos em tais realizações.

Todavia, para manter este tipo de dominação, permite-se o terror, para que o

Estado dê a proteção, e demoniza-se qualquer tentativa de se evidenciar e elucidar tais

mecanismos, como bem esclareceu Gramsci:

[...] Qual o significado disto? (...) será que se tem um mero significado político atual, serve para indicar apenas a separação existente entre governantes e governados, para indicar que existem duas culturas: a dos governantes e a dos governados; e que a classe dirigente, como a igreja, tem uma atitude sua em relação aos simples, ditada pela necessidade de não afastar-se deles, de um lado, e, de outro, de mantê-los na convicção de que Maquiavel nada mais é do que uma aparição diabólica?[...]48.

Maquiavel era maquiavélico no sentido pejorativo do termo, ou, com seus

trabalhos, incomodou uma classe dominante (política e igreja), e recebeu a pecha de mau, por

parte dos que sabiam, para que os que não sabiam continuassem não sabendo?

Assim, aqueles continuaram dominando. Isso, pois, sem dúvida, com seus

ensinamentos, Maquiavel trouxe tecnologia à política e, por conseqüência, às formas de

47 GRAMSCI, Antonio. (1991). Maquiavel, a política e o Estado Moderno. 8. ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira. P. 8 e 9. 48 GRAMSCI, Antonio. (1991). Maquiavel, a política e o Estado Moderno. 8. ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira. P. 10.

Page 30: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

39

dominação. Se de fato isto ocorreu, era importante manter seus ensinamentos em segredo para

que o mínimo de pessoas soubesse, e o máximo fosse dominado.

Mais a frente, continua:

[...] Pode-se, portanto, supor que Maquiavel tem em vista “quem não sabe”, que ele pretende educar politicamente “quem não sabe”. Educação política não-negativa, dos que odeiam tiranos, como parecia entender Foscolo, mas positiva, de quem deve reconhecer como necessários determinados meios, mesmo se próprios dos tiranos, porque deseja determinados fins. [...]49.

A classe dominante foi feliz na demonização de Maquiavel, tanto que quase

quinhentos anos depois de sua morte (1469-1527), o maquiavelismo é sinônimo de perfídia,

pelo menos para a classe dominada, justamente a quem ele mais escrevia, e utilizado como

livro de cabeceira pela classe dominante, a quem ele atacava. Dessa forma, prolonga-se a

dominação dos corpos dóceis.

Diante disso, o povo permanecendo afastado das lições de Maquiavel, tais

ensinamentos se transformaram em técnica de dominação de classes.

Mas, o discurso de Maquiavel não só servia para os que não sabiam, e sim,

também para manter uma determinada classe no poder – a nobreza -. Por isso, havia

necessidade de escondê-lo, persegui-lo, para que ele não pudesse levar sua mensagem ao povo

do país.

Para Antonio Gramsci, Maquiavel foi [...] odiado porque “revelou os segredos” da

arte de governar, etc. [...].50

Tal panorama, o qual foi aqui chamado de crítico, tendo em vista que o

instrumento pelo qual as políticas públicas deveriam se apoiar e de onde o Estado deveria

nascer e, portanto, onde as garantias deveriam proliferar, multiplica-se de forma anárquica e

49 GRAMSCI, Antonio. (1991). Maquiavel, a política e o Estado Moderno. 8. ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira. P. 11. 50 GRAMSCI, Antonio. (1991). Maquiavel, a política e o Estado Moderno. 8. ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira. P. 132.

Page 31: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

40

se transforma em um mecanismo de dominação, como células saudáveis e imprescindíveis à

formação do corpo do homem que, de repente se desestabilizam de forma caótica, deturpando

sua função essencial inicial e tendem a um colapso tumoral.

2.1 Patologia Jurídica

À formação de um médico, é de suma importância o estudo reiterado e

aprofundado da fisiologia e da anatomia do corpo humano. Em outras palavras, procura-se

entender, primeiramente, a dinâmica do sistema, a estrutura dos mais diversos elementos de

que o corpo humano se constitui, o funcionamento dos órgãos internos e suas funções físico-

químicas.

De posse destes conhecimentos, o profissional em formação poderá então partir

para o estudo das circunstâncias que provocam a alteração da normalidade e do ordenamento

desse imenso e minucioso sistema chamado corpo humano. E, desse modo, investigar suas

patologias.

Pois bem, durante os séculos, tais antagonismos existentes entre a

fisiologia/anatomia e a patologia humana, foram observados e estudados, para que tais

alterações pudessem ser revertidas, e a fisiologia restabelecida em seu estado normal.

Diante disso, experimentos foram colecionados em forma de vade-mécum, de

tratados e compêndios, para que os casos futuros, que apresentassem semelhantes sintomas,

pudessem ser diagnosticados mais facilmente, a natureza da causa fosse descoberta mais

rapidamente, e a forma que tal patologia pudesse desenvolver, e como poderia ser estancada,

que fosse conhecida pela classe médica, e o devido prognóstico tivesse sua fundamentação.

Portanto, vê-se com clareza que o uso do vade-mécum, tratados e compêndios

como um bulário, só é devidamente realizado após a minuciosa identificação da existência de

Page 32: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

41

um estado patológico, bastante discernível, tendo em vista o grande conhecimento científico

que o profissional da saúde possui tanto do normal quanto de seu anverso.

No Direito, ao se analisar a situação e proferir a tendência, ou seja, o diagnóstico

da conjuntura em debate já que esta ciência não trabalha com o imponderável e sim, com a

incerteza, não parece haver uma linha de raciocínio que migra da fisiologia/anatomia social à

patologia dos fatos, e à efetiva aplicação da norma, deixando-se apenas para essas duas

últimas a integralidade da construção racional que unirá por fim, o diagnostico ao prognóstico

da situação aferida.

Tal análise não pode trazer consigo um retrato fiel do momento social e, dessa

forma, sua eficácia se compromete.

Nesse sentido, há mais de meio século, San Tiago Dantas, jurista e Ministro das

Relações Exteriores do Governo Jânio Quadros, ao proferir o discurso da aula inaugural do

Curso de Direito da Faculdade Nacional de Direito, assim teceu suas razões:

[...] Hoje é lícito dizer-se que a causa imediata da expansão ou da decadência de uma civilização ou mesmo de um grupo social, como um Estado, ou uma entidade menor contida no Estado, reside respectivamente no aumento e na perda da eficácia de sua cultura, na capacidade ou incapacidade de criar e aplicar as técnicas diversas de controle do meio físico e social [...]51.

A função do Direito não é só dar regras. Há que se ter um caráter consciente e

filosófico da organização social, mesmo porque do Direito nada mais se deseja - pois desde a

sua gênese até este momento, dele nada mais se esperou - que intervenha, sobretudo, na

organização da vida em sociedade52.

51 DANTAS, San Tiago. (1955) A Educação Jurídica e a Crise Brasileira. Aula inaugural dos cursos da Faculdade Nacional de Direito. p. 3. 52 Para João Baptista Herkenhoff, [...] o jurista tem um papel transformador do direito vigente e da sociedade, por meio do direito. Nessa perspectiva o direito deixa de ser “o lugar da manutenção dos privilégios de uma classe ou estamento, ou outros grupos microssociais, para converter-se em espaço de luta, o lugar da conquista dos direitos e da dignidade humana [...]. HERKENHOFF, João Baptista, 1968. Como aplicar o Direito. 2. ed. Rio de Janeiro. p. 89

Page 33: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

42

Desta forma, é de fundamental importância que a Ciência Jurídica tenha pleno

conhecimento sobre a origem e o destino do homem, sobre a fisiologia/anatomia da sociedade

por ele conformada, para se evitar que entre Direito e sociedade exista um hiato, uma zona de

indistinção, que traz consigo a inexistência da certeza, de respostas para problemas de

natureza tão diversas e muitas vezes tão simples.

Tal conjectura foi articulada por Jorge Mosset Ituraspe:

[…] el jurista la mayoría de las veces aplica el derecho, lo enseña o lo investiga sin antes haber meditado sobre el hombre, su origen y su destino, es decidir, perdiendo de vista el sentido político y filosófico que sin saber está escondido o implícito en sus afirmaciones […]53.

Muitas implicações são feitas no Direito moderno sem se saber a origem do

homem. No entanto, fala-se em dever ser, mas o próprio Direito, ao perder contato com

grande parte da realidade social, não tem condições de dizer quem somos e, portanto, o que

devemos ser.

[…] En las afirmaciones que sobre el derecho hacen los abogados, los profesores de derecho o quienes aplican las leyes, hay escondido un sentido político y filosófico de modo tal que si no se es consciente de esos significados, se falseará el lugar del derecho en la regulación de la convivencia humana en sociedad […]54.

O manto que une a convivência social perde eficácia, gerando-se, por conseguinte,

uma educação condicionada, o que demonstra comprometer, segundo San Tiago Dantas, o

papel da própria cultura na sociedade.

53 A tradução que se segue, foi elaborada pelo autor desta dissertação: [...] O jurista na maioria das vezes aplica o Direito, o ensina e o investiga sem haver meditado sobre o homem, sua origem e seu destino, e isto é decidir perdendo de vista o sentido político e filosófico, que sem saber está escondido e implícito em suas afirmações. [...]. BIAGI, Marta. (2005) Para investigar en ciencias jurídicas. Comentarios sobre los hábitos del pensamiento riguroso. Revista JurisPoiesis – ano 8, n. 8. p. 239. 54 A tradução que se segue, foi elaborada pelo autor desta dissertação: [...] Nas afirmações que os advogados, os professores de Direito ou quem aplica as leis fazem sobre o Direito, tem escondido um sentido político e filosófico de modo tal que se não se é consciente destes significados, se falseará o lugar do Direito na regulação da convivência humana na sociedade. [...]. BIAGI, Marta. (2005) Para investigar en ciencias jurídicas. Comentarios sobre los hábitos del pensamiento riguroso. Revista JurisPoiesis – ano 8, n. 8. p. 239.

Page 34: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

43

[...] A sociedade desaparece pela incapacidade de sua classe dirigente de manter a vida social sob a disciplina de normas éticas e jurídicas eficazes, que mantenham as atividades do grupo subordinadas aos ideais de cultura, conciliando justiça e eficácia, e impregnando de seus critérios éticos todas as formas de exercício da autoridade. Se Moral e Direito perdem eficácia para conter e legitimar o utilitarismo egoístico da classe dirigente, não tarda que perca também força persuasiva e eficácia preventiva junto à classe dirigida, e que se comprometa a coesão e equilíbrio da comunidade. Inicia-se então o processo de secessão política, isto é, a classe dirigida gradativamente se emancipa da liderança da classe dirigente tornada ineficaz, e entra naquele estado de disponibilidade, em que pode facilmente ser capturada pela sedução dos chefes de fortuna, ou pelo poder persuasivo de métodos de propaganda endereçados aos temas de ocasião [...]55.

Completando esse entendimento, San Tiago Dantas dá retoques finais às suas

argumentações:

[...] Ora, quem examina a cultura moderna, nos últimos decênios, não só entre nós, mas também entre outros povos, não pode deixar de reconhecer que o Direito, como técnica de controle da sociedade, vem perdendo terreno e prestígio para outras técnicas, menos dominadas pelo princípio ético, e dotadas de grau mais elevado de eficiência [...]56.

Esta situação desvenda a ausência de grandes projetos de inclusão e

desenvolvimentos sociais, a curto, médio ou longo prazo, nas mais diversas áreas, tais como

cultura e educação, o que fomenta a depreensão de que a estagnação vinda do passado, e

mantida nos dias de hoje, associada à falta de sólidos e consistentes projetos em discussão

para um futuro próximo, demonstra que seu status quo dificilmente se altere com a celeridade

necessária e desejada.

Seguindo esta linha de raciocínio, João Ribeiro Junior aduz:

[...] Portanto, o ensino do Direito é algo mais do que proferir lições em torno das suas várias disciplinas. É, sobretudo, despertar a consciência jurídica, mas não pelo conhecimento do Direito abstrato, dogmático, a -

55 DANTAS, San Tiago. (1955) A Educação Jurídica e a Crise Brasileira. Aula inaugural dos cursos da Faculdade Nacional de Direito. P. 4. 56 DANTAS, San Tiago. (1955) A Educação Jurídica e a Crise Brasileira. Aula inaugural dos cursos da Faculdade Nacional de Direito. P. 6

Page 35: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

44

histórico, ineficiente, desconectado da realidade social na qual vai ser utilizado, e, sim, pelo conhecimento de um novo Direito, contextualizado, em consonância com a sociedade concretamente existente. Em suma, o ensino do Direito não se deve a um simples conhecimento das leis vigentes, para sua aplicação mecânica aos casos concretos, mas a um saber jurídico que viabilize as novas práticas exigidas pela modernidade [...]57.

Vê-se, portanto, com bastante clareza, que o Direito como um todo, ou seja, de seu

ensino à aplicação de suas técnicas no meio social, muito embora não seja em primeiro lugar

um problema específico desta ciência, mas um problema político, desde, pelo menos, meados

do século passado, vem sendo estudado e questionado sob o ponto de vista de sua eficácia

social, sem se ter respostas claras sobre a plenitude de seu papel e eficácia social.

2.1.1 A patologia do Direito e as relações internacionais

Hodiernamente, o Direito Internacional vem sendo alvo de constantes críticas,

principalmente no que diz respeito às questões ligadas à soberania e aos direitos

fundamentais.

As diferenças e as intolerâncias entre grupos étnicos, crenças religiosas e nações

jamais se tornaram tão explícitas58.

Ademais, não bastasse tamanha intolerância às inúmeras diferenças existentes na

humanidade, o crescente desrespeito aos tratados internacionais, principalmente provindo de

nações com grande relevância global, reforça claramente a tese de uma “crítica à

57 RIBEIRO JUNIOR, João. Uma proposta didático-pedagógica para o ensino do Direito. São Paulo, Papirus. p. 62. 58 Este palco cênico foi muito bem relatado e abordado por Adauto Novaes em seu livro Civilização e Barbárie. [...] dividimos nossa existência em um naturalismo e um artificialismo extremos; vivemos o descrédito da política, o desprezo das normas éticas e morais, a opacidade das relações sociais, a obscuridade na cultura e nas artes, “verdades” estabelecidas pela ciência e pela técnica. A astúcia do poder produz guerra em nome da paz, substitui o medo pelo terror e, ao mesmo tempo, cria a mais nova configuração da relação clássica entre paixão e razão [...]. NOVAES, Adauto. (2004). Civilização e barbárie. São Paulo: Companhia das Letras. p. 7.

Page 36: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

45

modernidade”, principalmente no que diz respeito às promessas não cumpridas, feitas pelos

ideais iluministas.

Segundo os Juristas Oscar Vilhena Vieira e Dalmo Dallari, os Estados Unidos não

reconheceram, dentre outros:

[...] o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (1966), a Convenção de Genebra sobre Proteção às Vítimas de Conflitos Bélicos (1977), a Convenção contra a Discriminação Racial, a Convenção contra a Discriminação da Mulher (1979), a Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (1984), a Convenção sobre os Direitos da Criança (1989), a Convenção de Ottawa sobre a Proibição de Uso Armazenagem, Produção e Transferência de Minas Anti-pessoais (1997), nem o Estatuto de Roma que criou o Tribunal Penal Internacional (TPI), em 1988[...]59.

Em nome dos Direitos Humanos, hodiernamente consagrados pelos textos

constitucionais e oponíveis tanto à coletividade quanto aos Estados60, invade-se países que os

desrespeitam. Porém, os próprios invasores não respeitam seus tratados, definidos e exigidos

por tais direitos.

[...] A linha de um Estado hegemônico (de uma grande potência) não “oscila”, pois ele mesmo determina a vontade dos outros e não é determinado por ela, porque a linha política baseia-se em tudo o que há de permanente, e não de casual e imediato e nos interesses particulares e de outras forças que concorrem de modo decisivo para formar um sistema e um equilíbrio.[...] 61.

Diante deste quadro, vê-se a teoria da exceção schmittiana migrando das grandes

potências àquelas de menor expressão, porém, entre estas últimas ou entre estas últimas e as

59 Vilhena, Oscar e Dallari, Dalmo. Dois anos após atentados, onde de repressão continua a sacrificar liberdades civis – Disponível em: http://cartamaior.uol.com.br/cartamaior.asp?id=909&coluna=reportagem. Acesso em 15/09/2003. 60 Neste sentido, Miguel Angel Alegre Martinez: “Es de notar, además, que los destinatarios de este beber genérico son todas las personas. El respeto a los derechos fundamentales, traducción del respeto a la dignidad de la persona, corresponde a todos, precisamente porque los derechos que deben ser respetados son patrimonio de todos, y el no respeto a los mismos por parte de cualquiera privará al otro del disfrute de sus derechos, exigido por su dignidad.” El derecho a la propia imagen, 1997, p 40. 61 GRAMSCI, Antonio. (1991). Maquiavel, a política e o Estado Moderno. 8. ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira. p. 193.

Page 37: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

46

primeiras, uma relação kelseniana, dogmatizada, positivada, e com fulcro no pacta sunt

servanda62.

Esta nova autoridade foi bem narrada por Michael Hardt e Antonio Negri em

Império.

[...] É este, na realidade, o ponto de partida do nosso estudo do Império: uma nova noção de direito, ou melhor, um novo registro de autoridade e um projeto original de produção de normas e de instrumentos legais de coerção que fazem valer contratos e resolvem conflitos [...]63.

Aliás, além de não proporcionar o devido respeito aos direitos fundamentais, estes

podem ser restringidos sem base legal alguma, em situações de exceção, e ainda assim, sem

ferir o Princípio da Legalidade.

Tais atos lembram bastante alguns episódios da República de Weimar, onde por

meio do artigo 4864, permitia-se [...]“tomar sob custódia” certos indivíduos

independentemente de qualquer conduta penalmente relevante, unicamente como fim de

evitar um perigo para a segurança do Estado[...]65.

Sendo o pacta sunt servanda um elemento fomentador da idéia da aceitação e

obrigatoriedade da existência de um Direito Internacional, um elemento limitador da

soberania, tal princípio resume-se tão somente à tese.

Neste sentido, Celso Fernandes Campilongo frisa:

[...] Entretanto, até este momento, a globalização se ressente da falta de mecanismos capazes de manter e aprofundar, internacionalmente, um

62 Neste sentido: [...] Não é a vontade como tal, quer a de um Estado, quer a comum de todos ou de vários Estados, que faz nascer o direito internacional; a força obrigatória deste decorre da regra objetiva pacta sunt servanda que impõe aos Estados o respeito da palavra dada [...]62.62 MAZZUOLI, Valério de Oliveira. (2006) Curso de Direito Internacional. Editora Revisa dos Tribunais: São Paulo. p. 71. 63 HARDT, Michael e NEGRI, Antonio. (2001). Império. Rio de Janeiro: Record. p. 27. 64 Assim rezava o artigo 48, da Constituição de Weimar: [...]“ O presidente do reich pode, caso a segurança pública e a ordem sejam gravemente perturbadas ou ameaçadas, tomar as decisões necessárias para o restabelecimento da segurança pública, se necessário com o auxilio das forças armadas [...].AGAMBEN, Giorgio. (2002) Homo Sacer – O Poder soberano e a vida nua - Belo Horizonte: Editora UFMG, p. 174. 65 AGAMBEN, Giorgio. (2002) Homo Sacer – O Poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, p. 174.

Page 38: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

47

processo de diferenciação que garanta elevada complexidade e democracia no plano mundial. Os blocos econômicos decidem segundo o peso do PIB de seus integrantes. Onde está a regra “um homem, um voto”, assegurada pelas constituições nacionais? [...]66.

Luigi Ferrajoli também coaduna com tal pensamento:

[...] (...) o antigo princípio vitoriano da igual soberania dos Estados, sancionado pelo artigo 2 da Carta, é hoje, mais do que nunca, desmentido pela concreta desigualdade entre eles, fruto inevitável da prevalência da lei do mais forte e, portanto, pela existência de soberanias limitadas, repartidas, dependentes, endividadas, diferenciadas. [...]67

O que se vê, portanto, é uma discussão coonestada, argumentada de forma

convincente a respeito da conjuntura onde a exceção deve ser utilizada e, assim, chega-se a

uma lógica retórica que explica o sacrifício da parte em relação ao todo, como aduziu

Rossiter, ao dizer que [...] nenhum sacrifício pela nossa democracia é demasiado grande,

menos ainda o sacrifício temporário da própria democracia [...]68

Neste sentido, apesar de o Iluminismo ter se manifestado por meio da razão

instrumental, seus desdobramentos temporais levaram a humanidade à reinserção de um novo

sistema de reificação do homem.

Sua expansão – Zweckrationalität - marcada por uma estrutura “tecno-econômica”

com fulcro na eficácia, rentabilidade máxima e na dialética do iluminismo, já fora objeto de

estudo por Max Weber, que anteviu esta dissonância, ao contrastar as realizações dos

objetivos e motivos da razão instrumental.

66 CAMPILONGO, Celso Fernandes. Apud. FERRAJOLI, Luigi. (2002). A soberania no mundo moderno: Nascimento e crise do Estado nacional. São Paulo: Martins Fontes. p XI e XII. 67 FERRAJOLI, Luigi. (2002). A soberania no mundo moderno: Nascimento e crise do Estado nacional. São Paulo: Martins Fontes. p 45. 68 ROSSITER. APUD. AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. (2004) São Paulo: Boitempo. p.22

Page 39: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

48

Segundo Weber, o capitalismo [...] acelerou o desencantamento do mundo”,

implantou a “lógica da dominação por meio do controle social” e a “burocratização significou

dominação das regras sociais [...]69.

Nas últimas décadas, com a queda do muro de Berlim, em 1989, e o declínio da

União Soviética, o capitalismo, que já se encontrava pujante há muito tempo - um sistema

econômico com base na legitimidade de bens privados concatenado ao Neoliberalismo, com

na exacerbada liberdade de comércio -, passou a dominar o cenário mundial, sem

concorrentes à altura.

O economista norte-americano, John Kenneth Galbraight, em entrevista ao Jornal

Folha de São Paulo, afirmou que [...] A globalização não é um conceito sério. Nós,

americanos, o inventamos para dissimular nossa política de entrada econômica nos outros

países [...]70.

Aliás, o assunto em questão, abordado em um diferente momento histórico por

Hannah Arendt, parece elucidar por antecipação as teses de Galbraight:

[...] De modo bastante inocente, a expansão afigurava-se inicialmente como a válvula de escape para a produção excessiva de capital e oferecia um remédio: a exportação de capital. A riqueza tremendamente ampliada, resultante da produção capitalista num sistema social baseado na má distribuição, havia resultado num “excesso de poupança” – isto é, no acumulo de um capital que estava condenado à ociosidade dentro da capacidade nacional existente de produção e consumo. Esse dinheiro era realmente supérfluo; ninguém necessitava dele, embora pertencesse a uma classe crescente. As crises e depressões que sobrevieram nas décadas que precederam a era do imperialismo haviam convencido os capitalistas de que todo o seu sistema econômico de produção dependia de uma oferta e procura que, de agora em diante, tinha de vir de “fora da sociedade capitalista. [...]71

69 MATTOS, Olgária C. F.. (1989) “O Panteísmo da razão instrumental”. In: “Os arcanos do inteiramente outro”: a escola de Frankfurt, a melancolia e a revolução. São Paulo: Brasiliense. p. 128-129. 70 GALBRAITH, John Kenneth. Globalização. Folha de São Paulo, São Paulo, 11 nov. 1997. Caderno Brasil, p.03. 71 ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 177.

Page 40: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

49

Diante de interesses complementares e de problemas comuns, gerados uns em

decorrência dos outros, ou seja, da existência de um mercado capitalista saturado e da

existência de um capital ocioso, o imperialismo deu guarida aos interesses capitalistas no

âmbito internacional, principalmente em se tratando de práticas comerciais desleais –

dumping, subsídios, barreiras comerciais – às técnicas industriais de propriedade – patentes -,

com o intuito de proteger a empresa interna e aumentar a dependência dos países cujo

capitalismo ainda se encontra em desenvolvimento.

Com essa fórmula, tanto o crescimento, antes freado pela estagnação do mercado

saturado, quanto a possibilidade de investimentos crescentes, antes ameaçado pela ociosidade

do capital, puderam ser sanados.

[...] (...) tinham claramente de decidir entre assistir ao colapso de todo o sistema ou procurar novos mercados, isto é, penetrar em outros países que ainda não estivessem sujeitos ao capitalismo e, portanto, pudessem propiciar uma nova oferta-e-procura de características não-capitalistas. [...]72

Para tanto, houve a necessidade de não só expandir o mercado externo, como

também de se reformular a política internacional, para se criar as regras e legitimar a

intervenção nos países em desenvolvimento.

Portanto, como se vê, em todos estes ramos de atuação, bem como nas demais

disciplinas jurídicas e em suas incursões práticas, há inserções danosas no Direito, tendo em

vista que este, mais e mais, tem como fulcro a exceção.

72 ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 178.

Page 41: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

50

2.1.2 A patologia do Direito e as relações nacionais

2.1.2.1 O Direito nas relações laborais

O Direito do Trabalho surgiu para assegurar a realidade do contrato em situações

de desigualdade econômica. A relação de trabalho entre empregador e empregado é um bom

exemplo. O controle do empregador sobre o empregado extrapola o ambiente de trabalho. Há

uma série de condutas que o trabalhador não deve realizar para não sofrer punições, mesmo

fora do expediente, que vão desde a advertência, à demissão por justa causa.

Esta relação parece não ter mudado muito nos últimos séculos. Segundo Michel

Foucault, essa relação de trabalho já se demonstrava esta estrutura desde o Século XVII:

[...] (...) nos séculos XVII e XVIII, viram-se aparecer técnicas de poder que eram essencialmente centradas no corpo, no corpo individual. (...) Eram também as técnicas pelas quais se incumbiam desses corpos, tentavam aumentar-lhes a força útil através do exercício, do treinamento, etc. Eram igualmente técnicas de racionalização e de economia estrita de um poder que devia se exercer, da maneira menos onerosa possível, mediante todo um sistema de vigilância, de hierarquias, de inspeções, de escriturações, de relatórios: toda essa tecnologia, que podemos chamar de tecnologia disciplinar do trabalho. Ela se instala já no final do século XVII e no decorrer do século XVIII. [...]73

Este tipo de visão nunca emancipa o trabalhador, que é visto como meio74, e explica

a flexibilização75, o controle é exercido pelo descompassado do empregador sobre o seu

empregado, inclusive sobre o seu próprio corpo.

73 FOULCAULT, Michel. (1999) Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes. p.288. 74 [...] Só se consideram as relações meios-fins, no sentido pragmático e utilitário, formal, sem se pronunciar a cerca do valor ético dos fins e dos meios. A extensão de tal racionalidade “às condutas da vida” torna-se forma de dominação. MATTOS, Olgária C. F.. (1989) O Panteísmo da razão instrumental. In: Os arcanos do inteiramente outro: a escola de Frankfurt, a melancolia e a revolução. São Paulo: Brasiliense. p. 128. 75 Segundo Uriarte, [...] a flexibilidade pode ser definida como eliminação, diminuição, afrouxamento ou adaptação da proteção trabalhista clássica, com a finalidade -- real ou pretensa -- de aumentar o investimento, o emprego ou a competitividade da empresa [...].URIARTE, Oscar Ermida. A Flexibilização. (2002) São Paulo: LTr, p. 9.

Page 42: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

51

A ausência de ética é uma forma de dominação, como ocorria antes do Iluminismo,

com a dominação das crenças e mitos, principalmente os trazidos pela igreja. É por isso que o

capitalismo domina. E domina por meio da pilhagem.

Aliás, é o Capitalismo que influencia as regras laborais com maior veemência, e não

o contrário, como pode se ver:

[...] On the one hand, the social rule of law derives from classical Marxism’s demand to outfit so-called formal democracy with an egalitarian postcapitalist social substructure, and its main social agent is predictably identified as the industrial proletariat: “the social rule of law was thus the rationalization of labor’s demand for an adequate share in the political life on the nation. On the other hand, what clearly distinguishes the project from more orthodox Marxist analyses is its sophisticated view of the relationships among legal institutions, legal norms, and social and economic life. Law here is no passive plaything of an underlying “material base”, determined mechanically by the dynamics of capitalist economic production and doing little more than buttressing its exploitive mechanisms; [...]76.

O capitalismo assim age, pois se transforma em refém de si mesmo, à medida que,

obrigatoriamente, grande parte dos lucros tem que ser necessariamente redirecionada à

própria indústria, para se adquirir novas tecnologias, pois caso não o faça, a concorrência

elimina sutilmente os retardatários.

Dessa forma, o capitalismo vê-se obrigado a expandir-se sob pena de perecer. É a

globalização expressada pela lógica do capitalismo que, no contexto de sua desorganização,

abre espaço à inserção do neoliberalismo.

Diante disso, percebe-se que interesses sociais e econômicos nem sempre andam

juntos há bastante tempo. Em assim sendo, a aplicação da lei, por ser diferente daquele fim

76 A tradução que se segue, foi elaborada pelo autor desta dissertação: [...]Por um lado, a lei social deriva da demanda marxista clássica para servir com vestimenta a então chamada democracia, que possui uma estrutura pós-capitalista igualitária, e cujo agente social mais importante é definido como o proletariado industrial: A função social da lei era então a racionalização da demanda trabalhista para uma adequada distribuição da participação na vida política da nação. Por outro lado, o que distingue claramente o projeto da análise do marxismo mais ortodoxo, é uma visão mais moderna da relação entre as instituições legais, as normas e a vida econômica da sociedade. A lei aqui não é um ato subliminar submetido a “base material”, determinada mecanicamente pela dinâmica da produção econômica capitalista que faz um pouco mais do que a realização do mecanismo de exploração. [...]. SCHEUERMAN, William E.. (1994). Between the norm and the exception: the Frankfurt School and the rule of law. Baskerville: Maple-Vail Book Manufacturing Group. p. 44.

Page 43: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

52

arquitetado à sociedade, não é feita de acordo com as necessidades específicas de cada

situação ou conjuntura social.

É o que aduz William E. Scheuerman, em seu trabalho “Between the norm and the

exception”:

[...] Legal institutions do not always correspond to a particular socioeconomic context, and there are countless historical cases in which a surprising gap emerges between the two. Indeed, it should be a central concern of a neo-Marxist legal sociology focus on this problem. For Renner and Newmann, a critical theory of law seeks to understand how and why legal norms and institutions may not “fit” a particular configuration of economic practices, and it is concerned with explaining how some facets of legal system come to take on operation in one set of social circumstances distinct from those played in the previous social universe and unforeseen by their originators. [...]77.

Portanto, nas questões laborais, também não se vêem preocupações sociais, vontade

geral ou qualquer idéia que demonstre a existência da soberania popular, adotada pela

Constituição Federal. Há, sim, interesses privados tutelados por leis que, como se viu, são a

expressão da vontade do soberano. Em outras palavras, com intuito de se preservar essa

situação de exploração, de coisificação do ser humano, o Direito legitima o ato e, portanto,

não há que se falar em legal ou ilegal, deixando em aberto o questionamento sobre o justo e o

não justo ou o moral e o imoral.

77 A tradução que se segue, foi elaborada pelo autor desta dissertação: [...]As instituições legais nem sempre correspondem a um só contexto sócio-econômico em particular, e existem incontáveis casos históricos nos quais elas emergiram em todas estas situações. Ademais, isto deveria ser a preocupação central de um foco neo-marxista sociológico legal para o problema em questão. Para Renner e Newmann, a teoria crítica da lei procura entender como e porquê as instituições legais e as normas não servem a uma configuração particular de práticas econômicas, e isto diz respeito a explicação de como algumas facetas do sistema legal vieram para tomar lugar na operação de um determinado hall de circunstâncias sociais que é distinta daquelas ocorridas no universo social anterior e que não foi prevista por seus pensadores. [...]. SCHEUERMAN, William E.. (1994). Between the norm and the exception: the Frankfurt School and the rule of law. Baskerville: Maple-Vail Book Manufacturing Group. p. 46.

Page 44: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

53

2.1.2.2 O Direito nas relações estatais e civis

Com o Direito impotente, principalmente no que tange à manutenção e distribuição

das garantias fundamentais, o capitalismo se instala como forma de controle e por meio de

normas positivadas, que garantem, por exemplo, o direito à propriedade a quem a tem, e

mantém os desapossados sem condições de se insurgirem, por meio da dissuasão trazida pela

interpretação do texto legal.

Sobre a questão da propriedade, a Constituição Federal é veemente:

[...] Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes [...]78:

Há uma série de outros direitos fundamentais, que devem ser mencionados, tais

como o direito à liberdade de expressão, educação, lazer e saúde, dentre outros. Para estes

direitos, no entanto, o descaso legal demonstra que mais uma vez que o Direito é fruto da

vontade e não da razão.

Ao compulsar a Constituição Federal, sobretudo o “Título VIII – Da Ordem Social”

ver-se-á que tais direitos não têm a mesma entonação preventiva e ostensiva por parte das

autoridades legalmente constituídas, como o já citado direito de propriedade.

Aliás, os atributos legais que garantem o direito à propriedade, como se verá, são os

mesmos há séculos, muito embora as relações civis tenham, neste período, se demonstrado

bastante dinâmicas:

[...] The great irony of modern legal development is that capitalism has since under gone profound transformations, yet most of its complementary legal institutions remain formally unchanged. Early twentieth-century lawyers work with the same concept of property that their predecessors

78 Constituição da República Federativa do Brasil. (2006) 38 ed. São Paulo: Saraiva. p. 5.

Page 45: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

54

hundreds of years earlier did. For Renner, this disparity cannot be without significance, and he tries to show that it masks the fact that the legal institution of property no longer has very much to do with economic function essential to contemporary capitalist production. As a result, contemporary legal categories have a far greater ideological role in veiling illegitimate power inequalities than they did in an earlier era. Having little meaningful economic function anymore, contemporary capitalism often do little but collect stock dividends, and they very likely may never even have seen the place of production, or stepped within the doors of, their productive unit or “object”, let alone engaged in some activity essential to its exploitation. The integral ties between the juridical property owner and the actual functions of property (which once involved having an essential and direct relationship to a particular object of economic activity) dissipate. All the activities performed by the classical bourgeois property owner are undertaken by very different categories of individuals (workers, managers, technicians) today, and the legally defined capitalist property owner is generally, from the perspective of the production capitalist property owner is generally, from the perspective of the production process, the least relevant one of them all. Despite its unchanged formal structure, the legal concept of property now has little to do with its original meaning. [...]79.

Já no que tange ao direito à saúde, por exemplo, mesmo em se conferindo o direito

constitucional a todos, a realidade não se demonstra muito diferente.

79 A tradução que se segue, foi elaborada pelo autor desta dissertação: [...]a grande ironia do desenvolvimento do sistema legal moderno é que o capitalismo sempre passou por grandes transformações, ainda que parte de suas instituições permanecem formalmente imutáveis. No começo do século vinte, os advogados trabalhavam com o mesmo conceito de propriedade que seus predecessores, há centenas de anos. Para Renner, esta disparidade não tem razão de existir sem um significado, e ele tenta demonstrar que isto mascara o fato de que as instituições econômicas que versam sobre propriedade não mais têm muito a ver com a função econômica essencial para uma produção capitalista contemporânea. Como resultado, as categorias legais contemporâneas têm uma brecha ideologia muito maior acobertando mais desigualdades ilegais do que anteriormente. Elas têm resultados desprezíveis, e os capitalistas contemporâneos normalmente oferecem muito pouco, embora colham muitos dividendos, e muitas vezes jamais viram a área de produção, ou entraram na unidade de produção de suas empresas, não dando maior atenção, portanto, à zona de exploração. As disputas entre o proprietário legal e a função da propriedade (que uma vez envolveu a existência de um essencial e direto relacionamento com um objeto particular da atividade econômica) se dissipou. Todas as atividades realizadas pelos clássicos proprietários burgueses foram sobrepujadas pelas várias diferentes categorias de indivíduos (trabalhadores, gerentes, técnicos) hoje, e o proprietário legal definido pelo capitalismo é geralmente, da perspectiva do processo de produção, o de menor relevância de todos. Apesar de sua estrutura imutável, o conceito legal de propriedade agora tem pouco a ver com seu significado original tenta demonstrar que isto mascara o fato de que as instituições econômicas que versam sobre propriedade não mais tem muito a ver com a função econômica essencial para uma produção capitalista contemporânea. Como resultado, as categorias têm uma brecha ideologia muito maior acobertando mais desigualdades ilegais do que anteriormente. Elas têm resultados desprezíveis, e os capitalistas contemporâneos normalmente oferecem muito pouco, embora colham muitos dividendos, e muitas vezes jamais viram a área de produção, ou entraram na unidade de produção de suas empresas, não dando maior atenção, portanto, à zona de exploração. As disputas entre o proprietário legal e a função da propriedade (que uma vez envolveu a existência de um essencial e direto relacionamento com um objeto particular da atividade econômica) se dissipou. Todas as atividades realizadas pelos clássicos proprietários burgueses foram sobrepujadas pelas várias diferentes categorias de indivíduos (trabalhadores, gerentes, técnicos) hoje, e o proprietário legal definido pelo capitalismo é geralmente, da perspectiva do processo de produção, o de menor relevância de todos. Apesar de sua estrutura imutável, o conceito legal de propriedade agora tem pouco a ver com seu significado original. [...]. SCHEUERMAN, William E.. (1994). Between the norm and the exception: the Frankfurt School and the rule of law. Baskerville: Maple-Vail Book Manufacturing Group. p. 47.

Page 46: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

55

O Art. 196 da Carta Magna, por exemplo, estabelece:

[...] Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação [...]80.

Como se infere nos artigos 5º e 196, o Estado não consegue sanar seus erros por

meio de políticas públicas de inclusão social e econômica, de distribuição de renda à

população, com a mesma excelência que o faz em relação ao direito de propriedade. Isto, pois,

de um lado garante o direito de se manter a propriedade àqueles que já a possuem,

principalmente por meio de medidas judiciais pertinentes a casos específicos, tais como as

ações de despejo, imissão na posse, reintegração na posse e cautelares, por exemplo; e, de

outro, não constrói, com o mesmo vigor, o caminho que possibilitará a instauração da

igualdade para que muitos daqueles que não possuem uma pequena propriedade, possam um

dia vir a tê-la.

Ademais, há dispositivos constitucionais de eficácia limitada, ou seja, aquelas

normas cuja aplicabilidade só se efetiva após uma normatização ulterior, que desde a

promulgação da Constituição Federal, há vinte anos, permanecem sem regulação. Nesse

sentido, sem resguardar direitos fundamentais, há classes inteiras prejudicadas.

É o caso, por exemplo, do inciso VII, do artigo 37, onde pode ser lido que [...] o

direito de greve será exercido nos termos e nos limites definidos em lei específica; [...]81.

Este inciso, apesar de alterado e modificado pela Emenda Constitucional número

19 em 1998, ainda mantém sua eficiência mediata, tendo em vista a inexistência de uma lei

posterior que regule este direito.

80 Constituição da República Federativa do Brasil. (2006) 38 ed. – São Paulo: Saraiva. p. 141. 81 Constituição da República Federativa do Brasil. (2006) 38 ed. – São Paulo: Saraiva. p. 26.

Page 47: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

56

Neste mesmo sentido, ainda não há lei que regule os dispositivos constitucionais

que versam sobre participação nos lucros das empresas e salário família.

O inciso XI do artigo 7º, da Constituição Federal, diz o seguinte:

XI - participação nos lucros, ou resultados, desvinculada da remuneração, e, excepcionalmente, participação na gestão da empresa, conforme definido em lei82

Nesse caso, o Direito deveria agir como uma prótese social. Ou seja, como um

dispositivo artificial introduzido na sociedade para suprir eventuais desajustes entre as

camadas sociais, procurando restaurar as disparidades que, por vezes, comprometem todo o

funcionamento da sociedade. Mas, no entanto, o Estado mostra-se omisso em muitas

circunstâncias, situação essa que demonstra o descaso do soberano junto aos “pobres

sujeitinhos mansos”, pois, a lei é fruto da vontade desse mesmo soberano.

2.1.2.3 O Direito em relação às práticas punitivas

No Direito Penal, a lógica jurídica segue a mesma linha adotada para os demais

textos normativos mencionados.

No Código Penal, os crimes previstos com as maiores penas, a saber, latrocínio –

art. 157, § 3º e Extorsão - art. 158, § 2º, cujo período de reclusão varia de 24 a 30 anos, vêm

elencados no Título II – Crimes contra o Patrimônio.

Parece haver uma maior preocupação por parte do legislador em relação ao

patrimônio do que com outros direitos tidos como basilares, como o Direito à manutenção da

própria vida.

82 Constituição da República Federativa do Brasil. (2006) 38 ed. – São Paulo: Saraiva. p. 12.

Page 48: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

57

Aliás, não parece haver, com a mesma veemência com que o legislador protege o

patrimônio, uma preocupação de sua parte para discutir e implantar tribunais penais mais

ágeis, com menor número de ritos e testemunhas e, conseqüentemente, trazendo com isso

respostas mais rápidas, respeitando-se, por fim, Direitos Fundamentais claros e razoáveis,

como os declarados e trazidos pela Emenda Constitucional número 45, ao Art. 5º da

Constituição Federal.

Os motivos destes descasos e as razões dessa relação dicotômica entre os mendigos e

os marginais, de um lado e, principalmente, a preocupação do burguês com ambos, no tocante

à sua segurança e patrimônio, de outro, já havia sido objeto de estudo de Hannah Arendt.

[...] Esse corpo político foi concebido para o uso da nova sociedade burguesa que emergia no século XVII, e esse quadro do homem é um esboço do tipo de Homem que se adequava a ele. O Commonwealth é baseado na delegação da força, e na do direito. Adquire o monopólio de matar e dá em troca uma garantia condicional contra o risco de ser morto. A segurança é proporcionada pela lei, que emana diretamente do monopólio de força do Estado (e não é estabelecida pelo homem segundo padrões humanos de “certo” e “errado”). Porque na lei do Estado não existe a questão de “certo” e “errado”, mas apenas a obediência absoluta, o cego conformismo da sociedade burguesa. E, como essa lei flui diretamente do poder que ela torna absoluto, passa a representar a necessidade absoluta aos olhos do indivíduo que vive sob ela. (...) De acordo com os padrões burgueses, aqueles que são automaticamente destituídos de sorte e não têm sucesso são automaticamente excluídos da competição, que é a essência da vida da sociedade. A boa sorte é identificada com a honra e a má sorte com a vergonha. Transferindo ao Estado nos seus direitos políticos, o indivíduo delega-lhe também suas responsabilidades sociais: pede ao Estado que o alivie do ônus de cuidar dos pobres, exatamente como pede a proteção contra os criminosos. Não há mais diferença entre mendigos e criminosos – ambos estão fora da sociedade. Os que fracassam perdem a virtude que a civilização clássica lhes legou: os que são infelizes já não podem apelar à caridade cristã. (...) Hobbes isenta os que são excluídos da sociedade – os fracassados, os infelizes, os criminosos – de qualquer obrigação em relação ao Estado e à sociedade, se o Estado não cuida deles. Podem dar rédea solta ao seu desejo de poder, e são até aconselhados a tirar vantagem de sua capacidade elementar de matar, restaurando assim aquela igualdade natural que a sociedade esconde apenas por uma questão de conveniência. Hobbes prevê a justiça que os proscritos sociais se organizem em bandos de assassinos, como conseqüência lógica da filosófica moral burguesa. [...]83

83 ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 170 e 171.

Page 49: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

58

Se a economia subsume o processo político, e este o processo jurídico, o jurídico

se transforma em um instrumento de legitimação dos interesses dos controladores econômicos

de uma classe burguesa.

Dessa forma, o interesse burguês é considerado como interesse público, como

interesse legalmente constituído. Capciosamente, tem-se que o interesse público é o somatório

destes interesses privados, como visto anteriormente.

Como o liberalismo é de interesse “público” e, no entanto, gera ricos e pobres,

estando estes últimos desprotegidos pelo Estado, surge a possibilidade destes defenderem-se e

ou buscarem o que querem por seus próprios meios.

Àqueles que se enveredam em tais lutas, as penas duras da lei; aos burgueses, a

proteção ao status quo.

Assim, o Direito além de legitimador dos interesses dos precursores desse

processo, protege suas propriedades com maior veemência do que a própria vida.

Para que os descamisados, que são muitos, não se insurjam diante desse processo,

criam-se políticas sociais. Porém, estas são políticas de mera manutenção do mínimo, o que é

necessário, mas nunca de inclusão efetiva, que deveria reger a continuação das políticas

afirmativas.

Como não há lugar para todos na classe dominante, a tentativa de grande parte da

população de lutar para fazer parte dela é uma ameaça à estabilidade da mesma. Assim, mister

se faz que a burguesia idolatre e controle o poder, para poder se auto-garantir e auto-excluir

jurídica, política e economicamente.

Eis porque o Direito Penal protege mais a propriedade do que a vida.

Vale lembrar, também, que o assunto penal, em outras veredas de discussão,

porém ainda dentro do texto constitucional, parece padecer de certo dissabor por parte da

legislação supra-legal, tendo em vista o fato de que algumas matérias de suma importância à

Page 50: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

59

sociedade brasileira ainda não possuírem leis complementares que as regulamentem, como

por exemplo o parágrafo 7º do artigo 144, onde se lê que [...] A lei disciplinará a organização

e o funcionamento dos órgãos responsáveis pela segurança pública, de maneira a garantir a

eficiência de suas atividades[...]84.

Tal dispositivo, como se vê, tem sua eficácia limitada, ou seja, depende de

legislação ulterior para gerar plenos efeitos, apresentando-se, por conseqüência, uma

aplicação indireta, mediata e reduzida.

No entanto, às vésperas da comemoração do vintenário da Constituição Federal,

ainda não houve a confecção de uma lei que “disciplinará a organização e o funcionamento

dos órgãos responsáveis pela segurança pública, de maneira a garantir a eficiência de suas

atividades.”.

Vê-se, assim, que a segurança pública também não figura como prioridade

governamental e que, por seu lado, a conjuntura social e o avanço da criminalidade também

podem ser explicados em virtude da inércia legal por parte do governo.

Em outras palavras, o governo, em decorrência da inércia na confecção de uma

lei infraconstitucional que vise respeitar os preceitos contidos nos incisos I e II, do artigo há

pouco citado85, além de outros preceitos reiteradamente encontrados nesse mesmo dispositivo,

tais como apurar as infrações penais e o patrulhamento ostensivo, por ausência de atitude, é

também responsável pela conjunção de circunstâncias e ocorrências penais, que todos os dias

são verificadas na sociedade.

Concomitantemente, e em decorrência de sua omissão, em virtude do

agigantamento da criminalidade e, portanto, do número de vítimas, não há regulamentação do 84 Constituição da República Federativa do Brasil. (2006) 38 ed. São Paulo: Saraiva. p. 96. 85 Incisos I e II, do art. 144. I - apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, segundo se dispuser em lei; II - prevenir e reprimir o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o contrabando e o descaminho, sem prejuízo da ação fazendária e de outros órgãos públicos nas respectivas áreas de competência;

Page 51: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

60

art. 245, da Constituição Federal, cujo fim é a “assistência aos herdeiros e dependentes

carentes de pessoas vitimadas por crime doloso.

Assim, diante da inexistência de lei que regulamente tais artigos, e promova tanto

a eficiência dos serviços de segurança, quanto a indenização pelas vítimas dos crimes dolosos,

o governo movimenta-se pela exceção, em uma zona de indistinção entre a legalidade e

ilegalidade.

Muito embora já se tenha tratado de alguns ramos e campos de atuação do Direito,

tanto adjetivo quanto substantivo, nacional e internacional, no tempo e no espaço, impossível

seria relatar todos esses ramos detalhadamente, muito embora acredita-se que, a partir da

leitura dos temas escolhidos, haja subsídios suficientes para propiciar um debate sobre como o

soberano se utiliza do Direito como uma técnica para fazer valer sua vontade, sem precipitar-

se na esfera da ilegalidade.

Page 52: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

61

3 A CONSTRUÇÃO DO DIREITO A PARTIR DA EXCEÇÃO NO BRASIL

Quedou-se inerte a crença de que o desenvolvimento da indústria e do comércio

e, sobretudo, da urbanização, trouxesse ao País um novo paradigma jurídico-político. A

extinção da dominação, que naquele momento pertencia à bancada rural no País, permitiria,

em conseqüência, a construção de partidos políticos com participação e representação efetiva,

não passou de uma expectativa.

[...] À consciência das mazelas da vida política brasileira e à descrença quanto à capacidade da Constituição moldar as instituições políticas associou-se à convicção de que a superação dos problemas nacionais viria com o desenvolvimento econômico. A industrialização e a urbanização que a acompanham libertariam as massas populares das estruturas de dominação vigentes no mundo rural, que impediam a formação de partidos verdadeiros e a realização de eleições competitivas [...]86.

A Herança Rural87 estendeu-se à era de Getúlio Vargas que, em seu governo, o

novo paradigma político instaurado externou-se por meio da decretação do Estado de Sítio,

em 1935, seguido pela decretação do Estado de Emergência e do Estado de Guerra, em 1937.

Durante seu governo, houve uma série de conflitos internos de ordem civil e militar, entre eles

a Revolução Constitucionalista de 1932 e também a promulgação de duas Constituições

Federais, em 1934 e 1937, sendo esta última realizada dentro do Estado de Exceção e

apelidada de “polaca”.

Mais uma vez, a representação dos partidos políticos não cumpriu sua função

fundamental88, pois [...] com o congresso esvaziado de sua função principal, os diferentes

86 COELHO, Ricardo Corrêa. (1999) Partidos políticos, maiorias parlamentares e tomada de decisão na constituinte. Tese de Doutorado em Ciência Política apresentada à FFLCH. p. 22. 87 A expressão “Herança Rural” é de autoria de Sérgio Buarque de Holanda. HOLANDA, Sérgio Buarque de. (1995) Raízes do Brasil – 26ª ed. São Paulo: Companhia das Letras. Capítulo 3. 88 Segundo José Afonso da Silva, [...]os partidos têm por função fundamental organizar a vontade popular e exprimi-la na busca do poder, visando a aplicação de seu programa de governo. Por isso, todo partido político deveria estruturar-se à vista de uma ideologia definida e com um programa de ação destinado à satisfação dos interesses do povo[...].SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo / 19ª edição - São Paulo: Malheiros Editores, 2000, p. 404.

Page 53: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

62

interesses de grupos e classes sociais iriam se fazer representar de forma mais direta no

próprio Executivo, sem mediação partidária e processamento parlamentar [...]89.

Em 1945, com o final da era Vargas e a democratização, os partidos políticos,

em virtude de seus parcos desenvolvimentos, o qual não fora permitido, a menos no que tange

ao interesse público nas eras rural e varguista, mais uma vez atuaram como coadjuvantes no

que diz respeito às relevantes decisões nacionais.

Esses cenários sociais, aliados à conjuntura política nacional decorrente da

modernização da economia, encontrariam, segundo Ricardo Corrêa Coelho, [...] menor

expressão e representação no Poder Legislativo do que no Poder Executivo [...]90. A carência

partidária, aliada ao baixo grau de desenvolvimento do País, criou um panorama onde, no

período democrático, pouca ou nenhuma atenção foi dada às agremiações políticas.

Em 1964 teve início o regime militar totalitarista, ocorrendo, assim a decretação

de diversos Atos Institucionais, verdadeiros mecanismos legitimadores de políticas não

previstas e até mesmo contrárias à Constituição de 1946.

Outra vez, o cenário político se mostrou um instrumento de articulação

utilizado pelo soberano, assumindo o papel dos partidos políticos, agremiações onde se

forma o elo entre eleitores e o Poder Executivo e, como tais, verdadeiros dignitários

representantes das aspirações do povo, [...] tendo como um de seus princípios fundamentais

garantir o desenvolvimento nacional [...]91.

Com o fim do período militar, em 1985, deu-se no Brasil, o início de um novo

tempo, o período da redemocratização. Infelizmente, não foi naquele ano que o povo

brasileiro elegeu seu Presidente da República, mas foi o primeiro passo rumo à democracia.

89 COELHO, Ricardo Corrêa. (1999) Partidos políticos, maiorias parlamentares e tomada de decisão na constituinte. Tese de Doutorado em Ciência Política apresentada à FFLCH. p. 27. 90 COELHO, Ricardo Corrêa. (1999) Partidos políticos, maiorias parlamentares e tomada de decisão na constituinte. Tese de Doutorado em Ciência Política apresentada à FFLCH. p. 28. 91 CAHALI, Youssef Said. (2002). Constituição Federal - 4ª ed. revista e atualizada. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. Artigo 3°, II, p. 2.

Page 54: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

63

Em 1988, um segundo grande passo foi dado com o advento da nova Constituição

Federal, que em síntese é, nas palavras de José Afonso da Silva, [...] o conjunto de normas

que organiza os elementos constitutivos do Estado [...]92.

Para Marília Garcia:

[...] Constituição Federal de 1988 foi o marco de uma nova era, pois a idéia de Constituição está ligada ao desejo de refutar o despotismo, o absolutismo, ou seja, a concentração de poder político nas mãos de um soberano [...]93.

Sendo, portanto, a Constituição, a organização jurídica fundamental do Estado,

deve conter normas referentes à sua estruturação, à formação dos poderes públicos, formas de

governo, dentre outras.

Suas regras são dotadas de supralegalidade e receptividade, de forma que, todas as

demais normas devem com ela se compatibilizar. Dessa forma, todo o ordenamento jurídico

deve buscar seu fundamento de validade no texto constitucional, sob pena de

inconstitucionalidade.

Desde o preâmbulo às garantias fundamentais, a Constituição Federal catalogou,

em seu bojo, uma série de Direitos de suma importância ao estabelecimento do Estado

Democrático de Direito, principalmente no que concerne às questões sociais, civis e

políticas.

Desde a lição de Aristóteles, [...] a Constituição expressava a organização de

tarefas numa cidade-estado. Era a lei mais importante pela qual deviam se orientar as demais

leis secundárias [...]94. Mesmo naquela época, já se percebia a necessidade de garantir a

igualdade dos cidadãos perante a lei. Naquele momento, os próprios cidadãos elaboravam sua

92 SILVA, José Afonso da. (2000) Curso de Direito Constitucional Positivo – 19. ed. - São Paulo: Malheiros Editores. p. 38. 93 GARCIA, Marília. O que é Constituinte / São Paulo; Editora Brasiliense: 1986, p. 11. 94 ARISTÓTELES. Apud. GARCIA, Marília. (1985) O que é Constituinte. São Paulo; Editora Brasiliense. p. 12.

Page 55: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

64

Constituição, coluna dorsal das demais leis, pois esta nada mais era do que a declaração de

sua própria vontade. Assim também se pautou o constituinte ao elaborar a Constituição

Federal de 1988.

Mesmo naquela época, era impossível que todo o povo manifestasse sua vontade.

Como hoje, essa manifestação de vontade do povo – democracia - operou-se de forma

representativa por um governo civil, que nasceu, como aduz Rousseau, [...] de um pacto, onde

todos os indivíduos renunciavam ao poder que tinham e transferiam-no ao poder público

[...]95. A partir desse momento, qualquer controvérsia passaria a ser decidida pelo Poder

Legislativo e pelos magistrados por ele nomeados.

A renúncia à liberdade irrestrita em favor da liberdade socializada fez com que o

indivíduo, sob poder civil, permanecesse tão livre quanto antes. Todavia, por vontade

socializada, dever-se-ia entender como sendo a própria lei. Assim posto, dentre os poderes

representativos do Estado, o único que externava a vontade do povo era o Poder Legislativo.

Ele oferecia, ao Poder Judiciário e ao Poder Executivo, sua ferramenta de trabalho: a lei.

Os Poderes Legislativo e Executivo, organizados em três níveis, Federal, Estadual

e Municipal, têm seus representantes estabelecidos em partidos políticos, que representam e

produzem concepções ideológicas e sociais, propiciando um equilíbrio do poder e evitando

que uma só situação domine o Congresso e as Assembléias, engessando o caminho à

Democracia, seu fim precípuo. É justamente diante desta grande responsabilidade e

importância que têm os representantes do povo, que suas ações devem ser realizadas de forma

sincrônica e pautadas no interesse público.

Quanto à importância da organização destas instituições, assim escreveu

Sidwick:

[...] Uma sociedade está ordenada de forma correta e, portanto, justa, quando suas instituições mais importantes estão planejadas de modo a

95 ROUSSEAU, Jean Jacques. (1978) Do contrato social. Tradução de Lourdes Santos Machado – Coleção Os Pensadores. 2. ed. São Paulo: Editora Abril Cultural. p. 37.

Page 56: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

65

conseguir o maior saldo líquido de satisfação obtido a partir da soma das participações individuais de todos os seus membros. (...) Exatamente como um indivíduo avalia vantagens presentes e futuras com perdas presentes e futuras, assim uma sociedade pode contrabalançar satisfações e insatisfações entre diferentes indivíduos [...]96.

Tais poderes, sobretudo o Poder Legislativo, por meio dos partidos políticos, são

representantes legais dos anseios populares, e como dito por Aristóteles, organizadores da

atividade do Estado, tendo a função primordial de ordená-la.

3.0.1 A ideologia político partidária como forma de dominação

Michel Foucault, quando questionado sobre as formas de dominação e as

relações de poder, assim se pronunciou:

[...] Compreende-se, então, porque Nietzsche afirma que o filósofo é aquele que mais facilmente se engana sobre a natureza do conhecimento por pensá-lo sempre na forma da adequação, do amor, da unidade, da pacificação. Ora, se quisermos saber o que é o conhecimento, não é preciso nos aproximarmos da forma de vida, de existência, de asceticismo, própria ao filósofo. Se quisermos realmente conhecer o conhecimento, saber o que ele é e apreendê-lo em sua raiz, em sua fabricação, devemos nos aproximar, não dos filósofos mas dos políticos, devemos compreender quais são as relações de luta e de poder – na maneira como as coisa entre si, os homens entre si se odeiam, lutam, procuram dominar uns aos outros, querem exercer, uns sobre os outros, relações de poder – que compreendemos em que consiste o conhecimento [...]97.

Muito embora as relações de dominação – biopoder e biopolítica – estejam

também fora dos partidos políticos, a inexistência de programas resultantes de discussões

intra-partidárias, como forma de prevenção de assédios e privilégios98 em relação a programas

96 SIDGWICK. Apud. RAWLS, John (2002). Uma teoria da Justiça. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, p. 25. 97 FOUCAULT, Michel. (2002) A Verdade e as Formas Jurídicas. Rio de Janeiro: Nau Editora. p. 22 e 23. 98 Para Beccaria [...] As vantagens da sociedade devem ser igualmente repartidas entre todos os seus membros. No entanto, entre os homens reunidos, nota-se a tendência contínua de acumular no menor número os privilégios, o poder e a felicidade, para só deixar à maioria miséria e fraqueza. Só com boas leis podem impedir-se tais abusos. Mas, de ordinário, os homens abandonam as leis provisórias e à prudência do momento o cuidado de regular os negócios mais importantes, quando não os confiam à discrição daqueles mesmos cujo interesse é

Page 57: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

66

que realmente satisfaçam as expectativas sociais, devem ser discutidas à luz do universo

jurídico, pois, como disse Miguel Reale, [...] o direito tornou-se ainda mais vigoroso em

contato com os problemas de governo, ou na vivência apaixonante dos embates políticos,

quando submetidos a uma crítica viva os preceitos da legislação positiva [...]99.

Partidos políticos fazem parte do processo de formação, organização e

desenvolvimento dos governos e, portanto, seus direcionamentos têm grande importância na

dinâmica política democrática. Sendo os partidos um elo do processo democrático que une o

governo ao eleitorado, o que aponta, nas palavras de Rachel Meneguello, [...] a relevância dos

partidos no que respeita à garantia da governabilidade do sistema [...]100, há importância de

uma constituição sólida destes na formação de um projeto Brasil de sociedade presente com

visão para o futuro, constitucional e democrático, principalmente neste momento em que o

Brasil aspira ser uma futura potência, o que deve acontecer não por um simples ato volitivo,

mas por clareza no caminho a se seguir.

Por outro lado, segundo Hector Aguilar Camín, o excesso de partidos não garante

a ausência de inércia no crescimento de uma nação. Este cientista político defende a tese de

que a ingovernabilidade de um Estado decorre de um pluralismo político não

institucionalizado, e leva um Estado à inércia Social.

Sobre a fragmentação política na América Latina, assim escreveu:

[...] Se a perversão do consenso é o autoritarismo, a doença do pluralismo pode ser a ingovernabilidade. No mundo dos impasses de governo, quem acaba governando são as inércias. Se as mudanças são impossíveis porque não se consegue negociá-las, a democracia acaba sancionando a imobilidade, o que é justamente o contrário do que a mudança democrática prometia. Depois da ineficácia, vem o desencanto, ao desencanto segue-se à nostalgia, e a nostalgia abre caminho para a ira. Esse é o risco comum a todas as democracias latino-americanas: a fragmentação político-partidária

oporem-se às melhores instituições e às leis sábias [...]. BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. vol. XXII, 6. ed. São Paulo: Atena, p.25. 99 REALE, Miguel. (1962). Filosofia do Direito. São Paulo: Saraiva. p. 15. 100 MENEGUELLO, Rachel. (1998) Partidos governos Brasil contemporâneo - (1985 – 1997) - São Paulo: Editora Paz e Terra. p. 75.

Page 58: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

67

em um quadro de frágil acordo nacional sobre o rumo estratégico a ser seguido [...]101.

No Brasil, de forma mais completa, Rachel Meneguello e Bolívar Lamounier, em

sua obra “Os partidos políticos no Brasil”, sob ótica diversa da anteriormente apresentada,

lecionam a respeito da fragilidade partidária, partindo da idéia da [...] prevalência dos

interesses individuais dos políticos [...]102:

[...] A legislação eleitoral e partidária excessivamente permissiva é resultante da prevalência dos direitos individuais dos políticos sobre os do partido. Nestes termos,” “partidos fortes”, no Brasil, decorreriam de uma legislação capaz de deter e controlar o individualismo de nossos políticos. O fortalecimento do sistema partidário sob o regime autoritário foi antes aparente que real. Retirada as barreiras impostas pelos militares, voltou a imperar o individualismo [...]103.

Neste sentido, a fragilidade institucional e a fragmentação partidária, segundo

Maria D´Alva Gil Kinzo, não contribuem para a [..] construção e consolidação do locus onde

os partidos atuam, isto é, as arenas eleitoral e parlamentar – ambiente próprio onde os partidos

políticos se efetivam enquanto canais de representação, de negociação e participação nas

decisões políticas [...]104. A argumentação em tela, trazida à tona em seu rico trabalho, tem

como cerne o produto do labor de José Murilo de Carvalho, por ela citado:

[...] O sistema político brasileiro, foi, desde os seus primórdios, marcado pela fragmentação e o conflito em potencial entre as elites. Em tal situação, a centralização do poder tornar-se-ia imperiosa a fim de regular o poder entre as elites fragmentadas, evitar a desagregação política e, portanto garantir equilíbrio ao sistema. Assim, num país de formação estatal, que já era fortemente centralizado, o padrão fragmentado e conflituoso, de suas

101 CAMÍN, Hector Aguilar (2002) México: a cinza e a semente. Tradução de BEÍ. São Paulo: Bei comunicação. p. 14. 102 MENEGUELLO, Rachel & LAMOUNIER, Bolívar. (2000) Apud. ARAÚJO, Marcelo. Mudanças partidárias. Dissertação de mestrado apresentada ao Departamento de Ciência Política da FFLCH/USP. p. 11. 103 ARAÚJO, Marcelo. (2000) Mudanças partidárias. Dissertação de mestrado apresentada ao Departamento de Ciência Política da FFLCH/USP. p. 10. 104 KINZO, D´Alva Maria Gil. (1999) Partidos, eleições e representação política no Brasil. Coletânea de trabalhos apresentados para o concurso de habilitação à livre docência. FFLCH/USP. p. 08.

Page 59: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

68

elites acabaria acentuando ainda mais o caráter centralizador do poder político [...]105”.

Marcelo Araújo, em sua dissertação de mestrado, citando Mainwaring, trata a

fragmentação partidária brasileira sob o ponto de vista legal:

[...] necessidade de reformas que minimizem aos efeitos de nosso subdesenvolvimento partidário com lei mais restritivas à formação de partidos e que impossibilitem a constante migração partidária”. Continua: “A legislação partidária brasileira tem várias características incomuns que institucionalizaram uma estrutura de incentivo que autoriza e estimula os políticos a terem um comportamento antipartidário. Ela contribui decisivamente para o subdesenvolvimento partidário, e em última instância para a sustentação de um padrão altamente elitista de dominação e para a instabilidade democrática [...]106.

Neste mesmo trabalho, Marcelo Araújo, citando desta vez Lima Júnior, arremata:

[...] As leis relativas ao comportamento dos políticos e ao papel dos partidos e das eleições seriam excessivamente liberais, conspirando contra a democracia ao não coibirem os excessos do comportamento individualista dos partidos, que leva ao enfraquecimento dos partidos, e por conseqüência, da própria base da democracia [...]107.

Entretanto, diante da falta de sincronia que se instaurou entre o pluralismo

político nacional, a concepção de institucionalização108 conceitualmente utilizada pelos

partidos brasileiros e seu processo de formação ideológico109, de um lado, e, de outro, o

105 Carvalho, José Murilo in KINZO, D´Alva Maria Gil. Partidos, eleições e representação política no Brasil. Coletânea de trabalhos apresentados para o concurso de habilitação à livre docência. FFLCH/USP, 1999, p. 8. 106 Araújo, Marcelo. Mudanças partidárias (2000) Dissertação de mestrado apresentada ao Departamento de Ciência Política da FFLCH/USP, p. 2. 107 Araújo, Marcelo. Mudanças partidárias (2000) Dissertação de mestrado apresentada ao Departamento de Ciência Política da FFLCH/USP, p. 2. 108 “A não institucionalização do sistema partidário tem sido focalizada exclusivamente a partir do que se convencionou a chamar de “amorfismo” ou “falta de coesão ideológica e programática” dos partidos”. Maria do Carmo Campello de Souza. Estado e Partidos Políticos no Brasil (1930 a 1964). São Paulo: Editora Alfa-Omega, 1976, pg. 30. 109 A palavra ideologia, segundo Carl J, Friedrich, são “ “sistemas de idéias conexas com a ação”, que compreendem tipicamente “um programa e uma estratégia para a sua atuação” e destina-se a “mudar ou a defender a ordem política existente”. Tem, além disso, a função de manter conjuntamente um partido ou o grupo empenhado na luta política (Man and his government, New York 1965, p. 290)”. Bobbio, Norberto; Matteucci, Nicola; Pasquino, Gianfranco. Dicionário de política. 5ª edição. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2000, pg. 587.

Page 60: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

69

fomento às estratégias de desenvolvimento socioeconômico e o estabelecimento de um

governo partidário e a governabilidade110 do Estado brasileiro, a representação dos interesses

sociais passou a ser exercida em parte, do ponto de vista sócio-jurídico em oposição à retórica

e às fórmulas, por outras entidades, tais como ONGs, associações, sindicatos, entre outros.

Aliás, Ricardo Corrêa Coelho, aborda a referida situação:

[...] Essa enorme heterogeneidade interna dos partidos e conseqüentemente inconsistência ideológica estariam na base da sua fraqueza e falta de representatividade. No vácuo deixado pelos partidos, outras organizações emergiriam reivindicando a representação dos interesses dos diferentes grupos e classe sociais: Os sindicatos estariam autoproclamando-se “porta-vozes do operariado”; as associações comerciais tornando-se em “organismos típicos para a burguesia comercial e industrial” e o Exército conservando sua “função de grupo de pressão da classe média”. [...]111.

Os partidos, ao não cumprirem sua função primordial, levam a população ao

descrédito, em suas instituições políticas, e a atividade político-gerencial do Estado fica

comprometida.

3.1 A exceção nas constituições brasileiras

Ao se consultar a história constitucional brasileira, percebe-se, com certa clareza,

a tendência institucional de delegar poderes excessivos ao Executivo.

A Constituição Imperial de 1824, em seus artigos 10 e 98, manifestadamente

demonstrava a concentração de poder nas mãos do imperador.

110 A governabilidade, segundo Maria D´Alva Gil Kinzo, é a capacidade do governo de exercer efetivamente suas funções e dar respostas efetivas às tarefas que são esperadas do governo, entre elas, a de bem administrar a economia, promover o desenvolvimento provendo os cidadãos dos serviços sociais básicos e de regular o conflito ou dissenso entre indivíduos ou grupos atuando na sociedade brasileira. – Partidos, eleições e representação política no Brasil / Coletânea de trabalhos apresentados para o concurso de habilitação à livre docência. FFLCH/USP, 1999, pg. 07. 111 COELHO, Ricardo Corrêa. (1999) Partidos políticos, maiorias parlamentares e tomada de decisão na constituinte. Tese de Doutorado em Ciência Política apresentada à FFLCH. p. 26.

Page 61: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

70

Art. 10. Os Poderes Políticos reconhecidos pela Constituição do Império do Brazil são quatro: o Poder Legislativo, o Poder Moderador, o Poder Executivo, e o Poder Judicial.

Art. 98. O Poder Moderador é a chave de toda a organização Política, e é delegado privativamente ao Imperador, como Chefe Supremo da Nação, e seu Primeiro Representante, para que incessantemente vele sobre a manutenção da Independência, equilíbrio, e harmonia dos mais Poderes Políticos.

Já na Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, promulgada em 24

de fevereiro de 1891, como o Império já havia sido suplantado pela República, a Constituição

não mais versou sobre o imperador ou sobre o Poder Moderador.

Ao compulsá-la, o que se pode aduzir, a partir da leitura do artigo 48, n. 1º, é que

o Presidente da República passou a ter em suas mãos uma grande força, já que poderia

nomear e demitir livremente os Ministros de Estado, sem qualquer intervenção do congresso.

Mais à frente, no n. 15º deste mesmo artigo, pode-se ver que o Presidente da

República tinha o poder de declarar Estado de Sítio em qualquer ponto do território nacional,

nos casos de agressão estrangeira, ou grave comoção intestina. Aqui é importante salientar

que, além de não haver um prazo máximo de duração à exceção, situação esta que poderia,

teoricamente, perdurar eternamente, o Congresso Nacional apenas poderia suspender tal

situação nos casos onde a exceção houvesse sido decretada sem sua anuência, como se pode

ver no artigo 34, n. 21º.

Art. 34 - Compete privativamente ao Congresso Nacional:

21º) declarar em estado de sítio um ou mais pontos do território nacional, na emergência de agressão por forças estrangeiras ou de comoção interna, e aprovar ou suspender o sítio que houver sido declarado pelo Poder Executivo, ou seus agentes responsáveis, na ausência do Congresso;

Page 62: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

71

Já o caput do artigo 80 menciona a expressão “tempo determinado” para a

duração de tal exceção. No entanto, em momento algum do texto constitucional o tempo

mencionado foi quantificado.

Foi só com a Constituição de 1934 que se pôde verificar a necessidade de

autorização prévia do Poder Legislativo para a decretação do Estado de Sítio, por parte do

Poder Executivo.

Ademais, viu-se também, pela primeira vez, a existência de uma previsão máxima

de duração de tempo para o período de exceção, a restrição aos atos que poderiam ser

realizados pelo Poder Executivo e sua responsabilidade, tanto na esfera civil, quanto na esfera

penal, por abusos praticados, como se vê no artigo 175.

Art. 175 O Poder Legislativo, na iminência de agressão estrangeira, ou na emergência de insurreição armada, poderá autorizar o Presidente da República a declarar em estado de sítio em qualquer parte do território nacional, observando-se o seguinte: 1) o estado de sítio não será decretado por mais de noventa dias, podendo ser prorrogado, no máximo, por igual prazo, de cada vez; 2) na vigência do estado de sítio só se admitem estas medidas de exceção: a) desterro para outros pontos do território nacional, ou determinação de permanência em certa localidade; b) detenção em edifício ou local não destinado a réus de crimes comuns; c) censura de correspondência de qualquer natureza, e das publicações em geral; d) suspensão da liberdade de reunião e de tribuna; e) busca e apreensão em domicílio. § 1º A nenhuma pessoa se imporá permanência em lugar deserto ou insalubre do território nacional, nem desterro para tal lugar, ou para qualquer outro, distante mais de mil quilômetros daquele em que se achava ao ser atingida pela determinação. § 2º Ninguém será, em virtude do estado de sítio, conservado em custódia, senão por necessidade da defesa nacional, em caso de agressão estrangeira, ou por autoria ou cumplicidade de insurreição, ou fundados motivos de vir a participar nela. § 3º Em todos os casos, as pessoas atingidas pelas medidas restritivas da liberdade de locomoção devem ser, dentro de cinco dias, apresentadas pelas autoridades que decretaram as medidas com a declaração sumária de seus motivos ao Juiz comissionado para esse fim, que as ouvirá, tomando-lhes, por escrito, as declarações. § 4º As medidas restritivas da liberdade de locomoção não atingem os membros da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, da Corte Suprema,

Page 63: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

72

do Supremo Tribunal Militar, do Tribunal Superior de Justiça Eleitoral, do Tribunal de Contas e, nos territórios das respectivas circunscrições, os Governadores e Secretários de Estado, os membros das Assembléias Legislativas e dos Tribunais superiores. § 5º Não será obstada a circulação de livros, jornais ou de quaisquer publicações, desde que os seus autores, diretores ou editores os submetam à censura. § 6º Não será censurada a publicação dos atos de qualquer dos Poderes federais, salvo os que respeitem as medidas de caráter militar. § 7º Se não estiverem reunidas a Câmara dos Deputados e o Senado Federal, poderá o estado de sítio ser decretado pelo Presidente da República, com aquiescência prévia da Seção Permanente do Senado Federal. Nesse caso se reunirão trinta dias depois, independentemente de convocação. § 8º Aberta a sessão legislativa, o Presidente da República relatará, em mensagem especial, os motivos determinantes do estado de sítio, e justificará as medidas que tenha adotado, apresentando as declarações exigidas pelo § 3º, e mais documentos necessários. O Poder Legislativo passará em seguida a deliberar sobre o decreto expedido, revogando-o, ou não, podendo também apreciar, desde logo, as providências trazidas ao seu conhecimento, e autorizar a prorrogação do estado de sítio, nos termos do nº 1 deste artigo. § 9º Proceder-se-á na conformidade dos parágrafos precedentes, quando se haja de prorrogar o estado de sítio. § 10 Decretado este, o Presidente da República designará, por ato publicado oficialmente, um ou mais magistrados para os fins do § 3º, assim como as autoridades que tenham de exercer as medidas de exceção, e estabelecerá as normas necessárias para a regularidade destas. § 11 Expirado o estado de sítio, cessam, desde logo, todos os seus efeitos. § 12 As medidas aplicadas na vigência do estado de sítio, logo que ele termine, serão relatadas pelo Presidente da República, em mensagem à Câmara dos Deputados, com as declarações prestadas pelas pessoas detidas e mais documentos necessários para que ele os aprecie. § 13 O Presidente da República e demais autoridades serão responsabilizados, civil ou criminalmente, pelos abusos que cometerem. § 14 A inobservância de qualquer das prescrições deste artigo tornará ilegal a coação, e permitirá aos pacientes recorrerem ao Poder Judiciário. § 15 Uma lei especial regulará o estado de sítio em caso de guerra, ou de emergência de guerra.

Em 1967 a Constituição da República Federativa do Brasil previa o poder de

censurar as diversões públicas – art. 8º, d -, e a exclusão de apreciação futura, por parte do

Poder Judiciário, de todos os atos praticados pelo Comando Supremo da Revolução de 31 de

março de 1964, bem como a discussão dos Atos Institucionais, como se pode ver no artigo

173, das Disposições Gerais e Transitórias:

Page 64: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

73

Art. 173 - Ficam aprovados e excluídos de apreciação judicial os atos praticados pelo Comando Supremo da Revolução de 31 de março de 1964, assim como:

I - pelo Governo Federal, com base nos Atos Institucionais nº 1, de 9 de abril de 1964; nº 2, de 27 de outubro de 1965; nº 3, de 5 de fevereiro de 1966; e nº 4, de 6 de dezembro de 1966, e nos Atos Complementares dos mesmos Atos Institucionais;

II - as resoluções das Assembléias Legislativas e Câmaras de Vereadores que hajam cassado mandatos eletivos ou declarado o impedimento de Governadores, Deputados, Prefeitos e Vereadores, fundados nos referidos Atos institucionais;

III - os atos de natureza legislativa expedidos com base nos Atos Institucionais e Complementares referidos no item I;

IV - as correções que, até 27 de outubro de 1965, hajam incidido, em decorrência da desvalorização da moeda e elevação do custo de vida, sobre vencimentos, ajuda de custo e subsídios de componentes de qualquer dos Poderes da República.

Durante a fase militar, tais dispositivos vieram à tona por meio de 16 Atos

Institucionais, sobretudo os atos de número 1, 2, 3, e 5, os quais transferiram o poder político

aos militares, suspenderam, por dez anos, os direitos políticos de centenas de pessoas;

estabeleceram eleições indiretas para a presidência da república e governadores, a nomeação

dos prefeitos das capitais; extinguiram todos os partidos políticos e criou a ARENA e o MDB,

afastando direitos constitucionais fundamentais, estabelecendo a censura prévia aos meios de

comunicação, e aumentando o poder do chefe de estado.

Aduz, Manoel Gonçalves Ferreira Filho, que o povo pode ser [...] reconhecido

como o titular do Poder Constituinte, mas não é jamais quem o exerce. É ele um titular

passivo, ao qual se imputa uma vontade constituinte sempre manifestada por uma elite [...]112.

Neste mesmo sentido, Reis Friede, ao contemplar o Poder Constitucional salienta

que:

[...] O exercício da função constituinte originária decorre, sem a menor sombra de dúvida de um poder pré e suprajurídico (oriunda de norma

112 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Apud. MORAES, Alexandre de. (2006) Direito Constitucional. 20. ed. São Paulo: Atlas, p.22.

Page 65: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

74

fundamental), de conteúdo exclusivamente político, destituído de qualquer caráter estatal, mesmo porque a sua atuação concreta situa-se fora do âmbito do Estado (até porque o Poder Constituinte se traduz na expressão máxima da soberania nacional, não estando vinculado a qualquer outro tipo de poder preexistente) [...]113.

Vê-se, portanto, que o Poder Constituinte, sobretudo o Poder Constituinte

Originário, muito embora sendo a expressão máxima da vontade do povo e expressado por

seus representantes, é mais político do que jurídico.

Ademais, ao compulsar o artigo primeiro, da Constituição Federal, vê-se que não

só doutrinária, mas positivamente nela inserido, a expressão da vontade popular é limitada

pelos próprios ditames da lei que, como visto, não é verdadeiramente a expressão de sua

vontade, mas sim, da de seus representantes, nos limites da Constituição, que é, por

conseguinte, a expressão da vontade de uma elite bem definida.

Art. 1º ... ... Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.

A liberdade de atuação daquele que é detentor, em teoria, de todo o poder, a saber,

o povo, está limitada ao texto constitucional, pois, como se lê, tal poder deve ser exercido

“nos termos desta Constituição”.

Desta forma, a vontade soberana se manifesta por meio da lei e, como se viu,

“todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente,

nos termos desta Constituição.”.

Como se sabe ninguém pode fazer o que quiser, quando quiser e onde quiser,

situação esta que por vezes poderia levar o homem a conjunturas e conseqüências

desagradáveis e irreversíveis.

113 FRIEDE, Reis. Curso analítico de Direito Constitucional e Teoria Geral do Estado. 4. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense. 2005. p.43.

Page 66: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

75

Com o afastamento da liberdade irrestrita, a autonomia de atuação, que é ditada

pela lei com seu caráter mandatório e vedatório, determina o que o homem tem e deve fazer,

ou não, segundo os preceitos nela declinados pelo soberano.

Demonstra-se, assim, não haver uma volonté générale - vontade geral, e sim, uma

Ditadura Constitucional114, já que tal vontade popular só pode se manifestar nos limites da lei

criada e mantida pelo soberano.

No que tange ao Direito no espaço, Luigi Ferrajoli demonstrou que a constituição

brasileira segue os mesmos passos da constituição italiana, ao defender a idéia de que:

[...] A bem da verdade, as constituições continuam falando em “soberania popular”; porém, isso não passa de uma simples homenagem verbal ao caráter democrático-representativo dos atuais ordenamentos. “A soberania pertence ao povo”, está escrito no primeiro artigo da Constituição italiana; mas, acrescenta-se imediatamente, o povo” a exerce nas formas e nos limites da Constituição”. Logo, nem mesmo o povo é soberano no antigo sentido de superiorem non recognoscens ou de legibus solutus; e menos ainda o é a maioria, pois a garantia dos direitos de todos até mesmo contra a maioria – tornou-se o traço característico do estado democrático de direito [...]115

No que tange ao Direito no tempo, Hannah Arendt, neste mesmo sentido, cita

Hobbes:

[...] O Leviathan de Hobbes expôs a única teoria segundo a qual o Estado não se baseia em nenhum tipo de lei construtiva – seja divina, seja natural, seja contrato social – que determine o que é certo ou errado no interesse individual com relação às coisas públicas, mas sim nos próprios interesses individuais, de modo que “o interesse privado e o interesse público são a mesma coisa”. [...]116

114 A expressão Ditadura Constitucional foi cunhada por Carl Schmitt e tem o seguinte sentido: [...] A disposição schimittiana entre ditadura “comissária” e ditadura soberana apresenta-se aqui como oposição entre ditadura constitucional, que se propõe a salvaguardar a ordem constitucional, e ditadura inconstitucional, que leva à derrubada da ordem constitucional. [...]114AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. (2004) São Paulo: Boitempo. p.20 115 FERRAJOLI, Luigi. (2002). A soberania no mundo moderno: nascimento e crise do Estado nacional. São Paulo: Martins Fontes. p 33. 116 ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 168 e 169.

Page 67: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

76

Hannah Arendt, desta vez em seu livro Sobre a Revolução, demonstrou que o

nome constituição até poderá ser apenas um, porém, há diferentes conotações dependendo de

quem participou de sua construção:

[...](...)Antes de seguir adelante, debemos recordar que el siglo XVII distinguió en teoría entre dos tipos de «contrato social». Uno se llevaba a cabo entre individuos y daba nacimiento a la sociedad; el otro se llevaba a cabo entre el pueblo y su gobernante y daba origen al gobierno legítimo. [...]117

Mais à frente, dá seqüência a este raciocínio, ao alegar que:

[...](...)En forma esquemática, se pueden enumerar del modo siguiente las principales diferencias existentes entre estos dos tipos de contrato: el contrato mutuo mediante el cual los individuos se vinculan a fin de formar una comunidad se basa sobre la reciprocidad y presupone la igualdad; su contenido real es una promesa y su resultado es ciertamente una «sociedad» o «coasociación» en el antiguo sentido romano de societas, que quiere decir alianza. Tal alianza acumula la fuerza separada de los participantes y los vincula en una nueva estructura de poder en virtud de «promesas libres y sinceras». De otro lado, en el llamado contrato social suscrito entre una determinada sociedad y su gobernante, estamos ante un acto ficticio y originario de cada miembro, en virtud del cual entrega su fuerza y poder aislados para constituir un gobierno; lejos de obtener un nuevo poder, mayor eventualmente del que ya poseía, cede su poder real y, lejos de vincularse mediante promesas, se limita a manifestar su «consentimiento» a ser gobernado por el gobierno, cuyo poder se compone de la suma total de fuerzas que todos los individuos le han entregado y que son monopolizadas por el gobierno para el supuesto beneficio de todos los súbditos. Por lo que se refiere al individuo, es evidente que gana tanto poder con el sistema de promesas mutuas como pierde cuando presta su consentimiento a que el poder sea monopolizado por el gobernante. A la inversa, aquellos que «pactan y se reúnen» pierden, en virtud de la reciprocidad, su aislamiento, el que es garantizado y protegido. [...]118

117 A tradução que se segue, foi elaborada pelo autor desta dissertação: [...] Antes de seguir adiante, devemos recordar que o século XVII distinguiu em teoria entre dois tipos de, «contrato social». Um era considerado entre indivíduos e fazia nascer a sociedade; o outro era considerado entre o povo e seu governante e fazia nascer o governo legítimo. [...]. ARENDT, Hannah. Sobre la revolución. Madrid: Revista de Occidente, 1967. p. 180. 118 A tradução que se segue, foi elaborada pelo autor desta dissertação: [...] De forma esquemática, pode-se enumerar da seguinte forma as principais diferenças existentes entre os tipos de contrato: o contrato mútuo mediante o qual os indivíduos se vinculam a fim de se formar uma comunidade que se baseia na reciprocidade e pressupõe a igualdade; seu conteúdo real é uma promessa e seu resultado é certamente uma «sociedade» ou «co-associação» no antigo sentido romano de sociedade, que quer dizer aliança. Tal aliança acumula a força separada dos participantes e os vincula em uma nova estrutura de poder em virtude de «promessas livres e sinceras». De outro lado, no chamado contrato social subscrito entre uma determinada sociedade e seu governante, estamos diante de um ato fictício e originário de cada membro, em virtude do qual a entrega sua força e poder isolados para construir um governo; longe de obter um novo poder, maior eventualmente do que já possuía, cede seu

Page 68: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

77

Segundo a filósofa, como conseqüência, o Direito, por meio das leis, se transforma

em um instrumento pelo qual o soberano edita e legitima suas próprias aspirações:

[...](...)Por otra parte, un cuerpo político que es resultado del pacto y de la «combinación» se convierte en verdadera fuente de poder para todo individuo, impotente cuando queda al margen de la esfera política constituida; el gobierno que, por el contrario, es resultado del consentimiento, monopoliza el poder de tal modo que los gobernados son políticamente impotentes mientras no decidan recuperar su poder original, a fin de cambiar el gobierno y confiar su poder a otro gobernante. [...]119

Portanto, os conceitos de vontade geral e Constituição, como se vê há muito tempo

e em outros ordenamentos jurídicos não eram e não são aceitos factualmente e, sim, em teoria.

O que parece prevalecer, em ambos os casos, é a vontade do soberano.

3.2 A exceção na Constituição Federal de 1988

O soberano se coloca capturado fora120 do ordenamento jurídico, ou seja, em

uma tênue linha que tangencia seu exterior e interior.

Hodiernamente, com a regra tendo como fulcro a exceção, a dominação

encontra-se positivada em muitos ordenamentos, e o Poder Executivo legalmente subsumiu o

Poder Legislativo, como se verificará oportunamente.

Após a promulgação da Constituição Federal de 1988, a possibilidade de

suspensão de direitos fundamentais e de boa parte do ordenamento, pelo soberano, não deixou

poder real e, longe de se vincular mediante promessas, se limita a manifestar seu «consentimento» a ser governado por um governo, cujo poder se compõe da soma total das forças de todos os indivíduos que lhe entregaram e são monopolizadas pelo governo para o suposto benefício de todos os súditos. No que se refere ao indivíduo, é evidente que ganha tanto poder com o sistema de promessas mútuas como perde quando presta seu consentimento para que o poder seja monopolizado por um governante. Ao contrário, aqueles que «pactuam e se reúnem» perdem, em virtude da reciprocidade, seu isolamento, que é garantido e protegido. [...]. ARENDT, Hannah. Sobre la revolución. Madrid: Revista de Occidente, 1967. p. 180 e 181. 119 ARENDT, Hannah. Sobre la revolución. Madrid: Revista de Occidente, 1967. p. 181. 120 A expressão “capturado fora” etimologicamente significa exceção. AGAMBEN, Giorgio. (2002) Homo Sacer – O Poder soberano e a vida nua - Belo Horizonte: Editora UFMG, p. 177.

Page 69: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

78

de existir, como se constata pela leitura de alguns artigos da Constituição Federal, como se

verá a seguir.

O artigo 21, V, atribui à União a competência de “decretar o estado de sítio, o

estado de defesa e a intervenção federal”. Como se trata de competência material e não

legislativa do Poder Executivo, tal competência assume o caráter indelegável.

Mais uma vez, o texto constitucional volta a mencionar tais atribuições ao chefe

do Poder Executivo, nos incisos IX e X, do artigo 84.

É importante salientar que, embora a competência para a decretação seja

exclusiva do Presidente da República, sua a provação ou suspensão é de competência

exclusiva do Congresso Nacional, que deverá deliberar a respeito do decreto por maioria

absoluta, como se lê no inciso IV, do Artigo 49, da Constituição Federal.

Para estes casos, ou seja, “para aprovar o estado de defesa e a intervenção

federal, autorizar o estado de sítio, ou suspender qualquer dessas medidas”, o artigo 49, IV,

preceitua que o Presidente da República precisará da aprovação do Congresso Nacional, cuja

competência para tais incumbências também é exclusiva.

No entanto, tal limitação do ordenamento para com o Poder Executivo pode

sofrer dois grandes revezes, posto que além da subsunção deste em relação ao Poder

Legislativo, o que de per si fere o andamento de suas atividades típicas, o mesmo artigo 84,

da Constituição Federal, em seu inciso XIII, concede ao Presidente da República a atribuição

de [...] exercer o comando supremo das Forças Armadas, nomear os Comandantes da

Marinha, do Exército e da Aeronáutica, promover seus oficiais-generais e nomeá-los para os

cargos que lhes são privativos [...]121.

Não bastasse a concentração de tantos poderes nas mãos do Poder Executivo, a

decretação de qualquer um destes estados significa dizer que uma série de limitações às

121 Constituição da República Federativa do Brasil. (2006) 38 ed. – São Paulo: Saraiva. p. 59.

Page 70: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

79

garantias constitucionais, sobretudo àquelas fundamentais, podem ser estabelecidas nesses

momentos.

Tais alegações podem ser vistas nos artigos 136, 137, 138 e 139, nos quais, de

forma específica, a Constituição Federal trata das questões pertinentes ao Estado de Defesa e

do Estado de Sítio.

Por outro lado, alguns dispositivos constitucionais de extrema relevância à

garantia do Princípio da Soberania Popular, pois pelo menos teoricamente é o princípio de

soberania adotado pela Constituição Federal, tanto em seu preâmbulo quanto no artigo

primeiro, não são devidamente respeitados.

Não bastasse todo este poder nas mãos de nossos representantes, sobretudo nos

do Poder Executivo, a possibilidade que temos de fiscalizar suas vidas públicas pregressas, de

analisar a moralidade de seus atos e estabelecer os casos de inelegibilidade, há vinte anos

depende de Lei Complementar que até hoje não foi editada, como se vê no artigo 14, §9º, da

Constituição Federal.

É importante salientar que este parágrafo sofreu alterações pela Emenda

Constitucional número 4, de 1994, porém, a Lei Complementar até hoje não foi editada.

Há que se dizer, também, que não só a eficiência da Constituição Federal é

limitada para analisar a conduta pregressa de nossos representantes, os quais têm, em suas

mãos, a possibilidade de retirar grande parte de nossas garantias fundamentais em casos de

exceção. Uma vez eleitos, a possibilidade de julgá-los se torna bastante dificultosa, visto que,

como preceitua o caput do artigo 121, [...] Lei Complementar disporá sobre a organização e

competência dos tribunais, dos juízes de direito e das juntas eleitorais. [...]122.

122 Constituição da República Federativa do Brasil. (2006) 38 ed. – São Paulo: Saraiva. p. 78.

Page 71: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

80

Muito embora estas situações acima delimitem fatos encontrados na Constituição

Federal, Gilberto Bercovici demonstra que elas parecem se espalhar por todos os

ordenamentos jurídicos e, uma vez dentro deles, torna tudo possível:

[...] O Estado de exceção está se espalhando por toda a parte, tendendo a coincidir com o ordenamento normal, no qual, novamente, torna tudo possível. [...]123

Dentro desta mesma linha, Giorgio Agamben aduz que:

[...] Embora, de um lado (no estado de sítio), o paradigma seja a extensão em âmbito civil dos poderes que são da esfera da autoridade militar em tempo de guerra, e, de outro, uma suspensão da constituição (ou das normas constitucionais que protegem as liberdades individuais), os dois modelos acabam, com o tempo, convergindo para um único fenômeno jurídico que chamamos estado de exceção. [...]124

Com bastante nitidez, no tempo e no espaço, percebe-se que a exceção vem

criando a regra com maior veemência que seu oposto. Ou seja, a partir de um cenário

existente e que, por conseqüência, pede a intervenção do soberano. Este cria um discurso para

justificar a nova regra. Diante deste crescente panorama, até mesmo dentro da própria

Constituição Federal, o soberano encontra ferramentas para poder, em qualquer caso,

governar sob o estado de exceção.

3.3 Os três poderes – independência e harmonia

3.3.1 O Poder Executivo

O Poder Executivo possui grande participação legislativa no cenário nacional. Ele

pode influenciar na confecção de um dispositivo legal de competência do Poder Legislativo, 123 BERCOVICI, Gilberto. (2004) Constituição e estado de exceção permanente. Rio de Janeiro: Azougue Editorial. p.180 124 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. (2004) São Paulo: Boitempo. p.17

Page 72: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

81

seja sugerindo-o, vetando-o, ou controlando possíveis emendas que o aquele Poder possa

inserir no orçamento do País, ou criando e trocando cargos por votações que lhe interessam,

indicando nomes ao Supremo Tribunal Federal, dentre outros.

Afirma Clèmerson Merlin Clève que:

[...] Os atos legislativos, sob o critério forma, no Direito Brasileiro, são apenas os inscritos no art. 59 da CF. Estes são atos normativos primários, unicamente subordinados à norma constitucional, com a qual mantêm uma relação de compatibilidade (e, pois, não de conformidade), e que, então, podem validamente inovar a ordem jurídica. Vimos, ainda, que o Executivo, de um modo ou de outro, influencia a produção desses atos normativos. E que, ademais, compete ao Executivo editar duas espécies legislativas: Medida Provisória e a Lei Delegada. Mas o Executivo não exerce, apenas, atividade legislativa primária. Exerce, igualmente, atividade legislativa (neste caso, tomando a lei no sentido material) secundária, quando emana, por exemplo, decreto regulamentares. E aqui, mais uma vez, o eExecutivo contribui para a formação da ordem jurídica. [...]125

Além disso, a criação e publicação de regulamentos126 originam uma enorme

quantidade de dispositivos, que são instituídos diuturnamente, como se infere a partir da

leitura dos Diários Oficiais, que trazem um grande número de circulares, portarias e

instruções editadas.

O Presidente da República, segundo a Constituição Federal, goza também de

competência para requisitar a delegação legislativa, como se infere do artigo 78, da

competência normativa descrita no artigo 84, e de competência, como se pode ver no artigo

87, para nomear os Ministros de Estado que o auxiliam e a ele devem se reportar.

Muito embora esta realidade venha tomando vulto hodiernamente, a crescente

participação do Poder Executivo, em detrimento dos demais poderes, já era uma preocupação

declarada há mais de sessenta anos. Veja-se: 125 CLÈVE, Clèmerson Merlin. A atividade legislativa do Poder Executivo no Estado contemporâneo e na Constituição de 1988. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1993. p. 215. 126 [...](...) regulamento será o ato normativo editado, privativamente, pelo Chefe do Poder Executivo, no exercício da função administrativa. [...].CLÈVE, Clèmerson Merlin. A atividade legislativa do Poder Executivo no Estado contemporâneo e na Constituição de 1988. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1993. p. 233.

Page 73: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

82

[...] Raro é o administrador que não está convicto da utilidade de ditar normas in concretu, sem passar pelo circuito da norma geral e abstrata, editada pelo legislativo. Raro é o legislador ou administrador que não vê de má sombra os golpes a que os tribunais submetem os atos arbitrários, muitas vezes inspirados por princípios salutares de economia e administração. E é freqüente ouvir-se de um administrador que está disposto a agir fora do Direito mas de acordo com uma técnica administrativa, que lhe parece eficiente, remetendo as partes contrariadas ao julgamento dos tribunais. Todas essa atitudes procedem de uma perda crescente de confiança no Direito, como técnica de controle social. Ora, essa perda de confiança envolve, em suas últimas conseqüências, a contestação, ainda que no terreno intelectual, da supremacia da ordem jurídica, e a determinação dos fins da atividade social através de critérios estritamente pragmáticos ou políticos emancipados de toda sujeição ao Direito. Considerada no campo histórico da civilização ocidental, a que pertence, ela subverte as aspirações permanentes da nossa cultura, e marca melhor do que qualquer outra, a sua reorientação no sentido de destruição [...].127

Lúcia Avelar e António Octávio Cintra, em sua obra Sistema Político Brasileiro:

uma introdução, aduzem que a concentração de poderes nas mãos dos membros do Poder

Executivo não só lhes garante agir segundo as suas próprias preferências, mas esse exercício

compromete demasiadamente a atuação do Poder Legislativo, principalmente em suas

funções básicas.

[...] Já há alguns anos, a literatura vem apontando a concentração de poderes de agenda e de veto nas mãos do presidente da República, o que desequilibra os mecanismos de freios e contrapesos institucionais, em prejuízo do legislativo, afetando negativamente sua capacidade de cumprir suas funções, quais sejam, legislar e fiscalizar o Poder Executivo. [...]128

Ademais, mesmo em pleno exercício de suas funções, o Poder Legislativo pode

ver seu trabalho desfeito pelo Poder Executivo, diante da força do poder de veto que este

possui.

127 DANTAS, San Tiago. (1955) A Educação Jurídica e a Crise Brasileira. Aula inaugural dos cursos da Faculdade Nacional de Direito. p. 7 128 AVELAR, Lúcia; CINTRA, António Octávio. (2004) Sistema Político Brasileiro: uma introdução. São Paulo: Fundação Unesp. p. 194.

Page 74: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

83

[...] Um projeto, por exemplo, aprovado por maioria simples na Câmara e no Senado, sobre o qual o Presidente da República nega sanção, muito dificilmente alcançará uma maioria qualificada necessária para a rejeição do veto. O poder presidencial, como se vê, continua enorme. [...]129

Por fim, vale esclarecer que o poder do Executivo também se manifesta de forma

indireta, principalmente pelo fato de encontrar-se em suas mãos as chaves dos cofres públicos.

Neste sentido, expõe, Clèmerson Merlin Clève:

[...] Cumpre lembrar, finalmente, que, do mesmo modo como ocorre nos EUA, porque o regime presidencial possui forte conotação personalista, o Presidente da República, em nosso país, também se vale de meios informais para pressionar ou reorientar a direção da atividade legislativa como o apelo à opinião pública pelos meios de comunicação de massa, a nomeação de pessoas comprometidas com grupos parlamentares para cargos do Executivo, inclusive no segundo ou terceiro escalões, a ameaça de veto e a liberação de recursos federais para as regiões ou para os setores econômicos representados por este ou aquele grupo parlamentar. [...]130

E continua:

[...] O Executivo maneja dinheiro, executa serviços, constrói obras públicas, controla o câmbio e a emissão de moeda, oferece títulos públicos para arrecadar fundos ou para controlar a economia, fiscaliza as instituições bancárias, financeiras, de seguro, os fundos de pensão, oferece créditos subsidiados a esta ou àquela atividade econômica, cria empresas estatais, nacionaliza empreendimentos ou privatiza atividades do Estado, vigia o mercado acionário, promove campanhas de vacinação compulsória ou de prevenção de doenças epidêmicas. Ou seja, o Estado age, hoje, mais por meio da administração (atos administrativos e contratos administrativos) do que propriamente por meio da lei, embora esta seja, hoje, mais utilizada que antes, tendo por isso, sofrido um processo de relativa banalização. [...]131

Seguindo esta mesma linha, A. C. Figueiredo e F. Limonge aduzem que:

129 CLÈVE, Clèmerson Merlin. A atividade legislativa do Poder Executivo no Estado contemporâneo e na Constituição de 1988. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1993. p. 111. 130 CLÈVE, Clèmerson Merlin. A atividade legislativa do Poder Executivo no Estado contemporâneo e na Constituição de 1988. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1993. p. 123. 131 CLÈVE, Clèmerson Merlin. A atividade legislativa do Poder Executivo no Estado contemporâneo e na Constituição de 1988. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1993. p. 50.

Page 75: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

84

[...] (...) “preponderância legislativa do presidente“, ademais da existência de uma ampla gama de recursos de patronagem – via distribuição de cargos e de clientelismo político – via distribuição de verbas. [...]132

Em virtude de todo o exposto, depreende-se que o Poder Executivo subsume os

demais poderes, não somente inviabilizando os princípios fundamentais de harmonia e

independência entre si, como visto e descrito no artigo 2º da Constituição Federal, mas porta-

se como um soberano que administra separadamente todo o sistema político e jurídico do

País.

[...] O Executivo passa a controlar quase que a totalidade das novas funções recentemente conquistadas pelo Estado. Não é por outra razão que o Poder Executivo cresceu em vários sentidos, e, com isso, assumiu uma força política e jurídica preponderante em relação aos outros poderes. [...]133

Com este acúmulo de funções, seu poder se sobressai em relação aos demais

poderes. É também por isso que o Executivo se torna demasiadamente grande para as

pequenas coisas, como diz Hannah Arendt.

Não se admite, todavia, que o Poder Executivo não tenha o direito de participar da

vida legislativa de um país, principalmente em virtude da celeridade que os fatos têm tomado

nos últimos anos, mesmo porque, como se infere na Lei de Introdução ao Código Civil e no

Estatuto da Magistratura, a legislação brasileira admite, também, a participação do Poder

Judiciário na produção legislativa pátria.

[...] (...) imaginam (...) que o Executivo não deve jamais legislar. Há um equívoco nesse raciocínio. Basta ver, conforme já foi demonstrado, que em todas as democracias ocidentais, de um modo ou de outro, o Executivo

132 FIGUEIREDO, A. C., LIMONGI, F. APUD. AVELAR, Lúcia; CINTRA, António Octávio. (2004) Sistema Político Brasileiro: uma introdução. São Paulo: Fundação Unesp. p. 194. 133 CLÈVE, Clèmerson Merlin. A atividade legislativa do Poder Executivo no Estado contemporâneo e na Constituição de 1988. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1993. p. 49.

Page 76: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

85

compartilha com o Legislativo a responsabilidade pela construção da ordem jurídica. [...]134

No entanto, a atual conjuntura em muito ultrapassa padrões de razoabilidade,

principalmente quando se pode averiguar a subsunção dos demais poderes, bem como a

dependência exacerbada em relação ao Executivo, principalmente no que diz respeito às

questões orçamentárias.

3.3.1.1 O Poder Executivo Estadual

Dentro dos Estados da Federação, a realidade não é muito diferente da União. Os

governadores estaduais ou “Ultrapresidencialismo estadual”135, como batizado por F. L.

Abrucio, [...] (...) em geral, gozam de amplos poderes de agenda e de veto e os usam para

extrair obediência de suas bancadas e para aprovar suas propostas”. [...]136

Também é de competência dos governadores, com discricionariedade plena, nomear e

destituir seu gabinete e possuir ampla influência em matérias orçamentárias, o que lhes

confere a prerrogativa de distribuir cargos, e o fazem mediante discussões e negociações com

as Assembléias Legislativas.

Além do mais:

[...] Podem vetar total ou parcialmente os projetos de lei que lhes são encaminhados e pedir urgência nos projetos de sua autoria, o que lhe permite atropelar o processo legislativo, prejudicando-se, por conseguinte o debate e diminuindo-se a resistência. [...]137

134 CLÈVE, Clèmerson Merlin. A atividade legislativa do Poder Executivo no Estado contemporâneo e na Constituição de 1988. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1993. p. 153. 135 ABRUCIO, F. L.. Apud. AVELAR, Lúcia; CINTRA, António Octávio. (2004) Sistema Político Brasileiro: uma introdução. São Paulo: Fundação Unesp. p. 196. 136 AVELAR, Lúcia; CINTRA, António Octávio. (2004) Sistema Político Brasileiro: uma introdução. São Paulo: Fundação Unesp. p. 194. 137 AVELAR, Lúcia; CINTRA, António Octávio. (2004) Sistema Político Brasileiro: uma introdução. São Paulo: Fundação Unesp. p. 196.

Page 77: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

86

Como se percebe, até mesmo dentro dos Estados da nação, o devido processo legal

legislativo mostra-se tíbio, principalmente diante de sua inexistência ou existência parcial,

situação esta que dirige grande parte das comissões, tais como a Comissão de Participação

Popular, Comissão de Fiscalização e Controle, Comissão de Finanças e Fiscalização entre

outras, à exaustão ou a tecer análises pouco aprofundadas sobre os temas a elas pertinentes:

[...] Vê-se, muitas vezes que uma única comissão é responsável por muitas matérias. (...)

Ademais, nem todas as Assembléias Legislativas têm comissão de participação popular, comissão de fiscalização e controle ou escola do Legislativo. [...]138

Assim, seguindo-se a linha do Executivo Federal, guardadas as devidas proporções, o

Poder Executivo Estadual também subsume o Poder Legislativo, que dia-a-dia parece perder

até mesmo a capacidade de agir dentro de suas próprias competências.

3.3.1.2 O Poder Executivo, os Decretos Leis e as

Medidas Provisórias.

Como visto de forma sucinta há pouco, o Poder Executivo, de forma atípica, tem o

poder de legislar. Porém, tal prerrogativa lhe é conferida em casos extremos, os quais a

Constituição Federal, em seu artigo 62, chamou de relevância e urgência.

O Poder Executivo tem a prerrogativa de promulgar Leis Delegadas e as demais

contidas no artigo 59, da Constituição Federal, ou seja, aquelas cuja atribuição não é de sua

competência, bem como as que dependem de sua sanção ou veto:

138 AVELAR, Lúcia; CINTRA, António Octávio. (2004) Sistema Político Brasileiro: uma introdução. São Paulo: Fundação Unesp. p. 196.

Page 78: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

87

[...] São promulgadas pelo Presidente da República as medidas provisórias e as leis delegadas. Estas espécies legislativas, por evidente, não se submetem à oportunidade de sanção. Podem, igualmente, ser promulgadas pelo Presidente da República todas as espécies legislativas que se submetem à sanção presidencial – as leis ordinárias, as leis complementares e as leis orçamentárias (que não deixam de ser leis ordinárias, embora se submetam a procedimento de elaboração especial). [...]139

Porém, diante do agigantamento da edição de Medidas Provisórias, essa

atipicidade se torna cada vez mais comum em nossos dias. Em outras palavras, a exceção tem

criado mais a regra do que seu contrário.

Por isso, tais atos configuram um paradoxal estado de exceção permanente, o que

não deixa de ser uma ditadura constitucional. Este cenário tem se mostrado como um novo

paradigma de governo.

Para se governar, então, mister se faz a justificativa da exceção. Aliás, parece que

é assim que se comporta a necessidade.

Neste sentido, escreveu Rossiter:

[...] Descrevendo os governos de emergência nas democracias ocidentais, este livro pode ter dado a impressão de que as técnicas de governo, como a ditadura do executivo, a delegação dos poderes legislativos e a legislação por meio de decretos administrativos, sejam por natureza puramente transitórias e temporárias. Tal impressão seria certamente enganosa [...]. Os instrumentos de crise tornaram-se em alguns países, e podem tornar-se em todos, instituições duradouras mesmo em tempo de paz (ibidem, p. 313) [...]140

Corroborando com este diagnóstico, Clèmerson Merlin Clève alega que as

Medidas Provisórias de hoje se equiparam aos Decretos-lei da fase ditatorial:

[...] Chamaremos de decretos-lei os atos normativos editados pelo Executivo, sujeitos ou não à ratificação do Parlamento, mas dotados, sempre, do mesmo padrão hierárquico da lei votada pelo Legislativo. Nesse

139 CLÈVE, Clèmerson Merlin. A atividade legislativa do Poder Executivo no Estado contemporâneo e na Constituição de 1988. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1993. p. 117. 140 ROSSITER. APUD. AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. (2004) São Paulo: Boitempo. p. 21 e 22.

Page 79: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

88

sentido, a medida provisória brasileira, contemplada no art. 62 da CF, não deixa de ser um decreto-lei. [...]141

Portanto, é fácil averiguar o deslocamento da atividade legislativa do Congresso

Nacional para o Poder Executivo, diante do infindável e crescente número de Medidas

Provisórias editadas pelo Poder Executivo.

No dia 27 de dezembro de 2007, o site eletrônico Universo Online – UOL -,

divulgou uma importante matéria intitulada: “Cresce a proporção do projetos do Executivo na

Câmara e cai a dos Deputados”142; nela as alegações acima vêm à tona em números.

Segundo a reportagem,:

[...] Das 143 propostas analisadas pelos parlamentares, 73 (51%) tiveram como origem o Executivo. Em contrapartida, apenas 10 (7%) foram sugeridas por deputados e outras 9 vieram do Senado.

Em 2003, primeiro ano do primeiro mandato de Lula e com uma composição diferente da Câmara, dos 205 projetos analisados em plenário, 80 (39%) saíram do Executivo e 44 (21%) foram apresentados por deputados. Outros 20 saíram do Senado. Dos 73 projetos apresentados pelo governo federal, 61 foram MPs (Medidas Provisórias), mecanismo que tem força de lei, mas precisa ser aprovado pelo Congresso em, no máximo, 120 dias para não expirar.[...]143

A legislação governamental subsumiu o parlamento, que por usa vez se coloca

como mero poder ratificador dos atos do Poder Executivo. Ademais, além de não legislar, sua

função típica também perde força ao não garantir o devido Processo Legislativo. Em outras

palavras, não só o Poder legislativo não legisla, como também, não tem tempo suficiente para

141 CLÈVE, Clèmerson Merlin. A atividade legislativa do Poder Executivo no Estado contemporâneo e na Constituição de 1988. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1993. p. 134. 142 A reportagem em menção encontra-se, na íntegra, acostada no Anexo “a” deste trabalho. Vale ressaltar também, que, no Anexo “b”, há uma segunda planilha demonstrando o crescimento da edição de Medidas provisórias, desde o governo José Sarney ao governo Fernando Henrique Cardoso. Por fim, é importante salientar que tentei, via e-mail e telefone, contatar o PRODASEN (processamento de dados do Senado) para que uma planilha mais atualizada fosse enviada, mas, no entanto, apesar de reiterar as tentativas, não obtive qualquer tipo de resposta. 143 Documento eletrônico retirado do site http://noticias.uol.com.br/ultnot/brasil/2007/12/27/ult2041u311.jhtm, no dia 27/12/2007.

Page 80: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

89

analisar a legislação governamental proposta pelo Poder Executivo, diante da enorme

demanda de Medidas Provisórias.

O crescente número de Medidas Provisórias chegou ao ponto de levar o próprio

Poder Executivo a editar uma Medida Provisória para anular outras de menor relevância, para

que o Poder Legislativo analisasse, em tempo hábil, a prorrogação daquela Medida Provisória

que se estenderia até 2010, sobre a CPMF.

No Brasil, na época da ditadura haviam os decretos-leis e depois os atos

institucionais cumpriram análoga função. Hoje, as Medidas Provisórias evidenciam o papel de

um Executivo altamente legiferante.

Parece que as necessidades latentes do Poder Executivo são fontes primárias da

confecção do ordenamento jurídico.

Neste sentido, também não é confortável trazer à tona, que [...] os regulamentos

administrativos se tornaram na principal fonte de direito, e isto sem estarem sujeitos a

controle judiciário, sem serem publicados, sem mesmo serem conhecidos dos particulares

[...]144.

Por fim, depreende-se que o Poder Executivo no Brasil é um dos mais poderosos

do mundo145, quando a sistemática da comparação relaciona os Poderes Públicos entre si,

pois, como se viu, o Presidente da República tem poderes para iniciar uma legislação

ordinária, possui iniciativa exclusiva para algumas matérias, como a lei orçamentária, pode

requerer regime de tramitação extraordinária, tem poderes para propor reformas ou emendas à

Constituição, poder delegado e constitucional de decreto, poder de veto parcial ou total,

nomeia e exonera ministros e secretários de Estado, indica seus líderes no Congresso

144 HESPANHA, Antonio Manuel. (1993) Justiça e Litigiosidade - História e Prospectiva. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, p. 132. 145 Faço aqui um pequeno adendo. Muito embora o capítulo todo relate a questão do Poder Executivo no País, a questão da concentração de poder nas mãos do Presidente da República é própria do presidencialismo, e não uma característica apenas do Brasil.

Page 81: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

90

Nacional e os nomes para o Tribunal de Contas, Supremo Tribunal Federal, Superior Tribunal

de Justiça, além de indicar o Presidente do Banco Central que, aliás, não é independente.

A assunção do poder de legislar pelo Poder Executivo também ocorreu na

maioria das democracias ocidentais, levando o legislativo ao desprestígio.

[...] De uma forma geral, ela quebra definitivamente a concepção a qual a lei e a regra de direito são inseparáveis e indissociáveis. De seguida, dado que o conteúdo das leis formais é indeterminado, o legislador ordinário liberta-se da tutela do direito natural: tudo se pode tornar em lei, desde o direito mais essencial à decisão administrativa mais insignificante. Por outro lado, e, sobretudo, este mesmo legislador perdeu o monopólio da criação das regras de direito. [...]146

A recuperação deste prestígio é de suma importância para a efetividade do

sistema de freios e contra-pesos, para que o elo formado pelo Legislativo, entre povo e o

soberano, tenha não só uma função técnica, mas sobretudo social.

Neste sentido, aborda Chaïm Perelman:

[...] em um país democrático, onde a opinião pública pode exprimir-se livremente, o poder legislativo não pode desprezar esta última nem os grupos de pressão, que se manifestam de diversas maneiras, faz-se necessário ganhar a opinião pública para as iniciativas do legislativo, para impedir reações de descontentamento que só podem arruinar o prestígio e minar a legitimidade do poder. [...]147.

Nesta relação, o Poder Legislativo perde espaço para o Poder Executivo, no que

diz respeito à construção de leis; em outras palavras, uma relação de constante exceção, não é

prerrogativa de nosso ordenamento e nem, muito menos, de nosso tempo.

Na Itália, segundo Fresa, a situação se coloca da seguinte maneira:

[...] A história e a situação jurídica do estado de exceção na Itália apresentam um interesse particular sob o ponto de vista da legislação por meio de decretos governamentais de urgência (chamados “decretos-lei”).

146 HESPANHA, Antonio Manuel. (1993) Justiça e Litigiosidade - História e Prospectiva. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, p. 126. 147 PERELMAN, Chaim. (1998) Lógica jurídica. São Paulo: Editora Martins Fontes Ltda. p. 202.

Page 82: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

91

Na realidade, pode-se dizer que, sob esse ângulo, a Itália havia funcionado como um verdadeiro laboratório político-jurídico no qual, pouco a pouco, se organizou o processo – presente também, com diferenças, em outros Estados europeus – pelo qual o decreto-lei “de instrumento derrogatório e excepcional de produção normativa transformou-se em uma fonte ordinária de produção do direito” (Fresa, 1981, p. 156). [...]148

Assim, em alguns dos países sul-americanos, assiste-se também a uma

concentração de poderes nas mãos dos membros do Poder Executivo, sob a forma das

“democracias assistidas”, sistemas de partidos únicos e governos por decretos, como se pode

aferir em Cuba, Peru e Venezuela.

Nos EUA, em 1933, Franklin D. Roosevelt demonstrou o grau de desgaste, de

desconsideração do Poder Legislativo, em determinadas circunstâncias, em um de seus

pronunciamentos:

[...] Se o Congresso não agir, ou agir de modo inadequado, eu mesmo assumirei a responsabilidade da ação [...]. O povo norte-americano pode estar certo de que não hesitarei em usar todo o poder de que estou investido para derrotar os nossos inimigos em qualquer parte do mundo em que nossa segurança o exigir. [...]149.

George Walker Bush, ao declarar guerra contra o Iraque, em 2003, parece ter

seguido a mesma linha de raciocínio de Roosevelt, ao simplesmente ignorar recomendação

negativa ao embate em questão pelos membros permanentes do Conselho de Segurança da

ONU.

Dentro de suas fronteiras, por meio de decreto, o presidente americano, após os

ataques de 11 de setembro de 2001, suspendeu parte dos direitos fundamentais contidos no

ordenamento jurídico norte-americano, com a “military order” que autorizava a [...]

148 FRESA. Apud. AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. (2004) São Paulo: Boitempo. p.30 e 31. 149 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. (2004) São Paulo: Boitempo. p.37.

Page 83: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

92

“indefinite detention” e o processo perante as “military commissions” dos não cidadãos

suspeitos de envolvimento em atividades terroristas[...]150.

Seja qual for a esfera de discussão político-jurídica, ou seja, tanto interna quanto

externamente, hoje ou no passado, o estado de exceção não é nem exterior e nem interior ao

ordenamento jurídico [...] e o problema de sua definição diz respeito a um patamar ou a uma

zona de indiferença, em que dentro e fora não se excluem mas se indeterminam. [...]151.

A discussão sobre a exceção parece vencer a aquela que versa sobre ser ou não ser

jurídica ou política e, sim, demonstrar ser o ponto de intersecção entre ambos, como elo

necessário onde tais poderes se vinculam, devido à necessidade de implementação e

legitimação do ordenamento jurídico e, por conseguinte, da legitimação dos atos do Poder

Executivo.

Neste sentido, o elo se torna simbiótico e o jurídico-político mutual, à medida que

se inclui, no ordenamento jurídico, a exceção.

3.3.2 O Poder Legislativo

Em um sistema federativo bicameral, o Chefe de Governo/Estado ganha força

frente à Câmara e ao Senado, se o sistema federativo é mais teórico, do que pragmático, pelo

fato de a burocracia atrapalhar o diálogo entre as casas parlamentares, emperrar negociações

ou tornar os trâmites mais lentos.

O Executivo despeja Medidas Provisórias com intuito de acelerar os trâmites

legais, e passa a legislar, enfraquecendo o Legislativo.

[...] A liderança política, a atividade de governo, conforma a vontade popular impondo a sua política por meio da aprovação parlamentar das leis

150 AGAMBEN, Giorgio. (2004) Estado de Exceção - São Paulo: Boitempo. p. 14. 151 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. (2004) São Paulo: Boitempo. p. 39.

Page 84: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

93

ou de sua execução. Não há separação de poderes evidente entre o Executivo e o Legislativo, já que o Governo lidera politicamente os dois poderes. [...]152

Como se viu nos capítulos anteriores, no Império do Brasil, na antiga república, na

Ditadura e na fase democrática, o Poder Legislativo há muito perde seu poder legiferante para

o Poder Executivo. E, à medida que o perde, se enfraquece perante ele, fórmula esta bastante

combatida nos países modernos, em virtude de ter se mostrado presente nos primeiros

momentos de caminhos que levaram nações à tirania.

Neste sentido:

[...] Desenvolveu-se, nos últimos anos, toda uma teoria embasada na convicção de que o Legislativo não consegue legislar na sociedade técnica e para o Estado Contemporâneo, segundo o qual o exercício da atividade normativa por ele desenvolvida deveria ser substituída pelo incremento da função de controle dos atos e órgãos do Governo. Em síntese, caberia ao Parlamento menos legislar e mais controlar. Sobre isso, com absoluta pertinência asseverou Carlos Roberto de Siqueira Castro que o legislativo não pode nem deve abdicar da função legiferante. Porque “a experiência das nações cultas e democráticas mostra-nos, em cotejo com a dos povos menos desenvolvidos politicamente, que onde o Parlamento não legislar ou participa decisivamente da legiferação, também não controla nem fiscaliza os atos do Governo, considerando-se que a atividade de controle e fiscalização é apanágio ou poder implícito à competência de legislar. Para depois dizer que: “(...) desse modo, não se pretenda, de forma pueril a pretexto de instrumentalizar a atuação dos órgãos do Poder Executivo, amputar do parlamento a função de intervir conclusivamente nos processo de formação das normas jurídicas, pois tal importa sempre, e em particular no sistema presidencialista, em abrir as porteiras para o galope da tirania e do abuso de poder. Nem se pense, também, que a morosidade, que é própria do processo de deliberação parlamentar, seja óbice à consecução do Governo moderno, marcado pelo dinamismo e pelo influxo do modelo empresarial. O fundamental é que o Parlamento e a Administração se entrosem em estreita elaboração para o atingimento dos fins do Estado a que um e outro devem servir. [...]153

Também leciona nesse mesmo sentido Giorgio Agamben:

152 LOEWENSTEIN, Karl. Apud. CLÈVE, Clèmerson Merlin. A atividade legislativa do Poder Executivo no Estado contemporâneo e na Constituição de 1988. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1993. p. 30. 153 CLÈVE, Clèmerson Merlin. A atividade legislativa do Poder Executivo no Estado contemporâneo e na Constituição de 1988. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1993. p. 52.

Page 85: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

94

[...] Não há nenhuma salvaguarda institucional capaz de garantir que os poderes de emergência sejam efetivamente usados com o objetivo de salvar a constituição. Só a determinação do próprio povo em verificar se são usados para tal fim é que pode assegurar isso [...]. as disposições quase ditatoriais dos sistemas constitucionais modernos, sejam elas a lei marcial, o estado de sítio ou os poderes de emergência constitucionais, não podem exercer controles efetivos sobre a concentração dos poderes. Conseqüentemente, todos esses institutos correm o risco de serem transformados em sistemas totalitários, se condições favoráveis se apresentarem. [...]154

Tal enfraquecimento de um poder em relação ao outro, não é apenas uma propriedade

característica e inerente dos representantes federais, mas estaduais, também. Vale ressaltar

que grande parte das Assembléias Legislativas dos Estados brasileiros não tem comissões

permanentes, de participação popular, de fiscalização e controle e escola do legislativo, como

previsto na Constituição Federal. Isso torna difícil de legislar e de fiscalizar o Poder

Executivo a contento:

[...] As Assembléias Legislativas encontram-se em um estágio bastante inicial de desenvolvimento institucional, não propiciando aos parlamentares a infra-estrutura e a expertise necessária para o adequado desenvolvimento das atividades de legislar e de fiscalizar o executivo. [...]155

A inexistência ou existência parcial de comissões internas, como se pode inferir,

de forma mais aprofundada, na planilha acostada no Anexo “c”, gera, muitas vezes, novos

dispositivos inconstitucionais, dúbios ou obscuros, tais como o regime de detração da pena na

lei de crimes hediondos, que permaneceu por quase 10 anos sem conceder um benefício

constitucional aos condenados, pois a lei infraconstitucional retirava garantias já trazidas pelo

próprio texto da Constituição Federal. Por outro lado, para que os cofres públicos não fossem

ameaçados pela enxurrada de ações de indenização por danos morais e materiais, à ausência

de garantia constitucional, o Supremo Tribunal Federal, ao proferir a decisão que julgou

154 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. (2004) São Paulo: Boitempo. p. 20 155 AVELAR, Lúcia; CINTRA, António Octávio. (2004) Sistema Político Brasileiro: uma introdução. São Paulo: Fundação Unesp. p. 196.

Page 86: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

95

inconstitucional o dispositivo, concedeu efeito ex nunc à decisão em questão, no que tange

aos questionamentos civis, também de natureza indenizatória.

Sobre a importância e as conseqüências da inexistência do devido Processo Legal

Legislativo, assim escreveu o Jurista e Professor Oscar Vilhena Vieira:

[...] Inúmeras têm sido as dificuldades de realização do ideal de governos das leis no Brasil, que vão da instabilidade das leis até a falta de congruência entre o direito estabelecido pelos livros e sua efetiva implementação. O poder de editar medidas provisórias, conferido ao Presidente da República tem tido um enorme impacto sobre a criação de uma legislação cambiante, oriunda do executivo, que rompe a possibilidade de amplo debate público na esfera do parlamento. Embora este debate parlamentar ocorra, apenas se dá a posteriori, muitas vezes quando a legislação executiva já atingiu os seus objetivos, logo já determinou condutas sem que o parlamento tenha tido a oportunidade de realizar o devido processo legal legislativo. Por outro lado, a falta de congruência entre o direito e sua implementação tem diversas razões, entre as quais o simples desrespeito por parte das autoridades das garantias do devido processo que deveriam guiar suas decisões. As imensas disparidades de recursos entre os nossos cidadãos, que gera a exclusão moral de muitos e o privilégio de outros, também contribuem para que a justiça tenha dificuldade de se realizar de forma eqüitativa [...]156.

Em relação a esta mesma questão, Clèmerson Merlin Clève salienta:

[...] Lamentavelmente, porém, o Congresso Nacional tem relegado para o segundo plano o exercício do controle jurídico das medidas provisórias editadas pelo Chefe do Executivo. Conseqüência: medidas provisórias flagrantemente inconstitucionais têm sido, tranqüilamente, convertidas e lei. Por isso, na prática, o controle duplo vem sendo simplificado até sua redução àquele de natureza política (no menor sentido, infelizmente). [...]157

À medida que o Poder Legislativo perde forças, de forma diametralmente oposta

ao crescimento do Poder Executivo, principalmente no que tange à construção de textos de

lei, também perde a capacidade de analisar estes textos, segundo os preceitos contidos na

Constituição Federal e, por vezes, traz à tona regras ilegais ou, se legais, muitas vezes injustas

156 VIEIRA, Oscar Vilhena. (2006). Direitos Fundamentais: Uma leitura da Jurisprudência do STF. São Paulo: Malheiros. p. 492. 157 CLÈVE, Clèmerson Merlin. A atividade legislativa do Poder Executivo no Estado contemporâneo e na Constituição de 1988. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1993. p. 176.

Page 87: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

96

ou sem qualquer função social. Como salientou Homero Freire, [...] a lei revela o Direito; mas

nem sempre o faz bem; padece da imperfectibilidade humana. [...]158.

Desta forma, o Poder Executivo esbulha o Congresso e as Assembléias de sua

atividade legiferante.

3.3.3 O Poder Judiciário

É certo que os juizes devam decidir com justiça e imparcialidade, o que por vezes,

os leva a decidir contra a própria disposição gramatical do texto da lei, pois como aduziu

Eliéser Rosa, [...] não é o legal que importa, mas o jurídico. [...]159. Para tanto, mister se faz o

exercício de sopesar meios e fins e buscar, com eqüidade, o espírito contido no corpo dessa

lei.

Foi o que se viu na sentença proferida pelo Juiz Antonio Francisco Pereira, da 8ª

Vara Federal de Belo Horizonte, no processo n.º 95.0003154-4, na ação de reintegração de

posse movida pelo DNER contra um determinado grupo do movimento sem-teto:

[...] Ou seja, enquanto não construir (o Estado) – ou pelo menos esboçar – "uma sociedade livre, justa e solidária" (CF, art. 3º, I), erradicando "a pobreza e a marginalização" (n. III), promovendo "a dignidade da pessoa humana" (art. 1º, III), assegurando "a todos existência digna, conforme os ditames da Justiça Social" (art. 170), emprestando à propriedade sua "função social" (art. 5º, XXIII e 170, III), dando à família, base da sociedade, "especial proteção" (art. 226), e colocando a criança e o adolescente "a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, maldade e opressão" (art. 227), enquanto não fizer isso, elevando os marginalizados à condição de cidadãos comuns, pessoas normais, aptas a exercerem sua cidadania, o Estado não tem autoridade para

158 FREIRE, Homero. Apud. HERKENHOFF, João Baptista.(1986) Como aplicar o direito. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense. p. 87. 159 ROSA, Eliézer. Apud. HERKENHOFF, João Baptista.(1986) Como aplicar o direito. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense. p. 87.

Page 88: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

97

deles exigir – diretamente ou pelo braço da Justiça – o reto cumprimento da lei [...]160.

Fugir ao texto legal não significa contrariar o ordenamento jurídico e, por vezes,

significa justamente aplicar a justiça.

O Poder Judiciário, ao analisar politicamente suas matérias e, ao fazê-lo quase

sempre mediante interpretação gramatical, apenas formaliza demais o Direito, em detrimento

de sua democratização.

Não bastasse todo o alegado, há outros casos de subordinação do Poder Judiciário

ao Poder Executivo. Diante de um estado de necessidade – subjetivo ao interesse do soberano

– e da inexistência de uma lei – neste particular o caso em concreto deveria, pelo menos em

um primeiro momento, ser sanado pela analogia, costumes e princípios gerais do direito,

diante da análise do poder judiciário – o Poder Executivo toma à frente e cria a lei.

É também importante lembrar que a reforma do Poder Judiciário encontra-se em

estado de inércia. As únicas reformas, como, por exemplo, a inclusão das Súmulas

Vinculantes pelos artigos 285-A161 e 518162 do Código de Processo Civil, têm apenas o intuito

de desafogar a pauta do Poder Judiciário. O novo regime do Agravo, trazido pela Lei nº.

11.187/05, exige uma série de novos requisitos para sua interposição e dificulta,

conseqüentemente, o acesso aos tribunais superiores.

O discurso do Poder Judiciário é o da celeridade processual, com redução

significativa do número de processos. Porém, se os discursos de reformas institucionais

160 A presente sentença foi retirada do site: http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/dh/volume%20ii/proces9500031540.htm, no dia 02/02/07. 161 Art. 285-A. Quando a matéria controvertida for unicamente de direito e no juízo já houver sido proferida sentença de total improcedência em outros casos idênticos, poderá ser dispensada a citação e proferida sentença, reproduzindo-se o teor da anteriormente prolatada. 162 Art. 518. Interposta a apelação, o juiz, declarando os efeitos em que a recebe, mandará dar vista ao apelado para responder. ... § 1o O juiz não receberá o recurso de apelação quando a sentença estiver em conformidade com súmula do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal.

Page 89: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

98

sempre partirem dos órgãos governamentais diretamente nelas interessados, haverá, pelo

menos em um primeiro lugar, uma maior preocupação com o andamento das atividades

praticadas por aqueles, e não com a construção da justiça.

Por isso, a importância da participação de multi-organismos, como se vem fazendo

na Argentina, segundo Marta Biagi:

[…] (…) en la argentina y muchos países, se ha encarado una reforma judicial; se parte del diagnostico de una crisis en la administración de la justicia y lo relacionan, entre otros factores, a la formación que reciben los abogados en las universidades. En Argentina desde hace más de dos décadas que diferentes grupos de profesionales y organizaciones públicas y privadas se han preocupado por este tema cuya solución no es simples, pero se han, hecho algunos avances importantes [...]163.

Tais reformas são imprescindíveis à sociedade. Entre os poderes legalmente

constituídos, nenhum deles deve ter maior capacidade de pressão sobre o Estado do que o

Poder Judiciário.

[...] Nenhum segmento da sociedade tem maior poder de pressionar o Estado do que os magistrados; pois eles, encarregados do exercício da jurisdição, estão aptos a empregar os argumentos retóricos que o próprio Estado utiliza para impor os seus objetivos, só que em sentido inverso, recusando-se, por exemplo, a aplicar uma lei que repugna à consciência do magistrado, ou zelando para que os efeitos negativos de uma lei injusta não possam se concretizar. [...]164.

Vê-se, portanto, um Direito mais político do que jurídico, e este político, de forma

premente, se exterioriza por meio de atos do Poder Executivo, em detrimento da contínua

163 A tradução que se segue, foi elaborada pelo autor desta dissertação: [...] Na Argentina e em muitos países, tem ocorrido uma reforma judicial; parte-se do diagnóstico de uma crise na administração de justiça e a relacionam, entre outros fatores, à formação que recebem os advogados na universidades. Na Argentina há mais de duas décadas que diferentes grupos de profissionas e organizações públicas e privadas têm se preocuapdo com este tema cuja solução não é simples, mas já se fez, alguns avanços importantes.[...]. BIAGI, Marta. Para investigar en ciencia jurídicas. Comentarios sobre los hábitos del pensamiento riguroso. Júris Poiesis – Revista do curso de direito da Universidade Estácio de Sá. Ano 8, n.8, jul. 2005. p. 248 164 COELHO, Luiz Fernando.(1983) Introdução à Crítica do Direito. Curitiba: Livros HDV. p. 76.

Page 90: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

99

diminuição da participação tanto no que concerne à construção, quanto à crítica, dos

dispositivos legais comumente editados e em vigor no ordenamento jurídico.

Houve uma grande metamorfose na busca pela verdade, com o intuito de se fazer

justiça no cenário mundial, onde o sistema é questionado incessantemente quanto à sua

eficácia, muito embora tais indagações não questionem sua validade, pois todos os rituais

previstos para os procedimentos de inquérito e aplicação da justiça, encontram-se elencados

no próprio ordenamento positivado.

Quando, porém, surgem os questionamentos, não são raras as vezes onde se pode

ver a declaração de inconstitucionalidade de normas, o abuso explícito contra os direitos

humanos, ou a construção de novas normas que retiram a competência dos tribunais

superiores para a apreciação da legalidade de certas leis, o que acaba por sancionar também a

politização dos órgãos do Poder Judiciário, ferem, por conseguinte, o devido processo legal

substantivo165 e a independência harmônica que deve haver entre os três poderes.

Como juristas, os membros do Poder Judiciário não podem ser relegados à

periferia do debate da organização jurídica do Estado, atendendo-se, no mais das vezes, a

julgar demandas em seus gabinetes. Nesse sentido, os tribunais superiores, como verdadeiros

guardiões do ordenamento jurídico e, principalmente, da Constituição Federal, não podem

165 Sobre o Devido processo legal Substantivo, assim leciona o eminente Oscar Vilhena Vieira: [...] O conceito de devido processo legal substantivo, por sua vez, é visto com muito mais reserva, pois ele significa entregar ao âmbito não majoritário do poder judiciário, a competência para analisar se as escolhas realizadas pelo parlamento ou pelo executivo, no seu campo de discricionariedade, afetam de forma não razoável ou desproporcional, um direito assegurado pela Constituição (...). Esta análise substantiva impõe invariavelmente a obrigação de que o Judiciário se engaje num processo de ponderação de valores e interesses que foram previamente ponderados pelo legislador ou pelo administrador, substituindo eventualmente as decisões tomadas na arena política, pela sua interpretação de qual é a adequada ponderação entre esses valores ou interesses. Esta é razão pela qual a noção de devido processo substantivo é objeto de tanta controvérsia. Ao julgar que o legislador foi longe demais na restrição da liberdade contratual, na imposição de penas, na limitação da liberdade de expressão, o juiz estará afastando do processo político a decisão sobre como harmonizar e eventualmente restringir direitos (...). (...) possibilidade de que eles gerem decisões injustas, que afetem direitos fundamentais de forma desproporcional e não razoável, que violem os interesses e direitos de minorias vulneráveis. Desta forma, sem que haja um âmbito não majoritário e razoavelmente imparcial, como o judiciário, que tenha poderes de impugnar atos destituídos de razão produzidos pela democracia, corremos o risco de uma tirania das maiorias [...].VIEIRA, Oscar Vilhena. (2006). Direitos Fundamentais: Uma leitura da Jurisprudência do STF. São Paulo: Malheiros. p. 482 e 483.

Page 91: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

100

simplesmente ater-se à atividade jurisdicional, principalmente quando realizada

ostensivamente, de forma dogmática e positivada.

Tal poder desempenha papel de fundamental relevância à orientação dos cidadãos

e no aprofundamento do conceito de democracia.

Vê-se, portanto, que a construção do ordenamento jurídico no Brasil, em qualquer

um dos três poderes, está relegada, no mais das vezes, ao Poder Executivo, que possui maior

abrangência no cenário nacional, seja por força legal, como ocorreu nas primeiras

constituições, seja por força ideológica, como ocorrido nas ditaduras de Getúlio Vargas e na

militar, seja a partir da redemocratização. A partir de então, o Poder Executivo fomentou sua

participação legiferante na atividade política e, além de indicar os Ministros para o STF,

retirou desta corte a competência de apreciação de certas leis, situação esta que compromete o

devido Processo Legal Substantivo.

Page 92: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

101

4. A INFLUÊNCIA DA EXCEÇÃO NA CONSTRUÇÃO DO ORDENAMENTO JURÍDICO NOS PAÍSES PERIFÉRICOS

A migração interna de partes nevrálgicas das atividades dos Poderes Legislativo e

Judiciário vem explicitamente recaindo sobre o Poder Executivo, o que compromete o

princípio da separação dos três poderes e da democracia.

Ademais, tais migrações vêm ganhando força, tanto interna quanto externamente,

sem demonstrar qualquer possibilidade de que, dentro de algum tempo, a separação material

dos três poderes voltará a ser bastante delimitada.

Neste sentido:

[...] embora um uso provisório e controlado dos plenos poderes seja teoricamente compatível com as constituições democráticas, “um exercício sistemático e regular do instituto leva necessariamente à liquidação da democracia! (ibidem, p.333). De fato, a progressiva erosão dos poderes legislativos do Parlamento, que hoje se limitam, com freqüência, a ratificar disposições promulgadas pelo executivo sob a forma de decretos com força de lei, tornou-se desde então uma prática comum. (...) Uma das características essenciais do estado de exceção – a abolição provisória da distinção entre poder legislativo, executivo e judiciário – mostra aqui, sua tendência a transformar-se em prática duradoura de governo. [...]166

Por outro lado, sobretudo externamente, o conceito jurídico de democracia vem

sendo assumido por um conceito econômico, onde os interesses do mercado têm o poder de

criar a regra, principalmente quando estes pertencem aos países centrais do capitalismo.

Mais importante do que a organização política, a econômica tem sido o ponto

central de elaboração e criação de projetos de leis, que atenderão aos interesses de grandes

corporações.

Dentro dessa linha de raciocínio, Gilberto Bercovici elucida que o conceito de

Estado, como organizador político e jurídico da sociedade, tende a desaparecer:

166 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. (2004) São Paulo: Boitempo. p.19

Page 93: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

102

[...] Thomas Vesting, por sua vez, declara superada a teoria do Estado Social de Heller, com a perda da autoridade estatal e da soberania na regulação da economia. Partindo de uma analise sistêmica, Vesting afirma que o Estado entendido como autoridade econômica caiu no vazio com a sociedade complexa da atualidade. Para ele, se formos buscar a teoria de Heller para entender o Estado como organização política central da sociedade, ela esta condenada a ser mera peça de museus. [...]167

Cria-se um Estado de exceção permanente, pautado em valores econômicos e não

jurídicos ou políticos, cujo resultado é a delimitação entre centro e periferia do sistema

capitalista.

Desta forma se estabelece uma segregação social, porque este novo modelo

assume a característica de uma nova forma de dominação entre centro e periferia. É neste

momento que a distinção entre o “nós” e “eles” solicita uma discussão para que se criem as

regras para aceitação da definição de quem são os amigos e os inimigos.

[...] O Estado não elimina a hostilidade das relações sociais, mas perde o monopólio do político e, conseqüentemente, o poder de se fazer valer como instancia superior. A economia abala a soberania do Estado moderno, embora abra espaço para um novo reagrupamento da distinção amigo/inimigo: a luta de classes. [...]168

Mais à frente, nesta mesma obra, completa:

[...] O que muda com Schmitt, de acordo com a análise de Píer Paolo Portinaro, é a definição da característica essencial do Estado, não mais como monopólio legitimo do uso da força, mas como o monopólio da decisão última sobre a distinção amigo/inimigo [...]169

Diante de tais alegações, percebem-se as verdadeiras razões, os motivos pelos

quais, no Brasil, como em todos os países periféricos do sistema capitalista, a reprodução do

confisco dos Poderes Legislativo e Judiciário, pelo Poder Executivo, se efetiva. 167 BERCOVICI, Gilberto. (2004) Constituição e estado de exceção permanente. Rio de Janeiro: Azougue Editorial. p.165 168 BERCOVICI, Gilberto. (2004) Constituição e estado de exceção permanente. Rio de Janeiro: Azougue Editorial. p.156 169 BERCOVICI, Gilberto. (2004) Constituição e estado de exceção permanente. Rio de Janeiro: Azougue Editorial. p.159

Page 94: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

103

A desestruturação da soberania nacional, que se reflete no âmbito da ordem global,

via mercado, nos países periféricos, coloca as políticas públicas diretamente atreladas às

entidades multilaterais e supranacionais.

Já antevendo tal cenário, assim aduziu Carl Schmitt:

[...] Schmitt entendia que a política era e sempre seria o destino, pois mesmo a economia se transformaria em fato político, a serviço de grupos de amigos e de inimigos, não podendo escapar das conseqüências do político. Mas, com a sua constatação da vitória da economia, da indústria e da técnica sobre o Estado, a guerra e a política, há uma virada para o econômico, e o destino não é mais a política, mas a economia. O Estado do século XX, segundo Schmitt, deve ser entendido essencialmente como espaço econômico, cujo centro de referencia é a economia e a técnica. A expressão cuius regio eius oeconomia deve ser substituída no segundo pós-guerra, quando o ordenamento passa a ser determinado pela constituição econômica, para cuius oeconomia eius regio. Como conseqüência do progresso econômico e industrial anglo-saxão, a totalidade fechada do Estado passa a ser negada, bem como sua posição central de instituidor da ordem. Schmitt, então, afirma que, na era da técnica, o Leviatã estatal não impressiona mais e se torna, portanto, inócuo.[...]170

Sobretudo nos grandes fundos econômicos internacionais, tais como FMI e BIRD,

em Bancos Centrais como o FED ou em uniões aduaneiras como a União Européia, NAFTA e

ASEAN, as organizações supraestatais acabam sendo o elemento de soberania com o inteiro

desgaste da soberania nacional e institucional dos países periférico.

Hoje, no Brasil, há um desgaste dos Poderes Legislativo e Judiciário, e a

hipertrofia do Poder Executivo se soma a um fenômeno diferente dos países centrais da

economia capitalista, que é o fato de a soberania brasileira estar limitada por diretrizes de

ordem econômica, as quais são determinadas por entidades supranacionais.

170 BERCOVICI, Gilberto. (2004) Constituição e estado de exceção permanente. Rio de Janeiro: Azougue Editorial. p.157

Page 95: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

104

No contexto da ordem jurídica atual, isto é, de uma globalização operada pelos

mercados, os países periféricos apenas têm em seus Bancos Centrais e Ministérios uma

espécie de caixa de ressonância de diretrizes que são emanadas de organizações multilaterais.

Neste sentido, tanto no Brasil, quanto em todos os outros países periféricos do

capitalismo, o Estado de exceção é potencializado pelo fato de haver uma erosão na decisão

autônoma e soberana sobre as suas próprias políticas públicas.

[...] (...) os Estados Unidos passaram a defender, segundo Schmitt, a separação entre política e economia nas relações internacionais, o que não deixa de ser um exercício indireto de influência política. Afinal, o poder econômico é poder político. [...]171

Em outras palavras, muito embora o desgaste entre os Poderes,, no País requeira

especial atenção diante da gravidade institucional que se instaura, tais fatos acontecem apenas

por conseqüência das políticas econômicas tomadas no exterior. Diante disto, percebe-se que

na periferia do capitalismo, o desgaste acontece de forma potencializada.

[...] Afinal, o mercado vota todos dias, como salientou Atílio Boron: as decisões políticas fundamentais são tomadas pelo mercado, a despeito da vontade popular. Os Estados periféricos foram, portanto, atingidos de maneira profunda pela globalização, perdendo sua margem de manobra e convivendo com crescentes ameaças à sua própria unidade nacional, com o risco de transformação da democracia política em mero simulacro eleitoral. Deste modo, a América Latina, além da crise econômica interna, é vitima de fatores externos de instabilidade econômica. Os poderes discricionários do Executivo são mais plausíveis, especialmente, para os países dependentes de decisões do Fundo Monetário Internacional e da Organização Mundial do Comércio, que constituem poderes de exceção sem qualquer contrapartida. As pressões internas e externas para a execução de políticas neoliberais só fazem perpetuar a dependências dos poderes econômicos de emergência.[...]172

171 BERCOVICI, Gilberto. (2004) Constituição e estado de exceção permanente. Rio de Janeiro: Azougue Editorial. p. 176 172 BERCOVICI, Gilberto. (2004) Constituição e estado de exceção permanente. Rio de Janeiro: Azougue Editorial. p.178 e 179

Page 96: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

105

Portanto, além do Estado nacional, no Brasil, não funcionar mais de acordo com a

divisão dos poderes, não funciona também porque a sua soberania está inteiramente erodida,

em função de sua situação geopolítica na periferia do capitalismo.

[...] O Estado desenvolvimentista latino-americano não precisa apenas expandir o sistema econômico existente, mas deve criar um novo. O seu caráter periférico significa que possui núcleos de poder interno cujas decisões são orientadas para o exterior e que muitas das decisões nacionais são afetadas ou condicionadas por fatores externos. Portanto, o Estado desenvolvimentista deve superar sua condição periférica e se colocar em pé de igualdade com os Estados do centro hegemônico do capitalismo. O modelo Keynesiano e o do Estado Social europeu são, assim, insuficientes. O papel do Estado na periferia deve ser muito mais amplo e profundo que nos paises centrais, pois ele enfrenta, ao mesmo tempo, problemas da formação de um Estado nacional e questões relativas às políticas do capitalismo avançado.[...]173

O Estado se torna uma espécie de agente das diretrizes econômicas, as quais vêm

das organizações econômicas supranacionais. É uma espécie de autarquia, que recebe as

diretrizes de um governo central, e coloca tais ordens em prática, independentemente da

análise do teor das mesmas, o que parece demonstrar que a soberania, por si só, é meramente

aparente.

[...] A recuperação da concepção original do Estado Social de Heller, portanto, pode ser fundamental para a reestruturação democrática do Estado brasileiro. Do mesmo modo que o Estado Social de Heller previa a emancipação social com o socialismo, o Estado desenvolvimentista brasileiro deve superar a barreira do subdesenvolvimento em busca da emancipação social de sua população. [...]174

Como se tem a liberdade de aceitar ou não as regras externas, muito embora não

participemos de sua construção e discussão, a resposta dada pelo Poder Executivo nacional

define nossa posição no tabuleiro geopolítico. Isto é uma forma de dominação, onde o aceite

173 BERCOVICI, Gilberto. (2004) Constituição e estado de exceção permanente. Rio de Janeiro: Azougue Editorial. p.167 e 168 174 BERCOVICI, Gilberto. (2004) Constituição e estado de exceção permanente. Rio de Janeiro: Azougue Editorial. p.169

Page 97: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

106

das normas impostas nos garante uma posição no cenário internacional na condição de país

amigo, porém jamais a possibilidade de se transladar da periferia para o centro.

[...] Afinal não podemos esquecer que o subdesenvolvimento, em suas raízes, é um fenômeno de dominação. O subdesenvolvimento é um processo histórico autônomo, não uma etapa pela qual, necessariamente, os países desenvolvidos passaram. Segundo Celso Furtado, ele é a manifestação de complexas relações de dominação entre os povos, que tendem a perpetuar-se. Deste modo, é fundamental ter consciência da dimensão política do subdesenvolvimento [...].175

É nesta linha que as situações excepcionais são artificialmente criadas, e as novas

regras de dominação juridicamente justificadas. Em outras palavras, onde as situações de

necessidade são criadas de acordo com interesses particulares, as respostas do ordenamento a

essas necessidades só podem ser, do ponto de vista lógico-racional, injustas embora legais.

[...] O atual estado do mundo, de acordo com Paulo Arantes, é o estado de sitio. A ditadura política foi substituída com êxito pela ditadura econômica dos mercados, denotando a excepcionalidade dos trinta anos do consenso Keynesiano dentro da história do capitalismo. Com as estruturas estatais ameaçadas ou em dissolução, o estado de emergência aparece cada vez mais em primeiro plano e tende a se tornar a regra. A partir da recente supremacia de idéias como auto-regulação e soberania do mercado, volta à atualidade o pensamento de Schmitt, que define como soberano quem decide sobre o estado de exceção.[...]176

Um exemplo emblemático disso é a legislação trabalhista e, conseqüentemente, a

previdenciária. No Brasil, o custo de um empregado no preço final de um produto ou serviço,

em comparação com alguns países como Taiwan, China, Indonésia, Malásia, entre outros,

chega a ser proibitivo, em virtude dos direitos concedidos, sobretudo pelos governos

populistas, por causa do excesso de burocracia e consectários agregados aos salários pelo

poder público.

175 BERCOVICI, Gilberto. (2004) Constituição e estado de exceção permanente. Rio de Janeiro: Azougue Editorial. p. 169 176 BERCOVICI, Gilberto. (2004) Constituição e estado de exceção permanente. Rio de Janeiro: Azougue Editorial. p. 171

Page 98: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

107

No entanto, isso tudo vem da reconfiguração da ordem jurídica internacional, a

partir do fenômeno da globalização que, em última instância, nada mais é do que a

reconfiguração do capitalismo internacional.

Tal situação exige uma discussão interna, para que as velhas políticas sociais

passem a não conflitar os novos interesses econômicos, sob pena de não atrairmos a atenção

dos grandes grupos internacionais, que desejam investir, de forma significativa, nos países

periféricos.

Diante disto, para que se minimizem as taxas de desemprego e suas principais

decorrências sociais – fome, criminalidade, problemas de saúde e miséria, entre outros – o

País se vê forçado a atender aos grupos estrangeiros, que assumem, no caso, um papel de

construtor da razão/necessidade dos Estados periféricos.

Assim:

[...] A periferia vive em um estado de exceção econômica permanente, contrapondo-se à normalidade do centro. Nos Estados periféricos há o convívio do decisionismo de emergência para salvar os mercados com o funcionamento dos poderes constitucionais, bem como a subordinação do Estado ao mercado, com a adaptação do direito interno às necessidades do capital financeiro, exigindo cada vez mais flexibilidade para reduzir as possibilidades de interferência da soberania popular. A razão de mercado passa a ser a nova razão de Estado. [...]177

Ao enxergar as possíveis conseqüências que adviriam de tal cenário, assim

escreveu Scheuerman:

[...] If the rule of law is to survive in the contemporary world and continue to guarantee a measure of political freedom, new legal institutions will have to extent it into the private economic sphere, making sure that its basic intentions are preserved in social and economic affairs as much as anywhere else. Private power can be as despotic as state power, thus the rule of law’s noble struggle against despotism now needs to include an aggressive

177 BERCOVICI, Gilberto. (2004) Constituição e estado de exceção permanente. Rio de Janeiro: Azougue Editorial. p. 171 e 172

Page 99: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

108

offensive against unregulated economic privilege and the ultimately unacceptable “inhumanity” of capitalism itself. [...]178.

Neste sentido, segundo seu ponto de vista, percebe-se que a esfera de atuação

privada, principalmente diante da indemonstrável noção de justiça, em muitos casos pode ser

tão maléfica quanto a pública, e a lei que aí está para regulá-la, parece não conseguir realizar

tal função.

A flexibilização das leis trabalhista é, neste caso, a expressão de como os contratos

são moldados de maneira a corresponder aos interesses das grandes empresas, de maneira que

as empresas tenham total mobilidade.

Isto explica porque os sindicatos e o Direito do Trabalho, que surgiram para

regular situações de desigualdade, perdem força, sem que, para tanto, haja qualquer ato de

ilegalidade.

Não bastassem as questões sociais e trabalhistas, têm-se novos subsídios para

entender as razões de o Supremo Tribunal Federal abandonar seu posicionamento antigo, de

forma que um tratado internacional, segundo a hierarquia das normas descrita, no artigo 59,

da Constituição Federal, assumia o mesmo nível de discussão de uma Lei Ordinária.

Hoje, sobretudo após o advento da Emenda Constitucional número 45, um tratado

internacional poder ter o mesmo nível hierárquico de uma Emenda à Constituição,

dependendo do tema em debate e da forma com que os trâmites internos sejam realizados.

Neste sentido, vale destacar a posição de Hardt:

[...] Por meio de sua transformação contemporânea da lei supranacional, o processo imperial de constituição tende direta ou indiretamente a penetrar e

178 A tradução que se segue, foi elaborada pelo autor desta dissertação: [...]Se a regra da lei é sobreviver no mundo contemporâneo e continuar a garantir uma medida de liberdade política, novas instituições legais terão que estendê-la à esfera econômica privada, tendo certeza que suas intenções básicas estão preservadas em princípios de uma economia social em qualquer lugar. O poder privado pode ser tão despótico quanto ao poder público, e a nobre luta da lei se choca contra o despotismo agora necessário para incluir uma ofensiva agressiva contra privilégios econômicos desregulados e a finalidade inaceitável do capitalismo selvagem em si. [...] SCHEUERMAN, William E.. (1994). Between the norm and the exception: the Frankfurt School and the rule of law. Baskerville: Maple-Vail Book Manufacturing Group. p. 45.

Page 100: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

109

reconfigurar a lei interna das Estados-nação, e dessa forma a lei supranacional poderosamente superdetermina a lei nacional. (...) Diferentemente do que acontecia na antiga ordem internacional, Estados individuais soberanos ou o poder supranacional (ONU) não mais intervêm apenas para assegurar ou impor a aplicação de acordos globais voluntariamente contratados. Agora as autoridades supranacionais que estão legitimadas não por direito, mas por consenso intervêm em nome de qualquer espécie de trivial emergência e princípios éticos superiores. [...]179.

Em se tratando o tema em discussão de direitos humanos e fundamentais, este

tratado é votado pelo Congresso Nacional com o mesmo rigor com que é votada uma Emenda

Constitucional, uma vez aprovado o tratado, ele assumirá um nível hierárquico apenas inferior

à Constituição Federal.

Assim, os debates externos, uma vez incluídos em nosso ordenamento jurídico,

passam a ter mais força que a maioria absoluta das normas positivadas.

Diante de situações como esta, os interesses dos grupos econômicos representados

por seus países-sede, ou organizações supra-estatais, tais como G8, G4, OTAN, OMC, OIT,

dentre outros, para difundir suas políticas, não parecem ter nenhuma barreira intransponível

para a positivação de suas necessidades e pretensões comerciais.

Bercovici acrescenta:

[...] O Estado de exceção está se espalhando por toda a parte, tendendo a coincidir com o ordenamento normal, no qual, novamente, torna tudo possível. [...]180

Parece ter sido este o sentido da frase proferida por Henry Kissinger, ao alegar que

[...] Caminante, no hay camino. Se hace camino al andar. [...]181

179 HARDT, Michael e NEGRI, Antonio. (2001). Império. Rio de Janeiro: Record. p. 35 e 36. 180 BERCOVICI, Gilberto. (2004) Constituição e estado de exceção permanente. Rio de Janeiro: Azougue Editorial. p. 180. 181 MACHADO. APUD. KISSINGER, Henry. (2001) Diplomacia. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora. p. 09.

Page 101: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

110

A figura ainda concebida de Estado, com o monopólio político, jurídico e

econômico de suas decisões, não existe mais.

[...] No prefácio, de 1963, que Schmitt escreveu ao livro O Conceito do Político, ele afirmava que a Europa vivia uma época em que os conceitos jurídicos estavam integralmente ligados ao Estado, pressupondo-o como modelo da unidade política. Mas, na sua visão, “a época da estatalidade chegava agora ao seu fim”, e o Estado como modelo da unidade política e como portador do monopólio da decisão política estava destronado. O Estado moderno é, portanto, para Schmitt, uma figura histórica e superada. Para ele, a soberania e a política não são mais redutíveis à forma “Estado”. Na realidade, desde a Teologia Política Schmitt fala do fim do Estado. Deste modo, a desconstrução do Estado, para Galli, já foi virtualmente realizada na individualização da soberania como decisão sobre a exceção. Mesmo a afirmação do Estado como status da unidade política culmina na conclusão que o Estado não tem sentido separado do político. [...]182

Prova disso reside no constante temor econômico das bolhas especulativas; na

influência das bolsas de valores, sobretudo das bolsas norte-americanas – Nasdaq, Dow Jones

e S&P 500 – nos mercados periféricos, que por conseqüência os levam a controlar, de forma

titânica, seus níveis de inflação e de reservas, para que haja garantia econômica em eventuais

momentos de crises.

A organização destes interesses são exprimidas por Hannah Arendt:

[...] O cerne do utilitarismo moderno, positivista ou socialista, é a teoria política de Rohan, de que “os reis comandam os povos e os interesses comandam os reis”, de que o interesse objetivo é a “única [lei] que não falha”, e que, “mal ou bem compreendido, o interesse é responsável pela existência e pelo desaparecimento dos governos. [...]183

A propósito, Foucault ensina:

[...] O poder, acho eu, deve ser analisado como uma coisa que circula, ou melhor, como uma coisa que só funciona em cadeia. Jamais ele está

182 BERCOVICI, Gilberto. (2004) Constituição e estado de exceção permanente. Rio de Janeiro: Azougue Editorial. p. 158 183 ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 396.

Page 102: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

111

localizado aqui ou ali, jamais está entre as mãos de alguns, jamais é apossado como uma riqueza ou um bem. O poder funciona. O poder se exerce em rede e, nessa rede, não só os indivíduos circulam, mas estão sempre em posição de ser submetido a esse poder e também exercê-lo. Jamais eles são o alvo inerte ou consentidor do poder, são sempre seus intermediários. [...]184

Portanto, o Estado de exceção justifica a política de entrada dos grandes grupos

empresariais, sobretudo no plano econômico, nos países periféricos e, ao mesmo tempo que o

fazem, e atingem seus ideais, não ferem, em momento algum, o ordenamento jurídico dos

países periféricos, sobretudo o nacional, maior alvo deste estudo.

Ademais, é importante salientar que este cenário explica as razões de o Poder

Executivo, na maior parte dos países do mundo, sobretudo dos países democráticos,

concentrar em si não só os poderes típicos a ele inerentes, mas, assumir cada vez mais as

atividades dos demais Poderes e, por vezes, interferindo em grande parte de suas atividades

remanescentes.

184 FOULCAULT, Michel. (1999) Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes. p.35.

Page 103: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

112

CONCLUSÃO

Ainda há uma representação do Direito como um conjunto de princípios que

norteiam as políticas públicas, para que estas sejam confeccionadas de forma impessoal e que,

para tanto, consulta o interesse coletivo com o intuito de humanizá-lo, por meio de debates e

efetivação de políticas sociais.

Tal representação advém do Século XIX, quando se assistiu, como visto nos

capítulos anteriores, sua organização em torno de um sistema de direitos públicos e privados,

que pretendiam representar a essência da autodeterminação individual e coletiva, segundo a

idéia de que uma sociedade livre deveria ser pautada por um conteúdo jurídico e, portanto,

imparcial do ponto de vista de uma justiça distributiva, com o fim de privilégios injustos.

No Século XX, no entanto, tais premissas pareceram não ter sido aplicadas na sua

justa ou necessária proporção, uma vez que a demonstração da autodeterminação depende,

para ser considerada real, de condições factuais, o que não se verifica devido ao

agigantamento das diferenças existentes entre os entes individuais e coletivos, públicos e

privados, nacionais e internacionais.

Hoje, diante de tal crise, não parece ser possível pensar em um modelo de Direito

que não comece com a reconstrução institucional, principalmente no que concerne às

reformas governamentais em seus mais variados ramos, sobretudo nas inter-relações entre os

três Poderes, as quais devem ser pautadas, como consta no artigo 2º da Constituição Federal,

com independência e harmonia.

A desigualdade entre os Poderes se acentuou, e a experiência real de um

verdadeiro Federalismo, além de desconcentrar parte do poder existente nas mãos da União,

(que em muitos casos se porta como se um Estado Unitário fosse) permitiria o repasse de

atribuições aos entes Federados. Este fato poderia desburocratizar o já burocrático sistema

federativo.

Page 104: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

113

Justamente por causa dessa desigualdade entre os Poderes, o Direito

hodiernamente encontra-se em crise, sem muitas respostas a perguntas muitas vezes simples,

não mantendo uma identidade com a civilização que o criou, para gerir seus próprios impasses

e necessidades, ávido por legislar e atuar em tudo, e outras vezes, no entanto, sem nenhuma

palavra a dizer.

A construção do saber jurídico, sobretudo no tocante aos métodos de investigação

da verdade, e a sua conseqüente utilização como fonte clara e objetiva, resolvendo-se com

isso impasses de forma neutra e justa, passou por uma série de intempéries, e mesmo hoje,

muitos séculos após os primeiros pensadores terem iniciado seu esboço, parece ainda

estarmos longe de um padrão satisfatório.

O Estado, apesar das ondas de privatizações no mundo pós-moderno, concentrou,

sobretudo, nas mãos do Poder Executivo, atribuições tais como legislar de forma atípica, por

meio da edição crescente de Medidas Provisórias, pela manipulação do valor da moeda e por

meio da politização dos tribunais, tanto no Brasil quanto em grande parte das nações

democráticas.

Vê-se, constantemente, um desacato à justiça por parte do próprio Estado, o que

acaba por sancionar a existência de uma justiça lenta, burocrática, amarrada à lei e não ao

Direito, sem que haja evoluções consideráveis nos níveis de inclusão social.

Sem que haja leis coerentes e claras, um judiciário menos politizado e, portanto,

mais independente e imparcial, um Estado comprometido com os ideais de justiça, com a

aplicação dos Direitos Fundamentais, e não com conveniências de um soberano que se

apodera da vida nua, e faz com que o Direito se institua como um mecanismo de cálculo deste

mesmo soberano para poder manter-se no Poder e legitimar suas necessidades por meio da

construção maciça de regras, fato este que justifica o esbulho e a subsunção da competência

dos demais Poderes.

Page 105: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

114

Superar este paradigma instaurado, e conseqüentemente a crise em que se encontra o

Direito, é de suma importância para se compreender a era pós-moderna, suas necessidades,

trilhar novos caminhos e encerrar de vez esta descontinuidade jurídica.

O Direito não pode ser apenas uma realidade semântica ou um discurso, pois, dessa

forma, ele assume a postura de um jogo de palavras que seduzem, mas não alteram o status

quo, baseado em um Estado onde a exceção cria a regra. Em tal situação, o Direito assume a

característica de uma técnica de governo, que não opera de acordo com a vontade da

população e, sim, em relação aos próprios desígnios do soberano.

Neste contexto, percebe-se um ordenamento jurídico mais político do que jurídico,

de maneira que a exceção permite compreender as realidades políticas, sociológicas e

jurídicas. Nesse sentido, é de extrema importância a compreensão da exceção, pois é ela que

nos dará os subsídios para compreender a própria regra.

Em outras palavras, muito embora a construção do Direito manifeste nítidas

demonstrações de traços schmittianos, no que diz respeito ao modo como é produzido pelo

soberano, é apenas em sua aplicação social, portanto, quando positivado e exigido de toda a

sociedade mediante o princípio kelseniano da soberania da norma, que a exceção permite a

sua mais fina apreciação.

Aqui, Schmitt e Kelsen não são concorrentes, mas, complementares, já que o

soberano, figura definida por Schmitt como aquele que tem poder de decidir sobre o Estado

de exceção, cria a regra e esta a todos vincula, como alegava Kelsen.

Travestido de outras funções e fins que não aqueles discutidos e construídos durante

os séculos, o Direito não estabelece uma ordem jurídica, o que deveria levar, por

conseqüência, à organização social e política do Estado, e não a um Estado de exceção

permanente, que produz continuamente a exclusão.

Page 106: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

115

Diante deste quadro, é bastante claro perceber que o Direito flui com maior

celeridade e eficiência nas áreas mais convenientes ao soberano, tais como o Direito Eleitoral

e Tributário, por exemplo, e a contrário senso, imóvel em situações que a ele não interessam

ou podem vir a afetá-lo, tais como reformas políticas, as questões previdenciárias, sociais, de

infra-estrutura, carcerária, dentre outras. Com tais características, o Direito furta-se à sua

estrutura normativa, e a lei passa a atuar como um poder decisório sobre a vida.

Desde o início do Estado Liberal sempre houve uma tendência de se governar por

decreto com força de lei. Isso, no mundo contemporâneo, gera um esvaziamento total da

atividade legislativa nos parlamentos, e judiciária dos tribunais. Nesse sentido, a exceção

transformou-se em regra, e para esta transformação ocorrer, o soberano utilizou o Direito

como sua mais eficiente ferramenta.

Este modelo institucional brasileiro é o mesmo há décadas, mas a realidade

globalizada mudou e, com ela, surgiram novas perguntas, situações e contextos que precisam

ser respondidos. Porém, mal respondemos as questões anteriores, e estas já foram ab-rogadas

pelas novas questões conjunturais.

O que deveria ser seu maior atributo, desdobra-se em impotência do Direito, e esta

dicotomia, justifica a atual conjuntura social, política e econômica da democracia moderna.

Page 107: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

116

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFIA AGAMBEN, Giorgio. (2002) Homo Sacer – O Poder soberano e a vida nua - Belo Horizonte: Editora UFMG. ________. (2004) Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo. ARAÚJO, Marcelo. (2000) Mudanças partidárias / Dissertação de mestrado apresentada ao Departamento de Ciência Política da FFLCH/USP. ARENDT, Hannah. (1967) Sobre la revolución. Madrid: Revista de Occidente, 1967. ________. (1989) Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. AVELAR, Lúcia; CINTRA, António Octávio. (2004) Sistema Político Brasileiro: uma introdução. São Paulo: Fundação Unesp. BERCOVICI, Gilberto. (2004) Constituição e estado de exceção permanente. Rio de Janeiro: Azougue Editorial. BIAGI, Marta. (2005) Para investigar en ciencia jurídicas. Comentarios sobre los hábitos del pensamiento riguroso. Júris Poiesis – Revista do curso de direito da Universidade Estácio de Sá. Ano 8, n.8, jul. 2005. BRASIL, Constituição (2008). Constituição da República Federativa do Brasil. Promulgada em 05 de outubro de 1988: atualizada até a emenda Constitucional nº 53, de 19 de dezembro de 2006. 3ª edição. São Paulo: Saraiva, 2008.

CASTRO, Celso A. Pinheiro de. (2003) Sociologia aplicada ao Direito. 2. ed. – São Paulo: Atlas. CLÈVE, Clèmerson Merlin. (1993) A atividade legislativa do Poder Executivo no Estado contemporâneo e na Constituição de 1988. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. COELHO, Ricardo Corrêa. (1999) Partidos políticos, maiorias parlamentares e tomada de decisão na constituinte. Tese de Doutorado em Ciência Política apresentada à FFLCH. FERRAJOLI, Luigi. (2002). A soberania no mundo moderno: Nascimento e crise do Estado nacional - São Paulo: Martins Fontes. FONSECA, Ricardo Marcelo. (2002) Modernidade e contrato de trabalho: do sujeito de Direito à sujeição Jurídica. São Paulo: LTr, 2002. FOUCAULT, Michel. (1998) História da sexualidade I: Vontade de saber. (1998), Rio de Janeiro, Edições Graal. ________. (1999) Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes.

Page 108: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

117

________. (2002) A Verdade e as Formas Jurídicas. Nau Editora. GRAMSCI, Antonio. (1991). Maquiavel, a política e o Estado Moderno. 8. ed. – Rio de Janeiro: Civilização brasileira. GROSSI, Paolo. (2004) Mitologias jurídicas da modernidade. Florianópolis: Fundação Boiteux. HARDT, Michael e NEGRI, Antonio. (2001). Império. Rio de Janeiro: Record. HERKENHOFF, João Baptista. (1968) Como aplicar o Direito. 2. ed. Rio de Janeiro. HESPANHA, Antonio Manuel. (1993) Justiça e Litigiosidade - História e Prospectiva. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. ________. (2005) Cultura Jurídica Européia: Síntese de um milénio. Florianópolis: Fundação Boiteux. JÜNGER, Ernst. (2001) A mobilização Total – Revista Modernos e Contemporâneos II. Campinas: Cemodecon IFCH-Unicamp. KINZO, D´Alva Maria Gil. (1999) Partidos, eleições e representação política no Brasil / Coletânea de trabalhos apresentados para o concurso de habilitação à livre docência. FFLCH/USP. MATTOS, Olgária C. F.. (1989) “O Panteísmo da razão instrumental”. In: “Os arcanos do inteiramente outro”: a escola de Frankfurt, a melancolia e a revolução. São Paulo: Brasiliense. MEIRA MATTOS, Adherbal. (2002) Direito Internacional Público. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar. MENEGUELLO, Rachel. (1998) Partidos governos Brasil contemporâneo - (1985 – 1997) - São Paulo: Editora Paz e Terra. MARTINEZ, Miguel Angel Alegre. (1997) El derecho a la propia imagen, 1997. NOVAES, Adauto. (2004). Civilização e barbárie. São Paulo: Companhia das Letras. NIETZSCHE, Friederich. (2003). Ecce Homo. São Paulo: Martin Claret. p. 29. PERELMAN, Chaim. (1998) Lógica jurídica. São Paulo: Editora Martins Fontes Ltda. RAWLS, John (2002). Uma teoria da Justiça – 2. ed. São Paulo: Martins Fontes. REALE, Miguel. (1962). Filosofia do Direito. São Paulo: Saraiva. RIBEIRO JUNIOR, João. (19..) Uma proposta didático-pedagógica para o ensino do Direito. São Paulo, Papirus.

Page 109: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

118

ROUSSEAU, Jean Jacques. (1978) Do contrato social - tradução de Lourdes Santos Machado – Os Pensadores - 2. ed. – São Paulo: Editora Abril Cultural SANTOS, Boaventura de Sousa. (1999). 11ª ed. Um discurso sobre as ciências. Porto: Edições Afrontamento. SCHEUERMAN, William E.. (1994). Between the norm and the exception: the Frankfurt School and the rule of law. – Baskerville: Maple-Vail Book Manufacturing Group. SILVA, José Afonso da. (2000) Curso de Direito Constitucional Positivo / 19ª edição - São Paulo: Malheiros Editores, 2000. VIEIRA, Oscar Vilhena. (2006). Direitos Fundamentais: Uma leitura da Jurisprudência do STF. São Paulo: Malheiros. WEBER, Max. (1999). A ética protestante e o espírito do capitalismo. 14. ed. Rio de Janeiro: Biblioteca Pioneira das Ciências Sociais.

Page 110: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

119

FONTES Disponível em: http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/dh/volume%20ii/proces9500031540.htm, no dia 02/02/07. GALBRAITH, John Kenneth. (1997) Globalização. Folha de São Paulo, São Paulo, 11 nov. 1997. Caderno Brasil. PINHEIRO, Diogo. (2008) Cresce a proporção de projetos do executivo na câmara e cai dos deputados. Disponível em: http://noticias.uol.com.br/ultnot/brasil/2007/12/27/ult2041u311.jhtm, no dia 27/12/2007. STRECK, Lenio Luiz. (2007) Crise de paradigmas: Devemos nos importar, sim, com o que a doutrina diz. Documento eletrônico retirado do site http://conjur.estadao.com.br/static/text/40803,1, no dia 01/02/07. Vilhena, Oscar e Dallari, Dalmo. (2003) Dois anos após atentados, onde de repressão continua a sacrificar liberdades civis – Disponível em: http://cartamaior.uol.com.br/cartamaior.asp?id=909&coluna=reportagem. Acesso em 15/09/2003.

Page 111: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

120

ANEXOS

Page 112: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

121

ANEXO A

Cresce a proporção de projetos do Executivo na Câmara e cai a dos Deputados

Page 113: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

122

ANEXO B

Medidas provisórias editadas por mês (Outubro de 1989 a Setembro de

2001)

Page 114: Corpo do trabalho - univem.edu.br · ... migrando assim do estado de exceção ao ordenamento jurídico, ... fichamento e interpretação de ... derivar a concepção do político

123

ANEXO C

Comissões e Escolas do Legislativo nas unidades da Federação