introdução aoestudo do cristianismo - hugo de são vitor - cap 2

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A Educação segundo a Filosofia Perene Capítulo Segundo - O Fim Último do Homem - Texto disponível para Download no site de Introdução ao Cristianismo segundo a obra de Santo Tomás de Aquino e Hugo de S. Vitor http://www.terravista.pt/Nazare/1946/

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A Educao segundo a Filosofia Perene

Captulo Segundo

- O Fim ltimo do Homem -

Texto disponvel para Download no site de

Introduo ao Cristianismosegundo a obra de Santo Toms de Aquino e Hugo de S. Vitor

http://www.terravista.pt/Nazare/1946/http://www.cristianismo.org.brhttp://www.accio.com.br/Nazare/1946/

II

O fim ltimo do homem

II.1) Introduo.

Na introduo a este trabalho dissemos que, segundo Santo Toms de Aquino, toda filosofia se articula em torno da questo do fim:

"o nome de sbio, simplesmente considerado, est reservado quele cuja considerao versa sobre o fim de todas as coisas" .

O conhecimento do fim, , portanto, o ponto de partida da filosofia em geral, e, de um modo especial, das filosofias particulares, como a filosofia da educao; o "problema fundamental dos fins da educao", na expresso de Fernando de Azevedo.

Dissemos tambm que na filosofia perene o problema dos fins, mesmo em educao, no um problema apenas metodolgico, mas tambm cosmolgico, porque o que se observa que o mundo em que o homem est inserido possui uma ordenao intrnseca, independente da subjetividade humana, e ordenao significa ordenao a um fim.

Em Pedagogia, portanto, segundo a filosofia perene, no se pode postular um fim arbitrrio para o sistema educacional, apenas para dar coerncia e proporo entre os diversos meios que sero usados para educar o aluno. No se pode tambm estabelecer como fim do sistema educacional objetivos impostos por circunstncias de mercado, por programas polticos, por necessidades militares, ou outras metas baseadas em utilidades imediatas em geral.

Nada impede que o homem construa um sistema educacional baseado em fins como estes, o que tm sido feito, at em excesso, no mundo contemporneo. No ser difcil, porm, para o sbio, apontar inmeras contradies em uma educao que assim se organiza. Estas contradies tm suas razes na contradio fundamental existente entre a educao assim organizada e a ordem mais vasta e profunda que se observa na natureza.II.2) Presena no homem da ordem observada no Cosmos.

A maioria dos sistemas educacionais contemporneos foram construdos sem que se procedesse a uma investigao prvia da ordem csmica. Os homens que elaboraram as polticas educacionais dos pases modernos no pararam para discutir se existe ou no existe uma ordem no Universo; estavam, na maioria dos casos, apenas preocupados com problemas que afligiam de modo imediato as sociedades em que viviam.

Diante de nossas consideraes cosmolgicas eles poderiam muito bem perguntar que problema haveria em existir um sistema educacional que ignorasse a ordem do Universo. Se for bom para o homem ignorar esta ordem e construir uma sociedade parte da ordem do cosmos, porque o homem deveria deixar de faz-lo? Certamente a esttica do Universo ficaria comprometida, mas que diferena isto faria para o homem? Se com isto se resolvessem os problemas que afligem a humanidade, por que considerar a ordem do Universo? Se forem atendidas as necessidades das sociedades em que se vive, qual seria o problema em ter uma educao cuja finalidade discrepe da finalidade do cosmos? E, se estas necessidades no forem atendidas, que sentido teria considerar a ordem csmica? Parece, pois, que a questo importante e bsica em educao bem outra.

Poderia a filosofia, diante destas consideraes, indicar alguma razo mais imediato para justificar a intromisso destas consideraes cosmolgicas em educao?

Devemos responder a esta pergunta com um sim. Sim, pode-se justificar de um modo mais imediato a necessidades destas consideraes cosmolgicas em educao.

J mencionamos na introduo a este trabalho que a questo cosmolgica implica em uma questo metafsica, assunto sobre o qual voltaremos a falar mais extensamente em outras partes deste trabalho.

Ocorre, porm, que a questo cosmolgica implica, alm da questo metafsica, tambm uma questo antropolgica, uma questo em que est envolvida a prpria essncia do homem. E se isto assim, teremos, por conseqncia, que agindo contra a ordem csmica, age-se tambm e necessariamente contra a essncia do homem.

Santo Toms de Aquino tratou deste problema no incio da Prima Secundae da Summa Theologiae. A ele afirma que no apenas no cosmos que se observa a existncia de um fim. Ao contrrio, a natureza humana tal que o homem, justamente enquanto homem, age necessariamente tendo em vista um fim.

Cumpre, portanto, investigarmos que fim este, e se est em consonncia com o fim do cosmos.

Este ser o assunto do presente captulo.

II.3) Antropologia do problema dos fins.

No incio da Prima Secundae da Summa Theologiae, Toms de Aquino afirma que todas as aes propriamente humanas so feitas tendo em vista um fim. assim que ele explica este fato:

"Nem todas as aes do homem", diz Toms de Aquino, "so ditas humanas. Somente so ditas humanas aquelas que so prprias do homem enquanto homem. Ora, o homem difere das criaturas irracionais pelo fato de ser senhor de seus atos. Portanto, somente sero chamadas propriamente humanas aquelas aes das quais o homem senhor. O homem, porm, senhor de seus atos pela razo e pela vontade, de onde que so ditas aes propriamente humanas aquelas que procedem da vontade deliberada.

As demais aes podem ser ditas aes do homem, mas no propriamente humanas, pois no so do homem enquanto homem.

manifesto, porm, que todas as aes que procedem de alguma potncia, tal como a vontade ou a inteligncia, so causadas por ela segundo a razo de seu objeto. O objeto, porm, da vontade, o fim ou o bem. Portanto, todas as aes humanas so por causa de um fim" .

"H muitas coisas que o homem faz sem deliberao, nas quais s vezes nem sequer chega a pensar, como quando algum move o p ou a mo ou coa a barba. Nestas coisas o homem no age por causa de um fim, mas tambm estas aes no so propriamente humanas, pois no procedem de uma deliberao da razo que o princpio prprio das aes humanas; podem ter um fim imaginado, no porm conferido pela razo" .

Portanto, segundo Toms de Aquino, em todas as aes propriamente humanas verifica-se a existncia de um fim.

preciso agora investigar se existe um fim ltimo entre os fins a que as aes humanas se dirigem. Toms de Aquino responde que sim, que existe este fim ltimo, e a explicao que ele d a seguinte:

" impossvel, porm, proceder nos fins at o infinito.

Pois, de fato, em todas as coisas que possuem ordem por si mesmas, necessrio que, se for removida a primeira, sejam removidas todas as demais que se ordenam a esta. por isto que o Filsofo diz, no VIII da Fsica, que no possvel nas causas moventes proceder at o infinito, porque neste caso j no haveria um primeiro movente, e, retirado este, as demais no poderiam mover-se, pois no se movem a no ser movidas pelo primeiro movente.

Nos fins, porm, encontramos duas ordens: a ordem da inteno, e a ordem da execuo. Em ambas estas ordens necessrio haver um primeiro.

Aquilo que primeiro na ordem da inteno um princpio que move o apetite; se retirarmos este princpio, o apetite no poder ser mais movido.

Aquilo que o princpio na execuo, aquilo por onde principia a operao; se retirarmos este princpio, nada mais operaria.

Ora, o princpio da inteno o fim ltimo; o princpio da execuo a primeira das coisas que se ordenam quele fim. De nenhuma destas partes possvel proceder at o infinito, pois, se no houvesse um fim ltimo, nada seria apetecido, nem alguma ao terminaria, nem repousaria a inteno do agente; se no houvesse um primeiro nas coisas que se ordenam ao fim, nada comearia a ser feito, nem haveria fim para aconselhar-se sobre o que fazer, mas nisto tudo se procederia at o infinito" .

Portanto, diz Toms de Aquino, no somente no cosmos que se observa uma ordem, cujo fim a que ordenam todas as coisas compete ao sbio investigar; um fenmeno idntico ocorre tambm na psicologia humana; a alma humana tende, por natureza, a um fim ltimo, e aqui, novamente, a investigao deste fim compete ao sbio.

Este fim ltimo, continua Toms, tem que ser um s; no podem ser dois ou mais. Na Summa Theologiae ele afirma isto explicitamente:

" impossvel que a vontade de um s homem se ordene simultaneamente a diversos bens tomados como fins ltimos" .

Por que razo? Segundo o Comentrio tica, uma primeira razo provm da prpria unidade da natureza humana:

" necessrio que exista um nico fim para o homem enquanto homem por causa da unidade da natureza humana, assim como existe um nico fim do mdico enquanto mdico por causa da unidade da arte medicinal" .

Outra razo para que a vontade humana tenha que se ordenar a um fim ltimo nico dada na Summa Theologiae:

"Como cada um apetece sua perfeio, aquilo que algum apetece como fim ltimo o bem perfeito e completivo de si prprio. necessrio, portanto, que o fim ltimo de tal modo preencha todo o apetite do homem que nada mais fora dele fique para ser apetecido, o que no poder verificar-se se se requeresse algo mais alm da prpria perfeio. Portanto, no pode ocorrer que o apetite tenda de tal modo a duas coisas que ambas fossem o bem perfeito dela" .

Tudo o que os homens querem, continua S. Toms, o querem por causa do fim ltimo, pois

"o fim ltimo est para o movimento do apetite assim como o primeiro movente est para os demais movimentos. Ora, manifesto que as causas segundas moventes no movem seno na medida em que so movidas pelo primeiro movente. De onde que os apetecveis segundos no movem o apetite seno na medida em que se ordenam ao primeiro apetecvel, que o fim ltimo" .

Encontramos, portanto, no homem, uma estrutura semelhante ordem que observamos no Universo. H um fim ltimo na vontade do homem enquanto homem, algo que ele quer acima de tudo e em funo do que ele quer todas as demais coisas.

Ora, se isto assim, trata-se de algo que a educao no pode deixar de levar em conta, no apenas para no destoar da estrutura do Universo, mas tambm para no frustrar o prprio homem.

Resta determinar em que consiste este fim que o anseio profundo da vontade humana.

II.4)Caractersticas gerais do fim ltimo.

Antes de determinar qual este fim ltimo a que aspira a vontade humana, S. Toms examina uma srie de caractersticas que ele dever possuir para poder ser de fato fim ltimo. Procedendo assim, ficar mais fcil determinar depois em que ele consiste.

a) Deve ser desejado por causa de si mesmo.

A primeira caracterstica que deve ter o fim ltimo da vontade praticamente imediata:

"deve ser de tal natureza que todas as demais coisas sejam desejadas por causa desse fim, e este fim seja desejado por causa de si mesmo, e no por causa de alguma outra coisa" .

b) Deve ser um bem perfeito.

Para poder ser desejado por causa de si mesmo e todas as demais coisas serem desejadas por causa do fim ltimo, o fim ltimo dever ser tambm um bem perfeito.

Ser bem perfeito, ser, portanto, a segunda das caractersticas do fim ltimo.

Por que ser desejado por si mesmo implica que o fim ltimo seja bem perfeito?

A razo que, quando a vontade deseja e busca o seu fim ltimo ela est sendo movida por este fim ltimo. Ora, segundo a teoria da causalidade tal como exposta nos trabalhos de Aristteles e S. Toms de Aquino, em todo movimento esto necessariamente envolvidos quatro gneros de causas: a causa material, a causa formal, a causa eficiente e a causa final . Sempre que se d um movimento ou alguma alterao na natureza devem estar presentes estas quatro causas, cada uma em correspondncia com as outras.

Ocorre, porm, que o fim ltimo da vontade humana move a vontade por modo de causa final. A ela corresponder, portanto, uma causa eficiente , que ser o agente do movimento.

Ora, segundo Toms de Aquino, h trs tipos de agentes ou causas eficientes: os imperfeitssimos, os perfeitos e os perfeitssimos.

Existem agentes imperfeitssimos, que movem no pela prpria forma , mas na medida em que so movidos por outro , como um martelo de ferreiro que golpeia uma espada. O efeito deste agente, segundo a forma alcanada no efeito, no se assemelha a este agente imperfeitssimo, mas ao agente pelo qual movido, que no caso, a arte do ferreiro.

Outros agentes so agentes perfeitos; agem segundo a sua forma, de tal maneira que seus efeitos se assemelham a eles, mas que, ainda assim, necessitam de um agente anterior principal para mov-los. o caso do fogo que esquenta. Este agente, apesar de dito perfeito, ainda apresenta algo de imperfeio, por participar como instrumento .

Os agentes perfeitssimos so aqueles que no apenas agem segundo a forma prpria, mas tambm no so movidos por nenhum outro agente .

O fim ltimo dito bem perfeito porque, ao mover a vontade, se assemelha, como causa final, a estes agentes perfeitssimos na linha da causalidade eficiente.

H fins imperfeitssimos, que no so apetecidos por nenhuma bondade formal existente nos mesmos, mas apenas por serem teis a algo. o caso do dinheiro; correspondem aos agentes imperfeitssimos.

H outros fins que so perfeitos; so desejados por causa de algo que tm em si mesmos, mas, mesmo assim, so desejados por causa de outros, como a honra e os prazeres, que seriam escolhidos pelos homens por causa de si mesmos ainda que nada mais pudessem conseguir por meio deles. No entanto, no obstante isso, os escolhemos por causa da felicidade, porque atravs da honra e dos prazeres pensamos que futuramente seremos felizes .

H, finalmente, o fim perfeitssimo, que cumpre determinar qual seja, mas que nunca poder ser desejado por causa de nenhum outro.

Um fim com estas caractersticas os homens chamam de felicidade . Trata-se, porm, de um nome genrico para designar o fim ltimo da vontade humana; ainda permanece a questo de se determinar em que consiste a felicidade para o homem.

c) Deve ser suficiente por si mesmo.

Uma terceira caracterstica que dever ter o fim ltimo da vontade humana, ou a felicidade, que ela seja suficiente por si mesma .

Esta suficincia conseqncia da felicidade ter que ser um bem perfeito.

De fato, se algo no fosse suficiente, no aquietaria perfeitamente o desejo, e assim no seria bem perfeito .

O que significa esta suficincia?

Um bem perfeito pode ser dito suficiente na medida em que sua perfeio seja tanta que no possa ser aumentada qualquer que seja o acrscimo que se lhe faa. Neste sentido, somente Deus seria bem perfeito; no h nada que possa ser acrescentado a Deus que o torne mais perfeito. Esta no pode ser a felicidade humana, pois esta s pode pertencer ao prprio Deus; a felicidade humana, portanto, seja o que ela for, ter que ser algo sempre possvel de ser aumentada.

A suficincia do bem perfeito que fim ltimo da vontade humana aquilo que

" dito suficiente na medida em que contm tudo aquilo que necessariamente faz falta para o homem" .

Ela deve conter tudo aquilo que necessrio ao homem por natureza, no, todavia, tudo aquilo que pode advir ao homem . Ela pode tornar-se melhor por acrscimo; mas deve ser tal que o desejo do homem no permanea inquieto, porque

"o desejo regrado pela razo, como devem ser os desejos do homem feliz, no possui inquietao com as coisas que no so necessrias, ainda que estas sejam possveis de serem obtidas" .

Tomado neste sentido, o fim ltimo em que consiste a felicidade humana deve ser um bem suficiente.

II.5) Caractersticas gerais da felicidade.

A partir destas trs caractersticas gerais que dever ter a felicidade humana pode-se determinar um pouco melhor o que ela seja. No se declarar ainda o que seja em especial a natureza da felicidade, mas pelo menos circunscreveremos qual seja o bem final do homem .

a) Deve ser contnua e perptua.

A felicidade humana dever ter, tanto quanto possvel, continuidade e perpetuidade .

Por que razo?

Porque a felicidade o fim ltimo da vontade humana.

Ora, a vontade no homem sempre segue uma apreenso da inteligncia.

Porm, ao contrrio dos sentidos, que apreendem as coisas em sua individualidade segundo o aqui e agora, a inteligncia apreende as essncias, isto , o que as coisas so em suas prprias naturezas, o que j no se refere somente ao momento presente.

Da que sem a caracterstica da continuidade e perpetuidade o fim ltimo no seria apetecido no s como algo ltimo, isto , perfeitssimo, como nem sequer num sentido menos amplo de bem perfeito.

b) Deve ser a perfeio ltima do homem.

Ademais, a felicidade ter que ser a perfeio ltima do homem .

A razo que a perfeio ltima de cada ser naturalmente desejvel por este ser.

Isto ocorre, no caso de um ser inteligente, como o caso do homem, porque esta perfeio ltima ser apreendida sob a forma de bem, e o bem o objeto prprio da vontade.

Portanto, a perfeio ltima do homem naturalmente desejvel pelo homem.

Ora, se assim, se a felicidade no for a felicidade ltima do homem, o homem continuar desejando esta perfeio ltima e, por conseguinte, a suposta felicidade no ser o bem suficiente de que se falou acima.

c) Deve ser operao prpria do homem.

Acabamos de dizer que a felicidade deve ser a perfeio ltima do homem.

Ora, a perfeio ltima de cada ser a forma deste ser .

Toda forma, porm, tende por natureza a uma operao.

Portanto, o bem final do homem exige a operao prpria de sua forma.

De onde que a felicidade ter que ser tambm a operao prpria do homem.

d) Deve ser a operao prpria do homem aperfeioada pela virtude.

Vimos, pois, que a felicidade deve ser a operao prpria do homem.

Ocorre, porm, que uma mesma operao do homem pode se dar em diferentes graus de perfeio: qualquer um pode correr, mas um atleta correr de modo excelente; qualquer um pode pintar uma tela, mas um artista o far com perfeio.

De modo geral, chamam-se hbitos as qualidades que dispem as operaes prprias de um sujeito de um modo determinado, no importando se bem ou mal; mas quando o hbito determina o sujeito de acordo com o que bom e perfeito segundo a sua natureza, este hbito chamado de virtude .

Se a felicidade , portanto, a operao prpria do homem, e, ademais, conforme vimos, tem que ser um bem perfeito, segue-se disto que ela ter que ser a operao prpria do homem aperfeioada pelo hbito da virtude.

e) Primeira determinao da felicidade humana.

Juntando-se todos estes elementos segue-se uma primeira determinao do que seja a felicidade humana.

Segundo Toms de Aquino a felicidade humana

"uma operao prpria do homem segundo a virtude em uma vida perfeita, isto , contnua e perptua, tanto quanto possvel" .

Isto j uma determinao mais clara da natureza do fim ltimo do homem. Chegamos primeiramente concluso de que este fim ltimo a felicidade; agora determinamos diversas caractersticas que deve possuir o bem a que chamamos de felicidade. Ainda, porm, no declaramos em especial a natureza da felicidade humana, apenas circunscrevemos qual seja o bem final do homem .

Entretanto, conforme veremos a seguir, estas determinaes j sero suficientes para mostrar muita coisa que a felicidade humana no pode ser.

II.6) A felicidade no pode ser a deleitao corporal.

As deleitaes corporais esto principalmente na comida e na atividade sexual .

Estas deleitaes no podem ser o fim ltimo da vontade humana porque, conforme vimos, a felicidade do homem a perfeio da forma do homem e da operao prpria que se lhe segue; trata-se de algo que se segue, portanto, quilo que h de mais nobre e essencial no homem. No este o caso, porm, das deleitaes da comida e da vida sexual. Estas so comuns aos homens e aos animais brutos; nelas o homem no realiza sua perfeio enquanto homem. Elas no se seguem, ademais, quilo que h de mais nobre no homem, que o intelecto, pois so prazeres que derivam do uso dos sentidos. No podem, portanto, ser o fim ltimo da vontade humana .

Ademais, do ponto de vista cosmolgico, isto , da ordem natural, no so tambm um fim ltimo, pois manifesto que na ordem da natureza estes prazeres se ordenam a outros fins: a comida, conservao do corpo; a atividade sexual, gerao da prole. Cosmologicamente falando, no so bens em si, mas bens por causa de outros. Se o homem os apetece como fim ltimo, do ponto de vista cosmolgico ele est simplesmente se iludindo. Mas, ademais, mesmo na iluso, ele no os pode desejar efetivamente como bens em si; pois bens em si so para serem usados ao mximo. S os bens que so por causa de outros que devem ser usados com medida, isto , na medida em que so teis para alcanar o bem final. Mas o homem no pode desejar as deleitaes corporais como bens finais, pois o uso abusivo destes prazeres tido como vcio, causa danos sade do corpo e da mente, e, ademais, se impediriam mutuamente entre si. O homem que quisesse fazer uso deles como conviria, se estes bens fossem de fato o seu fim ltimo, seria um frustrado. No podem, portanto, fazer a felicidade de ningum .

No temos notcia de sistema educacional que coloque sua finalidade nas deleitaes corporais; independentemente disto, porm, o fato que a vida de grande parte da humanidade a tentativa frustrada de realizar o projeto da felicidade pelo prazer.

II.7) A felicidade no pode ser a riqueza.

Entre as opinies sobre a felicidade humana, aquela que coloca a felicidade na riqueza a menos racional de todas, menos inclusive do que a anterior .

Pois os prazeres do corpo, ainda que se ordenem do ponto de vista da ordem natural a outros fins, o homem pode pelo menos desej-los na iluso de serem um bem em si. Mas nenhum homem pode desejar a riqueza como um bem em si; ele sempre a quer por causa de outro. No pode, pois, ser o fim ltimo da vontade humana .

A riqueza pode ser buscada, mas no como fim ltimo. Um sistema educacional que buscasse a riqueza como seu fim ltimo estaria indo no s contra a ordem da natureza como tambm estaria frustrando no homem seus anseios mais profundos; seria, para a natureza humana, uma verdadeira aberrao.

Mas exatamente assim que esto construdos grande parte dos sistemas educacionais modernos; so instrumentos de desenvolvimento econmico e de gerao de riqueza nas mos do Estado. Na introduo a este trabalho j citamos, pelas palavras de C. W. Abramo, um exemplo de como isso ocorre :

"O fundamental para a formulao das polticas educacionais a existncia de uma poltica industrial de longo prazo, que especifique as metas de produo em algumas reas chaves. Disto decorre a necessidade de formar anualmente milhares de engenheiros, de qumicos industriais, etc., com determinadas habilidades. Da derivam as exigncias aos egressos dos cursos secundrios e assim por diante, em cascata, at o primeiro ano do primeiro grau" .

Pode-se argumentar que o fim de um sistema educacional como este descrito por Cludio W. Abramo no a riqueza para o indivduo, mas para a nao; enquanto indivduo, ele pode procurar a educao tendo em vista outros fins. Mas a isto pode-se responder com o Comentrio Poltica que afirma:

"A finalidade da repblica corretamente ordenada (a mesma que) o fim ltimo do homem .

A virtude de toda a cidade e a virtude de cada cidado so da mesma natureza, tanto em si, como na sua ordenao operao; no diferem seno como o todo em relao parte e como o maior difere do menor, pois a virtude da cidade um agregado das virtudes parciais dos cidados, e por isso, a virtude do indivduo e de toda a cidade consistem no mesmo .

manifesto que a felicidade de um s homem e a felicidade da cidade so da mesma e uma s natureza, j que todos os que falam sobre a felicidade isto que parecem dizer. De fato, todos aqueles que colocaram a felicidade do homem estar na riqueza, estes tambm dizem que ser feliz a cidade em que houver abundncia de riquezas .

Ora, uma cidade no pode ordenar-se de modo ltimo riqueza, pois a prpria riqueza se ordena a outros fins ".

Segundo S. Toms de Aquino, portanto, ordenar o sistema educacional de uma nao ao desenvolvimento econmico e produo de riqueza como ao seu fim ltimo significa desvirtuar a natureza do homem e da sociedade. , porm, o que querem, sob o aplauso de muitos, grande parte dos educadores e homens pblicos famosos.

Vejamos o caso de Ansio Teixeira, figura de primeira grandeza na histria da educao brasileira na primeira metade do sculo XX, homem verdadeiramente extraordinrio, dotado de inteligncia clara e idias abertas, educador abnegadssimo, um autntico apstolo da instruo pblica, um cidado que honraria qualquer nao do mundo moderno. Quem lhe poderia negar estas qualidades sem ser preconceituoso? No entanto, foi ele prprio que escreveu na Revista Brasileira de Estudos Pedaggicos o pargrafo que se segue:

"Participei, em 1929, na Universidade de Colmbia, do primeiro curso que ali se ministrou sobre economia da educao. O professor Clark nos deu, ento, em sua primeira aula, uma definio de educao que guardo at hoje e qual sempre me refiro para convencer certos espritos de que a educao no apenas um processo de formao e aperfeioamento do homem, mas o processo econmico de desenvolver o capital humano da sociedade" .

Novamente, a mesma idia que aflora: o fim ltimo do sistema educacional um objetivo econmico. Ansio Teixeira diz no texto citado que a educao "no apenas o processo de formao e aperfeioamento do homem"; com isto pareceria primeira vista que talvez ele reconhecesse dois fins ltimos para a educao, dos quais o econmico seria apenas um deles. Mas a continuao do mesmo texto parece desmentir esta interpretao:

"A definio que o professor Clark nos deu, em 1929, era a de que a educao intencional, ou seja, a educao escolar, o processo pelo qual se distribuem adequadamente os homens pelas diferentes ocupaes da sociedade. A educao escolar, dizia ele, o processo pelo qual a populao se distribui pelos diferentes ramos de trabalho diversificado da sociedade" .

Em "Educao e Democracia" encontramos outro texto de Ansio Teixeira que completa a idia anterior:

Precisamos sair de nossas escolas, com seus problemazinhos de ordem e moralizao, para sentirmos o problema da educao, que , conforme vimos, um problema de preparao de tcnicos em todos os graus e ramos, destinados a servir um perodo da idade do homem de base profundamente cientfica e caracterizao acentuadamente tcnica. Hoje todos tm que produzir" .

Acabamos de ver como dois educadores brasileiros pretendem que a educao seja instrumento para a produo de riqueza. Muitos professores, entretanto, tm ainda assim a iluso de que este objetivo existe apenas no plano poltico; no plano individual isto no parece significar necessariamente que tenhamos que dar ao estudante o ideal da riqueza, apesar de este ser explicitamente j o ideal da sociedade. Daremos ao jovem apenas a oportunidade de aprender uma profisso; com ela promoveremos a prosperidade da sociedade, mas isto no implica ter que ensinar ao jovem que a riqueza seja o fim ltimo de sua vida pessoal. Pode haver professores que entrem no sistema escolar inclusive com o propsito de ensinarem o contrrio. Se algum de seus alunos, portanto, sair do sistema escolar com a idia oposta, isto poder parecer a estes professores, do ponto de vista do sistema escolar, um acaso, devido no influncia da escola, mas influncia geral da sociedade. Esta, de fato, a impresso que costumam ter, a este respeito, os professores que dentro do sistema de ensino educam os jovens, do primrio Universidade. No entanto, esta impresso de casualidade, quando analisada novamente no plano da poltica econmica, desaparece. Vejamos, neste sentido, o que se pode ler no captulo que trata do crescimento econmico de um livro-texto padro de Macroeconomia:

"A sede de crescimento econmico tornou-se quase uma obstinao sistemtica nos anos recentes. As Faculdades e as Universidades introduziram novos cursos e criaram institutos especiais s para tratar do assunto. Inmeros livros tm aparecido, bem como conferncias, discursos, e artigos so levados a efeito em quantidades cada vez maiores. Entretanto, o tpico "crescimento" extremamente amplo e abrange muitas espcies de fenmenos bastante distintos.

Devemos, entretanto, distinguir aqui pelo menos duas categorias gerais.

Uma se refere ao crescimento de uma economia j desenvolvida. Esta forma de crescimento um fenmeno mais simples e pelo menos plausvel que possa ser analisada por instrumentos puramente econmicos.

A outra forma de crescimento refere-se questo que trata da passagem de uma economia de "subdesenvolvimento" ao estgio de "desenvolvimento". Trata-se de um tipo de alterao que est associada a alguns dos problemas mais preementes de natureza social, poltica e ideolgica do mundo moderno. Esta forma de desenvolvimento econmico abrange inmeros outros aspectos da organizao cultural e social. Um aspecto importante consiste em alterar a motivao no econmica da sociedade para uma motivao econmica, isto , das formas habituais ou costumeiras do comportamento, de dominncia poltica ou religiosa em assuntos econmicos, a um conceito racional, centralizado em bens, e medido pelo bem estar pessoal e social.

Estas e outras alteraes bsicas, que envolvem a total transformao da cultura, exigem tambm os conceitos, as teorias e as vises do socilogo, do cientista poltico,... e dos educadores" .

Este texto afirma claramente que o desenvolvimento econmico dos pases subdesenvolvidos exige o trabalho de educadores no sentido de alterar as motivaes dos cidados que compem a sociedade para um "comportamento centralizado em bens" em um esforo que "envolve a total transformao da cultura". assim que tem sido organizado o sistema escolar e, quer queiram, quer no queiram, para isto que tm trabalhado os professores da maioria das escolas.

Em uma entrevista concedida revista Veja em 1989, Jean Luc Lagardre, empresrio francs proprietrio de uma editora que, segundo a revista, publica um tero dos livros da Europa, manifesta perspectivas idnticas para o trabalho educacional:

VEJA: No caso do Brasil, qual na sua opinio, o maior entrave retomada do crescimento?

LAGARD`ERE: Existe o problema da dvida brasileira. A inflao tambm uma dificuldade importante. Porm ainda mais importante para o Brasil a educao: formar homens preparados. Logo aps a Segunda Guerra Mundial, o que mais entravava o desenvolvimento na Frana no era a falta de recursos, mas a falta de homens. O Brasil deveria dedicar um grande esforo a formar homens com idias modernas e com a disciplina necessria aos empreendimentos na indstria e ao desenvolvimento tecnolgico. Um investimento de base, que o investimento na educao superior e tecnolgica, pode ter sido insuficiente. Existem atividades que so estratgicas e que devem caber ao Estado, como a educao" .

As idias que Lagardre aqui utiliza so as mesmas que as dos textos anteriores. Ele v na educao um instrumento para "os empreendimentos na indstria e o desenvolvimento tecnolgico". V nela tambm "um investimento de base", especialmente "o investimento na educao superior e tecnolgica", expresses tomadas de emprstimo terminologia econmica. V nela tambm uma "atividade estratgica". Estratgia se diz por relao a um objetivo que est alm da estratgia; este objetivo, no caso acima, est na poltica de crescimento econmico.

Idias como estas se disseminaram de tal modo na sociedade contempornea que podem ser encontradas em quase toda parte sem aparentemente gerar contestao. o que transparece em uma pequena notcia publicada no Jornal de Recursos Humanos do jornal O Estado de So Paulo:

"O final do sculo parece estar apontando novos parmetros de liderana. A educao traar o mapa do poder no sculo XXI. No ser mais a fora da capacidade industrial, mas sim a competncia em gerar novos conhecimentos que ir determinar as naes lderes no prximo milnio.

A resposta para explicar o surgimento e a sustentao do poder das naes chamadas os Tigres Asiticos gravita necessariamente em torno de um ponto comum a todos eles: a capacitao de seus habitantes.

No futuro a riqueza das naes vir mais do conhecimento do que da produo de bens e servios. Da a urgncia de uma nova poltica de educao para as naes" .

De que nova poltica de educao est falando este texto? De uma poltica que oriente o sistema educacional no sentido de ter como fim ltimo a riqueza. a idia que h em comum em todos os textos j citados acima; suas provenincias das mais diferentes fontes, todas elas correntes na sociedade contempornea, mostra o quo profundamente se alojou esta idia nos homens de hoje e o quanto ela lhes parece natural.

No entanto, diz Toms de Aquino, este no pode ser nem o fim ltimo do homem, nem o fim ltimo da educao. Pretender uma coisa destas um atentado contra a natureza humana. E se isto parece ser to natural aos homens, tal fato no faz mais do que revelar o quanto eles se afastaram do conhecimento de sua prpria natureza. Se, depois, com o tempo e o desenrolar de suas vidas eles descobrem que no h sentido em fazer aquilo para o qual foram preparados durante anos, e, ademais, descobrem que tambm no sabem fazer nada mais que possa fazer sentido, no sem causa que isto lhes veio a acontecer, e grande parte da culpa deste fato se deveu justamente aos educadores.

evidente que com a presente argumentao no se deseja condenar a busca do desenvolvimento econmico, tarefa no s necessria como tambm irrealizvel sem o concurso do trabalho do educador. Coisa muito diferente transformar a busca do desenvolvimento econmico, um aspecto necessariamente secundrio e circunstancial da educao, na meta final do sistema educacional. Conforme afirma Aristteles no VII da Poltica,

"Ningum nega que os bens do homem se dividem em bens exteriores, bens do corpo e bens da alma, e que o homem, para ser feliz, deve possuir a todos.

A controvrsia a este respeito reside na determinao da medida e do excesso, pois os homens se contentam facilmente com a posse de qualquer grau de virtude, por menor que seja, enquanto que para coisas como a riqueza, o poder, a glria e outras tais no sabem impor limites nem encontrar excessos para os seus desejos" .

Ora, a ausncia de limites uma das principais caractersticas daquilo que desejado como fim ltimo. Conforme j vimos, os bens que so fins ltimos so para serem utilizados ao mximo e sem limitaes; s se utilizam medidas e limites com aqueles bens que so meios para se alcanarem os fins. A constatao, portanto, de que os homens desejam ilimitadamente riqueza e desenvolvimento econmico e se satisfazem quase que de imediato com os bens da alma no pode ser sinal de ordenao feita segundo a sabedoria. Isto significa que, no importa se explcita ou implicitamente, a riqueza se tornou o fim ltimo do homem e os bens da alma passaram a simples instrumentos para se chegar quela meta, numa total inverso da ordem encontrada na natureza humana. algo que no poderia acontecer em educao. Se acontece e se existem sistemas educacionais assim organizados, no h como defend-los de serem atentatrios natureza humana.II.8) A felicidade no pode ser a operao da arte.

Dentre os vrios candidatos a fim ltimo do homem, S. Toms descarta tambm a operao da arte. Esta palavra, na terminologia de Toms, apresenta um significado mais amplo do que possui modernamente. A arte , segundo Toms, uma habilidade adquirida, -- um hbito, diria ele --, que aperfeioa a inteligncia humana acerca das coisas contingentes por oposio s necessrias, estas ltimas sendo objeto da cincia . Ora, existem dois tipos de contingentes: as actiones e as factiones. Actiones so as operaes que permanecem no prprio agente, como ver, inteligir e querer. Factiones so as operaes que transitam matria exterior para formar algo a partir dela, como edificar e cortar .

O hbito que aperfeioa a inteligncia humana quanto s actiones chama-se prudncia. Os hbitos que aperfeioam a inteligncia humana quanto s factiones so as artes.

Da que se chamem artes todas as qualidades adquiridas pelo homem com as quais ele pode bem modificar a matria exterior. Neste sentido, no s a escultura e a pintura so artes, mas so artes tambm a Medicina, a Mecnica, a Engenharia, enfim, grande parte das profisses do mundo moderno.

Na Summa contra Gentiles S. Toms afirma que o fim ltimo da vida humana no pode consistir na operao da arte ; nem, portanto, pode ser o fim ltimo de um sistema educacional. A razo: isto iria contra as caractersticas que deve ter o fim ltimo da vontade humana, que deve ser procurado como um fim em si mesmo, e no por causa de outro. Ora, diz Toms, "a arte um conhecimento prtico; portanto,ela se ordena a outro fim; conseqentemente, no pode ser o fim ltimo" da vida humana.

Isto significa que a educao que tem como objetivo final a aquisio de uma profisso, isto , de modo geral, a educao voltada para o trabalho como fim ltimo, tambm esta contra a natureza humana e a ordem da natureza; ela no pode, assim como as anteriores, fazer a felicidade do homem.

E, no entanto, quantos so os que no estudam anos a fio apenas com a inteno de chegarem Universidade com o principal objetivo de conseguirem uma profisso? Estes tambm, diz Santo Toms, no se deram conta ainda dos reais anseios da natureza humana. Muito ainda teriam para aprender; mas para isto precisariam primeiro conhecer melhor a si prprios. Isto, porm, no era uma obrigao apenas deles, mas mais ainda dos educadores que imaginaram ser legtimo e coerente com as aspiraes ltimas do homem o modo de educao que lhes foi oferecido.II.9) A felicidade no pode ser a operao das virtudes morais.

Santo Toms de Aquino trata deste assunto na Summa contra Gentiles e no Comentrio tica .Explicaremos mais adiante o que significa exatamente o termo virtude moral. Diremos aqui apenas que virtudes morais se entendem por contraposio s virtudes intelectuais, no mesmo sentido em que a vida ativa se entende por contraposio vida contemplativa e a vida poltica se entende por contraposio vida especulativa. A felicidade consistir nas operaes das virtudes morais significa aqui, portanto, o mesmo que perguntar-se se ela consiste no exerccio da vida civil, das virtudes cvicas, isto , daquelas virtudes que dizem respeito, por exemplo, ao exerccio da justia, dos cargos pblicos, da vida militar, da filantropia, da misericrdia para com os que sofrem, da magnanimidade na doao das prprias riquezas, etc..

A resposta de Santo Toms bastante clara: a felicidade e o fim ltimo da vontade humana no podem consistir nas operaes das virtudes morais, nos atos da vida civil. A razo: o fim ltimo da vontade humana no pode ser ordenado, se for ltimo, a nenhum outro fim. Ora, todas estas operaes das virtudes morais se ordenam por sua vez a algum outro fim; o que evidente nas operaes da virtude da fortaleza, que diz respeito s operaes da guerra, pois elas se ordenam vitria e paz, e aquele que guerreasse apenas por guerrear seria um idiota; o mesmo ocorre com as operaes da justia, que se ordenam conservao da paz entre os homens, para que com isto cada um possua descansadamente o que seu; e a mesma coisa pode se dizer de cada uma das demais operaes mencionadas .A concluso: a felicidade ltima do homem no consiste nas operaes ditas morais .

Isto significa que a educao que tem como fim ltimo a formao da cidadania, a aquisio de virtudes cvicas ou militares, etc., tambm ela uma educao que ignora as aspiraes ltimas do homem e, quando mostrarmos mais adiante a concordncia entre o fim ltimo da vontade humana com a ordem natural, poderemos dizer que a educao cujo objetivo ltimo a formao do cidado tambm, segundo Toms de Aquino, incoerente com a disposio do cosmos.

o caso da Lei Orgnica do Ensino Secundrio no Brasil de 1942. Na sua exposio de motivos, redigida pelo ento ministro Gustavo Capanema, pode-se ler o seguinte:

"O ensino primrio deve ter os elementos essenciais da educao patritica. Nele o patriotismo, esclarecido pelo conhecimento elementar do passado e do presente do pas, dever ser formado como sentimento vigoroso, como um alto fervor, como amor e devoo, como sentimento de indissolvel apego e indefectvel fidelidade para com a ptria.

J o ensino secundrio tem mais precisamente por finalidade a formao da conscincia patritica.

que o ensino secundrio se destina preparao de individualidades condutoras, isto , dos homens que devero assumir as responsabilidades maiores dentro da sociedade e da nao, dos homens portadores das concepes e atitudes espirituais que preciso infundir nos moos, que preciso tornar habituais entre o povo. Ele deve ser, por isto, um ensino patritico por excelncia, e patritico no sentido mais alto da palavra, isto , um ensino capaz de dar aos adolescentes a compreenso da continuidade histrica da ptria, a compreenso dos problemas e das necessidades, da misso e dos ideais da nao, e bem assim dos perigos que a acompanham, cercam ou ameaam, um ensino capaz, alm disto, de criar, no esprito das geraes novas, a conscincia da responsabilidade dentro dos valores morais da ptria, a sua independncia, a sua ordem, o seu destino.

Um ensino secundrio que se limitasse ao simples desenvolvimento dos atributos naturais do ser humano e no tivesse a fora de ir alm dos estudos de mera informao, que fosse incapaz de dar aos adolescentes uma concepo do ideal da vida humana, que no pudesse informar em cada um deles a conscincia da significao histrica da ptria e da importncia do seu destino no mundo, assim como o sentimento da responsabilidade nacional, falharia sua finalidade prpria, seria ensino secundrio apenas na aparncia e na terminologia, porque de seus currculos no proviriam as individualidades responsveis e dirigentes, as individualidades esclarecidas de sua misso social e patritica, e capazes de cumpr-la" .

Sem dvida, trata-se de uma bela exposio de motivos; alguns podero hoje ach-la ingnua, por perseguir objetivos irreais para as sociedades contemporneas.

Segundo a filosofia de S. Toms, porm, nada disto pode ser o fim ltimo do homem. No o homem que se ordena para a sociedade, a sociedade que se ordena para o homem. Uma educao que tenha tais objetivos como finalidade ltima uma fraude contra os anseios mais profundos do homem e uma aberrao da ordem natural. No pode fazer a felicidade da sociedade porque no pode fazer a felicidade sequer de um s homem. II.10) Concluso.

A lista de opinies que Santo Toms nos oferece para mostrar que a felicidade no consiste nelas, tanto no Comentrio tica, como na Summa Theologiae, como tambm, e principalmente, devido aos objetivos particulares desta outra obra, na Summa contra Gentiles, muito maior do que a que apresentamos neste trabalho. Teremos oportunidade de comentar algumas outras em captulos posteriores da presente dissertao; as que apresentamos ou desenvolvemos aqui foram apenas aquelas que ofereciam maior importncia para a perspectiva educacional.

II.11) A operao especulativa da sabedoria como fim ltimo do homem.

Vamos agora fazer um apanhado sobre o que a felicidade humana, segundo as palavras de S. Toms, tomadas principalmente do dcimo livro do Comentrio tica.

A felicidade, diz Toms de Aquino no dcimo do Comentrio tica, tanto quanto possvel neste mundo, consiste na operao especulativa da inteligncia pela principal das virtudes intelectuais que a virtude da sabedoria , conduzida at a contemplao da verdade .

Desta afirmao segue-se que no em qualquer operao da inteligncia que consiste a felicidade do homem.

Ela tem que ser, em primeiro lugar, uma operao da inteligncia especulativa, isto , aquela que tem por objeto o necessrio, por oposio ao contingente , que objeto das operaes da inteligncia prtica.

Ela tem que ser, em segundo lugar, uma operao da inteligncia especulativa cultivada at excelncia por uma virtude intelectual. No , portanto, uma especulao qualquer da inteligncia; uma especulao levada pela virtude ao seu grau mximo.

Ela tem que ser, em terceiro lugar, uma operao da inteligncia especulativa levada ao grau mximo no por uma virtude intelectual qualquer, mas por aquela virtude a que damos o nome de sabedoria.

Ela tem que ser, em quarto lugar, uma operao da inteligncia especulativa segundo a sabedoria conduzida at a contemplao da verdade. H dois modos de operao especulativa, diz Santo Toms. O primeiro aquele que consiste na investigao da verdade; o segundo consiste na contemplao da verdade j descoberta e conhecida, que a mais perfeita, por ser o trmino do fim da investigao. A perfeita felicidade, portanto, no consiste em qualquer especulao da sabedoria, mas naquela que conduzida at contemplao da verdade .

O que a virtude da sabedoria de que aqui se fala ser explicado no final deste captulo; ser, entretanto, apenas uma explicao inicial; todas as implicaes que esta primeira explicao sobre a sabedoria encerra s podero ser desenvolvidas ao longo de todo o presente trabalho.

Antes, porm, desta primeira exposio do que seja a sabedoria, vamos mostrar como, seguindo a Aristteles, Santo Toms oferece uma srie de argumentos para mostrar que a felicidade humana consiste de fato na operao especulativa segundo a virtude da sabedoria.

II.12) Argumentos complementares.

Pode-se mostrar que a felicidade humana consiste na operao da sabedoria porque a felicidade tem que ser aquela operao que supera todas as demais pela razo do bem: tem que ser, em outras palavras, a operao tima do homem. Mas, por um lado, o intelecto, a potncia que realiza a especulao da sabedoria, aquilo que h de timo no homem; por outro, o objeto da sabedoria, conforme veremos depois melhor, o objeto timo entre todos os objetos do conhecimento .

Ademais, um dos requisitos da felicidade que seja, tanto quanto possvel nesta vida, contnua e permanente. Mas entre todas as operaes humanas, aquela em que o homem pode perseverar de modo mais contnuo e permanente a especulao da sabedoria. A razo disto que em qualquer operao necessrio haver interrupo por causa do trabalho e da fadiga que elas acarretam; o trabalho e a fadiga, porm, acontecem em nossas operaes por causa da passibilidade do corpo, que durante a operao alterado e removido de sua disposio natural. Ora, na especulao da sabedoria a inteligncia se utiliza minimamente do corpo, de onde se segue um trabalho e fadiga mnimos, e a mxima possibilidade de continuidade e permanncia .

Ademais, a especulao da sabedoria deleitabilssima, por sua pureza e firmeza: ela pura pela imaterialidade de seu objeto, firme pela imutabilidade de seu objeto . Ora, se bem que nenhuma deleitao, qualquer que seja, possa ser fim ltimo da vontade humana, ela deve, no entanto, necessariamente, ser algo concomitante ao mesmo . Isto porque a deleitao um repouso da vontade em algum bem conveniente sua natureza, assim como o desejo uma inclinao da vontade obteno de um bem que lhe conveniente . Ora, para cada ser dotado de inteligncia, as operaes que lhe so convenientes segundo a natureza ou a virtude sero apreendidas pela inteligncia como bem; sero, portanto, apetecidas pela vontade e, pela mesma razo, ao serem alcanadas, a vontade repousar nelas, o que a deleitao . De onde que se segue que a deleitao no pode ser um fim intencionado pela vontade,mas algo concomitante ao objeto desejado e alcanado por ela . Mas a vontade repousar maximamente no seu fim ltimo, por este ser apreendido pela inteligncia como seu bem mximo, desejvel por si, sem ordenar-se a outro e ao qual todos se ordenam. De onde se conclui que a mxima deleitao encontrada na contemplao da sabedoria proveniente de sua pureza e firmeza sinal de que este deve ser o fim ltimo da vontade do homem.

Ademais, a contemplao da sabedoria a operao que possui a maior suficincia entre as operaes do homem. Ora, foi mostrado acima que uma das caractersticas que deve ter o fim ltimo da vontade do homem que ele seja suficiente por si mesmo, sem o que no poderia ser um bem perfeito . Mas esta suficincia por si mesmo encontrada em grau mximo na especulao da sabedoria, para a qual o homem no necessita seno das coisas que so a todos necessrias para a vida comum. De fato, para as operaes da vida civil o homem virtuoso necessita de muitas outras coisas: o homem justo necessitar daqueles aos quais dever agir com justia, das coisas com que opere a justia, etc.. O mesmo se pode dizer das virtudes militares e polticas, como a virtude da fortaleza e as demais virtudes morais. No ocorre assim com o sbio, o qual pode especular a verdade mesmo que exista somente segundo si mesmo, porque a contemplao da verdade uma operao inteiramente intrnseca que no se dirige ao exterior e tanto mais poder algum especular acerca da verdade existindo sozinho quanto mais for perfeito na sabedoria. Isto, entretanto, acrescenta Santo Toms, no se diz porque a sociedade no ajude contemplao, mas porque, embora o sbio possa ser ajudado pelos outros, todavia entre todos o que mais a si suficiente para a sua operao prpria. Esta uma outra evidncia de que o fim ltimo do homem maximamente encontrado na operao da sabedoria .

Ademais, conforme j se tinha concludo anteriormente, a felicidade do homem deve ser algo que seja desejvel por si de tal maneira que de nenhum modo seja desejado por causa de outro; isto aparece somente na especulao da sabedoria, que amada por causa de si mesmo e no por causa de mais nenhum outro. De fato, nada se acrescenta ao homem pela contemplao da verdade, alm da prpria verdade. Nas demais operaes exteriores, porm, sempre o homem adquire algo a mais por causa de sua operao, ainda que seja honra e graa diante dos homens, o que no adquirido pelo sbio em sua contemplao a no ser circunstancialmente, na medida em que possa vir a comunicar a verdade contemplada aos outros . Portanto, o no ser ordenvel a nenhum outro bem outro indcio de que a felicidade humana deve consistir na operao da contemplao.

Finalmente, a felicidade consiste num certo repouso, pois diz-se que algum repousa quando no lhe resta mais nada para agir, o que ocorre quando j alcanou o seu fim. No h repouso, porm, nas operaes das virtudes prticas, das quais as principais so aquelas que consistem nas coisas polticas que ordenam o bem comum e nas coisas da guerra, pela qual se defende o bem comum. No h repouso nas operaes da guerra, porque ningum prepararia uma guerra somente para guerrear, o que seria repousar nas coisas da guerra. No h repouso, tambm, nas coisas polticas, porque os homens pretendem adquirir a felicidade atravs da vida poltica, mas sempre de tal maneira que tal felicidade seja outra coisa que no a prpria vida poltica; esta outra coisa a felicidade especulativa, qual a vida poltica se ordena na medida em que pela paz, estabelecida e conservada pelas virtudes polticas, dada ao homem a faculdade de contemplar a verdade. Se, portanto, as maiores virtudes morais so as polticas e as da guerra, tanto pela beleza, porque so as mais honorveis, quanto pela magnitude, porque so acerca do bem mximo, que o bem comum, e tais operaes no possuem repouso em si mesmo, sendo feitas para se ordenarem a outros bens, no sendo desejveis por si mesmas, no poder consistir nelas a perfeita felicidade. Mas a operao do intelecto dita especulativa difere destas outras operaes porque nela o homem repousa por causa dela mesma, no desejando nenhum outro fim alm dela prpria. Assim, portanto, fica evidente que a perfeita felicidade do homem consiste na contemplao do intelecto .

II.13) Sntese de Santo Toms sobre o fim ltimo do homem.

Na Summa contra Gentiles S. Toms apresenta uma breve sntese desta argumentao exposta no Comentrio tica:

"Se a felicidade ltima do homem no consiste nas coisas exteriores que so ditas bens da fortuna, nem nos bens do corpo, nem nos bens da alma quanto parte sensitiva, nem quanto parte intelectiva segundo os atos das virtudes morais, nem segundo os atos das virtudes intelectuais que dizem respeito s aes, como as artes e a prudncia, conclui-se que a felicidade ltima do homem esteja na contemplao da verdade.

Esta a nica operao do homem que prpria apenas de si e que no comum a nenhum outro.

Esta no se ordena a mais nenhuma outra como a um fim, pois a contemplao da verdade buscada por causa de si mesmo.

Para esta operao o homem suficiente em grau mximo para si prprio na medida em que para ela pouco necessita do auxlio externo.

A esta operao todas as demais operaes humanas parecem se ordenar como a um fim. perfeio da contemplao requer-se a incolumidade do corpo, qual por sua vez se ordenam todas as coisas artificiais que so necessrias vida. Requer-se tambm o repouso das perturbaes das paixes, ao qual se chega pelas virtudes morais e pela prudncia, assim como tambm o repouso das paixes exteriores, ao qual se ordena todo o regime da vida civil, de tal modo que, se considerarmos retamente, todos os ofcios humanos parecem servir contemplao da verdade.

Esta contemplao da verdade, ademais, no pode ser a contemplao que se d pelas cincias, que dizem respeito s coisas inferiores, pois a felicidade deve consistir na operao da inteligncia que diz respeito s mais nobres entre todas as coisas inteligveis. A felicidade ltima do homem s pode consistir, portanto, na contemplao da sabedoria" .

II.14) Consideraes finais.

Retornando ao dcimo livro do Comentrio tica, Santo Toms de Aquino, seguindo a Aristteles, faz interessantssimas consideraes finais sobre a doutrina que acabou de expor.

A vida que descansa na contemplao da verdade, diz Toms de Aquino, melhor do que a vida que segundo o homem . A vida segundo o homem aquela pela qual o homem ordena segundo a razo os afetos e as operaes dos sentidos e do corpo. Mas somente repousar na operao da inteligncia parece ser algo prprio dos entes superiores ao homem, nos quais no h corpo, mas somente uma natureza intelectiva, da qual os homens tem uma participao segundo a sua inteligncia. O homem assim vivendo, isto , repousando na contemplao, no vive mais enquanto homem, pois enquanto homem ele composto de diversos, isto , das operaes da vida vegetativa, dos cinco sentidos, dos apetites sensveis e suas paixes, da imaginao, que um prolongamento dos cinco sentidos e da natureza intelectiva, mas vive segundo algo de divino que nele existe, na medida em que segundo a inteligncia participa da semelhana divina. Conclumos, pois, diz S. Toms seguindo a Aristteles, que assim como o intelecto, por comparao aos homens, algo de divino, assim tambm a vida especulativa segundo o intelecto compara-se vida moral assim como a vida divina se compara humana .

Diz Aristteles, continua S. Toms, que alguns poetas afirmaram que o homem deveria pretender saber apenas o que humano, e os mortais saber apenas o que mortal. Mas Aristteles, diz S. Toms, declara falsa esta colocao, porque o homem deve pretender a imortalidade o quanto possa, e fazer tudo o que puder para que viva segundo o intelecto, que o timo entre as coisas que h no homem. J tinha afirmado Aristteles no IX da tica que, para cada coisa, sua melhor parte aquela que mais principal nela, porque todas as outras so como que seus instrumentos. Assim, na medida em que o homem vive segundo a operao do intelecto, vive segundo a vida maximamente prpria ao ser humano. Seria, entretanto, inconveniente se algum escolhesse viver no segundo a vida que lhe prpria, mas segundo a vida de algum outro. De onde que inconvenientemente afirmaram, diz Aristteles, aqueles que exortaram a que o homem no devesse descansar na especulao do intelecto . Esta vida, na verdade, encontrada perfeitissimamente nas substncias superiores, (isto , nos entes superiores ao homem), nos homens, todavia, imperfeitamente e como que participativamente. E, todavia, este pouco, continua S. Toms comentando a Aristteles, este pouco maior do que todas as outras coisas que h no homem .

Assim, portanto, conclui Toms, patente que aqueles que descansam na especulao da verdade so maximamente felizes, tanto quanto o homem nesta vida pode ser feliz .

II.15) Os homens sbios, segundo Aristteles, so amados por Deus.

Santo Toms conclui suas consideraes sobre a felicidade comentando duas conhecidas passagens de Aristteles, na qual o filsofo afirma que os homens sbios so amados por Deus.

So estas as suas palavras:

"O homem feliz segundo a felicidade especulativa, por operar segundo o intelecto contemplando a verdade, colocando o seu cuidado nos bens do intelecto, parece estar otimamente disposto, na medida em que possui excelncia naquilo que timo ao homem, e , segundo Aristteles, amadssimo por Deus. De fato, supondo, como da verdade da coisa, que Deus tenha cuidado e providncia acerca das coisas humanas, razovel que se compraza com os homens acerca daquilo que timo neles, e que semelhantssimo a Deus. Trata-se do intelecto, como patente de tudo o que foi dito.

Conseqentemente, razovel que Deus maximamente beneficie aqueles que amam o intelecto, e honram o prprio bem do intelecto preferindo-o a todos os outros, como o prprio Deus cuida daqueles que operam retamente e bem. Conclui-se, portanto, que o homem sbio seja amadssimo por Deus. Ora, ser felicssimo o homem que for maximamente amado por Deus, que fonte de todos os bens. De onde se conclui que tambm segundo isto, j que a felicidade do homem dita pelo fato de ser amado por Deus, que o homem sbio maximamente feliz" .

II.16) Natureza da sabedoria.

Com o que expusemos at o momento ser impossvel manifestar tudo aquilo que est implicado no contedo do termo sabedoria de que Aristteles e Santo Toms se utilizam. O que vamos fazer ser apenas oferecer uma explicao inicial, que ir depois se enriquecer ao longo deste trabalho.

Segundo S. Toms h cinco hbitos principais que aperfeioam as operaes da inteligncia; so chamados virtudes intelectuais. Um deles a sabedoria. Os restantes so a arte e a prudncia, o intelecto e a cincia .

A arte e a prudncia aperfeioam as operaes da inteligncia que dizem respeito s coisas contingentes, isto , quelas coisas que no so necessrias. Contingentes so, portanto, todas aquelas coisas que so mas que poderia ter ocorrido tambm que no fossem. Dentre as coisas contingentes, a arte diz respeito s operaes que transitam matria exterior para formar algo a partir dela, como edificar, esculpir, pintar, curar, etc. ; j a prudncia tem como objeto as aes humanas que permanecem no prprio agente, como ver, inteligir e querer .

O caso do intelecto, da cincia e da sabedoria bem diverso. Estas virtudes aperfeioam a inteligncia acerca das coisas necessrias.

O intelecto que S. Toms coloca entre as virtudes intelectuais deve ser distinguido com cuidado da prpria potncia intelectiva que S. Toms chama freqentemente tambm de intelecto. Ambas estas coisas tm o mesmo nome, mas a primeira apenas uma virtude da inteligncia, enquanto que a segunda a prpria inteligncia.

O intelecto como virtude intelectual aquele hbito pelo qual o homem percebe a evidncia dos primeiros princpios das demonstraes, tal como o princpio da no contradio, que diz que " impossvel que algo simultaneamente seja e no seja uma mesma coisa" . Princpios como este e outros no podem ser demonstrados; ao contrrio, so pressupostos por todas as demonstraes, e sua evidncia s pode ser percebida de modo imediato pela virtude qual Toms chama de intelecto.

A cincia um conhecimento certo de coisas que so necessrias por natureza . No existe cincia do contingente, porque do contingente s pode haver certeza enquanto estiver sendo apreendido pelo sentido .

A cincia um conhecimento obtido atravs das causas , adquirido por modo de concluso atravs de demonstrao .

Pode haver cincia de coisas submetidas gerao e corrupo, como as cincias da natureza, mas quando isto ocorre, se d no pelo que h de contingente nelas, mas segundo razes universais que so por necessidade e sempre .

Descrevemos, assim, rapidamente, o que so as cinco virtudes intelectuais, com exceo da sabedoria. Para entender o que seja esta, ser necessrio ressaltar antes algumas distines a respeito do que j foi dito.

O intelecto, a cincia e a sabedoria dizem respeito a coisas necessrias. So, por causa disso, conhecimentos da inteligncia especulativa, por oposio inteligncia prtica, que diz respeito s coisas contingentes.

Dentre as trs virtudes intelectuais que dizem respeito inteligncia especulativa, o intelecto tem por objeto coisas cuja evidncia imediata; so os primeiros princpios das demonstraes, que s podem ser conhecidos em si mesmo, sem possibilidade eles prprios de serem demonstrados.

J a evidncia da cincia no imediata; a cincia uma forma de conhecimento que parte do conhecimento das causas e, atravs de demonstrao, chega s concluses que a constituem.

Ora, no Comentrio Metafsica Santo Toms diz que existe naturalmente em todo homem o desejo de conhecer .

A razo que qualquer ente aspira naturalmente sua perfeio . Nos seres inteligentes isso ocorre porque a perfeio que se segue sua prpria forma apreendida por eles como bem, e o bem o objeto prprio da vontade, naturalmente apetecido por ela. Portanto, todo ser inteligente aspira sua perfeio como ao seu prprio bem.

Ora, a perfeio que se segue forma prpria do homem o inteligir, porque a cada forma se segue uma operao prpria que sua perfeio e, segundo o Comentrio Metafsica,

"A operao prpria do homem enquanto homem inteligir, j que por isto que difere de todos os demais.

Portanto, todo homem naturalmente inclinado a inteligir, e, por conseqncia, a conhecer" .

Ademais, diz ainda o Comentrio Metafsica que "se a inteligncia, considerada em si mesma, algo que est em potncia para com todas as coisas, e no se reduz ao ato seno pelo conhecimento, deve-se ento concluir que todo homem deseja naturalmente o conhecimento assim como a prpria matria (apetece) a forma" .

Existem, porm, modos diferentes de conhecer.

H os que conhecem apenas a coisa; h os que, alm de conhecer a coisa, conhecem tambm a sua causa. O Comentrio Metafsica faz uma distino entre estes modos de conhecimento:

"Aqueles que conhecem a causa, diz o Comentrio, so mais sbios do que aqueles que ignoram a causa e conhecem apenas a coisa" .

Destas palavras deve-se concluir, portanto, que o conhecimento pela causa, como uma forma mais elevada de conhecer, mais desejvel pelo homem do que o conhecimento que apenas pela experincia da coisa sem o conhecer da causa:

"Existe, portanto, em todos os homens o desejo de conhecer as causas das coisas que vem; da nasceu a filosofia, pois pela admirao das coisas que os homens viam, cuja causa lhes era oculta, foi que os homens comearam a filosofar pela primeira vez; e, ao encontrarem as causas, repousavam. Mas a investigao no cessaria at que encontrassem a primeira de todas as causas, pois s ento julgamos conhecer perfeitamente quando encontramos a primeira de todas as causas. O homem, portanto, deseja conhecer por natureza a primeira causa de todas as coisas como um fim ltimo" .

Existe, porm, uma causa ltima de todas as coisas?

Se existir, haver ento um conhecimento, uma cincia, mais elevada do que todas as outras; ser a cincia cujo objeto for esta causa. Se no existir, no haver uma cincia mais elevada do que todas as demais.

No livro II da Metafsica Aristteles tratou do problema da existncia de uma causa ltima tendo em vista a questo de se determinar se poderia existir uma cincia mais elevada entre todas. Ele afirma que no pode haver uma sucesso infinita de causas, tanto na linha da causalidade material, como na da formal, na da eficiente, e na da final . No caso das causas eficientes, ele diz o seguinte:

"Se as causas moventes procedem at o infinito, no haveria uma primeira causa. Mas a causa primeira seria causa de todas as demais. Seguir-se-ia, por esta razo, que todas as demais no existiriam, pois retirada a causa retiram-se tambm as coisas da qual ela causa" .

Deve haver, portanto, causas primeiras, causas de todas as causas.

a este conhecimento das causas primeiras que se d o nome de sabedoria, pois se os que conhecem as causas so mais sbios do que os que conhecem a coisa mas ignoram a causa , aqueles que conhecem as causas primeiras so mais sbios do que os que conhecem as causas segundas: so, simplesmente falando, sbios.

O objeto da sabedoria, pois, so

"as causas maximamente universais e primeiras; ela especula sobre os primeiros princpios e as primeiras causas" .

Ora, veremos mais adiante neste trabalho que, medida em que se procede investigao dos fenmenos da natureza buscando suas causas e buscando nestas as primeiras que so causas de todas as demais, acaba-se por se chegar descoberta de que existe um ser imaterial, inteligente, situado alm da ordem da natureza, que a causa do ser de todas as coisas. Como se pode chegar a esta concluso algo que ser tratado num captulo posterior deste trabalho; por ora devemos dizer que as caractersticas que podem ser deduzidas como pertencentes a este ser coincidem com grande parte dos atributos que os homens costumam conferir ao ser que chamam Deus. Pode-se assim chegar, pelo trabalho da inteligncia, descoberta de que a causa primeira de todos os entes Deus. Neste sentido, pode-se dizer tambm que Deus o objeto da sabedoria, na medida em que a causa do ser de todas as coisas.

O conhecimento, entretanto, que a sabedoria alcana de Deus muito diferente do conhecimento que comumente as pessoas tm de Deus.

"Existe um conhecimento confuso de Deus comum a todas as pessoas" , diz Toms de Aquino:

"Todos os homens pela razo natural podem alcanar de modo imediato um certo conhecimento da existncia de Deus. Isto ocorre porque vendo os homens as coisas da natureza ocorrerem segundo uma determinada ordem, no havendo ordem sem ordenador, percebem em sua maioria dever existir algum ordenador das coisas que vemos ao nosso redor. Quem , como ou se um s este ordenador da natureza j no algo que possa pelos homens ser to imediatamente percebido" .

Todavia, no este o conhecimento da causa primeira que advm da sabedoria. A sabedoria, conforme vimos, o fim de todos os atos humanos. Mas este conhecimento geral que todos os homens tm de Deus no necessita da ordenao de todos os atos humanos como a um fim. Ao contrrio, diz Toms,

"ele existe nos homens j desde o princpio" .

A sabedoria, portanto, no pode consistir neste modo de conhecimento de Deus.

Ademais, continua S. Toms, ningum pode ser repreendido por no ser feliz, o que advm da contemplao da sabedoria; pois na verdade, "os que carecem de sabedoria mas a buscam j so dignos de louvor" . Todavia, pelo fato de que algum carea deste conhecimento de Deus que comum a todos os homens, torna-se digno de repreenso, pois de fato seria estulto o homem que no percebesse sinais to manifestos de Deus como estes continuamente presentes diante de todos os homens; por isso, continua Toms, que a Sagrada Escritura diz no Salmo 52:

"disse o estulto em seu corao: no h Deus".

Portanto, o conhecimento de Deus que advm pela sabedoria muito distinto do conhecimento comum que a maioria dos homens tm de Deus .

Na verdade, continua Toms, o conhecimento de Deus que provm da sabedoria o mais elevado grau de conhecimento que os homens podem alcanar; para que

"a inteligncia humana possa investigar a Deus pela sabedoria necessrio conhecer muitas outras coisas antes, pois praticamente todos os conhecimentos filosficos se ordenam a este modo de conhecimento de Deus. por isto que a sabedoria, que diz respeito causa primeira que Deus, deve ser a ltima das partes da filosofia a ser aprendida" .

Ora, conforme veremos, a sabedoria ir mostrar que h um ser imaterial, inteligente, que a causa primeira do ser de todas as coisas. Para poder prosseguir em nossa exposio, devemos expor algo do sentido desta afirmao. O que significa existir um ser que causa primeira do ser de todas as coisas?

A Lei de Lavoisier diz que na natureza nada se cria e nada se destri; tudo apenas se transforma. No podemos destruir a matria, podemos transform-la em outra substncia ou mesmo em energia, mas aquela quantidade de matria ou energia ser indestrutvel. Jamais foi observado nos laboratrios o desaparecimento puro e simples de sequer uma partcula elementar; jamais coisa alguma foi vista voltando ao nada ou vindo do nada. Por que isto? Por que as coisas existem e no desaparecem simplesmente? Por que todo o Universo repentinamente no pode deixar de existir e voltar ao nada? Qual a fora ou o princpio que sustenta todo este cosmos em sua existncia? Esta pergunta, assim formulada, uma pergunta pela causa do ser das coisas; as cincias modernas no tem para ela qualquer resposta. A razo, segundo a sabedoria, que a causa deste fenmeno est para alm do mundo fsico, para alm do que pode ser medido pelos instrumentos. Existe uma causa, mostrar a sabedoria, para alm do mundo fsico, que causa do ser de todas as coisas porque ela ser num sentido que no coincide totalmente com o sentido em que todas as demais coisas so seres; ela possui esta caracterstica, o ser, num grau mais elevado do que todos os demais entes.

preciso chamar a ateno para esta afirmao, to simples em seu enunciado, que poderia fazer com que toda a riqueza de seu significado passasse desapercebida em uma primeira leitura.

Todos entendem facilmente que algo pode ser mais quente ou menos quente, mais luminoso ou menos luminoso, mas como algo pode ser mais ser do que outro? primeira vista, ou uma coisa ou no ; no existe ser mais e ser menos.

Para entender isto preciso considerar que para algo ser causa de um efeito de modo prprio preciso que possua a qualidade causada de modo mais excelente do que no efeito. O fogo mais quente do que aquilo que ele aquece; o Sol mais luminoso do que o objeto que reflete a sua luz; e assim sucessivamente.Assim como o Sol tem um calor muito mais intenso do que os objetos que ele aquece de que fazemos uso em nossa vida, e o calor dos objetos no seno um possuir em parte aquilo que o Sol tem em plenitude, - uma participao , diria S. Toms - , assim tambm a sabedoria ir mostrar que o ser das coisas que vemos nossa volta no seno um ser em parte aquilo que ser inteiramente para a causa primeira de todas elas.

O ser da causa primeira to intenso que pode causar o ser de todos os demais seres; o ser de todas as demais coisas to dbil que no pode causar nem o ser nem a destruio do ser de nenhum outro ser. Assim como o Sol por sua essncia irradia luz e calor sobre toda a superfcie da terra, assim a causa primeira um Sol de ser, e irradia ser por todos os demais seres.

por isso que o Universo no retorna repentinamente ao nada; a mesma razo pelo qual a terra no cai repentinamente na escurido total para sempre: h um Sol que a ilumina sem cessar. Vemos, assim, que ao contrrio do que poderia parecer num primeiro exame, o ser algo que possui gradao.

Um ente no pode apenas ser ou no ser; ele pode tambm ser mais ser do que outro.

A causa primeira no causada; tem seu ser necessariamente, assim como o fogo que no precisa ser aquecido; ademais, seu ser tanto que pode causar o ser de todas as demais coisas; o ser das demais coisas to dbil que no pode causar o ser de mais nada.

Este fenmeno, objeto de estudo da sabedoria, de que h uma gradao do ser das coisas em seu prprio ato de ser, o que se chama de analogia dos entes.

Analogia dos entes significa que os entes no so ser no mesmo sentido; as coisas da natureza possuem uma parte do ser que a causa primeira tem inteiramente: elas no so ser no mesmo sentido em que o a causa primeira, mas tambm no o so em um sentido totalmente diverso. Elas o so apenas em parte. Ora, quando vrias coisas so ditas seres em sentidos nem totalmente idnticos nem totalmente diversos, mas uma tendo uma parte do que a outra tem plenamente, elas so ditas anlogas. Da este fenmeno chamar-se analogia dos entes.

O fenmeno da analogia dos entes, porm, no se d apenas entre a causa primeira e os demais entes.

Existe uma analogia entre os entes tambm dentro da natureza. H tambm, dentro da natureza, seres que so mais seres do que outros, no por terem qualidades anexas que sejam mais ou menos perfeitas, mas em si prprios enquanto seres.

Pode-se constatar isto ao perceber que os seres que se observam na natureza podem ser divididos em substncias e acidentes. Substncias so todos aqueles entes que existem por si ss; acidentes so todos aqueles que no existem por si ss, mas em outros. Assim, um homem dito substncia, uma mesa dita substncia; mas uma qualidade, como a brancura ou a temperatura, dita acidente, porque s pode existir em uma substncia. evidente que ambos, isto , substncias e acidentes, so seres; mas claro tambm que os acidentes tm um ser mais dbil do que as substncias.

O fenmeno da analogia, porm, no se verifica apenas entre a causa primeira e os demais entes, e , nos demais entes, entre as substncias e os acidentes.Em uma abordagem que faremos em pequena parte em outro captulo, pode-se mostrar que entre os acidentes h alguns que tem o ser mais dbil do que outros e que nas substncias tambm h algumas que tem ser mais dbil do que outras; tudo isto, pode-se mostrar, em uma gradao de um impressionante multicolorido at chegar prpria matria primeira de que so feitos todos os corpos, um ser totalmente indeterminado e puramente potencial, que o ltimo grau do ser antes do nada .

O que se depreende de tudo isto que a causa primeira, ao causar o cosmos, pintou um quadro em que se encontram todas as tonalidades do ser. Esta tonalizao completa do ser efeito prprio da causa primeira. Portanto, se a sabedoria tem por objeto de estudo a causa primeira, ter, ento, por conseqncia, por objeto tambm o ser das coisas.

Conclui-se, assim, que o objeto da sabedoria no apenas a causa primeira do ser de todas as coisas. O ser de todas as coisas, enquanto tal, ser tambm objeto da sabedoria; ser o seu segundo objeto. Na filosofia de S. Toms isto afirmado ao dizer-se que o objeto da sabedoria no apenas a causa primeira, mas tambm o ser enquanto ser, ou o ente enquanto ente:

"Diz-se que a sabedoria se refere ao `ente enquanto ente' porque todas as cincias consideram o ente, pois qualquer sujeito de qualquer cincia tem que ser um ente, mas no o consideram enquanto ente, mas enquanto tal ou qual tipo de ente" ,

isto , enquanto ser vivo, enquanto ser passvel de sofrer uma reao qumica, enquanto ser geometricamente mensurvel, etc..

A nica cincia que considera os entes enquanto entes a sabedoria.

Existe todavia, diz Santo Toms, ainda um terceiro objeto de considerao da sabedoria.

Este terceiro objeto de considerao da sabedoria so os primeiros princpios das demonstraes, tais como o princpio da no contradio que diz ser impossvel que algo simultaneamente seja e no seja uma mesma coisa .

Ora, mas como possvel que estes princpios sejam objeto de considerao da sabedoria? Pois j vimos queprincpios como este so objeto da virtude do intelecto, e no da sabedoria. virtude do intelecto, que existe nos homens de modo imediato, que cabe fazer ver a evidncia destes princpios.

Alm disso, se alguma outra cincia, diz S. Toms, devesse tambm tratar dos primeiros princpios da demonstrao, "mais pareceria que deveriam ser as cincias matemticas, que so as que mais manifestamente utilizam estes princpios conhecidos por si prprios, reduzindo todas as suas demonstraes a estes princpios". Por que ento deveriam ser objeto de estudo da sabedoria?

A razo dos primeiros princpios das demonstraes serem tambm objeto de considerao da sabedoria que, por um curioso fenmeno, embora tais princpios sejam princpios que pertencem ao mundo da razo, embora sejam princpios de lgica e o prprio nome que se lhes d afirma isso, pois so ditos primeiros princpios da demonstrao e a demonstrao uma atividade lgica, a qual por sua vez uma operao da razo humana, apesar de tudo isso, porm, por algum motivo, tais princpios so obedecidos no apenas pela razo humana quando raciocina, mas tambm por todos os entes do universo, mesmo os desprovidos de razo.

Quando ns raciocinamos e mediante o raciocnio chegamos concluso que algo e no simultaneamente uma mesma coisa ns no dizemos apenas:

"Isto um absurdo".

Ns dizemos tambm :

"Isto no existe".

Ao dizer que isto no existe estamos passando de um julgamento sobre o mundo da razo para um julgamento sobre o mundo real. E, de fato, parece que temos o direito de fazermos isto, pois jamais consta ter-se visto existir algo que fosse e no fosse simultaneamente uma mesma coisa.

Ora, mas como pode ser isto, se estes princpios so apenas uma lei da inteligncia?

Por que as coisas desprovidas de inteligncia devem e parecem estar obrigadas a seguir uma lei que lei da inteligncia? E no s isto: todos os seres parecem seguir esta lei no por alguma qualidade que se lhes acrescenta, mas apenas pelo fato de serem.

Assim, pois, os primeiros princpios das demonstraes parecem no ser leis apenas da razo, mas tambm propriedades dos seres enquanto seres.

Ora, se o objeto da sabedoria no apenas a causa primeira, mas tambm o ser enquanto tal como conseqncia de ter por objeto a causa primeira; segue-se tambm que ela dever considerar os primeiros princpios das demonstraes, como conseqncia de ter como objeto o ser enquanto ser, no para demonstr-los, mas para explicar porque so obedecidos pelo ente enquanto tal.

II.17) Concluso do captulo.

Expusemos, assim, que o fim ltimo do homem consiste na contemplao da sabedoria. Oferecemos uma primeira explicao do que a sabedoria. Resta agora, antes de passarmos adiante, examinarmos os pressupostos desta concepo.

No captulo III examinaremos os pressupostos histricos; no captulo IV examinaremos os pressupostos psicolgicos.

Da poderemos prosseguir e examinar nos captulos V, VI e VII como se educa o homem para que ele possa alcanar a contemplao da sabedoria. Ao fazermos isso, teremos tambm diante dos olhos um quadro mais profundo do que seja esta contemplao que , segundo S. Toms, o anseio mais profundo do homem.

Nosso estudo, depois, no cessar a. Cada coisa, porm, ser anunciada no seu devido tempo.

II. Ap.

Apndice sobre teoria da

causalidade

Segundo Aristteles h quatro tipos de causas, que so a causa formal, a causa material, a causa eficiente e a causa final.

Por detrs desta afirmao esconde-se uma elaboradssima concepo sobre a natureza da causalidade de que a seguir faremos um breve apanhado, dada a freqncia com que o tema aparece neste trabalho.

1) Causa Formal.

A causa formal aquela que faz cada coisa ser o que , isto , a forma da coisa, por oposio matria.

Em uma esttua, por exemplo, quando ela esculpida pelo homem, as disposies introduzidas no mrmore pelo escultor so causa da esttua por modo de forma, sendo aquilo que fazem a esttua ser a obra de arte que ela ; j o mrmore causa da esttua por modo de matria.

Este exemplo, porm, no passa de uma analogia para uma compreenso inicial. Na verdade, antes da esttua ser esculpida, o mrmore j era alguma coisa: era uma pedra de mrmore. Portanto, j possua uma causa formal que fazia com que fosse mrmore; o trabalho do escultor no acrescentou forma j existente do mrmore seno uma forma acidental, por contraposio forma substancial que j existia.

A diferena entre a forma acidental e a forma substancial que a forma acidental sempre se acrescenta a um sujeito j existente; a forma substancial, entretanto, isto , a forma propriamente dita, unindo-se com a matria primeira de que todos os seres corpreos so feitos, no se acrescenta a um sujeito, mas forma o prprio sujeito.

Na doutrina de Aristteles, portanto, todos os seres corpreos que se observa na natureza so compostos de matria e forma. As transformaes que se observam nos seres naturais so a passagem, na matria primeira, da privao de uma forma substancial a esta forma substancial ou vice-versa; ou, em um sujeito j composto de matria e forma, da privao de uma forma acidental a esta forma acidental ou vice versa.

2) Causa material.

A causa material a prpria matria de que so constitudos os seres corpreos, por oposio forma.

No exemplo da esttua, o mrmore de que feito uma esttua causa da esttua pelo modo de matria.

Trata-se, porm, novamente, apenas de uma analogia para uma compreenso inicial do que seja a causa material. O mrmore, na realidade, no a matria da esttua, mas um sujeito j composto de matria primeira e forma substancial, que receber uma forma acidental que o tornar esttua. Esta forma acidental da esttua est para o sujeito que o mrmore de modo anlogo como a matria primeira est para a forma substancial que faz o mrmore ser mrmore.

A matria primeira que constitui todos os corpos a ausncia total de forma; como tal, ela pura indeterminao, justamente porque totalmente isenta de qualquer forma, que o que a faria ter alguma determinao de ser tal ou qual gnero de ser.

Por no ter recebido ainda uma forma, a pura matria ser apenas potencialmente, porque pode se tornar tal ou qual ser se receber uma forma substancial que a determine.

No existe matria pura na natureza, porque se existisse, sua existncia j implicaria uma determinao advinda da forma, e, portanto, no seria matria pura.

Os cinco sentidos do homem somente so capazes de apreender as formas acidentais; portanto, a realidade da matria primeira dos corpos existente sob a forma substancial no pode ser apreendida diretamente pelos sentidos humanos. Pela mesma razo, tampouco pode ser detectada por instrumentos de laboratrio, quaisquer que sejam, por uma necessidade intrnseca; tais instrumentos so apenas um prolongamento e uma extenso dos cinco sentidos do homem, e, portanto, apenas podem detectar as formas acidentais.

Os cinco sentidos do homem e os instrumentos de laboratrio tambm no podem apreender diretamente a forma substancial dos corpos; no caso do mrmore, a forma substancial aquilo que por primeiro traz o mrmore ao ato de ser; o que lhe d depois extenso, cor, temperatura, etc., tudo isto so formas acidentais. Somente estas ltimas podem ser apreendidas pelos sentidos.

Quem poderia apreender a forma substancial seria a faculdade da inteligncia, se a inteligncia pudesse se dirigir diretamente aos entes existentes fora do homem. Entretanto, isto vedado inteligncia humana; por estar unida a um corpo, o objeto com que a inteligncia humana trabalha em suas operaes o material fornecido pela imaginao, que um prolongamento interno no homem do trabalho dos cinco sentidos: a partir do material fornecido pela imaginao que a inteligncia abstrai suas idias. Os cinco sentidos, porm, somente captam as formas acidentais; da que at a existncia da forma substancial tem que ser deduzida de modo indireto pela inteligncia. Com muito maior razo a matria primeira.

3) Causa eficiente.

A causa eficiente aquela que o princpio do movimento e do repouso nos seres.

Movimento e repouso no se entendem aqui apenas do ponto de vista do movimento segundo o lugar, mas de modo amplo, no sentido de qualquer alterao pela qual na matria h uma passagem de uma privao de uma dada forma substancial para a presena desta forma substancial, ou num sujeito h uma passagem de uma ausncia de determinada forma acidental para a presena desta forma acidental.

Diz-se estar em potncia aquilo que pode ser, mas que todavia ainda no .

Diz-se estar em ato aquilo que de fato j .

A matria ou um sujeito privado de uma forma so algo que pode ser, se vierem a receber esta forma, mas que, por no a terem recebido, ainda no so. A matria ou o sujeito privado de uma forma, so, portanto, entes em potncia em relao a esta forma. A matria ou o sujeito que receberam uma determinada forma j no so algo que pode ser, mas que j so, pelo menos no que diz respeito a esta forma recebida. So, portanto, entes em ato em relao forma recebida.

De modo que, em uma conceituao mais ampla, em todo movimento temos uma passagem da potncia ao ato.

Pelo fato de que a matria por si indeterminada mas pode vir a ser tal ou qual ser se receber uma forma, a matria dita pura potncia. E pelo fato de que a forma o que faz o composto de matria e forma ser em ato, tambm dita ato.

Ora, observa-se que a toda forma se segue uma operao prpria: o fogo esquenta, o peso cai, a inteligncia apreende, a luz ilumina, etc.. Por outro lado, pura matria no se pode seguir nenhuma operao prpria, pois, se este fosse o caso, ela j possuiria alguma determinao. Se possuisse alguma determinao, a operao prpria se seguiria a esta determinao; mas esta determinao a forma; portanto, se matria se seguisse alguma determinao, esta se deveria forma; de onde que se conclui que forma que se seguem as operaes prprias dos entes.

Esta fundamentao toda vem com o propsito de mostrar que a causa formal e a causa material no podem ser, elas sozinhas, explicao suficiente do movimento. A estas duas primeiras causas deve-se acrescentar necessariamente a causa eficiente.

Por que?

Porque em todo movimento ocorre uma passagem da potncia ao ato. Ora, o que est em potncia no pode passar ao ato por si s. A matria potncia pura; se ela pudesse por si s passar ao ato, ela j teria, por isso mesmo, alguma determinao. No seria mais, portanto matria pura.

Segue-se que, para passar ao ato, a matria j necessita de alguma determinao, ou seja, de alguma forma. J vimos acima que a toda forma segue-se uma operao prpria; esta operao prpria que se segue a toda forma a determinao necessria matria para que ela possa passar da potncia ao ato.

Mas esta determinao que a potncia necessita para passar da potncia ao ato, que s lhe pode advir por alguma forma, no pode lhe advir da forma que ir ser engendrada nesta matria, pois esta forma ainda no existe. Segue-se que ter de vir de outra forma que lhe seja externa e j em ato, como toda forma.

Portanto, para que haja movimento, necessrio a ao prpria de uma forma externa ao ente submetido ao movimento; esta forma externa, -externa, pelo menos, quanto essncia, no quanto localizao - , ser a da causa eficiente deste movimento.

Portanto, para que a potncia passe ao ato necessrio outro ser em ato; e para todo movimento necessria uma causa eficiente.

A argumentao assim exposta, baseada no exemplo da matria pura,vale tambm para o caso da matria j integrante de um composto de matria e forma, ou do prprio composto entendido como um sujeito de uma forma acidental; pois, embora esta matria integre um corpo j em ato, em relao nova forma que vai ser engendrada, ela ainda est em potncia.

Portanto, para existir movimento sempre necessrio, segundo a filosofia de Aristteles, a existncia de um agente externo que lhe seja a causa; este agente ser causa na medida em que est em ato; este agente o que se chama de causa eficiente.4) Causa final.

A causa final aquela que princpio de movimento e de repouso por modo de fim.

S. Toms e Aristteles do uma primeira explicao do que seja a causa final nestes termos:

"Ao perguntarmos por que algum caminha, respondemos convenientemente ao dizer: para que ganhe sade. E, assim respondendo, opinamos ter colocado a causa. De onde que patente que o fim causa".

primeira vista tal explicao parece uma simples ingenuidade. Mas o fato que pode-se mostrar que a existncia de uma causa eficiente exige a existncia de uma causa final.

Quando a causa eficiente um ser inteligente, um ser, portanto, dotado de vontade, evidente a existncia de uma causa final, pois os agentes inteligentes agem movidos pela vontade, e a vontade tende por natureza a um fim.

Existem tambm casos evidentes de agentes no inteligentes que agem tendo em vista um fim. Quando uma flecha arremessada contra um alvo, o alvo a causa final do movimento da flecha; embora a flecha no a conhea, foi movida por um agente inteligente que a conhecia.

Mas a verdade que, dizem Aristteles e S. Toms, na natureza todos os agentes movem em direo a um fim, quer o conheam, quer no o conheam.

A razo que, conforme explicamos na teoria da causalidade eficiente, a passagem da potncia ao ato exige a interveno de um agente que age em virtude de sua prpria forma; ora, a cada forma se segue uma operao prpria, de modo que esta forma j tem em si determinada uma direo em que ir operar. Esta direo a causa final, quer o agente a conhea, quer no a conhea. Quando um ser inteligente age tendo em vista um fim, ele tambm est fazendo isto por uma operao que se segue a uma forma apreendida em sua inteligncia; a causalidade final se segue operao prpria de uma forma exigida pela causalidade eficiente. A diferena que, quando o agente voluntrio, ele conhece o fim; quando no, ele no o conhece.

A existncia de uma causalidade final na natureza pode ser estabelecida pelo fato de que todos os movimentos na natureza se do sempre ou na maior parte das vezes do mesmo modo: o fogo sempre esquenta, a pedra sempre cai, o boto da rosa sempre desabrocha, o Sol sempre ilumina, etc.."Deve-se ter em mente, portanto, diz S. Toms no Comentrio Fsica, que sempre todo agente age em vista de um fim, aja ele pela natureza ou pelo intelecto" ."As coisas que acontecem sempre ou freqentemente o so pela natureza ou pelo que proposto pelo intel