intro e cap 1 (fechado 09 de agosto) (2)

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TEOLOGIA DA LIBERTAO e a hegemonia do discurso na Igreja Catlica

Vitor Quarenta

Prof. Raymundo Campos Colgio Equipe 2010

A verdadeira Igreja onde est o povo unido O que Jesus deseja, nem opressor, nem oprimido Igreja de cal e pedra que por ns foi construda casa de orao e no foi obra perdida Mas a verdadeira Igreja dar sentido vida No adianta ter Igreja, sem vivermos como irmos Sem praticar a justia, sem repartir o seu po. Viver o contrrio disto, no ser Igreja, no A Igreja no campo, a Igreja no terreiro, A Igreja na praa junto com os companheiros Reunindo em Jesus Cristo nosso irmo verdadeiro.Francisco (Comunidade Eclesial de Base da Diocese do Campo Limpo)

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ndice

Apresentao Introduo Um Getlio no Poder Ao Catlica Brasileira: a transformao em um embrio T ficando muito rebelde, menino! Anos de chumbos, para religiosos tambm! O feitio virou contra o... Reaproximao: protestantismo Reaproximao: popularizao pela ausncia Novos Rumos: Vaticano II e Medelln Ver, Julgar, Agir: um mtodo libertrio Puebla, uma dcada depois... Consideraes Finais Bibliografia

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Apresentao

De fato o projeto da monografia, embora individual, representa um esforo grandioso para com o coletivo. Da os agradecimentos que tenho de realizar ao trmino deste trabalho: Minha famlia pelo entusiasmo e compreenso do trabalho, ao meu pai e minha me pelas consideraes acadmicas importantssimas que sem elas nada teria feito, alm do carinho. professora Eliane Yambanis, coordenadora Luciana Fevorini e ao orientador Raymundo Campos que com suas consideraes providenciais tanto me incentivaram e me conduziram. Agradeo especialmente Beatriz pela sua companhia e por ser a pessoa com quem mais compartilhei impresses deste processo. A todos os companheiros, e em especial os monitorandos do Professor Raymundo Campos e aos membros e freqentadores do Grmio Po de Milho que tanto lutam para um espao de resistncia. Outro nome que no poderia esquecer o do querido amigo Matias, que tal como a Beatriz se fez presente em momentos cruciais e com sbias palavras, tanto me ajudou.

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Introduo

Este trabalho segue uma linha tnue entre a compreenso historiogrfica e a teolgica, tendo como objeto de anlise a realidade humana. Primeiramente buscaremos entender nesta monografia o funcionamento e as mediaes da Teologia da Libertao sob o ponto de vista teolgico. Fora isso, imprescindvel compreender em que momento surge este novo discurso na Igreja Catlica e at que medida ele se vincula e se posiciona frente realidade brasileira e da Amrica Latina. Tendo em mente os conhecimentos apropriados acerca da estrutura eclesistica, buscaremos responder ao cabo deste trabalho nossa questo problematizadora: Como se d a ascenso do discurso progressista acerca da realidade latino americana, em especial brasileira, dentro da Igreja Catlica? Para tais fins fulcral que tentemos entender como a Nova Igreja vai conseguir aliar-se aos pobres justificando a partir de razes scio-histricas as suas angustias. Tendo em face sempre a contraposio com a teologia tradicional que sempre se manteve ao lado da elite. necessrio localizar os sujeitos histricos abordados. Temos ento, a Igreja Catlica, uma das mais antigas e poderosas instituies vivas em nossa histria. Igreja esta que j vivenciou centenas de mudanas, tendo em muitas delas sido fulcral para as decorrncias histricas. A Igreja, como uma instituio complexa1, foi sujeito histrico de muitas transformaes, desde revoltas populares at atrocidades vida do homem. Pretendo fazer a distino dos grupos da Igreja Catlica mais pertinentes para este estudo. Caminharei no estudo da CNBB (Comisso Nacional de Bispos

Adotamos o termo complexa para aquelas instituies que em si j trazem o dilogo, na medida em que tem na sua composio divergncias essenciais para o tear histrico da humanidade. Isto , instituies que tem a presena de produzir questes que em muito foram cruciais para as questes do homem em suas respectivas pocas.

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Brasileiros) e das diversas faces dentro do episcopado brasileiro, das alas mais conservadoras at as mais progressistas. Com um dos campos j localizado (a Igreja), partamos agora para a explanao do outro campo que balizar este estudo. O segundo campo um contraponto do primeiro, na medida em que nem sempre se configura uniformemente e, trs consigo, vrias facetas que podem em muito prejudicar o meu foco de pesquisa. Mesmo assim, pretendo explorar, (no sentido de aprofundar-me) os sujeitos histricos que sero escolhidos pela Igreja como opo de trabalho evangelizador na segunda metade do sc. XX, os pobres. Como h muitos Severinos/ que santo de romaria2

encontramos uma

grande dificuldade de localizar nosso sujeito, uma vez que ele pobre, como tantos outros milhes no Brasil, que ele oprimido como os tantos milhes j ditos, que passa por necessidades bsicas de sobrevivncia e como o nosso Severino, muitas vezes filho de Maria com finados Zacarias. Por certo que este o sujeito mais presente neste pas continental. Embora o seu nome e suas variaes lingsticas mudem, h milhes de Severinos. Mas no basta ser o sujeito mais presente, este ainda o mais esquecido. Tal estudo, porm, no tem a pretenso de analisar a relao pura da Igreja com a populao de baixa renda, pois tal obra, se imaginada, levaria dcadas a ser formulada, e como as datas so pontos crucias para a produo , seja ela de qualquer mbito, inclusive intelectual, temos de respeit-las e por extenso, enxugar o tema de anlise. Proponho assim deixar claro o percurso pelo qual caminharei e convicto de que tal caminho ser sinuoso e mprobo. O tema abordado, por hora, est elucidado, nos falta agora estender mesa nosso objeto de estudo e explicitar quais sero os estratagemas para tang-lo com maior profundidade. Para conseguir progredir e concluir meu processo exitosamente necessrio um distanciamento para com o objeto e tema de estudo, na medida em que a minha simpatia ou antipatia pelos pilares do meu estudo certamente se2

NETO, Joo Cabra de Melo Morte e Vida Severina

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colocariam frente do pressuposto para tal trabalho, uma reflexo crtica e dialtica. No irei deix-las de lado, pelo contrrio, minha idia question-las, para ao cabo perceber se ainda se encontram estruturadas como dantes. No pretendo, neste estudo defender ou legitimar qualquer poder da Igreja Catlica, pois, de fato, no este meu papel, mas do sacerdote. Ainda que, da mesma forma, meu papel tambm no seja me colocar na trincheira adversria para, no menor descuido, em uma avanada, fustigar a santidade da Igreja Catlica. No afirmo e nem proponho ser neutro, pois neutralidade no existe. Desde a escolha do ttulo e da questo eixo at as consideraes finais, meu trabalho ser permeado por tendncias e opinies que so impossveis de serem esquecidas, sendo estas o grande poder do trabalho historiogrfico. Porm, o que trago aqui a necessidade de um cuidado especial para tanger o meu objeto de estudo, para no confundir, por fim, o que eu acredito com o que de fato acontece e se transparece no material de anlise. Sem mais procrastinas, adentremos, de fato, no seio da Teologia da Libertao buscando encontrar algo que gere uma boa reflexo sobre o movimento que mudou os rumos da Amrica Latina e da Igreja, no sentido de ter ateado a organizao poltica (em movimentos, partidos, grupos, etc.) em ambientes carentes desse tipo de discusso, isto , as periferias com seus respectivos miserveis e oprimidos.

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Um Getlio no Poder:

Nesta monografia, nosso intuito entender como a Igreja Catlica teceu sua histria junto sociedade brasileira no perodo e da Revoluo de 30 at o momento ps-Conferncia de Puebla (1979). Vamos articulando discurso historiogrficos com teolgicos. Vamos estudar aqui as conjunturas histricas presentes para a formao de uma teologia questionadora at dos posicionamentos da prpria instituio da Igreja Catlica. Datas so pontas de iceberg, assim lembra constantemente o historiador Liznias de Souza Lima. Neste sentido, para fazer um trabalho meramente aprofundado necessria uma compreenso dos eventos e das atmosferas que permeiam os grandes acontecimentos histricos. O recorte por si s controverso, talvez puxar a contextualizao para mais perto da Proclamao da Repblica fosse a melhor opo, mas certamente no quando pensamos na brevidade deste trabalho comparada aos costumeiros trabalhos acadmicos.

Determinamos como marco inicial a Revoluo de 30. Com um novo lder no poder e a Igreja ainda a se sentir injustiada pelo fim do beneplcito rgio3 se movimenta com rapidez para aliar-se ao novo governo. Deste modo, Dom Sebastio Leme de Silveira Cintra encontra-se com Getlio no Palcio do Catete para tentar a recuperao de certos privilgios perdidos pela Igreja quando nossa Bastilha caiu, na Proclamao da Repblica. E bem logrou o ento cardeal do Rio de Janeiro.Concesso, acordo em que o estado tinha o poder de deliberar sobre qualquer prtica da Igreja, quando esta ainda era ligada ao Estado. Isto , em um perodo anterior a Proclamao da Repblica em 1889.3

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O pesquisador Thomas Bruneau vai dizer que at 1930 a Igreja se utilizou de vrias tticas para ser readmitida no que ela considerava ser a posio que lhe competia por direito. No que os bispos desejassem o retorno dependncia da colnia e sim que acreditavam ainda na necessidade do apoio do Estado e procuravam reconquistar o poder poltico como parte integral de sua abordagem da influncia. Apesar de agnstico, Getulio Vargas vai se tornar um grande amigo do cardeal Leme, amizade esta que vai ser essencial para os rumos da Igreja frente ao Estado brasileiro. D. Sebastio Leme obtm do pai dos pobres a recuperao de vrios dos privilgios malogrados na Constituio de 1891. Dessa vez, porm, a Igreja volta a ter um forte poder poltico na Constituio de 1934 e 1937 e at depois da morte de D. Sebastio Leme4, na Constituio de 1946. Em troca a Santa Igreja legitimou o poder do novo governo, sacramenta a ordem e a estabilidade nas palavras de Helena Salem. Porm no eram somente mudanas constitucionais que estavam em voga nesses dilogo no Palcio do Catete, e sim a guinada nacionalista que o governo de Getlio teria, apoiado e reforado pela Igreja. Esta sempre foi ao longo do desenvolvimento da Igreja Catlica brasileira uma grande questo a ser posta em pauta. Uma contraposio idiossincrtica entre o clero nacionalista e os membros da hierarquia ligados fortemente com Roma. Este carter nacionalista vai se apresentar fortemente em alguns discursos da Nova Igreja, onde estudiosos vo recorrer at a uma herana colonial para reforar uma identidade de razes brasileiras na igreja dos oprimidos. No Imprio, por exemplo, as ordens religiosas eram proibidas de obedecer a qualquer autoridade estrangeira sem o aval legitimador do governo brasileiro. Um dado representativo desta questo que D. Antnio Ferreira Vioso foi o nico estrangeiro a ser nomeado bispo durante este perodo histrico. 5

Dom Sebastio Leme de Silveira Cintra morre em 1942, aos 60 anos de idade depois de ter chegado a ser Arcebispo de Olinda e Recife e Arcebispo do Rio de Janeiro. D. Leme foi o segundo arcebispo brasileiro. Morreu as 17h15 em seu quarto no Palcio So Joaquim, no Rio de Janeiro. Exerceu o cargo dei Cardeal durante 12 anos e trs meses. 5 Oriundo de Portugal, D. Viosa foi indicado por D Pedro II para ser bispo de Mariana em 1844, aos 57 anos.

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A Igreja, porm, estava totalmente submetida ao controle vigoroso do Ministrio da Justia imperial, que chegava at a deliberar sobre os livros que seriam utilizados nos seminrios. Iniciou-se um movimento por parte da hierarquia catlica a partir de 1845 de luta contra o Estado e sua opresso sobre o clero brasileiro. Balizada no Conclio Vaticano I o clero vai notar o quo distantes se encontram a Igreja brasileira da europia, deste modo, segundo Padre Beozzo, os bispos braslicos comeam a se aproximar de Roma, chegando a permanecer um ano na capital italiana, sob a autorizao do imperador. Na volta, uma questo vai explodindo a outra, na chamada questo religiosa do declnio do Brasil Imprio. A Igreja se posiciona contra os maons que era um grupo social muito forte politicamente no Imprio, inclusive sendo apoiado por este. O episcopado exige que membros manicos sejam afugentados das irmandades e confrarias. Dois bispos so condenados, D. Vital e D. Macedo, respectivamente de Olinda e de Belm a trabalhos forados por tal desavena com o imperador. A questo a ser debatida era quem mandaria na Igreja, o Estado (de cunho nacionalista) ou o prprio episcopado (cada vez mais de cunho europeu). A hierarquia, cada vez mais se associou a Roma, com o envio de jovens para estudar na Terra do Papa. Com a Proclamao da Repblica o apego nacionalista da Igreja vai definitivamente para o fundo do ba cristo. Quando a hierarquia se apega totalmente Igreja europia. Isto notvel nas conferncias episcopais de 1901 at 1921, (que ocorreram no Sul e no Norte do pas) onde os bispos reforam a importncia do cordo umbilical ligando o episcopado tupiniquim com a sede do papado. No podemos, porm, considerar o clero brasileiro homogneo, sempre houve no clero uma linha nacionalista, com problemas inclusive em Roma. Como no caso de Dom Carlos bispo de Maura 6 e Dom Duarte.7

D. Carlos, conhecido com bispo de Maura , de Botucatu, durante a II Guerra Mundial, tentou criar um Igreja Catlica Brasileira. Obviamente, logo vieram as punies. 7 D. Duarte, de So Paulo, implacvel nacionalista, teve uma serie de litgios com padres adventcios, sobretudo os italianos.

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Como j foi dito, esta ala da Igreja Catlica brasileira trouxe a tona sua herana colonial para contrapor s Igrejas Protestantes que ganhavam (e ganham at hoje) um nmero cada vez maior de fiis devido sua simbiose com o desenvolvimento capitalista. Vociferando os protestantes de estrangeiros, de uma forma xenofbica. O paradoxo que no incio do sculo XX, o Brasil, e principalmente So Paulo, recebia uma descomunal onda imigratria, e estes estrangeiros se consolidaram no cerne da Igreja, como ferrenhos fiis. Ento na mesma medida que esta ala da Igreja incentivava o nacionalismo xenofbico, tambm dirigia seus sermes, nos domingos, s famlias de italianos, alemes, entre outros. De um modo geral, a Igreja brasileira ps-Proclamao da Repblica vive um processo de romanizao, e este processo corresponde, para Helena Salem no nvel mais geral da sociedade tambm importao de costumes, de cultura e de capitais europeus para a economia. Com a mudana na concepo teolgica da instituio da Igreja Catlica no Brasil, temos uma mudana no cotidiano real dos adeptos desta crena. A alterao de nomes de santos e destruio de antigas edificaes do perodo colonial sendo substitudas por novas com concepes arquitetnicas oriundas da Europa, como as de estilo gtico. dessa poca que comearemos a ter aparies de novas virgens, como Salette e Lourdes, substituindo N. S. da Conceio, que era brasileira demais para o gosto do clero euro centrista. No caso das edificaes, um exemplo vivssimo o da Catedral de So Paulo, ou de Cuiab, cujas antigas edificaes feitas de taipa de pilo por ndios, foram postas a baixo dando lugar a grandes catedrais. Nessa ptica, no somente a fora da grana que ergue e destri coisas belas, mas sim concepes do que deve ficar marcado na histria oficial de uma religio, povo, cidade, etc. Diferentemente daquela outra corrente nacionalista que busca encontrar uma Iracema de crucifixo, e em alguns momentos precisa at criar esta imagem, esta corrente por sua vez, designa apagar e esquecer qualquer ligao com o nacional e colonial da Igreja brasileira. A corrente adventcia tem o intuito de11

desbotar qualquer memria arcaica e colonial do imaginrio da populao brasileira e encomendar a religiosidade europia, que vir em uma embalagem com o rtulo produto importado. Para Padre Beozzo isto no nada menos que um tipo de imperialismo religioso. Vimos ento que a Igreja Catlica ficou apartada legalmente do Estado brasileiro por sombrios quarenta anos. Para os liberais, a laicizao essencial para o desenvolvimento de um Estado de Direito, no qual todos so iguais perante a carta magna, a me constituio. Neste sentido, o laissez-faire s existiria do modo idealizado pelo velhos franceses se houvesse um respaldo para que todos fossem iguais culturalmente frente ao Estado. Resultando em um Estado laico, sem nenhuma ligao com qualquer religio, isto , sem defender nenhuma prtica religiosa. J para uma fatia bem pequena da hierarquia eclesistica brasileira, os progressistas, os anos nefastos do catolicismo no Brasil representaram um avano no s no sentido constitucional, mas tambm no estrutural da Igreja Catlica. Quarenta anos foi tempo o suficiente para repensar algumas questes. E por mais irrelevantes que estas tenham sido, em trinta anos, o nmero de dioceses no Brasil subiu de doze para cinqenta e oito. Temos ento duas linhas no clero, os conservadores e os reformistas que alm de serem a esmagadora maioria reivindicam a qualquer custo a volta da relao Igreja-Estado. J os progressistas, apertando a vista, conseguem ver com bons olhos a quebra do vnculo j desgastado. Apontando posteriormente, sob uma viso mais fria, estas mudanas citadas no pargrafo anterior que supostamente teriam sido conseqncia do corte umbilical. A democratizao da distribuio episcopal pelo Brasil, ainda que mnima, foi fulcral para repensar qual o devido papel da Igreja, no s nas grandes capitais, mas tambm no interior e qual deve ser sua atitude junto grande massa populacional. Foi esta Igreja melhor estruturada, que pode fazer reivindicaes para Getlio Vargas em troca da legitimao poltica, uma Igreja que poderia com seus12

longos e novos braos estender o populismo no ombro dos filhos de Getlio. Fazendo-se uma ferramenta importantssima para a consagrao do lder da Aliana Liberal. Uma forte elucidao desta coalizo foi que durante o governo de Getlio, N. S. Aparecida no s consagrada como padroeira do Brasil, como tambm tem uma baslica construda em seu nome basicamente no meio do trajeto entre Rio de Janeiro e So Paulo8. Outro detalhe relevante que a Igreja no Brasil deixou de carregar N.S. de Lourdes no andor real para ostentar N.S. Aparecida, carinhosamente chamada de Cidinha, e que alm de ser brasileira, ainda negra. Ou seja, uma figura bem distante daquela viso europia que predominava na Igreja e muito representativa para a massa de miserveis que consagra(ra)m Getlio Vargas. Deste modo, A Igreja alia-se a Getlio, para que este possa afagar o povo com seus rseos dedos de prognie, e conseguir, via escambo inscintico9, o apoio da massa. No podemos deixar de reconhecer que esta arapuca getulista foi muito ardilosa, e ningum menos do que a histria para nos provar isto, Getlio ainda est, mais de cinqenta anos aps sua morte, nas paredes das casas. Mutuamente, Getlio e a concepo nacionalista foram um vis para que a Igreja atingisse a populao de baixa renda. Seria uma impreciso pensarmos que este contato da Igreja Catlica com a grande prole getuliana uma grande mudana do ponto de vista teolgico e poltico da Igreja Catlica, pelo contrrio, pois nem por isso, logicamente, a Igreja abandona os palcios, o luxo, a minoria privilegiada. como bem enfatiza Helena Salem em seu artigo Dos palcios misria da periferia.

Pensar o que determinou a construo da maior Baslica do pas em um local entre a ento capital federal e a cidade mais rica do pas muito interessante. Para olhos leigos, me parece ser um estratagema populista de um calibre altssimo. 9 Refiro-me a este termo que j no se encontra nos dicionrios da lngua portuguesa atuais, embora, j tenha sido utilizado por Rui Barbosa em um discurso feito em sua terra natal. Escambo Inscintico no sentido de que a massa, envolvida e seduzida pelos adventos polticos do novo governo, acaba se tornando a grande defensora de Getlio, mesmo alienada s tticas de persuaso pouqussimas populares que foram utilizadas pela me dos ricos . Deste modo, um escambo desigual, como trocar Pau-Brasil por lataria do convs, uma permuta injusta, onde o povo d confiana em troca de populismo.

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A histria correu, Getlio voltou ao governo, dessa vez nas urnas. E a Igreja foi se apegando cada vez mais populao, com uma democratizao maior, mas sem deixar de lado seu carter elitista. A aproximao da Igreja Catlica aos pobres por conta do vis populista de Getlio com quem se aliou via D. Sebastio Leme fez com que a Igreja adequasse suas angstias e questes com a realidade brasileira da poca. Um pas margem do capitalismo tendo em mente um processo de modernizao, um pas que comea a pensar em indstrias de base e ter alguma expresso, ainda que mnima, no cenrio global. Um pas em desenvolvimento. Palavra chave para entender a cena onde a Igreja vai guinar seus novos pensamentos. Um pas como o Brasil sempre teve suas grandes contradies, o desenvolvimento, tal como a guerra, a conjuntura perfeita para aflorar tais realidades, no qual a Igreja vai se encontrar em Volta Redonda junto construo da Companhia Siderrgica Nacional e em So Felix do Araguaia, como em tantos outros milhares de municpios miserveis do interior do Brasil. Tais contradies no so novas para os olhos catlicos, pelo contrrio, a Igreja sempre conviveu muito bem e, sobretudo assentiu com tais paradoxos da sociedade, e dessa forma a outra metade do sculo XX poderia passar ilesa s crticas catlicas, porm, no foi bem isso o que aconteceu.

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Ao Catlica Brasileira, a transformao em um embrio Vou ignorar neste momento o conselho do sbio Liznias de Souza Lima e valorizar a ponte de um iceberg. 1948, a mudana inicia-se de forma embrionria, um zigoto diferencia-se no cerne da Igreja Catlica. Este um ano sem duvida fulcral para o futuro da Igreja no Brasil. Em meio a Independncia do Estado de Israel e ascenso do Partido Comunista Checo na finada Checoslovquia, a Ao Catlica Brasileira, que fora criada pelo mesmo D.Leme em 1935 tem sua estrutura modificada. Deixa de lado o modelo tradicional oriundo da Itlia para lidar com o modelo de diviso francs. Isto , abandona o molde de diviso por gnero (masculino e feminino) e adota o modelo de diviso por classes e categorias sociais. E neste momento, ao passo em que vo sendo criados braos catlicos especializados, comea-se a deixar de existir nas escolas e outras instituies geridas pela Igreja Catlica a diviso dos usurios por gnero. Mas a real importncia desta atitude da ACB no est em proporcionar um maior contato entre meninos e meninas no momento em que seus hormnios esto flor da pele e sim que a partir de ento a mesma entidade vai proporcionar espaos outros para participao poltica. Forma-se ento, no seio da ACB a primeira de cinco organizaes especializadas voltadas para a juventude catlica, a JOC (Juventude Operria Catlica). Fruto daquela mudana de modelo de diviso a JOC vai fazer companhia s outras quatro organizaes da Juventude Catlica que sero fundadas no ano de 1950, JAC (Agrria), JEC (Estudantes Secundaristas), JIC (Independente, englobando qualquer outra categoria social que no se encaixava nas outras quatro) e JUC (Universitria). Com todas as vogais formadas este conjunto de associaes conseguiria abranger qualquer jovem catlico, e deste modo, atingiu um nmero grande de participantes. Frente quela realidade encontrada, e potencializada nos 50 anos de Kubitschek, a JEC encontrou um campo vastssimo para atuao. Com estudantes filhos da pequena burguesia, a organizao comeou a se

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interessar por tpicos como desenvolvimento, nacionalismo e outras questes sociais. Como sabemos a juventude o espelho dgua, ou melhor, dizendo na sua linguagem mais prxima, a espuma de um copo de cerveja, que em muito, na aparncia, pode-se diferenciar do restante do lquido, mas que no deixa de refletir a qualidade e a essncia do resto da sociedade. Em 1952, D. Hlder Cmara com respaldo do ento Secretrio de Estado do Papa Pio XII e futuro Papa Paulo VI Giovanni Battisti Montini e com a ajuda de outros nove bispos entre eles D. Jos Tvora e D. Cndido Padin funda a Conferncia Nacional de Bispos Brasileiros, CNBB. Uma das primeiras conferncias episcopais do mundo, tornando-se com o tempo, como um instrumento importantssimo para a hierarquia brasileira. Esta mesma hierarquia comea a se mobilizar e transformar-se internamente e a mudana que considero a mais importante de todas comear a ser levada a srio pela JEC e JUC em 1950. Desde 1948 a ACB j tinha adotado alm do sistema francs de diviso, a metodologia de anlise da JOC belga, pensada pelo Mons. Cardjin, conhecida como ver, julgar, agir (vamos estudar esta metodologia mais profundamente nos prximos captulos), esta metodologia, porm, como j frisamos, s ser desenvolvida com mais profundidade da metade para frente do sculo nas duas organizaes estudantis da ACB. Inicialmente, o novo mtodo ser utilizado para resolver questes da formao do jovem catlico. Mas logo na conferncia de 1954 e depois concretamente a partir de 195710, todas organizadas pela JUC, j notamos uma mudana no tipo de preocupao. 1960, na Conferncia de Dez Anos da JUC e da JEC percebe-se que a participao poltica transborda dentro dos estudantes. Assim, como a vinculao religiosa nos jogou no movimento estudantil, o movimento estudantil nos jogou na poltica nacional fala bem representativa dos jovens da poca dita por Betinho, segundo Joo Bosco irmo do Henfil e segundo o registro nacional Hebert Jos de Souza.10

A conferncia nacional organizada pela JUC em 1954 trar o ttulo O Estudante e a Questo Social , j a do ano seguinte tem um grande recuo tendo como tema o amor e a famlia, porm a partir de 1957 as angstias com o em torno social tornam-se majoritrias.

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Nessa altura do campeonato a JUC vai propor a tripla construo libertadora em As Diretivas Mnimas para um Ideal Histrico do Povo Brasileiro tendo como alicerces a luta contra o subdesenvolvimento; a luta contra a poltica egosta dos monoplios; e a ruptura dos laos coloniais com as metrpoles desenvolvidas. Tendo como principal objetivo ttico imediato a reforma agrria. Betinho foi um dos principais nome na feio deste documento. Betinho vai fundar em 1962 e ser o primeiro coordenador da Ao Popular (AP), uma organizao, j desvinculada Igreja Catlica mas que se constitui basicamente de militantes da JEC e da JUC que vai optar por uma poltica de preparao revolucionria, consistindo numa mobilizao do povo, na base de desenvolvimento de seus nveis de conscincia e organizao , firmando esta mobilizao numa luta contra a dupla dominao capitalista (internacional e nacional) e feudal. E como alternativa a isto, o texto base da fundao a AP tambm prope conduzir o processo de conscientizao atravs de uma crtica constante do sistema capitalista e da apresentao da perspectiva socialista11 A Ao Catlica Brasileira, assim como a juventude, vai tornando-se cada vez mais radical nas crticas e anlises das conjunturas histricas da poca. Se aproximando do Partido Comunista e da esquerda de um modo geral e distanciando-se cada vez mais da prpria hierarquia, o que posteriormente vai tornar-se um problema pra prpria existncia. A direita estremecida, com uma conjuntura extremamente desfavorvel tanto no nvel nacional, onde os movimentos marxistas ganham fora entre os jovens e os leigos; as ligas camponesas no Nordeste se expandem e ganham o cenrio nacional; e a crise econmica assola o pas, quanto no mbito internacional onde o exemplo mais prximo o da Revoluo Cubana (1959) onde um grupo de jovens revolucionrios coloca fim no domnio das oligarquias e na presena do imperialismo estadunidense. Na linha da educao forma-se em 1961 o Movimento de Educao de Base (MEB), que segundo sua secretria geral Marina Bandeira foi conseqncia da11

Ao Popular Documento Base dentro de Souza Lima, L. G. Evoluo Poltica dos Catlicos e da Igreja no Brasil

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experincia acumulada de tcnicas de trabalho em grupo, como o mtodo ver, julgar, agir da ACB no fim dos anos 50 e incio dos anos 60, e da influncia dos centros de cultura popular da Frana 12 O Movimento adotou uma linha educar para transformar com um numero grande de leigos engajados na participao poltica e chegando a atingir 50 dioceses espalhadas por todo o Brasil. O movimento foi originalmente pensado por D. Eugnio Sales, bispo de Natal que em 1949 iniciou uma experincia de educao radiofnica a exemplo do Padre Salcedo, da Colmbia. Em 1960, D. Jos Tvora, bispo de Aracaju, que junto com D. Hlder Cmara fundou a CNBB deu rumos ao movimento. Durante uma viagem de Jnio Quadros capital sergipana, D. Jos Tvora conseguiu do candidato presidncia uma promessa de que se eleito, financiaria um programa de educao popular. E por mais incrvel que parea, assim foi. Jnio foi eleito e em 21 de maro de 1961 assinou o acordo de financiamento do MEB. Mas o barco esta indo muito leste, digo, bombordo e quando isto acontece, podemos ter certeza que sanes viro e junto com elas homens montados em cavalos bem nutridos fazendo uso de instrumentos dolorosos ao corpo alheio e subversivo. A massa catlica progrediu sob o aspecto poltico em pouco mais de dez anos o que no havia progredido desde o incio do sculo, mas a hierarquia no acompanhou o progresso que os leigos fizeram. O episcopado brasileiro, de predominncia conservadora comea a fazer presso sobre os movimentos oriundos da ACB, que por sua vez, no cedem um centmetro sequer. O tema da Conferncia Nacional da JUC de 1961 foi O Evangelho como Fonte da Revoluo Brasileira. Os jucistas13 descobrem o marxismo e percebem que no se trata propriamente da encarnao do diabo, mas de um mtodo de anlise da realidade e uma filosofia passvel de discusso e, at, incorporao parcial pelos cristos. nas palavras de Helena Salem.

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Entrevista cedida a Antnio Carlos Moura em 14 de junho de 1980 Termo utilizado para indivduo militante da JUC (Juventude Universitria Catlica).

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Ao contrrio da hierarquia a JUC passa a defender o ensino publico e gratuito, alm de incentivar outras foras de esquerda que comeam a ser formadas. E deste modo, no passaram ilesos... Em meados de 1962 a hierarquia representada pela Comisso Central da CNBB aperta o cerco sobre a liberdade de atuao da JUC, emitindo um Plano de Urgncia que tambm vai fazer um contraponto com a Revoluo Cubana no sentido de tentar exercer outra influncia, dessa vez sob uma lente mais conservadora. Este plano de urgncia prev avanos de mbito reformistas, no sentido de dar uma viso dominante para pensar os pobres, alm de desmascarar que estes reformistas do episcopado brasileiro, que so a maioria, temem mais o comunismo do que os prprios conservadores. Sendo no mximo socialdemocratas, os reformistas lutam contra, sobretudo, a marxizao da JUC. Deste modo a hierarquia age inteligentemente na diviso do movimento operrio, como o exemplo do Nordeste onde incentiva a criao de sindicatos rurais que vo existir paralelos e em oposio s Ligas Camponesas que para alguns especialistas eram, na poca, a expresso mais autntica do povo campons nordestino.

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T ficando muito rebelde, menino! Em 13 de maro de 1964, durante um comcio, o at ento presidente Joo Goulart anuncia um pacote com uma srie de reformas de base. Os conservadores ficam desnorteados como de praxe, reagem. Seis dias aps o anncio, no dia do Padroeiro da Famlia, So Jos, a cidade de So Paulo parou com uma marcha organizada pelo deputado Cunha Bueno e o padre irlands Patrick Peyton que contava com a ajuda do governador Ademar de Barros. A verso paulistana da Marcha da Famlia com Deus Pela Liberdade saiu da Praa da Repblica e rezou at a Catedral da S contando com a presena de quinhentas mil pessoas. Durante o trajeto foi ministrada uma missa por Patrick Peyton que inclusive tinha sido convidado a estar no Brasil a pedidos do Cardeal Jaime de Barros Cmara, do Rio de Janeiro. Como se j no bastasse o impacto dessa marcha, a segunda foi realizada no Estado da Guanabara, no dia 2 de abril como a presena de um milho de pessoas. Nesta mesma linha de posicionamento poltico a CNBB se ope ao Governo do Presidente Joo Goulart ao calar-se frente ao golpe militar e quando manifestava-se mais uma vezes posicionava-se de dentro dos palcios. Veja por exemplo um trecho da declarao da Comisso Central da CNBB em 2 de julho de 1964: Atendendo geral e angustiosa expectativa do povo brasileiro, que via a marcha acelerada do comunismo para a conquista do poder, as Foras Armadas acudiram em tempo, e evitaram se consumasse a implantao do regime bolchevista em nossa terra. Seria, alm do mais que se pode imaginar, a supresso das liberdades as mais sagradas, e, de modo especial da liberdade religiosa e da civil. Logo o movimento vitorioso da Revoluo, verificou-se uma sensao de alvio e de esperana, sobretudo, porque, em face do clima de insegurana e quase desespero em que se encontravam as diferentes classes sociais, a proteo divina se fez sentir de maneira sensvel e insofismvel. De uma a outra extremidade da ptria transborda dos coraes o mesmo sentimento de gratido a Deus, pelo xito incruento de uma revoluo armada. Ao rendermos graas a Deus, que atendeu a orao de milhes de20

brasileiros e nos livrou do perigo comunista, agradecemos aos militares que com grave risco de suas vidas, se levantaram em nome dos supremos interesses da nao, e gratos somos a quantos concorreram para libert-la do abismo iminente.14 O documento fala por si s, nossos bispos, no mais profundo amor a ptria, sadam os militares que salvaram nosso pas das garras do comunismo. Este sentimento, porm, no demoraria muito a se esvair e os bispos comearem a se arrepender de ter apoiado o golpe ao sentirem na prpria pele, literalmente, o que era a ditadura militar brasileira.

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Trecho retirado do documento da Comisso Central da CNBB, cerca de 20 bispos, que se reuniram em no Rio de Janeiro, e esta parte fora escrita pelo bispo de Diamantina D. Sigaud.

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Anos de chumbos, para religiosos tambm! Dois dias aps o golpe, os militares cercaram o seminrio menor dos dominicanos em Juiz de Fora, Minas Gerais, invadiram e fizeram uma busca. A represso prendeu milhares de jucistas e militantes progressistas catlicos. A CNBB, estncia mxima da hierarquia eclesistica brasileira lavou as mos. Salvo alguns membros da prpria hierarquia como D. Cndido Padin, D. Jos Maria Pires, e como sempre, D. Hlder Cmara que teve sua casa em Recife invadida pelos militares, os outros jucistas progressistas sofreram as conseqncias por trazer nas mos o Anel de Tucum15 Da JAC at a JUC, todas as cinco unies desfizeram-se dada a forte represso e a dificuldade de resistncia, a recomendao dos lderes era para que buscassem movimentos dissociados da Igreja ou lutassem individualmente com seus grupos. Segundo Helena Salem Apenas a JOC (muito pouco), a Ao Catlica Rural (ACR) e a Ao Catlica Operria (ACO) sobreviveram em alguns estados, mas extremamente dbeis. Quanto AP, distanciou-se progressivamente de suas origens crists, tornando-se uma organizao marxista-leninista. D. Marcelo Carvalheira em entrevista realizada Antnio Carlos Moura em 19 de maio de 1980 diz que os movimentos da Ao Catlica estavam muito ligados com as formas de organizao europias, isto , preocupava-se em formar lderes ao invs de atuar de uma forma mais coletiva e mais efetiva sob o ponto de vista das massas. Mesmo assim Marcelo, como a maioria dos grandes nomes da ala mais progressista da hierarquia reconhece que as entidades da Ao Catlica Brasileira foram crucias para a formao da Nova Teologia. Segundo D. Pel, arcebispo de Joo Pessoa, a Ao Catlica foi a preparao do terreno. E depois ela praticamente desapareceu, porque cumpriu a sua misso.

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O anel de Tucum um anel feito com a madeira de uma palmeira da Amaznia. Este anel mostra o comprometimento de quem o carrega para com as causas populares. Ligado aos telogos libertrios e aos membros das pastorais e comunidades de base, o anel um smbolo catlico de responsabilidade com a populao oprimida.

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Para estes telogos e militantes a Ao Catlica tinha formao que no era a ideal para trabalhar questes populares, embora tenha sido deste jeito que ela principiou questes importantssimas. A Ao Catlica e seus movimentos juvenis embora lidassem com a misria e pobreza sob uma ptica inovadora, sendo um problema dos homens e entre os homens deveria ser resolvido, no se aliava de fato com as camadas populares para agir, constituindo-se movimentos formados por elementos oriundos da pequena-burguesia, de uma certa elite. [...] Procurava-se o povo, mas ele ainda estava distante.16 A grande inovao, em linhas gerais, o que discutir, e no o modo de discutir. Pois nesse aspecto (o mtodo de reflexo) os movimentos da ACB se assemelham com a Igreja Tradicional: ambos pensados do alto das camadas sociais privilegiadas. Esta viso nos traz o outro lado da questo para no idealizarmos estes movimentos, contudo no devemos tirar seus mritos pelos seus empenhos. A ACB abriu a porteira para a participao poltica da comunidade catlica, e mostrou a importncia deste ato. Estes movimentos trouxeram tona a concepo de que ser um catlico se envolver politicamente com a realidade que o cerca. A poltica da Igreja no seria mais de uma forma dissimulada, como dantes, e ainda sob a idia de neutralidade com o respaldo do poder, a poltica agora proposta pela ACB est escancarada na militncia da sua juventude com seus movimentos, tomando partido do pobre e posicionando-se em momentos mpares ao lado dos oprimidos. Sem dvida um guinada significativa do ponto de vista da atuao dos catlicos diante da estruturas de poder que resultaram tais conjunturas histricas. A presena de ex-militantes da ACB nos movimentos posteriores da Teologia da Libertao com base nas pastorais populares significativa. E no devemos

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Helena Salem, Igreja dos Oprimidos.

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ignorar a coincidncia dos atores, uma vez que estes trouxeram experincias da ACB para a prtica das CEBs e outros grupos vinculados nova teologia. Portanto, faamos um apanhado geral para no perdemos o fio da meada: A hierarquia aprova, em uma declarao conservadora, o golpe realizado pelos militares. Ao mesmo tempo se empenha em diluir os movimentos catlicos que se posicionem diferentemente da elite, chamando-os de subversivos. Os movimentos da Ao Catlica Brasileira, isto , JAC; JEC; JIC; JOC; JUC so dissolvidos por terem ido longe demais, o que significa discutir poltica e se posicionar em favor dos pobres e oprimidos, tal postura atribua-se aos comunistas. E como sabemos comunismo para a Igreja Catlica o grande pecado da sociedade, a serpente cuja Nossa Senhora das Graas se empenha esmagar com os ps. Temos ento uma hierarquia voltada para a elite, que legitima o autoritarismo o Estado brasileiro. Uma hierarquia que pensa o dever do catlico como ato poltico subliminar, isto , um retrocesso daquele avano que tivemos com os movimentos da ACB, que acreditavam na ao poltica escancarada, clara como uma militncia. No, a Hierarquia da Recesso, nome pelo qual pretendo chamar o grupo da Comisso Central da CNBB neste perodo prximo ao golpe, propunha uma omisso do catlico frente realidade da Amrica Latina e tambm do Brasil. Este momento foi um retrocesso na relao Igreja e populao, onde a instituio religiosa levanta a poita que outrora a ancorava na realidade brasileira, deixando sua tripulao deriva diante das novas atrocidades que o recente Estado brasileiro comete contra os direitos humanos.

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O feitio virou contra o... Mas no tardou para a situao sofrer outra reviravolta, para que bispos e membros da hierarquia comearem a se opor ao processo poltico pelo qual o pas estava passando. Esta mudana de conscincia por parte do clero brasileiro atribui-se a alguns fatores: Primeiramente o fato de que os prprios bispos estavam sofrendo com a opresso da ditadura militar brasileira, segundo Helena Salen pela primeira vez em sua histria recente (pelo menos desde a Repblica) a Igreja teve elementos seus presos e torturados, at mortos. Conventos e Igrejas foram invadidos, freiras violadas na tortura [...] E nem membros do alto escalo da Igreja catlica passaram impunemente pelas mos da frvola ditadura, o caso do monsenhor D. Marcelo Carvalheira que foi preso e interrogado tendo que ficar ao lado de religiosos como Frei Tito e Frei Betto durante sua passagem de 52 dias no crcere. Outro fator que devemos levar em considerao para tentarmos entender esta guinada poltica dada pelo clero tupiniquim o fato de que a misria e a desigualdade na qual se encontrava a sociedade brasileira impressionava os bispos que em uma grande parte eram oriundos da Europa. Isso fica muito claro quando Padre Luciano, italiano que exercia sua funo na cidade de Vitria, Esprito Santo diz Minha conscincia social e poltica era zero quando deixei a Itlia. No Brasil, fui batizado de novo. Batizado no choque, no sofrimento mesmo. Para vir, eu mandei fazer na Sua o melhor clice e o melhor brevirio. E tudo sumiu, roubaram tudo. Na hora da missa, o povo comia as hstias. As crianas bebiam o vinho da capela. Foi assim. E como Padre Luciano, inmeros outros padres tambm foram batizados novamente pelo vis do choque, do impacto com uma realidade que noutros pases17, embora capitalistas, no se encontrava de uma maneira to desumana e generalizada. [...] A tragdia econmica, social do povo foi

Por sinal, a presena de estrangeiros no episcopado brasileiro em meado do sculo XX foi significativa, em 1981 eles representavam cerca de 50% do clero brasileiro, estatstica esta que passava para 90% quando se tratava do Estado da Amaznia e caa para 49% no Estado de So Paulo.

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crescendo aos olhos da gente [...] Acredito que o impacto provocado dentro da esfera eclesistica pela dureza, a crueldade da situao scio-econmica do povo brasileiro importou muito nessa relao Igreja-povo crueldade este potencializada pela poltica de concentrao de renda, arrocho salarial e, sobretudo da entrada das grandes multinacionais no campo e na cidade resultando em milhares de pessoas desprovidas de terra. E ento com o recrudescimento, o agravamento da situao, a misria crescente vai entrando pelas portas do bispo, do padre, da freira. A Igreja se sentiu invadida pelo problema scio-econmico, ferida. Porque, afinal de contas, seus fiis no so outros que aqueles miserveis, marginalizados, o povo que a est. 18 A misria estava escancarada na realidade de uma forma que nem mesmo os mais conservadores membros da hierarquia conseguiriam sofism-la. Deste modo, a grande parte do clero brasileiro, os reformistas, comea a ter atitudes mais prximas daqueles que tiveram suas opinies latentes em 1964, os progressistas. O posicionamento dos reformistas dbio, ora est junto com os conservadores, ora com os progressistas. Eles so a maioria esmagadora (o que muito importante em um conselho que decide as vertentes que toma a Igreja no Brasil.), mas no tem um posicionamento poltico muito dogmtico ideologicamente, dando-os a possibilidade de estar ao lado do poder seja em que lado que este esteja. Eles tm o que ns chamamos de flutuabilidade poltica. Isto , alternavam (ou alternam) seus posicionamentos conforme o andar da carruagem. No final dos anos sessenta e incio dos setenta, os reformistas (centro) j havia esquecido todo aquele medo pelo comunismo e comeavam se apresentar opositores ao governo militar. E isso nos fica bem claro quando percebemos na fala dos clrigos uma narrativa da qual no incio tnhamos uma orientao poltica e aps um choque com a realidade do poder no Brasil, acontece um batismo poltico fazendo com que eles mudem (no em termos de rapidez) da gua para o vinho.

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Trazemos nestas duas ultimas citaes as palavras de D. Lus Fernandes, bispo - auxiliar de Vitria, ES.

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Acho que todos ns nos formamos aqui, na prtica com o povo diz o italiano Padre Sergio que realizava um trabalho na periferia de Salvador junto aos padres Renzo e Paolo, este ltimo acrescenta Na Itlia eu estava mais prximo da democracia-crist, no tinha nenhuma abertura para o socialismo Diante da realidade econmica catastrfica em que se encontrava a populao brasileira, qualquer cristo com o mnimo de sensibilidade e abertura, o que fundamental segundo os valores religiosos, teria de se indignar. Julgando pelos valores de Jesus Cristo inadmissvel a existncia de uma estrutura de poder que resulte uma conjuntura histrica to cruel para o seu povo. A histria do povo de Deus, sempre teve seus momentos de aproximao e unio do povo para com o Divino em lutas polticas contra estruturas de poder desiguais, injustas e opressoras e aquelas no devem ser interpretadas como metforas de conquistas frente ao pecado, mas sim de libertaes sciohistricas, pois estas so fundamentais para salvao da alma crist. Sendo assim, os reformistas pegam pra si a questo social, formando ao lado dos progressistas um grupo majoritrio no clero brasileiro descontente com a situao poltica do pas. Os rumos comeam a mudar... Pensamos aqui que dois fatores so importantssimos para a aproximao da Igreja com o povo em termos pastorais:

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Reaproximao: protestantismo. O primeiro o avano do protestantismo junto sociedade brasileira. Max Weber escreve em sua clebre obra A tica protestante e o esprito capitalista que o protestantismo (principalmente o calvinismo) a religio que melhor se adqua s ambies do homem moderno capitalista. Que as religies tradicionalistas no se adequavam com as novas exigncias ticas do capitalismo. E o protestantismo conseguia trazer em seus valores o sumo da tica do capitalismo. Para exemplificarmos estes valores trazemos um pequeno fragmento de uma cartilha de Benjamin Franklin: Lembra-te que tempo dinheiro; aquele que com seu trabalho pode ganhar dez xelins19ao dia e vagabundeia metade do dia, ou fica deitado em seu quarto, no deve, mesmo que gaste apenas seis pence 20 para se divertir, contabilizar s essa despreza; na verdade gastou, ou melhor, jogou fora, cinco xelins a mais. [...] Lembra-te que dinheiro procriador por natureza e frtil. [...] quem mata uma porca prenhe destri sua prole at a milsima gerao. Quem estraga uma moeda de cinco xelins, assassina tudo o que com ela poderia ser produzido: pilhas inteiras de libras esterlinas. [...] Nada contribui mais para um jovem subir na vida do que pontualidade e retido em todos os seus negcios.21

Segundo Weber caractersticas protestantes como a Predestinao fizeram com que ele se adequasse to bem a este esprito ilustrado por Benjamin Franklin. Nesta concepo teolgica, o indivduo estaria predestinado a ter sua alma salva ou no no dia do Juzo Final, e s com o trabalho poderia mostrar, em terra, que ele foi escolhido por Deus para passar a Eternidade no Paraso. Nas palavras do prprio socilogo almo: [...] isso se deve razo histrica de que aquela disposio [o esprito capitalista] encontrou sua forma mais

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O xelim (shilling em ingls) uma unidade monetria que esteve em uso em muitos pases (particularmente ex-colnias britnicas). 20 Unidade monetria inferior ao xelim, o equivalente ao o que o centavo para o Real. 21 Extrado de Advice to a Young Tradesman (1748), Works, Ed Sparks, vol.II pag.87

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adequada na empresa capitalista moderna 22, e a empresa capitalista, por sua vez, encontrou nela sua fora motriz espiritual mais adequada23 Sendo assim, cr-se que devido alta capacidade do protestantismo parasitar no cerne moral das sociedades que seguem uma modernizao capitalista, ele cresceu ameaando a velha hegemonia catlica nos pas que ainda hoje a nao com o maior nmero de catlicos. E este crescimento no fora ignorado pela hierarquia da poca, pelo contrrio, havia certo temor de que esse movimento tivesse continuidade (como aconteceu). D. Estevo chega a dizer que o temor de perder as bases levou alguns bispos partirem para uma cruzada para reconquista das massas. Alm de as primeiras comunidades eclesiais de base, terem sido criadas em 1956, por D. Agnelo Rossi, em Barra do Pira, onde havia um grande nmero de protestantes.

Aditamento realizado por Max Weber na segunda edio do livro (1920). No existe na edio original publicada na revista Archiv fur Sozialwissenschaf (1904) com o ttulo original Die protestantische Ethik und der Geist ds Kapitalismus. 23 WEBER, Max. A tica protestante e o esprito do capitalismo Cia das Letras. So Paulo, 2004. O trecho entre chave e em negrito [] uma anotao que realizamos para contextualizar do que estava sendo dito no texto original.

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Reaproximao: popularizao pela ausncia Outro grande fato para a reaproximao do povo com a Igreja foi justamente o distanciamento entre os mesmos. Isto , o sculo XX no Brasil, para a Igreja Catlica tambm marcado pelo crise de vocaes que esvaziaram os seminrios, sobretudo de 1964 at 1974/75. Temos o alarmante dado que registra dficit clrigo em 20 mil padres em 1971, com uma entrada anual de 200 estrangeiros. A Igreja est enfraquecida em sua estrutura, parecido com o que ocorria no perodo do padroado e das revoltas messinicas da Repblica Velha. Quando h ausncia de clrigos e estudiosos da teologia por parte da Igreja, este papel fica com a populao e as lacunas na Igreja so preenchidas pelo povo. Para o socilogo Luiz Alberto Gomez de Souza, o mais importante que a Igreja foi ocupada pelo povo. Em ocorrncias semelhantes s do sculo anterior, embora naquelas a ausncia da Igreja tenha resultado em mitos populares mais religiosos, figuras individuais como Lampio, Antonio Conselheiro, Jos Maria de Contestado, entre outros. A grande ausncia eclesistica ps-golpe militar resultou na aproximao da Igreja com as massas. Helena Salem acrescenta [...] A Igreja em algumas reas (particularmente o Nordeste), viu-se constrangida a se apoiar, cada vez mais, no leigo para batismos, matrimnios, etc ampliando assim, inadvertidamente, a sua base. Por isso dizemos que o fator que reaproximou a Igreja do povo foi o fato de ambos se distanciaram no perodo de 1964-1974/75. E as conseqncias dessa reaproximao, assim como aconteceu no final sc. XIX e incio do XX, so enormes para os rumos que a Igreja vai tomar a partir da, junto com seu povo. O leigo participante traz necessariamente a realidade do mundo para dentro da Igreja. Em sntese o que a principio foi uma mera conseqncia logo tornase um agente renovador: o leigo o povo, geralmente vivendo uma realidade de opresso conclui Helena Salen

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Novos Rumos: Vaticano II e Medelln Voltemos nossos olhares para o cerne da hierarquia catlica, para tratarmos agora de dois eventos que foram essenciais para mudana de ares da Igreja Catlica Brasileira na segunda metade do sculo XX: O Conclio Vaticano II e a Segunda Conferncia Geral do Episcopado Latino Americano, em Medelln. Um conclio uma reunio de autoridades da hierarquia com a pretenso de debater questes religiosas, podendo s-las morais, de praxe religiosa, doutrina, etc. Um conclio ainda pode ser com toda a Igreja (ecumnico), nacional, plenrio, provincial, sendo este com o qual lidaremos um conclio ecumnico. Em 25 de dezembro de 1961 o Papa Joo XXIII24 convoca atravs de uma bula papal "Humanae salutis"25 a feio de um conclio para o ano seguinte: Aps ouvir o parecer de nossos irmos os Cardeais do S. I. R., com a autoridade de nosso Senhor Jesus Cristo, dos santos apstolos Pedro e Pablo, e nossa, publicamos, anunciamos e convocamos, para o prximo ano 1962, o sagrado Conclio ecumnico e universal Vaticano II, o qual celebrar-se- na Patriarcal Baslica Vaticana, em dias que fixar-se-o segundo a oportunidade que a divina Providncia se dignasse depararmos. Os dias foram fixados e de 11 de Outubro de 1962 a 8 de Dezembro de 1965 ocorreu o Conclio Vaticano II, sob o papado de Joo XXIII e Paulo VI26 . Na carta de Joo XXIII ele lista uma srie de argumentos de cunho pessoal que o levaram a tomar tal deciso. Fora o vigsimo primeiro conclio da Igreja Catlica.

nascido Angelo Giuseppe Roncalli (Sotto Il Monte, 25 de Novembro de 1881 Vaticano, 3 de Junho de 1963) foi Papa do dia 28 de outubro de 1958 at data da sua morte. Era mundialmente conhecido por "Papa Bom" ou "Papa da bondade" Santa S 25 O documento se encontra na ntegra, disponvel pela Igreja no seguinte endereo online (http://www.vatican.va/holy_father/john_xxiii/apost_constitutions/documents/hf_jxxiii_apc_19611225_humanae-salutis_po.html) 26 nascido Giovanni Battista Enrico Antonio Maria Montini (Concesio, 26 de setembro de 1897 Castelgandolfo, 6 de agosto de 1978), foi Papa do dia 21 de junho de 1963 at data da sua morte, em 6 de agosto de 1978. (Santa S) Giovanni Battisti, antes de assumir seu papado, auxiliou e contribuiu D. Hlder Cmara funda a CNBB.

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O momento era de fomentao social, a dcada de sessenta estava a comear e a Igreja ainda no tinha discutido de uma forma to ampla no sculo XX.27 Era tempo de discutir, nas palavras do prprio Papa: [...] os tempos estavam j maduros para oferecer Igreja catlica e ao mundo o novo dom de um Concilio ecumnico. Segundo resumos extra-oficiais do Vaticano II, seus assuntos abordados foram: y y y y y y y Abertura da Igreja aos tempos atuais Reforma da Liturgia Constituio da Igreja, alicerada na igual dignidade de todos os fiis. Revelao divina Liberdade religiosa Ecumenismo Apostolado dos leigos

Neste Conclio a Hierarquia Global, atravs de uma carta chamada Gaudium et Spes, finca seus ps na realidade do mundo. No mais como quem usufrui das injustias e desigualdades sem nenhuma indignao, mas pelo contrrio, afirmando que papel do cristo participar da realidade que o cerca pela atuao poltica. O Conclio deu o sinal verde para que os catlicos de vanguarda partissem, cada vez mais ousadamente, para um processo de renovao da Igreja., descreve Bresser Pereira E os renovadores do campo teolgico, moral, litrgico, organizacional so, freqentemente, tambm os renovadores no campo poltico. O que entendemos dessa segunda fala que na verdade os conservadores que estavam presentes no Conclio Vaticano II no imaginavam que as decises por eles tomadas no campo da catequese, presena da Igreja, diviso episcopal, isto , questes mais funcionais seriam to importante para

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O conclio ecumnico universal anterior fora o Vaticano I, que terminou em julho de1870.

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mudanas ideolgica profundas na atuao do clero brasileiro (no somente) junto nossa sociedade. Voltamos para uma situao muito prxima com a qual j trabalhamos, as medidas da Igreja no Conclio so deliberaes no mbito da relao leigoclero. E foram sempre no sentido de estimular a atuao e importncia do leigo dentro da Igreja, os conservadores no imaginavam o perigo que isto significa para a vulnerabilidade suas concepes elitistas. Para Helena Salem, os bispos no percebiam as conseqncias possveis de abrir a Igreja para um mundo profundamente injusto, cheio de misria e opresso, um mundo que precisava ser urgentemente transformado. O Vaticano II foi motor de toda esta mudana, foi quem sistematizou. Sempre houve na Igreja telogos, pastores e leigos que assumiram uma posio dialtica, em favor dos oprimidos, mas foi s a partir do Vaticano II que essa posio tornou-se oficial e as atitudes foram sendo sistematizadas. D. Jos Maria Pires insiste o Vaticano II deu uma nova imagem para a Igreja. No apenas uma Igreja institucional, hierrquica, que tem o Papa como chefe e os bispos na base. Mas uma Igreja que o povo de Deus. Dentro desse povo est o Papa, esto os bispos e frente desse povo est Jesus Cristo. Ento, sendo povo de Deus, claro que o social adquire uma dimenso muito mais relevante. O papel do episcopado brasileiro foi muito importante, tendo inclusive um reconhecimento nos veculos de comunicao catlicos globais. O episcopado no entanto, foi mais afetado pelo Conclio do que afetou: o episcopado brasileiro trouxe do conclio uma meditao bastante forte sobre converso da Igreja, despojamento, busca da pobreza, compromisso com os pobres, embora, sem mencionar ainda esses termos, que so posteriores. Este apontamento de D. Lus Fernandes fica claro no relato de D. Pel sobre o Conclio: O que fez com que eu me colocasse ao lado do povo foi o Vaticano II, isto , uma reflexo de Igreja mostrando para mim que a Igreja no antes de tudo uma reflexo estruturada dessa ou daquela maneira, Igreja muito mais do que isso, o povo de Deus.

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Mas para que mundo o Vaticano II tentou ajustar a doutrina catlica? O mundo Europeu, obviamente. Embora fosse um avano em relao s deliberaes anteriores da Igreja, esta ainda tinha (e tem) uma viso euro centrista na sua praxe. Isto , os problemas sociais nas quais ela se pautava para fazer deliberar eram problemas europeus, que como ns sabemos, em muito se diferenciam dos nossos principalmente em termos de abrangncia destas questes. ento que pela ordem do Papa Paulo VI acontece em Medelln, na Colmbia no perodo de 24 de agosto a 6 de setembro de 1968 a Segunda Conferncia Geral do Episcopado Latino-Americano, reunindo bispos de toda a Amrica Latina. O tema da Conferncia foi: A Igreja na presente transformao da Amrica Latina luz do Conclio Vaticano II o que j revela um profundo comprometimento dos bispos com a realidade scio-histrica que os cercava. Outro fato marcante da Conferncia que a estadia do Papa Paulo VI para a realizao do discurso inicial marcou a primeira vez em que um pontfice esteve em solo latino-americano. A idia da Conferncia nasceu nas inmeras reunies do CELAM(Conselho Episcopal Latino-Americano) durante o Conclio Vaticano II, na Itlia. A importncia desta conferncia se d pelo fato de pela primeira vez um evento oficial da Igreja Catlica assume a temtica da libertao e tambm a opo da Igreja para os pobres. Pode parecer pouco, mas este feito sem dvida o momento mais inovador para a Igreja Catlica na sua breve histria no Novo Mundo. Ainda mais, decide-se em Medelln que a criao de comunidades eclesiais de base so as tarefas de maior importncia a partir dali, como formas nicas de aproximao e integrao do povo com a Igreja. Baterei novamente em uma tecla que j foi frisada: no devemos pensar que tais eventos refletem uma hierarquia progressista, pelo contrrio, o que acontece que uma minoria que j havia optado pelos pobres vinha, h certo tempo como j vimos, convencendo e atraindo para seu lado os membros

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reformistas que podemos chamar de centro. Acuando em um canto esquecido os setores mais conservadores da Igreja. Isto se torna importante de relembrar por que ser exatamente por este motivo que ser difcil cumprir decises tomadas na Conferncia de Medelln e at de Puebla, como veremos mais a frente. A direita da hierarquia era minoria mas a minoria da direita em certo momentos muito mais poderosa do que a esmagadora maioria da esquerda, por motivos econmico e de infiltrao na mquina do Estado. O ambiente no mais s armado na clandestinidade, agora a Igreja, enquanto instituio, assumiu a posio que anos antes diluiu em sangue ao lado dos militares quando invadiu o seminrio em Juiz de Fora, quando determinou o fechamento dos movimentos da ACB, quando marchou na forma de famlia, em Deus, pela liberdade. Liberdade esta que se conquistou a ferro e fogo. Medelln um passo largo na popularizao da Igreja latino americana. No somente um sinal verde, mas uma proposio de avano, voltar-se para a base, encarnar a tragdia do oprimido. De Medelln Puebla o caminho foi trilhado pela intensificao das contradies do governo militar. E por sua vez, a Igreja se posicionando e alimentando as bases com propostas de reflexo e metodologia crtica, por meio das pastorais. Se pudermos entender Medellin como culminncia de um processo de trabalho organizado pelo Celam28, trabalho este que s foi possvel devido a uma organizao do episcopado na Amrica Latina por ambies em comum. Este trabalho incentivara o conhecimento da realidade latino-americana, e realidade religiosa, poltica, econmica, social, e sobre outros aspectos que se entende envolver quando se pensa no conceito de libertao. Atravs de numerosas pesquisas que foram muito importantes para definies estratgicas realizadas em Medelln no campo da atuao evanglica o Celam28

Conselho Episcopal Latino-Americano entidade da Igreja Catlica fundada em 1955, a mando do Bispo Pio XII e a pedido dos bispos latino-americano. Rene 22 conferncias do Mxico Argentina, entre elas, a CNBB. o rgo da hierarquia que organiza as Conferncias do Episcopado LatinoAmericano, sendo a primeira em 1955, no Rio de Janeiro e a ltima em 2007, em Aparecida do Norte.

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estimulou a reflexo acerca da realidade Latino americana, e de forma muito competente quantificou tais estudos de modo que ficasse palpvel para os bispos de Medelln. Segundo a historiadora Zilda Grcoli Iokoi em referncia a um depoimento de D. Cndido Padim, este documento-base fruto da reunio dos estudos realizados para a conferncia destacou as carncias socioeconmicas presentes, assim como a falta de meios de evangelizao para uma populao que se expandia. Enfatizou as injustias estruturais em relao pessoa e ausncia de respeito aos direitos humanos, sendo esse considerado o ponto fundamental do encontro. A nfase na questo da violncia referia-se diretamente ao das foras da represso econmicas e polticas(...) Medelln aconteceu em dezesseis frentes de trabalho que trabalharam em torno de trs questes da Igreja: a) promoo humana; b) vivncia e aprofundamento da f; c) estruturas da Igreja. Cada comisso deveria redigir um texto abordando a realidade, o julgar da realidade luz do Evangelho e uma proposta para ao da Igreja de interferncia na realidade, com o teor de transformao. No documento Justia e Paz que fora concludo por Gustavo Gutierrez, D. Hlder Cmara e Jos Gremillion fica claro o apego da conferncia. Nele considerava-se a violncia uma atitude fora dos princpios cristos e que os responsveis por tais violncias ficariam de fora do Reino de Deus. A partir de ento, as conferncias nacionais comearam a dar cada vez mais nfase no conhecimento da realidade local, fazendo com que este ato de reflexo crtica seja fundamental na base sedimentada pelos leigos. No caso da CNBB, foi estimulada a pesquisa e promoo de um maior conhecimento acerca da realidade brasileira, procurando coordenar vrios setores pastorais, estimulando a reflexo sobre Medelln que apontava a necessidade da libertao em Cristo. Esta Libertao em Cristo proposta pelas pastorais no perodo ps-Medelln fora melhor teorizada pelo telogo peruano Gustavo Gutierrez e tambm pelo brasileiro Leonardo Boff, vejamos a concepo de Gutierrez:36

a) significado no mbito da prxis, no sentido das ambies das classes sociais englobadas pelos oprimidos que foram excludos do processo de modernizao poltica e cultura. b) libertao histrica, ao p do evangelho, povo tomando pra si o poder de definio da prpria histria. A prtica e habilidade de tear, progressiva e conscientemente, o destino comum do povo oprimido. Entendimento da libertao histrica como processo no qual deveria acontecer a busca o conhecimento, da extino dos preconceitos e dos vnculos arcaicos e modernos de dominao, nas palavras de Gutierrez uma permanente revoluo cultural rumo construo de um homem novo e de uma sociedade qualitativamente diferente (...) c) no nvel teolgico, para Zilda Grcoli Iokoi, a concepo de Gutierrez se faz entender pela superao do termo desenvolvimento e apropriar-se do termo libertao, entendido como a presena do Cristo histrico, que libertou o homem do pecado lutando contra as injustias e permitiu a possibilidade do homem de viver em comunho com Ele. Portanto, o termo libertao, para Gutierrez, mais amplo do que o termo desenvolvido, pois permite articular a histria humana com a histria sagrada e restabelecer o novo humanismo. Gutierrez vai entender que estes trs nveis da libertao so completamente simultneos e coexistem idiossincraticamente. O trabalho pastoral se mostra complexo e importante por trabalhar nestes trs nveis. neste sentido que ao passo que Medelln v consolidar-se um conceito que iria ser a principal diretriz da Igreja at pelo menos uma dcada depois (libertao), tambm comeam a serem reformulados outros conceitos importantssimos para a atuao da Igreja. Os conceitos enquanto formas abstratas de um conhecimento pastoral colado na ordinariedade do mundo real. Na ignorncia atribuem-se nomes realidade, no conhecimento esta realidade toma forma de conceitos. Sendo que os conceitos fazem da realidade objeto de transformao e os nomes37

capitalista.

Diferena

entre

crescimento

e

desenvolvimento, considerando este como superao econmica, social,

somente a contemplam. Da a importncia da reviso conceitual realizada por Gustavo Gutierrez e outros terico da Teologia da Libertao. Outro conceito a ser redefinido por Gutierrez o de pobreza, que carrega a noo de explorao, expropriao, e agora de ausncia de compromisso comunitrio e de solidariedade. Um cuidado que deve ser tomado de que a solidariedade da qual Gutierrez fala no seja confundida com a qual estamos acostumados a lidar cada vez mais, desde o incio da dcada de 90 com as chamadas responsabilidades sociais oriundas do chamado terceiro setor29. A solidariedade de Gutierrez tem muito que ver com a noo de comunidade, de coletivo, muito diferente da solidariedade privatista que substituiu o conceito de cidadania em uma atmosfera liberal na qual as ONGs so as grandes representantes dessa corrente solidria. Sendo assim, nota-se uma aproximao marxista de Gustavo Gutierrez, onde ele compreende que a luta contra as desigualdades e injustias passaram a ser fundamentais e a constituir a fora histrica do pobre nas palavras de Zilda Iokoi. Para no pensarmos que o marxismo est nas retinas dos leitores e no nas palavras dos autores, Gutierrez chega a dizer em sua clebre obra Teologia da Libertao S um quebra radical do presente estado de coisas, uma transformao profunda do sistema de propriedade, o acesso ao poder da classe explorada, uma revoluo social que rompa com tal dependncia, pode permitir o acesso a uma sociedade socialista (...) ele ainda d continuidade dizendo que a libertao seria (...) de tudo que limita ou impede ao homem a realizao de si mesmo, de tudo que trava o acesso sua liberdade ou ao exerccio dela O autor prope em sua obra uma revoluo social. Dizeres diablicos para os estados repressivos e conservadores que vigoravam na Amrica Latina, naquela poca. Mas a revoluo no deveria acontecer atravs de um molde

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Terceiro Setor o setor privado voltado para interesses pblicos, seja por qual for o motivo e inteno. Sendo o primeiro setor o Estado e o segundo o mercado.

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revolucionrio, o que ele chama de atitude mimtica, pois deste modo ela levaria a enganos sobre a prpria realidade e a lutar contra moinhos de vento. Aconteceria, nesta mmese, uma aceitao de um imperialismo com outra cara. Por isso, ser revolucionrio na Amrica Latina, para Gutierrez, seria algo novo, construdo a partir de experincias diferentes, mas no importadas. Em Medelln o plano fora traado, com a ajuda dos estudos feitos pelo Celam e das reflexes acerca da realidade latino americana, decide-se dar o enfoque para a base, os leigos, por meios de ferramentas eclesisticas, ou seja, dentro do prprio espao da Igreja. A sada foram as Comunidades Eclesiais de Base, incentivadas e estratgia importantssima para a aproximao da Igreja com o popular. As comunidades eram grupos, vinculados Igreja, que faziam a articulao coletiva da leitura bblica com a leitura da realidade. Atravs do mtodo do belga Mons. Cardjin ver, julgar, agir.

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Ver, Julgar, Agir: um mtodo libertrio Chegamos aqui no entendimento dos trs conceitos que se mostram fundamentais para a compreenso da prtica catlica na Teologia da Libertao. Esta rea da dissertao talvez possa parecer mais nebulosa devido a nossa no iniciao nos conceitos teolgicos, mas aqui vamos ns para mais uma aventura. Primeiramente, faamos uma breve separao: para a teologia, existem dois tipos de teologia da libertao, cada uma com suas respectivas eficcias: o sacramental e o scio-analtico. A vertente, se que podemos assim dizer, sacramental da teologia da libertao articula e trabalha no campo dos sobre o qual se manifesta a pobreza e a realidade. J o tipo scio-analtico trabalha sobre as estruturas subjacentes aos .30

Na articulao scio-analtica da Teologia da Libertao, articulao esta que fora utilizada em grande parte das CEBs, decide-se por conhecer as estruturas que resultaram a realidade, isto , os mecanismos sociais. Um exemplo concreto dessa articulao realizado pelos bispos de Puebla nas concluses da Conferncia Ao analisarmos mais a fundo tal situao, descobrimos que essa pobreza no etapa transitria e sim produto de situaes e estruturas econmicas, sociais e polticas, que do origem a este estado de misria Eis uma articulao scio-analtica, a compreenso (ou pelo menos, a tentativa) da estrutura que gera a realidade que nos cerca. Os irmos Boff chegam a dizer que o interesse principal da teologia da libertao criar uma ao de Igreja que ajude, efetivamente, os pobres. Eu acredito que o uso do verbo ajudar nesta sentena um equvoco, pois traz um apego assistencialista que j havia sido resolvido na tentativa oficial de abolio desta relao paternalista para com os pobres. At por que a relao mais apropriada seria a de mutualismo, no sentido que a Nova Igreja s

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BOFF, Clodovis; BOFF, Leonardo Da Libertaro; o teolgico das libertaes scio-histricas. Edit.Vozes, 2ed. 1980, Petrpolis.

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poderia se salvar atravs dos pobres e estes por sua vez, encontrariam na Igreja o caminho para sua plena libertao. A situao comea a ficar crtica, mas manejvel. Temos o conhecimento da realidade que nos cerca, tendo isto, com um pouco mais de esforo temos hipteses para sadas de tais realidades. Mas como articular isto para que se torne prtica religiosa? Chegamos a um ponto crucial e a um conceito mais crucial ainda: mediao os meios com que a teologia faz uso para realizar o que se prope (a prtica) Na articulao scio-analtica existem trs diversos tipos de mediao: a) mediao scio-analtica; b) mediao hermenutica; e por fim c) mediao prtico-pastoral. Vejamos mais profundamente seguindo as coordenadas dos irmos Boff. a) Mediao Scio-Analtica (ver) Conhecer sempre de modo crtico e dialtico a realidade para poder agir de modo estrutural em relao mesma em nome de nossa f catlica. Para Leonardo e Clodovis Boff existem trs nveis de conscincia da realidade que merecem ser citados, cada qual com suas conseqncias prticas. y fatos Empirismo: que pode ser entendido visualmente como assistencialismo; o indivduo assustado com

conscincia ingnua

a misria e a pobreza da sociedade, que por sinal o sentimento mnimo do que se pede a um catlico, tende a buscar o motivo de tais conjunturas. No consegue transcender o campo dos fatos, logo, aliena-se natureza dos mecanismos sociais. Pois estes ficam nas profundezas e a lgica do empirismo superficial e incapaz de ver alm do que a realidade mostra. E no campo do invisvel que esto normalmente as causas dessas conjunturas. Essa prtica leva a uma conscincia ingnua que por sua vez leva ao assistencialismo, dotado muitas vezes de boa vontade e f, mas no de conhecimento acerca da realidade. Aqui no basta boa vontade; precisa-se de lucidez. Algum pode lanar-se ao rio para salvar um amigo que est se afogando. Revela boa vontade, mais ainda, amor. Mas se no aprendeu a41

nadar, no o salva; pelo contrrio, morre junto com ele. Houve, portanto, amor, mas um amor pouco inteligente e totalmente ineficaz Esta prtica superficial, pois v os fatos como eles se mostram, nada alm. De longe, no a melhor forma de ajudar os necessitados na medida em que o resultado uma ao rala e de pouco alcance. y conjuntura Funcionalismo: deste modo se entende conscincia crtica reformismo; no funcionalismo a anlise

se d na posio visualizao dos fatos interligados, formando uma conjuntura. Entende-se a sociedade como um corpo, na qual existem funes que devem trabalhar organicamente para que haja uma harmonia social. Nota-se uma conscincia crtica, pois se d conta da inter-relao entre os organismos e as instituies. A funo social da Igreja rezar, da escola ensinar, do mdico curar a dor, do trabalhador trabalhar, do empresrio, sem dvida, garantir o lucro; do Estado gerir o bem comum; do sindicato lutar pelos direitos do trabalhador; e por a em diante. Compreende-se que se tudo estiver funcionando bem, os problemas inexistem. Da o nome de funcionalismo. A partir desta viso, prope-se reformas, pois se acredita que a questo conjuntural. Salvando as conjunturas, salva-se a estrutura. Engano. No funcionalismo, embora o avano do empirismo seja grande, no se compreende qual a questo principal. Pois no se consegue ainda enxergar a mquina invisvel, se h um problema na educao pensa-se que ao responsvel o professor, ou a escola em segunda estncia, mas no o organismo educacional, a demanda da sociedade para este segmento. No se percebe que a harmonia das coisas configuradas como tal caminha, por questes estruturais gerando a desarmonia. O desenvolvimento (que a harmonia capitalista) acontece custa do trabalhador e volta-se contra ele, pois aumenta a lacuna entre o pobre e o rico. O funcionalismo com seu apelo desenvolvimentista e progressista31 no consegue articular frente aos seus ideais, a sociedade sobrevivendo de modo harmnico nas relaes sociais. No consegue relaes humanamente31

Aqui entende-se o progressismo como culto ao fetiche do progresso econmico capitalista.

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admissveis e tolerveis na medida da justia e participao. A modernidade exige da sociedade uma taxa de crueldade que paga pelo povo. E por um motivo bvio, pelo menos para os marxistas, estas questes no conseguem ser resolvidas atravs da anlise funcionalista, por que necessita de outra abordagem. A compreenso de que o todo no a soma das partes, e sim organizao x das somas das partes. Com as mesmas peas, pode-se montar o maquinrio de diversos relgios diferentes. A anlise conjuntural descarta a verdadeira questo da estrutura, enquanto a anlise estrutural engloba todas as questes da conjuntura. O sistema social, como sistema, e no em suas conjunturas, se encontra envenenado; no est apenas enfermo, est j condenado. y estrutura Estruturalismo-dialtico: se d da seguinte forma conscincia crtica libertao; postura analtica que no se

contenta em ver os fatos, e nem somente compreend-los como conjunturas interligadas, estas so pontas de geleiras submersas. Desce profundamente na anlise para entender a estrutura global na qual se organiza nossa sociedade de moldes capitalistas. Dizemos estruturalismo porque a anlise est no enfoque da estrutura que subjaz s conjunturas e os fatos concretos. E ainda mais, estruturalismo dialtico por que entre os sujeitos da sociedade reside uma interao difcil e litigiosa na medida em que os interesses no convergem. No jogo destas foras que se estende a manuteno desse tipo de sociedade, tendo evoluo ou no. A conscincia que capta estas foras chamada de crtica radical. A palavra radical causa calafrios em grande parte da populao, ns sabemos, mas aqui ela no adquire o significado de ser emocionalmente polarizada, mas sim de ir at o cerne da questo. Deste modo a terapia da anlise estruturalista dialtica no a pratica do reformismo, mas sim da revoluo.

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Para exemplificar a leitura da realidade pela articulao estruturalista e dialtica vejamos um texto escrito pelo Papa Paulo VI em 1967, na Encclica Populorum Progressio, isto , Progresso dos Povos. Vivenciamos um sistema que considera o lucro como motor essencial do progresso econmico, a concorrncia como lei suprema da economia, a propriedade privada dos bens de produo como direito absoluto, sem limite nem obrigaes sociais correspondentes. Evidentemente, face s conjunturas histricas mudadas, o capitalismo mudou suas regras do jogo, mas nunca o seu jogo, vale dizer, seu sistema. A contradio principal deste nefasto sistema. Momento de rara felicidade e dialtica na histria dos discursos papais. Segundo Clodovis Boff com essa leitura dialtica postula-se uma nova forma de organizar toda a sociedade, sob outras bases; no mais a partir do capital em mos de alguns, mas a partir do trabalho de todos, com a participao de todos nos meios e bens de produo e nos meios de poder; fala-se da libertao. Neste sentido, a teologia da libertao faz uso destas leituras para ver a realidade social, a crtico-radical e dialtico-estruturalista. Leonardo Boff conclui esta anlise que faz ver os mecanismos permanentes, produtores de pobreza e marginalizao.

b) Mediao Hermenutica (julgar) Pode-se entender por hermenutica a tcnica ou cincia da interpretao de textos no mais possveis de compreender imediatamente pelo homem de hoje. Como interpretar escrituras datadas de dois mil anos, se a mentalidade mudou que dir as palavras que ganharam novos sentidos. Da a necessidade de uma interpretao, isto , uma ponte. Falamos ento em mediao hermenutica. Com esta prtica, elaboram-se critrios teolgicos para ler as escrituras scioanalticas, isto , a realidade. Deste modo a realidade e suas situaes44

paradoxais se tornam passiveis de apropriao teolgica virando matria religiosa. Aqui no basta a razo, entra a f: O que Deus nos tem a dizer com os problemas sociais captados adequadamente pela razo cientfica? Articula-se a partir da o que sagrado com o que racionalista e analtico. A f vai ver na realidade, e dizemos aqui como f esta postura hermenutica de interpretao da realidade a luz das Escrituras, a presena ou ausncia de Deus nas situaes causadas pelo homem, no mais nas coisas do sagrado, mas sim nas realidades sociais. E ainda mais, vemos na realidade a resposta ao Seu desgnio salvfico ou negao dele, onde a anlise social diz pobreza estrutural, a f vai dizer pecado estrutural; onde a anlise diz acumulao privada de capital, a f vai dizer pecado do egosmo, sem jamais banalizar ou naturalizar qualquer um dos dois tipos de interpretao. De modo conciso, pensa-se que o papel da teologia se realiza em trs nveis: I. Discernir o valor histrico salvfico da situao; tendo sempre em mente categorias de f como Reino de Deus, salvao, graa, pecado, etc. se a sociedade caminha ou se orienta a partir dos desgnios de Deus. Podemos chamar de momento proftico. II. Fazer uma leitura crtico-libertadora da prpria tradio da f perguntar at que ponto a compreenso do Reino de Deus, salvao, graa, pecado, etc. no acaba, sem querer, por reforar ou legitimar aquilo que se quer superar: o fosso to profundo entre ricos e pobres por que afinal sabem que a f e a Igreja foram instrumentalizadas pelos poderosos. Por fim aqui, deve-se temer e evitar o bilingismo, que tenta fazer do discurso teolgico uma reta paralela a do discurso scioanaltico. O eixo da teologia da libertao justamente articular ambos para que possamos luz da Tradio a realidade em que se encontram os pobres da Amrica Latina. III. Por ultimo, mas, no menos importante, cabe a teologia dialogar criticamente com toda a prxis humana, e no somente a prtica catlica, na medida em que Deus negado ou afirmado sempre e em todo lugar onde negada ou afirmada a justia ou a igualdade. Por isso45

a teologia da libertao deve pender para o pluralismo e no se cercear sua libertao aos catlicos. Da a liberdade da teologia de poder dizer uma palavra sobre qualquer prtica ou convvio social. importante termos em mente que o iderio cristo no totalmente consumvel numa prtica poltica, nem pode reduzir-se a isto. Mas esta f, ajuda ao cristo a optar entre vrios tipos diversos de anlise da sociedade. Atravs de valores e paradigmas em comum. Como ajudou-nos a escolher um mtodo de anlise scio-analtico que melhor entenda os mecanismos produtores de misria, isto , desmascare a realidade. O iderio cristo tambm auxilia o cristo a apoiar ou se distanciar de movimentos histricos, que variam e aproximao com ideais evanglicos. Os irmos Boff vo alm tratando dos movimentos: percebemos hoje em dia que o iderio cristo mais afim com aquele socialista do que com aquele capitalista. Nossa leitura aqui que o iderio socialista, quando pleno e realizado, proporciona ao cristo viver os ideais humanitrios e divinos da sua f; o sistema capitalista tambm o permite (haja vista os sculos de cristianismo dentro da sociedade capitalista), mas com muitas contradies que poderiam ser superadas num outro sistema (que por sua vez tambm ter outras contradies, mas menores). c) A mediao prtico-pastoral (agir) Em nada adiantaria todos os avanos teolgicos e conceituais conquistados pela teologia da libertao se no houvesse uma transferncia para o campo do real. Diferentemente do outros dois campos anteriores (ver, julgar) este um campo totalmente diferente, cujas leis que o governam so diferentes, e com elas temos que nos adaptar. Atente-se de princpio as foras sociais para que no caiamos em certa ingenuidade voluntariosa. Reconhecemos estas com econmicas, polticas, ideolgicas, repressivas. O primeiro passo se situar em que instancia exercida a fora da f, no caso, da Igreja (econmica, poltica ou simblica). No campo social, embora importante, o papel da Igreja no determinante, como vimos, desde a Proclamao da Repblica. Restanos o campo simblico, na medida em que se configura como comunidade institucionalizada da f, neste campo46

seu

papel

importantssimo,

principalmente na Amrica Latina, onde tem um peso histrico sem igual. Quando o velho mundo j estava cansado da Igreja e revoltando-se (reformando-se) o novo mundo apenas comeava a conhec-la. Na sua instncia simblica a Igreja deve ser libertadora. Que em termos prticos significa tentar articular de modo dialtico sua palavra, sua catequese, sua liturgia, ao comunitria e intervenes na oficialidade no sentido da libertao. A f, segundo Leonardo Boff, possui uma inegvel dimenso libertadora que deve ser resgatada e mantida viva continuamente. Todavia, uma falha dos posicionamentos oficiais religiosos se sentir um apndice no organismo social, e deste modo achar que tem o direito de se fazer neutro, despolitizar-se frente a outros movimentos. A teologia da libertao tem mais um ganho neste sentido, pois entende que a Igreja pode e deve se articular com outras foras sociais que tambm buscam uma mudana qualitativa, no pelo fato de trabalhar tambm em outra esfera (sagrado) que a Igreja tenha que abdicar de apoiar ou criticar grupos laicos e trabalhar com ou contra eles. S dessa maneira, com essas articulaes a Igreja vai conseguir ter a eficcia que deseja. Porm nunca deve perder o foco, e lembrar-se de que ela tem um objeto diferente dos demais movimentos, isto , ela busca a plena libertao ou libertao integral que em suma quer dizer: Reino de Deus. Lembrar-se que sua diferena se d nesta questo, frente aos outros grupos que restringem libertao scio-analtica. Para os irmos Boff, isto vai alm, pois por isso que podemos notar uma relativa autonomia das comunidades eclesiais de base que, por causa da sua natureza de base, mais esto coladas aos problemas da libertao e mais urgentes se fazem as opes concretas e as opes bem definidas concluindo-se que a Igreja da Libertao faz uso em muitas vezes de prticas meramente reformistas. Estas medidas so apenas passos tticos e no metas estratgicas; devem apontar e ajudar na libertao; no se pode pretender ser livre e libertado a todo custo. A libertao fruto de um processo no qual todos devem participar e no o resultado de um golpe de vontade.47

Para Gutierrez, por exemplo, prtica seria o espao da confirmao da f em um Deus que liberta. E a luta pelo direito do pobre a ter direitos e a estes serem cumpridos.

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Puebla, uma dcada depois... Entendemos aqui o que significa, em linhas gerais, a libertao sob o ponto de vista da teologia. E como esta acontece atravs das trs mediaes (ver, julgar, agir) nas chamadas Comunidades Eclesiais de Base e tambm nas pastorais. Ambas carro-chefe das propostas tiradas da Conferncia de Medelln. Sendo assim, voltemos nossas atenes para o processo histrico da Teologia da Libertao: Uma ressalva que temos de fazer, que uma das importantes posturas destas pastorais era discutir a influncia dos movimentos sociais na luta poltica, na medida em que o medo dos progressistas catlicos era de que as prticas libertrias fossem acabar virando discurso ideologizado dos demagogos ou dos guerrilheiros, no caso brasileiro o PC do Brasil, com sua guerrilha no Araguaia (1973). Tal postura iria de encontro com a opo dialtica estruturalista da nova teologia, na medida em que ideologizar o movimento seria colocar em voga crenas falsas ou ilusrias, considerando-as, porm oriundas no dos interesses de uma classe dominante, mas da estrutura material do conjunto da sociedade como um todo tendo em mente o conceito de ideologia de Terry Eagleton. Se por um lado, a teologia da libertao encontrava a ideologia pouco dialtica de uma esquerda brasileira, do outro o desenvolvimentismo dos militares no conseguia mais resolver as questes de um contingente de pessoas nunca antes visto na histria deste pas 32. Alm dos gastos militares que subiram em propores absurdas na Amrica Latina dos anos sessenta devido a instaurao de estados totalitrios e extremamente militarizados, nota-se isto pelo crescimento do armamentismo na faixa de 100% entre 1962 e 1973. Ainda mais, na mesma medida em que a misria aumentou devido derrocada do milagre econmico brasileiro que serviu para aumentar a diferena econmica entre os patres e os empregados, os movimentos de oposio internos foram crescendo junto com movimentos que buscavam melhor compreender o processo poltico em que o

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Frase corriqueira de Luis Incio LULA da Silva, presidente do Brasil 2002-2010.

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Brasil se encontrava. Entre estes movimentos encontramos os de carter agrrio e campesino, principalmente nos estados da regio sul, e no estado de So Paulo e os de carter indigenista e ambientalista na regio da Amaznia Legal. A mdia, corrompida, propagava um amplo processo governista com o lema Brasil, ame-o ou deixe-o apoiando os militares que tinham como seus maiores inimigos as presses internas. Tais movimentos de esquerda passavam despercebidos noventa milhes em ao. O Brasil ainda intensifica seu processo de endividamento externo, com bancos internacionais e fundos monetrios (FMI, por exemplo) que financiavam obras faranicas como a Transamaznica, rodovia que cortava a maior floresta tropical do mundo. O contexto da poca no se limitava somente at as fronteiras nacionais, estava para alm do Oiapoque e tambm do Chu, os novos desafios energticos, a corrida armamentista e espacial a todo vapor, crise do petrleo, a produo geral de alimentos desequilibrada, enfim, entre outras questes globais. No incio da dcada de 70 os conservadores conseguem restituir um pouco de aquele poder que lhes fora roubado em Medelln, tendo, por sinal, muita eficcia. Articularam a III Conferncia Geral do Episcopado Latino-Americano, para o quanto antes fazer com que as decises progressistas de Medelln se tornem ultrapassadas e fosse refutada. As discusses no davam prosseguimento prtico e o Celam teve dificuldade para realizar esta conferncia devido a heterogeneidade de discurso, tanto por parte da esquerda como da direita. O documento base teve sua data postergada vrias vezes e a indefinio ideolgica da conferncia seguiu at esta ter incio na cidade de Puebla, no Mxico. Tais problemas e complicaes eram causados por discordncias entre as alas da igreja, novas deliberaes, mudanas papais, influncias maiores, etc. Os documentos comeam as ser preparados em 1977, dois documentos foram apresentados aos bispos da Amrica Latina, estes de orientao bastante conservadora que apresentavam srias crticas Conferncia de Medellin e50

que por sua vez tambm foi bastante criticado pela comunidade catlica. Chamavam-se Consulta e Trabalho. Sendo que o primeiro era o mais polmico. A CNBB em resposta manda outro documento assinado pelo seu presidente D. Alusio Lorscheider Subsdios para Puebla. Neste documento procurava-se ampliar a participao popular em Puebla, prximo ao que j acontecia nas organizaes da hierarquia aqui no Brasil. Articular a conferncia com a Conferncia da Igrejas Protestantes da Amrica Latina que tambm aconteciam em Puebla naquele mesmo ano, era uma das propostas ousadas para o clero conservador mais coerentes com os rumos que o episcopado brasileiro vinha tomando. A imprensa, em setembro de 1978, tambm divulgou a proposta conservadora de fazer uma conferncia episcopal s para bispos, a frase desta proposta era o que os sacerdotes e leigos devem fazer rezar, ns bispos quem devemos discutir. E fez forte campanha contra a proposta reacionria. Com uma campanha bem estruturada, comparando nmeros de leigos com nmero de vagas para leigos dispostas na conferncia, e assim por diante. Convite para dez leigos em um universo de 280 milhes, e dessa forma mobilizou a opinio pblica em torno desta questo. Em outubro o Papa cracoviano assume o Vaticano, e logo em seguida Joo Paulo II se mostra um apoiador da juventude e dos oprimidos. Com o recuo da ala conservadora, o Papa agiliza a conferncia e ainda vai ao Mxico para um discurso na sua abertura. O apoio popular imenso. A conferncia corre, a contragosto dos conservadores, com uma guinada progressista muito forte, em linhas gerais, recusando o poder e optando pelos pobres e pelos jovens. A grande diferena da de Medellin que a anterior abria uma voltil opo pelos pobres e na de Puebla no. No opo voltil, a opo radical, definitiva e pelos pobres. real, material. Isto , h um contato direto entre os pobres e a evangelizao no sentido de que os pobres so quem deveriam anunciar o Verbo Divino. P