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Intervenções PsicopedagógicasTRANSCRIPT
Intervenções Psicopedagógicas nas Diferentes Organizações:
Educação, Saúde e/ou Trabalho
Elizabete Marcondes de Mello Szana
Maio / 2008
!RESUMO
! Este artigo apresenta um projeto de acompanhamento psicopedagógico em grupo, numa
abordagem de articulação entre o contexto clínico e institucional, coordenado pela Profa. Dra.
Eloísa Quadros Fagali, do Núcleo Psicopedagógico Integração, realizado no ano de 2003.
O grupo é formado por pré-adolescentes, na faixa etária de 10 -11 anos, matriculados em
escolas estaduais no período da tarde e na Entidade APROCIMA-Associação Promocional do
Coração Imaculado de Maria, localizado no bairro de Perdizes - São Paulo - Capital, no período da
manhã, onde realizamos o nosso trabalho.
O atendimento psicopedagógico realizou-se na brinquedoteca do APROCIMA; uma hora
semanal para o grupo, estendendo-se por mais meia hora para uma necessidade de atendimento
individual.
O objetivo do nosso trabalho foi criar dentro do grupo um espaço de descontinuidade para que
eles pudessem elaborar as suas histórias, suas dificuldades e conflitos.
Na interlocução e na interação com o outro, a criança e/ou adolescente acaba por processar os
fatos que o afligem. Ao fazer um relato, o outro que o ouve e opina, permite aquele momento de
processar, de tornar pensável o ocorrido.
Quero chamar a atenção para a importância deste momento, por tratar-se de um processo de
elaboração que leva os pré-adolescentes a um desenvolvimento de sua crítica, à percepção de que
eles possuem um potencial que deve ser respeitado, à percepção de que “eles podem ser”, de que
“eles podem fazer” e de que “eles podem acreditar” neles mesmos, desenvolvendo um sentimento
de autoconfiança e auto-estima e, deste modo, ressignificar todo o seu processo de aprendizagem.
O indivíduo, ao desenvolver sua crítica, estará desenvolvendo também um poder de autoria de
pensamento, que o leva a uma autonomia e responsabilidade “por aquele fazer”. Para sentir-se
realmente responsável por seus atos, não pode perder o sentimento de crédito que já lhe foi
outorgado. Estas considerações são feitas devido à importância de se correlacionar o
estabelecimento de metas a ser alcançadas com o sentimento de autonomia do individuo. Se ele não
tiver metas a atingir não terá nunca a responsabilidade do fazer; não terá o sentimento de gratidão
de um ser autônomo; e, conseqüentemente, será um indivíduo que não se autoriza, e por não se
autorizar, não se respeita, advindo insatisfação, desmotivação e insegurança.
No grupo de pré-adolescentes é importante perceber aquele que grita por socorro, outro que
tem uma modalidade de aprendizagem hiperacomodatória, moldado e estereotipado nas suas ações
e comportamento, e outros, que, com seu vocabulário e conhecimento prévio reduzido, escondem-se
atrás da carteira num silêncio de segredo ou rebelam-se por não poder denunciar as suas
dificuldades de leitura e escrita.
Por este motivo, o indivíduo precisa de alguém que interaja com ele, tanto o adulto como os
participantes do grupo, que o ouçam, que o ajudem a desenvolver “o seu poder ser”, “o seu poder
fazer “, “o seu poder aprender”.
O grupo possui uma importância tão grande que as dinâmicas acabam por tornar-se tanto
meios que nos indicam os prováveis diagnósticos das dificuldades de aprendizagem, bem como os
próprios instrumentos de intervenções psicopedagógicas abarcando os contextos individual e
educacional, Família e Escola.
!Palavras-Chave: Sentimento de Pertença, Um espaço de descontinuidade, Processo de elaboração,
Criatividade-Intuição e Percepção, Sentimento de Crítica, Autonomia e Responsabilidade,
Autoconfiança e Auto-estima, Ressignificação do Processo de Aprendizagem.
!IMPORTÂNCIA DO GRUPO COMO INTERLOCUTOR
! Todos nós sabemos da importância de se ter o companheiro como interlocutor. Para pensar,
necessitamos diferenciar-nos, a criança ou o adolescente necessita de um espaço onde a experiência
ou o seu sofrimento possa elaborar-se ludicamente.
Num grupo há uma diversidade de contextos envolvidos e acredito que, quanto mais
heterogêneo o grupo, maior a complexidade e maior será a possibilidade de significar os fenômenos.
Para compreender aqueles fenômenos, não basta lidar apenas com as construções apoiadas no
pensamento lógico, uma vez que o homem possui diversas formas de processar o conhecimento.
Para tanto, o grupo de companheiros cumpre a função de perguntar, de escutar e de dar
opiniões. Só o fato de escutar promove uma descontinuidade para que algo se torne pensável,
possibilitando o espaço de elaboração, desenvolvendo o senso de crítica, que os levará à autoria de
pensamento.
Para que eles possam fazer suas representações e criações espontâneas, quer se fale de
expressões verbais ou não verbais, formam-se vínculos, assumem-se papéis e, através daquelas
relações interpessoais, o grupo será tão importante que, talvez, seja um dos caminhos mais
favoráveis capaz de possibilitar-lhes o resgate de suas potencialidades, permitindo elevar-lhes a
auto-estima e ressignificar o seu processo de aprendizagem.
!Por que as dinâmicas grupais, além de possibilidades de diagnóstico das dificuldades de
aprendizagem, acabam se tornando as próprias intervenções psicopedagógicas para aquelas
dificuldades?
! No acompanhamento psicopedagógico, todas as dinâmicas permitiam-me percebê-los nas suas
funções predominantes, suas modalidades de aprendizagem e outras referências, levando-me a
muitas descobertas, revelando-me camadas e mais outras do indivíduo num processo contínuo e
descontínuo de revelar/esconder, encobrir/descobrir.
A sensibilização e o relaxamento constituem um dos momentos muito importantes porque lhes
permitem trazer sensações e imagens, lembrando lugares, cores, perfumes ativando a função
perceptiva que os levará ao imaginário. Naquele momento, o psicopedagogo será o mediador e o
facilitador no processo de construção do conhecimento, permitindo que as dinâmicas se tornem
verdadeiras intervenções.
Para tanto, utiliza-se de recursos como desenho, argila, jogos dramáticos e outros que irão
permitir ao grupo expressar-se para a construção de suas próprias histórias, além de propiciar que
cada participante se coloque um no lugar do outro, e que possam entrar no mundo da diversidade,
permitindo-lhes associações, comparações, identificações, fazendo com que o grupo seja o próprio
interventor naquele processo.
!CONHECENDO NOSSO GRUPO
! Para preservar a privacidade do grupo chamaremos todos por nomes fictícios.
Gostaria, primeiramente, de falar das características de cada um deles, observadas durante um
ano de acompanhamento psicopedagógico; características estas que nos levam aos prováveis
diagnósticos das dificuldades de aprendizagem bem como as intervenções realizadas em grupo, e/ou
aos pares.
Beto e Geraldo entraram, na sala da brinquedoteca, mostrando-se meio resistentes à qualquer
dinâmica; Beto mexia em todos os brinquedos, mas, na verdade, não se interessava por nenhum.
Mostrava-se agressivo e muito agitado. Não conseguia ficar parado. A queixa da escola é a de um
aluno agressivo, indisciplinado e, provavelmente, hiperativo, não conseguindo ler e escrever.
Ronaldo e Fernando estavam sentados no chão esperando por Beto e Geraldo para iniciar a
dinâmica da sensibilização; Beto e Geraldo, percebendo talvez as regras obedecidas pelo outro par,
diminuíram o ritmo, sentaram-se também no chão, mas apesar de sentados, Beto e Geraldo
expressavam-se ainda com um corpo em movimento (sentados, mas em movimento); contudo, o
som da música suave fez com que eles relaxassem, sentindo-se pouco a pouco adequados e
pertencentes àquele grupo.
Naquela dinâmica eles fizeram uma pequena viagem a um parque com muitas árvores, ouvia-se
um riacho, e mais adiante, sentada num banco, encontraram uma pessoa conhecida... quem era
aquela pessoa? O objetivo desta dinâmica é perceber cada um deles, através de um desenho e de um
relato sobre o desenho, em que eles possam manifestar-se sobre o que viram e o que sentiram, quem
era aquela pessoa, e se conversaram ou não com ela, revelando-nos a quem dão maior ou menor
importância dentro de seus contextos familiar e/ou escolar e outros aspectos importantes
denunciadores de suas angústias e conflitos. Não caberá neste artigo mostrar o relato de cada um
deles, mas cumpre destacar o que aconteceu com Beto e Geraldo.
!Beto
! Ao fazer o seu desenho, Beto não desenhou nada sobre o que se passou na história contada,
mas, sim, um carro grande e disse que queria um carro igual aquele. Levantou-se correndo do chão,
pegou um velocípede da brinquedoteca e saiu para o pátio e, em seguida, quando percebeu que os
colegas permaneciam sentados para jogar o jogo da memória – alfabetização, voltou correndo e
começou a jogar com os demais, demonstrando vontade de jogar e de brincar.
De repente falou: - “ainda bem que você não pediu para ler e escrever”. Talvez estas palavras
demonstrassem a sua angústia e o seu medo de revelar sua impotência diante do fato de não saber
ler e escrever.
Os professores chamam Beto de hiperativo, mas não acredito em hiperatividade, mas num
possível TDA (Transtorno de Déficit de Atenção). Acredito que aquele comportamento
indisciplinado seja, talvez, a procura de uma Atenção, de um Olhar e de uma Escuta para suas
necessidades e conflitos. Quando Beto tinha seis anos, veio com os pais, do interior, para morar em
São Paulo. Agora, Beto tem dez anos e está na 3ª. série – sala de alfabetização e isto significa que
tem repetido os conteúdos por dois anos sem conseguir aprender a ler e escrever.
!Será que Beto, morando tanto tempo no interior, tinha conhecimento prévio e um vocabulário com
um conteúdo suficiente de significados para ser alfabetizado?
!Geraldo
! Geraldo fez um desenho rápido, usando muitas cores, sem definir espaços e foi o primeiro a
acabar. Desenhou um homem sentado; no momento de contar sobre o desenho mostrou-se bastante
dispersivo e disse que não conseguiu falar com o seu pai sentado no banco. Logo após, na hora do
jogo de memória, virava as peças, tentando trapacear, o que irritava profundamente os seus colegas;
somente Fernando mostrava-se mais tolerante e dizia: “- não adianta, você tem que perder, não é
sempre que você vai ganhar”.
No decorrer de outras sessões deu para notar que Geraldo tinha um comportamento sem limites,
o que vinha comprovar a queixa da escola - Geraldo tem dez anos, está alfabetizado, mas não
termina suas lições em sala de aula, não faz lições de casa, mente para os pais dizendo que não tem
lições. A mãe defende sempre o filho dizendo que a professora tem raiva dele.
Numa dinâmica feita aos pares em que Fernando fala muito do pai, Geraldo diz que com ele é o
contrário, ele não pode falar do pai, porque este nunca está presente.A modalidade de aprendizagem
hiperassimilatória/ hipoacomodatória predominante em Geraldo se caracteriza por um excesso de
subjetivização, com dificuldade de resignar-se às frustrações. Talvez a falta de limites seja um
pedido de socorro ao pai, socorro de paternagem que possa controlar aquelas situações?
!Quais as intervenções capazes de exercer controle sobre o seu comportamento sem limites?
!Fernando
! Ao contrário da situação vivida pelo Geraldo, o pai de Fernando é pai e mãe ao mesmo tempo,
porque Fernando perdeu a mãe quando tinha quatro anos. Quando o pai diz: “a vida de meu filho é
uma novela, ele se salvou por milagre, eu quase perdi ele também”, referindo-se às várias operações
que Fernando sofreu, nos faz acreditar que o pai, com medo de perder o filho, como perdeu a
mulher, acabou lhe ministrando uma educação rigorosamente preocupado com sua saúde,
restringindo a sua liberdade, ditando-lhe sempre comportamentos e regras.
Fernando tem dez anos e meio, está na quarta-série e alfabetizado, mas resiste a escrever e a
falar. A queixa da escola é que o Fernando, por ser muito tímido, calado, tem dificuldades de
expressão, tanto na linguagem escrita, como na oral, tem má dicção e por este motivo fala muito
baixo.
Fernando possui o desenvolvimento cognitivo preservado, mas nasceu sem audição, porque
tinha uma carne esponjosa nos ouvidos, fez operação também no céu da boca e nas amígdalas. Hoje
ouve e fala normalmente, apesar das dificuldades.
A preocupação exagerada do pai e o medo de perder também o filho provocou, ao contrário do
que ocorre com o colega Geraldo, um excesso de paternagem, conferindo ao filho uma modalidade
de aprendizagem hiperacomodatória e hipoassimilatória, modalidade esta, em que o indivíduo
desenvolve pouco contato com sua subjetividade e um comportamento imitativo, obedecendo,
muitas vezes a padrões estereotipados, o que impede o desenvolvimento de seu potencial criativo e
do senso de crítica.
Os desenhos de Fernando são geralmente figuras humanas estereotipadas, todos sem garganta
ou com a garganta escondida pela gola alta das camisetas. Mostra, talvez, através dos seus desenhos
sua área de conflito? Sua vida também é metódica e mantém uma rotina “todo fim de semana joga
futebol e come pastel”. Ao desenhar uma árvore, a copa, bem grande, encobre o tronco, sem a
junção copa/tronco, da mesma forma que desenha cabeça/corpo da figura humana, sem junção. Essa
forma da árvore revela toda uma energia contida a ser explorada, o que nos faz deduzir uma energia
também contida nele, Fernando, mostra-nos que sente a falta de maternagem, da não exploração de
sua subjetividade, o que se acentua com o excesso de zelo do pai, que não permite a exposição do
filho por medo de perdê-lo.
!Será que o estigma imposto pelo pai “sua vida é uma novela” passou para Fernando um sentimento
de impotência diante do inevitável? Como fazer para resgatar sua subjetividade e criatividade,
devolvendo-lhe sua autoconfiança e auto-estima?
!Ronaldo
! Ronaldo tem dez anos e, assim como o Beto, está na 3ª. série - sala de alfabetização. Não
consegue ler e escrever A escola se queixa que Ronaldo tem problemas de dicção e fala como uma
criança de três anos.
Mas antes de falar sobre Ronaldo e suas dificuldades de alfabetização, farei um breve relato do
que aconteceu na sessão subseqüente ao relato.
Ao levar a caixa lúdica, fiz com que andassem em círculo ao redor da caixa e ao bater palmas,
eles deveriam, cada um deles, escolher alguma coisa.
Ronaldo tirou da caixa a massinha colorida, Beto pegou a caixa com massa (argila), Fernando
pegou um livro (As viagens de Gulliver) e Geraldo, os blocos lógicos.
Já havia percebido que Ronaldo tinha um prazer especial em brincar sentado no chão com a
massinha colorida; o Beto sentou-se ao lado dele e ainda meio impaciente começou a mexer na
massa; Fernando começou a sua leitura, pegou papel sulfite e lápis de cor, lia e desenhava alguma
coisa, enquanto Geraldo interagia com os blocos lógicos.
!Será que no espaço do brincar, naquelas condições de confiança e relaxamento, encontrarão meios
de tornar a brincadeira uma atividade criativa tanto física como mental?
!
Winnicott nos diz que: “é no brincar e somente no brincar que o indivíduo, criança ou adulto, pode
ser criativo e utilizar sua personalidade integral; e é somente sendo criativo que o indivíduo
descobre o eu (self).” (WINNICOTT, 1975, p.80)
!O par Fernando - Geraldo
! Fernando desenhava um navio bem grande e alguém em cima perto de um mastro olhando o
mar afora; era a primeira vez que Fernando desenhava algo não estereotipado. Naquele momento
seu desenho sugeria alguém liberto, que tentava expressar a sua subjetividade.
Geraldo utilizou-se dos blocos lógicos e montou uma cabeça de palhaço. Enquanto Fernando
terminava o seu desenho, sentei-me perto de Geraldo e, orientando-o, procuramos elaborar e
escrever juntos algumas perguntas a serem feitas ao Fernando. “O que poderíamos perguntar a
alguém que vai viajar?” Geraldo pensou e escreveu: 1. Quem você levou para viajar com você? 2.
Para aonde vocês foram? 3. O que viram naquele lugar?
Acredito ser bastante adequada para um hiperassimilatório como o Geraldo este tipo de
intervenção, porque nesse processo, à medida que ele elabora, que ele organiza as perguntas
escrevendo-as, talvez encontre um ponto de equilíbrio nas suas assimilações; e quando, ao fazer as
perguntas, antecipa as respostas do colega, serve-lhe para uma futura troca de papéis, e o ajuda a
fazer novas acomodações.
Naquela dinâmica encontra meios de organizar um potencial que, até então sem limites, não o
fazia enxergar o quanto pode ser responsável ao cumprir o seu papel e vários outros. Todas estas
intervenções acabam se tornando verdadeiros jogos dramáticos de grande contribuição para o
desenvolvimento de sua autoconfiança, levando-o a uma mudança de modalidade de aprendizagem.
Fernando que possui uma modalidade de aprendizagem hiperacomodatória, ou oposta ao do
colega Geraldo, ao responder àquelas perguntas estará dando continuidade à exploração de sua
subjetividade e, ao interagir com o colega, poderá imaginar toda a viagem que fez naquele navio.
Deste modo, Fernando continuará a fugir de seus estereótipos, além de vivenciar o sentimento
de que é capaz de encarar e superar os desafios.
Chegou a vez de Fernando olhar a construção de Geraldo com os blocos lógicos. Pedi a
Fernando se ele queria fazer alguma coisa na construção de Geraldo, o que ele respondeu colocando
os olhos na cabeça do palhaço (dois círculos azuis). Geraldo continuou colocando mais uma peça
retangular (o tronco), dizendo “Agora é sua vez” o que ajudou a dupla na conscientização do
partilhar.
Só o fato de Geraldo permitir a presença do outro no seu trabalho já constitui um fator
significativo, porque ele percebe que o outro pode participar sem que sua mensagem seja alterada.
!O par Beto - Ronaldo
! Ronaldo exibia detalhes e minúcias de pezinhos e patinhas nos animais que moldava com sua
massinha colorida, mostrando sua criatividade e uma função predominantemente perceptiva, através
daqueles desenhos.
Beto trabalhava com a argila, fazendo mesas, cadeiras, e outros objetos.
Quando percebi que Beto precisava de ajuda, perguntei a ele se o Ronaldo podia ajudá-lo a
colocar os pés dos objetos, porque com a argila era difícil fazer as minúcias, o que Beto consentiu e
ainda perguntou: “Vamos fazer um concurso? Eu e Ronaldo, Fernando e Geraldo, Quem faz coisas
mais bonitas?”
Nas duas semanas seguintes, eles fizeram os trabalhos na argila e massinha. Deixamos em
exposição para serem votados pelas crianças de outra sala que não os conheciam.
As crianças com os papeizinhos na urna (caixa improvisada com abertura no centro) acabaram
elegendo o par Beto – Ronaldo pela maior criatividade em seus trabalhos.
Acredito que estas intervenções em que há o voto democrático contribuem para os que, sendo já
pré-adolescentes e não alfabetizados, percebam que possuem outras qualidades e, quando estas são
valorizadas por um público-alvo que não os conheça, merecem ainda maior crédito, o que contribui
para o desenvolvimento de sua auto-estima e autoconhecimento.
!Atendimento Beto - Ronaldo
! Desde o início de nosso trabalho, Beto e Ronaldo permaneciam mais meia hora na sala, para as
necessidades de atendimento nas dificuldades de alfabetização.
Ronaldo tinha muitas dificuldades na aquisição das habilidades lingüísticas, conseguia ler
algumas sílabas, mas não conseguia escrever.
Memória de curto prazo - Este aspecto foi observado porque Ronaldo reconhecia as sílabas na
leitura, mas na escrita tinha dificuldade de fazer o seqüenciamento das palavras, o que nos faz crer
numa memória de curto prazo. Vamos exemplificar com a palavra “bolo”.
Ronaldo reconhecia as duas sílabas que formam a palavra, mas, no momento de escrever, só se
lembrava da última sílaba e acabava iniciando a palavra com “lo” e o restante escrevia sílabas
repetidas “lomimi”, talvez porque estes exercícios acabavam por lhe causar fadiga auditiva.
O seu aspecto físico - musculatura grossa - dificultava-lhe os movimentos de girar. Sendo
encorpado e com locomoção desajeitada, andava de forma lenta e pesada.
Destacava-se também a sua grande criatividade e o seu desejo de realizar trabalhos artísticos.
Quando trabalhava com a massinha era capaz de modelar detalhes dos objetos e dos seres, o que nos
leva a crer numa possível compensação e desenvolvimento do lado direito do cérebro que privilegia
a criatividade, o talento para as artes, desenhos, etc.
A tia de Ronaldo, ao contar sobre sua “historia vitae”, confirmou a mesma dificuldade da mãe e
do irmão de Ronaldo na aquisição das habilidades lingüísticas.
Todas aquelas características observadas e ainda o fator hereditariedade levaram-me a crer
numa possível “dislexia”, o que fez com que eu o encaminhasse ao fonoaudiólogo e, deste modo,
junto com o acompanhamento psicopedagógico pudéssemos auxiliar Ronaldo a minimizar suas
dificuldades de aprendizagem.
Beto, no decorrer das dinâmicas, tendo adquirido um número de palavras de conteúdo
significativo para ele, conseguia aos poucos ler e escrever orações simples. Esta seria uma primeira
etapa a ser continuada, explorando primeiro um vocabulário significativo, através do brincar, da
concretude e manipulação de um material a ser explorado e visualizado em que ele pudesse associar
significante-significado.
Percebemos que os problemas de aprendizagem de Beto remetem-se tanto à dinâmica familiar
como a escolar. A escola e professores, não percebendo o contexto familiar de Beto, o seu
vocabulário reduzido e a falta de conhecimento prévio para ser alfabetizado, foram-lhe ministrando,
ano após ano, conteúdos repetitivos, gerando problemas de aprendizagem.
!CONSIDERAÇÕES FINAIS
Geraldo: Acredito que o grupo foi para Geraldo o próprio mediador no processo de ruptura com
a maternagem. No decorrer das dinâmicas, em que ele se via obrigado a se organizar para perguntar
e registrar as respostas de Fernando, foi-lhe revelado o outro lado, o das regras e limites. Se ele
quisesse continuar no grupo era importante obedecer àquelas regras. Naquela troca, principalmente
com o seu par Fernando, notamos que a sua ansiedade foi pouco a pouco dando lugar a um
relaxamento em que, sentado no chão, aprendeu, além de ouvir o outro, a respeitá-lo nas suas
respostas, mobilizando a sua curiosidade e crítica para o diferente. Na maioria das vezes, é no
próprio grupo que o hiperassimilatório como o Geraldo encontra a paternagem, ou seja, o controle
estabelecido pelo próprio grupo.
! Fernando: Por outro lado, Fernando, naquele brincar com o outro e na troca de papéis foi
trabalhando cada vez mais a sua subjetividade; quando desenha o navio e ele em cima, descobre-se
a si mesmo e mostra, talvez, uma disposição de “descobrir o mundo e tudo o que nele se inclui “.
Fernando, antes numa aprendizagem estereotipada, hiperacomodatória, tinha medo de encarar
os desafios, antes tímido e calado, mostra, no término do ano, um grande avanço no seu
desempenho, tanto escrito como oral, mostrando desembaraço e desenvoltura ao exteriorizar a
riqueza do seu mundo subjetivo, desenvolvendo cada vez mais a sua auto-estima e ressignificando o
seu processo de aprendizagem.
! Beto: Acredito na indisciplina e agressividade de Beto como sintoma diante das frustrações e
do tédio ao ver e ouvir os mesmos conteúdos repetitivos sem significado para ele. Todo aquele
tempo Beto imitou modelos, limitou-se à transcrição e reprodução de textos, incapaz de produzir
suas próprias idéias e pensamentos.
Quero aproveitar a oportunidade para fazer um breve relato de um caso de aluno semelhante ao
Beto, o Eurico, com a diferença de Eurico mostrar-se bonzinho, disciplinado, com uma postura
frágil e um forte sentimento de inadequação.
Trata-se de uma experiência que tive como professora alfabetizadora numa sala de alunos
repetentes. Muitos professores se queixavam de que suas classes eram um “caos” frente à minha, de
alunos bonzinhos como o Eurico. Eurico, desde o início, chamou-me a atenção por sua
fragilidade, o seu silêncio de, talvez, não querer mostrar a sua impotência diante de seu fracasso
escolar.
Nós, professores, muitas vezes, não percebemos que o caos existe, talvez até em grau maior nos
bonzinhos, em relação aos indisciplinados.
Nossa preocupação consiste no buscar o que os atormenta, e em colocar em crise o que
simplifica, pois existe crise, existe o caos dentro do que consideramos simples, fáceis e bonzinhos
de lidar. Há que se entender essa complexidade humana. Como diz MORIN: “Devemos ver também
que todo ser, mesmo aquele fechado na mais banal das vidas, constitui ele próprio um cosmo”.
(2001, p.57)
Como era difícil fazê-lo comunicar-se verbalmente, uma vez por semana, estabeleci uma
brincadeira em grupos em que ele pudesse comunicar-se através do não-verbal. Eurico pegou o lego
e produziu alguma coisa. Perguntei-lhe sobre o que ele havia construído e ele respondeu: “- Um
monte de casas.” -Ah, você quer dizer um prédio! E ele retrucou; “- Não sei o que é isso que
você falou!” A partir daquele momento, percebi que muitos de nossos alunos, como o Eurico e o
Beto não entendem o significado das palavras e não possuem ainda o conhecimento prévio para ser
alfabetizado.
Quero chamar a atenção para o fato de que no Brasil existe uma grande diversidade regional e
que a escola e professores devem, antes de mais nada, conhecê-los, sua origem e contextos
familiares, porque este conhecimento faz parte do processo de alfabetização.
No caso de Eurico como no de Beto e no de muitos outros, vão se queimando etapas do seu
desenvolvimento, que se não cumpridas, tornam-se defasadas e cada vez mais difícil de recuperá-
las.
Aos seis, sete anos, no início da alfabetização é importante conhecer o aluno, conhecer o seu
potencial que, somente bem trabalhado, poderá caminhar para as outras etapas naquele processo.
Para que os professores consigam fazer seus alunos comunicar-se, oralmente e por escrito,
utilizam-se de símbolos e estes, somente serão plenamente entendidos, se aliados significante –
significado.
O construtivismo existe como processo e estes alunos, na primeira etapa de aquisição de
conceitos, encontram-se, na verdade, no meio do processo.
Após a captação dos significados, necessitamos de técnicas, o ensino do bê-a-bá constitui uma
técnica de aquisição dos códigos da língua tanto escrita quanto oral, para que nossas metas e
objetivos, no processo de alfabetização, sejam plenamente satisfeitos tanto pelo aluno como pelo
professor.
Seja a cartilha, sejam métodos mistos, todos estes se constituem recursos ou técnicas e serão
muito importantes na medida em que caminham juntos no processo, e o aluno alcançará sua
plenitude quando, ao unir um “significante” ao seu “significado”, poderá, finalmente, ler e escrever.
Acredito ser esta a primeira meta a que se propõe ao aluno atingir.
Naturalmente quando o aluno elabora suas histórias, será importante que ele as leia e as escreva
corretamente, para que sinta a plenitude de reconhecer os códigos da língua e dizer a todos que já
sabe ler e escrever, além da alegria de poder ler em casa os rótulos e, na rua, as diversas placas.
O processo continua pela vida afora e, naquela construção do seu conhecimento, ele estará
explorando a sua subjetividade, a sua criatividade, desenvolvendo sua capacidade de crítica,
autonomia e responsabilidade. Gostaria também de alertar para o cuidado que se deve ter em
não estigmatizar os nossos alunos, uma vez que, muitas vezes, os educadores, por não terem o pleno
conhecimento do contexto de seus educandos e, porque estes ainda não aprenderam a ler e escrever,
acabam por rotulá-los de “disléxicos”.
No caso de Ronaldo, mesmo com aquelas características observadas, temos somente hipóteses
não confirmadas, daí a necessidade de uma equipe de profissionais, do neurologista para a
confirmação ou não da dislexia, do fonoaudiólogo para o tratamento e minimização das dificuldades
fonológicas e de dicção, do psicopedagogo para o tratamento das dificuldades de aprendizagem e
todos envolvidos na sua educação contribuírem para o resgate de sua auto-estima e autoconfiança.
Aos pais é importante, mesmo confirmada a dislexia pelo médico neurologista, que eles saibam
que seu filho possui inteligência normal, e que podem ter até mesmo as melhores notas em outras
matérias.
A escola e os professores devem ficar alertas para uma possível dislexia no sentido de
oferecerem a oportunidade de provas orais para que seja preservado a esses alunos o direito de
conhecerem o seu potencial e o direito à aprendizagem e ao seu desenvolvimento como cidadão.
!REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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! __________________. Os idiomas do aprendente. Porto Alegre, Artmed Editora, 2001.
! MILICIC, Neva. Abrindo janelas. Campinas SP, Editorial Psy II, 1994.
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! WINNICOTT, D.W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro, Imago Edit., 1975.
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GROSSI, Esther Pillar.Didática do nível pré-silábico. São Paulo.Paz e Terra, 1997
MARCHESAN et al(orgs).Tópicos em fonoaudiologia.São Paulo.Lovise.1995.VII,cap 12.
V Simpósio Internacional:Dislexia,Cognição e Aprendizagem promovido pela ABD" A National
Affiliated of the International Dyslexia Association"outubro de 2002.
!
!Elizabete Marcondes de Mello Szana
Pedagoga, Psicopedagoga ,Bacharel e Licenciada em Letras, Línguas e Literaturas Portuguesa e
Inglesa, foi professora de escolas isoladas e de emergência da Capital, Diretora de Escola e
Supervisora de Ensino de Escolas Estaduais do Estado S.Paulo.
!E-mail: [email protected]