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INTERPRETAÇÃO INTERLÍNGÜE: AS ESPECIFICIDADES DA INTERPRETAÇÃO DE LÍNGUA DE SINAIS Maria Cristina Pires Pereira Rede Metodista de Educação do Sul Universidade do Vale do Rio dos Sinos [email protected] Resumo: Com o crescente apoio da legislação, a profissão de intérprete de língua de sinais (ILS), no Brasil, vem ganhando, cada vez mais espaço de divulgação. Até recentemente, o público em geral, conhecia somente os intérpretes de conferência de línguas vocais, mas, atualmente, é necessário traçar alguns estudos comparativos entre as duas modalidades de interpretação interlíngüe. Este artigo dispõe-se iniciar um percurso em direção a estes estudos na área da tradução. Palavras-chave: intérprete de língua de sinais, intérprete de língua vocal, Interpretação interlíngüe. Abstract: With the growing support from legislation, sign language inter- preter profession, in Brazil, increases more and more its divulgation. Until recent times, people, in general, knew only conference spoken language interpreters but, nowadays, we need to proceed to comparative studies be- tween these two modalities of interlingual interpretation. This article is pro- posed to begin an investigation towards this area of translation studies. Keywords: sign language interpreter, spoken language interpreter, interlingual interpretation. Dentre as muitas línguas do Brasil, a língua de sinais brasileira (LSB ou Libras) foi regulamentada pelo Decreto Federal nº 5.696, de 22 de dezembro de 2005. Esse apoio da legislação fez com que testemunhássemos, de uma forma impressionante, a visibilidade

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INTERPRETAÇÃO INTERLÍNGÜE: ASESPECIFICIDADES DA INTERPRETAÇÃO DE

LÍNGUA DE SINAIS

Maria Cristina Pires PereiraRede Metodista de Educação do Sul

Universidade do Vale do Rio dos [email protected]

Resumo: Com o crescente apoio da legislação, a profissão de intérprete delíngua de sinais (ILS), no Brasil, vem ganhando, cada vez mais espaço dedivulgação. Até recentemente, o público em geral, conhecia somente osintérpretes de conferência de línguas vocais, mas, atualmente, é necessáriotraçar alguns estudos comparativos entre as duas modalidades de interpretaçãointerlíngüe. Este artigo dispõe-se iniciar um percurso em direção a estesestudos na área da tradução.Palavras-chave: intérprete de língua de sinais, intérprete de língua vocal,Interpretação interlíngüe.

Abstract: With the growing support from legislation, sign language inter-preter profession, in Brazil, increases more and more its divulgation. Untilrecent times, people, in general, knew only conference spoken languageinterpreters but, nowadays, we need to proceed to comparative studies be-tween these two modalities of interlingual interpretation. This article is pro-posed to begin an investigation towards this area of translation studies.Keywords: sign language interpreter, spoken language interpreter, interlingualinterpretation.

Dentre as muitas línguas do Brasil, a língua de sinais brasileira(LSB ou Libras) foi regulamentada pelo Decreto Federal nº 5.696,de 22 de dezembro de 2005. Esse apoio da legislação fez com quetestemunhássemos, de uma forma impressionante, a visibilidade

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dos intérpretes de língua de sinais (ILS) crescer cada vez mais. Jánão é incomum assistir a interpretação em: janelas da televisão,em programas políticos, campanhas governamentais e conferênci-as com a atuação, ao vivo, de ILS. No entanto, a área carece deuma base teórica mais consistente para amparar a formação e osestudos dos ILS. Mesmo quando alça posições nos programas depós-graduação, o estudo da interpretação de língua de sinais é focado,quase que, exclusivamente, em seu viés educacional relacionado àinclusão escolar das pessoas surdas. Em sua abordagem como umprocesso entre duas línguas legítimas, como uma interação entresujeitos e culturas, nos Estudos da Tradução, são bem mais rarasas incursões. Infelizmente, a atuação dos ILS é encarada, por boaparte da sociedade, como uma atividade caritativa e assistencial,não como uma profissão que necessita de suporte teórico e quecompartilha, com os tradutores e intérpretes de línguas vocais, demuitos aspectos em comum.

Não pretendo fazer aqui, uma revisão do embasamento teó-rico referente à língua de sinais. Muitas vezes, parece-me quetenho que, a todo momento, justificar a existência dos ILS re-metendo a estudos que comprovam o estatuto lingüístico da Li-bras. Para esta revisão, já existem, no Brasil, obras de grandespesquisadores

Partirei, então, diretamente dos Estudos da Tradução para fa-zer minhas disgressões sobre a interpretação de língua de sinais.Pode-se dizer que a tradução é o termo geral que se refere a trans-formar um texto a partir uma língua fonte, por meio de vocalização,escrita ou sinalização, em outra língua meta. A diferenciação éfeita, em um nível posterior de especialização, quando se conside-ra a modalidade da língua para qual está sendo transformado otexto. Se a língua meta estiver na modalidade escrita trata-se deuma tradução; se estiver na modalidade vocal (também chamadade oral) ou sinalizada (presenciais ou de interação imediata), otermo utilizado é interpretação.

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Figura 1 - Diferenciação entre Tradução e Interpretação

O processo de tradução recebe muitas designações: reformulação,retextualização, conversão, transformação, e o tradutor ora é encara-do como um mero reprodutor de textos, uma espécie de adaptador devoltagem entre línguas, ora alça a posição de co-autor. Ser intérpreteé ser, intrinsecamente, um profissional atormentado por ter que estarpresente e fingir-se invisível, algo ainda mais impensável para umintérprete de uma língua que é percebida prioritariamente pelo canalvisual, como uma língua de sinais; e por não poder ser o ‘eu’ nem o‘tu’ plenamente, por estar sempre em uma posição instável e escorre-gadia de um simbiótico locutor-interlocutor. Estes conflitos sãomaximizados por estereótipos dos quais é difícil nos livrarmos, taiscomo o velho e surrado traduttori,tradittori, que coloca a profissão sobpermanente desconfiança, pois se algo vai mal no ato de linguagem, oprimeiro a ser apontado como culpado é o intérprete. Em obras quetratam das pessoas surdas e em que é necessária a interpretação delíngua de sinais, esta desconfiança também é demonstrada como, porexemplo, no trecho a seguir:

Sendo baseado apenas no registro oral da tradução via intérpretede LIBRAS, pairaram algumas dúvidas sobre a possibilidadede que, em alguns momentos, o relato dos surdos não tivessesido fielmente interpretado, a despeito do alto nível decapacitação dos intérpretes (SÁ, 1999, p. 259).

Considerando que, as línguas de sinais ainda possuem a classifi-cação de línguas ágrafas1 e não vou me concentrar na língua escri-

TRADUÇÃO

INTERPRETAÇÃO TRADUÇÃO(língua meta = oral ou sinalizada) (língua meta = escrita)

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ta, esse artigo traz reflexões sobre o bilingüismo profissional depessoas que atuam, basicamente, com a interpretação (mediação)interlíngüe entre a Libras e a língua portuguesa brasileira e suasdiferenças e similitudes com os intérpretes de línguas vocais.

Intérpretes de Língua de Sinais: de anjos a profissionais

Diferentemente da Língua Portuguesa ou de qualquer outra lín-gua vocal, a relação entre os elementos lingüísticos, na Libras, sedá, principalmente, pela sua disposição espacial2 e este fator é odeterminante em várias técnicas de interpretação e deposicionamento dos ILS. Historicamente não é possível rastrear oexato momento em que os intérpretes começaram a atuar, mas éplausível imaginar que desde que povos de diferentes línguas man-tiveram contato houve, também, a necessidade de intérpretes. Nocaso das pessoas surdas, existem hipóteses de que a interpretaçãosurgiu no meio familiar foi, aos poucos, se estendendo aos profes-sores de crianças surdas e ao âmbito religioso. Com o passar dotempo, o fortalecimento dos movimentos sociais e políticos dascomunidades surdas e o reconhecimento legal das línguas de sinaissurgiu, finalmente, o ILS profissional.

Quando existe a referência a intérpretes em geral, a imagemmais lembrada é a dos intérpretes de conferência, em suas cabi-nes, com seu equipamento de som, em encontros internacionais,intérpretes de línguas vocais, portanto. No entanto, este tipo deinterpretação, o mais prestigiado de todos, não é o único, existemdiversas classificações quanto a sua atuação, por exemplo:

• Intérpretes de conferência: participam de eventos em que ainterpretação, na sua maioria, é somente em uma direçãocomo em uma palestra em que o conferencista fala quase otempo todo e, se existem espaços para uma interaçãodialógica, é somente no final do evento, com tempo restrito.

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• Intérpretes acompanhantes ou de trâmites: acompanham umapessoa ou grupos pequenos em interações, geralmente,dialógicas tais como, reuniões, entrevistas, consultas, etc.

Na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO) (2006) os in-térpretes fazem parte da família dos Filólogos, intérpretes e tradu-tores e sua identificação é feita sob o código 2614-10 e abrange asdenominações de: Intérprete - Intérprete comercial , Intérprete decomunicação eletrônica , Intérprete de conferência ou Tradutorsimultâneo. Dentre as suas atribuições, consta que:

Traduzem, na forma escrita, textos de qualquer natureza, deum idioma para outro, considerando as variáveis culturais,bem como os aspectos terminológicos e estilísticos, tendo emvista um público-alvo específico. Interpretam oralmente, deforma simultânea ou consecutiva, de um idioma para outro,discursos, debates, textos, formas de comunicação eletrônicae linguagem de sinais, respeitando o respectivo contexto e ascaracterísticas culturais das partes. Tratam das característicase do desenvolvimento de uma cultura, representados por sualinguagem; fazem a crítica dos textos.

Mesmo que de uma forma incorreta, citando a linguagem desinais, e não o que seria esperado, língua de sinais, os intérpretesde línguas sinalizadas, no Brasil, começam a ser reconhecidos comoocupação, o que constitui um primeiro passo para a constituição deuma profissão. Existem, atualmente, alguns projetos de lei, visan-do a regulamentação da profissão de tradutor e intérprete de línguade sinais, mas a maioria, senão todos os textos a que tive acesso,encaram nosso ofício de uma forma muito limitada, restringindo-se ao campo de atuação educacional. Talvez, por influência da po-lítica inclusiva do MEC, nossos representantes políticos, não as-sessorados por especialistas na área, ignoram nossas atuações emconferências, em trâmites e em acompanhamento, fora do ambi-ente escolar e universitário.

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Diferenças e similitudes

Existem muitas semelhanças na atuação dos intérpretes de lín-guas vocais (ILV) e dos intérpretes de língua de sinais (ILS) e emalguns países a categoria reconhece-se como uma só, apenas tendodiferentes línguas de trabalho. É comum, nos Estados Unidos e naEuropa encontrarem-se agências em que são oferecidos os servi-ços de tradução interpretação não só de línguas vocais como tam-bém da língua de sinais local. Entretanto, em países em que aspessoas surdas são vistas como incapacitadas ou prejudicadas emsua capacidade de tomar decisões, a interpretação de língua desinais assume um caráter predominantemente caritativo eassistencial, um favor ou uma missão divina que pressupõe traba-lho voluntário, sacrifício e abnegação.

As diferenças entre os ILV e os ILS podem ser assim resumidas:

Quadro 1: Diferenças entre intérpretes de línguas vocais e intérpretes de língua desinais, segundo Rodríguez & Burgos (2001, p. 30)

A esta distinção, acrescento que, na prática profissional, umgrande diferencial dos intérpretes de línguas vocais é que os ILS têmseu maior campo de trabalho em instituições de ensino. A ordem dedemandas de atuação é inversamente proporcional às dos v.

Interpretes de línguas vocais Interpretes de língua de sinais

1.Interpretam de/para as línguas orais. 1. Interpretam de/para alguma línguade sinais.

2. Seus clientes são pessoas ouvintes 2. Seus clientes são pessoas surdas ede diferentes entornos geográficos. ouvintes do mesmo entorno geográfi

co.

3. Seu campo detrabalho limita-se, 3. Seu campo de trabalho é tão amplonormalmente, a encontros internacionais. quanto as necessidades comunicativas

e de informação de seus clientes.

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Quadro 2 – Diferenças na atuação de ILV e ILS

A tradução de línguas vocais tem seu maior campo não na inter-pretação, mas na tradução escrita, seguida da prestigiada interpre-tação de conferências, logicamente internacionais, alguns traba-lhos em trâmites e acompanhamento e escassos trabalhos comointérpretes educacionais, se existir esta atuação entre os ILV. OsILS são mais procurados exatamente para a interpretação educaci-onal, devido às políticas inclusivas que perseguem as crianças e jo-vens surdos através da história, logo em seguida os trâmites e acom-panhamentos, pois a sociedade em geral não conhece a língua desinais de maneira funcional, a interpretação de conferências que nocaso das pessoas surdas não necessita ser internacional, pois em seupróprio país são como se fossem estrangeiros e, finalmente, a tradu-ção escrita que ainda não tem representatividade, devido a poucadivulgação no uso de uma escrita de língua de sinais.

Existem, ainda, diferenças extralingüísticas no que os ILV e ILSinterpretam. Cabe às pessoas ouvintes entenderem por seus própriosmeios as pistas contextuais e os ruídos provenientes do ambiente quepodem interferir no ato tradutório, porém em um diálogo entre umapessoa surda e uma ouvinte, se uma conversa ou barulho interfere, oouvinte, provavelmente, vai sentir-se perturbado ou desconfortávelou até mesmo, tentar para a fonte do distúrbio (pedindo silêncio), apessoa surda, por sua vez, vai continuar sinalizando, como se nadaestivesse acontecendo e o ILS precisa avisá-la que existem ruídos noambiente que dificultam escutar a voz do intérprete.

Interpretes de línguas vocais Interpretes de língua de sinais

1.Tradução escrita 1. Educação

2. Conferência 2. Trâmites e acompanhamento

3. Trâmites e acompanhamento 3. Conferência

4. Educação 4.Tradução escrita

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Quadro 3 – Informações efetivamente interpretadas pelos ILV e pelos ILS

Além dos ruídos, existem as dicas prosódicas de entonação,emoção, regulação de turnos de fala que estão totalmente fora doalcance das pessoas surdas e que precisam ser reguladas pelosILS. Uma pessoa ouvinte quando está falando e não manifesta asua intenção de ceder o turno, mas o ILS que está interpretandofaz uma pausa, não de turno, mas para organizar o processo deinterpretação, pode equivocadamente emitir uma pista para apessoa surda de que é sua vez de falar. Este é um aspecto quemereceria mais estudos, a troca de turnos de fala, mediada porinterpretação de língua de sinais. Por enquanto, contamos somentecom interrogações e bom senso para tentarmos amenizar osdescompassos causados pela barreira das diferentes modalidadesdas línguas envolvidas.

Alguns pesquisadores, dentre eles, Bélanger (2000), pontuamas atuações em língua de sinais diferenciadas daquelas em línguasvocais e outras que, apesar de serem mediações interlingüísticas,não podem ser definidas como interpretações interlíngües:

• Interpretação relé (relais/relay): existe entre línguas vocais,mas é distintiva no caso em que, por exemplo, uma palestraem Inglês seja interpretada diretamente para a Libras e sóentão para a língua portuguesa. Neste caso o ILS é o intér-prete relé.

Interpretes de línguas vocais Interpretes de língua de sinais

Aspectos ligados à língua e a cultura Aspectos ligados à língua e a cultura

Ruídos ambientais significativos

Pistas de contextualização ligadas aprosódia e ao código ligüístico

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• Intérprete tátil: chamado, no Brasil, de guia-intérprete parapessoas surdocegas que utilizam a língua de sinais tátil. Se omediador estiver utilizando outras técnicas para surdocegoscomo, pro exemplo, desenhar na palma da mão as letras doalfabeto latino ou tocar nas falanges de acordo com o siste-ma Braille, então não se trata de uma interpretaçãointerlíngüe, mas sim de uma transliteração.

• Intérprete surdo: uma pessoa surda pode atuar normalmentecomo intérprete entre duas línguas de sinais. No caso emque uma pessoa surda não é falante competente da Libras eum ILS não consegue estabelecer um entendimento com ela,pode ser chamada outra pessoa surda que por meio gestualconsiga uma comunicação primária, mas satisfatória e nãose trata de uma interpretação interlíngüe e sim de uma co-municação gestual ou mímica.

• Comunicador pidgin: nesta categoria está o uso do portuguêssinalizado em que o léxico da língua de sinais é encaixado naestrutura da língua vocal, gerando, inclusive, a criação desinais artificiais para suprir a equivalência literal entre asduas línguas.

• Espelhamento: quando um intérprete, ao invés de interpre-tar, copia a sinalização de outro intérprete. Este é o caso emque, por motivos de localização no espaço, a platéia surdatem que se posicionar em diversos locais onde não seja pos-sível a visualização de somente um intérprete.

• Duplicador ou Replicador vocal: é chamada assim a pessoaque duplica a fala vocal de outra pessoa para deficientes au-ditivos que não se sentem proficientes ou confortáveis com alíngua de sinais. Não é uma interpretação interlíngüe, pois oduplicador posiciona-se de frente para a pessoa deficiente

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auditiva e, literalmente, reproduz, na mesma língua, tudo oque ouve, com uma articulação cuidadosa.

Em alguns países, a classificação dos ILS chega a requintessegundo a sua titulação. O Register of Interpreters for the Deaf(RID), órgão de registro e supervisão da atuação dos ILSestadunidenses, mantém, atualmente, duas grandes áreas de clas-sificação de intérpretes e cada grande área possui uma complexasubdivisão. É comum que os intérpretes dos EUA apresentem-seou coloquem em seus cartões de visita seu título de ILS seguido daabreviatura de sua certificação:

• Certificação Nacional de Intérprete (National InterpreterCertification – NIC).

• Certificado de Interpretação e Certificado de Transliteração(Certificate of Interpretation - CI and Certificate ofTransliteration - CT).

• Intérprete Surdo Certificado (Certified Deaf Interpreter - CDI)

• Certificado de Transliteração Oral (Oral TransliterationCertificate - OTC).

• Intérprete Educacional (Educational Certificate - Ed: K-12).

• Certificado de Especialista Legal/Jurídico (SpecialistCertificate: Legal - SC:L).

O RID vem simplificando o seu complexo sistema de registrode intérpretes, e algumas certificações estão sendo abolidas com opassar dos anos.

No Brasil, não contamos com uma classificação muito detalha-da, pois ainda não existe uma entidade de classe nacional que cer-tifique ou valide um plano de carreira, a única classificação quecontamos pode ser descrita assim (PEREIRA, 2003):

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• naturais ou empíricos: pessoas bilíngües em Português e Li-bras que “atuam” como intérpretes, porém sem nenhumainstrução formal para a profissão;

• validados: pessoas que atuam como intérpretes naturais erecebem, por meio da aprovação em um teste, um certifica-do provisório (validação) para trabalharem como ILS ou

• certificados: aqueles que cursaram algum tipo de formaçãomais elaborada, normalmente, promovida em parceria coma Feneis.

A relação com as pessoas surdas

Um dos maiores diferenciais dos ILS é que uma das pessoas aquem ele interpreta é, necessariamente, uma pessoa surda. É ine-gável que para as pessoas surdas, falantes da Libras, os ILS são,na maioria das ocasiões, no mínimo, desejáveis, no entanto estarelação mistura sensações de gratidão, submissão, disputa e vin-gança. Gratidão por ter acesso às informações; submissão por al-guns, até hoje, estarem acostumados a serem guiados por ouvin-tes; disputa pelo poder nem sempre igualitariamente compartilha-do nas relações ouvintes e ILS e pessoas surdas, e vingança pelosILS serem os únicos ouvintes submetidos à autoridade de clientedas pessoas surdas no ato tradutório. Para compreender estes sen-timentos causados na relação ouvinte e ILS e pessoas surdas é ne-cessário rever como os serviços de interpretação de língua de si-nais evoluíram através dos tempos. Descrevo a seguir, baseadaem Bar-tzur (1999), os modelos de serviço de interpretação de lín-gua de sinais mais comuns, e faço uma adaptação para a nossarealidade. Os modelos refletem a evolução da relação entre intér-pretes ouvintes e pessoas surdas e não são necessariamente classi-ficados pela ordem de seu surgimento, pois ainda convivemos com

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ILS que aderem a comportamentos e ideologias considerados ul-trapassados.

Modelo Caritativo

O modelo caritativo surgiu antes que a interpretação fosse en-carada como profissão. A maioria dos intérpretes pertenciam auma família com pessoas surdas, eram professores de surdos oureligiosos interessados em manter um grupo, comunidade ou mi-nistério de surdos. Cada um tinha algum motivo “nobre” para aju-dar as pessoas surdas. Quando queremos ajudar alguém, esta ati-tude demonstra, de nossa parte, uma pretensa superioridade. Aspessoas surdas sentem-se como pessoas menores, diminuídas emsuas reais capacidades e à mercê dos ouvintes. Para as pessoasouvintes que serviam de intérpretes, por laços sangüíneos, pedagó-gicos ou religiosos, era uma obrigação ir a eventos de surdos eacabavam identificando-se com o mundo surdo. A maioria dos in-térpretes não possuía uma formação específica na área da inter-pretação interlíngüe e utilizavam-se de interpretação consecutiva,para resumir ou modificar o que julgavam que estava além da com-preensão das pessoas surdas. Na tentativa de ajudar e proteger aspessoas surdas de erros, aqueles que atuavam como intérpretes,não tinham a noção de sigilo profissional, hoje existente, e compar-tilhavam informações obtidas nas interpretações com outras pes-soas. Foi a partir destas pessoas, que atuavam como intérpretes,que as pessoas surdas começaram a ter acesso às informações domundo ouvinte, porém apenas recebiam as informações, ainda nãotinham nenhum poder decisório.

Modelo Telefone

Geralmente, quando existe uma reação a um modelo anterior, atendência é ir-se para o extreme oposto. Não foi diferente quandosurgiram as primeiras críticas ao modelo caritativo. De almas boase caridosas, os intérpretes começaram a querer um tratamento

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mais profissional e acharam-se na obrigação de serem invisíveis,neutros e distantes. A metáfora utilizada, na época, era de que ointérprete teria que ser como um telefone, apenas “passando” ainformação de um lado para o outro, sem se envolver e sem mani-festar sua subjetividade, acrescento eu. O objetivo era justo, de-volver o controle da interação às pessoas surdas e evitar o domíniodos ouvintes porém, quando as pessoas tornam-se invisíveis, ape-nas canais de comunicação, os seus traços humanos são apagados,tornando-se meros objetos e a sensação de desvalorização começaa tomar conta dos intérpretes. Neste modelo os intérpretes tememuma simbiose com as pessoas surdas, pois afinal, máquinas nãointeragem. Não se pode negar os avanços que este modelo trouxe àcategoria, como a instituição dos primeiros códigos de ética, po-rém, nesta mesma fase, muitos ILS afastaram-se da profissão porconsiderarem-se usados e por recusarem-se a ser tratados comomáquinas.

Modelo Facilitador da Comunicação

Depois de ir de um extremo ao outro, começa uma estabiliza-ção em um ponto mais conciliatório para ILS e pessoas surdas.Uma atitude mais humana é esperada de ambas as partes. Os ILSassumem mais responsabilidades extratradutórias, como a prepa-ração antes dos eventos, checar o local antes da interpretação (luz,posicionamento, reserva de lugares frontais para as pessoas sur-das). As pessoas surdas, por seu lado, percebem a humanidade dosILS e que todo ser humano tem suas limitações físicas.

Modelo Bilíngüe e Bicultural

Não só as pessoas surdas deveriam ser bilíngües e biculturais,também os ILS passam a ter a exigência de conhecerem ambas ascomunidades em profundidade. Neste caso, o modelo caritativopoderia estar sendo ampliado não só para as pessoas surdas, mastambém o ILS deveria ser assistencial com os ouvintes. Para os

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ILS que não são CODAS3, a grande necessidade, neste caso, é umcontato e convivência intensos com a comunidade surda na tentati-va de tornar-se, o máximo possível, um especialista em surdos. Ogrande perigo, neste modelo, é que os ILS ultrapassem seus limi-tes na tentativa de serem especialistas em tudo.

Outros modelos estão surgindo, dentre os quais, destaco o Mo-delo do Aliado, baseado na pedagogia de Paulo freire, que preconi-za que o intérprete de língua de sinais deve ser um aliado noempoderamento das pessoas surdas. Em vez de “ajudar”, umarelação de desigualdade, existe o “aliar-se” e o compartilhamentodo poder. Aqui a figura do ILS mantém-se afastada no momentoem que as pessoas surdas devam ser desafiadas a darem suas res-postas ao mundo, acertarem e errarem, viverem as conseqüênciasdisto e, principalmente, aprenderem com estas experiências. Eaproxima-se nos momentos em que, fora de sua atuação como ILS,pode manter uma interação dialógica de mútua aceitação. Nestemodelo, o ILS não tem mais a obrigação de ser um ativista pelosdireitos das pessoas surdas, precisa sim evitar perpetuar as práti-cas opressivas da cultura ouvinte na qual criou-se. A opressão é,muitas vezes, exercida sem a consciência explícita, foi tão natura-lizada que se tornou imperceptível. Este modelo exige que a pessoasurda assuma o seu papel nas interações, peça esclarecimentosdiretamente ao seu interlocutor ouvinte, e não ao ILS, levante suamão quando quiser falar e não peça ao ILS que o faça por ele,enfim que não deixe todo o poder nas mãos do ILS e que os doispossam negociar os ajustes a serem feitos. No Modelo do Aliado,diálogo é a palavra-chave entre ILS e surdos, pois,

Certamente, intérpretes que editam o que os falantes estãodizendo, por acharem que a mensagem é politicamenteincorreta, religiosamente inaceitável ou não-educada estãosendo um escudo entre pessoas surdas e ouvintes. Não é nossopapel sermos filtros e decidir o que os dois grupos devemsaber um do outro (BAR-TZUR, 1999).

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A grande armadilha a evitar, neste modelo emergente, é que osILS tornem-se o estereótipo negativo do “politicamente correto”,exagerando em suas precauções para não oprimir, inadvertidamente,as pessoas surdas.

Infelizmente, não existem muitos trabalhos vindos de pessoassurdas sobre a interpretação de língua de sinais. Ainda não existeuma ampla conscientização de que no ato tradutório as responsabi-lidades pelo sucesso ou não da interação pertencem a todos os par-ticipantes: surdos, ouvintes e ILS. Apesar desta falta de interesseem pesquisas, a vital necessidade dos serviços de interpretação édemonstrada em diversos depoimentos, vários dos quais, transcre-verei aqui como reafirmação de que os ILS, para as pessoas sur-das, não são um recurso humano complementar na acessibilidadee sim essencial.

Os surdos sentem-se assegurados pelos intérpretes, pois esses,pelo poder de comunicação da língua de sinais, corporificama possibilidade de resgate da participação. O intérprete ou otradutor, de qualquer língua, tem grande poder em suas mãos.Ele é responsável pela qualidade da comunicação. Os surdosprecisam que esses profissionais sejam bem qualificados(STUMPF, 2005, p. 26).

A falta de disponibilização do serviço de interpretação reforça,nas pessoas surdas, a segregação lingüística a qual a sociedadeouvinte os submete constantemente.

Não vou à maioria das reuniões ou palestras onde não estaráum intérprete de língua de sinais. Sinto-me uma boboca emficar sentada por duas horas em algum lugar sem entendernada. Estou fisicamente presente, mas da palestra aproveito omesmo tanto quanto a cadeira na qual estou sentada(STRNADOVÁ, 2000, p. 74).

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Muitos ouvintes têm uma visão estereotipada das pessoas surdascomo indiferentes, distraídas ou não interessadas em assuntos cultu-rais, mas ignoram a intensidade e duração em que as barreiras lin-güísticas estão na vida das pessoas surdas: a todo o momento.

Quantas vezes eu fui chamada de preguiçosa por não prestaratenção aos lábios do professor! Como Lucinda [Ferreira] Britoobservou ao dar um curso para nós: de manhã eu tive queprestar atenção no que ela falava e a minha expressão era depreocupação para não perder nada e de tarde veio a intérpretede Libras e a minha expressão mudou, era de alívio, detranqüilidade, ela comentou isso para os participantes do curso,achei interessante 4.

Existe um mito de que a leitura orofacial (leitura labial) é umapanacéia que pode dar acesso igualitário às pessoas surdas, porémeste meio de acesso ao que o outro está dizendo tem várias limita-ções. A leitura orofacial só pode ser feita com uma pessoa de cadavez (isto exclui os seminários e rodas de conversa) com contatovisual e a uma distância próxima, alguns fonemas são pronuncia-dos de uma forma muito parecida, algumas pessoas não têm umaboa articulação ou tapam a boca quando fala, usam barbas e bigo-des, etc. Além disto, poucas pessoas que não são da área dos Estu-dos Surdos reconhecem que a língua portuguesa funciona comosegunda língua para a maioria das pessoas surdas.

Joana também enfatizou sua dificuldade no Português.Lamentou o fato de não haver intérprete na faculdade ecomentou o quanto lhe era penoso ficar sempre atenta aoslábios de seus professores ouvintes para poder fazer a leituralabial (SOUZA, 1998, p. 112).

Na escolarização das pessoas surdas, a falta de ILS torna-seum ato de privação de cidadania porque nas instituições educacio-

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nais os ILS são chamados a atuar intensamente. A não-disponibilização de ILS para as pessoas surdas constitui-se em umaviolação dos direitos mais básicos de um ser humano e torna-assempre as deficitárias e atrasadas em relação às pessoas ouvintes.

Realmente ficava mais tranqüila por tê-lo [o intérprete delíngua de sinais] na sala de aula, não precisava fazer esforçopara realizar a leitura labial. Neste método entendia apenas60%, por outro lado, com o intérprete entendia 100% (...)Concluí o ensino médio numa escola da rede pública, com aatuação deste intérprete o que facilitou o meu aprendizado.Isso me possibilitou olhar meu passado e entender que os surdosnecessitavam dos intérpretes (REIS, 2006, p. 22).

Existem depoimentos, em quase todos os trabalhos de pós-gra-duação de pessoas surdas, reconhecendo o papel fundamental dosintérpretes, como admite Reichert: “Os intérpretes foram muitoimportantes no andamento do mestrado (2006, p. 94)”, mas as ta-refas acadêmicas não se resumem à assistência de aulas, existemas participações em eventos, nacionais e internacionais:

Nos poucos em que participei, a interpretação aconteceu deforma precária, contando com a boa vontade de alguém queconhecia a Libras e se dispunha a interpretar minhaparticipação em língua de sinais. Esse dado demonstra como,na maioria das situações, a inclusão é ainda apenas um conceitovazio de conteúdo real (STUMPF, 2005, p. 20).

Stumpf (2005), em sua tese de doutorado, em vários momentos,manifesta-se a favor dos ILS, pois afirma que “Os surdos sentem-se assegurados pelos intérpretes, pois esses, pelo poder de comu-nicação da língua de sinais, corporificam a possibilidade de resga-te da participação” e, perceptivamente, põe a descoberto o que onão-oferecimento de ILS demonstra: a hegemonia ouvinte que só a

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si considera e que impõe aos outros que façam todo o esforço paraaproximarem-se do que é tido como padrão na nossa sociedade.

Com a língua de sinais os surdos podem, através do intérprete,compreender e ser compreendidos, e os ouvintes, são colocadosno mesmo nível, precisam também do intérprete ou de aprenderuma língua que não é a sua língua natural (STUMPF, 2005, p.26).

No entanto somente a presença de um ILS não é garantia de queo processo de acessibilidade alcançou a sua meta porque o acom-panhamento das disciplinas e demais atividades acadêmicas não éigualitária entre pessoas surdas e ouvintes.

A presença do intérprete não assegura que questõesmetodológicas, levando em conta a surdez e os processoespeciais/próprios de acesso ao conhecimento, sejamconsideradas, ou que o currículo escolar sofra ajustes paracontemplar peculiaridades e aspectos culturais da comunidadesurda (LACERDA, 2000, p. 57).

Muitos professores, constatando a presença de um ILS crêemque não precisam proceder a nenhuma adaptação de suas aulas.Eis a idéia pré-concebida de que um ato tradutório ocorre entrelínguas e não entre pessoas. Os docentes acreditam que o proble-ma está resolvido porque uma pessoa que consegue se comunicarem Libras está na aula, porém os problemas advindos da falta deadaptação metodológica e de uma devida mediação permanecem,no mais das vezes, ocultos ou, providencialmente negligenciados.

Esta visão não se restringe ao âmbito escolar, no dia-a-dia, sur-dos e ouvintes, em geral, têm a expectativa de uma interpretaçãolingüística que não leve em conta o fator humano. Este assunto émuito produtivo e não pretendo, no espaço deste trabalho,desenvolvê-lo em sua amplitude, porém devo chamar a atenção

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para o fato de que um profissional não-proficiente vai agravar estequadro de incompreensão mútua entre pessoas surdas e ouvintesque não compartilham a mesma língua.

Considerações finais

Apesar das pessoas surdas serem a meta principal da interpreta-ção de língua de sinais, é importante lembrar que, de um certo modo,também somos intérpretes de língua vocal porque interpretamos dalíngua de sinais para a língua portuguesa e vice-versa. Intermediamosas interações entre pessoas surdas e pessoas ouvintes, e que ambasprecisam de qualidade no serviço de interpretação que recebem. Noentanto, o desconhecimento dos aspectos profissionais da interpreta-ção de língua de sinais gera uma mentalidade de serviço assistenciale que não necessita de aporte teórico. Este equívoco tem geradocursos que não têm preenchido as expectativas de qualificação dosILS que, inclusive, vêm sendo formados em uma estranha mesclade profissões, denominada de: professores-intérpretes. Os professo-res-intérpretes são uma invenção criada no rastro da política inclusi-va que, aproveitando os professores de pessoas surdas (nem sempresuficientemente proficientes em Libras), fornece cursos de inter-pretação sucintos e os transforma em professores e intérpretes, namesma profissão e exercendo ambas as funções no mesmo cargo.Em países com mais tradição e seriedade na formação de ILS, exis-tem os intérpretes educacionais que, mesmo se forem professores,exercem suas profissões de forma independente.

O desconhecimento sobre a atuação dos ILS é uma evidência denossa marginalização:

1. dos Estudos da Tradução pela carga, ainda, caritativa que aprestação de serviços de interpretação de língua de sinaisainda carrega (“ajudar os surdos”) e pela ignorância do es-tatuto lingüístico da língua de sinais no meio acadêmico;

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2. dos Estudos Surdos, pois é fácil perceber, em um rápido vis-lumbre nos programas de extensão e pesquisa, que pratica-mente toda a produção acadêmica concentra-se nas pessoassurdas e nos professores de surdos. Os cursos de especiali-zação e de pós-graduação, de Educação Especial ou Inclusi-va, raramente tomam os intérpretes de língua de sinais comomerecedores de atenção. Nestes cursos, geralmente, sãocitadas as legislações que dão suporte ao serviço de interpre-tação e a necessidade das pessoas surdas, falantes da Li-bras, dos ILS. Porém o seu papel crucial como participanteativo nas intermediações lingüísticas e culturais entre pesso-as surdas e ouvintes não é abordado na profundidade neces-sária para uma tarefa tão complexa e que requer alto grau deespecialização.

Um agente tão presente na garantia dos direitos das pessoassurdas, com tarefas tão, ou mais, complexas do que os intérpretesde línguas vocais, merece ser tirado do obscurantismo e ser alvode, cada vez mais, estudos acadêmicos.

Notas

1. Pesquisas sobre um sistema de registro gráfico de línguas de sinais, o Signwriting,estão sendo desenvolvidas, mas sua utilização ainda não é amplamente aceita, nãosó pelos pesquisadores, mas também pela comunidade surda e demais falantes daLibras. Existe também, em certos casos, a tradução da língua de sinais para alíngua portuguesa, na modalidade escrita, o que justifica a denominação completade tradutores e intérpretes de Libras.

2. Existe a língua de sinais tátil, utilizada por pessoas surdocegas, que não é muitoconhecida, pois é preciso ter aprendido a língua de sinais, antes de perder a visão,para poder utilizá-la.

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3. Children of Deaf Adults: parentes e, principalmente, filhos de pais surdos.

4. Depoimento de Irene M. Stock, surda, à Revista da Federação Nacional deEducação e Integração dos Surdos (Feneis). Rio de Janeiro, abril de 2001, p. 24.

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