intercom sociedade brasileira de estudos...

15
Intercom Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação São Paulo - SP 05 a 09/09/2016 1 Os múltiplos sentidos nos espaços da galeria Shopping Cidade Copacabana: considerando e experienciando a alteridade 1 Vitor Pereira de SOUSA 2 Cíntia Sanmartin FERNANDES 3 Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ Resumo O presente artigo resulta do projeto de iniciação científica “Comunicação e cultura urbana: a reinvenção da sociabilidade e da cidadania na cidade do Rio de Janeiro”, desenvolvido na Faculdade de Comunicação Social do Estado do Rio de Janeiro (FCS/UERJ), e tem como objetivo analisar e apresentar as multiplicidades de interações e sentidos, e a conjugação entre passado e presente nos espaços da galeria Shopping Cidade Copacabana, localizada em um dos pontos mais movimentados da zona sul carioca. Para tanto, em termos metodológicos, utilizamos um enfoque múltiplo articulando investigação teórica e a observação participante complementada por entrevistas semiestruturadas. Considerando que neste espaço as relações não são pautadas unicamente pela lógica do consumo, percorremos um cenário singular e ao mesmo tempo repleto de nuances. Palavras-chave: comunicação; espacialidades; cidade; sociabilidade. Apresentação Com o propósito de analisar a sociabilidade urbana para além das dicotomias que pautaram o pensamento moderno, buscando, portanto, vislumbrar os elementos heterogêneos inseridos nela, o artigo percorre os diferentes níveis de um “microcosmo” dentro do bairro de Copacabana, zona sul da cidade do Rio de Janeiro. Localizada entre as primeiras ruas da história do bairro, a galeria Shopping Cidade Copacabana ou Shopping dos Antiquários, como é conhecido popularmente é o espaço eleito para a observação e realização da pesquisa. A partir da “prática do espaço”, tencionamos “apresentar” as interações individuais e coletivas no/com o espaço, a constante negociação entre passado e presente e os múltiplos sentidos expressos ali. O termo shopping” nos remete a um edifício comercial de limites internos e externos bem definidos, onde as práticas e os usos do espaço são conduzidos por uma ¹Trabalho apresentado na Divisão Temática de Interfaces Comunicacionais, da Intercom Júnior XII Jornada de Iniciação Científica em Comunicação, evento componente do XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. 2 Estudante de graduação do 7º semestre do Curso de Comunicação Social, habilitação em Relações Públicas da FCS-UERJ, bolsista CNPq no projeto da Profª. Drª. Cíntia Sanmartin Fernandes intitulado “Comunicação e cultura urbana: a reinvenção da sociabilidade e da cidadania nas galerias (de passagem) e ruas galerias da cidade do Rio de Janeiro”. Email: [email protected] 3 Orientadora do trabalho. Professora da Faculdade de Comunicação Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FCS-UERJ) e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGCOM- UERJ). E-mail: [email protected]

Upload: vokien

Post on 08-Feb-2019

214 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Intercom Sociedade Brasileira de Estudos ...portalintercom.org.br/anais/nacional2016/resumos/R11-1142-1.pdf · Os múltiplos sentidos nos espaços da galeria Shopping Cidade Copacabana:

Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016

1

Os múltiplos sentidos nos espaços da galeria Shopping Cidade Copacabana:

considerando e experienciando a alteridade1

Vitor Pereira de SOUSA2

Cíntia Sanmartin FERNANDES3

Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ

Resumo

O presente artigo resulta do projeto de iniciação científica “Comunicação e cultura urbana: a

reinvenção da sociabilidade e da cidadania na cidade do Rio de Janeiro”, desenvolvido na

Faculdade de Comunicação Social do Estado do Rio de Janeiro (FCS/UERJ), e tem como

objetivo analisar e apresentar as multiplicidades de interações e sentidos, e a conjugação entre

passado e presente nos espaços da galeria Shopping Cidade Copacabana, localizada em um

dos pontos mais movimentados da zona sul carioca. Para tanto, em termos metodológicos,

utilizamos um enfoque múltiplo articulando investigação teórica e a observação participante

complementada por entrevistas semiestruturadas. Considerando que neste espaço as relações

não são pautadas unicamente pela lógica do consumo, percorremos um cenário singular e ao

mesmo tempo repleto de nuances.

Palavras-chave: comunicação; espacialidades; cidade; sociabilidade.

Apresentação

Com o propósito de analisar a sociabilidade urbana para além das dicotomias que

pautaram o pensamento moderno, buscando, portanto, vislumbrar os elementos heterogêneos

inseridos nela, o artigo percorre os diferentes níveis de um “microcosmo” dentro do bairro de

Copacabana, zona sul da cidade do Rio de Janeiro. Localizada entre as primeiras ruas da

história do bairro, a galeria Shopping Cidade Copacabana – ou Shopping dos Antiquários,

como é conhecido popularmente – é o espaço eleito para a observação e realização da

pesquisa. A partir da “prática do espaço”, tencionamos “apresentar” as interações individuais

e coletivas no/com o espaço, a constante negociação entre passado e presente e os múltiplos

sentidos expressos ali.

O termo “shopping” nos remete a um edifício comercial de limites internos e

externos bem definidos, onde as práticas e os usos do espaço são conduzidos por uma

¹Trabalho apresentado na Divisão Temática de Interfaces Comunicacionais, da Intercom Júnior – XII Jornada de Iniciação

Científica em Comunicação, evento componente do XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. 2Estudante de graduação do 7º semestre do Curso de Comunicação Social, habilitação em Relações Públicas da FCS-UERJ,

bolsista CNPq no projeto da Profª. Drª. Cíntia Sanmartin Fernandes intitulado “Comunicação e cultura urbana: a reinvenção

da sociabilidade e da cidadania nas galerias (de passagem) e ruas galerias da cidade do Rio de Janeiro”. Email:

[email protected] 3Orientadora do trabalho. Professora da Faculdade de Comunicação Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro

(FCS-UERJ) e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGCOM-

UERJ). E-mail: [email protected]

Page 2: Intercom Sociedade Brasileira de Estudos ...portalintercom.org.br/anais/nacional2016/resumos/R11-1142-1.pdf · Os múltiplos sentidos nos espaços da galeria Shopping Cidade Copacabana:

Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016

2

ordenação espacial pré-programada. Diferentemente desses espaços, a organização do edifício

do Shopping Cidade Copacabana nos apresenta um shopping-galeria-condomínio, um

conjunto urbano equivalente às construções do século XVIII que funciona como passagem de

uma rua à outra e que engloba num mesmo local comércio e habitação. De caráter aglutinador

e multifuncional, a galeria investigada apresenta semelhanças com o projeto dos Falanstérios

de Fourier4, uma vez que agrega na mesma construção lojas, blocos de apartamentos, salas de

espetáculo e uma igreja (BARROS, 2011).

Cabe ressaltar que este artigo é fruto das pesquisas que estamos realizando no âmbito

do projeto de iniciação científica “Comunicação e cultura urbana: a reinvenção da

sociabilidade e da cidadania na cidade do Rio de Janeiro”, desenvolvido na Faculdade de

Comunicação Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FCS/UERJ), e que

pretende indicar campos de análise no que respeita à constituição de sociabilidades. As

pesquisas deste projeto se concentram em uma perspectiva teórica e metodológica que

considera a sensibilidade, os laços sociais fluidos, a errância e o nomadismo de valores

característicos das atuais dinâmicas societais. Propõem-se em estudar e compreender a cidade

e suas práticas culturais a partir da perspectiva intercultural (CANCLINI, 2005). E desse

modo, adentrar o universo das redes5 que tecem o cotidiano da cidade do Rio de Janeiro.

O projeto tem como corpus de estudo as Galerias de Passagem da cidade do Rio de

Janeiro. Estimula-nos investigá-las sob a hipótese da possibilidade de ser um espaço onde

também são promovidas relações que não passam apenas pela lógica do mercado, que no

cotidiano da interação e experiência com o espaço e com os “outros”, carrega consigo a

potencialidade de gestar (e gerar) novas sociabilidades. Assim, pensamos as Galerias de

Passagem cariocas como um lugar6, o que significa compreender a cidade como o espaço das

efervescências de diversos grupos (ou tribos), em que diferentes identidades solidificam-se,

4Charles Fourier, intelectual francês que propôs, durante as primeiras décadas do século XIX, pôr fim às desigualdades da

sociedade capitalista através da convivência comunitária. Para tal, Fourier, apresentou como projeto a construção dos

Falanstérios, edifícios que compreenderiam “galerias envidraçadas, pátios internos, jardins, galpões, salas comunais, oficinas,

hospedarias, áreas lúdicas que incluiriam um Teatro, e até mesmo uma Igreja” (BARROS, 2011, p. 251). 5A perspectiva assumida em nossa pesquisa trabalha com a compreensão de que a interação, a troca, o sentido e o significado

compartilhados por grupos de indivíduos representam metaforicamente uma teia relacional complexa. Para Maffesoli (1987),

a rede pode ser compreendida como entrelaçamento social, ou agregação social, como a reatualização do antigo mito da

comunidade em que as informações, os desejos e as fantasias circulam em um mecanismo de proximidade. Daí a existência

das pequenas tribos, efêmeras ou duradouras, conduzindo ao possível viver cíclico, viver que une o "lugar" e o "nós", mesmo

diante da complexidade do mundo vivido. Mundo de realidade imperfeita e atribulada, mas que não deixa de produzir um co-

naissance comum que circula na dança múltipla dos cruzamentos e entrecruzamentos, constituindo uma rede das redes. Na

comunicação, a ação de “redes sociais” ganha relevo nos últimos anos através dos trabalhos de André Lemos (2010) e Raquel

Recuero (2009). 6 O lugar pode ser entendido como “espaços afetivos” que vão sendo construídos, tomam forma, à medida que são vividos,

experienciados, sensivelmente e inteligivelmente. Seria aquilo que Milton Santos (1994) chamou de “espaços do acontecer

solidário”, que definem usos e geram valores de múltiplas naturezas, como culturais, antropológicos, econômicos, sociais

etc., em que se pressupõem coexistências culturais.

Page 3: Intercom Sociedade Brasileira de Estudos ...portalintercom.org.br/anais/nacional2016/resumos/R11-1142-1.pdf · Os múltiplos sentidos nos espaços da galeria Shopping Cidade Copacabana:

Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016

3

mas que ao se relacionarem nos espaços públicos passam a fazer parte de outra rede de

relações. Passam a constituir uma rede rizomática em que vivenciam interações abertas onde

o contato e o diálogo permitem um desenvolver identitário não fixo (DELEUZE, 2004).

Lançam-se, assim, a uma interação com a potencialidade de criação de um "outro lugar", um

outro ethos7, um ethos que engloba as diversidades vividas em seus cotidianos socioespaciais.

Durante pesquisa empreendida na galeria Shopping Cidade Copacabana, foram

realizadas como procedimento científico, visitas a campo, estas divididas em dois momentos.

No período inicial de investigação observamos as particularidades de cada um dos quatro

pavimentos da galeria, a distribuição das lojas, das entradas e saídas e dos acessos aos blocos

de apartamentos, o que permitiu enxergar as fronteiras e as contiguidades espaciais. Em

seguida, nos detivemos à compreensão das identificações e experiências de atores que

vivenciam o cotidiano do local. Para tal, foram realizadas entrevistas semiestruturadas com

moradores/consumidores/comerciantes.

Enquanto estratégia metodológica para a elaboração deste artigo, valemo-nos dos

dados coletados durante as duas etapas do trabalho de campo (observações sobre a

organização do espaço e os depoimentos de diferentes sujeitos) e pesquisas bibliográficas

complementares – análise de matérias jornalísticas, de artigos e livros sobre os assuntos

abordados.

Rumo à Cidade Copacabana

As condições geográficas da cidade do Rio de Janeiro sempre foram tratadas como

obstáculo, tanto para o desenvolvimento econômico quanto para questões sanitárias. A cidade

cresceu em meio a vales, cercada entre os morros e o mar, era repleta de regiões alagadiças, o

que limitava a mobilidade e favorecia a proliferação de doenças. Para derrubar tais obstáculos

e configurar a cartografia espacial e simbólica da cidade que conhecemos hoje, foi preciso

aterrar pântanos e praias; desmatar, demolir e transpassar morros; desabrigar e segregar

milhares de pessoas. As transformações socioespaciais implementadas desde o período

colonial por instituições públicas e privadas são resultados dos esforços para alcançar um

modelo moderno de metrópole.

Nas primeiras décadas do século XIX, a pequena capital da colônia recebe a família

real portuguesa e sua corte, tornando-se sede do governo imperial, o que desencadeia uma

onda de transformações cada vez maiores no cotidiano e na fisionomia urbana. Desde então, o

7 Ethos entendido como “modo de ser”. Heidegger (1997), de diversas maneiras, chamou a atenção para o ethos como

maneira de habitar, como já apontavam os gregos.

Page 4: Intercom Sociedade Brasileira de Estudos ...portalintercom.org.br/anais/nacional2016/resumos/R11-1142-1.pdf · Os múltiplos sentidos nos espaços da galeria Shopping Cidade Copacabana:

Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016

4

número de habitantes da cidade aumenta progressivamente, e a região central e sua periferia

imediata transformam-se em áreas densamente povoadas, abrindo caminho para ocupação

irregular. Esse foi o cenário propício para que discursos higienistas e moralistas ganhassem

força e aplicassem suas ideias em intervenções urbanas que, por sua vez, alteraram a

geografia da cidade e favoreceram a circulação entre áreas ainda pouco conhecidas pela

população. Dentre as regiões que, aos poucos, foram inseridas à malha urbana e beneficiadas

pelos projetos de urbanização das últimas décadas do século XIX, destacam-se os bairros

oceânicos, cuja ocupação se deu também em parte pela difusão dos hábitos balneários, que a

partir da segunda metade do século XIX já faziam parte das práticas de lazer das sociedades

“civilizadas” (O’DONNELL, 2014; FEIJÃO, 2013; VALE, 2007).

Os projetos de urbanização da região central que se propagaram em direção ao litoral

sul da cidade provocaram não só mudanças espaciais, como também engendraram

transformações em aspectos socioculturais, econômicos e políticos. Ao percorrer o trajeto do

“progresso” rumo à Zona Sul do Rio, cruzamos com um ícone dos interesses em alcançar o

padrão de metrópole, a antiga Avenida Central, atual Avenida Rio Branco. Encontramos o

prolongamento desta via em outra de igual importância para a cidade, a Avenida Beira Mar, e

continuamos em direção ao sul. Margeamos os históricos bairros da Glória e do Flamengo e

chegamos a Botafogo, seguindo pela enseada e avançando por entre as ruas encontramos, nos

limites do bairro, o Túnel Velho.

Tão logo ultrapassamos o túnel, vemos surgir a Rua Siqueira Campos, local

imprescindível no processo de urbanização do bairro de Copacabana, mesmo antes da obra

que atravessou a garganta entre os morros da Saudade e de São João e abriu passagem pelo

Túnel Velho8. Até a construção, um dos principais caminhos de acesso para Copacabana e

outras áreas da Zona Sul passava sobre os morros, descia a Ladeira do Barroso (atualmente

Ladeira dos Tabajaras) e terminava na rua de mesmo nome – hoje, Siqueira Campos

(O’DONNELL, 2014). Após a abertura do túnel, os bondes que vinham do Centro desciam a

rua até a Praça Malvino Reis, hoje Serzedelo Correia, próxima à praia. Atualmente, a via se

estende até a Avenida Atlântica e se interliga a outras passagens importantes para o bairro,

como, por exemplo, as ruas Tonelero e Barata Ribeiro e a Avenida Nossa Senhora de

Copacabana.

8Inaugurado como Túnel Real Grandeza, a passagem liga a rua de mesmo nome, em Botafogo, à Rua Siqueira Campos, em

Copacabana, a obra fazia parte do itinerário dos bondes que partiam do Centro. Durante a inauguração do túnel, em 1892,

diversas personalidades do poder público e privado estavam presentes, entre elas, o então presidente da República, marechal

Floriano Peixoto, fato que demonstra a importância dada pelas autoridades da época em remodelar e expandir a cidade.

Naquele momento, Copacabana já fazia parte dos planos de investidores, que viam ali o projeto de um novo bairro, símbolo

de distinção e salubridade (O’DONNELL, 2014).

Page 5: Intercom Sociedade Brasileira de Estudos ...portalintercom.org.br/anais/nacional2016/resumos/R11-1142-1.pdf · Os múltiplos sentidos nos espaços da galeria Shopping Cidade Copacabana:

Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016

5

Fonte: Cintia Sanmartin Fernandes

Figuras 1 e 2 - Fachada do Shopping Cidade Copacabana na Rua Siqueira Campos

Na altura do número 143 da rua, encontramos a edificação que ao longo dos anos

tornou-se centro de compras, habitação e religiosidade para a comunidade local. Atualmente,

este é um ponto de movimento turbulento que vai se desfazendo conforme nos aproximamos

das extremidades da via. Há ali um intenso tráfego de automóveis; nas calçadas, camelôs,

turistas e moradores se embaraçam, se esbarram, se encontram. Também encontramos pela

região uma estação de metrô, pontos de ônibus, um hotel, um centro médico, um

estacionamento, uma creche, uma boate, bares, restaurantes, entre outros estabelecimentos

que servem de chamariz, fazendo deste lugar um dos mais diversificados e complexos do

bairro.

O edifício Shopping Cidade Copacabana foi construído em meio às intensas

transformações socioespaciais no Brasil durante a década de 1960. A título de exemplo, nessa

época, o crescimento populacional de Copacabana era maior do que no próprio município do

Rio de Janeiro (entre 1950 e 1960, o número de moradores da região cresceu 42%, enquanto a

então capital federal contabilizou um acréscimo de 34%), e a população flutuante do bairro

tornava-se cada vez maior, em virtude da implementação de novas linhas de ônibus e da

ampliação de vias de acesso. Os fortes investimentos econômicos empregados no país pelos

poderes público e privado no decorrer deste período beneficiaram o desenvolvimento do

bairro, que diante da construção diversificada e intensa de empreendimentos comerciais e

habitacionais transformou-se em uma “cidade-bairro”. Nesse sentido, os processos de

transformações socioeconômicas tornaram possível o incremento da heterogeneidade social

do bairro, cuja fama já fazia papel de cartão-postal do Brasil (O’DONNELL, 2013).

Page 6: Intercom Sociedade Brasileira de Estudos ...portalintercom.org.br/anais/nacional2016/resumos/R11-1142-1.pdf · Os múltiplos sentidos nos espaços da galeria Shopping Cidade Copacabana:

Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016

6

Erguida no auge da arquitetura modernista, a galeria expressa a plasticidade desse

período em seu desenho arquitetônico e, valendo-se das configurações do tecido urbano,

viabiliza o acesso a três ruas. Dois corredores interligam as ruas Siqueira Campos e

Figueiredo de Magalhães, e a ramificação de um desses corredores principais conecta-se a

Rua Joseph Bloch. Uma extensa rampa espiralada localizada entre os corredores principais

suscita a fluidez da locomoção por entre os quatro pavimentos do prédio, enquanto os dois

conjuntos de escadas rolantes oferecem ao visitante o deslocamento entre o primeiro e o

segundo andar. Encontramos no subsolo do prédio, o estacionamento; fazem parte do

primeiro andar, sobretudo, lojas de utilidades e salões de beleza, além das portarias dos seis

blocos de apartamentos; o segundo piso, porém, é o local onde imperam as artes, o andar é

praticamente tomado por antiquários e galerias de arte, além de abrigar a bilheteria do Theatro

NET, antigo Teatro Tereza Rachel; já no terceiro andar, encontramos uma construção singular

envolta por paredes de vidro que abriga a Paróquia de Santa Cruz de Copacabana.

Fonte: Cintia Sanmartin Fernandes

Figura 3 - Rampa do interior da galeria

A partir de uma experiência itinerante, observamos na galeria a trama complexa e

múltipla de associações que desenha, à sua maneira, uma rede de relações, onde as dinâmicas

comunicacionais intensas e sensíveis ultrapassam as perspectivas pragmáticas de outros

tempos. Os (re)ajustes entre as relações econômicas e sociais apreendidas por entre as

passagens do Shopping Cidade Copacabana embasam reflexões que, conforme FERNANDES

(2012, p. 169), elegem as Galerias de Passagem como espaços de fruição, de um “tempo

lento”, onde são eleitos outros “valores, códigos, práticas sociais que geram novas

sociabilidades”. Podemos, portanto, enxergar nestes espaços o retrato do cotidiano urbano

onde as interações se dão em meio às diferenças.

Page 7: Intercom Sociedade Brasileira de Estudos ...portalintercom.org.br/anais/nacional2016/resumos/R11-1142-1.pdf · Os múltiplos sentidos nos espaços da galeria Shopping Cidade Copacabana:

Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016

7

Experiências na alteridade

O primeiro andar da galeria é reflexo da convulsão das ruas de Copacabana, a

atividade do local é estimulada não somente pelo trânsito de pedestres, mas também por

reunir os diferentes gêneros de estabelecimentos comerciais, por agrupar num mesmo espaço

uma grande variedade de produtos e serviços. Um grande supermercado, restaurantes,

bazares, papelarias, salões de beleza e lojas de antiguidades são exemplos da configuração

dessa parte da galeria, que funciona como centro de consumo para trabalhadores e moradores

da região, e surpreende aos que desviam do roteiro turístico do bairro e se propõem a

experienciar outros lugares. Próximo às entradas do shopping, restaurantes e lanchonetes

podem ser acessados tanto pela rua quanto pelo interior dos corredores; do lado de fora, mesas

e cadeiras são dispostas pelas calçadas numa organização que produz a sensação de amplitude

dos ambientes e oculta os limites predeterminados entre os espaços público e privado.

Somam-se aos restaurantes e às lanchonetes outros estabelecimentos nos quais a

entrada é feita exclusivamente pelas calçadas e, cercando toda a fachada do shopping,

encobrem ainda mais a “áspera demarcação entre o interior e o exterior” (SENNET, 1997, p.

267). Dentre esses estabelecimentos, concentrados, sobretudo, na Rua Siqueira Campos,

encontramos uma agência bancária, uma farmácia, uma loja de ferragens, uma loja de

calçados, uma boate e alguns bares. O movimento da região segue ininterrupto, pois graças

aos botecos e à boate Fosfobox a excitação da área externa é capaz de se estender noite afora.

O espaço interno reduzido dos botecos faz com que os encontros regidos pelas bebidas

alcoólicas avancem pela calçada, o mesmo acontece durante as festas na Fosfobox, ali as

afetividades e os agrupamentos que têm como essência a música (MAFFESOLI, 2007;

FERNANDES, 2011) formam-se inicialmente ao longo das filas que tomam conta de quase

todo o passeio.

As normas de utilização dos espaços das lojas contribuem para as multiplicidades da

espacialidade, pois em oposição às rígidas regras dos grandes shoppings, é permitido aos

proprietários executar qualquer ofício dentro de seus imóveis, salvo algumas exceções.

Evidencia-se a configuração híbrida da galeria quando, por exemplo, em um mesmo corredor

do primeiro andar encontramos, em contiguidade, um restaurante japonês, um salão de beleza,

um pet shop e uma gráfica. Além da viabilidade de diversificação dos ramos de negócios, as

lojas da galeria não têm horário regular de funcionamento e em muitas delas é o próprio dono

quem atende e negocia diretamente com os consumidores. Diante de tais aspectos, apresenta-

Page 8: Intercom Sociedade Brasileira de Estudos ...portalintercom.org.br/anais/nacional2016/resumos/R11-1142-1.pdf · Os múltiplos sentidos nos espaços da galeria Shopping Cidade Copacabana:

Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016

8

se uma espacialidade representativa das pluralidades, na qual se desenvolve um corpo

complexo de estreitas interações.

Nesse sentido, o relato da proprietária de um pequeno antiquário no térreo resume

parte da dinâmica da galeria – especificamente do primeiro piso – e a relação que ela, assim

como muitos outros, tem com o lugar:

“[Aqui] Tem todos os tipos de pessoas. Tem comerciante de fora,

comerciante do Rio que compra aqui [...]. Todo mundo já conhece, isso aqui

é uma galeria super conhecida pelos comerciantes. [...] Além de ser

comerciante, eu sou moradora também. Adoro morar aqui dentro. Adoro,

porque desci, tô na loja, desci, tô no carro. Então, pra mim é bem cômodo.

Gosto muito de morar aqui. Tenho amigos aqui em Copacabana. Tudo meu é

aqui. [...] gosto daqui [o primeiro piso] porque você lida com tudo. Pessoal

de salão, tem o barzinho pra você tomar o café [...]. [...] Isso aqui [a loja] é

minha segunda moradia. [...] Mas não sou somente eu não, tem outros

lojistas que moram aqui dentro. [...] o foco dos antiquários está aqui [na

galeria]. [...] Aqui os comerciantes lidam com comerciantes. Vêm, veem

uma peça: “Ah, posso levar? Vou vender”. Você dá peça pro comerciante

revender. É assim que funciona aqui. A gente não vive só do público daqui.

A gente lida muito com comerciante, a gente faz negócio entre comerciantes.

E vem gente de todos os lugares, Bahia, Fortaleza, Ceará, vem de Manaus,

da Argentina9”.

O frenesi das ruas que dão acesso à galeria irrompe por dentro dos corredores, e o

primeiro piso vibra intensamente. Moradores, simples passantes, consumidores e

comerciantes circulam em um vai e vem constante, uma agitação que consegue atordoar os

espíritos mais serenos. Todavia, ao analisar bem, os movimentos mais amenos e

indisciplinados também se fazem presentes no bate-papo relaxado das lanchonetes e salões de

beleza, nos encontros para o café entre os intervalos no expediente, nas informais saudações

entre moradores, nos reencontros efusivos de quem não se vê há algum tempo.

Tais fenômenos expandem o sentido sobre a ebulição das metrópoles e desvelam a

organicidade da “adesão ao outro”, pois é no dia a dia da cidade que os compartilhamentos de

signos e sentimentos modelam o corpo social (MAFFESOLI, 2007). Segundo Milton Santos

(2008, p. 315 - 322), faz-se necessário considerar o cotidiano para apreender a nova realidade

organizada pela globalização, cujas dinâmicas e deslocamentos entre as dimensões local e

global inserem o “lugar numa posição central”. O lugar é, portanto, “um cotidiano compartido

entre as mais diversas pessoas, firmas e instituições”, espaço pragmático, mas que também

abarca as ações comunicativas e a alteridade. Destarte, os diferentes movimentos observados

no cotidiano da galeria constroem ali os significados próprios do espaço, configuram

territorialidades.

9 Z.F.A., comerciante. Depoimento gravado em 26 de fevereiro de 2016.

Page 9: Intercom Sociedade Brasileira de Estudos ...portalintercom.org.br/anais/nacional2016/resumos/R11-1142-1.pdf · Os múltiplos sentidos nos espaços da galeria Shopping Cidade Copacabana:

Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016

9

Observa-se, diante da polissemia das narrativas coletadas, que a trajetória histórica

da galeria é repleta de momentos distintos dos quais se alimentam os inúmeros imaginários

em torno do espaço. Aos momentos de decadência, de marasmo, de abandono somam-se os

períodos de euforia e prestígio, pelos quais são construídos, aos poucos, os sentidos do local

para a comunidade copacabanense e para a cidade.

Nesse sentido, vale indicar que no mesmo período em que o edifício foi construído, a

inauguração de centros comerciais seguia o ritmo de projetos imobiliários movidos pelo

interesse de investidores nacionais em inserir o hábito de consumo nos parâmetros mundiais.

A construção de um shopping-galeria-condomínio de estilo arquitetônico arrojado é basilar

para suscitar a ideia, que por muitos é compartilhada, de que a galeria é o primeiro shopping

da América do Sul10

. Outro fato percebido e que permanece ainda na memória coletiva, seja

em forma de saudosismo, seja em forma de antipatia, é a exposição dos produtos pelos

corredores, assim como em um grande mercado de rua.

“E eu sempre adorei esse shopping! Porque, nos anos 60, tinha um lixão

aqui. Lixão era um lugar aqui no segundo andar que as pessoas vinham

comprar calça jeans que saia da guerra, sabe? Do Vietnã. [...] o quente era ter

calça do lixão, cara. [...] Você vinha aqui, comprava as calças jeans, todas

remendadas, era super lindo. Eu já conheço esse shopping desde a época do

lixão, né? [...] antes aqui tinha uma coisa que era bem legal, a gente podia

pôr as coisas na porta. Tipo assim, Marais... Tem lá em Marais, tem umas

galerias assim que eles expõem tudo na rua. [...] Ficava bonito! Só que não

era todo mundo que punha coisa legal, aí começou a dar briga. Então hoje

em dia não pode pôr nada. Era uma coisa que eu achava que era bem legal.

Você passava no meio aqui e tava cheio de coisas. Problema que era coisa

legal ou não, entendeu? [...] Mas essa síndica deu uma ordem11

.”

“Antigamente, quando eu comecei [há trinta anos atrás], não tinha muitas

lojas como tem hoje. Tinha muitas lojas fechadas [...]. Lá em cima [no

segundo piso] tinha muitas lojas fechadas, muitas lojas de restauração, era

mais bagunçado do que é hoje. Lá em cima não era daquela forma que é. E

antigamente, você podia expor do lado de fora. Lá em cima então, era tudo.

Tinha mesa desmontada do lado de fora... A síndica que entrou organizou

um pouco. Pra gente [os comerciantes] foi um pouco ruim, porque se você

tem um móvel, a pessoa chega, olha... Uma coisa puxa outra... A gente não

pode expor mais nada lá fora12

”.

“Se todo mundo for botar alguma coisa, vai ficar igual à Rua da Alfândega.

[...] [no primeiro andar] é local de passagem, [...] tem muito movimento. [...]

Isso aqui [o segundo andar] sempre foi muito vazio mesmo [...] E foi

10Não há consenso quanto ao título, pois o shopping foi inaugurado em 1960, contudo, de acordo com a Associação Brasileira

de Shopping Centers – ABRASCE, o primeiro shopping do Brasil foi construído em 1966, na cidade de São Paulo. No ano

anterior, o Shopping do Méier, na zona norte da cidade do Rio de Janeiro já tinha sido inaugurado. Disponível em:

<http://www.portaldoshopping.com.br/sobre-a-abrasce/>; <https://globoplay.globo.com/v/4016350/> e

<http://cidadecopacabana.com.br/site/o-shopping/>. Acesso em 06 de jul. 2016. 11 O.F., artista plástica e proprietária de um ateliê no segundo andar. Depoimento gravado em 8 de março de 2016. 12 Z.F.A., comerciante. Depoimento gravado em 26 de fevereiro de 2016.

Page 10: Intercom Sociedade Brasileira de Estudos ...portalintercom.org.br/anais/nacional2016/resumos/R11-1142-1.pdf · Os múltiplos sentidos nos espaços da galeria Shopping Cidade Copacabana:

Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016

10

crescendo aos poucos, as lojas foram aumentando, alugando... Foi o primeiro

shopping... Acho que da América do Sul!13

A rampa interna espiralada estimula o deslocamento mais brando dos visitantes, o

caminho apresenta semelhanças com o conceito de movimento e exposição das rampas do

Museu Guggenheim. Do célere fluxo do primeiro piso passamos para um outro ambiente de

cartografia similar, porém com movimentos mais tranquilos, entramos no lugar imperativo da

contemplação. Embora seja composto em sua maioria por lojas que vendem antiguidades, o

que contribui para a denominação de Shopping dos Antiquários, o andar abriga também

galerias de arte, lojas de restauração, salas de espetáculos, brechós e ateliês. Salvo alguns

escritórios e um juizado especial, o ambiente destaca-se pelo aspecto lúdico, espaço das

(re)criações, e onde o passado e o presente estão em contato.

Entre 1971 e 2000, funcionou neste andar o Teatro Tereza Raquel, local de referência

na cena cultural nacional por receber grandes nomes da música e da dramaturgia. Antes de ser

arrendado por uma grande empresa de entretenimento que inaugurou ali o Theatro NET Rio

em 2011, o espaço passou por um longo período de inatividade. Ao longo de mais de uma

década, o antigo teatro foi alugado por uma igreja evangélica para cultos religiosos e recebeu

ensaios para musicais produzidos na cidade. Além do teatro, o visitante tem à sua disposição

as galerias de arte, que permitem ao visitante apreciar as obras diretamente pelas vitrines; o

Brechó de Salto Alto, local irreverente e eclético, onde é ofertada uma miscelânea de objetos

das décadas 50, 60, 70; e o Ateliê Odila Freire, famoso pelas bonecas de Frida Khalo feitas à

mão pela artista que dá nome à oficina. Embora significativos para o consumo de arte no

segundo andar, esses espaços não dominam a oferta de objetos e expressões artísticas, estas

podem ser vistas, ouvidas e sentidas por todos os corredores do andar, um exemplo disso é a

música de um piano exposto no corredor que ecoa por todos os pisos da galeria.

Pelas vitrines dos antiquários somos convidados a viajar pelo tempo, a sensação de

inquietação agora é causada pelo enorme acervo de antiguidades exposto, peças de

porcelanas, lustres, artes sacras, esculturas, tapetes persas e pinturas são instigadores do olhar,

impelindo os visitantes mais apressados à contemplação. Segundo os relatos coletados durante

as visitas a campo, o Shopping Cidade Copacabana é projetado para o Brasil e exterior como

sinônimo de espaço das antiguidades. De acordo com o depoimento do proprietário de duas

lojas de antiguidades distribuídas nos dois andares comerciais da galeria:

13 D.Z., aposentada e moradora do Condomínio do Conjunto Cidade de Copacabana. Depoimento gravado em 23 de março de

2016.

Page 11: Intercom Sociedade Brasileira de Estudos ...portalintercom.org.br/anais/nacional2016/resumos/R11-1142-1.pdf · Os múltiplos sentidos nos espaços da galeria Shopping Cidade Copacabana:

Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016

11

“Isso aqui é conhecido mundialmente como Shopping dos Antiquários, está

no coração de Copacabana. [...] A maior aglomeração de antiquários no

Brasil está aqui dentro. [...] São Paulo mesmo não tem a concentração que

tem aqui, no Brasil não tem a concentração de antiquários que tem aqui.”

Para complementar, o comerciante aponta que:

“[A fama do local] É internacional! Inclusive, tem uma peça aqui que é um

ícone. É o cavalo. Isso aí sai em novela, [...] esse cavalo pertencia ao

presidente [João Batipsta] Figueiredo. [...] sai em várias revistas no exterior,

vem gente de fora aqui pra ver o cavalo14

”.

Outras afirmações, no entanto, demonstram que a complexidade da galeria pode ser

considerada de forma mais ampla:

“Ser Shopping Cidade Copacabana eu acho bastante importante, até porque

isso é um microcosmo de Copacabana. Esse é o próprio Shopping Cidade

Copacabana. [...] Você tem tudo, tudo que você possa imaginar. [...] [Não sei

bem] Como começou essa coisa dos antiquários, mas começou, e um puxou

o outro, que puxou o outro... E eles mesmos fizeram, denominaram o

“Shopping dos Antiquários”. É a maioria aqui em cima [no segundo piso]?

Aqui em cima é. Mas já tem tempo que isso tá tendo outro perfil também.

[...] Tá sempre havendo renovação [...]15

”.

“[Shopping] dos Antiquários é nome fantasia. É Condomínio Cidade

Copacabana, esse é o nome do condomínio. Bem, a fantasia pegou porque

antigamente, há uns 25 anos atrás, a maior parte dos antiquários passou pra

cá. Aí como ficaram mais unidos, tem uma associação aqui dos antiquários,

ficou sendo conhecido como Antiquário. Porque aqui na verdade não é um

shopping, é um prédio de galeria e moradia16

”.

A análise de discursos divergentes apresenta outros ângulos para a observação do

espaço, verificamos, portanto, que as mudanças de perspectiva nos apontam outras direções a

serem percorridas. Assumindo tal compreensão, reconhecemos que as narrativas contrárias

também fazem parte das redes de interações presentes na galeria. Logo, considera-se que

definições rígidas ou tentativas de classificação dos territórios urbanos não correspondem à

plasticidade das ressignificações cotidianas nas grandes metrópoles (MAFFESOLI, 1998;

SANTOS, 2008; FERNANDES, 2014). Embora a galeria abrigue um número considerável de

estabelecimentos que negociam antiguidades – em torno de sessenta –, a denominação

“Shopping dos Antiquários” é incapaz de transmitir as heterogeneidades do espaço.

As histórias e as experiências individuais e coletivas formam um rico repertório que,

“sem negligenciar quaisquer potencialidades ou possibilidades” (MAFFESOLI, 1998, p. 122),

14 M.M., comerciante. Depoimento gravado em 17 de fevereiro de 2016. 15 I.F., arquiteta e proprietária de uma loja de móveis. Depoimento gravado em 2 de março de 2016. 16 P.C., comerciante e síndico do primeiro andar da galeria. Depoimento gravado em 22 de março de 2016.

Page 12: Intercom Sociedade Brasileira de Estudos ...portalintercom.org.br/anais/nacional2016/resumos/R11-1142-1.pdf · Os múltiplos sentidos nos espaços da galeria Shopping Cidade Copacabana:

Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016

12

viabiliza a compreensão. Isto é, através desse acúmulo de matéria orgânica (elementos

referentes a um mesmo objeto) que a apresentação de um mesmo lugar (solo) é enriquecida. A

força da vida coletiva e a multiplicidade de sentidos são reafirmadas a partir de relatos

provenientes de um movimento à deriva, que percorre as “micronarrativas” nas quais as

experiências, a corporeidade e as diferenças na cidade são enfatizadas (JACQUES, 2012).

Fonte: Cintia Sanmartin Fernandes

Figura 4 - Paróquia Nossa Senhora de Copacabana

Ao final da rampa, o visitante instantaneamente percebe que se trata de uma

espacialidade avessa aos outros ambientes da galeria, pois ali os fluxos são, de fato, mais

serenos – apesar das obras para erguer um grande centro hospitalar no local. Ali, encontram-

se apenas uma cantina simples com mesas e cadeiras dispostas pela área coberta e a igreja de

concreto e vidro que ocupa a maior parte do pátio descoberto. A Paróquia Santa Cruz de

Copacabana é parte do projeto original do edifício, o templo apresenta o desenho de uma

grande tenda, que simboliza o nomadismo dos antigos povos cristãos e a transitoriedade da

vida. Mesmo antes da inauguração das lojas e dos apartamentos, o local já recebia cerimônias

religiosas e reunia os católicos da vizinhança.

Durante anos a paróquia serviu como principal atrativo de público e, historicamente,

é ponto de ligação entre o espaço e a comunidade. Em janeiro de 1966, a paróquia acolheu nas

dependências do templo e da galeria centenas de pessoas que, em virtude de intensas chuvas

de verão que castigaram a cidade durante dias, ficaram desabrigadas. Ainda que desconhecido

por muitos, este fato é elemento significativo na construção dessa ligação.

“[...] caíram uma série de pedras enormes, aqui em cima no Morro dos

Cabritos, e arrastaram várias casas, morreram algumas pessoas. E, então,

[essas pessoas] não sabiam para onde ir. [...] o padre Ítalo [primeiro pároco]

que estava aqui desde 1961 acolheu todas as pessoas de lá. Aqui tinha uma

série de lojas vazias e ele abrigou todas, colocou todas as pessoas tanto aqui

Page 13: Intercom Sociedade Brasileira de Estudos ...portalintercom.org.br/anais/nacional2016/resumos/R11-1142-1.pdf · Os múltiplos sentidos nos espaços da galeria Shopping Cidade Copacabana:

Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016

13

na frente [no pátio], [...] como na própria igreja. [...] Era a única estrutura de

Copacabana capaz de poder abrigar todas essas pessoas. [...] Receberam

muita ajuda, na época, dos vizinhos. [...] Houve sim [...] essa abertura, essa

generosidade de oferecer a igreja e os limites das lojas aqui do lado. [...] [A

ligação acontece] Mesmo que você não quisesse, mas é inevitável. [...] são

pessoas que aqui foram batizadas, aqui receberam a primeira comunhão,

aqui receberam o sacramento da crisma, aqui se casaram, criaram um

ambiente familiar, teve filhos, depois netos. Houve realmente, um ponto,

historicamente falando, um ponto de referência que foi de família em

família. Constitui de verdade uma

verdadeira tradição entre as pessoas17

”.

A “rede mística” presente neste espaço, que ao longo do tempo foi se constituindo,

apresenta-nos aspectos instituintes e sensíveis próprios da religiosidade. A sinergia de ideias,

de certa forma presente nas religiões, nos indica aquilo que as comunidades devotas têm de

relevante para compreendermos a vida societal, pois através dos “contágios” religiosos

podemos apreender a potência gregária do imaginário coletivo, que na contemporaneidade é

ilustrada pela “forma estética”. Assim como no modelo religioso, o sentimento comunitário

molda conjuntos consistentes, tem a capacidade de resistir à rigidez dos projetos racionais e

não se organiza a partir de uma única referência (MAFFESOLI, 1998).

“Aqui é uma família, todo mundo se conhece. A nossa clientela [é de] gente

antiga, que a gente vê os filhos, os netos chegando. Já são muitos anos aqui

dentro, [...] somos um amigo dos outros, todo mundo conhecido. [...] não é

igual a todos os shoppings que é só shopping mesmo. [...] É diferente de

qualquer shopping que a gente vê por aí, que você chega, passeia no

shopping e vai embora. Aqui não, a gente sabe de um cliente, sabe se ele tá

doente... [...] É mais humano18

”.

“[...] depois que você entra aqui também, isso vira uma casa. Por eu

trabalhar muito em shopping, eu vejo a diferença desse [...] Claro que eu não

sou amiga de todo mundo. [...] [Mas] Tem umas coisas assim bem

amiga, sabe? De bairro mesmo. Ligação mesmo das pessoas19

”.

Considerações finais

Atento à realidade, à diversidade, às incertezas da vida cotidiana, o saber sensível é

“um método erótico” que promove recursos capazes para compreender as dinâmicas sociais

na contemporaneidade. É a conjunção entre intelecto e afeto, uma “razão aberta” e livre dos

apriorismos próprios à modernidade, que consegue dar conta dos diversos discursos e dos

múltiplos agrupamentos, sendo capaz de englobar a polissemia pós-moderna. Seguindo as

17 E.A., pároco da Paróquia Nossa Senhora de Copacabana. Depoimento gravado em 15 de abril de 2016. 18 A.C., comerciante. Depoimento gravado em 22 de março de 2016. 19 O.F., artista plástica e proprietária de um ateliê no segundo andar. Depoimento gravado em 8 de março de 2016.

Page 14: Intercom Sociedade Brasileira de Estudos ...portalintercom.org.br/anais/nacional2016/resumos/R11-1142-1.pdf · Os múltiplos sentidos nos espaços da galeria Shopping Cidade Copacabana:

Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016

14

rotas propostas por uma razão sensível, compreende-se ao invés de julgar, uma vez que

enxergamos a multiplicidade de valores (MAFFESOLI, 1998).

É, portanto, considerando o saber sensível que investigamos o Shopping Cidade

Copacabana, por entre suas galerias caminhamos à deriva e nos deparamos com um cenário

de inumeráveis nuances. A cada contato com a galeria desvelaram-se diferentes memórias

(coletivas e individuais), narrativas distintas e novos aspectos pelos quais vislumbramos os

paradoxos de um lugar único na cidade do Rio de Janeiro e reflexo das complexidades

urbanas. Diante disso, procuramos contar a história desse espaço por meio das

ressignificações cotidianas construídas através das experiências/movimento entre os corpos e

das interações sociais que ali se concentram (SENNET, 1997; JACQUES, 2012).

Em suma, verificamos neste lugar redes comunicativas que vão se (re)desenhando a

cada instante e a cada andar percorrido. Pois, para além da estrutura que ordena e pré-

programa os usos e experiências do espaço, observamos que as sensibilidades e as

multiplicidades da vida comum se fazem presentes (MAFFESOLI, 2007; FERNANDES

2012).

Referências

BARROS, José D’Assunção. Os falanstérios e a crítica da sociedade industrial: revisitando

Charles Fourier. In: Mediações: Revista de Ciências Sociais, Londrina, v.16, n.1, jan./jun. 2011, p.

239-255. Disponível em: <http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/mediacoes/article/view/7752>

Acesso em: 27 abr. 2016.

CANCLINI, Nestor G. Diferentes, Desiguais e Desconectados. Rio de Janeiro: Ed

UFRJ, 2005.

DELEUZE, G.; GUATARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo:

Editora 34, 5 vol. 2004.

FEIJÃO, Rosane. As praias cariocas no início do século XX: sociabilidade e espetáculos do corpo.

Revista Escritos, Ano 7, n. 7, 2013. Disponível em:

<http://www.casaruibarbosa.gov.br/escritos/numero07/artigo09.php>. Acesso em: 7 de abr. 2016.

FERNANDES, Cíntia S. Musicabilidade e sociabilidade: o samba e choro nas ruas-galerias do

centro do Rio de Janeiro. In: HERSCHMANN, Micael (org.). Nas bordas e fora do mainstream.

São Paulo: Editora Estação das Letras e das Cores, 2011.

_______. Territorialidades cariocas: cultura de rua, sociabilidade e música

nas "ruas galerias" do Rio de Janeiro. In: Comunicações e Territorialidades: Rio de

Janeiro em Cena. Guararema, SP : Anadarco, 2012, v.1, p. 71-95.

GOMES, Renato C. João do Rio por Renato Cordeiro Gomes. Rio de Janeiro: Agir, 2005.

HEIDEGGER, Martin. A Questão da Técnica, Cadernos de Tradução. São Paulo: USP,

Page 15: Intercom Sociedade Brasileira de Estudos ...portalintercom.org.br/anais/nacional2016/resumos/R11-1142-1.pdf · Os múltiplos sentidos nos espaços da galeria Shopping Cidade Copacabana:

Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016

15

n.2, 1997.

HERSCHMANN, M.; FERNANDES, Cíntia S. Música nas ruas do Rio de Janeiro. São Paulo:

Intercom, 2014.

JACQUES, Paola Berenstein. Elogio aos errantes. Salvador: EDUFBA, 2012.

MAFFESOLI, Michel. O mistério da conjunção: ensaios sobre comunicação, corpo e sociabilidade.

Porto Alegre: Sulina, 2009.

________. O ritmo da vida. Rio de Janeiro: Record, 2007.

________. O Tempo das Tribos. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1987.

O’DONNELL, Julia. A invenção de Copacabana: Culturas urbanas e estilos de vida no Rio de

Janeiro (1890-1940). Rio de Janeiro: Zahar, 2014.

SANTOS, Milton. A natureza do espaço. São Paulo: Edusp, 2008.

_________. Técnica, espaço, tempo: globalização e meio técnico-científico informacional. São

Paulo: Hucitec, 1994.

SENNETT, R. Carne e Pedra: o corpo e a cidade na civilização ocidental. Rio de Janeiro:

Record, 1997.

VALE, Renata W. S. Construindo a Corte: o Rio de Janeiro e a nova ordem urbana, 2007.

Disponível em:

<http://www.historiacolonial.arquivonacional.gov.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=861&sid=10

2>. Acesso em: 06 de abr. 2016.