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Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016
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Os múltiplos sentidos nos espaços da galeria Shopping Cidade Copacabana:
considerando e experienciando a alteridade1
Vitor Pereira de SOUSA2
Cíntia Sanmartin FERNANDES3
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ
Resumo
O presente artigo resulta do projeto de iniciação científica “Comunicação e cultura urbana: a
reinvenção da sociabilidade e da cidadania na cidade do Rio de Janeiro”, desenvolvido na
Faculdade de Comunicação Social do Estado do Rio de Janeiro (FCS/UERJ), e tem como
objetivo analisar e apresentar as multiplicidades de interações e sentidos, e a conjugação entre
passado e presente nos espaços da galeria Shopping Cidade Copacabana, localizada em um
dos pontos mais movimentados da zona sul carioca. Para tanto, em termos metodológicos,
utilizamos um enfoque múltiplo articulando investigação teórica e a observação participante
complementada por entrevistas semiestruturadas. Considerando que neste espaço as relações
não são pautadas unicamente pela lógica do consumo, percorremos um cenário singular e ao
mesmo tempo repleto de nuances.
Palavras-chave: comunicação; espacialidades; cidade; sociabilidade.
Apresentação
Com o propósito de analisar a sociabilidade urbana para além das dicotomias que
pautaram o pensamento moderno, buscando, portanto, vislumbrar os elementos heterogêneos
inseridos nela, o artigo percorre os diferentes níveis de um “microcosmo” dentro do bairro de
Copacabana, zona sul da cidade do Rio de Janeiro. Localizada entre as primeiras ruas da
história do bairro, a galeria Shopping Cidade Copacabana – ou Shopping dos Antiquários,
como é conhecido popularmente – é o espaço eleito para a observação e realização da
pesquisa. A partir da “prática do espaço”, tencionamos “apresentar” as interações individuais
e coletivas no/com o espaço, a constante negociação entre passado e presente e os múltiplos
sentidos expressos ali.
O termo “shopping” nos remete a um edifício comercial de limites internos e
externos bem definidos, onde as práticas e os usos do espaço são conduzidos por uma
¹Trabalho apresentado na Divisão Temática de Interfaces Comunicacionais, da Intercom Júnior – XII Jornada de Iniciação
Científica em Comunicação, evento componente do XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. 2Estudante de graduação do 7º semestre do Curso de Comunicação Social, habilitação em Relações Públicas da FCS-UERJ,
bolsista CNPq no projeto da Profª. Drª. Cíntia Sanmartin Fernandes intitulado “Comunicação e cultura urbana: a reinvenção
da sociabilidade e da cidadania nas galerias (de passagem) e ruas galerias da cidade do Rio de Janeiro”. Email:
[email protected] 3Orientadora do trabalho. Professora da Faculdade de Comunicação Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(FCS-UERJ) e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGCOM-
UERJ). E-mail: [email protected]
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ordenação espacial pré-programada. Diferentemente desses espaços, a organização do edifício
do Shopping Cidade Copacabana nos apresenta um shopping-galeria-condomínio, um
conjunto urbano equivalente às construções do século XVIII que funciona como passagem de
uma rua à outra e que engloba num mesmo local comércio e habitação. De caráter aglutinador
e multifuncional, a galeria investigada apresenta semelhanças com o projeto dos Falanstérios
de Fourier4, uma vez que agrega na mesma construção lojas, blocos de apartamentos, salas de
espetáculo e uma igreja (BARROS, 2011).
Cabe ressaltar que este artigo é fruto das pesquisas que estamos realizando no âmbito
do projeto de iniciação científica “Comunicação e cultura urbana: a reinvenção da
sociabilidade e da cidadania na cidade do Rio de Janeiro”, desenvolvido na Faculdade de
Comunicação Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FCS/UERJ), e que
pretende indicar campos de análise no que respeita à constituição de sociabilidades. As
pesquisas deste projeto se concentram em uma perspectiva teórica e metodológica que
considera a sensibilidade, os laços sociais fluidos, a errância e o nomadismo de valores
característicos das atuais dinâmicas societais. Propõem-se em estudar e compreender a cidade
e suas práticas culturais a partir da perspectiva intercultural (CANCLINI, 2005). E desse
modo, adentrar o universo das redes5 que tecem o cotidiano da cidade do Rio de Janeiro.
O projeto tem como corpus de estudo as Galerias de Passagem da cidade do Rio de
Janeiro. Estimula-nos investigá-las sob a hipótese da possibilidade de ser um espaço onde
também são promovidas relações que não passam apenas pela lógica do mercado, que no
cotidiano da interação e experiência com o espaço e com os “outros”, carrega consigo a
potencialidade de gestar (e gerar) novas sociabilidades. Assim, pensamos as Galerias de
Passagem cariocas como um lugar6, o que significa compreender a cidade como o espaço das
efervescências de diversos grupos (ou tribos), em que diferentes identidades solidificam-se,
4Charles Fourier, intelectual francês que propôs, durante as primeiras décadas do século XIX, pôr fim às desigualdades da
sociedade capitalista através da convivência comunitária. Para tal, Fourier, apresentou como projeto a construção dos
Falanstérios, edifícios que compreenderiam “galerias envidraçadas, pátios internos, jardins, galpões, salas comunais, oficinas,
hospedarias, áreas lúdicas que incluiriam um Teatro, e até mesmo uma Igreja” (BARROS, 2011, p. 251). 5A perspectiva assumida em nossa pesquisa trabalha com a compreensão de que a interação, a troca, o sentido e o significado
compartilhados por grupos de indivíduos representam metaforicamente uma teia relacional complexa. Para Maffesoli (1987),
a rede pode ser compreendida como entrelaçamento social, ou agregação social, como a reatualização do antigo mito da
comunidade em que as informações, os desejos e as fantasias circulam em um mecanismo de proximidade. Daí a existência
das pequenas tribos, efêmeras ou duradouras, conduzindo ao possível viver cíclico, viver que une o "lugar" e o "nós", mesmo
diante da complexidade do mundo vivido. Mundo de realidade imperfeita e atribulada, mas que não deixa de produzir um co-
naissance comum que circula na dança múltipla dos cruzamentos e entrecruzamentos, constituindo uma rede das redes. Na
comunicação, a ação de “redes sociais” ganha relevo nos últimos anos através dos trabalhos de André Lemos (2010) e Raquel
Recuero (2009). 6 O lugar pode ser entendido como “espaços afetivos” que vão sendo construídos, tomam forma, à medida que são vividos,
experienciados, sensivelmente e inteligivelmente. Seria aquilo que Milton Santos (1994) chamou de “espaços do acontecer
solidário”, que definem usos e geram valores de múltiplas naturezas, como culturais, antropológicos, econômicos, sociais
etc., em que se pressupõem coexistências culturais.
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mas que ao se relacionarem nos espaços públicos passam a fazer parte de outra rede de
relações. Passam a constituir uma rede rizomática em que vivenciam interações abertas onde
o contato e o diálogo permitem um desenvolver identitário não fixo (DELEUZE, 2004).
Lançam-se, assim, a uma interação com a potencialidade de criação de um "outro lugar", um
outro ethos7, um ethos que engloba as diversidades vividas em seus cotidianos socioespaciais.
Durante pesquisa empreendida na galeria Shopping Cidade Copacabana, foram
realizadas como procedimento científico, visitas a campo, estas divididas em dois momentos.
No período inicial de investigação observamos as particularidades de cada um dos quatro
pavimentos da galeria, a distribuição das lojas, das entradas e saídas e dos acessos aos blocos
de apartamentos, o que permitiu enxergar as fronteiras e as contiguidades espaciais. Em
seguida, nos detivemos à compreensão das identificações e experiências de atores que
vivenciam o cotidiano do local. Para tal, foram realizadas entrevistas semiestruturadas com
moradores/consumidores/comerciantes.
Enquanto estratégia metodológica para a elaboração deste artigo, valemo-nos dos
dados coletados durante as duas etapas do trabalho de campo (observações sobre a
organização do espaço e os depoimentos de diferentes sujeitos) e pesquisas bibliográficas
complementares – análise de matérias jornalísticas, de artigos e livros sobre os assuntos
abordados.
Rumo à Cidade Copacabana
As condições geográficas da cidade do Rio de Janeiro sempre foram tratadas como
obstáculo, tanto para o desenvolvimento econômico quanto para questões sanitárias. A cidade
cresceu em meio a vales, cercada entre os morros e o mar, era repleta de regiões alagadiças, o
que limitava a mobilidade e favorecia a proliferação de doenças. Para derrubar tais obstáculos
e configurar a cartografia espacial e simbólica da cidade que conhecemos hoje, foi preciso
aterrar pântanos e praias; desmatar, demolir e transpassar morros; desabrigar e segregar
milhares de pessoas. As transformações socioespaciais implementadas desde o período
colonial por instituições públicas e privadas são resultados dos esforços para alcançar um
modelo moderno de metrópole.
Nas primeiras décadas do século XIX, a pequena capital da colônia recebe a família
real portuguesa e sua corte, tornando-se sede do governo imperial, o que desencadeia uma
onda de transformações cada vez maiores no cotidiano e na fisionomia urbana. Desde então, o
7 Ethos entendido como “modo de ser”. Heidegger (1997), de diversas maneiras, chamou a atenção para o ethos como
maneira de habitar, como já apontavam os gregos.
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número de habitantes da cidade aumenta progressivamente, e a região central e sua periferia
imediata transformam-se em áreas densamente povoadas, abrindo caminho para ocupação
irregular. Esse foi o cenário propício para que discursos higienistas e moralistas ganhassem
força e aplicassem suas ideias em intervenções urbanas que, por sua vez, alteraram a
geografia da cidade e favoreceram a circulação entre áreas ainda pouco conhecidas pela
população. Dentre as regiões que, aos poucos, foram inseridas à malha urbana e beneficiadas
pelos projetos de urbanização das últimas décadas do século XIX, destacam-se os bairros
oceânicos, cuja ocupação se deu também em parte pela difusão dos hábitos balneários, que a
partir da segunda metade do século XIX já faziam parte das práticas de lazer das sociedades
“civilizadas” (O’DONNELL, 2014; FEIJÃO, 2013; VALE, 2007).
Os projetos de urbanização da região central que se propagaram em direção ao litoral
sul da cidade provocaram não só mudanças espaciais, como também engendraram
transformações em aspectos socioculturais, econômicos e políticos. Ao percorrer o trajeto do
“progresso” rumo à Zona Sul do Rio, cruzamos com um ícone dos interesses em alcançar o
padrão de metrópole, a antiga Avenida Central, atual Avenida Rio Branco. Encontramos o
prolongamento desta via em outra de igual importância para a cidade, a Avenida Beira Mar, e
continuamos em direção ao sul. Margeamos os históricos bairros da Glória e do Flamengo e
chegamos a Botafogo, seguindo pela enseada e avançando por entre as ruas encontramos, nos
limites do bairro, o Túnel Velho.
Tão logo ultrapassamos o túnel, vemos surgir a Rua Siqueira Campos, local
imprescindível no processo de urbanização do bairro de Copacabana, mesmo antes da obra
que atravessou a garganta entre os morros da Saudade e de São João e abriu passagem pelo
Túnel Velho8. Até a construção, um dos principais caminhos de acesso para Copacabana e
outras áreas da Zona Sul passava sobre os morros, descia a Ladeira do Barroso (atualmente
Ladeira dos Tabajaras) e terminava na rua de mesmo nome – hoje, Siqueira Campos
(O’DONNELL, 2014). Após a abertura do túnel, os bondes que vinham do Centro desciam a
rua até a Praça Malvino Reis, hoje Serzedelo Correia, próxima à praia. Atualmente, a via se
estende até a Avenida Atlântica e se interliga a outras passagens importantes para o bairro,
como, por exemplo, as ruas Tonelero e Barata Ribeiro e a Avenida Nossa Senhora de
Copacabana.
8Inaugurado como Túnel Real Grandeza, a passagem liga a rua de mesmo nome, em Botafogo, à Rua Siqueira Campos, em
Copacabana, a obra fazia parte do itinerário dos bondes que partiam do Centro. Durante a inauguração do túnel, em 1892,
diversas personalidades do poder público e privado estavam presentes, entre elas, o então presidente da República, marechal
Floriano Peixoto, fato que demonstra a importância dada pelas autoridades da época em remodelar e expandir a cidade.
Naquele momento, Copacabana já fazia parte dos planos de investidores, que viam ali o projeto de um novo bairro, símbolo
de distinção e salubridade (O’DONNELL, 2014).
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Fonte: Cintia Sanmartin Fernandes
Figuras 1 e 2 - Fachada do Shopping Cidade Copacabana na Rua Siqueira Campos
Na altura do número 143 da rua, encontramos a edificação que ao longo dos anos
tornou-se centro de compras, habitação e religiosidade para a comunidade local. Atualmente,
este é um ponto de movimento turbulento que vai se desfazendo conforme nos aproximamos
das extremidades da via. Há ali um intenso tráfego de automóveis; nas calçadas, camelôs,
turistas e moradores se embaraçam, se esbarram, se encontram. Também encontramos pela
região uma estação de metrô, pontos de ônibus, um hotel, um centro médico, um
estacionamento, uma creche, uma boate, bares, restaurantes, entre outros estabelecimentos
que servem de chamariz, fazendo deste lugar um dos mais diversificados e complexos do
bairro.
O edifício Shopping Cidade Copacabana foi construído em meio às intensas
transformações socioespaciais no Brasil durante a década de 1960. A título de exemplo, nessa
época, o crescimento populacional de Copacabana era maior do que no próprio município do
Rio de Janeiro (entre 1950 e 1960, o número de moradores da região cresceu 42%, enquanto a
então capital federal contabilizou um acréscimo de 34%), e a população flutuante do bairro
tornava-se cada vez maior, em virtude da implementação de novas linhas de ônibus e da
ampliação de vias de acesso. Os fortes investimentos econômicos empregados no país pelos
poderes público e privado no decorrer deste período beneficiaram o desenvolvimento do
bairro, que diante da construção diversificada e intensa de empreendimentos comerciais e
habitacionais transformou-se em uma “cidade-bairro”. Nesse sentido, os processos de
transformações socioeconômicas tornaram possível o incremento da heterogeneidade social
do bairro, cuja fama já fazia papel de cartão-postal do Brasil (O’DONNELL, 2013).
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Erguida no auge da arquitetura modernista, a galeria expressa a plasticidade desse
período em seu desenho arquitetônico e, valendo-se das configurações do tecido urbano,
viabiliza o acesso a três ruas. Dois corredores interligam as ruas Siqueira Campos e
Figueiredo de Magalhães, e a ramificação de um desses corredores principais conecta-se a
Rua Joseph Bloch. Uma extensa rampa espiralada localizada entre os corredores principais
suscita a fluidez da locomoção por entre os quatro pavimentos do prédio, enquanto os dois
conjuntos de escadas rolantes oferecem ao visitante o deslocamento entre o primeiro e o
segundo andar. Encontramos no subsolo do prédio, o estacionamento; fazem parte do
primeiro andar, sobretudo, lojas de utilidades e salões de beleza, além das portarias dos seis
blocos de apartamentos; o segundo piso, porém, é o local onde imperam as artes, o andar é
praticamente tomado por antiquários e galerias de arte, além de abrigar a bilheteria do Theatro
NET, antigo Teatro Tereza Rachel; já no terceiro andar, encontramos uma construção singular
envolta por paredes de vidro que abriga a Paróquia de Santa Cruz de Copacabana.
Fonte: Cintia Sanmartin Fernandes
Figura 3 - Rampa do interior da galeria
A partir de uma experiência itinerante, observamos na galeria a trama complexa e
múltipla de associações que desenha, à sua maneira, uma rede de relações, onde as dinâmicas
comunicacionais intensas e sensíveis ultrapassam as perspectivas pragmáticas de outros
tempos. Os (re)ajustes entre as relações econômicas e sociais apreendidas por entre as
passagens do Shopping Cidade Copacabana embasam reflexões que, conforme FERNANDES
(2012, p. 169), elegem as Galerias de Passagem como espaços de fruição, de um “tempo
lento”, onde são eleitos outros “valores, códigos, práticas sociais que geram novas
sociabilidades”. Podemos, portanto, enxergar nestes espaços o retrato do cotidiano urbano
onde as interações se dão em meio às diferenças.
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Experiências na alteridade
O primeiro andar da galeria é reflexo da convulsão das ruas de Copacabana, a
atividade do local é estimulada não somente pelo trânsito de pedestres, mas também por
reunir os diferentes gêneros de estabelecimentos comerciais, por agrupar num mesmo espaço
uma grande variedade de produtos e serviços. Um grande supermercado, restaurantes,
bazares, papelarias, salões de beleza e lojas de antiguidades são exemplos da configuração
dessa parte da galeria, que funciona como centro de consumo para trabalhadores e moradores
da região, e surpreende aos que desviam do roteiro turístico do bairro e se propõem a
experienciar outros lugares. Próximo às entradas do shopping, restaurantes e lanchonetes
podem ser acessados tanto pela rua quanto pelo interior dos corredores; do lado de fora, mesas
e cadeiras são dispostas pelas calçadas numa organização que produz a sensação de amplitude
dos ambientes e oculta os limites predeterminados entre os espaços público e privado.
Somam-se aos restaurantes e às lanchonetes outros estabelecimentos nos quais a
entrada é feita exclusivamente pelas calçadas e, cercando toda a fachada do shopping,
encobrem ainda mais a “áspera demarcação entre o interior e o exterior” (SENNET, 1997, p.
267). Dentre esses estabelecimentos, concentrados, sobretudo, na Rua Siqueira Campos,
encontramos uma agência bancária, uma farmácia, uma loja de ferragens, uma loja de
calçados, uma boate e alguns bares. O movimento da região segue ininterrupto, pois graças
aos botecos e à boate Fosfobox a excitação da área externa é capaz de se estender noite afora.
O espaço interno reduzido dos botecos faz com que os encontros regidos pelas bebidas
alcoólicas avancem pela calçada, o mesmo acontece durante as festas na Fosfobox, ali as
afetividades e os agrupamentos que têm como essência a música (MAFFESOLI, 2007;
FERNANDES, 2011) formam-se inicialmente ao longo das filas que tomam conta de quase
todo o passeio.
As normas de utilização dos espaços das lojas contribuem para as multiplicidades da
espacialidade, pois em oposição às rígidas regras dos grandes shoppings, é permitido aos
proprietários executar qualquer ofício dentro de seus imóveis, salvo algumas exceções.
Evidencia-se a configuração híbrida da galeria quando, por exemplo, em um mesmo corredor
do primeiro andar encontramos, em contiguidade, um restaurante japonês, um salão de beleza,
um pet shop e uma gráfica. Além da viabilidade de diversificação dos ramos de negócios, as
lojas da galeria não têm horário regular de funcionamento e em muitas delas é o próprio dono
quem atende e negocia diretamente com os consumidores. Diante de tais aspectos, apresenta-
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se uma espacialidade representativa das pluralidades, na qual se desenvolve um corpo
complexo de estreitas interações.
Nesse sentido, o relato da proprietária de um pequeno antiquário no térreo resume
parte da dinâmica da galeria – especificamente do primeiro piso – e a relação que ela, assim
como muitos outros, tem com o lugar:
“[Aqui] Tem todos os tipos de pessoas. Tem comerciante de fora,
comerciante do Rio que compra aqui [...]. Todo mundo já conhece, isso aqui
é uma galeria super conhecida pelos comerciantes. [...] Além de ser
comerciante, eu sou moradora também. Adoro morar aqui dentro. Adoro,
porque desci, tô na loja, desci, tô no carro. Então, pra mim é bem cômodo.
Gosto muito de morar aqui. Tenho amigos aqui em Copacabana. Tudo meu é
aqui. [...] gosto daqui [o primeiro piso] porque você lida com tudo. Pessoal
de salão, tem o barzinho pra você tomar o café [...]. [...] Isso aqui [a loja] é
minha segunda moradia. [...] Mas não sou somente eu não, tem outros
lojistas que moram aqui dentro. [...] o foco dos antiquários está aqui [na
galeria]. [...] Aqui os comerciantes lidam com comerciantes. Vêm, veem
uma peça: “Ah, posso levar? Vou vender”. Você dá peça pro comerciante
revender. É assim que funciona aqui. A gente não vive só do público daqui.
A gente lida muito com comerciante, a gente faz negócio entre comerciantes.
E vem gente de todos os lugares, Bahia, Fortaleza, Ceará, vem de Manaus,
da Argentina9”.
O frenesi das ruas que dão acesso à galeria irrompe por dentro dos corredores, e o
primeiro piso vibra intensamente. Moradores, simples passantes, consumidores e
comerciantes circulam em um vai e vem constante, uma agitação que consegue atordoar os
espíritos mais serenos. Todavia, ao analisar bem, os movimentos mais amenos e
indisciplinados também se fazem presentes no bate-papo relaxado das lanchonetes e salões de
beleza, nos encontros para o café entre os intervalos no expediente, nas informais saudações
entre moradores, nos reencontros efusivos de quem não se vê há algum tempo.
Tais fenômenos expandem o sentido sobre a ebulição das metrópoles e desvelam a
organicidade da “adesão ao outro”, pois é no dia a dia da cidade que os compartilhamentos de
signos e sentimentos modelam o corpo social (MAFFESOLI, 2007). Segundo Milton Santos
(2008, p. 315 - 322), faz-se necessário considerar o cotidiano para apreender a nova realidade
organizada pela globalização, cujas dinâmicas e deslocamentos entre as dimensões local e
global inserem o “lugar numa posição central”. O lugar é, portanto, “um cotidiano compartido
entre as mais diversas pessoas, firmas e instituições”, espaço pragmático, mas que também
abarca as ações comunicativas e a alteridade. Destarte, os diferentes movimentos observados
no cotidiano da galeria constroem ali os significados próprios do espaço, configuram
territorialidades.
9 Z.F.A., comerciante. Depoimento gravado em 26 de fevereiro de 2016.
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Observa-se, diante da polissemia das narrativas coletadas, que a trajetória histórica
da galeria é repleta de momentos distintos dos quais se alimentam os inúmeros imaginários
em torno do espaço. Aos momentos de decadência, de marasmo, de abandono somam-se os
períodos de euforia e prestígio, pelos quais são construídos, aos poucos, os sentidos do local
para a comunidade copacabanense e para a cidade.
Nesse sentido, vale indicar que no mesmo período em que o edifício foi construído, a
inauguração de centros comerciais seguia o ritmo de projetos imobiliários movidos pelo
interesse de investidores nacionais em inserir o hábito de consumo nos parâmetros mundiais.
A construção de um shopping-galeria-condomínio de estilo arquitetônico arrojado é basilar
para suscitar a ideia, que por muitos é compartilhada, de que a galeria é o primeiro shopping
da América do Sul10
. Outro fato percebido e que permanece ainda na memória coletiva, seja
em forma de saudosismo, seja em forma de antipatia, é a exposição dos produtos pelos
corredores, assim como em um grande mercado de rua.
“E eu sempre adorei esse shopping! Porque, nos anos 60, tinha um lixão
aqui. Lixão era um lugar aqui no segundo andar que as pessoas vinham
comprar calça jeans que saia da guerra, sabe? Do Vietnã. [...] o quente era ter
calça do lixão, cara. [...] Você vinha aqui, comprava as calças jeans, todas
remendadas, era super lindo. Eu já conheço esse shopping desde a época do
lixão, né? [...] antes aqui tinha uma coisa que era bem legal, a gente podia
pôr as coisas na porta. Tipo assim, Marais... Tem lá em Marais, tem umas
galerias assim que eles expõem tudo na rua. [...] Ficava bonito! Só que não
era todo mundo que punha coisa legal, aí começou a dar briga. Então hoje
em dia não pode pôr nada. Era uma coisa que eu achava que era bem legal.
Você passava no meio aqui e tava cheio de coisas. Problema que era coisa
legal ou não, entendeu? [...] Mas essa síndica deu uma ordem11
.”
“Antigamente, quando eu comecei [há trinta anos atrás], não tinha muitas
lojas como tem hoje. Tinha muitas lojas fechadas [...]. Lá em cima [no
segundo piso] tinha muitas lojas fechadas, muitas lojas de restauração, era
mais bagunçado do que é hoje. Lá em cima não era daquela forma que é. E
antigamente, você podia expor do lado de fora. Lá em cima então, era tudo.
Tinha mesa desmontada do lado de fora... A síndica que entrou organizou
um pouco. Pra gente [os comerciantes] foi um pouco ruim, porque se você
tem um móvel, a pessoa chega, olha... Uma coisa puxa outra... A gente não
pode expor mais nada lá fora12
”.
“Se todo mundo for botar alguma coisa, vai ficar igual à Rua da Alfândega.
[...] [no primeiro andar] é local de passagem, [...] tem muito movimento. [...]
Isso aqui [o segundo andar] sempre foi muito vazio mesmo [...] E foi
10Não há consenso quanto ao título, pois o shopping foi inaugurado em 1960, contudo, de acordo com a Associação Brasileira
de Shopping Centers – ABRASCE, o primeiro shopping do Brasil foi construído em 1966, na cidade de São Paulo. No ano
anterior, o Shopping do Méier, na zona norte da cidade do Rio de Janeiro já tinha sido inaugurado. Disponível em:
<http://www.portaldoshopping.com.br/sobre-a-abrasce/>; <https://globoplay.globo.com/v/4016350/> e
<http://cidadecopacabana.com.br/site/o-shopping/>. Acesso em 06 de jul. 2016. 11 O.F., artista plástica e proprietária de um ateliê no segundo andar. Depoimento gravado em 8 de março de 2016. 12 Z.F.A., comerciante. Depoimento gravado em 26 de fevereiro de 2016.
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crescendo aos poucos, as lojas foram aumentando, alugando... Foi o primeiro
shopping... Acho que da América do Sul!13
”
A rampa interna espiralada estimula o deslocamento mais brando dos visitantes, o
caminho apresenta semelhanças com o conceito de movimento e exposição das rampas do
Museu Guggenheim. Do célere fluxo do primeiro piso passamos para um outro ambiente de
cartografia similar, porém com movimentos mais tranquilos, entramos no lugar imperativo da
contemplação. Embora seja composto em sua maioria por lojas que vendem antiguidades, o
que contribui para a denominação de Shopping dos Antiquários, o andar abriga também
galerias de arte, lojas de restauração, salas de espetáculos, brechós e ateliês. Salvo alguns
escritórios e um juizado especial, o ambiente destaca-se pelo aspecto lúdico, espaço das
(re)criações, e onde o passado e o presente estão em contato.
Entre 1971 e 2000, funcionou neste andar o Teatro Tereza Raquel, local de referência
na cena cultural nacional por receber grandes nomes da música e da dramaturgia. Antes de ser
arrendado por uma grande empresa de entretenimento que inaugurou ali o Theatro NET Rio
em 2011, o espaço passou por um longo período de inatividade. Ao longo de mais de uma
década, o antigo teatro foi alugado por uma igreja evangélica para cultos religiosos e recebeu
ensaios para musicais produzidos na cidade. Além do teatro, o visitante tem à sua disposição
as galerias de arte, que permitem ao visitante apreciar as obras diretamente pelas vitrines; o
Brechó de Salto Alto, local irreverente e eclético, onde é ofertada uma miscelânea de objetos
das décadas 50, 60, 70; e o Ateliê Odila Freire, famoso pelas bonecas de Frida Khalo feitas à
mão pela artista que dá nome à oficina. Embora significativos para o consumo de arte no
segundo andar, esses espaços não dominam a oferta de objetos e expressões artísticas, estas
podem ser vistas, ouvidas e sentidas por todos os corredores do andar, um exemplo disso é a
música de um piano exposto no corredor que ecoa por todos os pisos da galeria.
Pelas vitrines dos antiquários somos convidados a viajar pelo tempo, a sensação de
inquietação agora é causada pelo enorme acervo de antiguidades exposto, peças de
porcelanas, lustres, artes sacras, esculturas, tapetes persas e pinturas são instigadores do olhar,
impelindo os visitantes mais apressados à contemplação. Segundo os relatos coletados durante
as visitas a campo, o Shopping Cidade Copacabana é projetado para o Brasil e exterior como
sinônimo de espaço das antiguidades. De acordo com o depoimento do proprietário de duas
lojas de antiguidades distribuídas nos dois andares comerciais da galeria:
13 D.Z., aposentada e moradora do Condomínio do Conjunto Cidade de Copacabana. Depoimento gravado em 23 de março de
2016.
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“Isso aqui é conhecido mundialmente como Shopping dos Antiquários, está
no coração de Copacabana. [...] A maior aglomeração de antiquários no
Brasil está aqui dentro. [...] São Paulo mesmo não tem a concentração que
tem aqui, no Brasil não tem a concentração de antiquários que tem aqui.”
Para complementar, o comerciante aponta que:
“[A fama do local] É internacional! Inclusive, tem uma peça aqui que é um
ícone. É o cavalo. Isso aí sai em novela, [...] esse cavalo pertencia ao
presidente [João Batipsta] Figueiredo. [...] sai em várias revistas no exterior,
vem gente de fora aqui pra ver o cavalo14
”.
Outras afirmações, no entanto, demonstram que a complexidade da galeria pode ser
considerada de forma mais ampla:
“Ser Shopping Cidade Copacabana eu acho bastante importante, até porque
isso é um microcosmo de Copacabana. Esse é o próprio Shopping Cidade
Copacabana. [...] Você tem tudo, tudo que você possa imaginar. [...] [Não sei
bem] Como começou essa coisa dos antiquários, mas começou, e um puxou
o outro, que puxou o outro... E eles mesmos fizeram, denominaram o
“Shopping dos Antiquários”. É a maioria aqui em cima [no segundo piso]?
Aqui em cima é. Mas já tem tempo que isso tá tendo outro perfil também.
[...] Tá sempre havendo renovação [...]15
”.
“[Shopping] dos Antiquários é nome fantasia. É Condomínio Cidade
Copacabana, esse é o nome do condomínio. Bem, a fantasia pegou porque
antigamente, há uns 25 anos atrás, a maior parte dos antiquários passou pra
cá. Aí como ficaram mais unidos, tem uma associação aqui dos antiquários,
ficou sendo conhecido como Antiquário. Porque aqui na verdade não é um
shopping, é um prédio de galeria e moradia16
”.
A análise de discursos divergentes apresenta outros ângulos para a observação do
espaço, verificamos, portanto, que as mudanças de perspectiva nos apontam outras direções a
serem percorridas. Assumindo tal compreensão, reconhecemos que as narrativas contrárias
também fazem parte das redes de interações presentes na galeria. Logo, considera-se que
definições rígidas ou tentativas de classificação dos territórios urbanos não correspondem à
plasticidade das ressignificações cotidianas nas grandes metrópoles (MAFFESOLI, 1998;
SANTOS, 2008; FERNANDES, 2014). Embora a galeria abrigue um número considerável de
estabelecimentos que negociam antiguidades – em torno de sessenta –, a denominação
“Shopping dos Antiquários” é incapaz de transmitir as heterogeneidades do espaço.
As histórias e as experiências individuais e coletivas formam um rico repertório que,
“sem negligenciar quaisquer potencialidades ou possibilidades” (MAFFESOLI, 1998, p. 122),
14 M.M., comerciante. Depoimento gravado em 17 de fevereiro de 2016. 15 I.F., arquiteta e proprietária de uma loja de móveis. Depoimento gravado em 2 de março de 2016. 16 P.C., comerciante e síndico do primeiro andar da galeria. Depoimento gravado em 22 de março de 2016.
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viabiliza a compreensão. Isto é, através desse acúmulo de matéria orgânica (elementos
referentes a um mesmo objeto) que a apresentação de um mesmo lugar (solo) é enriquecida. A
força da vida coletiva e a multiplicidade de sentidos são reafirmadas a partir de relatos
provenientes de um movimento à deriva, que percorre as “micronarrativas” nas quais as
experiências, a corporeidade e as diferenças na cidade são enfatizadas (JACQUES, 2012).
Fonte: Cintia Sanmartin Fernandes
Figura 4 - Paróquia Nossa Senhora de Copacabana
Ao final da rampa, o visitante instantaneamente percebe que se trata de uma
espacialidade avessa aos outros ambientes da galeria, pois ali os fluxos são, de fato, mais
serenos – apesar das obras para erguer um grande centro hospitalar no local. Ali, encontram-
se apenas uma cantina simples com mesas e cadeiras dispostas pela área coberta e a igreja de
concreto e vidro que ocupa a maior parte do pátio descoberto. A Paróquia Santa Cruz de
Copacabana é parte do projeto original do edifício, o templo apresenta o desenho de uma
grande tenda, que simboliza o nomadismo dos antigos povos cristãos e a transitoriedade da
vida. Mesmo antes da inauguração das lojas e dos apartamentos, o local já recebia cerimônias
religiosas e reunia os católicos da vizinhança.
Durante anos a paróquia serviu como principal atrativo de público e, historicamente,
é ponto de ligação entre o espaço e a comunidade. Em janeiro de 1966, a paróquia acolheu nas
dependências do templo e da galeria centenas de pessoas que, em virtude de intensas chuvas
de verão que castigaram a cidade durante dias, ficaram desabrigadas. Ainda que desconhecido
por muitos, este fato é elemento significativo na construção dessa ligação.
“[...] caíram uma série de pedras enormes, aqui em cima no Morro dos
Cabritos, e arrastaram várias casas, morreram algumas pessoas. E, então,
[essas pessoas] não sabiam para onde ir. [...] o padre Ítalo [primeiro pároco]
que estava aqui desde 1961 acolheu todas as pessoas de lá. Aqui tinha uma
série de lojas vazias e ele abrigou todas, colocou todas as pessoas tanto aqui
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na frente [no pátio], [...] como na própria igreja. [...] Era a única estrutura de
Copacabana capaz de poder abrigar todas essas pessoas. [...] Receberam
muita ajuda, na época, dos vizinhos. [...] Houve sim [...] essa abertura, essa
generosidade de oferecer a igreja e os limites das lojas aqui do lado. [...] [A
ligação acontece] Mesmo que você não quisesse, mas é inevitável. [...] são
pessoas que aqui foram batizadas, aqui receberam a primeira comunhão,
aqui receberam o sacramento da crisma, aqui se casaram, criaram um
ambiente familiar, teve filhos, depois netos. Houve realmente, um ponto,
historicamente falando, um ponto de referência que foi de família em
família. Constitui de verdade uma
verdadeira tradição entre as pessoas17
”.
A “rede mística” presente neste espaço, que ao longo do tempo foi se constituindo,
apresenta-nos aspectos instituintes e sensíveis próprios da religiosidade. A sinergia de ideias,
de certa forma presente nas religiões, nos indica aquilo que as comunidades devotas têm de
relevante para compreendermos a vida societal, pois através dos “contágios” religiosos
podemos apreender a potência gregária do imaginário coletivo, que na contemporaneidade é
ilustrada pela “forma estética”. Assim como no modelo religioso, o sentimento comunitário
molda conjuntos consistentes, tem a capacidade de resistir à rigidez dos projetos racionais e
não se organiza a partir de uma única referência (MAFFESOLI, 1998).
“Aqui é uma família, todo mundo se conhece. A nossa clientela [é de] gente
antiga, que a gente vê os filhos, os netos chegando. Já são muitos anos aqui
dentro, [...] somos um amigo dos outros, todo mundo conhecido. [...] não é
igual a todos os shoppings que é só shopping mesmo. [...] É diferente de
qualquer shopping que a gente vê por aí, que você chega, passeia no
shopping e vai embora. Aqui não, a gente sabe de um cliente, sabe se ele tá
doente... [...] É mais humano18
”.
“[...] depois que você entra aqui também, isso vira uma casa. Por eu
trabalhar muito em shopping, eu vejo a diferença desse [...] Claro que eu não
sou amiga de todo mundo. [...] [Mas] Tem umas coisas assim bem
amiga, sabe? De bairro mesmo. Ligação mesmo das pessoas19
”.
Considerações finais
Atento à realidade, à diversidade, às incertezas da vida cotidiana, o saber sensível é
“um método erótico” que promove recursos capazes para compreender as dinâmicas sociais
na contemporaneidade. É a conjunção entre intelecto e afeto, uma “razão aberta” e livre dos
apriorismos próprios à modernidade, que consegue dar conta dos diversos discursos e dos
múltiplos agrupamentos, sendo capaz de englobar a polissemia pós-moderna. Seguindo as
17 E.A., pároco da Paróquia Nossa Senhora de Copacabana. Depoimento gravado em 15 de abril de 2016. 18 A.C., comerciante. Depoimento gravado em 22 de março de 2016. 19 O.F., artista plástica e proprietária de um ateliê no segundo andar. Depoimento gravado em 8 de março de 2016.
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rotas propostas por uma razão sensível, compreende-se ao invés de julgar, uma vez que
enxergamos a multiplicidade de valores (MAFFESOLI, 1998).
É, portanto, considerando o saber sensível que investigamos o Shopping Cidade
Copacabana, por entre suas galerias caminhamos à deriva e nos deparamos com um cenário
de inumeráveis nuances. A cada contato com a galeria desvelaram-se diferentes memórias
(coletivas e individuais), narrativas distintas e novos aspectos pelos quais vislumbramos os
paradoxos de um lugar único na cidade do Rio de Janeiro e reflexo das complexidades
urbanas. Diante disso, procuramos contar a história desse espaço por meio das
ressignificações cotidianas construídas através das experiências/movimento entre os corpos e
das interações sociais que ali se concentram (SENNET, 1997; JACQUES, 2012).
Em suma, verificamos neste lugar redes comunicativas que vão se (re)desenhando a
cada instante e a cada andar percorrido. Pois, para além da estrutura que ordena e pré-
programa os usos e experiências do espaço, observamos que as sensibilidades e as
multiplicidades da vida comum se fazem presentes (MAFFESOLI, 2007; FERNANDES
2012).
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