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Cadeos de rras da UFF - unos da Pós-Graduação 2003, n.28, p. 39-50, 2003 39 lnteração de alunos de diferentes nacionalidades em um curso de Português Introdução para estrangeiros Denise Barros Weiss suMo Este texto rem como objetivo discutir as características das rel ações entre alunos de diferentes nacionalidades em uma aula de Port uguês como língua estrangeira, em situação de imersão. Toma, como pont os de parti da para a análise, a linguagem como fenômeno social e a sala de aula como espaç o privilegiado de interação. Enquanto a relação entre p rofessor e aluno se caracteriza p ela assimetr ia e pela predominância do interesse di dático, a relação entre os alunos é mais simétrica e imprevisí vel. O resultado da relação entre os alunos pode auxiliar ou comprometer o resultado dos trabalhos em sal a de aul a. O objetivo deste estudo é observar as estratégias comun icat ivas empregadas por alunos estrangeiros de diferentes nacional idades quando estão reuni- dos para assistir a aulas de Português como língua estrangeira (PLE) em situação de imersão. Os alunos cuja interação será alvo desta pesquisa cursam Português na Universidade Federal de Ju iz de Fora (Minas Gerais). A sala de aula de Português como língua estrangeira abarca um feixe de relações específicas, que não são usuais em outros contextos de ensino-aprendizagem. Alunos adultos, oriundos de diferentes países e portadores de diferentes culturas, se encontram em uma sala de aula, fora de seus países de origem. Cada um é portador de uma história de vida que, via de regra, interessa aos outros alunos, assim como ao profes- sor. Dessa maneira, a interação aluno I aluno é parte integrante e importante do dia- a-dia da sala de aula, assim como os conflitos redundantes desse conta to nem sempre amistoso entre os alunos. A língua portuguesa, nesse contexto, é simultaneamente a língua-alvo, objero de estudo, e língua-ponte, já que os alunos não têm domínio total de outra l íngua que seja comum a todos.

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Cadernos de Lerras da UFF - Alunos da Pós-Graduação 2003, n.28, p. 39-50, 2003 39

l nteração de a l u nos de diferentes nacional idades em um curso de Português

Introdução

para estrange i ros

Denise Barros Wei ss

REsuMo Este texto rem como objetivo discutir as características das relações entre alunos de diferentes nacionalidades em uma aula de Português como língua estrangeira, em situação de imersão. Toma, como pontos de partida para a análise, a linguagem como fenômeno social e a sala de aula como espaço p rivilegiado de interação. Enquanto a relação entre p rofessor e aluno se caracteriza pela assimetria e pela predominância do interesse didático, a relação entre os alunos é mais simétrica e imprevisível. O resultado da relação entre os alunos pode auxiliar ou comprometer o resultado dos trabalhos em sala de aula.

O objetivo deste estudo é observar as estratégias comunicativas empregadas por alunos estrangeiros de diferentes nacionalidades quando estão reuni­dos para assistir a aulas de Português como língua estrangeira (PLE) em

situação de i mersão. Os alunos cuja interação será alvo desta pesquisa cursam Português na Universidade Federal de Juiz de Fora (Minas G erais) .

A sala de aula de Português como língua estrangeira abarca um feixe de relações específicas, que não são usuais em outros contextos de ensino-aprendizagem. Alunos adultos, oriundos de diferentes países e portadores de diferentes culturas, se encontram em uma sala de aula, fora de seus países de origem. Cada um é portador de uma história de vida que, via de regra, interessa aos outros alunos, assim como ao profes­sor. Dessa maneira, a interação aluno I aluno é parte integrante e importante do dia­a-dia da sala de aula, assim como os conflitos redundantes desse conta to nem sempre amistoso entre os alunos.

A língua portuguesa, nesse contexto , é simultaneamente a língua-alvo, objero de estudo, e língua-ponte, já que os alunos não têm domínio total de outra língua que seja comum a todos.

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Observar essa interação será uma oportunidade de ver o aluno atuando simul­taneamente como aprendiz e usuário da língua. As informações decorrentes dessa observação serão, assim, de utilidade para se compreender quais os caminhos empregados por eles para chegarem à compreensão do Português.

P ressupostos teóricos

A perspectiva a ser adorada aqui é aquela que considera a linguagem um fenômeno social, histórico e, por isso mesmo, ideológico. Pretende-se adorar uma visão bakhtin iana da linguagem, para quem "o sujeito se constitui ouvindo e assimilando as palavras e os discursos do outro ( . . . ) fazendo com que essas palavras e discursos sejam processados de forma que se tornem, em parte, as palavras do sujeito e, em parte, as palavras do outro . " (Souza, 1995: 22) .

Segundo Kerbrat-Orecchioni :

Ao mesmo tempo em que constroem juntos um discurso mais ou menos coerente, os participantes da troca comunicativa constroem entre si um cerro tipo de relação (de distância ou de proximidade, de hierarquia ou de igualdade, de conflito ou de conivência), que não pára de evoluir ao curso do desenrolar da inreração. (2001 : 68)

O trabalho da sala de aula de língua estrangeira deve levar em conta a linguagem como interação, sem desco nsiderar sua complexidade e tratar o sujeito da aprendizagem como ser social. O aluno deve ser visto, então , como alguém que interage com os demais participantes da sala de aula - professor e demais alunos - de aco rdo com seus próprios interesses e sentimentos, absorvendo no decorrer do aprendizado aquilo que o toca, que o incomoda ou o comove. É preciso levar em conta ainda que o que o aluno pretende ao iniciar um curso de língua estrangeira nem sempre coincide com aquilo que os demais participantes daquela interação (professor e demais alunos) consideram relevante. A sala de aula é, nessa perspectiva, "uma arena de conflitos de vozes e valores mutáveis e concorrentes" (Souza, 1995 : 23).

Entendemos, como Kleiman ( 1 998: 28 1 ) , que "as identidades são (re) criadas na interação e por isso podemos dizer que a interação é também instrumento mediador dos processos de identificação dos sujeitos sociais envolvidos numa prática social ."

Em uma sala de aula de língua estrangeira, muitos são os discursos que se interpenetram. A voz do professor, inicialmente a única a ser ouvida na sala, vai progressivamente dando lugar a outras vozes, as dos alunos. No processo de domínio da língua-alvo esses alunos vão aos poucos se assenhorando da palavra. Quando já é possível haver aulas cujo propósito é a conversação , abre-se a possibilidade de os

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alunos usarem a língua para falarem de si , daquilo que lhes é caro. Esse processo é, contudo, muito mais visceral quando se dá em contexto de imersão. Nessa situação, a língua-alvo é também a língua de comunicação. Aprendê-la, portanto, deixa de ser uma questão de interesse acadêmico para ser questão de sobrevivência:

Os discursos em aula de língua são constituídos de fragmentos hererogêneos: elementos da língua-alvo, elementos de língua materna, comentários meralingüísticos, "mandar fazer" pedagógico, construções ficcionais. Esta diversidade se explica pela finalidade de uma interação de vocação didática em meio institucional sobre a qual pesa um conjunto de regras. (Cicurel, 1 998: 8 ) .

De todos esses fragmentos, o mandar-fazer pedagógico costuma tomar um espaço considerável nas preocupações dos pesquisadores. É grande o número de trabalhos cujo foco é esse. Há uma valorização das relações professor/aluno, explicável pela posição hegemônica dessa interação no contexto de sala de aula. É o que nos mostra, por exemplo, Malamah-Thomas ( 1 987: 3):

Aprender uma língua, como qualquer outra coisa, é essencialmente uma aquisição individual, uma exploração das capacidades da mente de compreender o ambiente. Mas tipicamente esse processo privado ocorre no contexto público da sala de aula, o indivíduo é um em um grupo, um membro da classe, e as atividades que encaminham o processo são determinadas pelo professor. O que se considera é que esse processo interno virá como conseqüência da inreração externa que ocorre entre dois tipos de participante: o professor de um lado e os alunos, de outro. [tradução da autora] '

Nessa imagem da sala de aula, a interação relevante para o aprendizado é aquela realizada entre o professor, guia, guru, detentor de todo o conhecimento, e os alunos, de olhos e ouvidos atentos unicamente às palavras daquele que é o centro permanente das atenções.

Entretanto, assistir a uma única aula de línguas pode desfazer essa impressão. As relações em sala de aula têm mais componentes, entre os quais a relação aluno I aluno. Aparentemente marginal ao que interessa na sala de aula, considerada perniciosa pelos professores mais radicais e impossibilitadas em muitas culturas (como a japo­nesa) , essa interação pode fornecer indicações muito importantes para se compreender o que efetivamente se passa na sala.

Sabe-se que há grande diferença entre o que o professor ensina e o que o aluno aprende. Cicurel assim comenta os papéis dos envolvidos na sala de aula:

As atitudes frente à língua são diferentes de acordo com o papel que se rem na inreração. O professor mostra uma tendência a simplificar, explicitar, remando reduzir as dificuldades da descrição ou às vezes, ao contrário, assinalando-as para

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guiar o aluno ou para adverti-lo. O sujeito aprendiz, por sua vez, deseja compreender as razões e um funcionamento de um contexto. Ele é o locutor do porquê e se mantém à distância da língua a ser aprendida para aprendê-la. (Cicurel, 1 998 : l i )

No caso específico dos cursos de Português como língua estrangeira em que há grande diversidade de alunos participantes das turmas quanto à origem e cultura de aprender, conhecer essas expectativas pode fazer a diferença entre sucesso e fracasso do trabalho. N o caso a ser estudado, trata-se de turmas cujo único faror de nivelamento é o grau de escolaridade - são aceitos aqueles alunos que têm o curso médio (ou seu equivalente) completo. O professor nesse curso lida com alunos adultos, geralmente com uma grande experiência de vida. Nessas turmas, cada um se torna m otivo da curiosidade, às vezes de preconceito, para os demais alunos. Aí surge um feixe de relações imprevisíveis, que vão da identificação ao ódio, de que o professor nem sempre percebe e que interfere no comportamento e no rendimento da turma. Trata-se, fundamentalmente, da manifestação do processo que Hanvey, eirado por Schlatter ( 1 996: 1 6-7), chama de conscientização cultural:

No estágio l, a informação sobre a cultura de outro povo consiste de traços superficiais, faros isolados e estereótipos. A cultura é rida como estranha, bizarra e exótica. Os indivíduos da outra cultura são muitas vezes considerados rudes, ignorantes, lhes falta um certo refinamento. No estágio 2, a informação é ampliada com os traços que contrastam com a própria cultura. O comportamento dos indivíduos é rachado de irracional, irritante e sem sentido. No 3° estágio, a cultura estrangeira começa a ser aceita no nível intelectual, tornando-se, pois aceitável porque pode ser explicada. O comportamento passa a ser interpretado através do parâmetro da própria cultura estrangeira. Finalmente o último estágio é o da em paria. O indivíduo começa a ver a cultura como se pertencesse a ela e pode assim sentir o que o nativo sente.

O autor certamente se referia à relação do aluno com a língua-alvo, mas é possível ampliar seu raio de ação para que abranja também as relações que cada aluno têm com as demais culturas com as quais convive em uma sala mulricultural.

Em uma p rimeira fase desse relacionamento, os envolvidos no processo (inclu­i nd o-se aí alunos e p ro fessores) tendem a olhar uns para os outros com base em conceitos já muito arraigados. É como se a sala de aula não fosse formada por pessoas, mas por nacionalidades. Não existe John, mas um americano , nem Hideki , mas um japonês. Na falta de referências específicas, rodos usam as imagens estereotipadas que têm sobre os países de o rigem dos colegas. O professor também é identificado de acordo com o mesmo critério.

As relações entre os alunos podem ser descritas como o fez a professora Lygia Trouche, que descreveu assim sua sala de aula em uma experiência realizada no

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Programa de P ortuguês da UFF:

Como num jogo de espelhos, as diversas culturas representadas por alunos alemães, japoneses, norte-americanos, de São Salvador e da Nova Zelândia enrram em conta to numa busca de reconhecimento de identidades nacionais específicas e de possibilidades de compreensão mais profunda, em nível humano, numa rroca de experiências de vida e modos de ser diferentes. (T rouche, 1 996: 7 1 )

Nesse processo, a língua-alvo torna-se, mais do que o bj eto do olhar do aluno, m e i o de c o m u n i cação p rogressiva m e n t e mais efetivo das n ecessidades e questionamentos de cada um, proporcionando negociações de sentido sempre mais sofisticadas. O nível de interação entre os aprendizes é, nessa perspectiva, essencial para possibilitar mais oportunidades de crescimento nesse contexto.

Andrea Semprini comenta a esse respeito:

A interação e a rroca não colocam simplesmente o indivíduo em contaro com o urros modelos identirários ( ... ) Todo indivíduo faz de um modo mais explícito ou menos, um julgamento sobre a identidade do ourro e é objero, sua vez, de um j ulgamento análogo. Essa dinâmica pode aferar profundamente as personalidades na interação e provocar uma alteração de identidades. (Semprini, 1 999: 1 04)

Relação professor/aluno e relação aluno/aluno - espaços de criação identitária

Em uma sala de aula de língua estrangeira, há diferentes níveis de interação : a primeira, caracterizada por uma relação de poder, ocorre entre o professor e cada um de seus alunos, ou ainda entre o professor e a turma como um todo.

Nas palavras de Almeida:

Na qualidade de contexto interacional, a sala de aula se define como lugar de aprendizagem. Nesse espaço interagem dois tipos de atores, cujos papéis sociais são claramente definidos: o do professor, em princípio "aquele que rem a função de ensinar", e o aluno, "aquele que se dispõe a aprender", recendo cada um deles em relação ao ourro e ao seu comportamento uma série de expectativas, até cerro ponto autorizadas. As trocas que se estabelecem entre eles têm como principal objerivo a transmissão de conhecimentos. Professor e aluno constituem, portanto, uma relação de caráter pedagógico. (2000: 95)

Trata-se de uma relação que possui "forre componente institucional", e um "grau de rigidez elevado" , ainda nas expressões de Almeida (2000: 94). Nela os papéis sociais envolvidos estão previamente estabelecidos e há uma tendência à restrição dos temas e dos modos de interação possíveis. Nessa relação, o aluno costuma pro-

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curar produzir um discurso mais formal, voltado em grande parte para o atendi­mento das proposições da situação de sala de aula - responde às perguntas formula­das , tira suas dúvidas. Nessa interação formal, está presente a preocupação em ser proficiente na língua-alvo, mas nem sempre é primordial a comunicação de idéias, a troca de significados. Essa é, freqüentemente, a relação padrão da sala, já que provê a carga de info rmações prevista no contrato da sala de aula - o professor, centro das atenções e coordenador das atividades, fornece o estímulo, enquanto o aluno, correspondendo ao papel que lhe é designado, responde a esse estímulo da maneira apropriada. A assimetria da relação se observa comumente até na conformação física da sala de aula: enquanto o professor assume a posição principal, à frente da sala, o grupo de alunos permanece reunido de frente para ele. Formam-se assim um palco e uma platéia. A relação entre eles já é conhecida por todos os participantes. São previstas as atividades, as perguntas e as respostas, tudo às vezes dado ao grupo pelo texto - o livro didático - compartilhado por professor e alunos. Nessa relação predomi­na a previsibilidade do que se diz, do modo como se diz e do objetivo com que se diz.

A segunda modalidade de interação é a que existe entre os alunos. Ao contrário da anterior, essa é menos institucionalizada, menos assimétrica. No contexto formal da sala, essa troca tende a ser mais significativa (em termos de produção de significado) , menos ditada pelas exigências de um programa de estudos e mais voltada para a info rmação. É multidirecional e imprevisível, por não ser ditada pela ordem dominante na sala. Entretanto, isso não quer dizer que ela deixe de ter importância como fazer acadêmico.

Em uma aula de língua estrangeira não basta apenas que haja interação entre professor-aluno. A relação entre os alunos também é comumente utilizada como recurso de ensino-aprendizagem. Isso fica mais evidente nas atividades de conversa­ção , nas quais o diálogo se dá não somente entre professor e aluno, mas também e principalmente entre os alunos. Aqui surge um aspecto específico do ensino de língua estrangeira, que não é típico de nenhuma outra interação de caráter didático: o fato de que os alunos (e o professor) costumam expo r aspectos de suas vidas para os demais participantes daquela interação.

É certo que o objetivo principal dessa interação, sob o ponto de vista do professor, é dar ao aluno a possib ilidade de lidar com amostras variadas de material lingüístico, possibilitando-lhe treino de vocabulário e de estruturas lingüísticas pre­viamente estudadas, por exemplo. Para fazer isso, o professor tende a propor temas que ele supõe sejam do interesse do aluno. Entre eles, destacam-se aspectos da vida

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cotidiana, já que uma das funções de um curso de língua estrangeira é habilitar o aluno a falar sobre esses temas. ÀB vezes, são questões como: Qual é sua bebida preferida? ou A que horas você acorda?. Outras vezes, lida-se com aspectos do passado: Quais suas brincadeiras fàvoritas antigamente?.

Sendo uma interação voltada apenas para o treinamento, o aluno poderia mentir, inventar o que quisesse a respeito de assuntos desconfo rtáveis. Entretanto , o aluno muitas vezes não i nterpreta a interação dessa maneira, e não só procura manter-se verdadeiro em sua fala, mas também se preocupa com o que os outros participantes vão pensar dele diante do que diz ao professor e, por conseqüência, à turma. O resultado dessa não sintonia entre o que o p rofessor deseja provocar a partir de determinado estímulo e o que ele efetivamente provoca é, às vezes, uma situação desconfortável. Cremos ser essa uma situação bem mais freqüente em salas de português como língua estrangeira, especialmente naquelas em que o grupo de alunos é formado por representantes de diferentes nacionalidades. Vejamos um exemplo disso:

Em turmas de português como língua estrangeira, perguntar sob re a bebida preferida a um aluno pode gerar comentários j ocosos dos colegas, tais como: Ele bebe muito! Ontem ficou bêbado na festa!. Se ele for abstêmio por motivos religiosos, o problema p ode ser mais grave, já que ele pode entender que o professor estava i nsinuando algo muito ruim sobre ele. O resultado pode ser uma série de explica­ções do aluno, posto em situação embaraçosa.

A questão A que horas você se levan ta? pode ser interpretada como uma alusão ao fato de o aluno gostar de se levantar mais tarde, o que lhe daria a imagem, frente aos colegas, de preguiçoso . No caso de alunos japoneses , é bastante freqüente que eles queiram dormir mais pela manhã, mas isso não se coaduna com a i magem que lhes é agradável cultivar de alunos aplicados e eficientes. Daí já houve situações em que o aluno se sentiu obrigado a explicar aos colegas que em sua vida cotidiana, como estudante, as aulas costumam começar às nove da manhã, diferentemente do que ocorre no Brasil, em que os trabalhos começam mais cedo.

Os aspectos relacionados ao passado são ainda mais passíveis de conduzir a situações realmente desconfortáveis. P ode acontecer de a menção a b rincadeiras da infância provocar no aluno lembranças do fato de ter passado a sua em um país em guerra, por exemplo, ou levá-lo a sentir-se saudoso de sua terra natal.

Para lidar com essas situações, depende-se fundamentalmente de uma boa relação entre os alunos, e entre eles e o professor. D o contrário , a conversação não passará de tentativas do professor que levam a respostas bastante previsíveis dos alunos que

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ele convida a participar. Cada aluno precisa sentir-se suficientemente confortável frente aos colegas para deixar um pouco de lado a tarefa de proteger sua imagem:

Nos diálogos, assim como nas demais formas de inreração face-a-face, o aluno acha­se em posição vulnerável, já que expõe publicamenre sua aura-imagem (face). Dessa forma ele corre sempre o risco de exibir o que desejava ver resguardado e deixar de colocar em evidência o que rem a inrenção de mostrar. Por esse motivo, o falanre adora procedimenros que lhe permitem conrrolar a construção dessa aura-imagem. ( G alembeck, 1 999 : 72)

B rown e Levinson chamam a essa auto-imagem território e face. O indivíduo se vê sempre dividido entre o desejo de preservar seu território (seja ele corporal, material, espacial, temporal ou mental) e o de preservar sua face (sua imagem frente aos outros - a 'boa imagem') . Vejamos como esses dois interesses são ameaçados na vida cotidiana: um pedido ameaça a face do que pede, porque ele se põe na posição do que não é onipotente; ao mesmo tempo, esse pedido ameaça o território do que recebe o pedido, que se vê constrangido a sair de sua posição por algo que não é, em princípio, de seu interesse.

Segundo Silva ( 1 999: 1 09) , "na sala de aula ( . . . ) há um constante movimento de ameaça e preservação das faces. Para que a relação entre os participantes da interação na sala de aula possa desenvolver-se de maneira satisfatória, há um verdadeiro j ogo para atenuar os efeitos das ameaças à face de um ou de outro."

Diamondstone ( 1 999: 1 1 2) fez um estudo das táticas de resistência utilizadas na interação entre alunos. Nesse artigo, comenta as atitudes do aluno frente aos desafios da sala de aula:

Aprender em sala de aula significa panicipar de práticas de letramenro através das quais os aprendizes passam a se considerar como mais ou menos capazes. Quando suas idenridades como escrirores ou aprendizes em sala são postas à prova, eles podem combinar uma série de recursos discursivas e retóricos para se posicionarem de maneira vanrajosa. (Tradução da aurora)1

Nas turmas de Português como língua estrangeira, as estratégias de proteção de face têm papel especialmente relevante na interação entre os alunos. Como já foi comentado, cada aluno chega à sala como portador de uma cultura que os demais reconhecem em termos dos estereótipos que a acompanha.

Como explica Dravet:

Se admitirmos que cada indivíduo possui uma culrura pessoal, feira de várias sub­culturas não claramente identificáveis que o rornam um ser cultural único, remos também que admitir que as particularidades culrurais reconhecidas num indivíduo

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permitem que o identifiquemos com um ou vários grupos culturais determinados, tornando-o um representante desse ou desses grupos. Neste sentido, no intuito de corresponder a uma identidade particular, o indivíduo tende a perder a sua pluralidade cultural e roda a riqueza que esta poderia representar para o outro. (2000)

Ao longo do tempo, vai progressivamente se abrindo para a aceitação não só da cultura-alvo - a brasileira - mas também das culturas maternas dos outros alunos. Mas nesse processo freqüentemente há conflitos.

A respeito dos conflitos, comenta Kleiman:

Quando consideramos a interação de grupos muito diferenciados quanto aos seus valores, crenças e atitudes, em que há marcada assimetria entre participantes em relação ao poder e às normas institucionalmente determinadas, o conflito é norma e não exceção. ( ... ) Daí mantermos que o conflito é constitutivo na interação quando os participantes pertencerem a grupos sociais diferentes, que têm relações de poder muito diferentes. ( 1 998 : 279)

O modo como esses conflitos se resolvem (ou não) dita em grande medida o nível de interação entre os alunos, o que, por sua vez, terá influência em seus progressos na língua-alvo. O aluno em conflito com os outros se revela mais arredio , quando das interaçóes verbais, mesmo com o professor, j á que cada pergunta pode ser uma armadilha, cada resposta um perigo de relevar o que não quer, pela falta de confiança nos demais. O aluno que se integra mais facilmente, ao contrário, tende a aproveitar as chances para se expor, se apresentar aos colegas. Isso fica evidente nas situações de sala de aula em que se discutem aspectos das culturas.

Muitas vezes são os próprios alunos que apresentam aspectos da cultura brasileira uns para os outros, durante suas conversas em sala. Cada um compartilha com os colegas e com o pro fessor seu ponto de vista a respeito daquilo que viu e experimentou. Mas é oportuno lembrar que o aluno que aprende uma língua não o faz para poder falar da cultura alheia, mas, prioritariamente, para falar de si mesmo, para se apresentar e apresentar sua cultura e sua maneira de pensar aos outros. Nesses momentos as estratégias empregadas pelos alunos para proteção da face podem ser observadas:

( . . . ) o exercício requerido pela aprendizagem de uma língua estrangeira se revela tão delicado porque, ao solicitar, a um tempo, nossa relação com o saber, nossa relação com o corpo e nossa relação com nós mesmos enquanto sujeito-que-se-autoriza-a­falar-em- primeira-pessoa, solicitam-se as bases mesmas de nossa estruturação psíquica, e com elas aquilo que é, a um mesmo tempo, o instrumento e a matéria dessa estruturação: a linguagem, a língua chamada materna. Toda renrariva para aprender uma outra língua vem perturbar, questionar, modificar aquilo que está inscrito em nós com as palavras dessa primeira língua. ( Revuz, 1998: 2 1 7)

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Um exemplo é o acontecido há algum tempo, na sala de PLE. Havia um grupo de alunos que formavam um mosaico de culturas com problemas de relacionamento sobejamente conhecidos. Um aluno russo , um alemão, e um sérvio. Nos primeiros meses, cada aluno só se comunicava com o professor, evitando a todo custo atividades que incluíssem conversas entre eles. As respostas às questões formuladas pelo professor geralmente eram encaradas como motivo para exibição das facetas mais agradáveis de cada cultura. Assim, o russo fazia questão de elogiar sua cidade, enaltecendo seus aspectos culturais, e evitando escrupulosamente questões ligadas ao fato de ela se l ocalizar na Sibéria. O alemão, por sua vez, contava as belezas da região em que morava, enquanto o Sérvio explicava que sua cultura era a mais refi­nada entre aquelas da região (o curso ocorreu na época da guerra em Kosovo) . Todos evitavam o tema "guerra". Com o passar do tempo, p orém , começou a haver um movimento entre eles. Alemão e sérvio 'se aliaram' contra o russo. Aí os temas mudaram, passando a abranger questões como a fome (a Rússia passava por grandes dificuldades financeiras) . Somente depois de aproximadamente sete meses de con­vívio é que o russo p assou a ser incluído de modo menos formal nas interações.

Essa turma chamou a atenção p ara os movimentos realizados pelos alunos na sala, e p ara a importância crucial deles para o andamento dos trabalhos.

Considerações finais

A sala de aula é o espaço privilegiado, o caldeirão o nde fervem informações, crenças, imagens, dados. A língua-alvo torna-se meio de comunicação e de defesa. Cada aluno é um espaço em permanente construção, frágil diante das diferenças, que no i nício se lhe afiguravam curiosas, mas que podem ameaçar alterar-lhe as verdades a que sempre esteve acostumado. Uns olham para os outros e, devagar, vão se acostumando. Nesse acostumar-se descobrem que o outro não é uma bandeira, mas uma pessoa, em toda a complexidade do humano. Sua condição de estrangeiro, as imperfeições de sua língua 'absorvem', para o outro, sua estranheza e a tornam suportável. Vemos aqui toda a ambigüidade da maldição de Babel. Ao separar os h omens de maneira radical, ela cria também o espaço para uma diferença legítima: " aprender uma l íngua é sempre, um p ouco, tornar-se um outro." (Revuz, 1 998 : 227)

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N O TAS

1 Learning a language, like rhe learning of anyrhing else, is essencially an individual achievemem, an exploiration of rhe capaciries of rhe mind to make sense of rhe enviromem. Bur ripically rhis privare process rakes place in rhe public conrexr of classroom, rhe individual is one of a group, a member of rhe class, and rhe acriviries which are to ser rhe process in train are derermined by rhe reacher. The assumprion is rhar rhis internal process oflearning will come abour as a consequence of rhe exrernal inreracrion which rakes place berween rwo kinds of participam: rhe reacher on one hand, and rhe learners on rhe orher.

2Classroom learning means parriciparing in lireracy pracrices rhrough which learners come to know rhemselves as more o r less capable parricipanrs in lireracy evenrs. When rheir idenriries as wrirers and classroom learners are ar srake, srudenrs may marshal a variery of discursive and rhetorical resources to posirion rhemselves advanrageously.

REFERf.NCIAS BI BLIOGRÁFI CAS

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