inteligÊncia artificial mito e ciÊncialmp/publications/online-papers/ia-mito.pdf · e portanto...

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1 mitológicos clássicos que as permeiam até hoje, forne- cendo-lhes uma leitura moderna, com suporte na litera- tura e filosofia originadas pelos progressos científicos e técnicos relativos à Máquina; • abordar o tema da potencial perigosidade da IA. Destas opções terá porventura resultado, espero, um artigo de temática mais original, demonstrando o inte- resse em examinar a ciência e tecnologia sob um ponto de vista mais lato, e lançando uma ponte entre as inegáveis duas culturas a que se referiu C. P. Snow. FUNDAMENTOS COMPUTACIONAIS DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL A Inteligência Artificial é uma disciplina científica que utiliza as capacidades de processamento de símbolos da computação com o fim de encontrar métodos genéricos para automatizar actividades perceptivas, cognitivas e manipulativas, por via do computador. Comporta quer aspectos de psicanálise quer de psi- cossíntese. Possui uma vertente de investigação fundamental acompa- nhada de experimentação, e uma ver- tente tecnológica, as quais, em con- junto, estão a promover uma revolu- ção industrial: a da automatização de faculdades mentais por via da sua modelização em computador. Depois do trabalho pioneiro, nos anos 30, dos matemáticos Church, Gödel, Kleene, Post, e especial- mente Turing, que forneceu um fun- damento matemático à Ciência da Computação, tornou-se claro que a noção de computação não se esgota no cálculo numérico. De facto, a ão pretende este artigo abordar questões técnicas, fornecer uma introdução à Inteligência Artificial (IA), nem expor o seu “estado da arte”. Tal só seria viável num ensaio relativamente longo, uma vez que a IA não está ainda suficientemente difundida na cultura de nível universitário do público a que se dirige esta revista, ao contrário do que sucede com outros domínios científicos. Felizmente, existem já algumas obras publi- cadas em Portugal que se dedicaram a fazê-lo, e as quais aconselhamos na secção de sugestões de leitura para aprofundamento. Em contraposição, o tópico da IA suscita quase sempre, entre leigos e não só, discussões acaloradas sobre os limites apriorísticos das máquinas, muitas vezes por oposição aos do Homem, e independentemente do saber científico e técnico actuais. Tais confrontos de opinião são fre- quentemente mais emocionais, filo- sóficos, religiosos, ideológicos, etc., do que propriamente científicos; o que não significa desvalorizá-los. Por consequência, pareceu oportuno neste artigo: • endereçar os fundamentos e suposições em que assenta a IA actual bem como os seus limites teó- ricos e epistemológicos, e de seguida comparar esta com a mente humana, argumentando em conclusão por um posicionamento simbiótico; • justificar e salientar a impor- tância tecnológica e económica da IA, e, portanto, fornecer também um quadro sintético do seu ensino e investigação em Portugal; • perspectivar as problemáticas gerais atrás referidas à luz de temas Ciência como uma estreita simbiose com o Homem, que a concebeu, a Inteligência Artificial vale-se da capacidade do computador para processar símbolos, automatizando faculdades mentais até hoje desconhecidas das máquinas. INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL MITO E CIÊNCIA LUÍS MONIZ PEREIRA Licenciado em Engenharia pelo Instituto Superior Técnico e doutorado em Cibernética na Universidade de Brunel, Luís Moniz Pereira é hoje Professor catedrático do Depar- tamento de Informática da Universidade Nova de Lisboa. Dada a projecção internacio- nal que têm tido os seus trabalhos de investi- gação, foi eleito Presidente honorário da Associação Portuguesa para a Inteligência Artificial e Director do Centro de Inteligência Artificial da UNINOVA. Membro dos Conse- lhos de algumas das mais importantes revistas científicas da sua especialidade, foi galar- doado com o Premio Gulbenkian de Ciência e Tecnologia em 1984. N

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mitológicos clássicos que as permeiam até hoje, forne-cendo-lhes uma leitura moderna, com suporte na litera-tura e filosofia originadas pelos progressos científicos etécnicos relativos à Máquina;

• abordar o tema da potencial perigosidade da IA.Destas opções terá porventura resultado, espero, um

artigo de temática mais original, demonstrando o inte-resse em examinar a ciência e tecnologia sob um ponto devista mais lato, e lançando uma ponte entre as inegáveis

duas culturas a que se referiu C. P.Snow.

FUNDAMENTOS COMPUTACIONAISDA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL

A Inteligência Artificial é umadisciplina científica que utiliza ascapacidades de processamento desímbolos da computação com o fimde encontrar métodos genéricos paraautomatizar actividades perceptivas,cognitivas e manipulativas, por viado computador. Comporta queraspectos de psicanálise quer de psi-cossíntese. Possui uma vertente deinvestigação fundamental acompa-nhada de experimentação, e uma ver-tente tecnológica, as quais, em con-junto, estão a promover uma revolu-ção industrial: a da automatização defaculdades mentais por via da suamodelização em computador.

Depois do trabalho pioneiro, nosanos 30, dos matemáticos Church,Gödel, Kleene, Post, e especial-mente Turing, que forneceu um fun-damento matemático à Ciência daComputação, tornou-se claro que anoção de computação não se esgotano cálculo numérico. De facto, a

ão pretende este artigo abordar questões técnicas,fornecer uma introdução à Inteligência Artificial(IA), nem expor o seu “estado da arte”. Tal só

seria viável num ensaio relativamente longo, uma vez quea IA não está ainda suficientemente difundida na culturade nível universitário do público a que se dirige estarevista, ao contrário do que sucede com outros domínioscientíficos. Felizmente, existem já algumas obras publi-cadas em Portugal que se dedicaram a fazê-lo, e as quaisaconselhamos na secção de sugestõesde leitura para aprofundamento.

Em contraposição, o tópico da IAsuscita quase sempre, entre leigos enão só, discussões acaloradas sobre oslimites apriorísticos das máquinas,muitas vezes por oposição aos doHomem, e independentemente dosaber científico e técnico actuais.Tais confrontos de opinião são fre-quentemente mais emocionais, filo-sóficos, religiosos, ideológicos, etc.,do que propriamente científicos; oque não significa desvalorizá-los. Porconsequência, pareceu oportunoneste artigo:

• endereçar os fundamentos esuposições em que assenta a IAactual bem como os seus limites teó-ricos e epistemológicos, e de seguidacomparar esta com a mente humana,argumentando em conclusão por umposicionamento simbiótico;

• justificar e salientar a impor-tância tecnológica e económica daIA, e, portanto, fornecer tambémum quadro sintético do seu ensino einvestigação em Portugal;

• perspectivar as problemáticasgerais atrás referidas à luz de temas

Ciência como uma estreita simbiose com o Homem, que a concebeu,a Inteligência Artificial vale-se da capacidade do computador para processar símbolos,

automatizando faculdades mentais até hoje desconhecidas das máquinas.

INTELIGÊNCIA ARTIFICIALMITO E CIÊNCIA

LUÍS MONIZ PEREIRA

Licenciado em Engenharia pelo InstitutoSuperior Técnico e doutorado em Cibernéticana Univers idade de Brunel , Luís MonizPereira é hoje Professor catedrático do Depar-tamento de Informática da UniversidadeNova de Lisboa. Dada a projecção internacio-nal que têm tido os seus trabalhos de investi-gação, foi eleito Presidente honorário daAssociação Portuguesa para a InteligênciaArtificial e Director do Centro de InteligênciaArtificial da UNINOVA. Membro dos Conse-lhos de algumas das mais importantes revistascientíficas da sua especialidade, foi galar-doado com o Premio Gulbenkian de Ciência eTecnologia em 1984.

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noção abrange tudo o que é um processo efectivo tendoem vista obter um resultado, e que use apenas para issoquaisquer símbolos (i.e. padrões) e quaisquer operaçõessobre esses símbolos (expressas também elas por símbo-los), desde que uns e outras sejam perfeitamente defini-dos. O computador é o artefacto que incorpora e dá eficá-cia prática a essa noção, a qual tem, demonstradamente,a máxima generalidade concebida. Na verdade, a tese dacomputabilidade simbólica universal é impossível derefutar através dos referidos processos efectivos.

O projecto ambicioso da IA apoia-se, em última análi-se, nessa generalidade. A sua limitação essencial seráquando muito a da representabilidade do conhecimentopor tais meios simbólicos...! Não parece possível, noentanto, examinar com rigor exteriorizável e objectivo,tal limitação, sem usar esses mesmos meios simbólicos.Não haverá ciência do irrepetível, nem conhecimentoobjectivo exteriorizável sem um suporte baseado na iden-tidade do símbolo. A tese da suficiência da representabi-lidade simbólica de todo o conhecimento não é facil-mente rebatível, e não o foi ainda, constituindo um reptofértil para a investigação. A dificuldade de rebater essatese não significa que não haja conhecimento não-simbo-lizável. Mas se delimitação existe, a exploração aquémdos limites é mesmo assim infindável, mal tendo começa-do. A pergunta permanece: o que é um símbolo, tal quea inteligência o possa usar, e o que é a inteligência, talque possa usar um símbolo?

INTELIGÊNCIA NATURAL E ARTIFICIAL

O computador torna possível a IA porque é umamáquina que processa símbolos de forma automatizada eeficiente. Tal processamento poderia em teoria fazer-secom papel, lápis e cérebro; mas seria incómodo, e na prá-tica não iria longe. Até que ponto se podem fazer analo-gias completas com o cérebro, depende deste ser tambémmodelizável exclusivamente como um processador desímbolos.

Um ponto básico a este respeito é o da distinção entre“software” e “hardware”, que é rica em consequências.Nomeadamente ela explica a não obrigatoriedade de cor-respondência entre uma função e o suporte material dessafunção. O “hardware” do nível físico não tem de ser espe-cífico de uma função realizada a nível mais alto pelo“software”, antes possibilita a execução de uma variedadedessas funções. Outra consequência da distinção entre“hardware” e “software” diz respeito ao nível de explica-ção. Um programa pode ser entendido, na sua função oudisfunção, em termos do seu próprio nível de discurso,da sua linguagem. Claro que uma disfunção pode origi-nar-se no “hardware” de suporte, mas nesse caso elamanifesta-se num comportamento bizarro do programa,não entendível ao seu nível de discurso, e não específicadesse programa.

A Ciência da Computação, por definição, só é possívelao percerber-se que o “software” tem uma independência

em relação ao “hardware”. Caso contrário estar-se-ia aestudar o computador A , a máquina B, o autómato C, ouo cérebro D, e não a computação em geral. Tal noção,que não é óbvia, é hoje em dia comummente aceite, ape-sar de relativamente recente.

Poderá ser que entretanto se descubram novas noçõesde computador, ou melhor, de computação. Tal equivalepossivelmente a perguntar se é possível um conhecimentoexteriorizável, observável, repetível e objectivo, que nãoseja completamente expressável através de símbolos dis-cretos organizados em linguagem. Por outras palavras, seserá possível uma ciência não simbólica, em particularuma ciência não simbólica do cérebro. O computador éum automatizador de teorias, mas desconhecemos sehaverá “hardware” não simbólico, inclusive biológico,cujo funcionamento seja indescritível em termos de sím-bolos e manipulações sobre eles.

Mas até lá, o computador pode fornecer modelos dacompetência cognitiva, independentemente do substratoque permite a sua manifestação em “performance”. Aofazê-lo vai redefinindo entretanto o conceito de máquinacognitiva.

Ao aceitarmos as duas premissas: que o cérebro tem emgrande parte uma componente de processamento de sím-bolos, e que há em grande parte uma independência do“software” em relação ao “hardware”, isto é, que podemosdiscutir as questões de processamento de símbolos docérebro sem fazer necessariamente apelo às operaçõesorgânicas que as suportam, então podemos encontrar nocomputador uma fonte nova de metáforas, que inclusivereconciliam a visão do determinismo material com a visãomentalista teleológica. De facto, o computador veio elu-cidar um problema filosófico de sempre, o da interacçãocorpo-mente (o “mind-body problem”), em todas as suasversões monistas ou dualistas, com ou sem interacção,com ou sem epifenómenos, etc., porque reconcilia aque-las duas visões: cada uma é afinal um ponto de vista, umadescrição da mesma coisa.

Como se concilia então o determinismo com a teleolo-gia, isto é, com a intencionalidade guiada por objectivos?

Imagine-se um círculo e outro dentro, e que esteúltimo representa um ser com intencionalidade. Que esseser possui uma memória e essa memória registou eventospassados. Que esses eventos interactuam entre si namemória do ser, e há portanto uma causalidade entreeles. Fora desse círculo interior existe a causalidade domundo do círculo exterior. No entanto, o ser intencio-nante, em virtude da sua memória, conseguiu isolar doexterior um certo nexo causal, e é permeável ao exteriorsó até certo ponto. Ele próprio escolhe em parte a suaabertura ao exterior. Digamos que temos um oceano cau-sal, no meio do qual há uma bolha, mais ou menos iso-lada dessa causalidade exterior, com todo um mundo cau-sal próprio dentro de si. Aí podem originar-se, actuandode dentro para fora, processos causais correspondentes àefectivação da intencionalidade do ente. É claro que eleestá submetido ao banho causal exterior, não podendo

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escolher exactamente as causas a que está sujeito, emborapodendo escolher algumas.

Ora, qualquer das causalidades, interior ou exterior, édeterminística, mas o carácter, digamos, secreto, da cau-salidade interior é fonte de surpresa para a causalidadeexterior, porque é uma causalidade acumulada, histórica,e portanto imprevisível olhando apenas às circunstânciasexteriores e de fronteira actuais. A liberdade do ser con-siste em ser dependente do seu nexo causal interno, e sepossível independente do nexo causal externo (1).

A finalizar esta secção seria bom referir quais as dife-renças entre a inteligência natural e a artificial, tal comoas concebemos hoje em dia. Primeiro, o cérebro é suscep-tível de regimes de trabalho que não são do tipo tudo ounada como o computador. O cérebro pode estar ébrio,pode estar alucinado, ou com sono, e isso corresponde aregimes de funcionamento que têm um nexo próprio, aopasso que o computador não. O computador ou funcionanum único modo bem caracterizado, ou não está funcio-nando de todo, isto é, o funcionamento que exibe entãonão faz sentido quanto ao que dele se pretende. Adicio-nalmente, o cérebro tem grandes capacidades de parale-lismo, como é sabido, e só hoje em dia se começam aexplorar computadores com tais capacidades.

Por fim, o cérebro tem a característica de ser autopro-gramável, isto é, tem um sistema motivacional e umaconsciência reflexiva com capacidade de em grandemedida controlar todo o seu funcionamento, e mesmo desuprir ou superar mecanismos nervosos de nível mais bai-xo.

Na computação, como a entendemos usualmente, hádados que variam com as circunstâncias, mas cada pro-grama é fixo. Pouco se explorou a capacidade de autopro-gramação, embora a possibilidade de o programa se auto-modificar esteja presente em certas linguagens de progra-mação. Talvez porque não se sabe bem que fazer comisso, pois tal envolve a capacidade de definição de objecti-vos genéricos variáveis, os quais no homem são quer her-dados quer adquiridos culturalmente, em interacçãoaberta e continuada com o meio.

SIMBIOSE DA INTELIGÊNCIA

A IA, como procura de mecanismos que expliquem eexplorem faculdades mentais, não se fica pelo que seconhece. Procura inventar novos mecanismos e faculda-des, podendo as inovações ser apropriadas por via da edu-cação.

Fig. 1 - Alan Turing: criador do primeiro computador,a quem deu inteligência artificial.

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Fig. 2 - O modelo humano e o seu mecanismo escondido (séc. XVIII).

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Fig. 3 - O autónomo como simbiose entre o humano e o maquinal (versão feudal japonesa).

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O uso da IA passa, aliás, por uma simbiose. Não há,segundo creio, uma maneira de pensar do Homem fixapara todo o sempre. A forma de pensar evolui com o tem-po, encontrando-se novos modos de raciocínio (por exem-plo o raciocínio presente na “dedução por absurdo”). Emúltima análise, a IA é o resultado de uma simbiose entrea forma de pensar do Homem e a da Máquina. Esta apa-rece como um reflexo, um espelho epistemológico doHomem, enquanto programador da Máquina. Esta pensade acordo com aquilo que aquele sabe explicitar comrigor ser possível pensar. Mas o novo e maravilhoso ins-trumento activo que é o computador provoca a imagina-ção, com a ajuda da invenção, a explorar possibilidadesanteriormente inexistentes. O resultado final é uma com-plementaridade simbiótica.

O computador permite-nos explorar melhor certasdimensões do pensamento, tanto pela sua capacidade deretenção de informação como pela sua velocidade, sur-gindo-nos como um instrumento que é uma espécie detelescópio da complexidade. De facto, se com o telescó-pio vemos mais longe, com o computador vamos maislonge na capacidade de lidar com o complexo. Ele é naverdade o primeiro instrumento com quantidades signifi-cativas de memória passiva manipulável de forma rápida,racional e automática por memória activa (as instruções)com uma possibilidade de complexificação ilimitada.

Mas o raciocínio não esgota a noção de inteligência,nem esta a noção de conhecimento. Indo à raiz da pala-vra, “inteligência” deve entender-se no sentido amplo dogrego “entelekia”, ou seja, a capacidade de inteligir. Estaenvolve a percepção, a criação de modelos da realidadepercepcionada, e a capacidade de decidir agir sobre essarealidade, confrontando as expectativas com o resultadoda acção para depois a corrigir. “Entelekia” significa lite-ralmente a capacidade de poder agir em acordo com(“en”) um objectivo (“telos”).

IMPORTÂNCIA TECNOLÓGICA E ECONÓMICADA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL

A importância científica, industrial e económica daIA , bem como o seu previsível impacte social têm cres-cido muito nos últimos anos, estimando-se que cresçamuito mais, apoiada quer na banalização da potência decálculo (necessária à complexidade das suas operações)quer nos progressos reais verificados na investigação fun-damental, cujos resultados saem agora dos laboratóriospara a indústria. Na sua vertente tecnológica, a IA com-porta uma importante faceta de engenharia. Na verdade,pretende em última análise programar computadores (aque poderão estar acoplados sensores e actuadores) deforma que desempenhem com êxito e eficiência tarefasque requerem inteligência.

Tal desempenho tem como suporte a combinaçãoracional de métodos gerais e automatizados de abordagemà formulação e resolução lógica de problemas. É pelageneralidade, computabilidade, e combinabilidade lógica

desses métodos que a IA se distingue como disciplinacientífica. Em contraste, outras disciplinas científicasusam técnicas inteligentes mas específicas do seu domí-nio; técnicas gerais mas sem explicitação do raciocínio;técnicas múltiplas mas não articuladas num todo automa-tizado.

As técnicas da IA encontram-se em evolução rápida, ealgumas vão-se consubstanciando em instrumentos de“software” comercialmente disponíveis, de utilizaçãoacessível àqueles com um mínimo de inclinação informá-tica. Outras dessas técnicas, não existindo sob a forma deinstrumento acabado acessível ao leigo, necessitam de umespecialista para a sua aplicação casuística.

A utilização da IA começa a generalizar-se com muitosêxitos de aplicação. Ocorrem anualmente inúmeros coló-quios internacionais expressamente dedicados a essas apli-cações. Em Portugal verifica-se um potencial considerá-vel em IA, já consolidado em grande parte a nível doensino e da investigação (2).

MITOLOGIA ETERNA, MITOLOGIA MODERNA

Os mitos tiveram e têm ainda a função de estruturar osaber humano sobre problemáticas universais, sendo porisso eternos, e modernos porque evoluem com as circuns-tâncias. Ao mito de Prometeu e seus desenvolvimentosvou adicionar uma leitura mitológica da InteligênciaArtificial.

Segundo Hesíodo, Prometeu roubou o fogo dos deusesdo céu a Zeus, para animar o espírito do homem de barropor ele feito, sendo pois pai do género humano. Dá aindao fogo ao homem, que com ele molda os instrumentos ecria “o artificial”.

O moderno Prometeu rouba agora o fogo/jogo simbó-lico, e de símbolos feito, aos deuses terrenos da ciência etecnologia, para animar com Inteligência Artificial umacriatura constituída já não de barro, flexível, mas de silí-cio, programável (3).

Pandora é para os gregos a primeira mulher, enviadapara casar com Epimeteu, irmão ingénuo de Prometeuque incute ao homem de barro de Prometeu apenas osinstintos animais (“o natural”).

Literalmente, “Prometeu” significa “antepensamento”(ou, se quisermos, “pensamento sobre um modelo pré-vio”), enquanto “Epimeteu” significa “pensamento a pos-teriori” (ou, se quisermos, “sem reflexão prévia”).

Pandora é construída como um autómato (ou robô) apartir do barro por Hefasto, deus grego do fogo, dos fer-reiros e da arte da forja (ou “da ciência e tecnologia”).

Leva como prenda de casamento uma caixa (leia-se“caixa negra”), com a proibição de ser aberta. A curiosi-dade humana (leia-se “investigação”), espicaçada, espalhaao abri-la todos os males do mundo.

Deste modo os deuses se vingam da humanidade peloroubo do fogo por Prometeu. Este, na tragédia deÉsquilo Prometeu Acorrentado, é por sua vez condenado aum suplício eterno, de que será liberto pelo famoso herói

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humano Héracles (Hércules para os romanos), sua criatu-ra, em troca de Prometeu revelar a Zeus um valiososegredo (cf. importância do conhecimento). Curiosamen-te, Héracles é o único herói da Mitologia Grega que, jámorto, ascende à categoria de deus, tornando-se poisimortal.

Numa tragédia posterior da trilogia de Ésquilo sobreeste tópico, Prometeu Vencedor, este torna-se o herói cria-dor da cultura contra a tirania dos deuses. Aí Prometeu ePandora representam as duas faces inseparáveis do conhe-cimento e tecnologia, as suas graça e desgraça.

Para o poeta inglês Shelley, no seu Prometheus Unbound,de 1820, Zeus (encarnação do mal) é destronado porDemogorgon (poder original do Mundo) e Héracles (aforça) liberta Prometeu (a Humanidade) que desposa Ásia(a Natureza), voltando esta a ser uma beldade, e dando-seinício ao mundo do amor e do bem.

Com o poema “Prometeu e Epimeteu”, do alemãoSpitteler, de 1881, Prometeu deixa de encarnar o satanis-mo, aspecto acentuado pelos Românticos, para passar asimbolizar a fidelidade do homem a si próprio, e a crençanas suas capacidades racionais.

Um breve relance a duas histórias míticas dessa época,respeitantes à máquina, é ilustrativo do renascer da temá-tica presente no mito de Prometeu, em consequência daRevolução Industrial de então. A primeira é a utopianegativa de Samuel Butler, Erehwon (4), e a segunda é ahistória de Frankenstein, de Mary Shelley.

Na novela de Butler, publicada em 1872, é-nos apre-sentado o Luddismo levado até ao extremo. Na históriada revolução erehwoniana contra as máquinas é invocadaa presumida tradução de um manuscrito, O Livro dasMáquinas, incitando os homens à revolta contra elas,supostamente escrito antes da longa guerra civil opondo,em Erehwon, os “maquinistas” aos “antimaquinistas” (cf.os ludditas da revolução industrial inglesa), em que édestruída metade da população (como nas guerras atómi-cas).

O sabor presciente dos temores do autor pode ser pers-crutado em passagens como esta: “Não há segurança con-tra o desenvolvimento último da consciência mecânicapelo facto de as máquinas possuírem agora pouca cons-ciência. Um molusco não tem muita consciência.Reflicta-se no avanço extraordinário das máquinas nosúltimos séculos e repare-se quão lentamente os reinos ani-mal e vegetal progridem... Se assim for, no que não setransformarão elas no fim? Não será mais seguro cortar omal pela raiz e proibir-lhes qualquer ulterior progresso?”

Indo ainda mais longe, Butler previu, no seu livro, oameaçado termo da descontinuidade entre o Homem e aMáquina, tal como via o trabalho de Darwin ameaçandoo termo da descontinuidade entre o Homem e os animais:“Tremo com tanto horror ao acreditar que a minha raçapossa algum dia ser substituída ou ultrapassada, como aoacreditar que mesmo no período mais remoto os meusantepassados não eram seres humanos.” O contra-argu-

mento de que “as máquinas deveriam ser encaradas comouma parte da natureza física própria do homem” é rejei-tado liminarmente: “Nisto reside o nosso perigo. Poismuitos parecem inclinados em aquiescer um futuro tãodesonroso. Dizem que apesar do Homem dever vir a serpara as máquinas o que o cavalo e o cão são para nós, queele continuará mesmo assim a existir e provavelmente emmelhor situação, no estado domesticado, sob o governobenigno das máquinas, do que no seu actual estado selva-gem”.

Muitos destes mesmos temas - a máquina-servoerguendo-se contra o seu senhor, o medo de a máquina sereproduzir sexualmente, e o terror, por fim, do Homemque compreende que é de um todo com a máquina - seencontram ligados a um mito recorrente com raízes anti-gas, a que chamarei “mito de Frankenstein”.

Ao escrever a sua novela gótica, em 1816-17, MaryShelley, mulher do poeta, deu-lhe o subtítulo O ModernoPrometeu. Mary Shelley oferece “Frankenstein” como umexemplo de “quão perigosa é a aquisição do conhecimen-to”, neste caso, especificamente, a capacidade de “darvida à matéria inanimada”, uma prerrogativa dos deuses,e também o horror da enorme possibilidade de sucesso.

Tendo passado agora ao folclore, as pessoas dão usual-mente pouca atenção aos verdadeiros pormenores danovela: primeiro, o nome “Frankenstein” é muitas vezes da-do ao monstro: no entanto, no livro é o nome do cien-tista e a criatura não tem nome; segundo, o monstro nãoé uma máquina, mas um produto artificial de “carne esangue”; terceiro e último, é frequentemente esquecido oimportante ponto de que o monstro só se torna assassinoporque o seu criador, horrorizado com a sua produção,lhe recusa o amor humano e o afecto que o monstro lhepede a todo o transe e recusa ainda fabricar-lhe a parceirasexual que o liberte da solidão.

A artificialidade do computador, versus a sua naturali-dade, é o pecado do Moderno Prometeu. Na actual “revo-lução industrial” irá o novo Hércules, com a sua Inteli-gência Artificial, conseguir libertar-nos do perigo da suacriação?

MÁQUINAS HUMANAS:A CONTINUIDADE ENTRE O HOMEM E A MÁQUINA

Nas suas conferências de “Introdução à Psicanálise”,proferidas em Viena entre 1915 e 1917, Freud sugeriuqual seria o seu próprio lugar entre os grandes pensadoresdo passado que ultrajaram o ingénuo amor-próprio doHomem. O primeiro da série foi Copérnico, que aboliu aprimeira descontinuidade, ao ensinar que a Terra “não erao centro do Universo, mas apenas uma pequena partículanum sistema do Mundo de uma magnitude dificilmenteconcebível”. O segundo foi Darwin, que “roubou aoHomem o peculiar privilégio de ter sido especialmentecriado e o relegou a descendente do mundo animal”. Ter-ceiro, agora, o próprio Freud admitiu pelas suas palavrasque a Psicanálise “se esforçava por provar que o ego de

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Fig. 4 - O fascínio do artificial como acrobacia.

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Fig. 5 - O segredo do comportamento revelado na estrutura.

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cada um de nós nem sequer é senhor da sua própria casa,mas que se deve dar por satisfeito com os refugos deinformação acerca do que se passa inconscientemente noseu espírito”. (5)

Nesta versão das três ego-sabotagens históricas oHomem é colocado num espectro contínuo, que desde oinorgânico passa pelo restante reino animal, atravessa ahistória da sua cultura e percorre o passado pessoal. Dei-xa, assim, de ser descontínuo em relação ao mundo queo rodeia. No entanto, uma quarta e aparentemente maiordescontinuidade existe ainda por desfazer. É a desconti-nuidade entre o Homem e a Máquina pensante, intros-pectiva e emocionante, entre a mente orgânica e a menteinorgânica. De facto, esta quarta descontinuidade deveráser agora eliminada. Na verdade, a tarefa já começou coma informática, e neste processo o ego humano sofreráoutro rude choque, semelhante aos administrados porCopérnico, Darwin ou Freud.

Tentarei explicar o que esta descontinuidade envolve.Há hoje bastantes provas de que o Homem evoluiu dosoutros animais até à sua humanização através de umainteracção contínua de transformações: físicas, dos uten-sílios e mentais - emocionais. A visão antiga de que oHomem primitivo chegou ao teatro da evolução comple-tamente formado e começou a descobrir utensílios e osnovos modos de vida que aqueles tornaram possíveis jánão é crível. Com as provas que se acumulam é hoje pos-sível especular com alguma confiança sobre o modo comoa forma de vida tornada possível pelos utensílios mudoua pressão da selecção natural, transformando assim aestrutura física e mental do Homem (6).

O locus classicus da insistência na quarta descontinui-dade é o trabalho de Descartes. No seu “Discurso doMétodo”, por exemplo, coloca Deus e a alma de um lado,sem localização espacial ou extensão, e o mundo material--mecânico, em todos os seus aspectos, do outro. Ele ima-gina que Deus formou o corpo do Homem, tanto na con-figuração externa como na interna, sem usar na sua com-posição senão matéria física. Assume também que Deusnão pôs nesse corpo nenhuma alma racional (definida porDescartes como “aquela parte de nós distinta do corpocuja essência... consiste apenas em pensar”).

Postos nos seus termos mais simples, os dois critériosde Descartes para discriminar o Homem da Máquina sãoque a última (1) não tem mecanismos de retroacção e deauto-referência (“nunca poderiam modificar as suas par-tes’’) e (2) não tem razão generalizante (“a razão é um ins-trumento universal que pode ser usado em toda a espéciede situações”).

Mas é exactamente nestes pontos que hoje já não somoscapazes de manter essa dicotomia (7). O hiato entre opensar do Homem e o das suas Máquinas pensantes foigrandemente encurtado pela investigação recente em IA eos seus programas para computador que entendem a lín-gua falada e escrita, que demonstram novos teoremasmatemáticos, que fazem diagnóstico médico, que jogamxadrez, que constroem outros programas e que, actual-

mente, se encontram no limiar de potentes capacidadesintrospectivas, bem como de formar embriões de socieda-des através das redes locais e teleinformáticas.

Para Descartes, eliminar a descontinuidade entre oHomem e as Máquinas seria banir Deus do Universo. “Aalma racional, insistia Descartes, não poderia de formanenhuma derivar dos poderes da matéria... mas deveriater sido criada por Deus.” Criação especial requer Deus,uma criação especial - o raciocínio de Descartes é circu-lar. O choque para o ego do Homem ao aprender a liçãodarwiniana de que não foi “especialmente criado” é, sobesta luz, apenas um abalo distante do grande terramotoque estilhaçou a visão que tinha de Deus e de si próprio.Os obstáculos à remoção não apenas das três primeiras,mas também da quarta descontinuidade, estão profunda-mente enraizados no orgulho que o Homem tem do seulugar na Natureza (8).

Pensadores ousados, como La Mettrie no seu L’HommeMachine (1747), foram até ao puro materialismo. Comodeclara La Mettrie, numa antecipação transcendente daquarta descontinuidade: “Creio que o pensamento é tãopouco incompatível com a matéria organizada que pareceser uma propriedade desta, como a electricidade, forçamotriz, impenetrabilidade, extensão, etc.”

A demonstração dessa compatibilidade viria a fazer-sesó contemporaneamente como o advento do computadordigital, cuja capacidade de manipulação de símbolos é amais geral concebida até hoje. Apesar dos esforços bri-lhantes de Babbage no século XIX, ele não encontrariaresposta atempada na tecnologia da sua época. Coube aoséculo XX prover a combinação da matemática, da elec-trónica e da tecnologia moderna para criar as Máquinasmanipuladoras de símbolos que coabitam connosco e rea-cendem a questão metafísica à luz de nova informação.Tal informação, que nos advém também da biologia, dizrespeito à aproximação dos termos dispares “Homem” e“Máquina”. Por um lado, a noção de Máquina foi sucessi-vamente alargada (e mesmo a noção de matéria), de talforma que não faz já sentido equacionar “maquinal” com“mecânico”. Aliás, a noção de Máquina é hoje em diacompletamente abstracta, matemática e independente dosubstrato material que a realize. Uma Máquina abstractapode ser realizada por diferentes substratos materiais,inclusive biológicos (cf. engenharia genética). É o princí-pio da independência do “software” em relação ao “hard-ware”. Por outro lado, a biologia (cf. os mecanismos asso-ciados ao ADN) tem vindo a mostrar como os conceitosoriundos das Máquinas abstractas lhe podem servir. Entrea biologia e a computação a nova disciplina da “VidaArtificial” está em pleno desenvolvimento: a dos organis-mos abstractos, sustentada pela informática teórica e como computador como laboratório. Neste se testam in vitroos mecanismos simbólicos que suportam organismos sim-bólicos em ambientes simbólicos (alguns interpretáveis nabiologia natural).

As implicações da questão metafísica são claras. OHomem sente-se ameaçado pela competição da Máquina,

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quer dizer, pelos seus instrumentos, em sentido lato, etambém em desarmonia consigo mesmo, porque emdesarmonia com as máquinas que fazem, literalmente,parte de si, isto é, do seu modo de se representar inseridona Natureza.

A minha tese tem sido a de que o Homem está nolimiar da ultrapassagem da descontinuidade entre ele e aMáquina. Por um lado, tal acontece porque o Homempode agora perceber a sua própria evolução como inextri-cavelmente interligada com o uso e desenvolvimento deutensílios, dos quais a máquina moderna mais acabada, ocomputador, é apenas a extrapolação extrema. Já nãopodemos pensar o Homem sem a Máquina. Por outrolado, porque o Homem compreende, actualmente, que osmesmos conceitos científicos ajudam a explicar o seu fun-cionamento e o das suas máquinas pensantes.

Seria, claro, absurdo afirmar que não há diferençasentre o Homem e as Máquinas. Isso seria comparável àafirmação de que, porque é um animal, não há diferençaentre o Homem e os outros animais. Trata-se de umaquestão de grau. O que se sustenta aqui é que a nítidadescontinuidade entre o Homem e as Máquinas já não édefensável. Mais ainda, esta transformação na nossa cons-ciência metafísica, esta transcendência da quarta descon-tinuidade, é essencial para a aceitação harmoniosa de ummundo industrializado. As outras alternativas são, ouuma tíbia rejeição dos “frankensteins” que criámos, ouuma crença cega nas suas virtudes sobre-humanas e umafé comovente de que eles podem resolver todos os proble-mas humanos.

Uma quinta descontinuidade espera-nos uma vez col-

matada a quarta: a perda do privilégio de criar criaturastambém elas passíveis de criarem outras como entendam.

Mas a identidade do ser não é possível como fixismoimortal (nem mesmo para a Máquina) num universo emevolução. Pode quanto muito manter-se como processo,em direcção ao “bootstrap” da enteléquia hegeliana, numcosmos finalmente conciliado com a sua auto-reflexãoactuante. Nesse processo, a IA é apenas um passo simbió-tico inevitável.

PERIGOSIDADE DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL

Mas serão as máquinas inteligentes instrumentos maisperigosos que outros concebidos pelo Homem para domí-nio do mundo natural e criação de um mundo artificial?Acho que não. Qualquer artefacto, do medicamento aocomputador, e qualquer conhecimento, da engenharia daconservação dos alimentos à sociologia ou à física nuclear,são igualmente perigosos. O perigo, para passar à escalado social, necessita de institucionalização. As institui-ções, esses instrumentos sociais, elas sim podem poten-ciar ou despotenciar, promover ou coarctar o perigo ine-rente a todo o conhecimento e a todo o artefacto. A IA nãoé excepção.

Contudo, a tecnologia da IA evolui hoje mais depressado que o ritmo actual da nossa apreciação sobre ela, e daíque seja premente o incremento do seu estudo em todasas facetas, de forma a tornar as máquinas cada vez maishumanas. Naturalmente, será preciso ir buscar meiosfinanceiros aos dispêndios feitos com as máquinas deguerra. O perigo, afinal, é o de as instituições se recusa-rem a admitir isso.

(1) Esta teoria casa bem com a teoria dos três mundos de Karl Popper. Nelahá um mundo exterior que é o mundo físico, um mundo interior a queele chama mundo 3 (o primeiro é o mundo 1) que é o mundo artificialpuro, o mundo das teorias matemáticas e da música por exemplo, quenão tem necessidade de fazer qualquer referência ao exterior, e existe porsi , com objectivos que fazem parte desse nexo causal interno. Entre osdois mundos há um psicológico, o mundo 2 de Popper, onde se fazem astransacções, e que é o mundo da atenção perceptiva, da próprio-ceptivi-dade, e motricidade de cada um de nós.

(2) Consultar o Quadro I acerca da incidência da IA na inovação e difu-são tecnológica em geral, o Quadro II sobre o ensino oficial da IA emPortugal, e o Quadro III em relação à investigação em Portugal daIA.

(3) Analogamente, no hebraico do Antigo Testamento, “Golem” significa oembrião ainda sem forma. Na filosofia medieval judaica designavamatéria sem forma. Os místicos Hassídicos dos séculos XII e XIII, naAlemanha, praticavam um ritual visando usar o poder cabalístico doalfabeto hebraico para dar forma à matéria do universo criando umGolem, que é na lenda um monstro de barro a que se dá vida inscre-vendo-lhe na testa a palavra EMETH (Verdade), ou seja, progra-mando-o. . . em Lógica. O robô/golem do rabi de Praga era desactivadoretirando-lhe a primeira letra, resultando METH (Morte).

(4) “Erehwon” é o reverso de “nowhere”, a palavra mais ambígua da lín-gua inglesa, pois que se pode ler “now here” ou como o seu oposto “nowhere”. Butler presume o tema do seu livro acutilante em qualquerlugar e época.

(5) Alguns invocarão outros agentes provocadores de continuidades, ou parao mesmo agente invocarão outras continuidades. Assim, para JeromeBruner as continuidades estabelecem-se eliminando os hiatos resultantesdas diferentes visões fragmentárias da Natureza, a qual é, no entanto,contínua. Para ele a primeira continuidade foi estabelecida pelos físi-cos-filósofos gregos, que conceberam os fenómenos do mundo físico como“contínuos e monísticos, governados pelas leis gerais da matéria”; asegunda continuidade atribui-a a Darwin e, segundo ele ainda, comFreud foram estabelecidas as seguintes continuidades: a da obediênciado orgânico a leis, de tal forma que “o acidental, no que respeita aohomem, não possa mais ser tolerado, como o não é no que respeita àNatureza”; a continuidade do primitivo, do infantil e do arcáico, coe-xistindo com o civilizado e o evoluído, e a continuidade entre a doençae saúde mental.

(6) Darwin, claro, tinha entrevisto o papel dos utensílios na evolução dohomem. Foi, no entanto, Karl Marx quem primeiro colocou a questãosob nova luz, afirmando, em O Capital, que ”as relíquias dos instru-mentos de trabalho não têm menos importância no estudo das formassocioeconómicas desaparecidas do que os ossos no estudo da organizaçãode espécies extintas”. O homem e os seus utensílios de processamento desímbolos, o moderno computador e os seus antecessores fazem parte de umcontínuo de complexidade, que é independente do substrato material queo suporta, e portanto da dicotomia orgânico/inorgânico.

(7) Em jeito de premonição, um autómato miniatura setecentista escrevia,em letra caligráfica, “Não penso. Será que não existirei?”.

(8) Um contemporâneo mais novo de Descartes, Pascal, reconhece-se, noentanto, “mergulhado na imensidade infinita dos espaços, dos quais

NOTAS

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SUGESTÕES DE LEITURA

I. Aleksander; P. Burnett - Reinventar o Homem - 0 Robot Torna-se Rea-lidade, Editorial Presença, 1985.

M. Boden - Artificial Intelligence and Natural Man, 2ª ed., Harvester Press,1987.

O. J. Flanagan Jr. - The Science of the Mind, The MIT Press, 1984.

H. Gardner - The Minds New Science, Basic Books, 1985

J. Haugeland (ed.) - Mind Design, Bradford Books, 1981

D. Hofstadter - Gödel Esher Bach, Basic Books, 1979.

G. S. Kirk - The Nature of Greek Myths, Penguin Books, 1974.

D. Michiel e R. Johnston - O Computador Criativo, Editorial Presença, 1986.

N. Nilsson - Principles of Artificial Intelligence, Springer-Verlag, 1984.

Revista Futuro - 15 Anos de Inteligência Artificial em Portugal, Ano II,nº15, 1988.

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E. Rich - Introduction to Artificial Intelligence, Addison-Wesley, 1984.

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J. C. Webb - Mechanism, Mentalism and Meta-mathematics, D. Reidel, 1980.

N. Wiener - God & Golem, Inc. Chapman & Hall, 1964.

nada sei e que nada sabem de mim”. Para escapar ao sentimento de ter-ror Pascal foge da razão para a fé. Estaria ele assombrado pela suaprópria construção de uma máquina de calcular que antecipou o

moderno computador digital? Ele próprio notou que “a máquina arit-mética produz efeitos que se aproximam mais do pensamento do quetodas as acções dos animais”.

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